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Walter Garcia

" DA DISCUSSÃO É
QUE NASCE A LUZ "
canção, teatro e sociedade
Fino Traço Editora Ltda.
© Walter Garcia
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G211d
Garcia, Walter
"Da discussão é que nasce a luz": canção, teatro e sociedade / Walter Garcia. - Ebook - Belo
Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89011-30-9
1. Música popular - História e crítica - Brasil. 2. Música - Aspectos sociais - Brasil. 3. Música
popular - Teatro brasileiro. I. Título.

20-67229 CDD: 782.421640981 CDU: 78.038.6(81)

Coleção Estudos Brasileiros | Editora Fino Traço


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Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)
Marcos Antônio de Moraes
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

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Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
2007: está mais fácil trabalhar com canção
popular-comercial no Brasil?

Quando começou a trabalhar com música, Tom Jobim ouviu que


provavelmente morreria “pobre, tuberculoso e na sarjeta”, extenuado de
correr atrás do aluguel tocando piano em inferninhos. E também que deveria
seguir com Chopin, Rachmaninoff, em vez de perder tempo com sambinhas,
entre bêbados e prostitutas.1 O jovem Chico Buarque, logo após o repentino
e estrondoso sucesso de “A banda”, afirmou que começaria a se “preparar para
o vestibular numa Faculdade de Letras”.2 Até viver com mulher e filha na
Itália, entre 1969 e 1970, tomando distância da repressão da ditadura militar,
acreditava que suas canções não lhe garantiriam uma carreira profissional
duradoura.3 Mas achava divertida a rotina de artista, às vezes enfrentada
sem “rigor profissional nenhum”.4 Mesmo ao voltar do exílio, a sua bagagem
para show de um dia só, em qualquer cidade, era uma sacola plástica; dentro
dela, uma escova de dentes, a pasta e uma camisa.5 Depois é que os shows lhe
causariam mais nervosismo que diversão.6 Já os Mutantes se divertiam em

1. Cf. SOUZA, Tárik de; CEZIMBRA, Márcia; CALLADO, Tessy. Tons sobre Tom. Rio de
Janeiro: Revan, 1995, p. 76. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista: Tom Jobim”. In: JOBIM, T. Songbook
Tom Jobim, volume 2. Produzido por Almir Chediak. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994,
p. 13 (entrevista concedida a Almir Chediak). Cf. JOBIM, Antonio Carlos. A vida de Tom
Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora Rio Cultura/ Faculdades Integradas Estácio
de Sá, s. d., p. 42.
2. Cf. FREIRE, Roberto, “Chico dá samba”. Realidade, ano I, n. 9. São Paulo, Editora Abril,
dez. 1966, p. 72.
3. Cf. BANDEIRA, Julia. Retrato de Chico por suas meninas. São Paulo, COMFIL-PUCSP,
2004. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará/
Prefeitura, 1999, p. 104.
4. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 52 a 63 (a citação literal
pode ser lida à p. 62).
5. Cf. RIBEIRO, Hamilton, “Chico põe nossa música na linha”. Realidade, ano VI, n. 71.
São Paulo, Editora Abril, fev. 1972, p. 16.
6. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 29-39.

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programas de tevê e estúdios de gravação, na década de 1960, e estrelavam
campanhas publicitárias como se tudo fosse uma brincadeira.7
Qualquer tempo passado foi melhor? Ou se tornou mais fácil para jovens
de classe média, de lá pra cá, trabalhar com canção popular-comercial no
Brasil, ingressar no mercado, afirmar-se e sobreviver, quem sabe, com alguma
boa folga? Cada um dos três Mutantes assinalou um caminho profissional
diverso, enquanto o grupo ia se modificando, até findar. Trata-se de fatos
bem conhecidos, mas não seria desinteressante analisá-los. Deixando de
lado determinações de ordem pessoal, a trajetória de Rita Lee, a de Arnaldo
Baptista, a de Sérgio Dias e a forma como o grupo reapareceu há pouco8
poderiam indicar aspectos constitutivos do mercado da canção, o qual não
está mesmo para brincadeiras, se é que esteve antes.
Chico Buarque viu suas canções e seus romances serem estudados
nas faculdades de letras. Também digno de estudo seria o fato de Carioca,
praticamente só com novas composições, sair em 2006 pela Biscoito Fino,9
enquanto a série de doze DVDs que organiza a nada provisória carreira de
Chico é lançada por uma major, a EMI.10 Leve-se em conta ainda que os
seus shows permanecem lotados, segundo a grande imprensa, apesar (ou por
causa?) do alto preço dos ingressos, objeto de alguma contestação.11 Para o
artista, cabe agora negociar: “O público quer ouvir músicas velhas e eu quero
cantar músicas novas. Então, quando eu faço show, canto metade do show
para satisfação pessoal e a outra metade, para o público. E ficamos quites”.12
Tom Jobim, em 1994, negou a autoria de uma frase a ele atribuída e que
se tornara célebre: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto

7. Cf. CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. São Paulo: Editora 34, 1995.
8. Cf. GARCEZ, Bruno, “Cult entre britânicos, Mutantes ‘revivem’ em Londres”. Publicado
em: 22 mai. 2006. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/
story/2006/05/060522_mutantesshowlondresbg. Acesso em: 7 out. 2020. Cf. NEY, Thiago,
“Mutantes retornam ao Brasil depois de quase 30 anos”. Publicado em: 25 jan. 2007. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67845.shtml. Acesso em: 7 out. 2020.
9. Cf. BUARQUE, Chico. Carioca. Biscoito Fino, BF 646, 2006. Edição com CD e DVD
(documentário Desconstrução, direção de Bruno Natal).
10. Com direção de Roberto de Oliveira, os doze DVDs foram vendidos em quatro caixas
– as duas primeiras, produzidas em 2005, as duas últimas, em 2006.
11. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 37.
12. Cf. DEL RÉ, Adriana, “As boas novas de Chico Buarque”. O Estado de S. Paulo, 28/1/2005,
p. D5.

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do Galeão. “Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes
músicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo
muito sucesso aqui no Brasil.”13 Todavia, dois anos antes afirmara: “Que
assombro ver uma país musical como o nosso, mas onde os músicos não
podem viver!”.14
Retomemos a pergunta: está mais difícil trabalhar com música popular-
comercial do que já foi? Embora a resposta dependa do lugar que se ocupa
no mercado, como é regra, creio que não vivemos hoje um momento
acentuadamente pessimista. As novas tecnologias de produção, que vêm
barateando os custos, as possibilidades de difusão e de distribuição via
internet, os editais de fomento e incentivo à cultura e até mesmo as restritas
e restritivas verbas de patrocínio sustentam um otimismo claramente não-
hegemônico, nada efusivo, mas ainda assim disseminado.

