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O sertão criado por Guimarães Rosa é uma realidade geográfica, social, política,
mas também é uma realidade psicológica e metafísica. Nesse espaço (sertão-
mundo), o sertanejo não é apenas o homem de uma região e de uma época
específicas, mas homem universal defrontando-se com problemas eternos: o bem e
o mal; o amor; a violência; a existência ou não de Deus e do Diabo etc. Daí
classificar-se seu regionalismo como regionalismo universalista.
A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por
vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da
Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A
contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as
conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e
descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos
mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em
muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe
rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas,
quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas
e ouvidas na roça.
A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor com certa dose
de mágoa:
Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao
modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom de
verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de
poder fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as
melhores coisas vistas e ouvidas.
Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de
l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se
faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’
Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.
É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se
infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que
a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos
hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro
ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes
hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe
involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios
corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a
cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a
sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’,
arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar
aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!
E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho
proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento,
mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:
‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero,
é que o socorro já vem perto!).
– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono
de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua
pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do
cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...
A boiada, do norte.
Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios.
Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais,
com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios
claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis
de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além
dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por
alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos,
móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos,
em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres
índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo
em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de
eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.
... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita
fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta
escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para
chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em
patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu
senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só
havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos
bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João
Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de
Paz. Mas, apesar de suas constantes andanças pelo exterior, o escritor não
perde contato com sua terra. Em novembro de 1947 publica no Correio da
Manhã a reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, resultado de uma
viagem ao pantanal matogrossense que o deixou deslumbrado a ponto de
considerar a região "um verdadeiro paraíso terrestre, um Éden..." A reportagem
em questão foi publicada pela segunda vez em 1952 (Edições Hipocampo,
Niterói), numa tiragem de apenas 110 exemplares numerados e assinados pelo
autor. Atualmente, Com o Vaqueiro Mariano está incluída no volume póstumo
Estas Estórias (1969). Do mesmo modo, a crônica Ao Pantanal, incluída no
também póstumo Ave, Palavra (1970), refere-se a essa viagem e baseia-se em
notas de diário:
Ou – de como se devassa um Éden. Igual a todo éden, aliás, além e cluso. Mesmo em
Corumbá, primeiro ouvimos quem nos dissuadisse: – ‘À Nhecolândia? Aquilo não
existe. É o dilúvio...’
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava
nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.
Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para
se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-
da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-
de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha,
tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho
e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o
segurassem, ia lá, aceitava o abraço?
11/6/59: "... o médico me recomenda maior número de horas de sono, dormir antes
da meia-noite, viver com moderação e calma, não me preocupar nem me afobar;
enfim tudo tem de ir num ritmo sossegado, picadinho, devagarinho... Rezar é o que
importa. Como o sr. está vendo, coloco o centro da vida na RELIGIÃO. Com isso
consigo despreocupar-me e evito que a pressão arterial suba mais."
9/7/64: "... desde uns anos para cá só posso trabalhar mais devagarinho, o que
complica o expediente. Sinto mais o frio, o calor, as mudanças bruscas do tempo, etc.
A gente vai vivendo, vai empurrando, vai rezando e agüentando.
Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958
seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da
hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular
como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um
tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida
ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando
recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece
com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor
chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí,
tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de
fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido
dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal
chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante,
desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não
repare.
Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no
Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como
escritora. Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e
escreveu, compungido, para a "jovem colega": "Vir eu queria, queria. Posso
não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado,
balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você
sabe." Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino
arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-
lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais... Ao invés
da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em
data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu
encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de
Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar
"fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima
de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro
mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos
Drummond de Andrade,(17) tão avesso às honras acadêmicas...
Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe
e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz
Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão
feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do
Sul’.
Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você
mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não,
porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E
porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida
a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa
solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de
testamento.
Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu:
que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu,
com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e
terríveis balbúrdias.
‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos
vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para
provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito
único, sumário: João Neves da Fontoura.
Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o
mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O
mundo é mágico.
Morto Guimarães Rosa – lá se vão três décadas –, resta sua obra singular, por
demais estudada, mas cujo poder de sedução ainda não foi satisfatoriamente
explicado; afinal, como ensina – ou aprende – o próprio Riobaldo, "muita coisa
importante falta nome".
Notas
1. Aliás, no conto O recado do morro, do livro No Urubùquaquá, no Pinhém, o escritor batizou
um personagem com o nome do próprio pai: "Mas, nesse justo momento, vinham chegando os
frades – frei Sinfrão e frei Florduardo – evinham enérgicos."
2. O escritor infantil Vicente Guimarães, mais conhecido por Vovô Felício, é autor do livro
Joãozito – Infância de João Guimarães Rosa. Publicou também, pela Editora Minerva (RJ),
em 1968, a estória Última aventura do Sete-de-Ouros, uma adaptação, para crianças, do
conto O Burrinho Pedrês, de seu sobrinho J. G. Rosa.
3. Segundo Vicente Guimarães, Joãozito era um menino "nojoso", "cheio de nica", "ni-quento".
Ao que parece, tais atributos o escritor, de certa forma, transferiu-os mais tarde para Riobaldo,
herói anti-heróico, ao atestar a reação do protagonista de Grande Sertão: Veredas ante o hábito,
comum no interior do Brasil, de comer tanajuras fritas com farinha, uma herança alimentar
indígena assimilada pelo colonizador branco através, possivelmente, do mameluco: "Mas o
esgaboar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume,
fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam e perturbavam, nos ombros dos homens
e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois
tive de sacudir fora da crôa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem
faminto come frita com farinha essa imundície..."
4. O episódio da morte do estudante goiano Oseas é mencionado por Pedro Nava no livro
Beira-Mar, em cujas páginas o autor revive os velhos tempos de estudante de Medicina em
Belo Horizonte.
5. No dia 17 de fevereiro de 1673, quando fazia o papel principal em sua peça Le malade
imaginaire, de cunho autobiográfico, onde, com sua habitual irreverência, satirizava os
médicos que lhe teriam minado a saúde, Molière passou mal e, horas depois, morreu. A classe
médica, exultante, deliciou-se com a irônica advertência: ai daqueles que se atrevem a dizer
verdades sobre ela...
7. O termo "calões", utilizado por Manuel Fulô, deriva de um dos nomes genéricos da nação
dos ciganos, isto é, de kalo (no plural kala), que significa negro, o que, para muitos estudiosos,
é um elemento a mais a comprovar sua origem hindustânica. Já uma pessoa estranha, que não
pertence à mesma raça, é conhecida por gajão ou ganjão, e Manuel Fulô tem consciência disso:
"Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p’r’ali, repassavam, acertavam no freio,
e depois era só chegar pra o ganjão e passar a perna nele, na barganha..."
8. Mário Palmério, escritor e compositor, mineiro de Monte Carmelo, autor de Vila dos
Confins e de Chapadão do Bugre, foi o sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira
de Letras, tomando pos-se em 22/11/1968.
9. LITERATURA deve ser vida: Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.
Minas Gerais: Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 395, 23 mar. 1974, p. 8 a 13.
10. Uma foto da solenidade de entrega do prêmio, vendo-se D. Aracy junto às bandeiras do
Brasil e de Israel, pode ser vista na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina
de Minas Gerais da FM – UFMG.
11. Os movimentos das peças do xadrez foram ensinados ao menino Joãozito pela Profª. Maria
de Lourdes Rocha Correa, filha mais velha do Cel. Geraldino Rocha, casada com o Sr. Adolfo
Correa. O pai deste, de nome Sérgio Correa, embarcava, na estação ferroviária de Cordisburgo,
com destino ao Rio de Janeiro, o gado que engordava na Fazenda da Ponte, de sua propriedade,
sendo o inspirador da figura do Major Saulo, do conto O Burrinho Pedrês, de Sagarana.
12. No conto O recado do morro, uma mensagem, ouvida durante uma expedição por um velho
eremita, passa de boca em boca, de forma ininteligível, por uma seqüência de personagens
marginais – seres primitivos de senso embotado mas de sentidos apurados – até chegar a um
bardo popular que, não só capta a mensagem – um recado infralógico emanado do Morro da
Garça –, como também lhe dá forma e sentido, convertendo-a numa obra de arte (a canção
popular) e permitindo a decifração, por parte do protagonista (Pedro Orósio), do código nela
con-tido. No referido conto, além da Gruta ou Lapa Nova do Maquiné, situada a 6 km da sede
urbana de Cordisburgo, Guimarães Rosa menciona a Fazenda Saco dos Cochos, a Fazenda
Bento Velho, o Ribeirão da Onça, o Córrego do Cuba, a Rua dos Pequis, a Rua dos Pacas, a
Rua de Cima, a Rua de Baixo, o Hotel do Sinval, a Igreja do Rosário (já demolida), a Matriz do
Sagrado Coração, o povoado das Lajes, o distrito da Lagoa, o Araçá (Araçaí, cidade vizinha de
Cor-disburgo) e o Morro da Garça – "solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide" –,
acidente geográfico situado próximo à sede do município do mesmo nome (18 30S 44 35W),
entre os municípios de Curvelo e de Corinto.
13. Para Davi Arrigucci Jr. (Guimarães Rosa e Gôngora: Metáforas. In: Achados e
Perdidos, Pólis, São Paulo, 1979), que aproxima o escritor mineiro do poeta espanhol Luís de
Gôngora (1561-1627), o estilo de ambos seria melhor definido como maneirista do que
propriamente como barroco. De acordo com o referido ensaísta, embora as diferenças entre os
dois autores sejam óbvias, sua atitude em face da linguagem é semelhante, na medida em que
"ambos admitem, se não declarada, implicitamente, a insuficiência do instrumento lingüístico
que revolucionam à sua maneira, moldando-o a suas necessidades individuais de expressão"; e
mais, na medida em que "ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão do mundo
que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase".
14. A expressão bexiga preta refere-se a uma forma grave de varíola (doença hoje em dia
praticamente extinta) acompanhada de manifestações hemorrágicas e de sério
comprometimento do estado geral, não raro evoluindo para o óbito.
15. A propósito dessa afirmativa, cabe mencionar que, nu-ma época em que semelhante
procedimento era inusitado, Guimarães Rosa escreveu um conto magistral denominado Esses
Lopes (contido no livro Tutaméia) no qual ele se coloca sob a pele da protagonista e,
assumindo provisoriamente a condição feminina – numa atitude empática –, procura
experimentar o mundo a partir dessa nova perspectiva: "Má gente, de má paz; deles, quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou,
idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia
d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes
nenhum me venha, que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e
esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas,
primeiro, os outros obram a história da gente."
16. Uma variante da frase citada na entrevista, é esta outra – "A gente pensa que vive por gosto,
mas vive é por obrigação", que aparece em A estória do homem do pinguelo; a referida estória
foi publicada, inicialmente, na revista Senhor (março de 1962) e, mais tarde, foi incluída no
volume póstumo Estas Estórias.
17. A Galiza, região da Espanha situada a noroeste da península ibérica, na fronteira com
Portugal, está atualmente dividida em quatro províncias; o nome Galiza é de origem céltica,
gaulesa, e o idioma regional muito se aproxima do português. A estirpe dos Andrade (como a
dos Guimarães) tem suas raízes plantadas na Galiza; dali, alguns ramos emigraram para
Portugal e, posteriormente, para o Brasil, fixando-se principalmente na região de Itabira e
Antônio Dias, em Minas Gerais, como demonstram Ormi Andrade Silva e José Gomide Borges
no livro Dois séculos dos "Andrade", publicado em 1984.
