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ARQUIDIOCESE DE NATAL

SEMINÁRIO DE SÃO PEDRO

CURSO DE TEOLOGIA – 2022.2


Disciplina: Bíblia VI: Escritos Joaninos
SEMINARISTA JOSÉ CARLOS ARCELINO DA SILVA

REUSMO:
A COMUNIDADE DO DISCÍPULO AMADO
Raymond E. Brown

Trabalho apresentado ao Seminário de São Pedro


para a disciplina de Bíblia VI: Escritos Joaninos
ministrada pelo Professor Ms. Pe. Ednaldo Virgílio
da Cruz.

2022.2
INTRODUÇÃO
Problema e método para discernir a eclesiologia joanina
A palavra “igreja” (ekklesia) nunca aparece no quarto evangelho ou na primeira e
segundo epístola de João. Enquanto os evangelhos sinóticos estão cheios de referências
ao “Reino de Deus” (o céu), esta terminologia está visivelmente ausente de João (somente
cf. Jo 3,3-5; 18,36). O conceito de povo de Deus também parece estar ausente da teologia
joanina, como está o termo “apóstolo” no seu sentido próprio. Alguns apresentam
argumentos a favor do sectarismo joanino, baseando-se no fato de que os gnósticos do
século segundo receberam o evangelho com relativa facilidade. Outro argumento em
favor do sectarismo joanino emerge de interpretações radicais da teologia e eclesiologia
do quarto evangelho. A probabilidade de que a comunidade joanina era uma seita bem
diferente da maioria dos outros cristãos seria muito maior, se o quarto evangelho fosse
anti-sacramental ou decididamente não-sacramental; ou se o quarto evangelho fosse
contra a orientação de Pedro; ou se o quarto evangelho fosse anti-institucional, rejeitando
a estrutura presbítero/bispo, que estava tomando forma no final do século; ou se a
cristologia fosse um docetismo ingênuo.
Prefiro reescrever esta visão da maneira seguinte: Primeiramente, os evangelhos
nos falam como cada evangelista concebia Jesus e o apresentava a uma comunidade cristã
no último quartel do primeiro século, apresentação essa que nos dá indiretamente uma
visão da vida dessa comunidade, no tempo em que o evangelho foi escrito. Em segundo
lugar, através da análise das fontes, os evangelhos nos revelam algo sobre a história pré-
evangélica dos pontos de vista cristológicos do evangelista. Em terceiro lugar, os
evangelhos oferecem meios limitados para reconstruirmos o ministério e a mensagem do
Jesus histórico.
O quarto evangelho reivindica o privilégio de ser testemunha ocular (cf. Jo
19,35;21,24) e contém algumas importantes tradições históricas sobre Jesus.
Reconstruindo a vida da comunidade joanina, pressuponho quatro fases. Primeira: a era
pré-evangélica, inclusive as origens da comunidade, e sua relação com o judaísmo da
metade do século primeiro. A Segunda: envolvia a situação da vida da comunidade
joanina no tempo em que o evangelho foi escrito no período aproximadamente dos anos
90 d.C. A expulsão das sinagogas então já passou, mas a perseguição continua, e há
profundas cicatrizes na alma joanina em relação “aos judeus”. A terceira: envolvia a
situação de vida nas comunidades joaninas agora divididas, no tempo em que foram
escritas as epístolas, provavelmente por volta do ano 100 d.C. A quarta: viu a dissolução
dos dois grupos joaninos depois que as epístolas foram escritas. Os separatistas, não mais
em comunhão com a ala mais conservadora da comunidade joanina, provavelmente
tenderam mais rapidamente no século segundo para o docetismo, o gnosticismo, o
cerintianismo, e o montanismo.

