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NOITES DO SERTÃO JOÃO GUIMARÃES ROSA

O sertão criado por Guimarães Rosa é uma realidade geográfica, social, política,
mas também é uma realidade psicológica e metafísica. Nesse espaço (sertão-
mundo), o sertanejo não é apenas o homem de uma região e de uma época
específicas, mas homem universal defrontando-se com problemas eternos: o bem e
o mal; o amor; a violência; a existência ou não de Deus e do Diabo etc. Daí
classificar-se seu regionalismo como regionalismo universalista.

João Guimarães Rosa:


sua HORA e sua VEZ
* Luiz Otávio Savassi Rocha
"Todos os poemas são um só poema/todos os porres são um mesmo
porre/não é de uma vez que se morre/ todas as horas são extremas."
Mário Quintana
"For the creative impulse in the artist, springing from the tendency to
immortalize himself, is so powerful that he is always seeking to protect
himself against the transient experience, which eats up his ego."
Otto Rank (Art and Artist)
"Tenho horror ao efêmero."
J.G. Rosa (depoimento a Emir Rodriguez Monegal)

J oão Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908


e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária
– uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis
filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto
Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" – comerciante, juiz-de-paz, caçador de
onças e contador de estórias. Segundo Valentin Paz-Andrade, membro da Real
Academia Galega e autor do livro A galeguidade na obra de Guimarães Rosa :
a cepa genealógica torna-se translúcida nesses patronímicos: nuns e noutros cintila a
ascendência minhoto-duriense do futuro escritor, especialmente em relação ao
sobrenome dos Guimarães que são citados nos fólios do Nobiliário de Dom Pedro,
conde de Barcelos, filho del-Rei Dom Diniz, de Portugal, e também nas notas do
Marquês de Montebello, com a variante Guimaraens, ainda hoje existente na Galiza.

Ressalte-se ainda que o nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e


hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" – do latim
cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua
sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado
a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de
tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu
significado. Com efeito, esses nomes de quente semântica poderiam ter sido
invenção do próprio Guimarães Rosa...(1)

A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por
vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da
Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A
contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as
conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e
descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos
mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em
muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe
rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas,
quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas
e ouvidas na roça.
A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor com certa dose
de mágoa:
Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao
modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom de
verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de
poder fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as
melhores coisas vistas e ouvidas.

Segundo seu tio Vicente Guimarães:(2)


Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos
de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com
dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro,
compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se
movesse o pensamento.

Essa preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, ajudaria a


compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética
rosiana. À guisa de exemplo, veja-se o seguinte trecho, extraído do conto O
burrinho pedrês, em que se observa uma verdadeira versificação da prosa:
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos,
caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos,
borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho
macheado, e as armas antigas do boi cornalão...

A miopia – "vista curta" –, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor


ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca),
médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A
alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em
miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do
conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira,
exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais
que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de
foco e recomendando que "por ora era preciso ler o menos possível para não
agravar a moléstia". Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que
precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente
pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.
Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta
própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei
Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez
amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu
prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos
incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso
primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre
Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo
Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime
de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida,(3)
retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres
alemães, tendo, desde logo, para não perder a oportunidade, se dedicado ao
estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus
conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista
concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de
russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo
alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do
lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do
dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que
estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais
profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento,
gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16


anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor,
recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte
de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela; o
corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade.(4) Estando Ismael de
Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João
Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: "As
pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por
ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Em 1929, ainda como estudante, João Guimarães Rosa estreou nas letras.
Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título
grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné
para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Visava mais os prêmios
(cem mil réis o conto) do que propriamente a experiência literária; todos os
contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930. Mais
tarde, Guimarães Rosa confessaria que nessa época escrevia friamente, sem
paixão, preso a moldes alheios – era como se garimpasse em errada lavra. Com
efeito, nessa primeira experiência como escritor chamam a atenção o esquema
convencional do conto de suspense, a escritura inteiramente despersonalizada e
a falta de originalidade dos temas, verdadeiros protótipos inspirados nos
modelos ingleses da época. Mesmo assim, já se esboçava o espírito lúdico do
autor na escolha dos nomes próprios como atestam, por exemplo, Tragywyddol
e Duw-Rhoddoddag, respectivamente, o nome de um personagem e de um
castelo no conto O mistério de Highmore Hall. Seja como for, essa primeira
experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que
pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos
prefácios de Tutaméia:
"Tude se finge, primeiro; germina autêntico é depois."
Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral
Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes; essa
primeira união não dura muito, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda
em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma,
escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel
Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de
Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro
Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala
Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da
Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está
estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres "FAC QUOD IN TE
EST"; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt
Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do
Dr. Tulp, datada de 1632).
O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23
de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse
lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua
oração argumentando com uma "licção da natureza":
Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de
troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raizes, que sómente os
annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.
Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha
bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma
de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem
incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.

Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:


Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora
plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas,
desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e
Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva
de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica
frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.

Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio


pelos problemas da gente brasileira:
E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior
importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro
proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados
do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e
as condições do nosso meio infectante.

Mais adiante, continua:


Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico
commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil
de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de
Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre
kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a
servir de pasto.

Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de
l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se
faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’

Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista,


humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna,
bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais
simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos
actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da
expressão, homens no meio dos homens.
Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores
opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo
Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a
ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo
com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.

Tambem, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor


collaboradora dos clinicos avisados.

De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os


companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo
ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento,
respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘
– Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas
sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’

Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de


outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que
aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o
medico da familia?

Mais adiante refere-se às pesadas críticas de que sempre foram alvo os


médicos, destacando entre os que tentaram denegrir a classe a figura do genial
dramaturgo Molière e fazendo menção a sua peça L’Amour Médecin,(5) mas
contrapõe a essas críticas uma série de gestos meritórios e de real grandeza
praticados por médicos abnegados, a ponto de elas lhe parecerem cada vez
mais injustificadas:
Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record
indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.

Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.

Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas


apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou
pretensa superioridade.

E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda


guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do
seu tempo.

Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.

A causa? Parece-me simples.

É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se
infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que
a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos
hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro
ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes
hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe
involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios
corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a
cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a
sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’,
arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar
aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!

Guimarães Rosa prossegue em sua linguagem peculiar e, já na parte final do


discurso, refere-se à "Oração" do "illuminado Moysés Maimonides":
Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a
força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico,
ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o
humano, naquelle que soffre!...

E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho
proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento,
mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:

‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero,
é que o socorro já vem perto!).

E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as


despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um
tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.

Depois de formado, Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, então


município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos; ali, passa a
conviver harmoniosamente até mesmo com raizeiros e receitadores,
reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a
ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de
Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão
enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era
adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do
Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do
Grande Sertão: Veredas.(6) Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas
que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No
conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e
Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que
exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração
a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente:
Cassiano perguntou:

– Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?

– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono
de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua
pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do
cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso – homem "inteligente,


bom e justo" – a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto –
Uai, eu?, de Tutaméia, que assim se expressa a respeito:
Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava
mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes
idéias. Eu – a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço,
um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa
de estar prevenido?"

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada


ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto
mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século
eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina. Aliás, foi
justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o
futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião
do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima
Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho,
chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já
estava resolvido. É ainda Vilma quem lembra que sua mãe chegou a se
esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico
que chorava convulsivamente!
Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz
respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos
àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de
intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha;
uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em
conversa com os "calões" (7) na "língua disgramada que eles falam", como
diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de
Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as
mamparras lá deles". Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o
outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com
especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu
temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas. Do conto
Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:
Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-
curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados,
iam acudir àquela parte.

A boiada, do norte.

Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa


cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-
Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore!
– o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti
um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e
nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na
cova.

De volta de Itaguara, Guimarães Rosa atua como médico voluntário da Força


Pública, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, indo servir no
setor do Túnel. Posteriormente entra para o quadro da Força Pública, por
concurso. Em 1933 vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º
Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério,8 em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de
Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as
dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e
solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da
corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao
estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e
nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria
obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta
de 1930 existiu na região do Rio São Francisco (Antônio Dó, o famigerado
bandido do sertão mineiro – referido de passagem no Grande Sertão: Veredas
–, morreu na segunda metade da década de 20).
Quando Guimarães Rosa servia em Barbacena, um amigo de convívio diário,
impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável
conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar
concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico
do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de
Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o
segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de
"vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a
seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de
1934:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après
avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só
posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos
subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou
com o futebol.

Em 1936, Guimarães Rosa concorreu com um livro de versos intitulado


Magma ao prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. O poeta
Guilherme de Almeida, relator do parecer da comissão julgadora, dirigiu
palavras altamente elogiosas ao livro do escritor mineiro, concedendo-lhe o
primeiro lugar e negando-se a outorgar a qualquer outro trabalho o segundo
lugar, tal o desnível de qualidade que havia entre os demais concorrentes e o
primeiro colocado. Não seria injusto considerar Guilherme de Almeida o
verdadeiro descobridor de Guimarães Rosa, aquele que teve a lúcida antevisão
do "gênio engarrafado". Em seu parecer, o poeta assim se referiu a Magma:
"Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade de vegetal
em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao
resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos". Esses rasgados
elogios ao que parece não chegaram a convencer o autor que preferiu não
permitir a divulgação de seu livro de poemas, somente publicado em 1997, 30
anos após sua morte. Diga-se de passagem que em entrevista concedida a
Günter Lorenz,(9) Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo
de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom
confidencial:
Meu começo, foram poesias (...) escrevi um volume nada pequeno de poesias que
foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria
felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo,
conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais
escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E
quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo,
mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia
profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da
verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a
estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das
chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.

Em 1937, durante "sete meses de exaltação e deslumbramento" consoante mais


tarde ele próprio declararia, Guimarães Rosa escreveu uma série de contos e os
reuniu em um volume; em dezembro do mesmo ano resolveu concorrer ao
prêmio Humberto de Campos instituído pela Livraria José Olympio Editora.
Remeteu os originais à comissão julgadora (constituída por Graciliano Ramos,
Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Peregrino Júnior),
usando, na oportunidade, o pseudônimo de VIATOR (em latim – o passageiro,
o viandante); o título dos originais era tão-somente Contos. Participaram do
concurso mais 57 candidatos e Guimarães Rosa obteve o 2º lugar, perdendo
por 3 votos contra 2 no confronto direto com Luís Jardim, que concorria com o
livro Maria Perigosa.
Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue
para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria
a ser sua segunda mulher. Sobre as vivências do escritor na Alemanha leia-se
O mau humor de Wotan, A velha, A senhora dos segredos e Homem, intentada
viagem – artigos publicados no livro póstumo Ave, Palavra, todos eles com
algum conteúdo autobiográfico. Durante a guerra, por várias vezes escapou da
morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. Ademais,
embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de
judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da
mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher
foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção
que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque
que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. A concessão da
homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos
dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do
Holocausto. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua
gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo
Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Com efeito, Guimarães Rosa, na
qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes
dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo
governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte
mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor,
D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem
confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi
que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos
arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de
depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa.
Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem,(10)
seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor
de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar
morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é
internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os
quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, cognominado "o
pequeno Chagall dos trópicos" já que, no início de sua carreira, tentou adaptar
para a temática dos trópicos a maneira do pintor, gravador e vitralista russo
MarcChagall, recentemente falecido. Ficam retidos durante 4 meses e são
libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida
passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário
da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana,
fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto
Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas
Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo
protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela
solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela
asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas). Sobre a
constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se
expressa:
Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em
muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade
velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre
chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às
nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no
hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático,
como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores
humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se
mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.

Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios.
Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais,
com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios
claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis
de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além
dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por
alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos,
móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos,
em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres
índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo
em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de
eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.

Um ano depois de regressar da Colômbia, retoma os originais dos Contos com


os quais concorrera ao prêmio Humberto de Campos e, após "cinco meses de
reflexão e lucidez", refaz inteiramente o livro, submetendo-o a uma verdadeira
depuração e suprimindo duas estórias. O volume é publicado em 1946 pela
Editora Universal com o título Sagarana, esgotando-se, no mesmo ano, duas
edições. A palavra sagarana, de formação híbrida, foi cunhada pelo próprio
autor e resulta da justaposição de saga, substantivo comum de proveniência
germânica, aplicada genericamente a narrativas históricas ou lendárias, e rana,
adjetivo tupi que significa "parecido com, mal feito, tosco". Os contos de
Sagarana, num total de nove, seriam, pois, parecidos com lendas, lendas toscas,
rudes; ou, conforme os via o próprio Guimarães Rosa, "uma série de histórias
adultas da Carochinha".
Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa
ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço
da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e,
depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional
Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade
esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em
Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida
demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate),(11)
saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha,
um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e
que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-
reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo
Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa
manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra:
Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi
dos meus...

... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita
fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta
escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para
chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em
patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu
senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só
havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos
bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João
Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de
Paz. Mas, apesar de suas constantes andanças pelo exterior, o escritor não
perde contato com sua terra. Em novembro de 1947 publica no Correio da
Manhã a reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, resultado de uma
viagem ao pantanal matogrossense que o deixou deslumbrado a ponto de
considerar a região "um verdadeiro paraíso terrestre, um Éden..." A reportagem
em questão foi publicada pela segunda vez em 1952 (Edições Hipocampo,
Niterói), numa tiragem de apenas 110 exemplares numerados e assinados pelo
autor. Atualmente, Com o Vaqueiro Mariano está incluída no volume póstumo
Estas Estórias (1969). Do mesmo modo, a crônica Ao Pantanal, incluída no
também póstumo Ave, Palavra (1970), refere-se a essa viagem e baseia-se em
notas de diário:
Ou – de como se devassa um Éden. Igual a todo éden, aliás, além e cluso. Mesmo em
Corumbá, primeiro ouvimos quem nos dissuadisse: – ‘À Nhecolândia? Aquilo não
existe. É o dilúvio...’

17 hs 10'. Chegamos. De que abismo nascemos, viemos? Mas no princípio era o


querer de beleza. No princípio era sem cor.

Em 1948, Guimarães Rosa está novamente em Bogotá como Secretário-Geral


da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização
do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge
Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista
Revolucionaria, de curta mas decisiva duração. O assassinato de Gaitán
desencadeou uma violentíssima revolta popular, o chamado Bogotazo, à qual
aderiu a própria polícia da capital e que levou às ruas cerca de 200 mil pessoas.
A revolta estendeu-se a todo o país, mas, em virtude de seu caráter anárquico
(pilhagem e cerca de duas mil mortes só em Bogotá), o exército debelou-a
rapidamente. Decretou-se, em conseqüência, o estado de sítio no país. Em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa assim se
refere ao incidente:
Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua
alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se,
incendiava-se, matava-se, etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança,
o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num
bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a
notas: ‘12.IV.48-22hs 55’. Tiros. Apagamos a luz.’ Mas, o que, com João Neves, por
sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas:
paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul,
citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e
amigo. E todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos
por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente


como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil,
é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em
1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a
Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro
de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que
exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos
casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969,
em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico
culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira
Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler
Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que,
durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da
Chancelaria Brasileira.
Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente
com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da
viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias),
de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São
Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40
léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel
Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da
novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim.
Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no
sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – "ele perguntava
mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles
grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos,
costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos,
estórias... A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa
famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil
no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês
Peter Wilhelm Lund – "o pai da paleontologia brasileira" – e do extraordinário
botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães
Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar
de "seu Alquiste", ou "Olquiste", que aparece no conto O recado do morro,
cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:(12)
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa.
Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste – espigo, alemão-rana,
com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe
nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se
amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos
poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de
chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho,
para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça
um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e
desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor:
fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a
tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos."

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava
nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.

Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para
se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-
da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-
de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha,
tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho
e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.

Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o
segurassem, ia lá, aceitava o abraço?