18. Carta de J. Guimarães Rosa a seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21/5/1958.
"Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um picapau-
da-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo,
com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá
novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole
– um coração na mão –; já atravessou o mundo."
A Novidade da linguagem
Para todos esses momentos da prosa regionalista, sempre se colocou aos autores
um problema de difícil solução: a linguagem a ser empregada. O autor deveria
empregar a língua culta, que lhe era própria, ou a língua regional, ou as duas? A
solução para esse problema quase sempre foi a da mistura: o narrador empregava
uma língua culta, com alguns termos regionais, as personagens utilizavam a
linguagem típica da região. O emprego da língua regional, nesse caso, quase
sempre ficava no nível do vocabulário.
A grande novidade lingüística introduzida pelo regionalismo de Guimarães Rosa foi a
de recriar, na literatura, a fala do sertanejo não apenas no nível do vocabulário, mas
também no da sintaxe (construção das frases) e no da melodia da frase. Explorando
as técnicas do foco narrativo em primeira pessoa, do discurso direto e do indireto
livre, a língua falado do serão está presente em toda a obra, resultado de inúmeros
anos de observação, anotações e pesquisa lingüística. Observe, neste fragmento do
conto 'Sarapalha', de Sagarana, o conhecimento minucioso do autor sobre a
vegetação e a língua regionais:
– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja.
Alvejei mira em árvore, no quintal no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia
isso faço, gosto; desde mal em mim mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum
bezerro: um bezerro branco erroso, os olhos de nem ser.
Além disso, sua narrativa faz uso de recursos mais comuns à poesia, tais como o
ritmo, as
Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a
ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo,
mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e
creio que este é meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no
Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros
idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se
deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.
A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos
inimigos da poesia.
Regionalismo e universalismo
E notamos, então, que essas reflexões não são exclusivas do sertão mineiro; são
também nossas, do homem urbano, do homem do campo, do norte e do sul do país,
e até mesmo fora dele. Na verdade, Guimarães Rosa é um escritor universal, que
consegue com profundidade vasculhar a alma humana e captar suas inquietações,
seus conflitos e anseios, sem, contudo, perder o sabor da psicologia, da língua e dos
valores do homem do sertão mineiro.
Ensinar e Aprender
1. As obras de Guimarães Rosa são reconhecidas como um marco na evolução de
nossa literatura. Na elaboração de seu obra utilizou-se de vários processos:
exploração dos aspectos sonoros, criação de palavras, linguajar regionalista etc..
Pesquisar as novas tendências na literatura brasileira, após 1945.
Ler no livro o trecho no qual Riobaldo faz o pacto com o Diabo (11ª ed., páginas 317
a 319).
a) Identificar os vários termos utilizados pelo personagem para designar o Diabo.
b) Discutir porque Riobaldo evita empregar a palavra Diabo.
5. Em 1932, Guimarães Rosa retorna a Belo Horizonte como voluntário da Força
Pública. Nesta época, ele atuava em uma das frentes da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Pesquisar as causas e conseqüências dessa revolução.
6. Ler com atenção o depoimento de Guimarães Rosa. A partir desse depoimento,
redigir uma dissertação (argumentativa).
"Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a
rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade da morte." Guimarães Rosa.
Bibliografia do autor
Sagarana (1946); Grande Sertão: Veredas (1956); Corpo de Baile (1956); Primeiras
Estórias (1962); Tutaméia (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra (1970).
Bibliografia
BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
HOLZEMAYR, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996.
(Roteiro de Leitura).
MACEDO, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
PEREZ, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SANTO, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,
1996.
SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática,
1996. (Ensaio).
ZILBERMAN, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.
XVIII. Darandina
tema: loucura
O narrador é um médico-residente num hospício ( o
Instituto).
Como se dá a história, que é tragicômica e é narrada
por um mordaz médico que em tudo põe os olhos e
nada deixa escapar?
Assim: um homem muito bem posto, acusado de
roubar uma caneta e, perseguido por outros, sobe
com rapidez numa palmeira-real. Os funcionários do
hospício ficam observando aquilo e decidem que ele
é meio louco.
Um médico plantonista, que não é o narrador, diz
que o homem é secretário das Finanças Públicas, o
que é contado à multidão que, achando coerente o
que ele faz, devido ao seu trabalho, aceita o fato
como normal. O verdadeiro secretário recebe pedido
de desculpas. E uma outra multidão, agora, formada
pela polícia, corpo de bombeiros, capelão,
enfermeiros, padioleiros, chega.
Um professor, Dartanhã, aproveita a darandina
( confusão) e contesta a autoridade do diretor do
hospital. Enquanto tudo acontecia lá embaixo, o
homem , lá em cima, dizia:
"- O feio está ficando coisa..." (...) Querem
comer-me ainda verde?!"
Tira os sapatos, a roupa, os bombeiros tentam
resgatá-lo, os cinegrafistas o filmam, jornalistas e
fotógrafos também estão lá. E o doido, lá em cima,
resolveu, então, balançar-se na palmeira,
recebendo, agora, os aplausos do público.
Mas, num momento, o doido recuperou o equilíbrio
mental. Só que nem o público, nem os diretores,
nem os médicos aceitavam isso, assim, de repente.
Pretendiam linchá-lo. Foi ai que o louco deu gritos
contra a ordem estabelecida e gritando "Viva a luta!
Viva a liberdade!"despencou de lá de cima nu como
viera ao mundo. , mas foi amparado pela multidão.
De igual, depois daquilo, só mesmo a palmeira.
XIX. Substância
tema: amor
Esta é mais uma estória de amor destas Primeiras
Estórias . Quem fazia o polvilho mais branco da
fazenda de Sionésio era Maria Exita:
"Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão,
receosa de que o patrão nem os outros a
aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira.
Porque, contra a menos infeliz, a sorte
sarapintara de preto portais e portas: a mãe,
leviana, desaparecida de casa; um irmão,
perverso, na cadeia, por atos de morte; o
outro, igual, feroz, foragido, ao acaso de
nenhuma parte; o pai razoável bom-homem,
delatado com a lepra, e prosseguido, certo
para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe
nem afastados parentes(...)"
E lá ficava Maria Exita, trabalhando o melhor
polvilho, o mais branco, o mais alvo entre todos os
polvilhos que já puderam, um dia, fazer.
Sionésio recebera a fazenda de herança e, devido à
escassez da produção de qualquer outra coisa,
plantava mandioca e em tudo punha seu olho de
dono., não deixava de trabalhar nem aos domingos
e feriados.
Um dia, numa festa, encontrou Maria Exita, em
quem jamais reconheceria aquela menina feia e
magra que em suas terras chegara, largada.
Apaixonou-se por ela. E num dia lindo, aberto e
claro, foi até as pedras onde ela trabalhava e propôs
casamento.
Recebeu em resposta um largo sorriso:
"Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca
precisar de se separar? Voc6e, comigo, vem e
vai?"
E ela: "Vou, demais."
(...)
Avançavam, parados, dentro da luz, como se
fosse no dia de Todos os Pássaros."
tema: loucura
O narrador deste conto é Vaga-Lume, ajudante-de-
ordens de Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes, a
personagem protagonista de nosso conto. Iô João
era um bom homem, D. Quixote sertanejo que, já
velhinho, meio aluado, precisava dos cuidados de
alguém.
Cismava com tudo.
Acordou, certa feita, e disse que ia matar o
Magrinho, que era seu sobrinho-neto, médico que
lhe dera injeções necessárias e aplicara-lhe uma
lavagem intestinal.
Para tanto, escolheu um cavalo e pediu ao Vaga-
Lume que arreiasse outro, a fim de acompanhá-lo.
E, esbravejando que fizera um pacto com o
Demônio, lá se foi para a cidade, fincando a espora
no animal.
Vagalume, desesperado, ia atrás do velho, com
medo que despencasse do baio imponente. Na
pressa de matar o sobrinho médico, o velho calçara
um pé de botina amarela e outro de bota preta. E
em vez de um facão, trazia uma faca de cozinha
sem-graça.
Louco, tomado, segundo ele mesmo pelo Demo,
consegue arregimentar 14 coitados pobres que
acreditam nas suas doideiras. Vão para a cidade em
busca de Magrinho. Havia uma festa lá. os parentes
acharam graça, loucura, quando o velho invadiu a
festa e sentenciou:
"- Eu pido a palavra..."
Fez um discurso esquisito, que a todos comoveu. Ao
terminar. Todos os abraçaram e ele comeu
fartamente, bebeu, dançou. Não houve Demo, não
houve morte.
E depois foi embora. Para morrer.
XXI. Os Cimos
tema: infância
Esta estória termina os 21 contos de que se forma
este livro; e parece completar o que se anuncia no
primeiro desta série de contos, sobre o Menino.
Está dividida em 4 partes: O inverso afastamento,
Aparecimento do pássaro, O trabalho do pássaro e O
desmedido momento.
O Menino está sofrendo porque a Mãe está doente,
longe dele, numa cidade muito distante. esta dor é
pura depuração, parte do rito da iniciação do
crescimento e do conhecimento do mundo.
O tucano parece ser o símbolo do desconhecido,
mas também do encantador demais. Quando o tio,
recebendo notícias, anuncia que a Mãe do menino
está bem, não corre mais perigo, a imagem do
pássaro, da luz do dia, da natureza se fundem numa
só, em plenitude.
E o Menino, feliz, sabe que não estará sozinho outra
vez.
"E vinha a vida."
Profa. Esther PS Rosado
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ESPAÇO ABERTO
RÁDIO-AULAS
PORTUGUÊS
PROF. JADIEL HORTEGAL
Conjunto da Obra
Famigerado
Foi de certa feita o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel.
Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha
porta, equiparado, exato: e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance , insolitíssimo. Tomei-me os nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com
cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco curto pesadamente. Seu cavalo
era alto, um alazão; bem arredado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida [ ... ] O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse que não, conquanto os costumes.
Conservava-se de chapéu [ ... ] Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta [ ... ] Ele falou:
- "Eu vim perguntar a vósmecê uma opinião sua explicada ..."
Carregara a celha. Carregava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu [ ... ]
- "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueira ... Estou vindo da
Serra ..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira ? O feroz de histórias de léguas com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo [ ... ]
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente.
Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava.
Cabismeditado. Do que, se resolveu, levantou as feições. Se é que se riu: aquela
crueldade de dentes [ ... ] E pá.
- "Vosmecê me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é:
fasmisgerado ... faz-me gerado ... falmisgeraldo ... familhas-gerado ... ?
Disse, de golpe, trazia entre dentes, aquela frase. Soara como riso seco. Mas, o
gesto, que se seguiu, imperava-se de toda rudez primitiva, de sua presença dilatada.
Detinha minha resposta, não queria que eu a desse por imediato. E já aí outro susto
vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem [ ... ]
- "Saiba vosmecê que sai ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas,
expresso direto pra mor de lhe perguntar a pergunta , pelo claro ..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o
legítimo o livro que aprende as palavras .... [ ... ] Agora, se me faz mercê , vosmecê
me fale, no pau da pérola, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
Famigerado? [ ... ] Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até
então, mumumudos. Mas, Damázio:
- "Vosmecê declare. Estes daí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo,
pra testemunho."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria escrito o caroço: o verivérbio.
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável" ...
- "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
Vilta nenhuma, neenhum doesto. São expressões neutras , de outros usos ...
