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DIREITO ADMINISTRATIVO. Prof. Dr.

Marcelo Lamy

PODER DE POLÍCIA

1. NOÇÃO DE PODER DE POLÍCIA

A noção de Poder de Polícia – função presente em toda


organização política organizada que controla, restringe ou
conduz às pessoas, aos bens ou às atividades (em outras
palavras, à liberdade e à propriedade) em prol da própria
coletividade – tem uma história plena de vicissitudes, pois
no transcurso da evolução das organizações, especialmente do
Estado, mudaram também as suas notas conceituais, alterou-
se sua envergadura, bem como a amplitude das suas limitações.
Podemos partir da acepção ampla apresentada por Celso
Antonio Bandeira de Mello:
“A atividade estatal de condicionar a liberdade e a
propriedade ajustando-as aos interesses coletivos”
(Aut. Cit. Curso de Direito Administrativo, p. 697).

Ou de sua acepção mais restrita:


“intervenções, quer gerais e abstratas, como os
regulamentos, quer concretas e específicas (tais as
autorizações, as licenças, as injunções) (...)
destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar
o desenvolvimento de atividades particulares
contrastantes com os interesses sociais” (Celso
Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo, p. 697).

Trata-se, enfim, da atividade ou função estatal que


gerencia, controla, fiscaliza e restringe a liberdade
individual e a propriedade.
Embora a sociedade ocidental hodierna tenha sido
constituída sob o postulado individual-liberal (que presa
sobremaneira a liberdade individual e a propriedade
particular), em todos os tempos apresentaram-se limitações
às prerrogativas individuais.
Veja-se, por exemplo, a limitação que a Constituição
brasileira de 1988 apresenta para o exercício da liberdade
de reunião:
Art. 5º, inc. XVI - todos podem reunir-se
pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que
não frustrem outra reunião anteriormente convocada
para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso
à autoridade competente;
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A Constituição condiciona o exercício dessa liberdade


(tem de ser pacífica, sem armas, não pode frustrar outra
reunião, tem de ser previamente comunicada) e esse
condicionamento é gerido pelo Poder de polícia.
É o Poder de polícia que controla o cumprimento dos
condicionamentos e, na ausência dos mesmos, que impedirá o
exercício de tal liberdade desvirtuada.

Evolução Conceitual

No Estado absolutista – seja na fase patrimonialista


(quando o Estado é um bem do príncipe, por herança divina),
seja na fase do Estado de Polícia (no séc. XVIII, antes da
Revolução Francesa, quando o príncipe assume o direito de
intervir em quaisquer esferas em nome do domínio público,
das razões do Estado; inclusive, quando necessário, nos
direitos adquiridos pelos privilégios) – a vontade do
Príncipe impõe-se a ponto de desaparecerem completamente as
possibilidades de defesa dos particulares contra o poder. O
Poder de Polícia, nesta fase, constituía verdadeira atuação
arbitrária do Estado.
No Estado moderno, quando despontou a liberdade, é que
esse poder adquiriu uma noção mais restrita, pois a limitação
dos direitos passou a ser admitida somente para evitar a
lesão de interesses maiores. De cunho essencialmente
repressivo, visava a impedir qualquer lesão a interesses
alheios (imposição de omissões):
“Em seu conceito clássico o poder de polícia é simples
processo de contenção de excessos do individualismo.
Consiste, em suma, na ação da autoridade pública para
fazer cumprir por todos os indivíduos o dever de não
perturbar.”1 (sem destaques no original)

Nesse momento, sua finalidade concentra-se na manutenção


do interesse maior, da ordem pública. Concepção que é
refletida pelo nosso Código Tributário Nacional:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da
administração pública que, limitando ou disciplinando
direito, interesse ou liberdade, regula a prática de
ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem,
aos costumes, à disciplina da produção e do mercado,
ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à

1 Caio Tácito. Princípio de legalidade e poder de polícia. Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul./dez. 2001
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tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e


aos direitos individuais ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do
poder de polícia quando desempenhado pelo órgão
competente nos limites da lei aplicável, com
observância do processo legal e, tratando-se de
atividade que a lei tenha como discricionária, sem
abuso ou desvio de poder.

