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DIAS, L.F.; LACERDA, P.B.G. Sintaxe e genericidade: uma análise de sentenças proverbiais. in: SARAIVA, M.E.F.

;
MARINHO, J.H.C. (orgs.). Estudos da língua em uso: da gramática ao texto. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2009 (no prelo).

SINTAXE E GENERICIDADE: UMA ANÁLISE DE SENTENÇAS PROVERBIAIS

Luiz Francisco Dias


UFMG
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
Mestranda – UFMG

1. Introdução à temática da prospecção sentencial


No âmbito dos estudos da língua em uso, temos trabalhado com as condições de ocupação dos
lugares sintáticos, particularmente dos lugares GN-Sujeito e GN-Objeto1. Aquilo que estamos
designando por lugar sintático encontra equivalência no argumento sentencial, numa gramática de
valências. No entanto, na abordagem de valências, a sustentação do lugar sintático é fortemente
orientada para o verbo e seu significado. Na nossa abordagem, a identidade do lugar sintático é
explicada não pelas matrizes valenciais, mas pelas condições de ocupação de lugares sintáticos,
cujos fundamentos desenvolvemos em Dias (2002, 2005, 2007). Nessa direção, as categorias
sintáticas são concebidas não apenas com base na relação entre uma unidade lexical e a
organicidade da sentença. Leva-se em conta, em primeiro plano, a projeção desses lugares como
suporte das unidades lexicais, e, em segundo plano, os fatores de ordem enunciativa que propiciam
condições para a ocupação ou a não ocupação dos lugares sintáticos.
Elaboramos a seguir seis possibilidades de diálogo por parte dos interlocutores virtuais B1,
B2, B3... ante uma afirmação do locutor virtual A, no intuito de ilustrar as condições de ocupação do
lugar GN-Objeto.

A. – Adriana criou uma história de vampiro.

B1. – Ela só criou uma história?


B2. – Ela não criou outras mais leves? [histórias]
B3. – Ela criou na aula de redação? [a história] (a)
B4. – Adriana é uma menina muito inteligente. Ela cria mesmo quando não está
num ambiente inspirador. [história?]
B5. – Tem gente que é meio maluca, né? Cria, cria e nunca divulga nada.
B6. – Os sonhadores criam; os pragmáticos executam.

Podemos observar que as intervenções dialógicas de B em direção a A apresentam uma


progressão, no que se refere ao grau de adesão à “mensagem” de A. Especificamente, o foco
temático se desloca da história criada por Adriana (B1), passando por outras histórias (B2), e pelo