- "Pois ... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito ...
- "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era pra se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse! ...
- "Ah! bem! ..." soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas . Subiu em si degradava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: "Vocês podem ir, compadres.
Vocês escutaram bem a boa descrição ..." e eles prestes se partiram. Só aí se
chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:
- "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída! " [ ... ]. Oh, pois.
Esporou, foi-se o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.
(Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio. 1969. p. 8-13)
GEOALPHA PRATICANDO EXERCÍCIOS
a) o jagunço
b) a linguagem
c) a cidade regionalizada
d) a pobreza
e) o psicologismo
04. Tendo como base a questão anterior e a sua resposta correta, marque a opção
que revela dois mundos que estão sempre em confronto no conto.
a) o da oralidade e o da escrita
b) o da escrita e o do homem regionalizado
c) o da política e o da sociedade
d) o da cultura e o do jagunço com seus hábitos e costumes
e) c e d estão corretas
volta
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Conferências
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Antes de iniciar gostaria de esclarecer dois pontos. Sou muito verborrágico e corro o
risco de perder-me. Considerando a premência de tempo (acrescida da expectativa
criada com a visita do Ministro) não pretendo ler - o que me desagrada muito - mas
vou tentar acompanhar o texto. Por outro lado, o prazer de estar agora aqui neste
seminário está acoplado a um curso que, sob o patrocínio desta e da Fundação
Gilberto Freyre, estou ministrando neste momento. O tema aqui focalizado está
associado também à temática do curso.
Ao final, por ocasião dos debates, talvez tenhamos tempo de - recorrendo à ajuda da
projeção de algumas transparências - extrair alguns tópicos desta comparação.
Logo no início de Casa-Grande & Senzala, ao tratar da bipolaridade ou indecisão
étnica e cultural do português, entre Europa e África, Gilberto Freyre, antes da
discussão dos cientistas sobre este problema, enaltece a capacidade de Eça de
Queiroz em "surpreender magnificamente o luxo de antagonismos no caráter
português" no Gonçalo de A Ilustre Casa de Ramires.
Não apenas aí neste trecho introdutório, mas em tão repetidas vezes a ponto de
configurar-se como atributo específico da obra, o sociólogo-antropólogo não
estabelece fronteiras entre os universos da ciência e da arte.
Sem querer descartar os apelos individuais de geógrafos com Y-Fun Tuan (e mesmo
antropólogos como Lewis) quero apontar aqui dois esforços coletivos oriundos da
França e do Reino Unido. O primeiro caso provém da crítica literária e é resultado de
um colóquio organizado entre os dias 8 e 9 de maio de 1981 no Centro de Estudos
do Romance e do Romanesco na Universidade de Picardia, em França. (Crouzet,
Michel, Organizateur, 1981). Aquele do Reino Unido é iniciativa de geógrafos e se
incorpora numa coletânea (Pocock, Dougls C.D. Editor, 1985) intitulada Humanitic
Geography and Literature. Os críticos literários perseguem o que rotularam de
"Espaços Romanescos". Os geógrafos procuraram fazer Ensaios Sobre a
Experiência do Lugar.
Os críticos literários, também eles, achavam-se ante o conflito, quase um sisma dos
espaços romanescos. Confrontando-se as idéias de Melle de Scudéry (Século XVII)
segundo a qual "il est certain que pour bien entendre les choses qui se passent, il
faut que l'espirit conçoive les lieux ou elles sont arrivées" ao princípio espacial do
romance, proposto por Michel Butor (atualidade) segundo o qual a ficção "sinscrit en
notre espace comme voyage, et que l'on peut dire à cet égard là le thème
fondamental de notre littérature romanesque" é constatar a oponência entre uma
concepção clássica, outra moderna. Tornava-se preciso que se atingisse a noção de
um "anti-espaço", ou seja, a passagem de uma plenitude a um vazio insistente. O
espaço capaz de qualificar estava reduzido, ele próprio, a algo sem quantidade, e o
jogo dos termos espaciais tornava-se um jogo sobre o sentido ou a ausência de
sentido. O conjunto de 14 trabalhos foi grupado, assim, em três subconjuntos: 1)
Figuras do Espaço; 2) O Sentido do Espaço; 3) Um antiespaço romanesco. Embora
o segundo subconjunto tenha maiores afinidades com os "lugares" no sentido
geográfico, a discussão toda é extremamente valiosa, para a Geografia que
compartilha, hoje, uma equivalente confusão do que seja seu "espaço".
Para uma Geografia cada vez mais antropocêntrica importa menos a distinção entre
as diferentes facetas do "homo economicus", capitalista-socialista, dominador-
dominado, e mais o homem verdadeiro e inteiro, homem humano. Nisto repousa o
caráter dessa emergente Geografia Humanística, ligada ela a um "novo humanismo"
que vise não o homem ocidental judaico-cristão capitalista, mas tentando alcançar o
"homem-universal".
O meio utilizado para defesa desta suposição seria o de recorrer a um leque mais
variado de exemplos, o que certamente levaria a um extravasamento do tempo
disponível neste Seminário.
Assim sendo minha opção recai num aspecto da obra de João Guimarães Rosa que,
pela sua amplidão e riqueza, certamente poderá suprir a argumentação que
pretendo. Trata-se do seguinte experimento, para não exorbitar pretendendo o
"ensaio".
Este "lugar", de projeção regional, que como espaço geográfico limita-se, a leste,
pelo Rio São Francisco, adquire bordos ou fronteiras difusas e pouco claras nas
demais direções cardeais. Se o rio do Chico é fronteira clara, o Urucuia pode ser o
eixo deste sertão, geograficamente real sobre o qual Rosa criou o seu sertão onde
"a magia é inseparável de todos os atos da vida"[3]. E, ao longo do Urucuia, a Barra-
da-Vaca, volta e meia mencionada, talvez fosse o ponto onde, num mapa,
pudéssemos apoiar a ponta do compasso para circunscrever o universo rosiano[4].
Inserido neste espaço concreto, real, há espaços polivalentes que, não sendo
excepcionais, são complementares e de freqüente ocorrência, como os "pés de
serras". Tal é o caso do sítio Mutum, no primeiro romance Campo Geral onde,
segundo admite o autor, se encontram os germes de todo o conjunto da obra. Lugar
bonito, "entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer
parte; e lá chove sempre…Chuva que entristece a mãe de Miguelim, geralista, que
tem o coração oprimido pela paisagem estranha e pelos amores pecaminosos com o
cunhado (espaço externo geográfico e espaço individual, psicológico, interno).
No índice do fim do livro o autor ajunta os três "contos" sob o título de Parábase.
Atinando-se com o fato de que no antigo teatro grego sob este nome se entendia um
"intervalo" crítico (ou cômico) no qual um ou mais atores ou o próprio autor expunha
suas opiniões ao público, entende-se por que eles estão alternadamente dispostos
como intervalos entre os romances[6].
Na mais longa de suas cartas a Bizzarri, o autor aponta ao tradutor o fato registrado
por Paulo Rónai, no livro Encontros com o Brasil, de que "a linha simbólica é
predominante nos 'contos', onde o enredo propriamente dito serve antes de
acompanhamento". Segundo declaração do próprio autor nesta mesma carta, cada
um dos contos - função "simbólica" intercalar à "realidade" dos romances - "se
ocupa, em si, com uma expressão de arte". O conto Uma Estória de Amor trata da
origem e do poder das "estórias" no que elas encerram de parábolas ou símbolos de
uma verdade "revelada". No O Recado do Morro a revelação é aquela do
nascimento de uma "canção", ou gesta popular sertaneja. O Cara-de-Bronze é a
procura e revelação da "Poesia".
Não obstante o conteúdo simbólico dos contos, eles encerram uma peculiaridade
extraordinária em termos de sua vinculação "espacial". Os contos têm seus enredos
situados em espaços intermediários, complementares ou periféricos ao complexo
"chapadões-veredas" expondo contrastes com eles. A grande fazenda onde vive
recluso o Cara-de-Bronze está nos grandes campos do Urubuquaquá - urucuias
monte, fundões e brejos. Abertos e plantados pastos em área de "Mato Grosso" em
vastidão de terra deprimida à borda dos chapadões, emitindo em direção a eles
matas galerias, que se estreitando ao neles penetrar, vai se confundir com as
veredas. A trajetória de Pedro Orósio como guia do naturalista em trabalho de
campo é dos Gerais para o planalto calcário até o Vale do rio das Velhas onde
termina a missão e onde se festeja Nossa Senhora do Rosário. O Morro das Garças,
de onde partiu o "recado" - "solitário escaleno e escuro feito uma pirâmide" -
destaca-se em meio às "enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo
Calcário". A Samarra, onde se ouviram as "estórias" era um lugar - "nem fazenda, só
um repasto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais".
Aos poucos moradores dali, na festa de inauguração da capela, vieram reunir-se "a
gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas". A borda daquela
chã, a "mesa-de-campo" sobre o Baixio da Samarra, fora escolhida por Manoelzão
para sítio da capela em devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, quando ele,
vindo do Maquiné, abrira a fazenda a mando de Frederico Freyre.
Outro aspecto importante a registrar é que, aqui nos "contos" a veia de naturalista e
geógrafo de Guimarães Rosa atinge suas culminâncias. Tudo se passaria como se,
ao carregar as tintas do entorno interfacial, o autor mais quisesse acentuar a
individualidade suave do sertão. Assim, pois, paradoxalmente, a criação artística no
tratamento simbólico "faz contraponto com a caracterização mais acurada - sem
nada a dever a um cientista - da paisagem geográfica.
Embora o autor zele pela atemporalidade dos romances, onde jamais uma data é
mencionada, não há como escapar de associar o "tempo" à crise do zebu dos anos
trinta-quarenta que afetou profundamente as Minas Gerais e se encontra "cantada"
na trova do vaqueiro Doraldo, amigo de Soropita, no Dão-Lalalão.
Nos contos que compõem a Parábase pode-se encontrar páginas onde a escritura
atinge tanto caráter literário antológico quanto exatidão e justeza na descrição (não
raro interpretação) geográfica.
Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras,
por prolongação…(p.388 a 391).
E assim também, mais adiante, "o país natalício" de Pedro Orósio: "O chapadão de
chão vermelho, desregral, o frondoso cerrado escuro feito um mar de árvores, e os
brilhos risonhos na grava da areia"…(p. 412 e 413. E ainda na 458 - 459).
Nossa sabedoria popular registra que nenhum homem se descompromete "do lugar
onde enterrou o umbigo". Do umbigo materno, do seu nascer ele passa ao vínculo
com o lugar - a Terra - para onde retornará após a morte. E ao longo da vida, grande
parte do seu esforço e energia (vital) é desprendida - na sua solidão - em querer
juntar umbigos, como dizia Doralda a Soropita…"nunca te deixar, era se eu pudesse
estar guardada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos…".
União, pacto solidário, cumplicidade para a difícil travessia…
É pena que os leitores italianos tenham sido privados das notas das páginas 610,
617 e 618. Na correspondência entre Rosa e Bizzarri notamos que o autor reluta e
depois cede em favor da eliminação daqueles apodos à escritura do Cara-de-
Bronze. Parece-me que a evocação de Dante e Goethe como das Upanixades era
um chamamento do autor à sua sintonia de universalidade. Na velha cultura dos
vedas nas frases de Platão nos versos dos representantes da latinidade e do
saxônico na poesia, os trechos escolhidos querem demonstrar a sintonia do homem
universal, vista aqui do nosso sertão mas solidária com aquelas manifestações.