Hodiernamente (especialmente em função da feição


desenvolvida pelo Estado Social), o Poder de Polícia desvenda
uma nova faceta COMPLEMENTAR: também como um conjunto de
imposições orientadas a promover ativamente condutas
reputadas como desejáveis (traduz-se assim em deveres de
atuação, não somente de abstenção), em prol do princípio da
dignidade da pessoa humana, da realização dos direitos
fundamentais e da ordem pública ou do interesse público.
Nesse novo sentido, corroboram os ensinamentos de Marçal
Justen Filho:
“O poder de polícia administrativa é a competência
administrativa de disciplinar o exercício da
autonomia privada para a realização de direitos
fundamentais e da democracia, segundo os princípios
da legalidade e da proporcionalidade”2. (sem
destaques no original).

Ilustrativo dessa nova conformação é a análise que


poderia ter sido feita no caso do “arremesso de anões”3: a
proibição que foi estabelecida pelo Conselho de Estado
Francês em 1995 se viu confirmada pela ONU em 2002 a fim de
proteger a ordem pública, incluindo considerações sobre a
dignidade da pessoa humana, pois a dignidade é matéria

2 Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. p. 393.


3 Uma empresa de entretenimento criou um produto para oferecer em bares noturnos chamado "lande de nain",
em que anões eram arremessados de um lado pelo outro pelos frequentadores dos estabelecimentos. O
prefeito de Morsang-sur-Orge mandou interditar o espetáculo com fundamento no art. 131 do Código dos
Municípios. Incumbe ao Prefeito o exercício do poder de polícia, podendo intervir em atividades ou limitar o
exercício de direitos sempre que necessário à preservação da ordem pública. A empresa e o sr. Wackenheim
(anão) ingressaram com um "recours pour excès de pouvoir" junto ao Tribunal Administrativo de Versailles
visando a anulação do ato. A empresa alegou que o espetáculo era lícito, não causava efetiva perturbação social
ou tumultos de qualquer espécie, era desenvolvida em local apropriado de acordo com as regras municipais e
que era similar a atrações de circo, programas de televisão etc. O anão por sua vez alegou a autonomia da
vontade, que recebia salário condizente e que devido a sua condição (anão) era descriminado em empregos
normais, portanto a falta do emprego é que atentaria a sua dignidade pessoal pois não teria como se sustentar.
O Tribunal julgou procedente entendo que o espetáculo objeto da interdição não tinha, por si só, o condão de
perturbar a boa ordem, a tranqüilidade ou a salubridade públicas. Em sede de recurso o Conselho de Estado
reformou a decisão com base no entendimento que a dignidade da pessoa humana é matéria de Ordem pública;
e que a autoridade investida do poder de polícia municipal pode interditar um espetáculo atentatório à
dignidade da pessoa humana. (cf. http://mensabrasil.mam9.com/sig-jus-forum-juridico-f3/a-dignidade-de-se-
arremessar-anoes-lancer-de-nain-t35.htm)
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integrante da ordem pública.


A ordem pública é protegida positivamente não apenas
quando se impede alguma lesão a mesma, mas também quando é
a mesma desenvolvida positivamente. Não interessa apenas
afastar um tratamento inadequado ao interesse público, mas
também realizar um tratamento conforme o imaginado pela
dignidade da pessoa humana.

Objeto do Poder de Polícia

Tendo em vista o estágio atual de evolução do Poder de


Polícia, pode-se afirmar que o objeto deste é a restrição ou
o condicionamento da propriedade (nas dimensões: uso, gozo
ou fruição) e das liberdades dos cidadãos (no seu exercício)
para a sua realização máxima em função dos bens, interesses,
necessidades e direitos públicos, sociais ou econômicos
previstos na Constituição e nas leis.
Nesse direcionamento dúplice (realização dos direitos
fundamentais e preservação dos direitos/interesses
públicos/sociais), sua preocupação máxima, seu objeto
profundo, é a descoberta da medida adequada para a restrição
ou para o condicionamento que evite ao máximo o sacrifício,
que permita a máxima realização da liberdade ou da
propriedade (sob pena de caracterizar abuso de direito,
excesso de poder).

Modos de Atuação

Como bem apresenta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o


Poder de Polícia atua de quatro modos: pela ordem de polícia,
pelo consentimento de polícia, pela fiscalização de polícia
e pela sanção de polícia.

