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LAÇOS DE FAMÍLIA Clarisse Lispector

LAÇOS DE FAMÍLIA CLARICE LISPECTOR 3ª GERAÇÃO DO MODERNISMO

O ápice da sensibilidade chega com o devaneio gerado pela embriaguez, sugerindo a


sensualidade advinda pelo olfato:
"embriagada mas com o marido ao lado a garanti-la (...) E quando estava embriagada,
como num ajantarado farto de Domingo, tudo o que pela própria natureza é separado um
do outro cheiro d'azeite dum lado, homem do outro unia-se esquisitamente pela própria
natureza, e tudo não passava duma sem-vergonhice só, duma só marotagem."(...) "E
aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdém por tudo, a torná-la
madura e redonda como uma grande vaca.( ...) Naturalmente que ela palestrava. (...) as
palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era como se estivesse
prenhe palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era
como uma gravidez. Ai que esquisita estava."
Ou a percepção da criação advinda como um estado de embriaguez pela visão:
"mas que sensibilidade! Quando olhava o quadro tão bem pintado do restaurante ficava logo
com sensibilidade artística. Ninguém lhe tiraria cá das idéias que nascera mesmo para
outras coisas. Ela sempre fora pelas obras d'arte. (...) Sua sensibilidade incomodava sem
ser dolorosa, como uma unha quebrada." "Ai que se sentia tão bem , tão áspera, como se
ainda estivesse a Ter leite nas mamas, tão forte.(...) Inclinou-se um pouquito,
desinteressada, resignada. A lua. Que bom que se via. A lua alta e amarela a deslizar pelo
céu, a coitadita. A deslizar, a deslizar... Alta, alta. A lua. Então a grosseria explodiu-lhe em
súbito amor; cadela, disse a rir. "
2) Em "Amor", conto também narrado em terceira pessoa, deparamo-nos com a dona de
casa Ana em seu cotidiano familiar: marido, filhos... Tudo transcorrendo como o desejado:
filhos crescendo, fogão enguiçado, pagamento da prestação da casa. Ana colocava este seu
mundo para funcionar, mecanicamente. O problema era a tarde, quando os membros da
família estavam em suas funções e ela deparava-se consigo mesma. O final da tarde vinha
como um alívio. Um dia, como outro qualquer, estava voltando das compras no bonde,
como sempre fazia e deparou-se com um cego mascando cliches. O olhar insistente para o
cego despertou-lhe a piedade e a vida interior, sempre evitada, fluiu dolorosamente. A
compra esparramou-se com o solavanco do bonde e a distração de Ana. Os ovos
quebraram-se e o mal estava feito. Ana começou a sentir esta outra vida, "a rede do tricô
era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. (....) E como uma estranha
música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê ? Teria esquecido de
que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.(...) O mundo se
tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam." Perdeu a
direção de casa e chega sem saber ao Jardim Botânico: "Todo o jardim triturado pelos
instantes já mais apressados da tarde.(...) Tudo era estranho, suave demais, grande
demais.(...) As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia(...) O
Jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno" Retorna para casa para um jantar
familiar. Chega e o seu mundo pareceu-lhe estranho. "Ela amava o mundo, amava com
nojo.(...) A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar.
Oh! mas ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados(...) Mas a vida arrepiava-a,
como um frio.(...) E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do
espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se
apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia."
3) O conto "Uma galinha", narrado em terceira pessoa, retrata aparentemente a história
de uma galinha que deveria virar almoço da família no domingo. Todo o seu destino
modifica-se quando a mesma sai pelos telhados e a família foi avisada. Sendo assim, o dono
da casa resolveu sair em busca da fujona, pois lembrou-se "da dupla necessidade de fazer
esporadicamente algum esporte e de almoçar(...)" Por sua vez, "pouco afeita a uma luta
mais selvagem pela vida a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem
nenhum auxílio de sua raça.(...)" E a galinha continuava "estúpida, tímida e livre.(...) Que é
que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser." A pobre galinha foi
capturada e por afobação acabou colocando um ovo para sua própria surpresa e "nascida
que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e
assim ficou respirando, abotoando e desabotoando os olhos.(...) Só a menina estava perto e
assistiu a tudo estarrecida." Chamou pela mãe e todos os membros da família vieram para
ver a novidade. A menina conseguiu preservar a vida da galinha, pois havia botado um ovo.
A partir desse momento a galinha passou a ser a rainha da casa e "todos, menos ela, o
sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a
de apatia e a do sobressalto (...) Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho
era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."