O próprio cientista do O Recado do Morro- O Seu Alquiste (ou Olquiste), que intuíra
a importância da mensagem captada pelo Gorgulho, e acompanhara com interesse
a seqüência da transmissão do recado através dos "seres não-reflexivos"[7], ao ver
nascida a canção pela arte do cantador Laudelim, estabelece a sintonia dessa "coisa
muito importante" que são "estas cantigas migradouras, que pousam no coração do
Povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas", com as sagas
dinamarquesas. Como na saga de Horof, filho de Helgi, segundo registra o Saxo
Gramaticus (p. 456).
Mas logo em seguida adverte do "subjetivo" de uma avaliação de autor, daquilo "que
o autor gostaria, hoje, que o livro fosse". E acrescenta, ainda, que "em arte, não vale
a intenção".
Toda essa minha superficial "travessia" pelo seu Corpo de Baile quer demonstrar
que aquele simples ponto atribuído por ele aos lugares vale muito mais. Não que
seja necessário alterar a ordem ou hierarquia da sua valoração mas porque, os
outros três itens estão de tal modo interligados ao primeiro que qualquer tentativa de
separação seria precária. Tal avaliação nos faz lembrar Verlaine que admitia na
produção poética as categorias de "vers donnés" e "vers captés". Muito significante
oculto para o autor pode ter um significado captado pelo leitor.
O querer "ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo
principalmente", é querer abraçar o mundo holisticamente, é querer procurar o
homem universal. A influência do Tao é indisfarçável na tentativa de integração
cósmica a partir de uma técnica expressional que de aparentemente apocalíptica
seria, efetivamente, mais ligada a uma preocupação não linear mas antes em
estabelecer conjunções entre contrastes e oposições. O que bem pode ser
exemplificado no Cara-de-Bronze.
Influência taoística que ressoa na própria Física Moderna e enseja um novo espírito
científico.
Notas
O sertão criado por Guimarães Rosa é uma realidade geográfica, social, política,
mas também é uma realidade psicológica e metafísica. Nesse espaço (sertão-
mundo), o sertanejo não é apenas o homem de uma região e de uma época
específicas, mas homem universal defrontando-se com problemas eternos: o bem e
o mal; o amor; a violência; a existência ou não de Deus e do Diabo etc. Daí
classificar-se seu regionalismo como regionalismo universalista.
A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por
vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da
Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A
contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as
conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e
descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos
mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em
muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe
rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas,
quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas
e ouvidas na roça.
A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor com certa dose
de mágoa:
Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao
modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom de
verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de
poder fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as
melhores coisas vistas e ouvidas.
Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de
l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se
faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’
Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.
É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se
infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que
a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos
hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro
ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes
hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe
involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios
corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a
cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a
sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’,
arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar
aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!
E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho
proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento,
mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:
‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero,
é que o socorro já vem perto!).
– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono
de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua
pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do
cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...
A boiada, do norte.
Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios.
Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais,
com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios
claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis
de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além
dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por
alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos,
móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos,
em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres
índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo
em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de
eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.
... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita
fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta
escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para
chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em
patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu
senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só
havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos
bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João
Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de
Paz. Mas, apesar de suas constantes andanças pelo exterior, o escritor não
perde contato com sua terra. Em novembro de 1947 publica no Correio da
Manhã a reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, resultado de uma
viagem ao pantanal matogrossense que o deixou deslumbrado a ponto de
considerar a região "um verdadeiro paraíso terrestre, um Éden..." A reportagem
em questão foi publicada pela segunda vez em 1952 (Edições Hipocampo,
Niterói), numa tiragem de apenas 110 exemplares numerados e assinados pelo
autor. Atualmente, Com o Vaqueiro Mariano está incluída no volume póstumo
Estas Estórias (1969). Do mesmo modo, a crônica Ao Pantanal, incluída no
também póstumo Ave, Palavra (1970), refere-se a essa viagem e baseia-se em
notas de diário:
Ou – de como se devassa um Éden. Igual a todo éden, aliás, além e cluso. Mesmo em
Corumbá, primeiro ouvimos quem nos dissuadisse: – ‘À Nhecolândia? Aquilo não
existe. É o dilúvio...’
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava
nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.
Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para
se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-
da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-
de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha,
tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho
e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o
segurassem, ia lá, aceitava o abraço?
11/6/59: "... o médico me recomenda maior número de horas de sono, dormir antes
da meia-noite, viver com moderação e calma, não me preocupar nem me afobar;
enfim tudo tem de ir num ritmo sossegado, picadinho, devagarinho... Rezar é o que
importa. Como o sr. está vendo, coloco o centro da vida na RELIGIÃO. Com isso
consigo despreocupar-me e evito que a pressão arterial suba mais."
9/7/64: "... desde uns anos para cá só posso trabalhar mais devagarinho, o que
complica o expediente. Sinto mais o frio, o calor, as mudanças bruscas do tempo, etc.
A gente vai vivendo, vai empurrando, vai rezando e agüentando.
Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958
seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da
hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular
como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um
tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida
ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando
recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece
com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor
chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí,
tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de
fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido
dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal
chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante,
desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não
repare.
Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no
Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como
escritora. Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e
escreveu, compungido, para a "jovem colega": "Vir eu queria, queria. Posso
não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado,
balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você
sabe." Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino
arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-
lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais... Ao invés
da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em
data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu
encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de
Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar
"fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima
de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro
mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos
Drummond de Andrade,(17) tão avesso às honras acadêmicas...
Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe
e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz
Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão
feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do
Sul’.
Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você
mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não,
porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E
porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida
a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa
solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de
testamento.
Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu:
que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu,
com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e
terríveis balbúrdias.
‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos
vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para
provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito
único, sumário: João Neves da Fontoura.
Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o
mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O
mundo é mágico.
Morto Guimarães Rosa – lá se vão três décadas –, resta sua obra singular, por
demais estudada, mas cujo poder de sedução ainda não foi satisfatoriamente
explicado; afinal, como ensina – ou aprende – o próprio Riobaldo, "muita coisa
importante falta nome".
Notas
1. Aliás, no conto O recado do morro, do livro No Urubùquaquá, no Pinhém, o escritor batizou
um personagem com o nome do próprio pai: "Mas, nesse justo momento, vinham chegando os
frades – frei Sinfrão e frei Florduardo – evinham enérgicos."
2. O escritor infantil Vicente Guimarães, mais conhecido por Vovô Felício, é autor do livro
Joãozito – Infância de João Guimarães Rosa. Publicou também, pela Editora Minerva (RJ),
em 1968, a estória Última aventura do Sete-de-Ouros, uma adaptação, para crianças, do
conto O Burrinho Pedrês, de seu sobrinho J. G. Rosa.
3. Segundo Vicente Guimarães, Joãozito era um menino "nojoso", "cheio de nica", "ni-quento".
Ao que parece, tais atributos o escritor, de certa forma, transferiu-os mais tarde para Riobaldo,
herói anti-heróico, ao atestar a reação do protagonista de Grande Sertão: Veredas ante o hábito,
comum no interior do Brasil, de comer tanajuras fritas com farinha, uma herança alimentar
indígena assimilada pelo colonizador branco através, possivelmente, do mameluco: "Mas o
esgaboar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume,
fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam e perturbavam, nos ombros dos homens
e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois
tive de sacudir fora da crôa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem
faminto come frita com farinha essa imundície..."
4. O episódio da morte do estudante goiano Oseas é mencionado por Pedro Nava no livro
Beira-Mar, em cujas páginas o autor revive os velhos tempos de estudante de Medicina em
Belo Horizonte.
5. No dia 17 de fevereiro de 1673, quando fazia o papel principal em sua peça Le malade
imaginaire, de cunho autobiográfico, onde, com sua habitual irreverência, satirizava os
médicos que lhe teriam minado a saúde, Molière passou mal e, horas depois, morreu. A classe
médica, exultante, deliciou-se com a irônica advertência: ai daqueles que se atrevem a dizer
verdades sobre ela...
7. O termo "calões", utilizado por Manuel Fulô, deriva de um dos nomes genéricos da nação
dos ciganos, isto é, de kalo (no plural kala), que significa negro, o que, para muitos estudiosos,
é um elemento a mais a comprovar sua origem hindustânica. Já uma pessoa estranha, que não
pertence à mesma raça, é conhecida por gajão ou ganjão, e Manuel Fulô tem consciência disso:
"Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p’r’ali, repassavam, acertavam no freio,
e depois era só chegar pra o ganjão e passar a perna nele, na barganha..."
8. Mário Palmério, escritor e compositor, mineiro de Monte Carmelo, autor de Vila dos
Confins e de Chapadão do Bugre, foi o sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira
de Letras, tomando pos-se em 22/11/1968.
9. LITERATURA deve ser vida: Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.
Minas Gerais: Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 395, 23 mar. 1974, p. 8 a 13.
10. Uma foto da solenidade de entrega do prêmio, vendo-se D. Aracy junto às bandeiras do
Brasil e de Israel, pode ser vista na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina
de Minas Gerais da FM – UFMG.
11. Os movimentos das peças do xadrez foram ensinados ao menino Joãozito pela Profª. Maria
de Lourdes Rocha Correa, filha mais velha do Cel. Geraldino Rocha, casada com o Sr. Adolfo
Correa. O pai deste, de nome Sérgio Correa, embarcava, na estação ferroviária de Cordisburgo,
com destino ao Rio de Janeiro, o gado que engordava na Fazenda da Ponte, de sua propriedade,
sendo o inspirador da figura do Major Saulo, do conto O Burrinho Pedrês, de Sagarana.
12. No conto O recado do morro, uma mensagem, ouvida durante uma expedição por um velho
eremita, passa de boca em boca, de forma ininteligível, por uma seqüência de personagens
marginais – seres primitivos de senso embotado mas de sentidos apurados – até chegar a um
bardo popular que, não só capta a mensagem – um recado infralógico emanado do Morro da
Garça –, como também lhe dá forma e sentido, convertendo-a numa obra de arte (a canção
popular) e permitindo a decifração, por parte do protagonista (Pedro Orósio), do código nela
con-tido. No referido conto, além da Gruta ou Lapa Nova do Maquiné, situada a 6 km da sede
urbana de Cordisburgo, Guimarães Rosa menciona a Fazenda Saco dos Cochos, a Fazenda
Bento Velho, o Ribeirão da Onça, o Córrego do Cuba, a Rua dos Pequis, a Rua dos Pacas, a
Rua de Cima, a Rua de Baixo, o Hotel do Sinval, a Igreja do Rosário (já demolida), a Matriz do
Sagrado Coração, o povoado das Lajes, o distrito da Lagoa, o Araçá (Araçaí, cidade vizinha de
Cor-disburgo) e o Morro da Garça – "solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide" –,
acidente geográfico situado próximo à sede do município do mesmo nome (18 30S 44 35W),
entre os municípios de Curvelo e de Corinto.
13. Para Davi Arrigucci Jr. (Guimarães Rosa e Gôngora: Metáforas. In: Achados e
Perdidos, Pólis, São Paulo, 1979), que aproxima o escritor mineiro do poeta espanhol Luís de
Gôngora (1561-1627), o estilo de ambos seria melhor definido como maneirista do que
propriamente como barroco. De acordo com o referido ensaísta, embora as diferenças entre os
dois autores sejam óbvias, sua atitude em face da linguagem é semelhante, na medida em que
"ambos admitem, se não declarada, implicitamente, a insuficiência do instrumento lingüístico
que revolucionam à sua maneira, moldando-o a suas necessidades individuais de expressão"; e
mais, na medida em que "ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão do mundo
que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase".