Finalmente, em 1956, dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães


Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas
de Corpo de Baile – longos poemas em prosa, de feição barroca –,13 em dois
volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três
volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes
são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e
Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua
versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956,
no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão:
Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a
crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes.
O fato é que ninguém lhe fica indiferente. Enquanto alguns colocam o livro no
pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das
primeiras páginas, considerando-o "um matagal indevassável". Em matéria
publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não
conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não
conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura,
começou a lhe parecer "uma história de cangaço contada para lingüistas". Por
sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou:
"A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui
um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito." Passadas
quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com
Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, "no calor da hora", sentindo o
cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:
Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos,
certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só
contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não
é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão
admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a
escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar
inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.

As raízes da inspiração rosiana, em Grande Sertão: Veredas (como, de resto,


em quase toda sua obra), mergulham no grande magma anônimo da cultura
popular brasileira como bem demonstra Leonardo Arroyo em seu magnífico
livro A cultura popular em Grande Sertão: Veredas; só que essa cultura passa
por um processo de depuração e, sem perder sua autenticidade, é submetida a
um tratamento refinado, guiado por disciplinada e vigorosa consciência
estética, num milagre possível apenas em se tratando de um artista genuíno,
capaz, nas palavras de Mallarmé, de "donner un sens plus pur aux mots de la
tribu".
O romance recebeu três prêmios: O Machado de Assis, do Instituto Nacional
do Livro; o Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo e o Paula Brito, da
municipalidade do Rio de Janeiro. As edições de Grande Sertão: Veredas se
sucederam mas, ainda hoje, fica a sensação de que a maioria das pessoas que
se referem ao livro não o leram, pelo menos da forma como deveriam ler, de
acordo com a recomendação do próprio autor: "Minha literatura é para bois,
não é para ser engolida de vez".
Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um
seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18
de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de
Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e
obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos
como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros
limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise
dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento
foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica,
destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado
pela bexiga preta (14) (capítulo 17) – uma travessia que, nas palavras de
Riobaldo, durou "só um instantezinho enorme" –, vendo-se as fogueiras
ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a
recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher
ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou
pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido
pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos
personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio
narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e
mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma
fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília,
representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala
carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou
de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade
do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da
terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de
teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: "Então fico com o Pasolini, que
preferia os não-atores..." Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final
quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge
a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um
passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes. Ora, o manuelzinho-
da-crôa (Charadrius collaris), ave não-Passeriforme da família Charadriidae,
vive sempre em casal e pode ser visto como um símbolo da fidelidade
conjugal, donde sua importância no contexto do romance dada a forte relação
afetiva existente entre Diadorim e Riobaldo, relação essa que pelas emoções
que mobiliza tem muitas das características de uma verdadeira relação
conjugal, a começar pela exigência de exclusividade por parte de Diadorim. É
preciso não esquecer que, na obra rosiana, os menores detalhes são fortemente
carregados de significação como, aliás, adverte o próprio Riobaldo-Rosa no
Grande Sertão: Veredas: "Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa."
Ainda em 1956, João Guimarães Rosa prefaciou a Antologia do Conto
Húngaro, com seleção, tradução e notas de seu amigo Paulo Rónai, professor e
poliglota húngaro, naturalizado brasileiro. No prefácio, o autor de Grande
Sertão: Veredas faz inteligentes reflexões a respeito da língua magiar, dando a
entender que a considerava uma língua próxima da ideal, uma língua que
qualquer escritor (ele incluído) quereria para si, para o exercício de sua arte,
mercê de sua insuperável potencialidade e plasticidade.
Pela importância desses comentários para o entendimento, inclusive, do
próprio fazer literário rosiano, eles merecem ser aqui transcritos, na íntegra:
Disse já que o húngaro, por seu rico registro de vogais – que a caracterizam
imediatamente – e da prevalência das claras sobre as surdas, dá-se como uma das
línguas mais sonoras, musicais, em seu vozeio. Sonorosa, se bem que de ritmo
fundamental muito enérgico, nela as seqüências de inflexões naturalmente modulam e
fácil melodiam. De si concretizante, figurativa, imagista, encerra copiosa quantidade
de onomatopéias. Sua gramática, parca, põe garra mais curta que a da emoção. Suas
palavras nem sempre se fecham na racional fixidez conceitual explícita, na rigidez
denotativa, antes guardam sob o significado uma ativa carga potencial, rudimentar,
com o que, nos diversos momentos, inteiram-se mais variadamente de sentido, e,
segundo as soluções rítmicas, se reembebem de um halo vivaz. Será, se dizer posso,
uma língua menos ‘da lei’ que ‘da graça’; uma língua para homens muito objetivos,
ou para poetas.
Nem não é tudo. Também, e o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere,
fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável, velozmente evolutiva, toda
possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa.
Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela
aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, que, nas exaltadas
arremetidas criadoras de uma experimentação contínua, os escritores lhe infligem,
segundo as mais sutis ou volumosas intenções. Suas partes obedecem à arte. Deste
ponto-de-vista, nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante, sem inércia. Por
sua própria natureza original, permite todas as caprichosas e ousadas manipulações
da gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é a criação de neologismos, o
verbum confingere. O intercambiar dos sufixos e das partículas verbais é universal:
os radicais aí estão, à espera de um qualquer afixo, como os forames de um painel de
mesa-telefônica, para os engates ad libitum. Possível, mesmo, é a engendra de
sufixos novos, partindo de terminações singulares ou peregrinas de vocábulos. Vale é
o valível. Imissões adúlteras não são ilegítimas. A seiva arcaica se redestila.
Absorvem-se os ruralismos. Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre si,
as palavras armam um fecundo comércio.

Molgável, moldável, digerente assim – e não me refiro em espécie só à língua


literária – ,ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano:
faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e
da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja e forja, maleia-se, faz mó do
monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares comuns,
escapa à viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não
deixam.

Os felizes escritores húngaros usam e mais usam da tratabilidade daquele


esquematismo opulento, de um aparelho de tanta liberdade. E não o praticam apenas
nos casos de necessidade elementar, conforme o ‘Sunt novis rebus nova ponenda
nomina’ ciceroniano. Nesse contínuo operatório, querem não menos as operações
estéticas fantasistas. O que eles buscam, às inspirações, toda-a-vida, é a máxima
expressividade, a mais ponta para penetrar a matéria; o jogo eficaz. São todos
individualistas. Desde que o entenda, cada um pode e deseja criar sua ‘língua’
própria, seu vocabulário e sintaxe, seu ser escrito. Mais do que isso: cada escritor
húngaro, na prática, quase que não pode deixar de ter essa língua própria, pessoal.
O alcance disso é mágico. Com isso, está o espírito geral da gente, que ele invoca. E
essa é tendência que não arrefece. Cada jornal, em Budapeste, é escrito em seu
dialeto ‘da casa’, às vezes fora da linguagem culta corrente – diz Laczkó Géza; e
ajunta: ‘Na vida de sociedade húngara não basta ter-se espírito; mas a forma
lingüística do dito espirituoso tem também de ser espirituosa’. Será que – como se
fosse ainda o guerreiro em movimento ou solitário pastor, nas estepes antigas do
Pamir ou, depois, onde volga o Volga e dona o Don – em o versar de seu idioma o
magiar ficou sempre nômade.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve


para os pais:
Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima
da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os
trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece
coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para
assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo
relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à
casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram
uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

Mais tarde, o escritor aproveitaria a experiência, cristalizando-a de forma


magistral no conto Os cimos, que encerra a coletânea em Primeiras Estórias:
Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas
mil pessoas faziam a grande cidade.
E: – Pst – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido
horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os
tantos meigos vermelhos do pássaro – depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de
enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da
árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em
momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo
da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos
arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos
silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio. O Tio, também, estava de
fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros
– quem sabe, seus filhotes – da banda da mata. O grande bico para cima, desferia,
por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: – ‘Crrée!’...
O menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O
Menino se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.

Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962


justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É
um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais
acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao
tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o
qual chamava, carinhosamente, de "o amarelinho", numa referência à cor da
capa da edição da Livraria José Olympio Editora):
Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo.
Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende
ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra
nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo
poético, anti-racionalista e anti-realista.

Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do


novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de
1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um
marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de
perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se
permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas. Essa impressão é corroborada pela leitura das cartas que
escreveu aos pais entre 1958 e 1964, em que confessa, reiteradamente, a
necessidade que tinha de fazer tudo "picadinho", "miudinho", "devagarinho":
20/12/58: Ultimamente não tenho andado bem. Passei mesmo por um susto, há 15
dias. Fui ao médico, fiz todos os exames e felizmente achou-se que não era tão grave.
Estou é com a pressão muito alta, eu que sempre tive pressão baixa... ..."Também
tenho descansado mais, vou levando a vida com mais sossego, me defendendo, pois o
pior é que tenho de evitar qualquer esforço físico, e as emoções, surpresas,
contrariedades, sustos, etc. Fazendo assim – dizem os médicos – poderei chegar aos
90 anos... Não me alargarei mais pois ainda tenho de ir fazendo tudo picadinho,
miudinho, a fim de evitar o cansaço."

11/6/59: "... o médico me recomenda maior número de horas de sono, dormir antes
da meia-noite, viver com moderação e calma, não me preocupar nem me afobar;
enfim tudo tem de ir num ritmo sossegado, picadinho, devagarinho... Rezar é o que
importa. Como o sr. está vendo, coloco o centro da vida na RELIGIÃO. Com isso
consigo despreocupar-me e evito que a pressão arterial suba mais."

9/7/64: "... desde uns anos para cá só posso trabalhar mais devagarinho, o que
complica o expediente. Sinto mais o frio, o calor, as mudanças bruscas do tempo, etc.
A gente vai vivendo, vai empurrando, vai rezando e agüentando.
Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958
seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da
hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular
como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um
tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida
ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando
recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece
com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor
chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí,
tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de
fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido
dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal
chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante,
desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não
repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios


cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece
ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à
Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879
por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a
matéria – "... the nothingness of matter and the allness of spirit" –, negando
categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral,
da doença e da morte.
Segundo Suzi Frankl Sperber – que teve acesso à biblioteca-espólio do escritor
e reuniu no livro Caos e Cosmos suas observações a respeito da influência das
leituras espirituais de Guimarães Rosa sobre sua obra, tomando como ponto de
partida os trechos assinalados pelo próprio autor – as publicações do Christian
Science Journal, datadas de 1961, são as mais abundantemente sublinhadas,
marcadas, semeadas de pontos de exclamação e de signos do infinito. A autora
reconhece ter encontrado outros textos alusivos à Ciência Cristã menos
anotados e datando de 1956; mas acredita que a segunda leitura dos textos, em
1961, teria influenciado muito mais intensamente o escritor a ponto de essa
influência se fazer sentir em Primeiras Estórias, publicado em 1962.
Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia
Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10
votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de
agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da
posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois. Por essa
ocasião aumenta o seu conceito no exterior e seus livros começam a ser
traduzidos para vários idiomas apesar das enormes dificuldades encontradas
pelos tradutores, obrigando-os a manter estreita correspondência com o autor.
Passa a interessar, igualmente, aos cineastas; assim é que, em 1966, o conto A
hora e vez de Augusto Matraga possibilita a Roberto Santos a realização de um
filme admirável, que se projeta em vários festivais internacionais. O mesmo
não se pode dizer da tentativa dos irmãos Santos Pereira de transpor para o
cinema o romance Grande Sertão: Veredas, que se converteu num verdadeiro
fiasco: em meio a um sertão disciplinado e maquilado, privilegiaram-se os
cavalos, o que levou alguns críticos a considerá-lo "um filme hípico com
veleidades épicas".
Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos,
em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira
Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa
e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio
Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do
referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma
longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente
sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então,
sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia
o interlocutor a seus textos, à "conversa manuscrita". A entrevista foi publicada
como parte de um livro de Lorenz – Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e
Basiléia, 1970 –, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita
no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da
entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e
imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa
altura, com um jacaré do Rio São Francisco... Na opinião de Willi Bolle
(Guimarães Rosa – artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o
ficcionista:
atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que
conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser
considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que
isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer
esclarecimentos – o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer –, mas
indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor
metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os
críticos para solucionar enigmas.

A opinião de Willi Bolle é, de certa forma, endossada pela própria filha do


escritor, Vilma Guimarães Rosa, autora de Relembramentos: João
Guimarães Rosa, meu pai, quando afirma:
Havia nele um certo mistério, em parte espontâneo, em parte cultivado como
elemento de encanto.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de


representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no
qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente
com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de
Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do
país. Foi premiado o livro Jorge, um brasileiro, do escritor mineiro Oswaldo
França Júnior.
Em meados do mesmo ano Guimarães Rosa publica Tutaméia (Terceiras
Estórias), um conjunto de 44 narrativas curtas das quais 4 desempenham
também o papel de "prefácios" ("prefácios travestidos", na visão de Lenira M.
Covizzi). Tutaméia é uma espécie de "livro testamento", um texto
decodificador da obra rosiana ou, ainda, a chave estilística de sua obra, um
resumo didático de sua criação. Nos 4 "prefácios travestidos", através de
rodeios e circunlóquios, por meio de alegorias e parábolas, o autor analisa o
seu gênero, seu instrumento de expressão, a natureza de sua inspiração, a
finalidade de sua arte, de toda a Arte. As estórias propriamente ditas, em
número de 40, primam pela excessiva concentração. Na visão de Paulo Rónai:
são episódios cheios de carga explosiva, retratos que obrigam o leitor a reconstruir
os dramas que moldaram os traços dos originais, romances em potencial
comprimidos ao máximo. Fiel ainda desta vez ao cenário das obras anteriores, isto é,
aos de sua infância, Guimarães Rosa faz caber neles a angústia existencial dos
personagens e a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza que
o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que aquilo que não é passa a
influir no que é, que o que poderia ter sido modifica o sentido do que houve. Isso num
estilo que tira dos processos da fala sertaneja, propensa ao lacônico e ao sibilino, ao
pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao enfático e ao colorido;
que vai buscar seu léxico num enorme estoque de regionalismos, arcaismos,
latinismos, plebeismos e brasileirismos, completando-o por criações de cunho
individualíssimo; e que se inova, sobretudo, por ousadias sintáticas e capazes de
sugerir o que não é dito num jogo de anacolutos, reticências e omissões.

De acordo com Aglaeda Facó, a trajetória percorrida pelo escritor desde


Sagarana até Tutaméia partiu "da mais pictórica iconização" e evoluiu para a
"mais metafísica simbolização". Segundo a autora, a partir de Primeiras
Estórias e, sobretudo, em Tutaméia, "o que estava no sintagma é pressionado
para o paradigma e a decomposição prismática analítica da realidade vai dando
lugar a uma decomposição prismática sintética" – uma espécie de "passagem
do IMPRESSIONISMO para o CUBISMO". O livro Tutaméia foi o último
publicado em vida pelo autor; após sua morte foram publicados,
respectivamente em 1969 e 1970, os livros Estas Estórias (contendo a obra-
prima Meu Tio, o Iauaretê que trata, de forma exemplar, da extinção da cultura
indígena e de suas trágicas conseqüências) e Ave, Palavra (com páginas
antológicas como Uns inhos engenheiros, De stelle et adventu magorum, Circo
do miudinho, Minas Gerais e As garças).
Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista
a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja
gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os
jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a
entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando
da mini-saia, que considerava "uma gracinha", à bomba atômica. Diz-se
torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma "adorar" música de
carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho
lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original
de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia
aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto
escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão
primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da
mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição
feminina, admite que não, afirmando que "antigamente havia um exagero, o
homem era homem demais e a mulher era mulher demais".15 Indagado se já
teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: "Acho que a
verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se
fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de
sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai." Instado a emitir um
conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos,
destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: "Viver
é obrigação sempre imediata".16 Elogia as gerações jovens, que considerava
cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente
feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que
"estamos entrando na era da sinceridade", referindo-se às gerações moças,
termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou
apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios
discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica
etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de
repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo,
esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e
perdidos, sem saber o que estava acontecendo...
A posse na Academia Brasileira de Letras teve lugar na noite de 16 de
novembro de 1967 sendo que, na oportunidade, o escritor foi saudado por
Afonso Arinos de Melo Franco – mineiro de Belo Horizonte, mas com fortes
laços a ligarem-no à legendária e sertaneja Paracatu –, que pronunciou
importante discurso denominado O Verbo e o Logos. Em fragmento exemplar
de sua oração, Afonso Arinos procura estabelecer um paralelo entre a obra de
Mário de Andrade e a de Guimarães Rosa, ambos "revolucionários", mas cada
um a seu modo:
Não me parece possa haver comparação entre o vosso e o estilo de Mário de
Andrade, como algumas vezes se tem feito. A renovação lingüística que Mário se
propôs era mais imediata, impetuosa e polêmica; em uma palavra: destruidora. O
grande polígrafo tinha em vista, ao lado da criação própria, demolir, arrasar as
construções condenadas da falsa opulência verbal ou do academicismo tardio. O
trabalho de demolição se faz às pressas e, no caso de Mário, com uma espécie de
consciência humilde do sacrifício que impunha à própria durabilidade. No vosso
caso, a experiência, pela época mesma em que começou, foi sempre construtiva. Não
tendes em vista derrubar nada, desfazer nada de preexistente, mas levantar no espaço
limpo. Não sois o citadino Mário, que precisava dinamitar o São Paulo burguês para
erguer no chão conquistado a Paulicéia desvairada. Sois o sertanejo Rosa,
conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os
antiplanos e os imateriais da construção. Devemos respeitar a Mário pelo propósito
de sacrificar-se na destruição. Podemos admirar e partilhar em vós a esperança
construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas
artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é
Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as
inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes
com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes
inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.

Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no
Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como
escritora. Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e
escreveu, compungido, para a "jovem colega": "Vir eu queria, queria. Posso
não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado,
balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você
sabe." Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino
arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-
lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais... Ao invés
da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em
data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu
encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de
Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar
"fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima
de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro
mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos
Drummond de Andrade,(17) tão avesso às honras acadêmicas...

No discurso de posse (1 h e 20’ de duração), Guimarães Rosa procura traçar o


perfil do seu antecessor e amigo, o ministro João Neves da Fontoura, de quem
fora chefe-de-gabinete no Itamarati; refere-se, também, ao patrono da cadeira
n. 2 da Academia, Álvares de Azevedo – "o que morreu moço, poento de
poesia" – e ao fundador dessa mesma cadeira, Coelho Neto – "amoroso pastor
da turbamulta das palavras". Vale lembrar que, nos dias que antecederam a
posse, o escritor recorrera ao médico Pedro Bloch a fim de que este o ajudasse
a controlar rigorosamente a voz, a respiração e a velocidade de leitura do
discurso, em mais uma demonstração de forte tendência perfeccionista. No
início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra
natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por
"Cordisburgo":
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas
Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do
Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de
sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes:
‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo
Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer
ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para
realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado,
gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a
erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e
fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração
– pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do
mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma
noção mágica do universo.

Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe
e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz
Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão
feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do
Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que


fala sobre a fé e a amizade:
João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de
realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando
parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé...’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira,
sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um
enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de
amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a
soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto
feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido
rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você
mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não,
porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E
porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida
a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa
solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de
testamento.

E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se


vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto
do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano
Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas
não morrem, ficam encantadas", que pronunciara pela primeira vez em 1926,
diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre
amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em
sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado "a palmeira de
Deus" –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de
inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente,
apresentando-se a João Neves como "Cordisburgo", última palavra pública que
pronunciou:
Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima,
que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-
me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu:
que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu,
com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e
terríveis balbúrdias.

Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos
vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para
provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito
único, sumário: João Neves da Fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao


teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam
encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o
mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O
mundo é mágico.

— Ministro, está aqui Cordisburgo.

Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se,


claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se
chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena
consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a
posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em
Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por
socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo,
estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres:
"MORRE O MAIOR ESCRITOR". Que lhe seja dada a palavra ao final desta
tentativa de biografia que se quer, pelo menos, honesta:
Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao
histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda,
desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só RELIGIÃO – mas
impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo
(tentativa de) com o . O mais, você deduz.(18)

Morto Guimarães Rosa – lá se vão três décadas –, resta sua obra singular, por
demais estudada, mas cujo poder de sedução ainda não foi satisfatoriamente
explicado; afinal, como ensina – ou aprende – o próprio Riobaldo, "muita coisa
importante falta nome".
Notas
1. Aliás, no conto O recado do morro, do livro No Urubùquaquá, no Pinhém, o escritor batizou
um personagem com o nome do próprio pai: "Mas, nesse justo momento, vinham chegando os
frades – frei Sinfrão e frei Florduardo – evinham enérgicos."
2. O escritor infantil Vicente Guimarães, mais conhecido por Vovô Felício, é autor do livro
Joãozito – Infância de João Guimarães Rosa. Publicou também, pela Editora Minerva (RJ),
em 1968, a estória Última aventura do Sete-de-Ouros, uma adaptação, para crianças, do
conto O Burrinho Pedrês, de seu sobrinho J. G. Rosa.

3. Segundo Vicente Guimarães, Joãozito era um menino "nojoso", "cheio de nica", "ni-quento".
Ao que parece, tais atributos o escritor, de certa forma, transferiu-os mais tarde para Riobaldo,
herói anti-heróico, ao atestar a reação do protagonista de Grande Sertão: Veredas ante o hábito,
comum no interior do Brasil, de comer tanajuras fritas com farinha, uma herança alimentar
indígena assimilada pelo colonizador branco através, possivelmente, do mameluco: "Mas o
esgaboar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume,
fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam e perturbavam, nos ombros dos homens
e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois
tive de sacudir fora da crôa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem
faminto come frita com farinha essa imundície..."

4. O episódio da morte do estudante goiano Oseas é mencionado por Pedro Nava no livro
Beira-Mar, em cujas páginas o autor revive os velhos tempos de estudante de Medicina em
Belo Horizonte.

5. No dia 17 de fevereiro de 1673, quando fazia o papel principal em sua peça Le malade
imaginaire, de cunho autobiográfico, onde, com sua habitual irreverência, satirizava os
médicos que lhe teriam minado a saúde, Molière passou mal e, horas depois, morreu. A classe
médica, exultante, deliciou-se com a irônica advertência: ai daqueles que se atrevem a dizer
verdades sobre ela...

6. Segundo o Prof. Paulo Rónai (comunicação pessoal), Quelemém é a transcrição exata do


nome próprio Kelemen, forma húngara do antropônimo Clemente (lat. clemens). Como se vê, o
nome faz jus ao personagem: "Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que
mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele."

7. O termo "calões", utilizado por Manuel Fulô, deriva de um dos nomes genéricos da nação
dos ciganos, isto é, de kalo (no plural kala), que significa negro, o que, para muitos estudiosos,
é um elemento a mais a comprovar sua origem hindustânica. Já uma pessoa estranha, que não
pertence à mesma raça, é conhecida por gajão ou ganjão, e Manuel Fulô tem consciência disso:
"Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p’r’ali, repassavam, acertavam no freio,
e depois era só chegar pra o ganjão e passar a perna nele, na barganha..."

8. Mário Palmério, escritor e compositor, mineiro de Monte Carmelo, autor de Vila dos
Confins e de Chapadão do Bugre, foi o sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira
de Letras, tomando pos-se em 22/11/1968.

9. LITERATURA deve ser vida: Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.
Minas Gerais: Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 395, 23 mar. 1974, p. 8 a 13.

10. Uma foto da solenidade de entrega do prêmio, vendo-se D. Aracy junto às bandeiras do
Brasil e de Israel, pode ser vista na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina
de Minas Gerais da FM – UFMG.

11. Os movimentos das peças do xadrez foram ensinados ao menino Joãozito pela Profª. Maria
de Lourdes Rocha Correa, filha mais velha do Cel. Geraldino Rocha, casada com o Sr. Adolfo
Correa. O pai deste, de nome Sérgio Correa, embarcava, na estação ferroviária de Cordisburgo,
com destino ao Rio de Janeiro, o gado que engordava na Fazenda da Ponte, de sua propriedade,
sendo o inspirador da figura do Major Saulo, do conto O Burrinho Pedrês, de Sagarana.

12. No conto O recado do morro, uma mensagem, ouvida durante uma expedição por um velho
eremita, passa de boca em boca, de forma ininteligível, por uma seqüência de personagens
marginais – seres primitivos de senso embotado mas de sentidos apurados – até chegar a um
bardo popular que, não só capta a mensagem – um recado infralógico emanado do Morro da
Garça –, como também lhe dá forma e sentido, convertendo-a numa obra de arte (a canção
popular) e permitindo a decifração, por parte do protagonista (Pedro Orósio), do código nela
con-tido. No referido conto, além da Gruta ou Lapa Nova do Maquiné, situada a 6 km da sede
urbana de Cordisburgo, Guimarães Rosa menciona a Fazenda Saco dos Cochos, a Fazenda
Bento Velho, o Ribeirão da Onça, o Córrego do Cuba, a Rua dos Pequis, a Rua dos Pacas, a
Rua de Cima, a Rua de Baixo, o Hotel do Sinval, a Igreja do Rosário (já demolida), a Matriz do
Sagrado Coração, o povoado das Lajes, o distrito da Lagoa, o Araçá (Araçaí, cidade vizinha de
Cor-disburgo) e o Morro da Garça – "solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide" –,
acidente geográfico situado próximo à sede do município do mesmo nome (18 30S 44 35W),
entre os municípios de Curvelo e de Corinto.
13. Para Davi Arrigucci Jr. (Guimarães Rosa e Gôngora: Metáforas. In: Achados e
Perdidos, Pólis, São Paulo, 1979), que aproxima o escritor mineiro do poeta espanhol Luís de
Gôngora (1561-1627), o estilo de ambos seria melhor definido como maneirista do que
propriamente como barroco. De acordo com o referido ensaísta, embora as diferenças entre os
dois autores sejam óbvias, sua atitude em face da linguagem é semelhante, na medida em que
"ambos admitem, se não declarada, implicitamente, a insuficiência do instrumento lingüístico
que revolucionam à sua maneira, moldando-o a suas necessidades individuais de expressão"; e
mais, na medida em que "ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão do mundo
que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase".

14. A expressão bexiga preta refere-se a uma forma grave de varíola (doença hoje em dia
praticamente extinta) acompanhada de manifestações hemorrágicas e de sério
comprometimento do estado geral, não raro evoluindo para o óbito.

15. A propósito dessa afirmativa, cabe mencionar que, nu-ma época em que semelhante
procedimento era inusitado, Guimarães Rosa escreveu um conto magistral denominado Esses
Lopes (contido no livro Tutaméia) no qual ele se coloca sob a pele da protagonista e,
assumindo provisoriamente a condição feminina – numa atitude empática –, procura
experimentar o mundo a partir dessa nova perspectiva: "Má gente, de má paz; deles, quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou,
idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia
d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes
nenhum me venha, que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e
esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas,
primeiro, os outros obram a história da gente."

16. Uma variante da frase citada na entrevista, é esta outra – "A gente pensa que vive por gosto,
mas vive é por obrigação", que aparece em A estória do homem do pinguelo; a referida estória
foi publicada, inicialmente, na revista Senhor (março de 1962) e, mais tarde, foi incluída no
volume póstumo Estas Estórias.

17. A Galiza, região da Espanha situada a noroeste da península ibérica, na fronteira com
Portugal, está atualmente dividida em quatro províncias; o nome Galiza é de origem céltica,
gaulesa, e o idioma regional muito se aproxima do português. A estirpe dos Andrade (como a
dos Guimarães) tem suas raízes plantadas na Galiza; dali, alguns ramos emigraram para
Portugal e, posteriormente, para o Brasil, fixando-se principalmente na região de Itabira e
Antônio Dias, em Minas Gerais, como demonstram Ormi Andrade Silva e José Gomide Borges
no livro Dois séculos dos "Andrade", publicado em 1984.

18. Carta de J. Guimarães Rosa a seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21/5/1958.

* Luiz Otávio Savassi Rocha é professor da Faculdade de Medicina da


UFMG.

Embora partindo, quase sempre, da realidade objetiva – sua matéria-prima –, Guimarães


Rosa procura, ao se referir às aves – como a tudo mais em sua obra –, privilegiar a dimensão
poética. Ademais, na dependência do contexto e/ou do clima que pretende criar, ele o faz ora
de forma descritiva, analítica, ora de forma sintética. Assim, por exemplo, quando o tema é o
vôo do pica-pau, a opção, em Buriti (NOITES DO SERTÃO), é pela primeira alternativa:

"Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um picapau-
da-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo,
com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá
novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole
– um coração na mão –; já atravessou o mundo."

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Perseguindo a tradição regionalista, já largamente explorada em nossa literatura por
autores de várias gerações e épocas, Guimarães Rosa não apenas consegue
realizar aquilo que era quase impossível – renovar essa tradição –, mas também
levar a literatura brasileira a um de seus pontos mais altos.

João Guimarães Rosa (1908-1967), mineiro de Cordisburgo, desde cedo mostrou


interesse por línguas e pelas coisas da natureza: bichos, plantas, insetos. Formou-
se em Medicina e exerceu a profissão, clinicamente pelo interior de seu Estado,
onde recolheu importante material para as suas obras. Em 1934, ingressou na
carreira diplomática, chegando a embaixador, e passou a viver em vários países,
sempre escrevendo e ampliando seu conhecimento sobre línguas e culturas
diferentes. Guimarães morreu em 1937, três dias depois de tomar posse na
Academia Brasileira de Letras.

Como escritor, Guimarães Rosa é uma das principais expressões da literatura


brasileira. A genialidade de sua obra unanimemente tem deslumbrado as várias
tendências da crítica e do público. Embora já tivesse conquistado um prêmio com
um livro de poemas (nunca publicado), Guimarães Rosa estreou em 1946, com o
lançamento de Sagarana (contos). De cunho regionalista, a obra surpreendeu a
crítica e levou o escritor ao renome, em virtude da originalidade de sua linguagem e
de suas técnicas narrativas, que apontavam uma mudança substancial na velha
tradição regionalista. Dez anos depois, o autor confirmaria as expectativas, dando a
público, de uma só vez, em 1956, duas obras-primas: Corpo de baile (novelas) e
Grande sertão: veredeas (romance). O autor publicou ainda Primeiras estórias
(1962) e Tutaméia - Terceiras estórias (1967). Atualmente a obra Corpo de baile é
publicada em três partes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e
Noites do Sertão.

A Novidade da linguagem

A tradição regionalista na literatura brasileira é antiga. Começa com os românticos


Alencar e Taunay, passa pelos autores naturalistas e pré-modernistas, como
Domingos Olimpio e Euclides da Cunha, e pelos modernistas de 30, como Graciliano
Ramos e José Lins do Rego.

Para todos esses momentos da prosa regionalista, sempre se colocou aos autores
um problema de difícil solução: a linguagem a ser empregada. O autor deveria
empregar a língua culta, que lhe era própria, ou a língua regional, ou as duas? A
solução para esse problema quase sempre foi a da mistura: o narrador empregava
uma língua culta, com alguns termos regionais, as personagens utilizavam a
linguagem típica da região. O emprego da língua regional, nesse caso, quase
sempre ficava no nível do vocabulário.
A grande novidade lingüística introduzida pelo regionalismo de Guimarães Rosa foi a
de recriar, na literatura, a fala do sertanejo não apenas no nível do vocabulário, mas
também no da sintaxe (construção das frases) e no da melodia da frase. Explorando
as técnicas do foco narrativo em primeira pessoa, do discurso direto e do indireto
livre, a língua falado do serão está presente em toda a obra, resultado de inúmeros
anos de observação, anotações e pesquisa lingüística. Observe, neste fragmento do
conto 'Sarapalha', de Sagarana, o conhecimento minucioso do autor sobre a
vegetação e a língua regionais:

Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou


caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-
de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangera,-na de volta; e nem pôde
recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o
espinho-agulha e com o gervão em flor.

Observe a preocupação do autor com a construção sintática e melódica das frases


neste fragmento inicial de Grande sertão: veredas:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja.
Alvejei mira em árvore, no quintal no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia
isso faço, gosto; desde mal em mim mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum
bezerro: um bezerro branco erroso, os olhos de nem ser.