1
GN=Grupo Nominal
contexto de criação da história (B3). Nessas três possibilidades de diálogo, o lugar sintático GN-
objeto, relativo ao verbo criar, recebe uma ocupação plena em B1 (uma história); uma ocupação
com indícios (outras) em B2, com o núcleo do grupo nominal (histórias) não expresso; e a não
ocupação em B3, mas com possibilidades plenas de recuperação do GN “uma história de vampiro”.
Ao avançar para B4, entramos num terreno de incertezas quanto à possibilidade de ocupação do
lugar GN-objeto relativo ao verbo criar, mediante uma relação direta com a afirmação do locutor A.
Caso haja uma relação, projetamos “história” como possibilidade de ocupação do referido lugar
sintático; caso essa relação não se estabeleça, o domínio de referências adquire amplitude, pois não
se trata apenas de história, mas de toda uma gama de referentes passíveis de ser projetados como
GN-objeto do verbo criar na sentença em questão. Em B5 e B6, por sua vez, a incerteza desaparece,
e nos tornamos convictos de que o domínio referencial é marcado por uma ampla generalização em
B5 e afetado por forte genericidade em B6. Em B5, há um foco no lugar GN-objeto, mas, tendo em
vista a diversidade/recorrência referencial daquilo que se pode projetar como passível de criação,
caracteriza-se a generalização do lugar, e a conseqüente não ocupação. Por sua vez, em B6, o
enunciado se constitui na relação entre criar e executar associada à relação entre sonhadores e
pragmáticos. Uma forte característica das enunciações proverbiais se faz presente nesse caso: a
genericidade. Ao longo deste estudo, vamos explorar esse conceito.
Valendo-se da breve avaliação em torno do diálogo virtual acima, podemos vislumbrar uma
diferença fundamental para a constituição da sentença do ponto de vista da enunciação.
Por um lado, há uma “força” de retrospecção, atuante nas sentenças de B1 a B3, produzindo
as condições para que o lugar GN-objeto, projetado pelo verbo “criar”, possa ser concebido em
diferentes níveis de definitude (uma história, outras [histórias], histórias). A ocupação ou não
ocupação desse lugar está em função daquilo que já foi definido em enunciados anteriores do
mesmo campo de enunciação (daí o conceito de retrospecção), e aquilo que é relativo ao
acontecimento presente da enunciação. Temos dessa maneira um modo de enunciação
especificador, como condição para a ocupação ou não ocupação do lugar GN-objeto. A
retrospecção funciona como um suporte de saturação referencial advinda da anterioridade da
sentença, e dessa forma configura-se como a base para a articulação dado-novo.
Por outro lado, em B5 e B6, há um afastamento do campo de enunciação instaurado pela
elocução de A, produzindo-se um efeito de relativa mudança de eixo do diálogo instaurado por A.
Nessa direção, ocorre uma rarefação do interesse pelo personagem Adriana e pela história que ela
criou. Os interlocutores virtuais B5 e B6 tomam o conceito de criar como tema, para desenvolvê-lo
prospectivamente. Desenvolver um tema em prospecção significa projetá-lo fora de uma cena. Na
nossa perspectiva, uma cena se constitui pela definitude, sob a determinação de uma saturação
referencial como vimos em B1, B2 e B3. A constituição de uma sentença em prospecção é

2
caracterizada por uma amplitude referencial dos lugares GN-sujeito e GN-objeto: “gente” (B5), “os
sonhadores”, “os pragmáticos” (B6).
Neste estudo, vamos nos concentrar na constituição da sentença em prospecção,
considerando as repercussões desse modo enunciativo para uma teoria sintática. É possível que se
levantem argumentos em favor da tese segundo a qual sentenças como Quem planta, colhe ou
Plantou, colheu não propiciam condições para análise de lugares sintáticos, porque são equivalentes
a itens lexicais. Isso parece evidente em maria-vai-com-as-outras, maria-fecha-a-porta, leva-e-traz,
ganha-perde, mexe-vira. Temos, nesses casos, espécies de encapsulamentos, seja de
comportamentos recorrentes, propiciando adjetivos como maria-vai-com-as-outras, seja de cenas
estereotipadas, propiciando substantivos como maria-fecha-a-porta (um nome de planta), seja de
situações, como nos outros exemplos. Em Plantou, colheu, temos uma implicação, que parece não
ocorrer em ganha-perde, uma vez que essa unidade funciona como nome de uma situação,
constituída por uma relação de encadeamento entre “ganhar” e “perder”. Além da implicação,
sentenças em prospecção são perpassadas por uma metaforicidade. Este será especificamente o eixo
do presente texto.

2. Metaforicidade e sentenças genéricas


Não raramente, estudos lingüísticos dedicados a expressões gnômicas, de ordem genérica,
apontam a metaforicidade, tal como entendida pelo senso-comum ou pelo viés cognitivista, como
um traço relevante na descrição semântica dessas expressões. A título de exemplo, mencionemos
aqui os trabalhos de Kleiber (2000), Perrin (2000) e Schapira (2000).
Com o propósito de delimitar o sentido próprio dos provérbios, i.e., de determinar o sentido
particular que os delimite entre as sentenças genéricas, Kleiber (2000: 52) defende a tese segundo a
qual o esquema semântico elementar dos provérbios é a implicação, que não se revela
necessariamente na superfície da sentença-significante do provérbio. Esse sentido implicativo,
segundo o autor, pode ser mais complexo do que o sentido apresentado na sentença literal, não se
resumindo a uma relação simples entre antecedente e conseqüente. Assim, considerando o
provérbio “A admiração é filha da ignorância”, Kleiber diria que o sentido implicativo que constitui
o sentido dessa sentença não é aquele expresso pelo seu sentido literal e que tentar encontrar a
qualquer preço uma implicação na literalidade de todos os provérbios, tal como podemos observar
em provérbios como “Quem faz merece o que constrói” ou “Cão que ladra não morde”, seria um
erro em que incorrem vários semanticistas. Kleiber ressalta, portanto, que o sentido da sentença
materializada não coincide com o sentido do provérbio enquanto tal.
Perrin (2000:75), por sua vez, também aponta o traço metafórico na descrição de algumas
sentenças proverbiais. Ao tratar da condição denominativa dos provérbios, reconhece em algumas