PRIMEIRA FASE
Antes do evangelho – Origem da comunidade joanina
No período primitivo a comunidade joanina constava de judeus, cuja fé em Jesus
envolvia uma cristologia relativamente baixa. Mais tarde, surgiu uma cristologia mais alta
que levou a comunidade joanina a declarado conflito com os judeus, que a consideravam
como uma blasfêmia. Já no primeiro capítulo de João há notáveis diferenças da imagem
sinóptica do ministério de Jesus. Todos os quatro evangelhos mostram respeito por João
Batista, mas o quarto evangelho lhe atribui o conhecimento da preexistência de Jesus. Os
três evangelhos sinópticos trazem Pedro, André, Tiago e João como chamados
inicialmente ao ministério; o elenco de personagens em João é um pouco diferente:
André, Pedro, Filipe e Natanael.
O fato de que alguns dos mesmos primeiros discípulos são os personagens tanto
nos sinópticos como em João e os títulos que eles dão a Jesus em João são títulos que
conhecemos dos sinópticos, dos Atos e de Paulo significa que as origens joaninas não
eram muito diferentes das origens das outras igrejas judaicas, especialmente daquelas
igrejas que, mais tarde, se associariam com a memória dos doze. Eventualmente na
história joanina os milagres e as palavras semelhantes aos dos sinópticos foram reunidos
em cenas e discursos joaninos únicos, mas este mesmo fato sugere que houve uma
continuidade entre as origens joaninas e o desenvolvimento posterior da comunidade. Se
há compreensão do quarto evangelho que vai além do ministério, Jesus a predisse e enviou
o Paráclito, o Espírito da Verdade para conduzir a comunidade precisamente nesta direção
(cf. Jo 16,12-13). Para o evangelista joanino, a elevada cristologia de sua comunidade,
põe em relevo a significação verdadeira, mais profunda das confissões originais.
Uma figura importante no quarto evangelho é o Discípulo Amado que foi
idealizado, naturalmente; mas a meu ver o fato de ter ele sido uma pessoa histórica e
companheira de Jesus torna-se cada vez mais óbvio nos novos enfoques da eclesiologia
joanina. Durante sua vida, quer no período do ministério de Jesus, quer no período pós-
ressurreição, o Discípulo Amado experimenta o mesmo crescimento em percepção
cristológica que a comunidade joanina, e foi este crescimento que tornou possível à
comunidade identificá-lo como aquele que Jesus amava de maneira particular.
Os cristãos joaninos foram expulsos das sinagogas e lhes disseram que não podiam
mais adorar a Deus com os outros judeus; e assim eles não mais se consideraram judeus,
apesar do fato de muitos deles serem de ascendência judaica. Durante a vida de Jesus, os
sumos sacerdotes e alguns dos escribas no Sinédrio eram hostis a Jesus e tiveram parte
na sua morte. Os que expulsaram os cristãos joaninos e os que estão matando (cf. Jo 16,2)
são considerados como herdeiros do grupo anterior. Enquanto os cristãos eram
considerados judeus, não havia nenhuma razão legal específica para que os romanos os
matassem. Mas, uma vez que as sinagogas os expulsavam, tornava-se claro que eles não
eram mais judeus, e sua não-adesão aos costumes pagãos e deixar de participar do culto
ao imperador criavam-lhes problemas legais.
Tendo de fazer uma escolha entre Jesus e o judaísmo e tendo preferido a glória de
Deus à glória dos homens os cristãos joaninos tiravam de sua opção corolário importante
sobre o judaísmo, que tinham abandonado. Na pregação cristã primitiva a ideia de uma
“nova aliança” tinha significado uma aliança renovada entre Deus e seu povo judaico
através de Jesus e nele – não significando uma substituição total do velho pelo novo. Na
grande cena da aliança do Sinai a glória de Deus encheu o tabernáculo (cf. Ex 40,34), mas
agora o Verbo de Deus habitou entre nós e nós vimos a sua glória (cf. Jo 1,14). Deus
enviou seu Filho ao mundo; e quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está
condenado (cf. Jo 3,17-21). Obviamente, esta teologia seria tranquilizadora em face da
perseguição e da execução por parte “dos judeus” – o Jesus joanino prometeu: “quem
vive e crê em mim jamais morrerá” (cf. Jo 11,26). Para Lucas (cf. Lc 6,35;20,36) a filiação
divina é uma recompensa na vida futuro; para João (cf. Jo 1,12) o dom de ser filho de
Deus é concedido aqui e agora.
A reconstituição da história da comunidade joanina que traçamos até aqui incluía
um grupo originário de cristãos judeus (inclusive de discípulos de João Batista) e um
grupo posterior de cristãos judeus, que eram contrários ao Templo, com seus convertidos
samaritanos. A luta contra a sinagoga levou os cristãos joaninos a insistir que a entrada
ao reino não se baseava na descendência humana, mas em ter sido gerado por Deus e que
os que aceitaram Jesus são os verdadeiros filhos de Deus.