O mercado ideal
Mas é certo que, há mais ou menos dez anos, o otimismo parecia mais
sólido. Se não estou equivocado, foi durante o período em que se venderam
discos no Brasil como nunca. O patamar de 1 milhão de cópias deixara de
ser ficção para as majors, conforme anunciavam jornalistas, e as vendas
monstruosas eram todas de produtos brasileiros. Uma notícia divulgava quem
eram os vencedores, em 1996, classificando-os como num supermercado
e usando de uma ironia típica da imprensa (forma de aparentemente se
distanciar daquilo que lhe é mais íntimo?): “o sócio de carteirinha, Roberto
Carlos, o sertanejo de Zezé Di Camargo e Luciano, o pop do Skank [com
dois discos], o samba de Martinho da Vila, a trilha de ‘O Rei do Gado’ e o
bumbum do ‘É o Tchan’”.15 Talvez o Mamonas Assassinas merecesse estar
na lista, não sei bem em qual prateleira. Até março daquele ano – quando
houve o acidente com o avião em que viajava –, o grupo vendera 1,8 milhão

13. Cf. JOBIM, Tom, “Tom Jobim, a última entrevista”. Qualis, n. 24. São Paulo, Qualis
Editora, jan. de 1995, p. 22 (entrevista a Walter de Silva).
14. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista à Cleusa Maria”. Jornal do Brasil, 1º/3/1992. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas. Acesso em: 10 mai. 2005.
15. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Venda favorece artista nacional”. Folha de S.Paulo, 23/12/1996,
p. 4-3.

19
de cópias em oito meses (recorde para um disco de estreia; até onde sei, a
marca não foi superada).16
O segmento MPB, rótulo com maior prestígio no mercado brasileiro,
atingiria o patamar com Prenda minha, de Caetano Veloso, gravado ao vivo
– um formato de sucesso – e lançado em 1998.17 Ao ultrapassar 1 milhão de
cópias, foi o CD de maior vendagem na carreira de Caetano (refiro-me aos
meses de lançamento, de acordo com o que foi noticiado; mesmo porque,
é difícil informar-se sobre as vendas de um disco brasileiro ao longo de
décadas).18 Nele está “Sozinho” (Peninha), incluída em Suave veneno, uma
novela das 8 da Rede Globo. E também regravações e interpretações de
canções alheias, em sua maioria já conhecidas pelo público do show – que
participa aplaudindo não só ao final das execuções, mas também aos primeiros
versos reconhecidos – ou, mais genericamente, pelo consumidor de MPB.
Há ainda uma faixa em que Caetano lê um trecho de seu livro Verdade
tropical, publicado em 1997, no qual se fala de Gilberto Gil, moço, aparecendo
na televisão e sendo saudado por Dona Canô.19 O livro também está em duas
fotos do CD. Caso fosse bem examinado, o produto esclareceria os contornos
do segmento de mercado, apesar do conhecido repúdio de Caetano Veloso à
sigla MPB. No período de lançamento, o que pareceu mais saliente foi o acerto
comercial do disco. Mas, numa tentativa rasa de sistematização e reiterando
o que já se observou, diga-se que o disco se apresenta como o recorte da
carreira bem-sucedida de um trabalhador que atua, desde a tropicália
nos anos 1960, em várias frentes: compositor, cantor e músico, bastante
talentoso e carismático em tudo isso; pensador com grande capacidade
crítica; e personagem da mídia com grande capacidade para se promover,
o que é feito de modo ostensivo. Estando todos esses trabalhos, com seus
fundamentos artísticos, reflexivos ou comerciais, absolutamente misturados,
fica complicado examinar as partes e avaliar o efeito final da mistura.

16. Cf. VEJA, “A morte no auge”. São Paulo, Editora Abril, 13/3/1996, p. 97.
17. Cf. VELOSO, Caetano. Prenda minha. PolyGram, 538 332-2, 1998.
18. Cf. BIN, Marcos Paulo, “Caetano ainda mais próximo da Universal”. Publicado em: 3 out.
2004. Disponível em: http://universomusical.com.br/materia.asp?mt=sim&cod=me&id=409.
Acesso em: 7 out. 2020.
19. Cf. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

20
Quanto aos pequenos selos, faria história Sobrevivendo no inferno do
Racionais MC’s, lançado em 1997 pelo independente Cosa Nostra e distribuído
pela Zambia, empresa criada para levar o disco ao mercado: em quatro
semanas, 200 mil cópias vendidas; no ano seguinte, meio milhão, sem falar
de premiações na MTV.20 Se fosse para uma prateleira, seria a de rap. De
modo algum isso daria conta, entretanto, do valor do produto.
Dizendo de modo sucinto, trata-se do mais alto nível artístico alcançado
no mercado fonográfico naquele período e de uma das principais realizações
da canção popular-comercial no Brasil. Faz uma síntese aprofundada, na e
pela canção, da experiência de viver nas grandes cidades brasileiras ao final
do século XX. Ou seja, dali em diante o trabalho do Racionais se afirmaria
definitivamente como padrão para quem se sente atraído pela qualidade
artística da canção, inclusive por suas relações com o consumo em grande
quantidade. Sem qualquer exagero, Sobrevivendo no inferno não interessa
somente a nós, que vivemos a História que ali se condensa, de forma crítica
e de modo a atingir a nossa sensibilidade. Enquanto obra de arte que é, o
disco permanecerá interessando ao longo do tempo.21
Parecia assim que o mercado brasileiro se agigantava, entre 1994 e 1998,
de um jeito que nele todo músico acharia espaço, cada qual ocupando um
lugar digno. No mercado paulistano (que acompanho mais de perto), os
shows do Karnak, o primeiro disco do grupo, lançado pelo selo Tinitus em
1995, e o videoclipe de “Comendo uva na chuva” (André Abujamra), veiculado
na MTV, entusiasmavam o chamado público formador de opinião, isto é,
classe média, universitário, ligado à imprensa. Vou simplificar as coisas:
parecia assim que todo músico acabaria se destacando na tevê, e não apenas
durante aqueles 15 minutos famosos. A dúvida, se é que havia, talvez ficasse
por conta da conhecida relação faixa de consumo/grade de programação:
meu target garantiria horário nobre para meu produto – ou seria melhor
mudar de público e de apelo?