3
dessas expressões idiomáticas complexas uma opacidade composicional, mais ou menos acessível,
resultante de um processo de codificação (ou lexicalização) de uma imagem metafórica.
Da mesma forma, Schapira (2000:88) afirma que a metaforicidade é um dos traços
definidores mais característicos das fórmulas proverbiais, ainda que, quando figurem, por exemplo,
como sentenças de moral em fábulas, possam ser aplicadas de forma literal. Tomemos a seguinte
fábula, com o fim de discutir com mais propriedade essa afirmação:
(1)

A gralha vaidosa
Júpiter deu a notícia de que pretendia escolher um rei para os pássaros e
marcou uma data para que todos eles comparecessem diante de seu trono. O mais
bonito seria declarado rei.
Querendo arrumar-se o melhor possível, os pássaros foram tomar banho e
alisar as penas às margens de um arroio. A gralha também estava lá no meio dos
outros, só que tinha certeza de que nunca ia ser a escolhida, porque suas penas
eram muito feias."Vamos ter que dar um jeito", pensou ela.
Depois que os outros pássaros foram embora, muitas penas ficaram caídas
pelo chão; a gralha recolheu as mais bonitas e prendeu em volta do corpo. O
resultado foi deslumbrante: nenhum pássaro era mais vistoso que ela.
Quando o dia marcado chegou, os pássaros se reuniram diante do trono de
Júpiter; Júpiter examinou todo mundo e escolheu a gralha para rei. Já ia fazer a
declaração oficial quando todos os outros pássaros avançaram para o futuro rei e
arrancaram suas penas falsas, uma a uma, mostrando a gralha exatamente como ela
era.
Moral: Belas penas não fazem belos pássaros.

Se observarmos a sentença de moral Belas penas não fazem belos pássaros, na relação que
estabelece com o enredo da fábula, e imaginarmos a mesma sentença atuando como provérbio em
um outro texto, podemos atestar precisamente as considerações de Schapira. Tendo em vista que a
sua formulação é elaborada em consonância com o enredo da narrativa que a antecede, a sentença
em questão se aplica literalmente à fábula. Contudo, para que tenha a pretensão de produzir um
efeito moralizante, é preciso que ela seja compreendida como uma sentença metafórica, que faça
referência a situações e ações humanas2, o que faz com que essa sentença possa ser empregada,
também metaforicamente, no raio de outros campos enunciativos que tratem de matéria em que seja
pertinente a moralidade nela asseverada. Encontramos aqui um dos fundamentos daquilo que
denominamos de prospecção.
Ao mobilizar noções como “sentido literal” e “sentido metafórico”, os autores citados acima
não apresentam uma conceituação teoricamente consistente dessas noções. No presente trabalho,
desenvolveremos uma reflexão mais detida sobre aspectos que definem o que comumente
chamamos de metaforicidade.

2
Kleiber (2000:45), considerando quais seriam as condições para que uma sentença genérica venha a ser um provérbio,
diz que a primeira observação a ser feita é sobre o fato de que os provérbios parecem se restringir aos homens,
diferentemente de outras frases genéricas que podem versar sobre todo tipo de entidade.