4) Em "A imitação da rosa", conto narrado em terceira pessoa, com o ângulo de visão
calcado na personagem Laura, mulher frágil, insegura, sem filhos, tentando buscar a
perfeição e segurança por meio de um distanciamento da vida, com alta estima baixa,
preocupada com a visão que os outros têm dela. Laura é casada com Armando, um típico
marido dentro dos moldes sociais. A personagem parece-nos sair de uma doença, que a
deixou mais insegura. Agora, segundo todos ela está "bem" e retorna para sua vida normal.
Diante disto, um jantar com o casal de amigos Carlota e João foi marcado para a noite.
Todo o conto gira em torno dos conflitos vividos pela personagem nos momentos do dia que
antecedem a chegada do marido para irem ao jantar. E assim, "sentou-se no sofá como se
fosse uma visita na sua própria casa que, tão recentemente recuperada, arrumada e fria,
lembrava a tranqüilidade de um casa alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de
Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer
de sua casa uma coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal." "Sempre
achara lindo uma sala de espera, tão respeitoso, tão impessoal. Como era rica a vida
comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou- o . " (...)
"Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira (...) Mas à luz desta sala
as rosas estavam em toda a sua completa e tranqüila beleza.
Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade (...) Oh! Nada demais, apenas
acontecia que a beleza extrema incomodava." Desta forma, Laura decidiu enviar por meio
da empregada, as rosas para a amiga Carlota. E a partir deste momento, Laura viu-se
diante de um conflito: enviar ou não as rosas para a amiga, como se fosse pecado sentir
prazer em ter algo que lhe pertencesse: "porque uma coisa bonita era para se dar ou para
se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se 'ser'. Sobretudo nunca
deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar." Porém, Maria, a
empregada, levou as rosas enviadas por Laura para a amiga Carlota. "As rosas haviam
deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. (...) Uma ausência que entrava nela
como uma claridade. (...) "Mas, com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro
de si as rosas. Não era sequer difícil." Anoiteceu e Armando chegou: "A chave virou na
fechadura, o vulto escuro e precipitado entrou, a luz inundou violenta a sala." Armando
encontra Laura "sentada com o seu vestidinho de casa.(...) Da porta aberta via sua mulher
que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqüila como um trem.
Que já partira."
5) O conto "Feliz Aniversário", também narrado em terceira pessoa, gira em torno do
aniversário da matriarca de uma família numerosa. A aniversariante chama-se Anita, está
completando 89 anos, e mora com a filha Zilda. Para cumprir a aparência de uma família
feliz, todos cumprem a obrigação de ir ao aniversário da mãe da sogra, da avó... Anita,
alheia às encenações de sua família medíocre, comporta-se como um ser ausente, inerte. A
velha tinha sido colocada na cabeceira da mesa muito cedo, pronta, para adiantar os
serviços de Zilda. A festa transcorria e a velha não se manifestava, estava lá, "na cabeceira
da mesa suja, os corpos maculados, só o bolo inteiro -. ela era a mãe. A aniversariante
piscou os olhos." Cordélia, a nora mais moça era a única que percebia um mundo diferente
dos demais, ela via além das aparências, tinha o seu segredo, em seu isolamento e por esta
razão conseguia, em seu interior, estabelecer uma relação silenciosa de comunicação com
Anita. A velha foi solicitada para cortar o bolo, neste momento, percebe-se a metáfora da
morte que representa: "Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse
sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas
acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha." Após o "parabéns" e o bolo
devorado, a festa já estava pôr terminada. "Cordélia olhava ausente para todos, sorria."
Anita surpreendeu a todos, quando reflete por um ato, todo o asco interno que tem de seus
filhos, cuspindo no chão, pois "pareciam ratos se acotovelando, a sua família." E tomou
vinho, Cordélia continuava a olhar e a velha com "o punho mudo e severo sobre a mesa
dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se
saiba(...) Que a vida é curta." E chegou a hora de todos partirem, do mal estar da
despedida. Todos lá fora tentando manter a cordialidade aparente. "Enquanto isso, lá em
cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa,
erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela.
A morte era o seu mistério."
6) Em "A Menor Mulher do Mundo" , conto narrado em terceira pessoa, o explorador
francês Marcel Prete, caçador e homem do mundo deparou-se na África Equatorial com uma
tribo de pigmeus extremamente pequena. Mais surpreso ficou ao ser informado que
existiam seres menores ainda. No Congo Central, deparou-se com os menores pigmeus do
mundo, sendo que a menor mulher do mundo tinha 45 centímetros. Era madura, negra e
calada. Vivia no topo de uma árvore com seu companheiro para se protegerem. "Nos
tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase
intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida." Enviou mensagem para a imprensa,
dizendo que era "escura como os macacos".
"Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de
Pequena Flor." O explorador passou a colher informações sobre este povo minúsculo": são
invadidos pelos bantos que os matam e comem como macacos, têm hábitos e costumes
próprios, os filhos nascem e a liberdade lhes é dada quase imediatamente, e os likoualas,
usam poucos nomes e mais gestos e sons animais.
Marcel enviou fotografia para a imprensa, provocando nos humanos do mundo inteiro,
dentro de seus lares as mais diversas reações ao ver a menor mulher do mundo grávida.
Por outro lado, o explorador obstinado passou a conviver com a menor mulher do mundo ,
até que a menor mulher do mundo sorriu para ele, pois "não ser devorado é o sentimento
mais perfeito(...) Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado
como é delicada a alegria. (...) É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se
pode chamar de Amor. (...) Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis,
e amor é não ser comido. (...) Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena,
grávida, quente." Pequena Flor achava muito bom Ter uma árvore para morar, só sua, pois
é bom possuir. "Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo
menos ocupou-se em tomar notas. Quem não tomou notas é que teve de se arranjar como
pôde:
- Pois olhe declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão -, pois olhe, eu só
lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz."
7) No conto "O Jantar", narrado em uma primeira pessoa que observa uma terceira pessoa
que entrou no restaurante: um homem idoso, aparentemente de negócio, com algum
problema, segundo as observações do narrador . O narrador vai nos relatando as
impressões que tem desse homem no decorrer de seu jantar. Aos poucos o ato de comer, a
carne a ser devorada, o vinho, vão animalizando o homem, seguindo o olhar do narrador. É
interessante observar que o narrador assume uma primeira pessoa para nos passar as
impressões deixadas pelo personagem. Ao mesmo tempo, narra-nos a seqüência de ações
de um ele: "Ele terminou. Sua cara se esvazia de expressão. Fecha os olhos, distende os
maxilares. Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais o próprio rosto,
para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel
e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe
neste instante. Ele não quer." Vem a sobremesa e ele ingeriu tudo, prepara-se para sair e
nos resta refletir com o narrador: "Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi
embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou
morrer eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o
prato, rejeito a carne e seu sangue."
8) Em o conto "Preciosidade", encontramos uma personagem adolescente às voltas com
seus conflitos: "tinha quinze anos e não era bonita." Dona de uma vida banal, levantava-se
cedo, tinha contato só com a empregada, partia para a escola, ainda escuro, fechava a cara
para não ser notada ou importunada pelos operários no ônibus. Na escola comportava-se
com certa indiferença. Fazia tudo para que todos não se aproximassem dela. Na sala de
aula, "onde tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve, onde seu rosto tinha
algumas sardas, os cabelos caíam nos olhos, e onde ela era tratada como um rapaz. Onde
era inteligente(...) Aprendera a pensar. O sacrifício necessário: assim 'ninguém tinha
coragem'. E assim seguia a garota imaculada, protegida em si mesmo. Porém, em uma
manhã mais fria e escura "foi andando para o imprevisível da rua. As casas dormiam nas
portas fechadas. Os jardins endurecidos de frio. No ar escuro, mais que no céu, no meio da
rua uma estrela. Uma grande estrela de gelo que não voltara ainda, incerta no ar, úmida,
informe." Neste universo, no fim longínquo de sua rua, surgem dois rapazes. O desespero
dela é grande, o conflito imenso, eles não a tocariam, seriam só alguns instantes e havia a
esperança de que não olhariam para ela, mas olharam tocando- a ."Desesperou-se, chegou
com duas horas de atraso na escola. Toda ela estava mudada. E percebeu: "preciso cuidar
mais de mim". Em casa brada por um sapato novo, que não faça tanto barulho, reclamando
que ninguém lhe dá nada. "Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem
saber por que processo, de ser preciosa. Há uma obscura lei que faz com que se proteja o
ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo.
E ela ganhou os sapatos novos."