14. A expressão bexiga preta refere-se a uma forma grave de varíola (doença hoje em dia
praticamente extinta) acompanhada de manifestações hemorrágicas e de sério
comprometimento do estado geral, não raro evoluindo para o óbito.
15. A propósito dessa afirmativa, cabe mencionar que, nu-ma época em que semelhante
procedimento era inusitado, Guimarães Rosa escreveu um conto magistral denominado Esses
Lopes (contido no livro Tutaméia) no qual ele se coloca sob a pele da protagonista e,
assumindo provisoriamente a condição feminina – numa atitude empática –, procura
experimentar o mundo a partir dessa nova perspectiva: "Má gente, de má paz; deles, quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou,
idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia
d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes
nenhum me venha, que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e
esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas,
primeiro, os outros obram a história da gente."
16. Uma variante da frase citada na entrevista, é esta outra – "A gente pensa que vive por gosto,
mas vive é por obrigação", que aparece em A estória do homem do pinguelo; a referida estória
foi publicada, inicialmente, na revista Senhor (março de 1962) e, mais tarde, foi incluída no
volume póstumo Estas Estórias.
17. A Galiza, região da Espanha situada a noroeste da península ibérica, na fronteira com
Portugal, está atualmente dividida em quatro províncias; o nome Galiza é de origem céltica,
gaulesa, e o idioma regional muito se aproxima do português. A estirpe dos Andrade (como a
dos Guimarães) tem suas raízes plantadas na Galiza; dali, alguns ramos emigraram para
Portugal e, posteriormente, para o Brasil, fixando-se principalmente na região de Itabira e
Antônio Dias, em Minas Gerais, como demonstram Ormi Andrade Silva e José Gomide Borges
no livro Dois séculos dos "Andrade", publicado em 1984.
18. Carta de J. Guimarães Rosa a seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21/5/1958.
"Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um picapau-
da-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo,
com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá
novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole
– um coração na mão –; já atravessou o mundo."
A Novidade da linguagem
Para todos esses momentos da prosa regionalista, sempre se colocou aos autores
um problema de difícil solução: a linguagem a ser empregada. O autor deveria
empregar a língua culta, que lhe era própria, ou a língua regional, ou as duas? A
solução para esse problema quase sempre foi a da mistura: o narrador empregava
uma língua culta, com alguns termos regionais, as personagens utilizavam a
linguagem típica da região. O emprego da língua regional, nesse caso, quase
sempre ficava no nível do vocabulário.
A grande novidade lingüística introduzida pelo regionalismo de Guimarães Rosa foi a
de recriar, na literatura, a fala do sertanejo não apenas no nível do vocabulário, mas
também no da sintaxe (construção das frases) e no da melodia da frase. Explorando
as técnicas do foco narrativo em primeira pessoa, do discurso direto e do indireto
livre, a língua falado do serão está presente em toda a obra, resultado de inúmeros
anos de observação, anotações e pesquisa lingüística. Observe, neste fragmento do
conto 'Sarapalha', de Sagarana, o conhecimento minucioso do autor sobre a
vegetação e a língua regionais:
– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja.
Alvejei mira em árvore, no quintal no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia
isso faço, gosto; desde mal em mim mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum
bezerro: um bezerro branco erroso, os olhos de nem ser.
Além disso, sua narrativa faz uso de recursos mais comuns à poesia, tais como o
ritmo, as
Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a
ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo,
mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e
creio que este é meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no
Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros
idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se
deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.
A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos
inimigos da poesia.
Regionalismo e universalismo
E notamos, então, que essas reflexões não são exclusivas do sertão mineiro; são
também nossas, do homem urbano, do homem do campo, do norte e do sul do país,
e até mesmo fora dele. Na verdade, Guimarães Rosa é um escritor universal, que
consegue com profundidade vasculhar a alma humana e captar suas inquietações,
seus conflitos e anseios, sem, contudo, perder o sabor da psicologia, da língua e dos
valores do homem do sertão mineiro.
Ensinar e Aprender
1. As obras de Guimarães Rosa são reconhecidas como um marco na evolução de
nossa literatura. Na elaboração de seu obra utilizou-se de vários processos:
exploração dos aspectos sonoros, criação de palavras, linguajar regionalista etc..
Pesquisar as novas tendências na literatura brasileira, após 1945.
Ler no livro o trecho no qual Riobaldo faz o pacto com o Diabo (11ª ed., páginas 317
a 319).
a) Identificar os vários termos utilizados pelo personagem para designar o Diabo.
b) Discutir porque Riobaldo evita empregar a palavra Diabo.
5. Em 1932, Guimarães Rosa retorna a Belo Horizonte como voluntário da Força
Pública. Nesta época, ele atuava em uma das frentes da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Pesquisar as causas e conseqüências dessa revolução.
6. Ler com atenção o depoimento de Guimarães Rosa. A partir desse depoimento,
redigir uma dissertação (argumentativa).
"Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a
rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade da morte." Guimarães Rosa.
Bibliografia do autor
Sagarana (1946); Grande Sertão: Veredas (1956); Corpo de Baile (1956); Primeiras
Estórias (1962); Tutaméia (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra (1970).
Bibliografia
BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
HOLZEMAYR, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996.
(Roteiro de Leitura).
MACEDO, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
PEREZ, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SANTO, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,
1996.
SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática,
1996. (Ensaio).
ZILBERMAN, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.
Dois anos mais tarde retornou Guimarães Rosa a Belo Horizonte. Por
ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, atua como médico
voluntário da Força Pública, indo servir no setor do Túnel. Encontrou-se
de novo com o amigo Doutor Juscelino , e na pequena localidade
estreitaram as relações de amizade. ( Trinta e cinco anos depois, ao
tomar posse na Academia, quando recebia o abraço do ex-presidente da
República que fizera parte da mesa -, Rosa assim lhe responde ao
cumprimento: - "Com a mão na pala, meu coronel.")
Posteriormente Guimarães Rosa entra no Quadro da Força Pública, por
concurso. Em 1934, vamos encontrá-lo em Barbacena, como oficial-
médico do 9o. Batalhão de Infantaria.
Aí a vida calma dá-lhe oportunidade para se entregar melhor aos seus
livros. Mesmo sem se descuidar da medicina, retorna ao estudo das
línguas. "Estudava as línguas para não me afogar completamente na
vida do interior"- confessará depois. E através de um russo branco que
se encontrava meio perdido por aquelas bandas, como soldado da polícia
militar de Minas, pôde confrontar pela primeira vez a sua pronúncia.
Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do exército
czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos
Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. Foi a essa
altura que um amigo, impressionado com os conhecimentos que tinha
Guimarães Rosa das línguas estrangeiras, deu-lhe a sugestão:
- Se você gosta tanto de estudar línguas, por que não faz concurso para
o Itamarati?
Rosa pensou no caso, e acabou por aceitar o conselho. Adquiriu livros,
estudou muito, e em 1934 veio para o Rio, enfrentar o concurso para o
Ministério do Exterior, onde detém o segundo lugar.
Durante todo esse tempo, manteve suas ligações com a literatura.
Além dos contos, escrevia versos, chegando a organizar uma seleção
deles num volume Magma com o qual concorreu em 1936 ao prêmio de
poesia da Academia Brasileira. O livro sai vitorioso, sendo o parecer do
relator o poeta Guilherme de Almeida altamente lisonjeiro. Apesar disso,
tal obra não foi publicada até hoje.
Em 1937, a saudade da terra levou Guimarães Rosa a escrever os contos
de Sagarana, onde, com estilo vigoroso, apresenta a paisagem mineira
em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e
dos criadores de gado- estórias de gente simples vividas ou imaginadas
o mundo em que passara a infância e a mocidade. Transpunha também,
para o livro, a linguagem rica e pitoresca daquela gente, registrando
regionalismos, muitos deles ainda não utilizados em literatura.
Levou sete meses para escrever o livro "sete meses de exaltação, de
deslumbramento"- declarará. Em dezembro de 1937, resolve concorrer
com o volume ao Prêmio Humberto de Campos, instituído então pela
Livraria José Olímpio. Queria ganhar o concurso, naturalmente; mas
desejava, sobretudo, saber do valor do seu trabalho. Não conhecia
ninguém da área literária, e a opinião da comissão julgadora
( constituída por Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais
Neto, Dias da Costa e Pelegrino Júnior) era um excelente meio de tomar
o próprio pulso. Remeteu à Comissão os originais que então se
intitulavam apenas Contos para disputar o prêmio com outros 57
concorrentes. Saiu vencido por três votos a dois. No mundo literário
ninguém sabia quem era o autor que chegara à final do concurso: era o
desconhecido Viator. Um dos juízes, o grande e saudoso Graciliano
Ramos, a propósito do assunto escreveu artigo divulgado na imprensa do
país em 1946 "Conversa de bastidores onde dá de púlico esclarecimentos
( incluído em Linhas Tortas, livro póstumo de Graciliano).
O livro Sagarana não foi o que se submeteu ao concurso sob o simples
título de Contos. Sagarana é a depuração deste, escoimado, reduzido
( de quinhentas e tantas páginas às três centenas de hoje), refeito,
portanto, segundo o critério rigoroso do Autor. No depoimento de
Graciliano Ramos está a história do Prêmio Humberto de Campos de
1938, e importa transcrevê-lo na íntegra é o que se faz logo após este
perfil biobibliográfico.
Em 1938, nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, o escritor segue para
a Europa, onde recebe a notícia de que a obra premiada fora Maria
Perigosa, coletânea de contos de Luís Jardim ( de quem, aliás, o escritor
se tornaria, mais tarde, amigo e admirador).
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é
internado, com Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale e outros, em Baden-
Baden. Aproxima-se de Cícero Dias, com quem faz amizade, e acaba por
mostrar-lhe os originais de Sagarana. O pintor gosta do livro, e anima-o
a publicá-lo.
Libertado mais tarde com os outros, em troca de diplomatas alemães, o
escritor retorna ao Brasil. Depois de rápida passagem pelo Rio, segue
para Bogotá, como secretário de Embaixada, de onde volta em 1944. Um
ano depois, retoma os originais de Sagarana, e, em cinco meses de
trabalho contínuo, refaz inteiramente o livro, suprimindo duas histórias.
O volume é publicado em 1946 pela Editora Universal, com sucesso
ruidoso, esgotando-se, no mesmo ano, duas edições. Recebe o prêmio
da Sociedade Felipe d'Oliveira e é aclamado como uma das mais
importantes obras de ficção aparecidas no Brasil contemporâneo."
(Renard Perez, em primeiras Estórias, José Olímpio Editora, 1946)
3. Os contos, um a um:
"Considero a língua como meu elemento metafísico: escrevo
para me aproximar de Deus." ( JGRosa)
I. As Margens da Alegria
Tema: a infância
"ESTA É A ESTÓRIA. ia um menino, com os tios, passar dias no lugar
onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz;
para ele, produzia-se em caso de sonho."
O Menino não tem nome; seu nome é apenas menino.
O pai e a mãe vão levá-lo ao aeroporto e, durante a viagem, até o piloto
conversou com ele. A cidade, que no futuro terá um grande lago
artificial, é certamente Brasília. Deram-lhe balas e chicletes e o tio
ensinava coisas sobre o assento reclinável.