4
Antes, porém, faremos algumas observações de natureza teórico-metodológica.
Primeiramente, devemos esclarecer que estamos considerando, sob o signo de sentenças
proverbiais, tanto provérbios consagrados em língua portuguesa como sentenças de moral de
fábulas. Isso se justifica pelo fato de constituírem referências que apresentam traços comuns e
determinantes, a saber, apresentam referência genérica e onitemporalidade, o que nos indica que
estão configurados em um mesmo modo de enunciação.
Em segundo lugar, ressaltamos que o nosso estudo passa pela associação entre os aspectos
enunciativos que delimitam as sentenças proverbiais e a organização sintática dessas sentenças. Ou
seja, a construção do sentido das sentenças proverbiais será investigada tendo em vista a alocação
dos elementos que configuram esse sentido nos lugares sintáticos em foco (GN-Sujeito e GN-
objeto). Assim como Fuchs (1984: 82), para quem “é no próprio âmago do funcionamento
gramatical (e não na sua periferia ou como suplemento facultativo) que se manifesta o espaço do
[necessário] jogo intersubjetivo”, também acreditamos que a constituição do sentido se dá no
acontecimento da enunciação (GUIMARÃES, 2007) e imprime-se no cerne das regularidades
gramaticais que lhe dão suporte. Tal como nos aponta Benveniste (1989: 82), o emprego da língua é
“um mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira”. A
enunciação, para Benveniste, é um fenômeno tão necessário que parece se confundir com a própria
língua. Ainda segundo esse autor, “além das formas que comanda, a enunciação fornece as
condições necessárias às grandes funções sintáticas” (BENVENISTE, 1989: 86).
Por fim, devemos explicitar que, ao discutir o estatuto metafórico ou literal do sentido das
sentenças proverbiais, temos em vista a referência que essas sentenças constituem. Por esse
enfoque, a referência, i.e., “a relação das palavras com algo que está fora delas [...] é uma
construção de linguagem” (GUIMARÃES, 2007: 77). A referência é uma relação de sentido entre
temos, o que nos permite dizer que o sentido, em certa medida, constrói a referência. Dessa
maneira, considerar a configuração do sentido nos faz considerar a constituição da referência
construída por ele. Em última instância, nas palavras de Benveniste (1989:84): “na enunciação, a
língua se acha empregada para a expressão de certa relação com o mundo. A condição mesma dessa
mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso”,
ou seja, a “referência é parte integrante do discurso”.
A metáfora é tradicionalmente abordada como uma figura de palavra ou tropo, recurso de
expressão que consiste na mudança do sentido real de uma palavra para seu sentido figurado.
Especificamente, para Houaiss:
Metáfora – s.f. (sXIV cf. AGC) designação de um objeto ou qualidade mediante
uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma
relação de semelhança (p.ex., ele tem uma vontade de ferro, para designar uma
vontade forte, como o ferro) ¤ etim lat. metaphòra,ae 'metáfora', do gr.
metaphorá,âs 'mudança, transposição', p.ext. em ret 'transposição do sentido

5
próprio ao figurado, metáfora', do v. metaphéró 'transportar'; ver met(a)- e -fora;
f.hist. sXIV metaphora, 1450-1516 metaforas
(HOUAISS, A. 2007)

A especificidade da metáfora, entre as figuras de palavra, está no fato de ela ser o “emprego de uma
palavra fora de seu sentido próprio”, um desvio, portanto, cuja base de constituição é uma
“comparação subentendida” (SARMENTO, 2005: 572). Essa concepção de desvio supõe que
existam usos regulares – e aqui estamos utilizando o termo ‘regular’ no sentido de ‘exato’ ou
‘segundo as regras’ – que façam as vezes de parâmetro em relação ao qual os outros usos, chamados
figurados, sejam considerados desviantes.
Ainda na concepção tradicional, essa espécie de “irregularidade” na constituição da metáfora
ocorreria na relação designação-referente. Em outros termos, a metáfora se constituiria por um
procedimento subjacente de comparação entre o referente designado pela aplicação regular da
palavra e o referente designado pela aplicação metafórica dessa mesma palavra, construindo ou
explorando uma espécie de proximidade que haveria entre esses referentes. A definição reproduzida
acima, quando situa a metáfora como uma “designação de um objeto ou qualidade mediante uma
palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de
semelhança”, nos revela uma visão ontológica da dimensão lingüística. Consideremos o seguinte
provérbio a fim de elucidarmos essa discussão: A água silenciosa é a mais perigosa. Como
indicamos, uma perspectiva ontológica parte do princípio de que há uma designação direta
naturalmente vinculada a um referente. Seguindo esse princípio, então, afirmaríamos que a
enunciação do provérbio acima conta com uma designação secundária dessa sentença, já que, como
provérbio, ela constitui uma referência genérica na qual a proporção direta entre água silenciosa e
água perigosa é apenas uma alegoria, e escapa à literalidade. Imaginemos a seguinte situação: se
dois interlocutores estivessem diante de um lago e um deles proferisse a sentença acima como um
provérbio, certamente não estaria se referindo à calmaria das águas que estavam diante de si, mas
focalizando uma situação humana em que a aparência (silenciosa) suscita um julgamento
inversamente proporcional a sua real natureza (perigosa)3.
Outra abordagem, situada na interface da semântica com a pragmática, tem sido desenvolvida
por Silveira (2004), com base em Sperber e Wilson (1995). Ela toma como parâmetro de distinção
entre literalidade e não-literalidade a representação do pensamento. Se a perspectiva tradicional é de
ordem ontológica, a abordagem de Silveira é de ordem comunicativo-cognitivista.
Considerando que “todo enunciado é uma interpretação de um pensamento – a proposição
expressa por ele assemelha-se a um pensamento que o falante pretendeu comunicar – [...] a