9) No conto "Laços de Família", com narração em terceira pessoa, encontramos uma
família, composta por Antônio, Catarina e o filho do casal. Uma vida comum, construída no
banal cotidiano de tantas outras. A mãe de Catarina, Severina vem passar uns dias na casa
da filha. O conto gira em torno do interior dos personagens neste pequeno universo
familiar. A personagem Catarina é meio estrábica e tem a capacidade de sorrir com os
olhos. Antônio é um engenheiro de futuro. O filho do casal é classificado como uma criança
magra, nervosa e distraída. A sogra Severina é como todas as sogras na visão de Antônio e
na observação do narrador e tem sempre a impressão de que se esqueceu de algo na
partida. Catarina acompanha a mãe na estação de trem e percebe que sua mãe estava
envelhecida. Notamos que há um distanciamento formal entre mãe e filha, como acontece
na maioria das família. "A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu,
pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto
de sangue. Como se 'mãe e filha" fosse vida e repugnância. Não se podia dizer que amava
sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso." O trem prepara-se para a partida. Catarina teve
vontade de dizer tanta coisa, mas nada disse, tanta coisa que deveriam dizer uma para a
outra. "Parecia-lhe que deveriam um dia Ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela
deveria Ter respondido: e eu sou tua filha." Catarina volta para casa com seu jeito
integrado da cidade, cabelo curto pintado de acaju, elegante, integrada na sua época e na
cidade. Entrou em casa e lá estava Antônio no seu grande dia: a tarde de Sábado era sua,
lia um livro, a paz sem Severina voltara. Catarina entrou no quarto do filho, um menino de
quase quatro anos, magro e nervoso e que falava ainda como se desconhecesse verbos e
muito distraído, "ninguém conseguira ainda chamar-lhe a atenção". De repente Catarina
ouviu pela primeira vez como que uma palavra mágica saindo da boca do menino:
"mamãe". Isto modificaria tudo, mas não tinha como explicar o que acontecia. Saiu de mãos
dadas com o filho pela rua. Antônio olhou do apartamento para baixo e sentiu ciúme de
estar excluído, pois agora era " mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério
partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um
homem." E Antônio sentiu vontade de gritar que a criança era inocente. Ele ficou com sua
gripe e seu Sábado no apartamento. Ele só seria o homem de sucesso e ela o ajudaria.
"Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia
tomar seus momentos - sozinha.".
" 'Depois do jantar iremos ao cinema', resolveu o homem. Porque depois do cinema seria
enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador."
10) Em "Começos de uma fortuna", deparamo-nos com o personagem Artur, um garoto
já entrando na adolescência e a sua vontade desesperada de enriquecer. Percebemos como
vai se delineando o caráter do futuro homem que deverá transformar-se em um avarento.
Já se sentia usado, desconfiava das intenções das pessoas, sentia-se abandonado pelos
pais, pois quando era criança, todos brincavam com ele, agora transformaram-se em
individuais. E o garoto ficaria cada vez mais obsessivo pelo poder do dinheiro: "pelo visto,
do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregá-lo em mil coisas." "e se
nunca, mas nunca, quisesse gastar o seu dinheiro? E cada vez ficasse mais rico?"
"- Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas, papai, como são
promissórias?" (...)
" Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma
dívida."
11) "Mistério em São Cristovão", conto também narrado em terceira pessoa, talvez um
dos mais metafóricos e complexos, admitindo diferentes leituras. De forma simples
poderíamos resumi-lo em mais uma história de família em uma noite de maio, com os
jacintos rígidos perto da vidraça. "Ao redor da mesa, por um instante imobilizados,
achavam-se o pai, a mãe, a avó, três crianças e uma mocinha magra de dezenove
anos."(...) "Nada de especial na reunião: acabara-se de jantar e conversava-se ao redor da
mesa, os mosquitos ao redor da luz." Uma família de progresso, tudo ia bem. Todos se
retiraram para o merecido descanso. Eis que surgiu de uma casa de esquina três
mascarados: o touro, o galo e o demônio ( o cavalheiro). Viram os jacintos e resolveram
levar para a festa. Entraram na casa escura da família e chegaram até os jacintos maiores
que estavam perto da janela. Só "o silêncio os vigiava. Mal porém quebrara a haste do
jacinto maior, o galo interrompeu-se gelado. Os dois outros pararam num suspiro que os
mergulhou em sono. Atrás do vidro escuro da janela estava um rosto branco olhando-os.
(...) Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão. Paralisados, eles se espiavam.(...)
Caídos na cilada, eles se olhavam aterrorizados: fora saltada a natureza das coisas e as
quatro figuras se espiavam de asas abertas. Um galo, um touro, o demônio e um rosto de
moça haviam desatado a maravilha do jardim.... Foi quando a grande lua de maio apareceu.