20. Cf. RACIONAIS MC’s, Sobrevivendo no inferno, Cosa Nostra/ Zambia, CDRA 001,
1997. KALILI, Sérgio, “Mano Brown é um fenômeno”. Caros Amigos, ano 1, n. 10. São Paulo,
Casa Amarela, jan. de 1998, p. 31; KALILI, Sérgio, “Os mano detonaram...”. Vip Exame. São
Paulo, Abril, set. 1998, p. 55-58.
21. Cf. GARCIA, Walter, “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa: revista de literatura brasileira,
n. 4/5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP/ Editora 34, 2003, p. 166-180. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.11606/issn.2447-8997.teresa.2003.116377. Acesso em: 7 out. 2020.

21
Adiante retomarei a dúvida. Por ora, lembre-se que não se tratava de um
crescimento apenas do mercado fonográfico. Em meio à euforia do Plano
Real, uma agência de publicidade descobriu “como é possível vender tanto
televisor, geladeira, celular e outros bens se a renda individual brasileira é
tão baixa” (o censo de 2000 apontou que 51,9% dos trabalhadores recebiam
até dois salários mínimos; mais de dez salários mínimos, apenas 7,7%): “o
Brasil é muito pobre na renda individual e razoavelmente desenvolvido
em nível de renda familiar. As pessoas se juntam e compram apartamento,
televisão, telefone”.22
Não discutirei aspectos que requerem conhecimentos de que não
disponho, pois não sou economista: a expansão do crediário para as classes
D e E no quadro do capitalismo financeiro; o vínculo entre o aumento da
financeirização da economia e as baixas taxas anuais de crescimento do
PIB brasileiro durante a euforia do Real; os efeitos do baixo desempenho
econômico sobre a distribuição e a concentração de renda; a integração
informal e a autônoma ao mercado de trabalho como consequências do
desemprego. Vou-me limitar a números do negócio da canção. Em relação
ao mercado mundial de discos, na virada de 1978 para 1979 o Brasil alcançou
o 5o lugar, melhor posto até hoje.23 Aproximou-se novamente da colocação
naquele feliz 1996 quando, após três anos de aumento no consumo, alcançou
“um faturamento de US$ 891 milhões”, subindo do 13o para “o 6o posto no
ranking dos mercados fonográficos, com um crescimento de 35%” em relação
ao ano anterior.24
É verdade que não durou muito tal proeminência, logo a seguir chamada
de bolha. Já em 2001, o mercado hegemônico brasileiro cairia do 7o para o 12o
lugar,25 com vendas totais na casa de R$ 726 milhões, relativas a 75 milhões

22. Cf. GARRIDO, Juan, “A lógica do crescimento”. Gazeta Mercantil: balanço anual, ano
XXV, n. 25. São Paulo, julho de 2001, p. 196. Para os dados do Censo Demográfico 2000,
consultar www.ibge.gov.br e sua divulgação n’O Estado de S. Paulo em 9/5/2002, p. C1; C7-
C10, e em 30/9/2003, p. A10 a A12.
23. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 58.
24. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Brasil não é mais ‘primo pobre’”. Publicado em: 14 mai. 1997.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/5/14/ilustrada/2.html. Acesso em:
7 out. 2020.
25. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Mercado musical nacional cai 25%”. Folha de S.Paulo,
3/5/2002, p. E-4.

22
de unidades vendidas. Depois perderia essa colocação, retomada em 2004
quando, em relação ao ano anterior, “cresceu aproximadamente 17% em termos
de valor” e 18% em unidades vendidas, para o que contribuiu fortemente o
“sucesso dos vídeos musicais em DVD”, que passaram a representar “26%
do mercado total”, “com um incremento de 101% em termos de valor” (note-
se que essa dinâmica também ajuda a entender a divisão recente da obra
de Chico Buarque entre a Biscoito Fino e a EMI). Nesse ano de 2004, as
vendas totais ficaram em R$ 706 milhões, com cerca de 66 milhões de
unidades vendidas.26 Números inferiores, portanto, aos de 2001. Todavia,
não foi apenas o mercado brasileiro que diminuiu no período, o consumo
mundial de produtos da grande indústria da canção se retraíra. Sabe-se que
as majors identificaram “a pirataria comercial e a troca ilegal de arquivos”27
como principais responsáveis pela crise. Mas a luta contra a reprodução
indiscriminada de formatos digitais não se assemelha ao feiticeiro que já
não consegue dominar as potências demoníacas que evocara?
Esqueçamos a pergunta e ampliemos o foco em outra direção. O
censo brasileiro de 2000 apontava, desde 1991, aumento de 86,9% para
93% no número de domicílios com energia elétrica. Domicílios com rádio,
em 2000, eram 87,4%. Com televisão, 87%. A população já passava de 169
milhões de habitantes (169.799.170), nas cidades vivendo 81,1% (cerca de
138 milhões). Não havia informações sobre o número de domicílios com
aparelhos de som. A confiar em uma estimativa jornalística, porém, entre
julho de 1994, início do Plano Real, e os primeiros meses de 1998, “algo como
20 milhões de aparelhos de som (incluindo CD players e rádio-gravadores)
foram vendidos”.28 Creio que o quadro aqui retomado, mesmo que bastante
incompleto, seja suficiente para os objetivos deste artigo. A sua análise,
contudo, requer antes um novo recuo.

26. Cf. ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos). Annual Publication of the
Recording Market 2004. Rio de Janeiro, ABPD, 2005, p. 15 e 20. Disponível em: https://www.
pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Mercado_Brasileiro_de_Musica_2004.
pdf. Acesso em: 8 out. 2020.
27. Ibidem, p. 20.
28. Cf. FRANCO, Célia de Gôuvea, “Barulho das massas”, Folha de S.Paulo, 12/4/1998, p. 5-4.