3
Não descartamos a possibilidade de que em uma situação como essa um locutor enunciasse a sentença em sentido
“literal”; apenas afirmamos que, se ela for tomada como um provérbio, a genericidade que caracteriza um enunciado
proverbial nos impele a tomar a sentença como uma metáfora.

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metáfora é uma figura de linguagem que explora a interpretação nesse nível, pois ao usá-la o falante
pretende comunicar um pensamento mais complexo e seu enunciado permitirá que muitas
suposições sejam deriváveis dele” (SILVEIRA, 2004: 219-220). O enunciado é concebido como
uma interpretação do pensamento, e não como uma representação dele4, o que o liberta da pretensão
de coincidir com o pensamento. Nesse sentido, a “literalidade é apenas um caso especial de
semelhança interpretativa” (SILVEIRA, 2004: 218), enquanto “as linguagens figuradas ou
metafóricas” são “interpretações menos do que literais dos pensamentos do falante” (SILVEIRA,
2004: 220). De acordo com Silveira (2004: 226), “a literalidade é simplesmente um caso de
semelhança [...] e não tem qualquer status privilegiado”.
Percebemos então que os diferentes níveis de semelhança entre as formas proposicionais do
pensamento e do enunciado não correspondem a diferenças nos elementos envolvidos no processo
de compreensão, definido “como um processo de identificar a intenção informativa do falante”
(SILVEIRA, 2004: 221). Em outras palavras, a compreensão será o resultado da interação entre
determinações lingüísticas e contextuais, interação de processos gramaticais e pragmáticos que visa
“preencher o hiato entre as representações semânticas das sentenças e a interpretação de enunciados
no contexto” (SILVEIRA, 2004: 221).
Diferentemente das abordagens tradicional e comunicativo-cognitivista, desenvolveremos
algumas reflexões acerca da constituição enunciativa do sentido metafórico. Acreditamos que a
constituição dos sentidos em uma escala que vai do literal ao metafórico é determinado pelo
histórico de enunciações a que se filia a construção lingüística.
Não podemos negar que a referência é afetada por um efeito necessário de correspondência
entre a língua e o mundo, mas não perdemos de vista que ela se constitui na relação entre o
acontecimento do dizer e o domínio histórico da constituição desse acontecimento (GUIMARÃES,
2002). Entendemos, portanto, que esse efeito de apontamento para o mundo está configurado por
um entrecruzamento de sentidos constituído pelo histórico de enunciações anteriores desses
elementos, cabendo ao presente da enunciação fazer os recortes nessa malha de sentidos para a
constituição de um referente particular. Em resumo, diríamos que os sentidos são históricos e
constitutivos da referência produzida no presente na enunciação.
Dessa forma, segundo a nossa perspectiva, não há razão para atribuirmos a um elemento
lingüístico um sentido que seja anterior, literal, em comparação a outro que poderíamos considerar
desviante, metafórico. Ou seja, tendo em vista que a referência não se dá por uma relação direta e
natural entre a língua e o mundo, mas é mediada por uma construção, não há razão para
estabelecermos uma hierarquia que conceda ao sentido literal mais objetividade do que ao