Ordem de Polícia
A “ordem de polícia” revela-se por preceitos de duas
ordens: a) não faça algo que pode prejudicar o interesse
coletivo ou o bem-estar coletivo (restrições ao exercício
dos direitos ou das faculdades); b) não deixe de fazer algo
que pode redundar em prejuízo público (condicionamentos ao
exercício dos direitos ou das faculdades).
Esse modo de atuação, no Estado Democrático de Direito,
é exercido pelo Estado enquanto legislador, pois apenas por
lei se pode limitar e condicionar as liberdades e os
direitos.
A primeira forma de manifestação do Poder de Polícia dá-
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se pela atividade normativa ou regulatória. Somente assim


poderemos identificar um Poder de Polícia legítimo:
“en el Estado de policía es el mismo monarca, en su
función ejecutiva, quien dicta las normas generales;
en el Estado de Derecho, el dictado de las normas
generales pasa a ser función primordialmente del
Poder Legislativo, produciéndose entonces un traspaso
de parte del “poder de policía” del ejecutivo al
legislativo”. (Augustín Gordillo. Tratado de Derecho
Administrativo. Tomo 2, p. V-16).
“Para saber si una determinada limitación que el
Estado pretende imponer a un derecho es o no válida,
no podremos invocar simplemente el “poder de policía”
como si estuviéramos en los tiempos del Estado
absoluto: debemos buscar el concreto fundamento
normativo de la restricción y a él solo podremos
encontrarlo en el juego de las normas
constitucionales y legales de nuestro sistema”.
(Augustín Gordillo. Tratado de Derecho
Administrativo. Tomo 2, p. V-17).

A forma mais cotidiana de exercício do Poder de Polícia


é, no entanto, a perpetrada pelos atos executivos ou
administrativos. Atos que permeiam as três outras formas de
atuação: consentimento, sanção e fiscalização.

Consentimento de Polícia
É a anuência prévia da Administração Pública para se
utilizar determinadas propriedades ou exercer determinadas
atividades. Ocasião em que se verifica e direciona o uso de
determinado bem ou o exercício de determinada atividade ao
interesse coletivo.
O ato de consentimento é intitulado alvará.
Se as condições para o condicionamento são e somente
podem ser as estritamente previstas nas normas positivas, o
cabal atendimento das mesmas obriga que a Administração
Pública outorgue o alvará de licença. Suplantadas as
barreiras opostas ao exercício do direito, a licença apenas
reconhece que os mesmos são exeqüíveis (de outro modo, a
licença não constitui o direito, apenas declara que o mesmo
é exeqüível). Trata-se, portanto, de ato vinculado e
irrevogável.
Se as condições não estão totalmente previstas nas normas
e abre-se a possibilidade de se considerar a oportunidade ou
a conveniência para o interesse público do consentimento, a
Administração Pública goza da faculdade de conceder o alvará
de autorização. A expectativa de direito (de exercer
determinada atividade ou de usar determinado bem), pela
autorização, torna-se direito (em outras palavras, a
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autorização é constitutiva e não declarativa). O elo, no


entanto, com a oportunidade e a conveniência, não são
perenes. Dessa forma, pode-se afirmar que a autorização é
ato discricionário e, portanto, precário, passível de
revogação.

Sanção de Polícia
Trata-se da aplicação de instrumentos de intervenção
persuasiva e compulsiva do Estado na propriedade privada ou
sobre as atividades particulares que visa a assegurar, pelo
constrangimento gerado, a repressão de infração
administrativa ou o restabelecimento do interesse público
violado, compelindo o infrator à pratica de um ato corretivo
ou dissuadindo-o de persistir no cometimento do ilícito
administrativo. Seus instrumentos são a multa e a interdição.

Fiscalização de Polícia
A dimensão fiscalizatória do Poder de Polícia espraia-
se nas seguintes facetas: a) verificação do cumprimento das
ordens de polícia, b) verificação de eventuais abusos na
utilização dos bens ou no exercício de atividades atreladas
ao consentimento de polícia, c) preparação da sanção de
polícia pela constatação formal dos atos infringentes.
Deve o Estado (nas três esferas federativas), por outro
lado, regulamentar os aspectos referentes à estruturação
administrativa (indicando os órgãos ou as entidades
responsáveis pela fiscalização e controle) e ao sistema
procedimental para apuração das infrações e imposição de
penalidades.