23
O ideal do mercado
Na década de 1970, o predomínio da música estadunidense nas
programações das rádios e a grande quantidade de discos aqui produzidos
com matrizes estrangeiras estavam no centro dos debates sobre o mercado
brasileiro de canções. Discutia-se a taxação das cópias fabricadas com
matriz importada. Afirmava-se que as empresas multinacionais agiam
apenas segundo o interesse financeiro, o que provocava estranheza e até
mesmo indignação; corretas, no meu modo fora de moda de avaliar. Quer
dizer, vigorava a ideia de que a arte possui uma substância e a cultura de
tradição oral uma dinâmica que não se confundem com a produção em
escala industrial e com a mera prática mercantil, embora todas essas coisas
não sejam incompatíveis. Acontece que o círculo então firmado entre as
grandes gravadoras e os meios de comunicação de massa se consolidava
com base na profissionalização dos negócios.
O que se entendia por isso? De um lado, buscavam-se compositores
e intérpretes brasileiros capazes de “‘administrar suas próprias carreiras’”,
profissionais que pensassem “‘seriamente em gravar e vender amplamente’”. Os
termos entre aspas foram ditos por um alto executivo à imprensa, na época.29
Em outras palavras, se os profissionais da canção também seriam artistas,
se as suas obras desenvolveriam uma relação com o ouvinte para além do
descartável, se palavras cantadas e demais sons comunicariam experiências
que ampliassem a sensibilidade, a imaginação, a crítica, o conhecimento
e, portanto, a própria realidade – as grandes gravadoras não tinham essas
inquietações como as mais relevantes naquele período de crescimento do
mercado. Aliás, seria digno de pesquisa investigar em que medida e sob quais
condições os objetivos artísticos e culturais existiram/existirão dentro da
lógica das majors em qualquer tempo, assunto que não será abordado aqui
com a extensão e a profundidade que merece.

29. Os termos são citados e comentados por MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica:
um estudo antropológico. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 78 e 68, respectivamente.
Sobre o assunto, consultar também JAMBEIRO, Othon. Canção de massa: as condições
da produção. São Paulo: Pioneira, 1975, especialmente p. 25-38; e BUARQUE, Chico et
alii, “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Aldir
Blanc”. Participações de Sérgio Cabral, Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira. Homem,
Suplemento especial. São Paulo, Editora Abril, set. 1977.

24
De outro lado, conforme: 1) o estágio tecnológico; 2) a propriedade
dos meios de produção; 3) a distribuição em lojas; de outro lado, repito,
era mais fácil lucrar com um fonograma estrangeiro, cujas vendas no país
de origem e em outros mercados já haviam coberto os custos, do que com
uma nova gravação nacional, a qual implicaria investimento de mais capital
e consequentemente maiores riscos, dentre os quais se incluía a possibilidade
de censura pelo governo militar. O paradoxo é que ter uma canção censurada
também podia conferir a compositor e/ou intérprete boas chances de difusão
e de consumo.
Ainda que um tanto esquematicamente, toda essa situação pode ser
exemplificada se observarmos três estratégias que as gravadoras multinacionais
adotaram após 1973. Foi quando a crise mundial do petróleo e o fim do milagre
econômico brasileiro ameaçaram a expansão do mercado fonográfico, que
vinha se dando de forma contínua. Entre 1965 e 1972, segundo a Associação
Brasileira dos Produtores de Discos, houve “um crescimento de 400% nas
vendas do setor”. Em 1965, tivera início o programa Jovem Guarda, na TV
Record de São Paulo. Um empresário já afirmou que, a partir dali, mais
de 50% da execução pública passou a ser de música brasileira. Ao final
da década de 1970, o crescimento médio do mercado fonográfico seria de
15% ao ano, apesar da inflação e do aumento no preço dos discos. Vejamos
como as multinacionais conseguiram manter a tendência, após uma única
desaceleração, em 1973, atribuída “à falta de matéria-prima em quantidade
suficiente”.30
Em fins de 1977, o então presidente da WEA afirmou à imprensa que o
sucesso nacional, “‘quando ocorria, era sempre muito maior que o sucesso
de qualquer lançamento internacional, dado que o artista brasileiro contava
com uma faixa mais ‘profunda’ de público’”. Na sua avaliação, “‘o mercado

30. As citações entre aspas podem ser lidas em MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica:
um estudo antropológico, edição citada, p. 67 e 73. Baseio-me ainda em DIAS, Marcia Tosta.
Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada,
p. 54, 57 e 58; SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e
prevê extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor). Publicado em: 25 jul.
2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u15826.shtml.
Acesso em: 8 out. 2020; AUTRAN, Margarida, “O Estado e o músico popular: de marginal a
instrumento”. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro:
Aeroplano/ Editora Senac Rio, 2005, p. 89.

25
para a música brasileira representava 60% do mercado global de discos’”.
As declarações foram retomadas por Rita Morelli, em seu livro Indústria
fonográfica: um estudo antropológico. Ela observa que a música estadunidense,
nos anos 1970, liderava no segmento de público mais jovem que, recém-
integrado ao mercado e com menor poder aquisitivo, preferencialmente
adquiria compactos simples, consumindo “efêmeros sucessos estrangeiros”.
Esse segmento ainda adquiria, porém, compactos de “brasileiros que não
apenas compunham e interpretavam em inglês, mas também adotavam
pseudônimos estrangeiros”. Em outras palavras, havia uma tal demanda de
canções em inglês no Brasil que compensava investir nesse tipo de produção.31
A título de curiosidade, ficam aqui três exemplos, pinçados mais ou
menos ao acaso em ABZ do rock brasileiro, guia de Marcelo Dolabela. O
primeiro é Morris Albert (Maurício Alberto Kaiserman), autor e primeiro
intérprete de “Feelings”. Recorro agora ao livro A canção no tempo, de Jairo
Severiano e Zuza Homem de Melo. Lançada em 1973, “Feelings” foi tema de
Corrida do ouro, novela da Rede Globo que estreou no ano seguinte. A canção
fez sucesso não só no Brasil como na América Latina (“Sentimientos”, disco
de ouro no México) e nos Estados Unidos, onde vendeu mais de um milhão
de cópias (foi gravada por Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Dionne Warwick
e Ray Coniff, entre outros). Após tamanha repercussão, Morris Albert foi
acusado de plágio. Uma corte estadunidense concedeu coautoria ao francês
Loulou Gasté em 1987, enquanto a revista Time apontou que uma ária de
Verdi bem poderia ser a fonte da melodia, e não a balada “Pour toi”. Não
tendo bases para avaliar nem a sentença nem a opinião da revista, transfiro
a questão para o presente. Como se sabe, não é estranha a semelhança de
uma canção pop nacional com outra, seja pela repetição de fórmulas já
bem consumidas, seja pela cópia de modelos internacionais, basicamente
estadunidenses ou ingleses. Mas vale perguntar: não seria estranho o fato
de o mercado hegemônico parecer cada vez mais acostumado à semelhança,
não seria estranho esse mercado desejar a semelhança cada vez com maior
intensidade, não seria estranho escutar, com frequência, “eu gosto de música