Chegaram.
O conto está dividido em cinco partes, nomeadas apenas com algarismos
romanos. A segunda, é a chegada na cidade que se construía:
" O Menino via, vislumbrava. Respirava muito."
Foi à cozinha, daí poderiam ser vistos índios e caçadores, onça, leão,
lobos? Ouviu os passarinhos e seu canto comprido. "Isso foi o que abriu
seu coração."
Viu também um peru. Note que o Menino, aqui, está em estado de
descoberta, de si mesmo e do mundo que o cerca. O peru, colérico,
andando, "gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração. Mas
só bis-viu. Já o chamavam, para passeio."
A parte III se inicia com um passeio de jeep: iam ao sítio do Ipê.
papagaios, veados de rabo branco, flores, "imundície de perdizes", a
tropa de seriemas, o par de garças, o buriti à beira do corguinho...
O menino pensava no peru.
Na parte IV, vão ver onde se construiria o lago. Um mundo de máquinas,
compressoras, árvores que eram derrubadas.
Ele tem vergonha de falar sobre o peru.
Fica pensando na árvore que vira morrer, ali derrubada.
Na parte final, quando chegam de volta à casa, fica com medo de sair
para o terreiro, mas lá reencontra o peru. Estava anoitecendo, e ele
sabia que todo sim de dia traz esta tristeza, assim, no peito das pessoas.
O peru não era o mesmo que vira ao chegar: era aniversário do doutor e
o degolaram, jogaram a cabeça do primeiro peru no monturo. O outro, o
peru pequeno, bicava aquela cabeça com certo ódio.
E o Menino tem a experi6encia de que tudo se substitui, todas as coisas.
E encantado ficou, por isso:
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro
vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! tão pequenino, no ar, um
instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria."
II. Famigerado
Tema: violência e engano
Um grupo de quatro cavaleiros chega à casa de um médico do arraial.
Damázio, dos Siqueiras, se apresenta ao doutor que já o conhecia de
nome:
"Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando
também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara evitava o de
evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal,
de mim a palmo?"
Os três cavaleiros, à distância respeitosa, pareciam mais testemunhas de
algo que iria acontecer:
"Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem,
para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até
na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena,
mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também,
não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a
extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse não, conquanto os
costumes. Conservava-se de chapéu."
Damázio, por fim, declara:
"- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
O narrador o descreve: cenho carregado, catadura de canibal, os ínvios
olhos "Tudo de gente brava."
Por fim, esclareceu a que vinha:
"- Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um
moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à
revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde
nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de
evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava,
pensava. Cabismeditado. Do que , resolveu. Levantou as feições. Se é
que se riu: aquele crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se
fito à meia esguelha. Lateja-lhe um orgulho indeciso."
Era difícil para aquele homem falar o que queria. Ia devagar, aquilo era
coisa que mexera no seu orgulho... O narrador observa que "ele
enignava".
E num repente:
"- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é
mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-
gerado...?
Disse, de golpe, mas trazia entre dentes aquela frase.
(...)
- Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas
seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo
claro..."
O médico perguntou se o que viera saber não era "famigerado":
"- Famigerado? Habitei preâmbulos, bem que eu me carecia noutro
ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus
cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
- Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram
comigo, pra testemunho..."
(...)
- Famigerado é inóxio, é "célebre", notório, notável..."
O homem pede que lhe em linguagem de "dia de semana", o que se
deve entender como diferente da linguagem do padre na missa, aos
domingos, tão difícil.
É aí que o médico responde que famigerado é "importante", que merece
louvor e respeito.
Observe isso: nos dicionários, essa versão para a palavra é real: que
tem fama, célebre, notável. No entanto, por estar freqüentemente
associada à palavra malfeitor, bandido, ela adquire, vulgarmente, o
sentido de "bandido, malfeitor, assassino". A confusão fez-se aí: o
engenheiro disse a palavra como o vulgo a diz, mas o médico trouxe-a à
tona na forma que o dicionário indica.
Confirmado que não era palavra feia, nem desaforada ou caçoável,
Damázio dispensa as testemunhas e sorriu:
"- A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só
pra azedar a mandioca..."
Agradeceu, apertou a mão do médico, diz que de outra vez aceitaria
entrar na casa.
E se foi, esporeando o cavalo.
III. Soroco, sua mãe, sua filha
tema: a loucura, a solidariedade
Chegou ao povoado, vindo do Rio, e agora aguardava na linha de
resguardo, um vagão especial, com as janelas de grade. Chamava a
atenção de todos os moradores:
"Ia servir para levar duas mulheres, para longe , para sempre. O trem
do sertão passava às 12h45.
E muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para
esperar."
Para não se entristecerem, conversavam.
Iam para o hospício de Barbacena a mãe de Soroco, uma mulher velha,
com mais de setenta anos, e a filha, ainda moça, a única que Soroco
possuía. Soroco era viúvo e "Afora essas, não se conhecia dele o parente
nenhum. Para o pobre, os lugares são mais longe."
Soroco era homem grande, "brutalhudo", cara grande, barbudo, a voz
grossa; as crianças tinham medo dele. A filha, bem, leia esta descrição
magnífica desta cena da chegada da filha:
"Aí, paravam. A filha a moça tinha pegado a cantar, levantando os
braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das
palavras o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e
os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de
admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça
em cima dos espantados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de
mais misturas, tiras e faixas, dependuradas-virundangas: matéria de
maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a
cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se
assemelhavam."
De braços dados com as duas, Soroco se dirige à estação de trens: "Era
uma tristeza. Parecia enterro."
As pessoas estavam entre curiosas e apiedadas. Soroco calçara suas
botinas, "botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e
atalhado, humildoso. Todos diziam a eles seus respeitos, de dó. Ele
respondia: "- Deus vos pague essa despesa..."
Foram anos muito tristes, os últimos. E Soroco aguentara tudo. As
mulheres enlouquecidas, a trabalheira que davam. Mas agora
precisavam ir.
A moça começou a cantar alto, com o rosto virado pro povo, enquanto a
velha se sentava numa escadinha. A velha era quietinha, mas diante da
cantoria da neta, comoçou por cantar baixinho e depois mais alto:
"Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos
aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de
grades."
Observe que o narrador tem marcas típicas da oralidade do contador de
causos: "Aí que..." "tinham de..."
Até que o trem, manobrando, juntou o vagão em que as duas estavam
embarcadas e "apitou, e passou, se foi, o de sempre."
Soroco de chapéu na mão, pobre homem, sequer quis esperar o trem
sumir. Todos apiedados de Soroco:
"Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente,
todos gostavam demais de Soroco."
Esquisito, talvez sentindo a grande solidão que lhe restara, Soroco
empertigou-se todo e... pôs a cantar aquela cantiga insólita. Num átimo,
todos se juntaram a ele "E com as vozes tão altas!
Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele,
os mais detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de
não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A
gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga."
IV. A menina de lá
tema: infância
"Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo
de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno
sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o
terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando
descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria,
Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos
enormes."
Inventava histórias e palavras que espantavam as pessoas, tudo vago e
esquisito: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de
meninos e meninas sentados a uma mesa de doce, comprida, por um
tempo que nunca se acabava. Ou uma que mostrava a necessidade da
gente fazer uma lista de coisas que no dia por dia a gente vem
perdendo.
Nem sequer tinha quatro anos. Da sua quietude e placidez nada saía que
perturbasse as pessoas. Era calma, concentrada. Pra comer, tinha um
ritual: comia primeiro o ovo, carne, torresmos, o que havia de mais
gostoso e só depois é que comia o arroz, o feijão, a abóbora, agora
lentamente.
"De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente.
"Nhinhinha, que é que você está fazendo?"- perguntava-se. E ela
respondia, alongada, sorrida, moduladamente: "- Eu... to-u...fa-a-
zendo." Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?"
E era impossível puni-la por qualquer coisa que fosse.
Gostava da noite e das estrela , às quais chamava de "estrelinhas pia-
pia.
Dizia que o ar "estava com cheiro de lembrança. "A gente não vê quando
o vento se acaba..."
E dizia coisas imprevisíveis, inexplicáveis:
" O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: -
"Alturas de urubuir..."não, disse só: "- ... altura de urubu não ir."O
dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: "Jabuticaba de vem-me-
ver..." Suspirava, depois: "- Eu quero ir para lá."- Aonde? "Não sei."
E respondia coisas despropositais: "- Eeeu? Tou fazendo saudade."
Qutra hora, quando se conversava sobre parentes mortos, dizia que ia
visitá-los. O narrador nos diz que nunca mais viu a menina. Mas foi por
aí que começou a fazer milagres.
Se desejava um sapo, dizia, e logo ele entrava , aos pulinhos, pela sala.
Ou desejava pãezinhos de goiaba, logo aparecia alguém que de muito
longe lhe trazia.
Quando a Mãe adoeceu, foi só a Menina abraçá-la e ele sarou logo.
A seca chegou, queriam que a Menina pedisse chuva. Ela disse que não
podia. Mas quando, dois dias depois, desejou ver um arco-íris, choveu.
Pensavam Mãe e Pai que quando a Menina crescesse, tudo isso passaria.
Mas a menina adoeceu e morreu, talvez por causa das péssimas águas
da redondeza. Todos pareciam ter morrido a metade. Tiantônia contou,
então, que quando fizera aparecer o arco-íris ela dissera que queria ser
enterrada num caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.
O Pai se recusou a ir encomendar o caixão, achando que colaboraria
ainda mais na morte da Menina. Mas a Mãe acredito que fosse só
encomendar o caixão e que, por milagre da Menina, sairia igualzinho ao
que ela encomendara.
V. Os irmãos Dagobé
tema: vingança/violência
Havia acontecido na vila uma enorme desgraça: um lagalhé chamado
Liojorge, estimado de todos, no entanto, matara o mais velho dos quatro
irmãos Dagobé, gente absolutamente facínora.
E estava ali o velório; a casa não era pequena, mas as pessoas já se
apertavam nela, tal era a curiosidade.
"Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita
desunião, sem mulher em lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica
do recém-finado. Este fora o grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre,
que botara na obrigação da ruim fama os mais moços "os meninos",
segundo seu rude dizer."
Tudo tinha um ar de espantoso.
Liojorge o matara de medo, porque tal Dagobé, sem sabida razão,
ameaçara de cortar-lhe as orelhas.
VI. A Terceira Margem do Rio
tema: a loucura
"Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas
pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro,
ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros,
conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava
no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu
que ,certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa."
É assim que o narrador começa sua história.
A canoa era de pau vinhático para durar uns vinte ou trinta anos na
água. Acrescenta:
"E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta."
O pai pôs o chapeu e sem alegria nem cuidados, "decidiu um adeus para
a gente.
"Nem falou outras palavras, não pegou matula ou trouxa, não fez a
alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar,
mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: - Cê
vai, ocê fique, você nunca volte!"
O menino pediu para ir junto, o pai pôs a bênção nele e o mandou para
trás. Desamarrou a canoa e pelo remar saiu no rio:
"Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executara
a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio,
sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais."
Tentaram de tudo para trazê-lo de volta: nada o demoveu. O narrador
vê-se na obrigação de alimentar o pai e deixa-lhe alimento todos os dias.
Até o padre foi chamado a interceder: nenhum resultado, lá continuava o
pai, movendo-se naquela canoa, fizesse sol ou chuva, alienado,
procurando suas próprias margens.