2. LIMITES JURÍDICOS DO PODER DE POLÍCIA

Os poderes decorrentes do Poder de Polícia não constituem


meras faculdades, cartas de poder em branco, mas faculdades
que forçosamente sofrem limites. Longe de serem onipotentes
ou incontroláveis, serão circunscritos a diversos limites.
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Diogo de Figueiredo Moreira Neto4 apresenta três sistemas de


limites ao exercício do poder de polícia: a legalidade, a
realidade e a razoabilidade.
A legalidade conforma o primeiro e o mais importante limite. É a
moldura normativa dentro da qual se deve conter o exercício do
poder. A realidade é o segundo sistema. É preciso que os
pressupostos de fato do exercício do poder de polícia de segurança
pública sejam reais, bem como realizáveis as suas conseqüências.
A vivência do direito não comporta fantasias. O irreal tanto não
pode ser a fundamentação como tampouco pode ser o objeto de um
ato do Poder Público. A razoabilidade, por fim, é o terceiro
sistema de limite, que modernamente pode-se estabelecer para
distinguir a discricionariedade do arbítrio. Trata-se da relação
de coerência que se deve exigir entre a manifestação da vontade
do Poder Público e a finalidade específica que a lei lhe adscreve5.
O princípio da razoabilidade, aliás, foi expressamente acolhido
pela Constituição Paulista de 1989:
Artigo 111. A administração pública direta, indireta
ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado,
obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, motivação, interesse
público e eficiência.

Nesse sentido, precioso o que assevera Álvaro Lazzarini:


“Será arbitrário o ato de policia que desatender
tanto a lei, como também estiver desconforme à
realidade e à razoabilidade. Mesmo que o ato de
policia não possa ter a sua ilegalidade aferida
diretamente pela sua comparação com o comando
constitucional ou infraconstitucional, é possível
submetê-lo aos dois outros princípios, objetivamente,
quanto ao da realidade e, subjetivamente, quanto ao
da razoabilidade, com o que haverá uma tutela
indireta ou oblíqua da ilegalidade. Seja, porém, por
que motivo for a arbitrariedade, quem a cometer
sujeita-se às sanções penais, administrativas e civis
por abuso de poder, quer este ocorra por excesso ou
desvio de poder. O abuso de autoridade, a
prevaricação, a usurpação de função pública, a
condescendência criminosa, seja qual for o ilícito
penal ou administrativo, não podem ser tolerados em
relação a quem use de arbítrio no exercício do Poder
de Polícia, quer quem praticou o ato, quer quem o
aprovou, expressa ou tacitamente.” (Limites do Poder

4 “Considerações sobre os limites da discricionariedade do exercício do Poder de Polícia de segurança pública",


Intervenção em Painel sobre o Tema, no 1º Congresso Brasileiro de Segurança Pública, Fortaleza, Ceará, maio
de 1990.
5 “Considerações sobre os limites da discricionariedade do exercício do Poder de Polícia de segurança pública",
Intervenção em Painel sobre o Tema, no 1º Congresso Brasileiro de Segurança Pública, Fortaleza, Ceará, maio
de 1990.
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de Polícia. In: Justitia, São Paulo, 57 (170),


abr./jun. 1995, p. 84).

Legalidade e Juridicidade

O princípio basilar do Estado de Direito é o da plena


juridicidade. Assim, quando nossa Constituição fixa o
direito do acesso à jurisdição, fala em “lesão ou ameaça ao
direito” (Art. 5ºXXXV - a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;), em qualquer
forma de violação do direito, não fala em violação à lei,
embora a violação à lei constitua a mais ialina violação do
Direito.
Da mesma forma, a lei que regula o processo
administrativo federal, lei 9.784/99, estabelece:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre
outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo
único. Nos processos administrativos serão
observados, entre outros, os critérios de: I -
atuação conforme a lei e o Direito;