31. Cf. MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, edição citada,
capítulo 1.

26
que eu conheço”, “eu gosto de música que toca no rádio” ou – advirta-se que
apenas registro frases que escutei – “muita música inédita enche o saco”?
O segundo exemplo é Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima), o
qual iniciou sua carreira solo com “My Life”, tema da novela O casarão, da
Rede Globo, em 1976. O terceiro, Mark Davies, pseudônimo utilizado por
Fábio Jr. na gravação de dois compactos simples.32
Portanto, a primeira estratégia para enfrentar um possível declínio na
expansão do mercado fonográfico foi a reprodução de matrizes estrangeiras e
a produção local de canções em inglês. A segunda, como já está anunciado, o
investimento na canção brasileira. A fim de melhor compreender esse ponto,
todavia, é necessário observar o lugar do LP no quadro, em contraposição
ao do compacto, acima referido.
A principal fonte de renda das grandes gravadoras, na década de 1970,
era obtida com o LP. Esse suporte difere de seu substituto, o CD, por uma
série de itens bem conhecidos; entre outros: processo de reprodução do
som; embalagem e correspondente tratamento gráfico; custos de produção.
O último item, junto com fatores adiante comentados, determinou uma
mudança fundamental na configuração do mercado hegemônico a partir dos
anos 1990. Nos 1970, o LP se alinhava, em geral, entre os artigos oferecidos
para as classes mais abastadas, tal como o primeiro ou o segundo automóvel
da família, o televisor em cores, a geladeira nova, algumas marcas de cigarro,
os grandes empreendimentos imobiliários, o aparelho de som 3 em 1 de
última geração.
Como se percebe, outra vez o mercado fonográfico não atuava à margem.
O programa econômico que levou ao chamado milagre pretendia, entre
seus objetivos básicos, “fomentar e dirigir o processo de concentração de
renda (processo este inerente às economias capitalistas subdesenvolvidas em
geral) para beneficiar os consumidores de bens duráveis, isto é, a minoria da
população com padrões de consumo semelhantes aos dos países cêntricos”, na
análise de Celso Furtado. Tal objetivo se vinculava à política governamental
“muito bem-sucedida” que visara “atrair as grandes empresas transnacionais

32. Cf. DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Estrela do Sul, 1987.
Cf. SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza Homem de. A canção no tempo, v. 2: 1958-1985. São
Paulo: Editora 34, 1998, p. 200-201.

27
e fomentar a expansão das subsidiárias destas já instaladas no país”.33 Daí
uma distribuição de renda concentrada, por assim dizer. Com o aumento da
participação na renda dos 20% mais ricos, e sobretudo dos 5% mais ricos,34
o mercado se fortaleceu apresentando “o perfil de demanda mais atraente
para as referidas empresas”.35
E a verdade é que o crescimento econômico prosseguiu, mantendo igual
orientação, apenas diminuindo seu ritmo: entre 1967 e 1973, a média foi de
11,2% ao ano; entre 1973 e 1980, 7,1%.36 As bases industriais priorizavam a
venda de produtos de maior valor agregado, ou seja, de consumo restrito
às camadas de maior poder aquisitivo. Uma lógica que inspirou a máxima
“primeiro crescer, depois dividir”. Válida, ao que parece, não só para aquele
período, uma vez que o Brasil ficou em segundo lugar entre os países que
mais cresceram no século XX, com “média de 4,5% ao ano, igual à da Coreia
do Sul e só superada pela de Taiwan (5%)”. Aliás, “de 1900 a 1973, o Brasil foi
o país que mais cresceu no mundo – média de 4,9% ao ano”.37
Não é de estranhar, assim, que durante os anos 1970 a chamada MPB
tenha se consolidado no mercado tendo como principal suporte o LP. É certo
que lançava também compactos, mas seu público majoritário podia arcar com
o gasto obviamente superior escolhendo o formato, digamos, mais completo.
De passagem, note-se a contradição entre a resistência à ditadura militar

33. Cf. FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1974, p. 107 e 103, respectivamente.
34. Cf. ALENCAR, Francisco; CAPRI, Lúcia; RIBEIRO, Marcus Venício. História da
sociedade brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981, p. 312-334.
35. Cf. FURTADO, Celso, O mito do desenvolvimento econômico, edição citada, p. 104.
36. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A., “Capitalismo tardio e
sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada
no Brasil, volume 4 (Contrastes da intimidade contemporânea). 3ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 620.
37. Cf. GOIS, Antônio; ESCÓSSIA, Fernanda da, “País fica mais rico e mais desigual”.
Publicado em: 30 set. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/
fj3009200301.htm. Acesso em: 8 out. 2020.
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais detalharam alguns dados da
concentração de renda no período: em 1960, os 5% mais ricos detinham 28,3% da renda e,
em 1980, 37,9%; tomados os 20% superiores, essa camada detinha 54,8% da renda em 1960
e, em 1980, 66,1%; os 60% mais pobres, em 1960, detinham 24,9% da renda; em 1980, 17,8%;
quanto à classe média baixa, ou seja, os 20% entre superiores e inferiores, em 1960 detinham
20,3% da renda; em 1980, 16,1%. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando
A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, edição citada, p. 633-634.