Os filhos cresceram, a irmà se casou, teve filho, levaram a criança pra
mostrar-lhe: nada.
Mãe, irmão e irmã vão se mudando para a cidade, só mesmo falta o
narrador:
"Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação,
no rio, no ermo sem dar razão de seu feito.
(...)
E apontavam já em mimuns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta
culpa? "
E negando ser doido, um dia aconteceu:
"Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e
declarado, tive que reforçar a voz: "- Pai, o senhor está velho, já fez o
seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e
eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu
lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo."
Mas o pai escutara o filho e ficou em pé, manejou o remo na água.
Concordando.
A filho fugiu. Observe o fecho:
"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar
calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do
mundo. Mas, então, ao menos que, no artigo da morte, peguem em
mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que
não pára, de longas beiras: e , eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro o
rio."
Para você responder: que terceira margem é esta?
VII. Pirlimpsiquice
tema: infância/ revelação do encantado, maravilhoso
XVIII. Darandina
tema: loucura
O narrador é um médico-residente num hospício ( o Instituto).
Como se dá a história, que é tragicômica e é narrada por um mordaz
médico que em tudo põe os olhos e nada deixa escapar?
Assim: um homem muito bem posto, acusado de roubar uma caneta e,
perseguido por outros, sobe com rapidez numa palmeira-real. Os
funcionários do hospício ficam observando aquilo e decidem que ele é
meio louco.
Um médico plantonista, que não é o narrador, diz que o homem é
secretário das Finanças Públicas, o que é contado à multidão que,
achando coerente o que ele faz, devido ao seu trabalho, aceita o fato
como normal. O verdadeiro secretário recebe pedido de desculpas. E
uma outra multidão, agora, formada pela polícia, corpo de bombeiros,
capelão, enfermeiros, padioleiros, chega.
Um professor, Dartanhã, aproveita a darandina ( confusão) e contesta a
autoridade do diretor do hospital. Enquanto tudo acontecia lá embaixo, o
homem , lá em cima, dizia:
"- O feio está ficando coisa..." (...) Querem comer-me ainda verde?!"
Tira os sapatos, a roupa, os bombeiros tentam resgatá-lo, os
cinegrafistas o filmam, jornalistas e fotógrafos também estão lá. E o
doido, lá em cima, resolveu, então, balançar-se na palmeira, recebendo,
agora, os aplausos do público.
Mas, num momento, o doido recuperou o equilíbrio mental. Só que nem
o público, nem os diretores, nem os médicos aceitavam isso, assim, de
repente. Pretendiam linchá-lo. Foi ai que o louco deu gritos contra a
ordem estabelecida e gritando "Viva a luta! Viva a liberdade!"despencou
de lá de cima nu como viera ao mundo. , mas foi amparado pela
multidão.
De igual, depois daquilo, só mesmo a palmeira.
XIX. Substância
tema: amor
Esta é mais uma estória de amor destas Primeiras Estórias . Quem fazia
o polvilho mais branco da fazenda de Sionésio era Maria Exita:
"Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão
nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque,
contra a menos infeliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a
mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por
atos de morte; o outro, igual, feroz, foragido, ao acaso de nenhuma
parte; o pai razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido,
certo para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe nem afastados
parentes(...)"
E lá ficava Maria Exita, trabalhando o melhor polvilho, o mais branco, o
mais alvo entre todos os polvilhos que já puderam, um dia, fazer.
Sionésio recebera a fazenda de herança e, devido à escassez da
produção de qualquer outra coisa, plantava mandioca e em tudo punha
seu olho de dono., não deixava de trabalhar nem aos domingos e
feriados.
Um dia, numa festa, encontrou Maria Exita, em quem jamais
reconheceria aquela menina feia e magra que em suas terras chegara,
largada. Apaixonou-se por ela. E num dia lindo, aberto e claro, foi até as
pedras onde ela trabalhava e propôs casamento.
Recebeu em resposta um largo sorriso:
"Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar?
Voc6e, comigo, vem e vai?"
E ela: "Vou, demais."
(...)
Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os
Pássaros."
tema: loucura
O narrador deste conto é Vaga-Lume, ajudante-de-ordens de Iô João-de-
Barros-Dinis-Robertes, a personagem protagonista de nosso conto. Iô
João era um bom homem, D. Quixote sertanejo que, já velhinho, meio
aluado, precisava dos cuidados de alguém.
Cismava com tudo.
Acordou, certa feita, e disse que ia matar o Magrinho, que era seu
sobrinho-neto, médico que lhe dera injeções necessárias e aplicara-lhe
uma lavagem intestinal.
Para tanto, escolheu um cavalo e pediu ao Vaga-Lume que arreiasse
outro, a fim de acompanhá-lo. E, esbravejando que fizera um pacto com
o Demônio, lá se foi para a cidade, fincando a espora no animal.
Vagalume, desesperado, ia atrás do velho, com medo que despencasse
do baio imponente. Na pressa de matar o sobrinho médico, o velho
calçara um pé de botina amarela e outro de bota preta. E em vez de um
facão, trazia uma faca de cozinha sem-graça.
Louco, tomado, segundo ele mesmo pelo Demo, consegue arregimentar
14 coitados pobres que acreditam nas suas doideiras. Vão para a cidade
em busca de Magrinho. Havia uma festa lá. os parentes acharam graça,
loucura, quando o velho invadiu a festa e sentenciou:
"- Eu pido a palavra..."
Fez um discurso esquisito, que a todos comoveu. Ao terminar. Todos os
abraçaram e ele comeu fartamente, bebeu, dançou. Não houve Demo,
não houve morte.
E depois foi embora. Para morrer.
XXI. Os Cimos
tema: infância
Esta estória termina os 21 contos de que se forma este livro; e parece
completar o que se anuncia no primeiro desta série de contos, sobre o
Menino.
Está dividida em 4 partes: O inverso afastamento, Aparecimento do
pássaro, O trabalho do pássaro e O desmedido momento.
O Menino está sofrendo porque a Mãe está doente, longe dele, numa
cidade muito distante. esta dor é pura depuração, parte do rito da
iniciação do crescimento e do conhecimento do mundo.
O tucano parece ser o símbolo do desconhecido, mas também do
encantador demais. Quando o tio, recebendo notícias, anuncia que a Mãe
do menino está bem, não corre mais perigo, a imagem do pássaro, da
luz do dia, da natureza se fundem numa só, em plenitude.
E o Menino, feliz, sabe que não estará sozinho outra vez.
"E vinha a vida."
Profa. Esther PS Rosado
ESPAÇO ABERTO
RÁDIO-AULAS
PORTUGUÊS
PROF. JADIEL HORTEGAL
Conjunto da Obra
Famigerado
Foi de certa feita o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel.
Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha
porta, equiparado, exato: e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance , insolitíssimo. Tomei-me os nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com
cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco curto pesadamente. Seu cavalo
era alto, um alazão; bem arredado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida [ ... ] O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse que não, conquanto os costumes.
Conservava-se de chapéu [ ... ] Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta [ ... ] Ele falou:
- "Eu vim perguntar a vósmecê uma opinião sua explicada ..."
Carregara a celha. Carregava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu [ ... ]
- "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueira ... Estou vindo da
Serra ..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira ? O feroz de histórias de léguas com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo [ ... ]
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente.
Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava.
Cabismeditado. Do que, se resolveu, levantou as feições. Se é que se riu: aquela
crueldade de dentes [ ... ] E pá.
- "Vosmecê me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é:
fasmisgerado ... faz-me gerado ... falmisgeraldo ... familhas-gerado ... ?
Disse, de golpe, trazia entre dentes, aquela frase. Soara como riso seco. Mas, o
gesto, que se seguiu, imperava-se de toda rudez primitiva, de sua presença dilatada.
Detinha minha resposta, não queria que eu a desse por imediato. E já aí outro susto
vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem [ ... ]
- "Saiba vosmecê que sai ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas,
expresso direto pra mor de lhe perguntar a pergunta , pelo claro ..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o
legítimo o livro que aprende as palavras .... [ ... ] Agora, se me faz mercê , vosmecê
me fale, no pau da pérola, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
Famigerado? [ ... ] Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até
então, mumumudos. Mas, Damázio:
- "Vosmecê declare. Estes daí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo,
pra testemunho."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria escrito o caroço: o verivérbio.
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável" ...
- "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
Vilta nenhuma, neenhum doesto. São expressões neutras , de outros usos ...
- "Pois ... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito ...
- "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era pra se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse! ...
- "Ah! bem! ..." soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas . Subiu em si degradava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: "Vocês podem ir, compadres.
Vocês escutaram bem a boa descrição ..." e eles prestes se partiram. Só aí se
chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:
- "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída! " [ ... ]. Oh, pois.
Esporou, foi-se o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.
(Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio. 1969. p. 8-13)
a) o jagunço
b) a linguagem
c) a cidade regionalizada
d) a pobreza
e) o psicologismo
04. Tendo como base a questão anterior e a sua resposta correta, marque a opção
que revela dois mundos que estão sempre em confronto no conto.
a) o da oralidade e o da escrita
b) o da escrita e o do homem regionalizado
c) o da política e o da sociedade
d) o da cultura e o do jagunço com seus hábitos e costumes
e) c e d estão corretas
volta
Conferências
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Antes de iniciar gostaria de esclarecer dois pontos. Sou muito verborrágico e corro o
risco de perder-me. Considerando a premência de tempo (acrescida da expectativa
criada com a visita do Ministro) não pretendo ler - o que me desagrada muito - mas
vou tentar acompanhar o texto. Por outro lado, o prazer de estar agora aqui neste
seminário está acoplado a um curso que, sob o patrocínio desta e da Fundação
Gilberto Freyre, estou ministrando neste momento. O tema aqui focalizado está
associado também à temática do curso.
Ao final, por ocasião dos debates, talvez tenhamos tempo de - recorrendo à ajuda da
projeção de algumas transparências - extrair alguns tópicos desta comparação.
Não apenas aí neste trecho introdutório, mas em tão repetidas vezes a ponto de
configurar-se como atributo específico da obra, o sociólogo-antropólogo não
estabelece fronteiras entre os universos da ciência e da arte.
Sem querer descartar os apelos individuais de geógrafos com Y-Fun Tuan (e mesmo
antropólogos como Lewis) quero apontar aqui dois esforços coletivos oriundos da
França e do Reino Unido. O primeiro caso provém da crítica literária e é resultado de
um colóquio organizado entre os dias 8 e 9 de maio de 1981 no Centro de Estudos
do Romance e do Romanesco na Universidade de Picardia, em França. (Crouzet,
Michel, Organizateur, 1981). Aquele do Reino Unido é iniciativa de geógrafos e se
incorpora numa coletânea (Pocock, Dougls C.D. Editor, 1985) intitulada Humanitic
Geography and Literature. Os críticos literários perseguem o que rotularam de
"Espaços Romanescos". Os geógrafos procuraram fazer Ensaios Sobre a
Experiência do Lugar.
Que isomorfismo poderíamos querer encontrar em coisas tão díspares quanto a
crítica literária e a geografia uma vez que a literatura é criação artística e a geografia
é, ou pelo menos pretende ser, construção científica? A noção de localização
espacial configurada no "lugar" é o denominador comum nessa possível aliança.