4
Estamos descartando aqui a noção de representação em sentido estrito, que consideraria o enunciado como uma
descrição do pensamento. Mas, em sentido amplo, podemos dizer que o enunciado representa o pensamento, haja vista

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metafórico, como fazem as abordagens tradicionais; nem mesmo uma hierarquia cujo fundamento
seja a relação da forma proposicional do enunciado com o que se quer comunicar, tal como defende
a abordagem comunicativo-cognitivista reportada acima. Considerando que a referência se constrói
pela relação entre unidades lingüísticas na articulação sintática, o recorte produzindo nessa relação
constitui a referência.
Nesse quadro teórico, a manutenção da diferença entre sentido literal e sentido metafórico não
se justifica da maneira como está estabelecida, i.e., não se justifica enquanto fundamentada em uma
precedência do sentido literal da forma como a natureza dessa precedência tem sido concebida.
Contudo, admitimos que operar com essa diferença pode ser produtivo se nos investirmos no
propósito de investigar uma possível relação entre o modo de enunciação da sentença, fator que
determina a configuração do seu escopo de referência, e o aspecto literal ou metafórico em que está
configurado o sentido dessa mesma sentença, lembrando que o sentido é constitutivo do referente
produzido pelo enunciado.
Antes de nos deter em alguns exemplos, a fim de investigar essa relação, devemos dizer que
consideramos aqui literalidade e metaforicidade por um critério de recorrência enunciativa. Assim,
classificamos como metafórico um enunciado cuja articulação entre as suas unidades lingüísticas,
ao mesmo tempo em que atualiza referências estáveis historicamente, apresenta as condições para
constituição de outras referências. Essa atualização referencial ocorre não porque ela seja “mais
natural”, mas porque está assentada numa virtualidade histórica. Retomemos a sentença de moral da
fábula apresentada acima em (1): Belas penas não fazem belos pássaros. Ela comporta duas
unidades lingüísticas, belas penas e belos pássaros, que se apresentam discretizadas na virtualidade
da língua como suportes de referência, e que se apresentaram em outros campos de enunciação com
relativa estabilidade referencial, principalmente no campo da enunciação sobre aves. Nesse campo,
pássaros e penas se apresentam historicamente relacionados. O “salto” para a metaforicidade se dá
pelo modo de enunciação em que está configurada a sentença. Por estar configurada em um modo
de enunciação genérico, a articulação entre os elementos ocupantes das unidades GN-sujeito e GN-
objeto propicia novos parâmetros de referência. Por esse novo parâmetro, referências como
“essência” e “aparência” entrariam em causa na relação entre o campo de enunciação da fábula, que
invoca a estabilidade referencial desenvolvida nas suas cenas, e o campo de enunciação dos valores
sociais, convocado de forma prospectiva, para dar suporte à metaforicidade de Belas penas não
fazem belos pássaros.
Acreditamos que a metaforicidade ou a literalidade se definem, portanto, pela relação que se
estabelece entre a condição das unidades morfossintáticas na virtualidade discreta da língua e a
condição desses elementos na constituição de outro campo de enunciação interposto pelo

que este último se manifesta pelo primeiro.


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acontecimento do dizer.

3. Prospecção e metaforicidade
A noção de virtualidade discreta se fundamenta na tese segundo a qual as unidades que
configuram um enunciado no acontecimento da enunciação constituem feixes de potencialidades na
língua. Esses feixes de potencialidades são “colméias de inteligibilidade” para o sujeito, e são
distinguíveis pelas relações entre discursos configurados na memória de ordem histórico-social. As
condições da metaforicidade operam sobre essas relações potenciais, sob a forma de articulações
discrepantes realizadas no acontecimento enunciativo, produzindo caminhos prospectivos nas
relações com a memória.
Nesse quadro, a metaforicidade será concebida neste estudo como um fenômeno que tem
lugar na articulação sintática em interface com a enunciação. Por uma questão didática,
consideraremos separadamente a medida de cada um dos componentes dessa interface,
componentes esses que, na verdade, operam numa relação de interdependência.
Vejamos mais um exemplo de fábula com sua respectiva sentença de moral para que
possamos investigar a relação entre modo de enunciação e aspecto de sentido, i.e., investigar a
relação entre modo de enunciação e metaforicidade/literalidade.