A importância moderna da submissão da Administração à


lei não reside precipuamente na subordinação do Poder
Executivo ao Poder Legislativo, por este possuir maior
legitimidade democrática. O valor hodierno da legalidade
está na generalidade dos comandos, que faz com que os órgãos
administrativos os apliquem por igual aos casos idênticos
submetidos à sua decisão. A formulação genérica dos preceitos
de conduta, em termos impessoais e universais, implica na
legítima possibilidade jurídica dos órgãos da Administração
de exigir concretamente prestação ou comportamento, de certa
e determinada pessoa, pois esta é exigível de toda e qualquer
pessoa que se encontre nas mesmas circunstâncias6.
É certo que constitui atuação ilegal produzir qualquer
limitação ou constrangimento não autorizado por lei. A
ausência de previsão legislativa expressa, no entanto, não
significa que o direito não regule a situação existente, nem
significa impossibilidade de exercício do poder de polícia,
pois são sempre aplicáveis os princípios gerais
(juridicidade e aplicabilidade direta dos princípios).

6 Cf. Iara Leal Gasos. A Omissão Abusiva do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1994. p. 53
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Proporcionalidade

Atrelada umbilicalmente à legalidade, está o princípio


da proporcionalidade:
“O conceito de legalidade pressupõe, como limite à
discricionariedade, que os motivos determinantes
sejam razoáveis e o objeto do ato proporcional à
finalidade declarada ou implícita na regra de
competência”7. (sem destaques no original).

A proporcionalidade desdobra-se nos seguintes elementos:


1) adequação (meio escolhido deve ser apto a atingir o fim
a que se destina, apto a realizar); 2) necessidade (dentre
os meios hábeis, a opção deve recair sobre o menos gravoso
em relação aos bens envolvidos, deve-se garantir a
sobrevivência do interesse contraposto, limite do
extremamente necessário); 3) sopesamento de valores ou
proporcionalidade em sentido estrito (escolha deve trazer
mais benefícios do que a restrição, concordância prática e
não anulação de um dos lados, vantagem e importância da
utilidade compensar medida do sacrifício).
Nenhuma restrição deve impedir a fruição de um direito
ou retirar completamente seus benefícios econômicos. A
interdição absoluta é excepcional, somente se opera se
autorizada pela Constituição (caso da expropriação de glebas
que cultivam psicotrópicos8), e está condicionada a
constatação de ser a única solução apta. Nenhuma atuação se
legitima se ultrapassar os limites da satisfação razoável.
Nesse mesmo sentido, estabelece a lei 9.784/99:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre
outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo
único. Nos processos administrativos serão
observados, entre outros, os critérios de: (...) VI
- adequação entre meios e fins, vedada a imposição de
obrigações, restrições e sanções em medida superior
àquelas estritamente necessárias ao atendimento do
interesse público;

7 Caio Tácito. Princípio de legalidade e poder de polícia. Rev. Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul./dez. 2001
8 Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas
serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo
de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei. (Interessante observar que a Constituição estabelece gradativamente a ponderação
mais adequada, ou seja, o sacrifício mínimo, médio e máximo razoável. Para isto verificar, basta analisar os
seguintes dispositivos: art. 5, XXII e XXIII e XXIV + 182, §4º, III + 184, caput + 185, I e II + 243, caput)
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Como assevera Celso Antônio Bandeira de Mello:


“Toda coação que exceda ao estritamente necessário à
obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo
Poder Público é injurídica (...) Este eventual
excesso pode se apresentar de dois modos: a) a
intensidade da medida é maior que a necessária para
a compulsão do obrigado; b) a extensão da medida é
maior que a necessária para a obtenção dos resultados
licitamente perseguíveis” (Curso de Direito
Administrativo, 14ª ed., p. 718).

Moralidade administrativa

O preâmbulo da Constituição “traça as diretrizes


filosóficas e ideológicas das Constituições”9:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembléia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus,
a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL.

Por sua vez, os princípios maiores, os alicerces do


direito administrativo, estão elencados e reafirmados
expressamente em nossa Constituição (art. 37): legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Os princípios de direito contidos na Constituição são
normas jurídicas que estabelecem não só limites, como as
regras, mas também uma direção estimativa de conteúdo, um
valor axiológico, de valoração, de espírito10; por isso,
contrariar um princípio é subverter os valores fundamentais
da Constituição, o vetor axiológico que deve iluminar a
inteligência da ordem jurídica11.
A moralidade administrativa é uma pauta jurídica, mais
do que social, implica em que a conduta do administrador
seja honesta quanto aos fins a que pode perseguir,
estabelecidos na lei e na própria instituição a que pertence