Os críticos literários, também eles, achavam-se ante o conflito, quase um sisma dos
espaços romanescos. Confrontando-se as idéias de Melle de Scudéry (Século XVII)
segundo a qual "il est certain que pour bien entendre les choses qui se passent, il
faut que l'espirit conçoive les lieux ou elles sont arrivées" ao princípio espacial do
romance, proposto por Michel Butor (atualidade) segundo o qual a ficção "sinscrit en
notre espace comme voyage, et que l'on peut dire à cet égard là le thème
fondamental de notre littérature romanesque" é constatar a oponência entre uma
concepção clássica, outra moderna. Tornava-se preciso que se atingisse a noção de
um "anti-espaço", ou seja, a passagem de uma plenitude a um vazio insistente. O
espaço capaz de qualificar estava reduzido, ele próprio, a algo sem quantidade, e o
jogo dos termos espaciais tornava-se um jogo sobre o sentido ou a ausência de
sentido. O conjunto de 14 trabalhos foi grupado, assim, em três subconjuntos: 1)
Figuras do Espaço; 2) O Sentido do Espaço; 3) Um antiespaço romanesco. Embora
o segundo subconjunto tenha maiores afinidades com os "lugares" no sentido
geográfico, a discussão toda é extremamente valiosa, para a Geografia que
compartilha, hoje, uma equivalente confusão do que seja seu "espaço".
Para uma Geografia cada vez mais antropocêntrica importa menos a distinção entre
as diferentes facetas do "homo economicus", capitalista-socialista, dominador-
dominado, e mais o homem verdadeiro e inteiro, homem humano. Nisto repousa o
caráter dessa emergente Geografia Humanística, ligada ela a um "novo humanismo"
que vise não o homem ocidental judaico-cristão capitalista, mas tentando alcançar o
"homem-universal".
O meio utilizado para defesa desta suposição seria o de recorrer a um leque mais
variado de exemplos, o que certamente levaria a um extravasamento do tempo
disponível neste Seminário.
Assim sendo minha opção recai num aspecto da obra de João Guimarães Rosa que,
pela sua amplidão e riqueza, certamente poderá suprir a argumentação que
pretendo. Trata-se do seguinte experimento, para não exorbitar pretendendo o
"ensaio".
A Percepção holística da realidade do sertão a partir de um mosaico romanesco: o
corpo de baile, de Guimarães Rosa
Este "lugar", de projeção regional, que como espaço geográfico limita-se, a leste,
pelo Rio São Francisco, adquire bordos ou fronteiras difusas e pouco claras nas
demais direções cardeais. Se o rio do Chico é fronteira clara, o Urucuia pode ser o
eixo deste sertão, geograficamente real sobre o qual Rosa criou o seu sertão onde
"a magia é inseparável de todos os atos da vida"[3]. E, ao longo do Urucuia, a Barra-
da-Vaca, volta e meia mencionada, talvez fosse o ponto onde, num mapa,
pudéssemos apoiar a ponta do compasso para circunscrever o universo rosiano[4].
Inserido neste espaço concreto, real, há espaços polivalentes que, não sendo
excepcionais, são complementares e de freqüente ocorrência, como os "pés de
serras". Tal é o caso do sítio Mutum, no primeiro romance Campo Geral onde,
segundo admite o autor, se encontram os germes de todo o conjunto da obra. Lugar
bonito, "entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer
parte; e lá chove sempre…Chuva que entristece a mãe de Miguelim, geralista, que
tem o coração oprimido pela paisagem estranha e pelos amores pecaminosos com o
cunhado (espaço externo geográfico e espaço individual, psicológico, interno).
As labutas de Nhô Berno Cássio (Bernardo Caz) na sua condição de agricultor
sitiante, que trabalha de sol a sol, lutando contra o empobrecimento (que parece
fatal), não se opõe, antes complementa a vida nas grandes fazendas de gado do
Pinhém (Estória de Lélio e Lina) e daquelas do Buriti Bom e Buriti Grande (cenário
do último romance, ele mesmo intitulado "Buriti"). E também da vida no próprio
"gerais" do Andrequicé, no qual se passa o romance Dão-Lalalão. Aqui, no cenário
dos chapadões entrecortados de veredas, e que constitui o âmago do sertão
rosiano, desenvolvem-se os romances de suas gentes simples e tão magicamente
vinculadas ao meio em que habitam. Não caberia aqui destacar exemplos, de tal
modo da escritura do autor liga o homem nas suas lidas quotidianas com o sertão
numa tal simbiose que exibe, como já foi notado com propriedade[5], "não o
Indivíduo em litígio com a Sociedade (…) mas a grande Aventura do Homem face a
face com o mundo elementar dos seres e realidades em bruto, ainda não domadas
em sua energia vital espontânea".
No índice do fim do livro o autor ajunta os três "contos" sob o título de Parábase.
Atinando-se com o fato de que no antigo teatro grego sob este nome se entendia um
"intervalo" crítico (ou cômico) no qual um ou mais atores ou o próprio autor expunha
suas opiniões ao público, entende-se por que eles estão alternadamente dispostos
como intervalos entre os romances[6].
Na mais longa de suas cartas a Bizzarri, o autor aponta ao tradutor o fato registrado
por Paulo Rónai, no livro Encontros com o Brasil, de que "a linha simbólica é
predominante nos 'contos', onde o enredo propriamente dito serve antes de
acompanhamento". Segundo declaração do próprio autor nesta mesma carta, cada
um dos contos - função "simbólica" intercalar à "realidade" dos romances - "se
ocupa, em si, com uma expressão de arte". O conto Uma Estória de Amor trata da
origem e do poder das "estórias" no que elas encerram de parábolas ou símbolos de
uma verdade "revelada". No O Recado do Morro a revelação é aquela do
nascimento de uma "canção", ou gesta popular sertaneja. O Cara-de-Bronze é a
procura e revelação da "Poesia".
Não obstante o conteúdo simbólico dos contos, eles encerram uma peculiaridade
extraordinária em termos de sua vinculação "espacial". Os contos têm seus enredos
situados em espaços intermediários, complementares ou periféricos ao complexo
"chapadões-veredas" expondo contrastes com eles. A grande fazenda onde vive
recluso o Cara-de-Bronze está nos grandes campos do Urubuquaquá - urucuias
monte, fundões e brejos. Abertos e plantados pastos em área de "Mato Grosso" em
vastidão de terra deprimida à borda dos chapadões, emitindo em direção a eles
matas galerias, que se estreitando ao neles penetrar, vai se confundir com as
veredas. A trajetória de Pedro Orósio como guia do naturalista em trabalho de
campo é dos Gerais para o planalto calcário até o Vale do rio das Velhas onde
termina a missão e onde se festeja Nossa Senhora do Rosário. O Morro das Garças,
de onde partiu o "recado" - "solitário escaleno e escuro feito uma pirâmide" -
destaca-se em meio às "enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo
Calcário". A Samarra, onde se ouviram as "estórias" era um lugar - "nem fazenda, só
um repasto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais".
Aos poucos moradores dali, na festa de inauguração da capela, vieram reunir-se "a
gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas". A borda daquela
chã, a "mesa-de-campo" sobre o Baixio da Samarra, fora escolhida por Manoelzão
para sítio da capela em devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, quando ele,
vindo do Maquiné, abrira a fazenda a mando de Frederico Freyre.
Outro aspecto importante a registrar é que, aqui nos "contos" a veia de naturalista e
geógrafo de Guimarães Rosa atinge suas culminâncias. Tudo se passaria como se,
ao carregar as tintas do entorno interfacial, o autor mais quisesse acentuar a
individualidade suave do sertão. Assim, pois, paradoxalmente, a criação artística no
tratamento simbólico "faz contraponto com a caracterização mais acurada - sem
nada a dever a um cientista - da paisagem geográfica.
Embora o autor zele pela atemporalidade dos romances, onde jamais uma data é
mencionada, não há como escapar de associar o "tempo" à crise do zebu dos anos
trinta-quarenta que afetou profundamente as Minas Gerais e se encontra "cantada"
na trova do vaqueiro Doraldo, amigo de Soropita, no Dão-Lalalão.
Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras,
por prolongação…(p.388 a 391).
E assim também, mais adiante, "o país natalício" de Pedro Orósio: "O chapadão de
chão vermelho, desregral, o frondoso cerrado escuro feito um mar de árvores, e os
brilhos risonhos na grava da areia"…(p. 412 e 413. E ainda na 458 - 459).
Manuelzão erige a capela na Samarra em honra a sua mãe, que jamais aquiescera
em sair do seu lugar de origem, e que foi enterrada no lugar que ela elegera para se
erguer a capela.
Nossa sabedoria popular registra que nenhum homem se descompromete "do lugar
onde enterrou o umbigo". Do umbigo materno, do seu nascer ele passa ao vínculo
com o lugar - a Terra - para onde retornará após a morte. E ao longo da vida, grande
parte do seu esforço e energia (vital) é desprendida - na sua solidão - em querer
juntar umbigos, como dizia Doralda a Soropita…"nunca te deixar, era se eu pudesse
estar guardada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos…".
União, pacto solidário, cumplicidade para a difícil travessia…
É pena que os leitores italianos tenham sido privados das notas das páginas 610,
617 e 618. Na correspondência entre Rosa e Bizzarri notamos que o autor reluta e
depois cede em favor da eliminação daqueles apodos à escritura do Cara-de-
Bronze. Parece-me que a evocação de Dante e Goethe como das Upanixades era
um chamamento do autor à sua sintonia de universalidade. Na velha cultura dos
vedas nas frases de Platão nos versos dos representantes da latinidade e do
saxônico na poesia, os trechos escolhidos querem demonstrar a sintonia do homem
universal, vista aqui do nosso sertão mas solidária com aquelas manifestações.
O próprio cientista do O Recado do Morro- O Seu Alquiste (ou Olquiste), que intuíra
a importância da mensagem captada pelo Gorgulho, e acompanhara com interesse
a seqüência da transmissão do recado através dos "seres não-reflexivos"[7], ao ver
nascida a canção pela arte do cantador Laudelim, estabelece a sintonia dessa "coisa
muito importante" que são "estas cantigas migradouras, que pousam no coração do
Povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas", com as sagas
dinamarquesas. Como na saga de Horof, filho de Helgi, segundo registra o Saxo
Gramaticus (p. 456).
Mas logo em seguida adverte do "subjetivo" de uma avaliação de autor, daquilo "que
o autor gostaria, hoje, que o livro fosse". E acrescenta, ainda, que "em arte, não vale
a intenção".
Toda essa minha superficial "travessia" pelo seu Corpo de Baile quer demonstrar
que aquele simples ponto atribuído por ele aos lugares vale muito mais. Não que
seja necessário alterar a ordem ou hierarquia da sua valoração mas porque, os
outros três itens estão de tal modo interligados ao primeiro que qualquer tentativa de
separação seria precária. Tal avaliação nos faz lembrar Verlaine que admitia na
produção poética as categorias de "vers donnés" e "vers captés". Muito significante
oculto para o autor pode ter um significado captado pelo leitor.
O querer "ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo
principalmente", é querer abraçar o mundo holisticamente, é querer procurar o
homem universal. A influência do Tao é indisfarçável na tentativa de integração
cósmica a partir de uma técnica expressional que de aparentemente apocalíptica
seria, efetivamente, mais ligada a uma preocupação não linear mas antes em
estabelecer conjunções entre contrastes e oposições. O que bem pode ser
exemplificado no Cara-de-Bronze.
Influência taoística que ressoa na própria Física Moderna e enseja um novo espírito
científico.
Notas
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