(2)
O homem, seu filho e o burro
Um homem ia com o filho levar um burro para vender no mercado.
– O que você tem na cabeça para levar um burro estrada afora sem nada no
lombo enquanto você se cansa? – disse um homem que passou por eles.
Ouvindo aquilo, o homem montou o filho no burro, e os três continuaram
seu caminho
– O rapazinho preguiçoso, que vergonha deixar o seu pobre pai, um velho
andar a pé enquanto vai montado! – disse outro homem com quem cruzaram.
O homem tirou o filho de cima do burro e montou ele mesmo. Passaram
duas mulheres e uma disse para a outra:
– Olhe só que sujeito egoísta! Vai no burro e o filhinho a pé, coitado...
Ouvindo aquilo, o homem fez o menino montar no burro na frente dele. O
primeiro viajante que apareceu na estrada perguntou ao homem:
– Esse burro é seu?
O homem disse que sim. O outro continuou:
– Pois não parece, pelo jeito como o senhor trata o bicho. Ora, o senhor é
que devia carregar o burro em lugar de fazer com que ele carregasse duas pessoas.
Na mesma hora o homem amarrou as pernas do burro num pau, e lá se foram
pai e filho aos tropeções carregando o animal para o mercado. Quando chegaram,
todo mundo riu tanto que o homem, enfurecido, jogou o burro no rio, pegou o filho
pelo braço e voltou para casa.
Moral: Quem quer agradar todo mundo no fim não agrada ninguém.

Considerando a configuração do escopo de referência, podemos dizer que o texto da narrativa se


constrói por referências pontuais, ou seja, produz-se o efeito de apontamento para referentes
particulares: personagens e situações determinadas pela definitude. Já a sentença de moral constrói

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uma referência genérica, por meio da ocupação pelo pronome “quem” do GN-sujeito. Do ponto de
vista retrospectivo, o personagem “pai” (da narrativa) atende às condições de ocupação desse lugar
sintático. Por sua vez, do ponto de vista prospectivo, a sentença de moral perfaz um modo de
enunciação proverbial, cujo traço determinante é a genericidade implicativa. Nessa direção, o
pronome extrapola o raio referencial, que estava circunscrito na retrospectividade a “pai”. Quanto
ao aspecto do sentido, não reconhecemos oposição metaforicidade/literalidade na sentença da
moral, uma vez que as articulações estabelecidas (agradar todo mundo; não agradar ninguém)
funcionam tanto na retrospecção quanto na prospecção.
Podemos voltar novamente a (1), cuja sentença de moral é Belas penas não fazem belos
pássaros, a fim de estabelecer uma diferença com (2). Se em (2) não reconhecemos oposição
metaforicidade/literalidade na sentença de moral, em (1), essa oposição se estabelece. Vejamos: na
ocupação do lugar GN-sujeito, temos duas dimensões enunciativas, em dois campos de enunciação,
como suporte de referência: penas (no movimento retrospectivo) e aparência (no movimento
prospectivo); por sua vez, na ocupação do lugar GN-objeto, os dois campos de enunciação, relativo
ao biológico e ao social, autorizam os recortes de referência relativos a pássaros e essência, graças
à retrospecção e à prospecção, respectivamente. Se o efeito de literalidade advém do movimento de
retrospecção, o efeito de metaforicidade advém da prospecção.
Quando nos colocamos diante de um provérbio, podemos postular, da mesma forma,
movimentos de retrospecção e de prospecção. A diferença está no fato de não termos as cenas da
narrativa pertinente à fábula para balizar os esteios da definitude na retrospecção. Vejamos a fábula
Quem tem telhado de vidro não atira pedras no do vizinho. Da mesma que a sentença moral de (2),
temos a ocupação do lugar GN-sujeito pelo pronome “quem” generalizador, que amplia ao máximo
o raio referencial, já na sua própria condição virtual. Como ocupantes dos lugares GN-objeto, temos
telhado de vidro para o verbo “ter” e pedras para o verbo “atirar”. A virtualidade referencial,
discretizada por telhado de vidro e pedras, é sustentada pela retrospecção em discursividades que
atravessam os usos da língua nos campos da edificação e da perversidade. A ampliação maximizada
do raio referencial do pronome quem, equivalente a aquele que, por sua vez, repercute no
movimento de prospecção que atua no lugar GN-objeto relativo ao verbo “ter”, produzindo como
conseqüência uma metaforicidade. Pela prospecção, o lugar de telhado de vidro produz condições
enunciativas para um recorte referencial como vulnerabilidade.
Há um importante aspecto a ser levantado na passagem da retrospecção à prospecção, no
âmbito da metaforicidade. O provérbio, na medida em que se constitui num modo de enunciação
generalizante pela prospecção, adquire propriedade nomeadora, justamente pelo fato de que ele
passa a uma condição de designador de todas as situações individuais em que alguém desconhece a
sua condição de vulnerável por ter infringido leis, normas, costumes, etc, e critica o seu semelhante