Contudo, a linguagem de Guimarães Rosa não tem como intenção realista de


retratar a língua do sertão mineiro exatamente como ela é. Sua preocupação vai
além: tomando por base a língua regional, Guimarães recria a própria língua
portuguesa, a partir do aproveitamento de termos em desuso, da criação de
neologismos, do emprego de palavras tomadas de empréstimo a outras línguas e da
exploração de novas estruturas sintáticas.

Além disso, sua narrativa faz uso de recursos mais comuns à poesia, tais como o
ritmo, as

Observe, como exemplo, as aliterações e o ritmo deste fragmento do conto 'O


burrinho pedrês', que sugerem o movimento dos bois em marcha. Note também
como as palavras, apoiados no ritmo e na pontuação, poderia ser dispostas em
versos de cinco sílabas (redondilhas menores):

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as


caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de
guampas, estrondos e baques, e do berro queixoso do gado junqueira, de chifres
imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do
sertão...

A propósito de sua linguagem literária, Guimarães Rosa comenta:

Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a
ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo,
mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e
creio que este é meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no
Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros
idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se
deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.
A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos
inimigos da poesia.

Regionalismo e universalismo

Outro aspecto de destaque da obra roseana é sua capacidade de transpor os limites


do espaço regional, em que quase sempre se situam textos, e alcançar uma
dimensão universal.

Em Grande sertão: veredas, o narrador Riobaldo afirma: "o sertão é o mundo". E é


com esse pressuposto que a narrativa roseana vai nos envolvendo, como se
também nós fôssemos sertanejos e jagunços e fizéssemos parte daquele mundo.
Passamos então a lidar com os mais variados temas que preocupam o homem
sertanejo: o bem e o mal, Deus e o diabo, o amor, a violência, a morte, a traição, o
sentido e o aprendizado da vida, a descoberta infantil do mundo, etc.

E notamos, então, que essas reflexões não são exclusivas do sertão mineiro; são
também nossas, do homem urbano, do homem do campo, do norte e do sul do país,
e até mesmo fora dele. Na verdade, Guimarães Rosa é um escritor universal, que
consegue com profundidade vasculhar a alma humana e captar suas inquietações,
seus conflitos e anseios, sem, contudo, perder o sabor da psicologia, da língua e dos
valores do homem do sertão mineiro.

Enfim, Guimarães Rosa é um desses escritores que representam a síntese de toda


uma trajetória de experiências formais e ideológicas da literatura de uma geração e,
às vezes, da literatura de um século. Assim foi com Machado de Assis no século
XIX; assim é com Guimarães Rosa na prosa brasileira do século XX.

Fonte: Cereja, William. Literatura Brasileira.

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Ensinar e Aprender
1. As obras de Guimarães Rosa são reconhecidas como um marco na evolução de
nossa literatura. Na elaboração de seu obra utilizou-se de vários processos:
exploração dos aspectos sonoros, criação de palavras, linguajar regionalista etc..
Pesquisar as novas tendências na literatura brasileira, após 1945.

2. Em seus textos, Guimarães Rosa utiliza termos regionais a fim de caracterizar


seus personagens e suas realidades.
a) Identificar no texto abaixo três expressões regionais e seus significados, como por
exemplo: debulhar o milho: retirar os grãos de milhoda espiga.
-"Diacho, de menino, carece de trabalhar, fazer alguma coisa, é disso que carece! -
o Pai falava, que redobrava: xingando e nem olhando Miguilim. Mãe o defendia,
vagarosa, dizia que ele tinha muito sentimento. - "Uma póia!" - o Pai desabusava
mais. - "O que ele quer é sempre ser mais do que nós, é um menino que despreza
os outros e se dá muitos penachos. Mais bem que já tem prazo para ajudar em coisa
que sirva, e calejar os dedos, endurecer casco na sola dos pés, engrossar esse
corpo!" Devagarzinho assim, só suspiro, Mãe calava a boca. E Vovó Izidra
secundava, porque achava que, ele Miguilim solto em si, ainda podia ficar
prejudicado da mente do juízo.
Daí por diante, não deixavam o Miguilim parar quieto. Tinha de ir debulhar milho no
paiol, capinar canteiro de horta, buscar cavalo no pasto, tirar cisco nas grades de
madeira do rego. Mas Miguilim queria trabalhar, mesmo. O que ele tinha pensado,
agora, era que devia copiar de ser igual como o Dito."
(ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. in Ficção completa. v.1. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.526).
b) Entrevistar pais, avós, tios, vizinhos coletando informações sobre as diferentes
regiões do Brasil:
- local de origem;
- vocábulos diferentes e seus significados;
Apresentar aos colegas as palavras coletadas.

3. Guimarães Rosa faz uso de ortografia própria, divergente em muitos pontos da


ortografia oficial. Sua invenção lingüística abrange o nível semântico (significado), o
sintático (combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria palavras (neologismos),
descobre associações imprevistas entre elas e reproduz ruídos da natureza ainda
não registrados.

Com orientação do professor, identificar no conto "O burrinho pedrês", páginas 22 a


25, (Sagarana, 23ª ed. José Olímpio: 1980) neologismos apresentados em sua
narrativa e interpretá-los.

4. No romance Grande Sertão: Veredas o personagem Riobaldo, ex-jagunço e chefe


de bando, conta a um suposto interlocutor suas aventuras da juventude, as pelejas
de que participou, seus temores e dúvidas a respeito da existência de Deus e do
Diabo.

Ler no livro o trecho no qual Riobaldo faz o pacto com o Diabo (11ª ed., páginas 317
a 319).
a) Identificar os vários termos utilizados pelo personagem para designar o Diabo.
b) Discutir porque Riobaldo evita empregar a palavra Diabo.
5. Em 1932, Guimarães Rosa retorna a Belo Horizonte como voluntário da Força
Pública. Nesta época, ele atuava em uma das frentes da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Pesquisar as causas e conseqüências dessa revolução.
6. Ler com atenção o depoimento de Guimarães Rosa. A partir desse depoimento,
redigir uma dissertação (argumentativa).
"Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a
rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade da morte." Guimarães Rosa.
Bibliografia do autor
Sagarana (1946); Grande Sertão: Veredas (1956); Corpo de Baile (1956); Primeiras
Estórias (1962); Tutaméia (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra (1970).
Bibliografia
BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
HOLZEMAYR, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996.
(Roteiro de Leitura).
MACEDO, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
PEREZ, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SANTO, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,
1996.
SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática,
1996. (Ensaio).
ZILBERMAN, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.

Edição nº15 - 12/11/99


Primeira Estórias
João Guimarães Rosa Rosa, como poucos, diz coisas que
sentimos, coisas que nos remexem por dentro sem achar
jeito de sair. Rosa vem, e diz no exato o que é aquilo,
como se forma, a cor e o cheiro que tem, o volume, e
como vem à tona. Ele cria o estímulo, a diferença de
pressão necessária para esguichar pra fora os
sentimentos de que nem suspeitávamos. " ( Wilson
Morais, escritor, em artigo sobre Guimarães Rosa)
1. Biografia do Autor:
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de
muita coisa."
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas
Gerais, em 1908 e morreu no Rio de Janeiro, três
dias após ter tomado posse na Academia Brasileira
de Letras. Filho da classe média, Rosa fez seus
primeiros estudos na cidade natal :
"(...) aprendeu as primeiras letras com Mestre
Candinho, em Cordisburgo, e francês com Frei
Esteves, franciscano. Foi sempre aluno
excelente, surpreendendo os professores pela
inteligência e aplicação. Desde cedo mostrou
inclinação para línguas, e, aos seis anos, lia o
primeiro livro em francês Les Femmes qui
Aiment.
Em 1918 o avô leva-o para Belo Horizonte,
matriculando-o no primeiro ano colegial do
colégio Arnaldo, onde estudaram também
Carlos Drummond de Andrade e Gustavo
Capanema. E ele entrega-se aos livros, com
entusiasmo; em breve, vamos encontrá-lo a
pedir licença para freqüentar a biblioteca da
cidade. Embora o seu grande amor ao estudo,
não desprezava os esportes, principalmente
futebol. Mas foram as línguas a sua principal
paixão: estudava-as com afinco, sem se
descuidar das respectivas gramáticas.
Outra matéria de sua predileção foi a História
Natural. Dos dez aos catorze anos colecionou
insetos, borboletas; amava os animais,
aprendeu a conhecê-los intimamente e a sua
obra mostra bem os profundos conhecimentos
que tem da matéria. Quando ia a Cordisburgo,
pelas férias, explorava os matos, à procura de
cobras.
Lia bastante, tendo conhecido Euclides da
Cunha ainda nos bancos escolares. Entretanto,
o estilo árido, difícil para a sua idade, fazia-o
pular páginas, amortecia-lhe o interesse. Só
muito mais tarde ( quando Sagarana já se
encontrava em provas) é que o releu
devidamente.
Terminados os preparatórios, Guimarães Rosa
matriculou-se na Faculdade de Medicina de
Minas gerais. Durante o curso médico conheceu
no Hospital sa Santa Casa de Belo Horizonte o
Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira de quem
se tornou bom amigo. A propósito dele, dizia
Guimarães Rosa ao seu amigo, o romancista e
professor Geraldo França de Lima: "Jamais
uma pessoa me tratou tão bem."
Nesse época, premido por necessidade
financeira, escreveu contos, publicados na
revista O Cruzeiro. Concorreu quatro vezes, e
em todas foi premiado com cem mil-réis. Mas
escrevia friamente, sem paixão, preso a
moldes alheios, como confessou. Na verdade,
eram os cem mil-réis do prêmio...
Depois de formado, foi Guimarães Rosa exercer
a profissão em Itaguara, município de Itaúna,
onde permaneceu por dois anos. A razão da
escolha é que lhe haviam dito não existir
médico por aquelas bandas.
E, na verdade, era excelente iniciar a profissão
sem concorrência...
Aproveitava todos os momentos disponíveis
para estudar ( mesmo durante as viagens a
cavalo), e de tal modo se familiarizou com a
profissão que era capaz de dar o diagnóstico
apenas pela fisionomia do doente. Cobrava as
visitas que fazia, como médico, pelas
distâncias que, a cavalo, tinha que percorrer.
Nem podia ser de outra forma, porque, quando
chegava ao local, o dona da casa, a fim de
baratear a consulta, aproveita-lhe a presença
para uma revisão geral na saúde da família.
Médico dedicado, acabou por se tornar
repeitadíssimo naquelas regiões. Perder um
doente era, para ele, particularmente , algo
trágico. E uma vez em que isso aconteceu ,
ficou aflitíssimo, sem saber que resolução
tomar. O padre já esperava ao lado do morto,
para encomendar-lhe o corpo, e Rosa ainda lhe
aplicava injeções sobre injeções, como se
pretendesse ressuscitá-lo.
Foi uma noite de agonia. Em casa, mais tarde,
o futuro escritor fechou-se no quarto, sem
querer jantar, imaginando represálias por
parte dos parentes e amigos do morto, quem
sabe um linchamento... Soube, depois, que a
preocupação era inteiramente infundada, e que
todos haviam reconhecido que ele fizera o
impossível.
*

Dois anos mais tarde retornou Guimarães Rosa


a Belo Horizonte. Por ocasião da Revolução
Constitucionalista de 1932, atua como médico
voluntário da Força Pública, indo servir no
setor do Túnel. Encontrou-se de novo com o
amigo Doutor Juscelino , e na pequena
localidade estreitaram as relações de amizade.
( Trinta e cinco anos depois, ao tomar posse na
Academia, quando recebia o abraço do ex-
presidente da República que fizera parte da
mesa -, Rosa assim lhe responde ao
cumprimento: - "Com a mão na pala, meu
coronel.")
Posteriormente Guimarães Rosa entra no
Quadro da Força Pública, por concurso. Em
1934, vamos encontrá-lo em Barbacena, como
oficial-médico do 9o. Batalhão de Infantaria.
Aí a vida calma dá-lhe oportunidade para se
entregar melhor aos seus livros. Mesmo sem se
descuidar da medicina, retorna ao estudo das
línguas. "Estudava as línguas para não me
afogar completamente na vida do interior"-
confessará depois. E através de um russo
branco que se encontrava meio perdido por
aquelas bandas, como soldado da polícia
militar de Minas, pôde confrontar pela primeira
vez a sua pronúncia. Depois, por intermédio de
cadetes e de antigos oficiais do exército
czarista, aparecidos em Barbacena como
componentes do Coro dos Cossacos do Juban e
do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. Foi a
essa altura que um amigo, impressionado com
os conhecimentos que tinha Guimarães Rosa
das línguas estrangeiras, deu-lhe a sugestão:
- Se você gosta tanto de estudar línguas, por
que não faz concurso para o Itamarati?
Rosa pensou no caso, e acabou por aceitar o
conselho. Adquiriu livros, estudou muito, e em
1934 veio para o Rio, enfrentar o concurso
para o Ministério do Exterior, onde detém o
segundo lugar.
Durante todo esse tempo, manteve suas
ligações com a literatura.
Além dos contos, escrevia versos, chegando a
organizar uma seleção deles num volume
Magma com o qual concorreu em 1936 ao
prêmio de poesia da Academia Brasileira. O
livro sai vitorioso, sendo o parecer do relator o
poeta Guilherme de Almeida altamente
lisonjeiro. Apesar disso, tal obra não foi
publicada até hoje.
Em 1937, a saudade da terra levou Guimarães
Rosa a escrever os contos de Sagarana, onde,
com estilo vigoroso, apresenta a paisagem
mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida
das fazendas, dos vaqueiros e dos criadores de
gado- estórias de gente simples vividas ou
imaginadas o mundo em que passara a infância
e a mocidade. Transpunha também, para o
livro, a linguagem rica e pitoresca daquela
gente, registrando regionalismos, muitos deles
ainda não utilizados em literatura.
Levou sete meses para escrever o livro "sete
meses de exaltação, de deslumbramento"-
declarará. Em dezembro de 1937, resolve
concorrer com o volume ao Prêmio Humberto
de Campos, instituído então pela Livraria José
Olímpio. Queria ganhar o concurso,
naturalmente; mas desejava, sobretudo, saber
do valor do seu trabalho. Não conhecia
ninguém da área literária, e a opinião da
comissão julgadora ( constituída por Graciliano
Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais
Neto, Dias da Costa e Pelegrino Júnior) era um
excelente meio de tomar o próprio pulso.
Remeteu à Comissão os originais que então se
intitulavam apenas Contos para disputar o
prêmio com outros 57 concorrentes. Saiu
vencido por três votos a dois. No mundo
literário ninguém sabia quem era o autor que
chegara à final do concurso: era o
desconhecido Viator. Um dos juízes, o grande e
saudoso Graciliano Ramos, a propósito do
assunto escreveu artigo divulgado na imprensa
do país em 1946 "Conversa de bastidores onde
dá de púlico esclarecimentos ( incluído em
Linhas Tortas, livro póstumo de Graciliano).
O livro Sagarana não foi o que se submeteu ao
concurso sob o simples título de Contos.
Sagarana é a depuração deste, escoimado,
reduzido ( de quinhentas e tantas páginas às
três centenas de hoje), refeito, portanto,
segundo o critério rigoroso do Autor. No
depoimento de Graciliano Ramos está a
história do Prêmio Humberto de Campos de
1938, e importa transcrevê-lo na íntegra é o
que se faz logo após este perfil
biobibliográfico.
Em 1938, nomeado cônsul-adjunto em
Hamburgo, o escritor segue para a Europa,
onde recebe a notícia de que a obra premiada
fora Maria Perigosa, coletânea de contos de
Luís Jardim ( de quem, aliás, o escritor se
tornaria, mais tarde, amigo e admirador).
Em 1942, quando o Brasil rompe com a
Alemanha, Guimarães Rosa é internado, com
Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale e outros, em
Baden-Baden. Aproxima-se de Cícero Dias, com
quem faz amizade, e acaba por mostrar-lhe os
originais de Sagarana. O pintor gosta do livro,
e anima-o a publicá-lo.
Libertado mais tarde com os outros, em troca
de diplomatas alemães, o escritor retorna ao
Brasil. Depois de rápida passagem pelo Rio,
segue para Bogotá, como secretário de
Embaixada, de onde volta em 1944. Um ano
depois, retoma os originais de Sagarana, e, em
cinco meses de trabalho contínuo, refaz
inteiramente o livro, suprimindo duas histórias.
O volume é publicado em 1946 pela Editora
Universal, com sucesso ruidoso, esgotando-se,
no mesmo ano, duas edições. Recebe o prêmio
da Sociedade Felipe d'Oliveira e é aclamado
como uma das mais importantes obras de
ficção aparecidas no Brasil contemporâneo."
(Renard Perez, em primeiras Estórias, José
Olímpio Editora, 1946)