9 Iara Leal Gasos. A Omissão Abusiva do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1994. p. 8
10 Cf. Agustín Gordillo. Tratado de Derecho Administrativo. T. 1. Buenos Aires, Macchi Lopes, 1975, p. 50
11 Cf. Celso Antonio Bandeira de Melo. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. Rio de Janeiro: Malheiros, 1952.
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(que sempre fixa políticas públicas concretas). A teoria do


abuso de direito inspira-se nesta visão.
Cabe ação popular para anular atos lesivos à moralidade
administrativa (art. 5º, LXXIII), e atos desarrazoados,
veremos, são atentatórios à moralidade.

Devido Processo Legal

Como todo poder emanado em nosso sistema, emana do


propósito de instituir um Estado democrático (preâmbulo de
nossa Constituição), o poder de polícia exige a participação
popular nos seus processos de definição (atividade
regulatória). E mais, no seu exercício concreto (atividade
administrativa), exige a instituição de processos
administrativos próprios, tanto para a verificação da
infração, quanto para a imposição de restrições ou
penalidades administrativas, respeitando-se o contraditório
e a ampla defesa em todas as suas dimensões. Nesse sentido,
relevante a determinação estabelecida pela Lei 9.605/98:
Art. 70. § 4º As infrações ambientais são apuradas em
processo administrativo próprio, assegurado o direito
de ampla defesa e o contraditório, observadas as
disposições desta Lei.

Da mesma forma, estabelece a Lei 9.784/99:


Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre
outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo
único. Nos processos administrativos serão
observados, entre outros, os critérios de: (...) X -
garantia dos direitos à comunicação, à apresentação
de alegações finais, à produção de provas e à
interposição de recursos, nos processos de que possam
resultar sanções e nas situações de litígio;

As sanções administrativas devem ter previsão legal


mínima e o sancionamento, fruto de processo administrativo
concreto deve ser proporcional à gravidade e à
reprovabilidade da infração.
Não se podem admitir punições fundadas em meros indícios
do evento ilícito imputado (embora restrições preventivas do
poder de polícia são possíveis). Os indícios servem apenas
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para prova de circunstâncias acessórias12, depois de


cabalmente comprovado, por meios instrutórios diretos, o
fato principal.

Necessária Fundamentação da Atividade


Administrativa de Polícia

O atuar administrativo é vinculado quando a lei


predetermina um modo de atuação (os fins e os meios estão
expressamente fixados), e discricionário quando há um leque
de opções ou uma pauta aberta de atuação (situações em que
a pré-fixação de meios seria injusta, pois é preciso analisar
a situação e fixar a conseqüência proporcionalmente mais
justa) frente a um fim pré-estabelecido (este elemento é
sempre vinculado, é o limite em que cessa a
discricionariedade).
O fim sempre é público, não é livre, e condiciona
inexoravelmente o atuar administrativo, inclusive no que se
refere à interpretação da norma pré-estabelecida. O que já
se viu reconhecido na Lei n. 9.784/99:
Art. 2º. Parágrafo único. Nos processos
administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de: (...) XIII - interpretação da norma
administrativa da forma que melhor garanta o
atendimento do fim público a que se dirige, vedada
aplicação retroativa de nova interpretação.

Pode ser, por sua vez, de natureza preventiva


(fiscalizações para evitar a produção de danos, autorizações
prévias de funcionamento) ou repressiva (para cessar
produção de danos).
A “predominância da face preventiva da ação de polícia
é ínsita da boa administração”13, visto que se impõe antes
que qualquer conduta perturbadora comece a manifestar-se, o
que desencadearia problema de maior vulto.
Como se opera por atos administrativos, deve perpetrar-
se com atenção em todos os seus elementos: competência,
forma, finalidade, motivo, objeto.
A primeira condição é a competência. Não há, em direito
administrativo, competência geral ou universal: a lei