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que muitos emepebistas (produtores, mediadores culturais e consumidores)
empreenderam e o fato de pertencerem às classes favorecidas pela política
econômica; é um tema rico, que ainda precisa ser melhor analisado. À parte
essa questão, é necessário não perder de vista a complexidade de alguns
produtos de MPB que saem no período. Há neles investimento artístico no
desenvolvimento de álbuns que merecem atenção renovada. Não falarei da
parte gráfica, completamente secundária ao que procuro identificar. Refiro-
me ao gesto de não enfeixar canções aleatoriamente, de não selecionar hits
(ainda que muitas faixas tenham se tornado; há quem jure que alguns desses
álbuns são coletâneas), de não forçar participações famosas e dispensáveis
mas que atraem consumidores, de não completar de qualquer jeito o tempo
que acompanha a canção de trabalho, de não tratar o Lado B como um banco
de reservas. Acima de tudo, refiro-me à exploração de uma determinada
estética. Um investimento que torna objetivo para o ouvinte, na forma de uma
canção e na relação entre as canções do LP, uma certa realidade emocional,
muitas vezes em paisagem extensa e sempre recriada pela imaginação; e
com potencial grande de crítica, uma vez que a realidade foi transfigurada
e o saldo final é humanizador.
É o caso, por exemplo, de A tábua de esmeralda (Jorge Ben, 1974), Água
viva (Gal Costa, 1978), Amoroso (João Gilberto, 1977), Araçá Azul (Caetano
Veloso, 1973), Cantar (Gal Costa, 1974), Chico Buarque (1978), Clube da
Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972), Clube da Esquina 2 (Milton
Nascimento e muitos convidados, 1978), Elis & Tom (1974), Estudando o samba
(Tom Zé, 1976), João Gilberto (1973), Meus caros amigos (Chico Buarque,
1976), Pássaro proibido (Maria Bethânia, 1976), Refazenda (Gilberto Gil, 1975),
Transa (Caetano Veloso, 1972), Urubu (Tom Jobim, 1975). Não se trata de
uma lista à top music, e sim de alguns exemplos, daí a ordenação e o número
de LPs. Apenas não citei mais de dois álbuns de um mesmo artista, para não
ser cansativo, nem gravações de shows, porque têm características próprias,
e nem citei alguém que não tenha iniciado carreira nas décadas anteriores.
Não se deve confundir estética com moda, e daí o quesito “novidade”
necessitar de cuidado numa avaliação desse tipo. É recorrente, na literatura
da época, a ideia de que esses produtos apresentavam estéticas velhas, pois
somente repetiam ou desdobravam o que a bossa nova, a MPB dos festivais, a

29
tropicália haviam feito. Como se uma década fosse um milênio, já se observou.
Curioso é que a radicalidade de álbuns como Araçá azul e Ou não (Walter
Franco, 1973) não obtiveram espaço confortável no mercado. Observe-se
também que só mediante uma ideia mais ou menos generalizada de diluição
é que as fronteiras antes nítidas entre canção de protesto e tropicalismo,
por exemplo – ou entre sambinhas bossa-nova, peças sinfônicas de Tom
Jobim, canções do Clube da Esquina –, passaram a conviver dentro da
mesma sigla. Influência da estratégia de venda das gravadoras? Seja como
for, e simplificando as coisas, esperava-se um novo movimento musical
que, quando afinal chega, acaba mais ou menos confinado a São Paulo – o
grupo heterogêneo formado por Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno
(apesar da imensa consagração inicial), Itamar Assumpção e Banda Isca de
Polícia, Premeditando o Breque ou Premê (apesar de vir a ser produzido
por Lulu Santos dentro de uma major), Rumo, Tetê Espíndola (apesar do
Festival dos Festivais da Rede Globo, do Globo Repórter, do filme Mônica
e a Sereia do rio), entre outros músicos e cancionistas que lançam discos
independentes no começo dos anos 1980, respondendo assim à consolidação
profissional do mercado, e que, mais tarde, serão rotulados com a expressão
“vanguarda paulista”.
O investimento em música brasileira não se resumia aos nomes
consagrados da MPB, na década de 1970, responsáveis por manter o consumo
num bom patamar, de forma contínua. Nessa fase estrearam Ivan Lins,
Gonzaguinha, Djavan, João Bosco, Aldir Blanc, Simone, entre outros que
foram incorporados à sigla, mais cedo ou mais tarde. Também Raul Seixas,
Secos & Molhados – logo Ney Matogrosso seguiria sozinho –, os Novos
Baianos – depois, separadamente, Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu
Gomes, Paulinho Boca de Cantor. Em comum, o estabelecimento de relações
entre alguma forma de música brasileira e alguma vertente do rock, o que
não explica muita coisa, mas ajudava a identificá-los no mercado. E Fagner,
Belchior, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho...
As reticências são propositais, porque a relação apenas sugere o que ficou
conhecido como boom nordestino. Antes dele, houve o boom do samba e o
boom do choro. Ao final da década, o boom da gafieira. Ou seja, o investimento
maciço em uma determinada moda de canção brasileira, durante um curto

30
período, forçosamente curto pela dinâmica de qualquer moda – exposição
violenta de produtos que assombram o consumidor, impelindo-o à compra,
e que se desgastam rapidamente, seja porque qualquer exposição demasiada
satura o ouvinte, seja porque o interesse despertado é semelhante ao de
um trocadilho, seja porque o interesse está na exposição e não no produto
–, esse investimento maciço foi inventado pela grande indústria de discos
antes dos anos 1980, quando, porém, iria adquirir maior importância para
os negócios – com o boom do rock, o de sertanejo e, já na década seguinte,
o de axé music e o de pagode.
Por outro lado, não é incomum que da quantidade se extraia qualidade,
embora se configure um esforço ingênuo imaginar que isso sempre aconteça.
Depende. Mas de fato a indústria fonográfica, em seu trabalho de transformar
qualquer realidade local em objeto de consumo, isto é, de transformar uma
certa identidade cultural em padrão de comportamento descartável, muitas
vezes faz circular canções interessantes por si mesmas, um golpe de sorte
que decorre da riqueza da tradição oral e musical no Brasil. Naqueles booms
dos anos 1970, artistas e produtos artísticos pegaram carona. Um efeito
colateral, se quisermos. Em que medida o próprio tamanho do mercado na
época ou a incipiência da tal profissionalização contribuíram para isso, seria
útil examinar. Fiquemos com alguns poucos exemplos.
A fim de não repetir nomes e ter de fazer ressalvas, e ainda correndo
o risco de não oferecer uma análise detida, volto-me para o caso do samba.
Ótimos exemplos poderiam ser os dois primeiros discos de Cartola gravados
em estúdio, lançados pela nacional Marcus Pereira Discos (em 1974 e 1976).
Ou o terceiro e o quarto, lançados pela multinacional RCA-Victor (em 1977
e 1979). Ou todos eles, pois o que se tem ali é a experiência de uma vida
inteira depositada cuidadosamente nas canções. Outro exemplo poderia ser
Nervos de aço, álbum de Paulinho da Viola de 1973 – uma verdadeira aula
de samba enquanto tradição móvel, expressão que tomo de empréstimo
de Mário de Andrade. Mas Paulinho está no mercado fonográfico desde
os anos 1960, e o boom do samba se daria a partir de 1974. No registro
de Margarida Autran, escrito ao final daquela década, esse investimento
no gênero mostraria “como a máquina do disco funciona perfeitamente
integrada à máquina estatal”: o governo militar, “em busca de uma imagem