Em 1956, publica Corpo de Baile ( novelas, hoje


divididas nos livros Manuelzão e Miguelin, No
urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão) e sai
nas livrarias seu primeiro e único romance: Grande
Sertão: Veredas.
Em 1963 é eleito por unanimidade para a Academia
Brasileira; só tomará posse em 1967. Três dias
depois, um infarto agudo o levou embora. Encantou-
se. Ou, como escreveu Drummond:
"Guardava rios no bolso
cada qual com sua água
sem misturar,sem conflitar?
Ficamos sem saber o que era joão
e se João existiu
de se pegar."
*
2. Estas Primeiras Estórias:
O livro Primeiras Estórias , publicado em 1962,
inicia um tempo em que as narrativas rosianas
iniciam por se tornarem curtas, distanciando-se
daquelas contidas, por exemplo, em Sagarana ou
em Manuelzão e Miguilin. Em Tutaméia ( 1967),
elas seriam muito breves, como um condensamento.
Nosso livro guarda 21 histórias curtas, mas o
assunto é o mesmo que permeou a trajetória do
escritor: os "causos"pontilhados da tradição oral, os
enredos que mostram desde o tom épico, o
filosofante, o lírico, o hermético.
Embora nesse conjunto não haja propriamente uma
linha temática, um fio condutor, é bom lembrar que
neles predomina a poesia saborosa na organização
das palavras e cada conjunto, oração ou período
depende de nós, da nossa capacidade de
observação, de nossa paciência para que se instaure
o significado esplêndido que tem.
Ler Guimarães Rosa nunca deve ser tomado como
obrigação; ler Rosa exige os critérios do
desvendamento, do amor pelo texto e pelo escritor
e, sobretudo, descobrir que por detrás de aparentes
causos de homens briguentos, de deslumbramentos
de crianças, de loucuras, misticicismo,a mor e
violência, lá está o homem e sua plenitude, o estar-
no-mundo, o descobrir da existência verdadeira e
valiosa.
Guimarães Rosa não é apenas um escritor: ele é
uma espécie de guia para nós, os cegos de nós
mesmos...
De acontecimentos mais ou menos banais,
cotidianos cria-se o momento da paixão, o estado da
paixão que nos levará a caminhar, palmilhar,
perceber em cada coisa ou canto o milagre, o
insuspeitável, o extraordinário, o que foge à simples
concepção da vida inútil.
Rosa não é apenas um contador de causos mineiros:
é um desvendador dos mistérios de cada ser e suas
personagens, habitantes dos desvãos de Minas
Gerais, habitam um mundo de inquietações e
intranqüilidades, um mundo de devaneios e
mistérios, um mundo de desejos de grandes saídas.
Abrigam, elas, um mundo universal dentro de si
mesmas. Dito isso, poderiam transitar por Wall
Street, pelas ruas de Londres, em Sidney , ou
Buenos Aires: têm o que todo humano que busca
resposta tem: uma inquietação da vida, um desejo
de transcender. Jamais permanecem elas mesmas
após o que vivem: elas acham novos caminhos,
sustentam sentimentos, rompem regras,
direcionam-se para a existência verdadeira.
Ler Rosa, é mesmo para poucos... Após sua leitura,
a vida exige que nos tornemos comprometidos
conosco, com os que amamos, com a procura da
existência que valha a pena. Rosa é danoso em nós:
faz-nos pensar, refletir sobre o que brilha, vigoroso
e íntimo, lá no fundo de nossas vidas. Dá-nos a
dimensão da dor, da alegria, das transformações. E
projeta em nossas almas o profundo elo com a
nossa mesma existência.

Ler Rosa é para poucos.


Ler Rosa é quase que caminhar sobre um abismo...
de nós mesmos, da humanidade, dos homens.
Ler Rosa é travessia de nós mesmos. .. por isso tão
perigosa. E tão urgente.
3. Os contos, um a um:
"Considero a língua como meu elemento metafísico:
escrevo
para me aproximar de Deus." ( JGRosa)
I. As Margens da Alegria
Tema: a infância
"ESTA É A ESTÓRIA. ia um menino, com os tios,
passar dias no lugar onde se construía a
grande cidade. Era uma viagem inventada no
feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho."
O Menino não tem nome; seu nome é apenas
menino.
O pai e a mãe vão levá-lo ao aeroporto e, durante a
viagem, até o piloto conversou com ele. A cidade,
que no futuro terá um grande lago artificial, é
certamente Brasília. Deram-lhe balas e chicletes e o
tio ensinava coisas sobre o assento reclinável.
Chegaram.
O conto está dividido em cinco partes, nomeadas
apenas com algarismos romanos. A segunda, é a
chegada na cidade que se construía:
" O Menino via, vislumbrava. Respirava muito."
Foi à cozinha, daí poderiam ser vistos índios e
caçadores, onça, leão, lobos? Ouviu os passarinhos e
seu canto comprido. "Isso foi o que abriu seu
coração."
Viu também um peru. Note que o Menino, aqui, está
em estado de descoberta, de si mesmo e do mundo
que o cerca. O peru, colérico, andando, "gruziou
outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração.
Mas só bis-viu. Já o chamavam, para passeio."
A parte III se inicia com um passeio de jeep: iam ao
sítio do Ipê. papagaios, veados de rabo branco,
flores, "imundície de perdizes", a tropa de seriemas,
o par de garças, o buriti à beira do corguinho...
O menino pensava no peru.
Na parte IV, vão ver onde se construiria o lago. Um
mundo de máquinas, compressoras, árvores que
eram derrubadas.
Ele tem vergonha de falar sobre o peru.
Fica pensando na árvore que vira morrer, ali
derrubada.
Na parte final, quando chegam de volta à casa, fica
com medo de sair para o terreiro, mas lá reencontra
o peru. Estava anoitecendo, e ele sabia que todo sim
de dia traz esta tristeza, assim, no peito das
pessoas. O peru não era o mesmo que vira ao
chegar: era aniversário do doutor e o degolaram,
jogaram a cabeça do primeiro peru no monturo. O
outro, o peru pequeno, bicava aquela cabeça com
certo ódio.
E o Menino tem a experi6encia de que tudo se
substitui, todas as coisas.
E encantado ficou, por isso:
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo
da mata, o primeiro vagalume. Sim, o
vagalume, sim, era lindo! tão pequenino, no ar,
um instante só, alto, distante, indo-se. Era,
outra vez em quando, a Alegria."
II. Famigerado
Tema: violência e engano
Um grupo de quatro cavaleiros chega à casa de um
médico do arraial. Damázio, dos Siqueiras, se
apresenta ao doutor que já o conhecia de nome:
"Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de
estórias de léguas, com dezenas de carregadas
mortes, homem perigosíssimo. Constando
também, se verdade, que de para uns anos ele
se serenara evitava o de evitar. Fie-se, porém,
quem, em tais tréguas de pantera? Ali,
antenasal, de mim a palmo?"
Os três cavaleiros, à distância respeitosa, pareciam
mais testemunhas de algo que iria acontecer:
"Os três seriam seus prisioneiros, não seus
sequazes. Aquele homem, para proceder da
forma, só podia ser um brabo sertanejo,
jagunço até na escuma do bofe. Senti que não
me ficava útil dar cara amena, mostras de
temeroso. Eu não tinha arma ao alcance.
Tivesse, também, não adiantava. Com um
pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a
extrema ignorância em momento muito agudo.
O medo O. O medo me miava. Convidei-o a
desmontar, a entrar. Disse não, conquanto os
costumes. Conservava-se de chapéu."
Damázio, por fim, declara:
"- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião
sua explicada..."
O narrador o descreve: cenho carregado, catadura
de canibal, os ínvios olhos "Tudo de gente brava."
Por fim, esclareceu a que vinha:
"- Saiba vosmecê que, na Serra, por o
ultimamente, se compareceu um moço do
Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que
estou com ele à revelia... Cá eu não quero
questão com o Governo, não estou em saúde
nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é
de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de
ter começado assim, de evidente. Contra que aí
estava com o fígado em más margens;
pensava, pensava. Cabismeditado. Do que ,
resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu:
aquele crueldade de dentes. Encarar, não me
encarava, só se fito à meia esguelha. Lateja-
lhe um orgulho indeciso."
Era difícil para aquele homem falar o que queria. Ia
devagar, aquilo era coisa que mexera no seu
orgulho... O narrador observa que "ele enignava".
E num repente:
"- Vosmecê agora me faça a boa obra de
querer me ensinar o que é mesmo que é:
famisgerado... faz-me-gerado...
falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, mas trazia entre dentes aquela
frase.
(...)
- Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que
vim, sem parar, essas seis léguas, expresso
direto pra mor de lhe preguntar a pregunta,
pelo claro..."
O médico perguntou se o que viera saber não era
"famigerado":
"- Famigerado? Habitei preâmbulos, bem que
eu me carecia noutro ínterim, em indúcias.
Como por socorro, espiei os três outros, em
seus cavalos, intugidos até então,
mumumudos. Mas, Damázio:
- Vosmecê declare. Estes aí são de nada não.
São da Serra. Só vieram comigo, pra
testemunho..."
(...)
- Famigerado é inóxio, é "célebre", notório,
notável..."
O homem pede que lhe em linguagem de "dia de
semana", o que se deve entender como diferente da
linguagem do padre na missa, aos domingos, tão
difícil.
É aí que o médico responde que famigerado é
"importante", que merece louvor e respeito.
Observe isso: nos dicionários, essa versão para a
palavra é real: que tem fama, célebre, notável. No
entanto, por estar freqüentemente associada à
palavra malfeitor, bandido, ela adquire,
vulgarmente, o sentido de "bandido, malfeitor,
assassino". A confusão fez-se aí: o engenheiro disse
a palavra como o vulgo a diz, mas o médico trouxe-
a à tona na forma que o dicionário indica.
Confirmado que não era palavra feia, nem
desaforada ou caçoável, Damázio dispensa as
testemunhas e sorriu:
"- A gente tem cada cisma de dúvida boba,
dessas desconfianças... Só pra azedar a
mandioca..."
Agradeceu, apertou a mão do médico, diz que de
outra vez aceitaria entrar na casa.
E se foi, esporeando o cavalo.
III. Soroco, sua mãe, sua filha
tema: a loucura, a solidariedade
Chegou ao povoado, vindo do Rio, e agora
aguardava na linha de resguardo, um vagão
especial, com as janelas de grade. Chamava a
atenção de todos os moradores:
"Ia servir para levar duas mulheres, para longe
, para sempre. O trem do sertão passava às
12h45.
E muitas pessoas já estavam de ajuntamento,
em beira do carro, para esperar."
Para não se entristecerem, conversavam.
Iam para o hospício de Barbacena a mãe de Soroco,
uma mulher velha, com mais de setenta anos, e a
filha, ainda moça, a única que Soroco possuía.
Soroco era viúvo e "Afora essas, não se conhecia
dele o parente nenhum. Para o pobre, os
lugares são mais longe."
Soroco era homem grande, "brutalhudo", cara
grande, barbudo, a voz grossa; as crianças tinham
medo dele. A filha, bem, leia esta descrição
magnífica desta cena da chegada da filha:
"Aí, paravam. A filha a moça tinha pegado a
cantar, levantando os braços, a cantiga não
vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer
das palavras o nenhum. A moça punha os olhos
no alto, que nem os santos e os espantados,
vinha enfeitada de disparates, num aspecto de
admiração. Assim com panos e papéis, de
diversas cores, uma carapuça em cima dos
espantados cabelos, e enfunada em tantas
roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas,
dependuradas-virundangas: matéria de
maluco. A velha só estava de preto, com um
fichu preto, ela batia com a cabeça, nos
docementes. Sem tanto que diferentes, elas se
assemelhavam."
De braços dados com as duas, Soroco se dirige à
estação de trens: "Era uma tristeza. Parecia
enterro."
As pessoas estavam entre curiosas e apiedadas.
Soroco calçara suas botinas, "botara sua roupa
melhor, os maltrapos. E estava reportado e
atalhado, humildoso. Todos diziam a eles seus
respeitos, de dó. Ele respondia: "- Deus vos
pague essa despesa..."
Foram anos muito tristes, os últimos. E Soroco
aguentara tudo. As mulheres enlouquecidas, a
trabalheira que davam. Mas agora precisavam ir.
A moça começou a cantar alto, com o rosto virado
pro povo, enquanto a velha se sentava numa
escadinha. A velha era quietinha, mas diante da
cantoria da neta, comoçou por cantar baixinho e
depois mais alto: "Agora elas cantavam junto,
não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem,
tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas
entrar para o carro de janelas enxequetadas de
grades."
Observe que o narrador tem marcas típicas da
oralidade do contador de causos: "Aí que..." "tinham
de..."
Até que o trem, manobrando, juntou o vagão em
que as duas estavam embarcadas e "apitou, e
passou, se foi, o de sempre."
Soroco de chapéu na mão, pobre homem, sequer
quis esperar o trem sumir. Todos apiedados de
Soroco:
"Todos, no arregalado respeito, tinham as
vistas neblinadas. De repente, todos gostavam
demais de Soroco."
Esquisito, talvez sentindo a grande solidão que lhe
restara, Soroco empertigou-se todo e... pôs a cantar
aquela cantiga insólita. Num átimo, todos se
juntaram a ele "E com as vozes tão altas!
Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta
que cantando, atrás dele, os mais detrás quase
que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o
de não sair mais da memória. Foi um caso sem
comparação.
A gente estava levando agora o Soroco para a
casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até
aonde que ia aquela cantiga."
IV. A menina de lá
tema: infância
"Sua casa ficava para trás da Serra do Mim,
quase no meio de um brejo de água limpa,
lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai,
pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a
Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão,
mesmo quando matando galinhas ou passando
descompostura em alguém. E ela, menininha,
por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já
muito para miúda, cabeçudota e com olhos
enormes."
Inventava histórias e palavras que espantavam as
pessoas, tudo vago e esquisito: da abelha que se
voou para uma nuvem; de uma porção de meninos e
meninas sentados a uma mesa de doce, comprida,
por um tempo que nunca se acabava. Ou uma que
mostrava a necessidade da gente fazer uma lista de
coisas que no dia por dia a gente vem perdendo.
Nem sequer tinha quatro anos. Da sua quietude e
placidez nada saía que perturbasse as pessoas. Era
calma, concentrada. Pra comer, tinha um ritual:
comia primeiro o ovo, carne, torresmos, o que havia
de mais gostoso e só depois é que comia o arroz, o
feijão, a abóbora, agora lentamente.
"De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente
se assustava de repente. "Nhinhinha, que é
que você está fazendo?"- perguntava-se. E ela
respondia, alongada, sorrida, moduladamente:
"- Eu... to-u...fa-a-zendo." Fazia vácuos. Seria
mesmo seu tanto tolinha?"
E era impossível puni-la por qualquer coisa que
fosse.
Gostava da noite e das estrela , às quais chamava
de "estrelinhas pia-pia.
Dizia que o ar "estava com cheiro de lembrança.
"A gente não vê quando o vento se acaba..."
E dizia coisas imprevisíveis, inexplicáveis:
" O que falava, às vezes era comum, a gente é
que ouvia exagerado: - "Alturas de
urubuir..."não, disse só: "- ... altura de urubu
não ir."O dedinho chegava quase no céu.
Lembrou-se de: "Jabuticaba de vem-me-ver..."
Suspirava, depois: "- Eu quero ir para lá."-
Aonde? "Não sei."
E respondia coisas despropositais: "- Eeeu? Tou
fazendo saudade."
Qutra hora, quando se conversava sobre parentes
mortos, dizia que ia visitá-los. O narrador nos diz
que nunca mais viu a menina. Mas foi por aí que
começou a fazer milagres.
Se desejava um sapo, dizia, e logo ele entrava , aos
pulinhos, pela sala. Ou desejava pãezinhos de
goiaba, logo aparecia alguém que de muito longe lhe
trazia.
Quando a Mãe adoeceu, foi só a Menina abraçá-la e
ele sarou logo.
A seca chegou, queriam que a Menina pedisse
chuva. Ela disse que não podia. Mas quando, dois
dias depois, desejou ver um arco-íris, choveu.
Pensavam Mãe e Pai que quando a Menina
crescesse, tudo isso passaria. Mas a menina adoeceu
e morreu, talvez por causa das péssimas águas da
redondeza. Todos pareciam ter morrido a metade.
Tiantônia contou, então, que quando fizera aparecer
o arco-íris ela dissera que queria ser enterrada num
caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes
brilhantes.
O Pai se recusou a ir encomendar o caixão, achando
que colaboraria ainda mais na morte da Menina. Mas
a Mãe acredito que fosse só encomendar o caixão e
que, por milagre da Menina, sairia igualzinho ao que
ela encomendara.
V. Os irmãos Dagobé
tema: vingança/violência
Havia acontecido na vila uma enorme desgraça: um
lagalhé chamado Liojorge, estimado de todos, no
entanto, matara o mais velho dos quatro irmãos
Dagobé, gente absolutamente facínora.
E estava ali o velório; a casa não era pequena, mas
as pessoas já se apertavam nela, tal era a
curiosidade.
"Demos, os Dagobés, gente que não prestava.
Viviam em estreita desunião, sem mulher em
lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica
do recém-finado. Este fora o grande pior, o
cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na
obrigação da ruim fama os mais moços "os
meninos", segundo seu rude dizer."
Tudo tinha um ar de espantoso.
Liojorge o matara de medo, porque tal Dagobé, sem
sabida razão, ameaçara de cortar-lhe as orelhas.
VI. A Terceira Margem do Rio
tema: a loucura
"Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro,
positivo; e sido assim desde mocinho e menino,
pelo que testemunharam as diversas sensatas
pessoas, quando indaguei a informação. Do
que eu mesmo me alembro, ele não figurava
mais estúrdio nem mais triste do que os
outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa
mãe era quem regia, e que ralhava no diário
com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas
se deu que ,certo dia, nosso pai mandou fazer
para si uma canoa."
É assim que o narrador começa sua história.
A canoa era de pau vinhático para durar uns vinte
ou trinta anos na água. Acrescenta:
"E esquecer não posso, do dia em que a canoa
ficou pronta."
O pai pôs o chapeu e sem alegria nem cuidados,
"decidiu um adeus para a gente.
"Nem falou outras palavras, não pegou matula
ou trouxa, não fez a alguma recomendação.
Nossa mãe, a gente achou que ela ia
esbravejar, mas persistiu somente alva de
pálida, mascou o beiço e bramou: - Cê vai, ocê
fique, você nunca volte!"
O menino pediu para ir junto, o pai pôs a bênção
nele e o mandou para trás. Desamarrou a canoa e
pelo remar saiu no rio:
"Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a
nenhuma parte. Só executara a invenção de se
permanecer naqueles espaços do rio, de meio a
meio, sempre dentro da canoa, para dela não
saltar, nunca mais."
Tentaram de tudo para trazê-lo de volta: nada o
demoveu. O narrador vê-se na obrigação de
alimentar o pai e deixa-lhe alimento todos os dias.
Até o padre foi chamado a interceder: nenhum
resultado, lá continuava o pai, movendo-se naquela
canoa, fizesse sol ou chuva, alienado, procurando
suas próprias margens.
Os filhos cresceram, a irmà se casou, teve filho,
levaram a criança pra mostrar-lhe: nada.
Mãe, irmão e irmã vão se mudando para a cidade,
só mesmo falta o narrador:
"Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia
querer me casar. Eu permaneci, com as
bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim,
eu sei na vagação, no rio, no ermo sem dar
razão de seu feito.
(...)
E apontavam já em mimuns primeiros cabelos
brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que
eu tinha tanta, tanta culpa? "
E negando ser doido, um dia aconteceu:
"Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que
me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar
a voz: "- Pai, o senhor está velho, já fez o seu
tanto... Agora, o senhor vem, não carece
mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo,
quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o
seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim
dizendo, meu coração bateu no compasso do
mais certo."
Mas o pai escutara o filho e ficou em pé, manejou o
remo na água. Concordando.
A filho fugiu. Observe o fecho:
"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que
ninguém soube mais dele. Sou homem, depois
desse falimento? Sou o que não foi, o que vai
ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,
então, ao menos que, no artigo da morte,
peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água, que não
pára, de longas beiras: e , eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro o rio."
Para você responder: que terceira margem é esta?
VII. Pirlimpsiquice
tema: infância/ revelação do encantado,
maravilhoso

"Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh.


O estilo espavorido. Ao que sei, ao que se
saiba, ninguém soube sozinho direito o que
houve. Ainda, hoje, adiante, anos, a gente se
lembra: mas, mais do repente que da
desordem, e menos da desordem do que do
rumor. Depois, os padres falaram em pôr fim a
festas dessas, no Colégio."
O texto narra, em primeira pessoa, um
acontecimento inexplicável que se deu durante uma
apresentação teatral, feita por adolescentes que
freqüentavam um colégio de padres, sob o comando
do Dr. Perdigão, professor de corografia e história-
pátria.
O narrador se indaga se tiveram culpa no desfecho
precipitado, nos acontecimentos que ocorreram , tão
distante do que se previa no ensaio.
A peça escolhida era Os filhos do Doutor Famoso,
em cinco atos. O narrador seria o "ponto", ou seja,
aquele que ficava embaixo do palco e que, durante
os esquecimentos da fala, "soprava"o texto..
Representariam a peça em caráter beneficente. Mas
na turma que ia representar, estavam "de mal"o
Ataualpa, que seria o "Dr. Famoso"e o Darcy, o filho
do Capitão. No dia do espetáculo, o pai de um dos
atores estava à morte, e um parente veio buscá-lo.
O narrador, então, vai levar um susto, mas é
colocado sobre o palco, para ocupar o lugar daquele
faltante.
Ocorre que o narrador teve um branco, ficou imóvel
e gago, o que arrancou gritos da platéia. E tudo
começou a acontecer: ele só conseguiu gritar um
viva à Virgem Maria. A platéia delirou. Os atores ,
também imobilizados, ficaram no palco, feito
estátuas, quando os outros entravam.
Então, um tal de Zé Boné, meio estúrdio, começou a
representar a "sobrepeça" , uma outra história,
inventada, para desespero dos padres e do Doutor
Perdigão, cada um falando o que lhe vinha à cabeça:
"Mas de repente eu temi? A meio, a medo,
acordava, e daquele estro estrambótico. O que:
aquilo nunca parava, não tinha começo nem
fim? Não havia tempo decorrido. E como
ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma
força, comigo, para me soltar do
encantamento. Não podia, não me conseguia
para fora do corrido, contínuo, do incessar.
Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi.
Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e
estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto:
que era o verdadeiro viver? E era bom demais,
bonito o milmaravilhoso a gente voava, num
amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros
e no nosso próprio falar. E como terminar? "
Era a tal pirlimpsiquice, a magia e a loucura da
cena. E o narrador conta que só havia uma maneira
de parar. Deu uma cambalhota e despencou do
palco.
E o mundo pareceu ter se acabado.
No outro dia, o Gamboa veio e falou: "Eh, eh,
hem? Viu como era que a minha estória era a
de verdade?"
Pulou-se, ferramos fera briga.
VIII. Nenhum, nenhuma
tema: misticismo, o transcendente
Num lugar que parece ser dentro de uma grande
casa de uma fazenda, é que acontece esta história:
um Menino, que ali estava de passagem, penetrara
num quarto, no extremo da varanda onde se achava
um homem "sem aparência, se bem que, por certo,
como curiosamente se diz, já "entrado em anos"; ele
deveria ser o dono de lá.
Há, no conto, por parte do narrador, uma espécie de
evocação da infância que só é resgatada através de
cheiros, luzes. E é assim ( seria em 1914?) que ele
evoca uma Moça, aureolada de certa luz, com certo
som de voz.
O narrador se perde nos labirintos da memória:
"Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se
conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro
e real, já havido. Infância é coisa, coisa?
E continua:
"A Moça e o Moço, quando entre si, passavam-
se um embebido olhar, diferente do dos outros;
e radiava em ambos um modo igual, parecido.
Eles olhavam um para o outro como os
passarinhos ouvidos de repente a cantar, as
árvores pe-ante-pé, as nuvens desconcertadas:
como do assoprado das cinzas a esplendição
das brasas. Eles se olhavam para não distância,
estiadamente, sem saberesm, sem caso. Mas a
Moça estava devagar, mas o Moço estava
ansioso. O Menino, sempre lá perto, tinha de
procurar-lhes os olhos. (...) Mas o menino
queria que os dois nunca deixassem de assim
se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida,
também, não."
O menino talvez tivesse chegado ali em "desviada
viagem, sem pessoas da família. Todos imaginavam
poder esconder o que havia num determinado
quarto, o Homem dizia ser impossível se esconder
algo de um menino.
E o que havia naquele quarto?
Uma mulher, uma velha, velhinha, velhíssima e
inacreditável. Nem sabia mais quem era. A Moça,
com muito amor, tratava dela.
O menino, assustado, foi se refugiar na cozinha, o
Moço lhe disse que sossegasse, que não era a Morte,
não. O Homem, calado, rezava terços.
"Diziam ao Menino, demonstravam-lhe: que a
Velhinha não era sombração, mas sim pessoa.
Sem que lhe soubessem o verdadeiro nome,
chamavam-na a "Nenha". Ela ficava tão quieta,
no meio da alta cama de torneados, o catre
com a cabeceira dourada, que ali quase se
sumia, nos panos, algo inviolável em sua
exigüidade, e respirava. Era cor de cidra, em
todas as rugazinhas e os olhos abertos, garços.
O que ela não tinha era pálpebras? Todavia, um
trêmito, uma babinha, no murcho, a boca, e era
o docemente incompreensível. O Menino sorriu.
Perguntou: - "Ela beladormeceu?"A Moça
beijou-o. A vida era o vento querendo apagar
uma lamparina. O caminhar das sombras de
uma pessoa imóvel."
A Moça dizia ao Moço que ele ainda não sabia sofrer.
Levaram a Velhinha para um grande jardim,
traziam-na para tomar sol,acomodadinha num cesto,
que parecia um berço. E o Menino quis brincar com
ela. Davam-lhe comidinha mole na boca, traziam-lhe
a pedida água.
Ela, a Velhinha, já não reconhecia ninguém. O
Homem podava as roseiras, o Moço pegou a mão da
Moça e o Menino ficou enciumado.
De quem era a Velhinha era mãe?
Tinham se esquecido, ela também.
Moço e Moça se separaram, a Velhinha morreu; o
Menino foi embora com ele:
"Será que posso viver sem dela me esquecer,
até a grande hora? Será que em meu coração
ela tenha razão? "O Menino não respondeu, só
pensou, forte: - "Eu também!"
E ele tinha raiva desse Moço...
Ao voltar para casa, o Menino chorou e gritou na
presença dos pais:
"- Vocês não sabem de nada, de nada,
ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o
que, algum dia, sabiam!..."
E eles abaixaram a cabeça, figuro que
estremeceram.
Porque eu desconheci meus Pais eram-me tão
estranhos; jamais poderia verdadeiramente
conhecê-los, eu; eu?"
Este é um conto chamado hermético. O Menino, que
num dado instante de sua vida conhece o Amor das
pessoas, entre as pessoas e pelas pessoas, acaba
renegando os pais "desconhecidos", tão formais, tão
neutros, tão sem nenhum destinamento senão ser
eles mesmos e nunca UM.
IX Fatalidade
tema: violência
"Foi o caso que um homenzinho, recém-
aparecido na cidade, veio à casa do Meu Amigo,
por questão de vida e morte, pedir
providências. Meu Amigo sendo de vasto saber
e pensar, poeta, professor, ex-sargento de
cavalaria e delegado de polícia. Por tudo,
talvez, costumava afirmar: "- Que a vida de um
ser humano, entre outros seres humanos, é
impossível. O que vemos , é apenas milagre;
salvo melhor raciocínio."Meu Amigo sendo
fatalista."
Quando o homenzinho apareceu, o Amigo estava no
fundo do quintal, exercitando-se. Dava tiros com
carabinas e revólveres, alternadamente. Dizia,
naquele exato instante em que o homenzinho viera
procurá-lo, que quem entendia de tudo eram os
gregos. A vida tem poucas possibilidades.
O homenzinho era caipira, podia ser visto isso pelo
traje e tinha entre "vinte-e-muitos e trinta anos."
"Miúdo, moído. Mas concreto como uma anta, e
carregado o rosto, gravado, tão submetido, o
coitado; as mãos calosas, de enxadachim. Meu
Amigo, mandando-lhe sentar e esperar,
continuoum baixo, a conversa; fio que, apenas,
para poder melhor observar o outro, vez a vez,
com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a
avaliação. Do que disse: - Se o destino são
componentes consecutivas além das
circunstâncias gerais de pessoa, tempo e
lugar... e o karma..."Ponto é que o Meu Amigo
existia, muito; não se fornecia somente figura
fabulável, entenda-se. O homenzinho se
sentara na ponta da cadeira, os pés e os
joelhos juntos, segurando com as duas mãos o
chapéu; tudo limpinho pobre."
Tinha apelido de Zé Centeralfe, que era homem de
obedecer leis, tinha um primo oficial de justiça.
Ameaçado, viera dar parte. Era casado, na igreja e
no cartório, sem filhos, morador no arraial do Pai-
do-Padre. Vivia bem com a mulher, gostava do
trabalho e daquela vida de casado.
Mas para lá, no arraial, fora dar um homem
chamado Herculinão Socó, que se engraçara com a
mulher do Zé... Ela não podia sequer botar o pé pra
fora de casa, que lá estava o deslavado vagabundo a
persegui-la.
Mudaram-se para o Amparo e lá arranjaram uma
casinha, uma roça, uma horta. Mas logo o homem
tornou a aparecer, por birra.
Fugiram de lá também, a custo.
O delegado insinua que sua carabina faria uma festa
naquele desordeiro desrespeitador.
E, tomado de coragem, o homenzinho pegou a
carabina e se foi.
Depois, seguiu o Zé. Viu quando este depôs
Herculinão na terra, arriado:
"O Centeralfe se explicou: "Este iscariotes..."
O delegado, convidou o Zé Centeralfe para o
almoço:
"Meditava, o Meu Amigo. Disse: "Esta nossa
Terra é inabitada. prova-se , isto...", -
pontuante."
IX. Seqüência
tema: amor
De madrugada, uma vaca viajava.
"Vinha pelo meio do caminho, como uma
criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor
grossa e afundada o tom intenso de azamar.
Ela solevava as ancas, no trote balançado e
manso, seus cascos no chão batiam poeira.
Nem hesitava nas encruzilhadas. Sacudia os
chifres, recurvos em coroa, e baixava a testa,
ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e para lá
do rio a terras de um Major Quitério, nos
confins do dia, à fazenda do Pãodolhão."
No Arcanjo, onde a estrada se aproxima do
povoado, foi notada e tomada por rês fujã; tentaram
prendê-la, feroz ela se desvencilhou e foi-se. No
riachinho do Gonçalves, parou para beber; mulheres
lavando roupa, deixavam tudo e corriam dela.
"Tio Terêncio, o velho,, à porta da casa,
conversou com o outro: "-Meu fio, q'vaca qu"é
essa? "- "- Nhô pai, e'a n'é nossa, não." Seguia
certa; por amor, não por acaso.
Só , assim, a vaquinha se fugira, da Pedra,
madrugadamente entre o primeiro canto dos
melros e o terceiro dos galos o sol saindo à sua
frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte
de um gado, transportado, de boiadeiros, gado
de coração ativo. Viera do Pãodolhão sua
querência. Apressava-se nela o empolgo de
saudade que adoece o boi sertanejo em terra
estranha, cada outubro, no prever os trovões.
Apanhara a boca-da-estrada para os onde
caminhos fronteando o nascente."
Quando seu Rigério soube que a vaca estava à
procura da antiga "querência"( lugar onde fora
criada e crescera), apenas disse: "Diaba". Um dos
filhos, percebendo que o pai a necessitava de volta,
tomou a sério o que era a busca.
"Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-
se, de repente, para aquilo: levar em brio e
tomar conta. Atou o laço na garupa. Disse: "É
uma vaquinha pitanga?"Pôs-se a cavalo.
Soubesse que por lá o botava, se capaz. Saiu à
estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia
desconhecidamente. Indo de oeste para leste.
Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe
dava de o bastante. Ante o morro, a passo,
breve, nem parava para os capins dos
barrancos"arrancava-os, mesmo em marcha,
no mesmo surdo inssossego. Se subia
cabeceava, num desconjuntado trabalho de si.
Se descia era beira-abismos, patas abertas, se
borneando. Após, no plano, trotava. Agora, lá
num campal, outras vacas se avistavam.
Olhava-as: alteou-se e berrou o berro encheu a
região tristonha. O dia era grande, azul e
branco, por cima de matos e poeiras. O sol
inteiro."
E a vaquinha ia pelo caminho, bebia num córrego,
pulou uma cerca, o rapaz, teimoso também, já vinha
perto. De repente, ele a viu e pôs-se a persegui-la.
A vaquinha procurando a sua querência, o rapaz
procurando o que agradasse ao pai. E na
perseguição, chegou à casa de um Major Quitério.
E lá viu a moça por quem se apaixonou. A vaca o
levara lá, quem diria, para cumprir seu destino.
Observe a linguagem, como é:
"O rapaz e a vaca entravam pela porteira-
mestra dos currais. O rapaz desapeava. Sob o
estúrdio atontamento, começou a subir a
escada. Tanto tinha de explicar.
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma roda de pessoas. Às quatro moças da
casa. A uma delas, a segunda. Era alta, alva,
amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-
se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o
acontecido. Da vaca, ele a ela diria: "É sua."
Essas duas almas se transformavam? E tudo à
sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o
mel do maravilhoso, vindo a tais horas de
estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus
passos."
XI. O Espelho
tema: misticismo e descobertas
"- Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma
aventura, mas experiência, a que me
induziram, alternadamente, séries de
raciocínios e intuições. Tomou-me tempo,
desânimos, esforços. dela me prezo, sem
vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um
tanto à-parte de todos, penetrando
conhecimento que os outros ainda ignoram. O
senhor, por exemplo, que sabe e estuda,
suponho nem tenha idéia do que seja na
verdade um espelho? Demais, decerto, das
noções de física, com que se familiarizou, as
leis da óptica. Reporto-me ao transcendente.
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.
Duvida? Quando nada acontece, há um milagre
que não estamos vendo."
O narrador se reporta ao leitor, diretamente, como
podemos observar. E conta fatos, uma série deles,
desafiando o leitor, a quem chama de "senhor"
( lembre-se aqui que esse expediente também é
usado em Grande Sertão: Veredas) a seguir seu
raciocínio tortuoso.
O narrador conta uma experiência que um dia viveu
num banheiro de um edifício público: ver-se num
determinado ângulo de um espelho, estranhar-se
até à náusea, desconhecer-se como criatura viva e
independente de si mesmo. É a mesma experiência
que vivemos quando, inesperadamente, nos vemos
sem que queiramos, desprevenidos, no espelho de
um shopping, numa vitrina. Nossa imagem, é a do
Outro, um ser alheio a nós, que em nós habita.