SEGUNDA PARTE
Quando o evangelho foi escrito – Relações de João com os estranhos
Neste capítulo descreverei a visão joanina dos vários não-crentes e crentes no
tempo em que o evangelho foi escrito. A alta cristologia joanina não é nenhum teste
abstrato de ortodoxia que não tem nada que ver com a vida da comunidade. Se é crucial
crer que Jesus é o Verbo de Deus preexistente que veio de Deus e é de Deus, é porque
então sabemos como Deus realmente é. A questão mais própria do quarto evangelho diz
respeito à relação dos que creem em Deus, através de Jesus e nele.
O termo “mundo” torna-se mais comum em João para significar aqueles que
rejeitaram a luz, uma vez que os que aceitam estão, na maior parte, dentro da comunidade
joanina. E assim ouvimos que a vinda de Jesus é um julgamento do mundo (cf. Jo 9,39),
que é habitado por filhos das trevas (cf. Jo 12,35-36); porque o mundo é incompatível
com Jesus (cf. Jo 16,20; 17,14.16; 18,36) e com seu Espírito (cf. Jo 14,17; 16,8-11). Numa
palavra, o mundo odeia Jesus e os que nele creem. E se Jesus “não é deste mundo”, a
mesma sorte de rejeição encontra inevitavelmente os cristãos joaninos. Em última análise,
a pátria da comunidade joanina é também o céu. Em diferente áreas e tempo no primeiro
século houve diversas relações entre os judeus que acreditavam em Jesus e os judeus que
não criam nele, e estas relações nem sempre eram hostis.
João retrata os primeiros seguidores de Jesus como discípulos de João Batista, e o
próprio movimento joanino pode ter tido suas raízes entre estes discípulos, especialmente
o Discípulo Amado. A cena em João (cf. Jo 3,22-26) atribui aos discípulos de João Batista
não-crentes certa inveja de Jesus e uma consideração ciumenta das prerrogativas de seu
mestre, mas não os retrata como odiando a Jesus do modo como “os judeus” e o mundo
o odiavam. João em (cf. Jo 12,42-43) oferece a referência mais clara a um grupo de judeus
que se sentiam atraídos para Jesus, de modo que se poderia dizer que acreditavam nele,
mas tinham medo de confessar a sua fé em público, para não serem expulsos da Sinagoga.
João tem desprezo por eles porque, segundo sua maneira de julgar, eles preferem o louvor
dos homens à glória de Deus.
Penso que houve também cristãos judeus que deixaram a sinagoga, ou dela foram
expulsos, que eram conhecidos publicamente como cristãos, que formavam igrejas, e,
contudo, João tinha para eles uma atitude hostil no final do século. Sabe-se da sua
existência pela presença no evangelho de judeus que eram publicamente crentes ou
discípulos, mas cuja falta de fé verdadeira é condenada pelo autor. Um caso de cristãos
judeus de fé inadequada pode ser o dos irmãos de Jesus em (cf. Jo 7,3-5). Sabemos que
eles insistem com Jesus que suba à Judeia para realizar aí os seus milagres, em vez de os
fazer em relativo escondimento. Podemos descobrir ainda outro grupo de cristãos
distintos dos próprios cristãos joaninos. São representados por Pedro e outros membro
dos doze. Provavelmente não havia nenhuma diferença étnica entre a comunidade do
Discípulo Amado e as comunidades representadas no quarto evangelho pelos doze.
Ambras eram mistas, havendo judeus e gentios. A presença dos doze na última ceia
significa que os cristãos apostólicos estão incluídos entre os que são de Jesus, os quais
ele ama até o fim. No entanto, os cristãos joaninos, representado pelo Discípulo Amado,
consideram-se claramente mais próximos de Jesus e mais perceptivos do que os cristãos
das Igrejas apostólicas.
Contudo, pode-se descobrir no evangelho um outro grupo, a própria comunidade
joanina. Mas fica em aberto a questão apresentada na Introdução do livro: Os cristãos
joaninos constituíam uma seita, que romperam a comunhão com a maioria dos outros
cristãos? Apesar destas tendências para o sectarismo, eu afirmaria que a atitude joanina
diante dos cristãos apostólicos prova que a comunidade joanina, como se reflete no quarto
evangelho, não se tornou realmente uma seita. Pode-se julgar pela presença de Pedro e
dos outros chamados discípulos na última ceia, os cristãos joaninos consideravam os
cristãos apostólicos como pertencentes aos seguidores de Jesus com os quais eles estavam
ligados pelo mandamento: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (cf. Jo
13,34).