31
mais simpática ao povo”, buscava então contrabalançar o “esvaziamento
da cultura nacional, reflexo de uma política repressiva”, por meio de apoio
ao samba, decretado “linguagem musical nacional”.38 A rima pode ter sido
uma solução, mas a escolha do emblema nacional não foi nada... original,
como se sabe. Voltando a Paulinho da Viola, seu Memórias chorando (1976)
pode ser exemplo de produto artístico lançado em meio a outro boom, o do
choro, gênero também incentivado pelo regime militar a partir de 1974.39
Finalizando o tópico, a terceira estratégia das grandes gravadoras para
evitar a retração do mercado fonográfico brasileiro, nos anos 1970, foi a
quase onipresença da canção na indústria cultural. Deve-se considerar que
estudamos um momento em que “o caráter de mercadoria dos produtos
culturais passa a ser evocado com a maior naturalidade, por todas as partes
envolvidas”. O comentário é de Marcia Tosta Dias, em seu Os donos da voz,
livro do qual me sirvo como um guia para esse breve esquema.40 Além das
trilhas sonoras de novelas da Rede Globo, já citadas em número suficiente,
Dias destaca a notável interação do mercado fonográfico e do publicitário:
“Propagandas mundializadas, como a dos cigarros Marlboro e Hollywood,
como tantas outras, veiculam canções que estarão sempre associadas a
tais produtos”.41 Não é necessário repetir todos os exemplos trazidos pela
socióloga em seu excelente trabalho. Apenas gostaria de acrescentar que,
segundo Fernando Reis, a profissionalização também foi uma marca do meio
publicitário naquele período:

38. Cf. AUTRAN, Margarida, “Samba, artigo de consumo nacional”. In: NOVAES, Adauto
(org.). Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 71.
39. Cf. Idem, “‘Renascimento’ e descaracterização do choro”. In: NOVAES, Adauto (org.).
Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 81.
40. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, capítulo 2 (“Trajetória da indústria fonográfica brasileira: anos
70 e 80”); a citação literal pode ser lida à p. 68. Sobre o assunto, consultar também ORTIZ
Renato. A moderna tradição brasileira. 5ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2001;
Idem, Mundialização e cultura. 5ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2003.
41. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 66.

32
Se a década de 60, em nossas agências, pode ser caracterizada como a
década da criatividade, com o prestígio maior concedido aos homens
de criação, os anos 70, que trouxeram a valorização da agência como
empresa, levariam à consolidação definitiva do negócio publicitário
entre nós. (...) Passaram nossas agências a saber encarar as crises
com seriedade, através da profissionalização de todos os seus setores
essenciais. (...) Surgiu como grande anunciante o governo, tanto na
administração direta como na indireta, tanto no âmbito federal como
no estadual e no municipal. O governo também se profissionalizou
como anunciante.42

Por que tocar, gravar pra quê?


À luz dos anos 1970, creio que aquele otimismo mais sólido e o quadro
dos 1990 possam ser mais bem avaliados. Talvez eu esteja equivocado, mas
salta à vista, duas décadas adiante, um certo sucesso da orientação profissional
do mercado hegemônico implementada desde o período anterior, sucesso
que produziu a naturalização da empreitada. Em outras palavras, as bases
da profissionalização do setor se tornariam... quase invisíveis. Nesse sentido,
mesmo a queda de consumo e de oferta da música estrangeira no Brasil precisa
ser encarada com reserva. Em parte, isso se deve ainda à força das culturas
de tradição oral que, construídas no processo de afirmação e transformação
das culturas negras, são levadas a contexto diverso ou passam a responder à
dinâmica mercadológica. Vale lembrar, uma configuração que se sente desde
pelo menos a consolidação do samba de carnaval e do samba de meio de
ano nas rádios, durante a década de 1930. E configuração que não é exclusiva
do Brasil, que nisso coincide, em alguma medida, com os EUA (blues, jazz,
soul), com Cuba (rumba, bolero, son, chachachá), com a Argentina (tango),
para ficar em exemplos bem próximos.43

42. Cf. REIS, Fernando, “São Paulo e Rio: a longa caminhada”. In: BRANCO, Renato Castelo;
MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.). História da propaganda no Brasil.
São Paulo: T. A. Queiroz, 1990, p. 365-366.
43. Cf. SANMIGUEL, Alejandro Ulloa, “La música popular urbana de América Latina
y el Caribe. Sus orígenes sociales”. Boletín Música, nº 14. Havana, Casa de las Américas,
2004, p. 22-28.

33
Em outra parte, tampouco foi privilégio do Brasil que a canção tenha se
tornado mais local. Aqui chegamos a cerca de “80% de música brasileira, não
só em venda como em execução de rádio”, no início dos anos 2000.44 Mas o
lema das grandes corporações capitalistas não passara a ser justamente “Pense
global, aja localmente”?45 E já em meio à crise de 2002, repetindo aquela
estratégia dos anos 1970, o então presidente da Sony Music Internacional,
Rick Dobbis, advertia: “Se você lida apenas com produtos internacionais,
não estará lidando com muitas pessoas – o pessoal da mídia, repórteres,
programadores de rádio e outros – para quem a cena musical [doméstica]
é muito importante”.46
É claro que a digitalização alterou profundamente algumas coordenadas
que vinham se mantendo. Já se disse, o desenvolvimento tecnológico
barateou os custos de produção. Uma das consequências foi que as grandes
gravadoras se desfizeram dos estúdios de gravação. Terceirizaram igualmente
a fabricação e a distribuição. Mas a lógica da forma-mercadoria prosseguiu
como diretriz principal, se não como diretriz única. Aprimorando-a, as majors
passaram a investir, cada vez com maior intensidade, na difusão, isto é,
na espetacularização do produto, isto é: intensificou-se cada vez mais o
investimento não na canção em si, mas na forma como a canção seria vista
– sim, vista, antes de ser ouvida. As majors tornaram-se assim “escritórios
de gerenciamento do produto e elaboração de estratégias de mercado”.47
As brechas que então se abriram podem ser facilmente percebidas. Houve
uma multiplicação das iniciativas independentes e dos pequenos selos, e a
possibilidade de afirmação no mercado pela associação com alguma grande
transnacional. Foi quando, talvez, a dúvida sobre o target a ser atingido, via
tela da tevê, se instalou definitivamente no plano de gravação.
Para o consumidor, o CD se tornou um suporte de preço bem mais
acessível que o LP em tempos anteriores. Some-se a isso a expansão do

44. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e prevê
extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor), edição citada.
45. Cf. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura, edição citada, p. 181.
46. Cf. GOLDSMITH, Charles; JOHNSON, Keith, “Pirataria emudece artistas locais em
gravadoras”. O Estado de S. Paulo (The Wall Street Journal Americas), 4/6/2002, p. B14.
47. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 21.