E narra, ainda, algo mais terrível: aos poucos, vai
perdendo sua imagem no espelho, ela vai se
enevoando tristemente, até que nada mais lhe reste.
Perder a identidade, olhar até que não se possa ver
a não ser nossas próprias máscaras, a cara que não
temos, o que nunca fomos:
"Mas, com o comum correr quotidiano, a gente
se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em
longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser,
não menos, que encoberta curiosidade me
picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a
afeitos de ficcionista, inflectindo de propósito,
em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo
que me olhei num espelho e não me vi. Não vi
nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como
o sol, água limpíssima, à dispersão da luz,
tapadamente tudo. Eu nào tinha formas, rosto?
Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O
sem evidência física. Eu era o transparente
contemplador? ... Tirei-me. Aturdi-me a ponto
de me deixar cair numa poltrona."
E começa a se exercitar para enxergar-se
novamente.
Toda existência humana é isso: fazer e refazer-se.
Não temos o rosto que nos atribuem, mas não
temos, também, o rosto de nossas múltiplas
máscaras sociais. E quantas máscaras usamos.
No viver, e viver é perigoso, segundo Guimarães
Rosa, fingimos demasiadamente, perdemos nossa
própria identidade até que, metaforicamente, não
possamos mais nos ver nos verdadeiros espelhos.
Cadê nosso rosto que se perdeu?
Cadê nossa verdadeira face diante do que somos,
vivemos e representamos?
É preciso muito esforço, depois das perdas, para que
voltemos a nos "enxergar". É quando, finalmente,
cansados de ser os outros, reconstruímos belamente
nosso rosto. Ainda que nos custe muito. O
aprendizado de "enxergar-se", identificar-se,
valorizar-se é esse. Pouco a pouco e passo-a-passo,
recapturamos o que há de perdido em nós nos
espelhos da vida.
"Sim? Mas , então, está irremediavelmente
destruída a concepção de vivermos em
agradável acaso, sem razão nenhuma, num
vale de bobagens? Disse. Se me permite,
espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor,
sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se
digne a dar-me, a mim, servo do senhor,
recente amigo, mas companheiro no amor da
ciência, de seus transviados acertos e de seus
esbarros titubeados. Sim?"
XII. Nada e a nossa condição
tema: loucura
Esta é mais uma estória que tem como tema a
loucura.
Um certo Tio Man'Antônio, rico fazendeiro dono da
Torto-Alto, bondoso ao extremo, depois que morre-
lhe a esposa Tia Liduína, também bondosa e sensata
pessoa, transforma-se.
"Sua mulher, Tia Liduína, então morreu, quase
de repente, no entrecorte de um suspiro sem ai
e uma ave-maria interrupta. Tio Man'Antônio,
com nenhum titubeio, mandou abrir, par em
par, portas e janelas, a longa, longa casa. Entre
que as filhas, orfanadas, se abraçavam, e
revestia-se a amada morta, incôngruo visitou
ele, além ali, um pós um, quarto e quarto,
cômodo e cômodo."
Derruba a mata da fazenda e só deixa delas as
árvores de que Tia Liduína mais gostava.
"Ah! ora, que e quem, pois e era uma enorme,
feita fantasia. Porque, aquém e além, como
árvores deixadas para darem sombra aos bois
no ruminar do calor, só e muito se divisavam,
consagradas, a vistosa sapucaia formidável, a
sambaíba sertaneja à borda da sorocaba, e,
para fevereiro-março e junho-julho, sem
folhas, sendo-se só de flores, a barriguda rósea
e a paineira purpúrea-quase-rubra,
magnificentes, respectivas. Outras, outras. Mas
, não mais, no qual lugar, que aqueleas que Tia
Liduína em vida preferiria amar seus bens de
alegria!"
E as filhas se espantaram quando, no ano seguinte
ao da morte da mulher, o pai se dispusesse a dar
uma festa para comemorar tal estranho aniversário.
E vieram os primos, e as moças se apaixonaram, se
casaram e foram embora, morar na idade. Tio
Man'Antônio ficou sozinho, mas não triste. Se se
aborrecia, se levantava e ia para algum rude
trabalho ou, então, punha-se nas asas da
imaginação, ficava imaginando coisas.
Rico, não estimava os bens.
Aos poucos, entre os pobres, pretos, brancos,
pardos e mulatos distribuiu suas terras, tudo feito
secretamente. Para as filhas e genros, mandava
dinheiro , dizendo fingindo vender as terras.
"De seu, nada conservara, a não ser a antiga,
forme e enorme casa, naquela eminência
arejada, edifício de prospecto decoroso e
espaçoso: e de onde o tamanho do mundo se
fazia maior, transclaro, sempre com um fundo
de engano, em seus ocultos fundamentos.
Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter;
fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros
amasse-os não os compreendesse."
Mas o beneficiados se acostumaram rápido, fazendo-
se de donos. Não o amavam e, assim sendo,
julgavam que ali, mesmo que ilhado naquela casa,
era ainda o dono e o senhor. Majestade.
Mas morreu, de repente, dormindo, Tio Man'Antônio.
Chorou-se, tocou-se o sino, chamaram os parentes.
De repente, à noitinha, incendiou-se de repente a
Casa, incendiaram-se os pastos e terra em volta,
ardeu o defunto até virar cinza.
"Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas e,
por elas, após ainda encaminhou-se, senhor,
para a terra, gleba tumular, só; como a
conseqüência de mil atos, continuadamente.
Ele que como que no Destinado se convertera
Man'Antônio, meu Tio."
XIII. O Cavalo que bebia cerveja
tema: loucura
Esta é a estória de um italiano chamado Giovânio;
narrada por seu caseiro Reivalino Belarmino, era
morador de uma chácara "meio ocultada,
escurecida pelas árvores, que nunca se viu
plantar tamanhas e tantas em roda de uma
casa."
Foi da mãe que Reivalino ouviu as histórias de como
o estrangeiro chegara àquelas bandas, no ano da
gripe espanhola, acautelado e espantado.
Os moradores da redondeza comentavam que ele
comia toda a espécie de imundície: caramujo, até
rã, com braçadas de alface. Jantava com a vasilha
entre as pernas grossas. Muita salada e a carne, que
à parte ele cozinhava.
"Demais gastasse era com cerveja, que não
bebia à vista da gente. Eu passava por lá, ele
me pedia: - "Irivalíni, bisonha outra garrafa, é
para o cavalo..."Não gosto de perguntar, não
achava graça. Às vezes eu não trazia, às vezes
trazia, e ele me indenizava o dinheiro, me
gratificando. Tudo nele me dava raiva. Não
aprendia a referir meu nome direito. Desfeito
ou ofensa, não sou o de perdoar a nenhum de
nenhuma.
Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que
atravessávamos por diante da porteira, para
pegar a pinguela do riacho. '"Dei'stá, coitado,
penou na guerra..."- minha mãe explicando. Ele
se rodeava de diversos cachorros, graúdos,
para vigiarem a chácara. De um, mesmo não
gostasse, a gente via, o bicho em sustos,
atipático o menos bem tratado; e que fazia,
ainda assim, por não se arredar de ao pé dele,
que estava, a toda hora, de desprezo,
chamando o endiabrado do cão: por nome
"Mussulino". Eu remoía o rancor."
O narrador nos informa que não entendia porque um
homem daqueles, cheio de catarros, rouco e gordo,
pudesse ter tido dinheiro para comprar terra cristã.
Quase que caminhar o homem não podia e fumava
uns charutos pequenos e catinguentos, muito
mascados e babados.
E cavalos tinha uns três ou quatro, bem
alimentados.
Gostava, no entanto, da mãe do narrador, a quem
tratava com benevolências, e quando ela adoeceu, o
estrangeiro ofertou ao narrador dinheiro. Nada
adiantou, a mãe morreu. E o homem convidou
Belarmino para trabalhar na chácara.
E toda vez que o rapaz passava por lá, o homem
pedia que ele comprasse cerveja para o cavalo.
Belarmino imaginava pelo lado de dentro o que
haveria naquela casa grande, sempre trancada, nem
para comer, nem para cozinhar.
Foi quando chegaram uns homens e o delegado os
apresentou como autoridades. Eles fizeram
perguntas, perguntaram se o patrão não tinha sinal
na perna de "argolão",marca dos presos.
Eram homens do consulado. Uns dias antes, o
estrangeiro andou com o empregado pela casa que
fedia, de tal fechada, mostrando coisas,
satisfazendo-lhe a curiosidade. O subdelegado
Prescílio apareceu por lá e perguntou ao Giovânio
que coisa era aquela de cavalo beber cerveja. e, no
dia seguinte, apareceu lá com um soldado, querendo
revistar a casa.
Ele abriu e, para o pasmo do subdelegado, num dos
quartos estava um cavalo grande, ancudo, feito
esses cavalos de brinquedo das crianças, com crinas
e tudo, bem no centro do quarto.
Belarmino viu, certa vez, o patrão chorar enquanto
comia, enquanto o ranho descia do nariz dele. Daí
foi tomado de pena e foi ao subdelegado e disse que
se mais alguém o incomodasse, ele saía na briga
com eles.
U m dia, o patrão o chamou, apresentando-lhe, de
costas no chão da sala, o irmão que ele abrigava ali,
sem ter dito nunca pra ninguém: "Josepe, meu
irmão..."
O delegado chegou para examinar:
"Mas, aí, se viu só o horror, de nós todos, com
caridade de olhos: o morto não tinha cara, a
bem dizer só um buracão, enorme, cicatrizado
antigo, medonho, sem nariz, sem faces a gente
devassava alvos ossos, o começo da goela,
gargomilhos, golas. "Que esta é a guerra..."-
seu Giovânio explicou boca de bobo, que se
esqueceu de fechar, toda doçuras."
O narrador diz que foi embora, não deu abraço no
homem não por nojo, mas por vergonha. Depois que
morreu, deixou a chácara para o empregado:
"Mandei erguer sepulturas, dizer as missas,
por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei
vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo
as árvores, e enterrar no campo o trem, que se
achava, naquele referido quarto. Lá nunca
voltei."
Nunca mais voltou ali, mas ainda bebe cervejas que
a casa, vendida, lhe paga.
XIV. Um moço muito branco
tema: misticismo/ o metafísico
"Na noite de 11 de novembro de 1872, na
comarca de Serro Frio, em Minas Gerais,
deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos
nas folhas da época e exarados nas
Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso
se projetou no espaço, seguido de estrondos, e
a terra se abalou, num terremoto que sacudiu
os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu
vales, matou gente sem conta; caiu outrossim
medonho temporal, com assombrosa e jamais
vista inundação, subindo as águas do rio e
córregos a sessenta palmos da plana. Após os
cataclismos, confirmou-se que o terreno, em
raio de légua, mudara de feições: só escombros
de morros, grotas escancaradas, riachos longe
transportados, matos revirados pelas raízes,
solevados novos montes e rochedos."
Morreram as criações, outras vagavam por aí.
E na Fazenda do Casco, que pertencia ao Hilário
Cordeiro, apareceu um moço coberto de trapos, em
"lástima de condições":
"Tão branco; mas não branquicelo, senão que
de um branco leve, semidourado de luz:
figurando ter por dentro da pele uma segunda
claridade. Sobremodo se assemelhava a esses
estrangeiros que a gente não depara nem
nunca viu."
Hilário Cordeiro o hospedou, perdida a memória do
moço, perdida a fala. Ficou com dó dele. Não lhe
puseram nome, posto já ter um, mas esquecido.
Parecia um bom homem, mas sem lembranças
nenhumas.
Levaram o rapaz na missa e um tal de Duarte Dias,
pai de uma linda moça chamada Viviana, não gostou
dele. Não gostava de ninguém.
Havia na cidade um negro recém-alforriado chamado
José Kakende, músico sem juízo, quando viu o rapaz
, disse:
"O rojo de vento e grandeza de nuvem, em
resplendor, e nela, entre fogo, se movendo
uma artimanha amarelo-escura, avoante trem,
chato e redondo, com redoma de vidro
sobreposta, azulosa, e que, pousando, de
dentro, desceram os Arcanjos, mediante rodas,
labaredas e rumores."
O moço muito branco, ao ver um cego na saída da
igreja, deu a ele uma coisa que trazia no bolso, a
semente de uma árvore, que plantada nos fins dos
acontecimentos aqui narrados, deu árvore linda, de
uma única e grande flor, sem que nunca desse
semente ou muda.
Apareceu, então Duarte Dias, e pretextando poder o
moço muito branco ser um de seus parentes
desaparecidos no cataclismo, quis levá-lo. Hilário
Cordeiro não quis, dizendo que o moço lhe trouxera
muita sorte. Mas eis que Viviana apareceu e o moço,
num gesto de quase-amor, lhe pôs a mão
espalmada no seio, delicadamente.
Duarte Dias, irado, bradou: "Tem que casar! Agora
tem de casar!"
Viviana, que era moça triste, teve nela despertada
( e para sempre) a Alegria.
Na missa de Nossa Senhora das neves, lá estavam o
moço e Duarte Dias que suplicava precisar levá-lo
embora. Motivo: tinha-lhe grande afeição.
E o moço, pegando-lhe a mão, levando o cego
Kekende consigo, foi até as terras dele e indicou
para que cavassem ali, perto de uma tapera, numa
olaria: acharam lá muitos diamantes. Duarte Dias se
transformou em homem bom e generoso.
Um dia, José Kakende contou que ajudara o a
acender nove fogueiras e que, num certo instante, o
moço criara asas e se fora, mal nascido o sol.
Duarte Dias morreu, Viviana conservou a alegria
para sempre.
O moço muito branco?
Ele cintilava, ausente.
XV. Luas-de-mel
Tema: amor
Um fazendeiro, cujo nome era Joaquim Norberto, dá
guarida a um casal que estava fugindo junto porque
o pai dela não aceitara namoro nem noivado.
O pai da moça era homem reconhecidamente duro,
mas Seotaziano recomendara que Joaquim os
abrigasse e ele o fez.
A qualquer instante o pai e os capangas poderiam
intervir e , nesse clima, realiza-se o casamento.
Durante o casamento, Joaquim Norberto é tomado
de saudades do seu próprio casamento com Sa-
Maria Andreza e dispõe-se a recordar, com ela, a
lua-de-mel.
O título refere-se ao fato de que duas luas-de-mel
ali se passam nesta noite: a dos fugitivos e a de
Joaquim Norberto e a esposa.
No meio da noite , avisam o pai do "fato
consumado", e o major aceita de bom gosto,
convidando a todos para uma festa.
XVI. Partida do audaz navegante
Tema: infância
"Na manhã de um dia em que brumava e
chuviscava, parecia não acontecer coisa
nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na
cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena
casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda
de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos
com torresmos e descascar os mamões
maduros e descascar os mamões maduros.
Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés
podiam calçar as chinelas de Pele. Seus
cabelos davam o louro silencioso. Suas
meninas-dos-olhos brincavam com bonecas.
Ciganinha, pele e Brejeirinha- elas brotavam
nu galho. Só o Zito, este, era de fora; só
primo."