(...) Mal, porém, se quebrara o círculo mágico de quatro, livres da vigilância mútua, a
constelação se desfez com terror(...)" Os três cavalheiros mascarados foram para a sua
festa já começada e enquanto isso a casa dos jacintos se iluminara. A mocinha estava
sentada na sala apavorada, contando tudo no grito. A mocinha, agora menina, com um fio
branco no cabelo, ficou descansando e os demais membros da família saem em expedição
com velas acesas, despertando o jardim do sono. A avó descobriu que era verdade o que a
mocinha dissera, quando viu o talo do jacinto quebrado. Todos ficaram acordados,
aguardando. Só as crianças dormiam. "A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira
idade. Somente ela vivia a perscrutar. Mas os outros, que nada tinham visto, tornaram-se
atentos e inquietos. E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos
cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio: a
avó, de novo pronta, a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda
a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um
jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio."
Observamos que uma leitura possível para este conto é o rito de passagem para a fase
adulta da mocinha. O mundo encantado do era uma vez, a moça, a branca de neve na
janela é como uma flor a ser colhida. Também a representação da sexualidade presente nos
homens transmutados em animais e representativos de macho: e o pecado da carne: galo,
touro e demônio, cavalheiros e animais ao mesmo tempo. Também o jacinto, bela flor
masculina vai ter o talo quebrado. Enfim, poderíamos nos estender nas leituras até
transformar este conto em uma tese. Quem sabe um dia.
12) "O crime do professor de matemática" , conto narrado em terceira pessoa, relata-
nos as angústias de um professor de matemática que ao mudar de cidade é convencido pela
família a abandonar o cachorro José que tanto amava. "Enquanto eu te fazia à minha
imagem, tu me fazias à tua', pensou então com auxílio da saudade. 'Dei-te o nome de José
para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu como saber jamais
que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei', refletiu curioso." "Minha
ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura(...) Não me pedindo nada, me pedias
demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem.
E eu, eu disfarçava como podia."
Procurando redimir-se da culpa que atormentava, encontrou um cachorro morto qualquer e
tentou enterrá-lo como forma de se punir ou se perdoar. Chega até a colina, enterra o cão
preto e depois o desenterra, procurando, no fundo, ser descoberto pelo seu crime, ser
punido por meio de outro cachorro pelo que fizera com o seu José. "E assim o professor de
matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para
o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como não bastasse ainda, começou a descer
as escarpas em direção ao seio da família."
13) O conto "O Búfalo", narrado em terceira pessoa, coloca-nos frente a uma mulher que
tendo sido abandonada por alguém que não a ama, tenta encontrar nos olhos dos bichos o
ódio que precisa Ter para sobreviver. Entretanto, em cada olhar de ódio que procura,
encontra o de amor em cada bicho. Era primavera e o amor, tudo estava renovado no
zoológico. Notamos que os animais enjaulados estão livres e que a mulher sim está presa,
fechada no seu mundo de dor, tentando encontrar o ódio: "enjaulada olhou em torno de si".
"Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de
matar (...) não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como
um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade
de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na
grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio
ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde
aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo
das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói..."
O búfalo negro é o animal que vai lhe emprestar o olhar de ódio que tanto necessita: "Ah,
disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro. O
primeiro instante foi de dor. Ficou parada, ouvindo pingar como uma grota aquele primeiro
óleo amargo, a fêmea desprezada (....) Eu te amo, disse então com ódio para o homem
cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao
búfalo." "Lá estava o búfalo e a mulher frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca,
nem os cornos. Olhou os olhos." E assim, "presa como se sua mão se tivesse grudado para
sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao
longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o
céu inteiro e um búfalo."
COMENTÁRIO
Segundo Roberto Corrêa dos Santos, os contos dialogam. Sendo assim, em "Amor" , "A
imitação da rosa e "O búfalo", "as personagens femininas adultas são as construtoras de
suas narrativas." "As três descobrem-se na órbita da natureza: o jardim Botânico, a flor no
vaso, o zoológico. O irracional e suas terríveis verdades." Em "Preciosidade", "Mistério em
São Cristovão" e "Começos de uma fortuna" percebe-se "a explanação vivida dos ritos de
passagem do mundo adolescente para o mundo adulto(...) a grande luta entre desejo . e
proibição, a necessidade de preparar-se". Em "O jantar" e "O crime do professor de
matemática", "a confrontação das personagens masculinas, o embate entre força e
fragilidade, entre vida e morte." Em "Feliz aniversário" e "Laços de Família", também o
amor, também a insegurança," a necessidade de viver e a dor da convivência com seus
clichês e o até ridículo da célula familiar da convivência. Em "A menor mulher do mundo"e
"Uma galinha", "o exame da matéria humana quase reduzida a nada e, no entanto,
pulsante. Maternidade em ambas, metáforas da história do feminino, das relações homem e
mulher, submissão e luta, delicadeza e medo, e amor ainda."
Aparecida do Carmo Frigeri

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