34
crédito para compra de televisores e aparelhos de som, com um número
cada vez maior de modelos para todos os bolsos – e mantenha-se à parte
aqueles aspectos econômicos do qual me esquivei, os quais ampliariam
enormemente a discussão.
Considere-se, porém, que os principais compradores da indústria
fonográfica deixaram de ser exclusivamente as lojas especializadas. Nos
anos 2000, grandes magazines e supermercados passaram a ameaçar “essa
hegemonia” e a alterar “o perfil do consumidor”.48 Para esses intermediários,
o CD ideal não ocupa espaço em exposição ou no estoque, ao longo de meses
ou até de anos. Almeja-se a rápida substituição dos discos nas prateleiras,
num prazo curto, e é óbvio que se almejam vendas em boas quantidades. Se
preciso for, as promoções cuidarão de tudo o que ameaça encalhar.
Uma vez que a lógica é a da pura venda, o compromisso com o
funcionamento mercadológico pelos empresários, assumido sem muitos
problemas durante a década de 1970, se torna cada vez mais agudo. E invisível,
de certo modo, também para muitos cancionistas (para a maioria deles, quer
dizer, de nós?). Pensemos no quadro atual. Um dos sintomas do que afirmo
é a crescente dificuldade de colocar em questão a qualidade artística do que
quer que seja. Não digo que todos assinem embaixo da máxima que ouvi do
diretor de uma sociedade arrecadadora: “Disco não é feito pra ouvir, disco
é feito pra vender”. Mas não é curioso que músicos e cantores justifiquem
tantas coisas apenas observando “Ah, mas é bem produzido...”? Afinal, o
que “isso é bem produzido” quer dizer? Que tem potencial de venda? Que
se parece um pouco ou bastante com algo que já vendeu? Que se enquadra
perfeitamente nos moldes de um gênero ou de um estilo conhecidos? Que
tem a capacidade de assombrar o ouvinte, grudando em sua cabeça logo à
primeira audição? Que favorece a imagem da banda?
De resto, um julgamento crítico que sustenta que nem toda canção
popular-comercial é uma forma de arte tem gerado reações que vão do
desprezo à ira, com as exceções que sempre existem. Não é estranho que
ofenda o reconhecimento, que nunca será mesmo consensual, do caráter
artístico de algumas canções, não de todas? Que ofenda a valoração qualitativa

48. Cf. MOURA, Roberto M. Sobre cultura e mídia. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001, p. 92.

35
e a discriminação entre arte e comércio (imbricados na prática) que daí
advêm? Ou que ofenda a tentativa de chegar a um resultado sobre a questão,
mais do que o próprio resultado em si?
Canções têm várias serventias, como se sabe. Há canção para toda sorte
de ocasiões, inclusive canções que servem admiravelmente como necessário
pano de fundo. Para uma refeição saudável, por exemplo. Não estou negando
nenhuma das funções. Ao defender a ideia de canção artística, a minha
preocupação é com o totalitarismo, sei que a palavra é forte, da ideia de
canção meramente comercial. Essa última se instalou de tal modo no nosso
dia a dia, que parecemos acostumados a supervalorizar o banal, o repetitivo,
o ensurdecedor, o acessório, o infantil, a canção que atua radicalmente como
jingle de um show visual qualquer; quando não, como jingle da marca de um
cantor, de uma cantora, de um grupo – ou, na forte interação do negócio
fonográfico e dos outros negócios, como jingle de refrigerantes, espelhinhos,
perfumes, não nos intervalos comerciais, mas dentro da programação musical.
Canções no Brasil, desde sempre, serviram também à sobrevivência, e não
apenas para a classe média, é claro. Em vários casos serviram e ainda servem
como tábua de salvação em meio à miséria econômica, pois tanto essa miséria
não foi erradicada como o povo, ou melhor, as classes economicamente baixas
seguem com sua rica cultura, um capital nada desprezível. É complicado
lidar com essa situação, pois se é absurdo justificar a manutenção da miséria
pela cultura... não há por que ignorar o valor humano, em sentido amplo,
que subsiste nos produtos culturais que resultam dessa história.
Um músico e produtor independente aqui de São Paulo costuma brincar,
nas sessões de seu estúdio, dizendo “– Por que gravar? Já tem disco pra
caramba por aí!”. Vamos levar a sério o chiste. O fato de a produção haver se
tornado mais acessível inegavelmente facilita hoje o trabalho com a canção.
Mas o foco de interesse do mercado não migrou para a etapa de difusão?
Como apostar, por exemplo, na internet (número de usuários brasileiros
à parte), quando o nosso interesse permanece preso ao espetáculo e/ou ao
reconhecível?
Sem muita certeza e da perspectiva dos cancionistas, neste momento,
percebo duas alternativas radicais. Uma é abraçar de modo consciente, o
que auxiliará no trabalho, a produção comercial. Quer uma dica? Esqueça

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majors e trilhas de novelas. Custo x benefício, melhor investir em vinhetas
para televisão. A outra alternativa é pesquisar a criação artística. Nesse caso,
talvez o primeiro desafio seja conseguir, na própria forma do produto, quebrar
a expectativa hegemônica do público e interessá-lo. Não há fórmula mágica
para isso, mas a ideia não é nova e pode ser mais bem explicada. Tentarei: o
desafio é interessar o público, na própria realização da obra, desenvolvendo
uma forma que não satisfaça o (mau) costume do consumidor mimado.
Tão mais mimado quanto mais afeito ao gesto de deletar ou não com um
simples clique – sem pensar, sem nem sentir, como se qualquer canção fosse
a repetição do que já se ouviu ou do que se ouvirá daqui a pouco, wherever.

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