TERCEIRA PARTE
Quando foram escritas as epístolas? – Lutas internas joaninas
A história da comunidade do Discípulo Amado continua, depois do período do
evangelho, nas epístolas. As epístolas segunda e terceira de João são cartas de uma página
escritas pelo mesmo homem que se chamou a si mesmo “o presbítero”. O autor da
primeira epístola de João nunca se identifica, e o seu escrito é mais um tratado do que
uma nota pessoal. Sua preocupação dominante é fortalecer os leitores contra um grupo
que está fazendo a obra do Demônio e do Anticristo (cf. 1Jo 2,18; 4,1-6), um grupo que
se afastou da comunidade, mas que está tentando ainda conquistar outros adeptos. Seus
erros são cristológicos e éticos. Em particular não mostram amor aos irmãos (cf. 1Jo 2,9-
11). Quanto ao autor, é razoavelmente certo que não foi o Discípulo Amado. Embora haja
semelhanças estilísticas e teológicas profundas entre o evangelho e as epístolas, há
também diferenças insignificantes que levantam dúvidas se o autor das epístolas era o
evangelista. Uma questão mais importante para nossa finalidade é a cronologia relativa
do evangelho e das epístolas. O ponto realmente decisivo na questão da data é que,
enquanto o evangelho reflete o relacionamento da comunidade joanina com os de fora, as
epístolas se ocupam com os de dentro. Psicologicamente é fácil de explicar por que a luta
com os de fora desaparecera de vista nas epístolas; pois, quando uma comunidade se
divide profundamente dentro de si mesma, isto se torna a batalha principal para
sobreviver, as epístolas podem ser datadas aproximadamente de 90 a 110 d.C.
Para explicar o título nas epístolas, tem-se invocado outro uso da palavra
presbítero, como se atesta em diferentes formas do século segundo em Pápias e Ireneu.
O outro pode ser usado para designar a geração de instrutores depois das testemunhas –
pessoas que podiam ensinar numa cadeia de autoridade, porque elas tinham visto e ouvido
outras pessoas que, por sua vez, tinham visto e ouvido de Jesus. Depois da morte do
Discípulo Amado, a comunidade entendeu que a obra do Paráclito continuava nos
discípulos do Discípulo Amado que transmitiu a tradição e ajudou a formulá-la. O
presbítero fala como representante de longa vivência da escola joanina, não porque ele
tenha sido uma testemunha ocular, mas por causa da aproximação da escola joanina de
discípulos do Discípulo Amado. Numa reação de cadeia, Jesus tinha visto Deus; o
Discípulo Amado tinha visto Jesus; e a escola joanina participa de sua tradição.
O autor da primeira epístola diz que um grupo se separa das fileiras de sua
comunidade, quero enfatizar aqui que o pensamento separatista reconstituído não se
enquadra exatamente nem no pensamento doceta, nem no pensamento cerintiano. Na
minha opinião, a hipótese que melhor explica as posições, tanto do autor das Epístolas
quanto dos separatistas é a seguinte: Ambas as partes conheciam a proclamação do
cristianismo que nos foi feita através do quarto evangelho, mas a interpretavam
diferentemente. A Igreja subsequente, aceitando 1Jo no cânon da Escritura, mostrou que
aprovou a interpretação do autor e não a dos seus adversários. As áreas de cristologia, de
ética, de escatologia, e pneumatologia, foram, a meu ver, os principais pontos de conflito
entre o autor e seus adversários. Uma cristologia muito elevada foi o ponto central das
lutas históricas da comunidade joanina com os judeus e com os outros cristãos 1.
O autor insiste claramente que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus; e todo aquele
que negar isto é mentiroso e um anticristo. Mas o que significa “não confessar Jesus?”
Deve significar que os adversários enfatizam tanto o princípio divino em Jesus que