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por ter cometido as mesmas infrações. É, portanto, a metaforicidade que produz pertinência e
consistência para a relação entre “ter telhado de vidro” e “jogar pedra no telhado do vizinho”. Tão
somente pela retrospecção, a inteligibilidade relativa ao fato de se ter telhado de vidro e a ação de
jogar pedra no telhado do vizinho não adquirem pertinência, isto é, não formam uma unidade capaz
de adquirir propriedade nomeadora. Em outros termos, apenas pela retrospecção, a frase proverbial
serviria tão somente para referir a pessoas cujas casas possuam telhados de vidro e que por isso não
praticam a perversidade relativa a jogar pedras em telhados de vizinhos, por exemplo. Isso é muito
pouco para que se configure uma regularidade de usos e uma generalidade enunciativa
caracterizadoras de um provérbio.
Na nossa perspectiva, essa propriedade nomeadora dos provérbios não produz conseqüências
para uma eventual classificação desse tipo de sentença como item lexical, como em maria-fecha-a-
porta ou leva-e-traz, que vimos no início deste trabalho. Nesses dois itens lexicais, por exemplo,
não podemos vislumbrar uma análise das condições de ocupação ou não ocupação dos lugares de
GN-sujeito e GN-objeto dos verbos “fechar”, “levar” e “trazer”. A capacidade nomeadora desses
itens é plena. Procuramos, ao contrário, mostrar que é justamente nas condições de ocupação dos
lugares sintáticos que se assenta a mudança da retrospeção para a prospecção, como bases para a
metaforicidade. Nesse sentido, concordamos com Kleiber (2000), para quem o provérbio abriga
uma regularidade estruturante, e que, dessa forma, a sua capacidade denominativa se aplica somente
a situações regulares e não a entidades.

4. Considerações finais
A sintaxe se constitui na relação entre uma dimensão orgânica, na qual se configuram os
lugares sintáticos, e uma dimensão enunciativa, em que atuam as condições de ocupação ou não
ocupação desses lugares. Neste estudo, abordamos a constituição sintática de sentenças com caráter
genérico, como as frases conclusivas de fábula e os provérbios. Vimos que as condições de
ocupação dos lugares sintáticos nesse tipo de sentenças são determinantes para explicarmos o
caráter metafórico que perpassa essas sentenças. Para isso, foi essencial que buscássemos um
aparato teórico-metodológico que pudesse explicitar uma diferença básica entre as sentenças que
dão suporte às cenas corriqueiras referentes às especificidades referenciais do nosso dia-a-dia e as
sentenças de caráter generalizante, que se estabilizam materialmente, são reproduzidas com a
mesma materialidade, e podem inclusive ser itens de dicionários, como os diversos dicionários de
provérbios facilmente encontrados nas nossas livrarias. Nessa direção, desenvolvemos o conceito de
retrospecção e prospecção, com vistas a mostrar que a passagem da condição retrospectiva para a
condição prospectiva é essencial para defendermos a tese de que é perfeitamente possível que
façamos análise sintática de sentenças genéricas, uma vez que essa passagem encontra abrigo

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justamente na articulação dos campos de possibilidade referencial (campos de enunciação), que
arregimenta o lugar sintático do ponto de vista da enunciação.

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