12 Estabelece o Código de Processo Penal: Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame
de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Art. 239. Considera-se
indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a
existência de outra ou outras circunstâncias.
13 Iara Leal Gasos. A Omissão Abusiva do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1994. p. 44
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preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o


momento do exercício das atribuições do cargo. Não é
competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de
direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado,
objetivamente fixado pelo legislador.
O motivo, especialmente para medidas restritivas (que
sempre estão presentes no exercício do poder de polícia), é
elemento que merece destaque.
Nesse sentido, o projeto de Constituição, elaborado por
Bernardo Cabral, em seu segundo substituto, constava do
seguinte artigo (43):
“A Administração Pública, direta ou indireta, de
qualquer dos Poderes, obedecerá aos princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
exigindo-se, salvo na hipótese de rescisão do
contrato de trabalho, como condição de validade dos
atos administrativos, a motivação suficiente e, como
requisito de sua legitimidade, a razoabilidade”

Apesar de não recepcionado na redação final da


Constituição de 1988, esta proposta de redação demonstra o
que a doutrina e jurisprudência já vinham por reconhecer,
que os atos administrativos devem estar fundamentados, e
mais, de forma razoável, coerente, suficiente para que seus
fins sejam translúcidos e adquira a legitimidade que a
moralidade administrativa concede aos mesmos. É pela
motivação que se verifica a razoabilidade, oportunidade,
conveniência e legitimidade dos atos.
Infraconstitucionalmente, de qualquer forma, tais
assertivas foram reconhecidas na Lei n. 9.784/99:
Art. 2 º. A Administração Pública obedecerá, dentre
outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo
único. Nos processos administrativos serão
observados, entre outros, os critérios de: (...) VII
- indicação dos pressupostos de fato e de direito que
determinarem a decisão;

Poder-Dever de Polícia e a Omissão

Pressupondo que qualquer determinação constitucional ou


legal de atribuições não impõe uma faculdade, mas uma
obrigação, pode-se afirmar que os poderes administrativos de
polícia são também deveres (poder-dever).
Há que se afirmar que a Administração tem o poder-dever
de polícia, podendo ser responsabilizada pela inação. E mais,
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a inação pode ser considerada ato ilícito, pois se está


diante de uma omissão de um dever de ação. Onde está imposta
uma atuação positiva, por lei, sua inação resulta também
abuso de direito.
Uma vez constatada a infração, surge a obrigação de
promover sua apuração imediata, sob pena de co-
responsabilidade, tendo a Lei 9.605/98 imputado severas
sanções ao administrador omisso:
Art. 66. Fazer o funcionário público afirmação falsa
ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou
dados técnico-científicos em procedimentos de
autorização ou de licenciamento ambiental:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Art. 67. Conceder o funcionário público licença,
autorização ou permissão em desacordo com as normas
ambientais, para as atividades, obras ou serviços
cuja realização depende de ato autorizativo do Poder
Público:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de
três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da
multa.
Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou
contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de
relevante interesse ambiental:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de
três meses a um ano, sem prejuízo da multa.
Art. 69. Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do
Poder Público no trato de questões ambientais:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Art. 69-A. Elaborar ou apresentar, no licenciamento,
concessão florestal ou qualquer outro procedimento
administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental
total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive
por omissão: (Incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
(Incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)
§ 1º. Se o crime é culposo: (Incluído pela Lei nº
11.284, de 2006)
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.(Incluído
pela Lei nº 11.284, de 2006)
§ 2 º. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3
(dois terços), se há dano significativo ao meio
ambiente, em decorrência do uso da informação falsa,
incompleta ou enganosa. (Incluído pela Lei nº 11.284,
de 2006)
Art. 70. § 3º A autoridade ambiental que tiver
conhecimento de infração ambiental é obrigada a
promover a sua apuração imediata, mediante processo
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administrativo próprio, sob pena de co-


responsabilidade.

De outro modo, é relevante a prescrição da LEI 9.784/99:


Art. 2o Parágrafo único. Nos processos
administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de: II - atendimento a fins de interesse
geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes
ou competências, salvo autorização em lei;

Há o dever-poder de o Estado utilizar a violência sempre


que a omissão gerar o risco de resultados mais danosos e
prejudiciais.
Por fim, outras características do poder de polícia devem
ser apontadas, pelo simples fato de constituírem atos
administrativos: 1) gozam da presunção de legitimidade que
autoriza imediata execução ou operatividade, sem necessidade
de buscar-se a tutela judicial, 2) possuem poder de coerção
para o cumprimento de suas ordens.

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