1
A crença na preexistência do Filho de Deus foi a chave da contenda joanina de que o verdadeiro
crente possuía a própria vida de Deus; e o quarto evangelho foi escrito para fortalecer a fé dos cristãos
joaninos sobre este ponto (cf. Jo 20,31).
negligenciam a carreira terrestre do princípio divino. Não há o menor indício no quarto
evangelho de que Jesus tinha somente um corpo aparente, ou que o Verbo e Jesus agissem
como duas entidades separadas durante o ministério. Sustendo que os separatistas criam
que a existência humana de Jesus, embora real, não era significativa do ponto de vista de
salvação. Para os separatistas a existência humana era somente um estágio na carreira do
Verbo divino e não um componente intrínseco da redenção. A única coisa importante para
eles era que a vida eterna tinha sido trazida para os homens através de um Filho divino
que passou por esse mundo. Numa palavra, a teologia deles era uma teologia
encarnacional levada à exclusividade.
Realmente, João é o único dos quatro evangelhos que não descreve o batismo de
Jesus. O batismo administrado por João Batista não é mais visto como um batismo de
arrependimento para a remissão dos pecados (cf. Mc 1,4); ele agora confirma a
preexistência encontrada no hino do Prólogo. Se João enfatiza o batismo e a paixão como
momentos de revelação, os separatistas parecem ter interpretado isto de uma maneira
exclusiva. O batismo é agora somente um lembrete público de que o Filho veio ao mundo.
A morte é apenas a volta essencial do Filho ao Pai – uma passagem deste mundo para a
presença do Pai e para a glória que ele tinha antes que o mundo existisse. Houve conflitos
também com as implicações da cristologia no comportamento cristão. Os adversários
reivindicavam uma intimidade com Deus ao ponto de as pessoas se tornarem perfeitas e
sem pecados. Eles não dão muita ênfase em guardar os mandamentos (cf 1Jo 2,3-4), eles
são vulneráveis no que diz respeito ao amor fraterno. Os separatistas no seu
perfeccionismo, vêm a ausência de pecado como uma verdade realizada e não
simplesmente como uma obrigação. Para eles, o crente é sem pecado e não podem admitir
possibilidade da exceção: “Se alguém pecar”. A explicação mais plausível da atitude dos
separatistas diante dos mandamentos é que eles não dão nenhuma importância salvadora
ao comportamento ético, e que esta posição tenha derivado de sua cristologia, ou seja, se
a vida eterna consiste em conhecer a Deus, e aquele que ele enviou (Jo 17,3), pode-se
afirmar que se tem intimidade com Deus, independentemente do que se faz no mundo.
Os separatistas profetas e doutores que proclamavam que falavam pelo Espírito
poderiam justificar suas funções apelando para a tradição joanina que conhecemos através
do quarto evangelho? É o Paráclito, o Espírito Santo, que ensinará tudo ao crente (cf. Jo
14, 26) e o conduzirá à verdade plena. Provavelmente o separatista, profeta ou doutor,
justificaria sua atitude cristológica em termos de uma testemunha guiada pelo Espírito
que está completamente inserida na tradição joanina. “A unção que recebestes dele
permanece em vós e não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1Jo 2,27). Se os
separatistas afirmam que são mestres guiados pelo Espírito, o autor está lembrando a seus
leitores que cada cristão joanino é mestre através do Espírito Paráclito. Eles estão errados,
não por causa de um autoritário “eu digo que vocês estão errados” da parte do autor, mas
porque eles romperam a comunhão com os crentes que são todos ungidos pela palavra e
pelo Espírito, e que por isso instintivamente reconhecem a verdade, quando os escritores
e pregadores que estão intimamente associados com o Discípulo Amado falam e dizem:
“nós vos anunciamos o evangelho que recebemos desde o início”.

QUARTA FASE
Depois das epístolas – Dissolução joanina
Se a parte da comunidade joanina ao autor se fundiu gradualmente com os cristãos
apostólicos integrando-se na Grande Igreja, levou consigo a alta cristologia joanina da
preexistência, precisamente porque, na sua luta contra os separatistas, o autor das
epístolas tinha salvaguardado aquela cristologia contra qualquer interpretação que levasse
ao docetismo ou ao monofisitismo. Os separatistas, privados desta influência moderadora
que os adeptos do autor poderiam ter apresentado, se não tivesse acontecido o cisma,
foram mais além na sua cristologia ultraelevada em direção do verdadeiro docetismo.
Tendo pensado que a carreira terrena de Jesus não tinha uma importância salvífica real,
deixaram então de pensar nela como real. O fato de estes separatistas trazerem o
evangelho joanino com eles, oferecia aos docetas e gnósticos, de cujo pensamento agora
eles participavam, uma nova base sobre a qual construir uma teologia – na verdade, servia
como catalisador para o crescimento do pensamento gnóstico cristão.
Uma tese comum nos sistemas gnósticos envolve a preexistência de seres
humanos na esfera divina antes de sua vida na terra. A ênfase joanina na preexistência de
Jesus e na sua filiação como modelo para o status do cristão como filho foi a matriz da
qual a tese gnóstica poderia ter tomado forma. Um catalisador particular num
desenvolvimento para o gnosticismo pode ter sido a insistência joanina na predestinação
dos filhos da luz, de modo que eles já sã atraídos para Deus antes de Jesus vir a descobrir
a sua predestinação (cf. Jo 3,17-21). Analogamente a afirmação dos separatistas: “Nós
não pecamos” teria sido entendida num seio gnóstico como precedente do próprio ser dos
filhos da luz e não da fé na palavra de Jesus, santifica – como o próprio Jesus, o crente se
oporia por sua natureza ao pecado. Para Cerinto sobre a posição de Cristo (um poder
divino) ter descido sobre Jesus depois do batismo e ter-se retirado dele antes da crucifixão.
João vê a crucifixão como a ida de Jesus para o Pai; mas Cerinto pode ter entendido que,
antes de Jesus morrer, o elemento divino já tinha ido para o céu. Mais óbvia ainda é a
linha joanina de evolução para Montano. Sabemos que ele leu as promessas joaninas de
vir, dar e enviar o Paráclito (cf. Jo 14,15 e 26; 15,26) como uma predição de sua própria
vida inspirada pelo Espírito. A ênfase montanista na profecia poderia ser a continuação
da ênfase entre os separatistas.
Embora não haja claras citações ortodoxas do quarto evangelho antes do último
quartel do século segundo, as ideias joaninas são aceitáveis muito mais cedo. Em Inácio
encontramos elementos de alta cristologia semelhante à de João. Quando discuti o
relacionamento entre os cristãos joaninos e os cristãos apostólicos, salientei que a oração
de Jesus “a fim de que todos sejam um” (cf. Jo 17,21) expressava o desejo dos cristãos
joaninos da unidade com os cristãos apostólicos, se estes aceitassem a alta cristologia da
preexistência do quarto evangelho. Outro possível eco inaciano da tradição joanina teria
sido a referência à eucaristia como a carne e o sangue de Jesus, especialmente quando
combinado com o alto sacramentalismo de Inácio, segundo o qual a eucaristia é “o
remédio da imortalidade, o antídoto para que não morramos, mas vivamos eternamente
em Jesus Cristo” (cf. Ef 20,2). Assim João e Inácio teriam compartilhado da mesma visão
comum em dois pontos a respeito dos quais ambos discordavam das igrejas cristãs
judaicas, isto é, a alta cristologia e a visão sacramental da eucaristia. Pode haver grandes
semelhanças entre Inácio e João em pontos de alta cristologia e de eucaristia, mas no que
tange à eclesiologia eles são bastante diferentes, sobretudo em matéria de estrutura
eclesial. Vimos que a comunidade joanina não parece ter tido chefes eclesiásticos com
autoridade.
A estrutura da igreja inaciana foi até mais além na direção dos cargos eclesiásticos
com autoridade, e Inácio insiste no papel do bispo isolado. A hierarquia estabelecida tinha
agora controle sobre o batismo e sobre a eucaristia; a autoridade humana agora se tornou
o sinal visível da autoridade divina. No capítulo redacional – capítulo 21 – podemos ter
uma voz mais moderada persuadindo os cristãos joaninos que a autoridade pastoral
praticada nas igrejas apostólicas, e na “Igreja Grande” foi instituída por Jesus e podia ser
aceita sem denegrir o lugar especialmente privilegiado na história dado por Jesus ao
Discípulo que ele amava. Contudo, a maior dignidade que se deve ambicionar não é nem
papal, nem a episcopal, nem a sacerdotal; a maior dignidade é a de pertencer à
comunidade dos discípulos amados de Jesus Cristo.
II APÊNDICE
Papel de mulheres no quarto evangelho
O lugar privilegiado concedido a mulheres no quarto evangelho reflete a história,
a teologia, e os valores da comunidade joanina. No entanto, não existe muita informação
a respeito de cargos eclesiásticos no quarto evangelho e, com maior razão, sobre mulheres
em cargos eclesiásticos. Talvez o único texto que pode referir-se diretamente a isto é Jo
12,2, em que lemos que Marta servia à mesa. Na comunidade joanina a mulher poderia
exercer uma função que em outras igrejas era função de pessoas “ordenadas”. Mas, fora
desta passagem, nossa discussão deve centralizar-se antes na posição geral das mulheres
na comunidade joanina. Podemos notar que o fenômeno de confiar um papel quase-
apostólico a uma mulher aparece ainda mais claro no capítulo 20 e, é a uma mulher, Maria
Madalena, que Jesus aparece por primeiro, instruindo-a que vá falar a seus “irmãos” de
sua ascensão ao Pai. Não é de admirar que em alguns redutos gnósticos Maria Madalena,
não Pedro, é a testemunha mais importante dos ensinamentos de Jesus ressuscitado.
Assim, se outras comunidades cristãs pensavam que foi Pedro que fez a suprema
confissão de Jesus como Filho de Deus e aquele a quem Jesus ressuscitado apareceu por
primeiro, a comunidade joanina associava tais memórias com heroínas como Maria
Madalena. Portanto, parece que esta foi a comunidade em que nas coisas que contam no
seguimento de Cristo não havia diferença entre homem e mulher – sonho paulino (cf. Gl
3,28) que não foi completamente realizado nas comunidades paulinas.

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