Pele é a filha mais velha, carinhosa e gentil;


Brejeirinha é a menor, sempre dando trabalho e
Ciganinha, sempre em estado de sonho, graças aos
seus namoros com o primo Zito.
Brejeirinha é a protagonista e , durante a chuvinha,
inventara uma história sobre um audaz navegante.
Pele rezara a Santo Antônio.
Assim que cessa a chuva, pedem à Mãe para ir
espiar o riachinho que se enchera. Brejeirinha vê um
cogumelo e dá-lhe o nome de audaz navegante,
enfeitam o cogumelo de cuspe, folhinhas de bambu,
ramos, gravetos e florezinhas amarelas. Colocam lá
também um cliclete. O Zito põe uma moeda. É dessa
forma que o audaz navegante já pode partir.
Brejeirinha inventa uma moça e diz que ambos se
amam, que assim, rio abaixo, ele não vai sozinho,
então o Audaz Navegante, nome dado ao cogumelo,
já não vai partir sozinho.
XVII. A Benfazeja
tema: loucura
Num lugar, perdido no meio do mundo, vivia uma
mulher velha e muito feia, chamada Mula-Marmela;
magra, feia demasiadamente, era guia de um cego
chamado Retrupé. O cego pedia esmolas rudemente.
Diziam que Mula-Marmela tinha cometido um crime
hediondo: matara o pai do cego Retrupé, que era
um monstro de perversidade. O Mumbungo, marido
que Mula-Marmela assassinara.
O cego, de maus modos, pedia esmolas:
"O Retrupé, com seu encaninzar-se,
blasfemífero, e prepotente esmolar, ninguém
demorava para dar dinheiro, comida, o que ele
quisesse, o pão-por-deus. "- Ele é um tranca! o
cínico e canalha, vilão. Mas só, às vezes,
alguém de longe, desabafava. O homem
maligno, com cara de matador de gentes.
Sobre os trapos, trazia um facão, pendente.
Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E
gritava, com uma voz de cão, superlativa. Se
alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava
o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas
nunca ouvia tudo; não sabia nem podia.
Tinha medo, também; disso vocês nunca
desconfiaram. temia-a à mulher que o guiava."
O Mumbungo era homem mau , "monstro de
perversias". Dizem que "esfaqueava rasgado".
Gostava da mulher, queria-a e temia-a, da mesma
forma que o filho hoje o faz, temendo.
O narrador observa que, depois da morte do
Mumbungo, podem viver em paz. Por causa da
benfazeja, a Mula-Marmela, que praticara o bem
tirando aquele demônio do marido do mundo. Antes
de Retrupé ficar cego, ia pelo caminho do pai,
precisando de sofrimento e sangue para estar no
mundo. Foi aí que, dizem, cegou aquele filho do
diabo.
Um dia, Retrupé tentou matar sua guia, acordado no
meio de uma febre, estonteado. Mas dizem também
que Mula-Marmela, apesar do sofrimento,
amparando-o e gritando "meu filho!", apressou-lhe a
morte.
E partiu Mula-Marmela da cidade, sozinha, a fim de
espiar suas culpas ou, quem sabe, desfrutar a vida
como A benfazeja.

XVIII. Darandina
tema: loucura
O narrador é um médico-residente num hospício ( o
Instituto).
Como se dá a história, que é tragicômica e é narrada
por um mordaz médico que em tudo põe os olhos e
nada deixa escapar?
Assim: um homem muito bem posto, acusado de
roubar uma caneta e, perseguido por outros, sobe
com rapidez numa palmeira-real. Os funcionários do
hospício ficam observando aquilo e decidem que ele
é meio louco.
Um médico plantonista, que não é o narrador, diz
que o homem é secretário das Finanças Públicas, o
que é contado à multidão que, achando coerente o
que ele faz, devido ao seu trabalho, aceita o fato
como normal. O verdadeiro secretário recebe pedido
de desculpas. E uma outra multidão, agora, formada
pela polícia, corpo de bombeiros, capelão,
enfermeiros, padioleiros, chega.
Um professor, Dartanhã, aproveita a darandina
( confusão) e contesta a autoridade do diretor do
hospital. Enquanto tudo acontecia lá embaixo, o
homem , lá em cima, dizia:
"- O feio está ficando coisa..." (...) Querem
comer-me ainda verde?!"
Tira os sapatos, a roupa, os bombeiros tentam
resgatá-lo, os cinegrafistas o filmam, jornalistas e
fotógrafos também estão lá. E o doido, lá em cima,
resolveu, então, balançar-se na palmeira,
recebendo, agora, os aplausos do público.
Mas, num momento, o doido recuperou o equilíbrio
mental. Só que nem o público, nem os diretores,
nem os médicos aceitavam isso, assim, de repente.
Pretendiam linchá-lo. Foi ai que o louco deu gritos
contra a ordem estabelecida e gritando "Viva a luta!
Viva a liberdade!"despencou de lá de cima nu como
viera ao mundo. , mas foi amparado pela multidão.
De igual, depois daquilo, só mesmo a palmeira.
XIX. Substância
tema: amor
Esta é mais uma estória de amor destas Primeiras
Estórias . Quem fazia o polvilho mais branco da
fazenda de Sionésio era Maria Exita:
"Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão,
receosa de que o patrão nem os outros a
aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira.
Porque, contra a menos infeliz, a sorte
sarapintara de preto portais e portas: a mãe,
leviana, desaparecida de casa; um irmão,
perverso, na cadeia, por atos de morte; o
outro, igual, feroz, foragido, ao acaso de
nenhuma parte; o pai razoável bom-homem,
delatado com a lepra, e prosseguido, certo
para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe
nem afastados parentes(...)"
E lá ficava Maria Exita, trabalhando o melhor
polvilho, o mais branco, o mais alvo entre todos os
polvilhos que já puderam, um dia, fazer.
Sionésio recebera a fazenda de herança e, devido à
escassez da produção de qualquer outra coisa,
plantava mandioca e em tudo punha seu olho de
dono., não deixava de trabalhar nem aos domingos
e feriados.
Um dia, numa festa, encontrou Maria Exita, em
quem jamais reconheceria aquela menina feia e
magra que em suas terras chegara, largada.
Apaixonou-se por ela. E num dia lindo, aberto e
claro, foi até as pedras onde ela trabalhava e propôs
casamento.
Recebeu em resposta um largo sorriso:
"Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca
precisar de se separar? Voc6e, comigo, vem e
vai?"
E ela: "Vou, demais."
(...)
Avançavam, parados, dentro da luz, como se
fosse no dia de Todos os Pássaros."

XX.Tarantão, meu patrão

tema: loucura
O narrador deste conto é Vaga-Lume, ajudante-de-
ordens de Iô João-de-Barros-Dinis-Robertes, a
personagem protagonista de nosso conto. Iô João
era um bom homem, D. Quixote sertanejo que, já
velhinho, meio aluado, precisava dos cuidados de
alguém.
Cismava com tudo.
Acordou, certa feita, e disse que ia matar o
Magrinho, que era seu sobrinho-neto, médico que
lhe dera injeções necessárias e aplicara-lhe uma
lavagem intestinal.
Para tanto, escolheu um cavalo e pediu ao Vaga-
Lume que arreiasse outro, a fim de acompanhá-lo.
E, esbravejando que fizera um pacto com o
Demônio, lá se foi para a cidade, fincando a espora
no animal.
Vagalume, desesperado, ia atrás do velho, com
medo que despencasse do baio imponente. Na
pressa de matar o sobrinho médico, o velho calçara
um pé de botina amarela e outro de bota preta. E
em vez de um facão, trazia uma faca de cozinha
sem-graça.
Louco, tomado, segundo ele mesmo pelo Demo,
consegue arregimentar 14 coitados pobres que
acreditam nas suas doideiras. Vão para a cidade em
busca de Magrinho. Havia uma festa lá. os parentes
acharam graça, loucura, quando o velho invadiu a
festa e sentenciou:
"- Eu pido a palavra..."
Fez um discurso esquisito, que a todos comoveu. Ao
terminar. Todos os abraçaram e ele comeu
fartamente, bebeu, dançou. Não houve Demo, não
houve morte.
E depois foi embora. Para morrer.
XXI. Os Cimos
tema: infância
Esta estória termina os 21 contos de que se forma
este livro; e parece completar o que se anuncia no
primeiro desta série de contos, sobre o Menino.
Está dividida em 4 partes: O inverso afastamento,
Aparecimento do pássaro, O trabalho do pássaro e O
desmedido momento.
O Menino está sofrendo porque a Mãe está doente,
longe dele, numa cidade muito distante. esta dor é
pura depuração, parte do rito da iniciação do
crescimento e do conhecimento do mundo.
O tucano parece ser o símbolo do desconhecido,
mas também do encantador demais. Quando o tio,
recebendo notícias, anuncia que a Mãe do menino
está bem, não corre mais perigo, a imagem do
pássaro, da luz do dia, da natureza se fundem numa
só, em plenitude.
E o Menino, feliz, sabe que não estará sozinho outra
vez.
"E vinha a vida."
Profa. Esther PS Rosado

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ESPAÇO ABERTO

RÁDIO-AULAS

PORTUGUÊS
PROF. JADIEL HORTEGAL

ANÁLISE DA OBRA LITERÁRIA

João Guimarães Rosa (Famigerado)

Formado médico, exerceu pouco a profissão. O domínio de vários idiomas levou


Guimarães Rosa à carreira diplomática. Prestou concurso para o Itamarati e, em
1938, já era cônsul-adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha. Em Bogotá, foi
secretário da Embaixada Brasileira.
Em 1952, em excursão ao Estado do Mato Grosso, conviveu com vaqueiros do
oeste do Brasil e começou a realizar um projeto majestoso: o livro Grande sertão:
veredas, que publicou em 1956.

Conjunto da Obra

Após a publicação dos contos de Sagarana, em 1946, Guimarães Rosa estabelecia


na Literatura Brasileira uma completa transformação linguística, que se iria
intensificado sempre à medida que suas outras obras de ficção iam aparecendo.

Caracterizam sua obra:

a) Manejo da palavra e deslocamento da sintaxe: O ciclo de novelas de corpo de


baile - desdobrado em Manuelzão e Miguilim. No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites
do Sertão - e o romance Grande sertão: veredas apresenta uma alteração profunda
no manejo da palavra, que consiste , sobretudo, numincomum deslocamento da
sintaxe, no emprego de um vocabulário ora arcáico, ora neológico, na ousadia
mórfica, que recria a linguagem.
b) Transcendência do regionalismo: Os elementos folclóricos pitorescos e
meramente documentais, lugares-comuns da maioria das obras regionalistas,
ganhariam novos significados com Guimarães Rosa: o escritor lida com eles de uma
forma inusitada, situando-se entre a realidade e a fantasia, localizando-se num plano
mítico.
c) Reinvenção do sertão: Questionando a linguagem da ficção e reunindo elementos
linguísticos da própria realidade sertaneja, reinventa o sertão, chamando a atenção
em todas as obras, mas principalmente em Grande Sertão Veredas para o fato de
que "o sertão é o mundo". Transforma, assim, esse território num espaço-metáfora,
em que tudo pode acontecer.
d) Inserção de momentos de "epifania": São histórias , historietas, eventos que
"revelam" à personagem aspectos antes não percebidos.
e) Temática universalizante: ao transformar o sertão no mundo, Guimarães Rosa
torna-o universal, fazendo caber dentro dele todos os temas . Ao mesmo tempo, "o
sertão é dentro da gente" , ou seja, é a interpretação que cada um de nós tem do
mundo.

Famigerado

Foi de certa feita o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel.
Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha
porta, equiparado, exato: e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance , insolitíssimo. Tomei-me os nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com
cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco curto pesadamente. Seu cavalo
era alto, um alazão; bem arredado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida [ ... ] O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse que não, conquanto os costumes.
Conservava-se de chapéu [ ... ] Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta [ ... ] Ele falou:
- "Eu vim perguntar a vósmecê uma opinião sua explicada ..."
Carregara a celha. Carregava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu [ ... ]
- "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueira ... Estou vindo da
Serra ..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira ? O feroz de histórias de léguas com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo [ ... ]
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente.
Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava.
Cabismeditado. Do que, se resolveu, levantou as feições. Se é que se riu: aquela
crueldade de dentes [ ... ] E pá.
- "Vosmecê me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é:
fasmisgerado ... faz-me gerado ... falmisgeraldo ... familhas-gerado ... ?
Disse, de golpe, trazia entre dentes, aquela frase. Soara como riso seco. Mas, o
gesto, que se seguiu, imperava-se de toda rudez primitiva, de sua presença dilatada.
Detinha minha resposta, não queria que eu a desse por imediato. E já aí outro susto
vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem [ ... ]
- "Saiba vosmecê que sai ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas,
expresso direto pra mor de lhe perguntar a pergunta , pelo claro ..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o
legítimo o livro que aprende as palavras .... [ ... ] Agora, se me faz mercê , vosmecê
me fale, no pau da pérola, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
Famigerado? [ ... ] Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até
então, mumumudos. Mas, Damázio:
- "Vosmecê declare. Estes daí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo,
pra testemunho."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria escrito o caroço: o verivérbio.
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável" ...
- "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
Vilta nenhuma, neenhum doesto. São expressões neutras , de outros usos ...
- "Pois ... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito ...
- "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era pra se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse! ...
- "Ah! bem! ..." soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas . Subiu em si degradava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: "Vocês podem ir, compadres.
Vocês escutaram bem a boa descrição ..." e eles prestes se partiram. Só aí se
chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:
- "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída! " [ ... ]. Oh, pois.
Esporou, foi-se o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.
(Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio. 1969. p. 8-13)
GEOALPHA PRATICANDO EXERCÍCIOS

01. Assinale a alternativa que se refere a João Guimarães Rosa.

a) Uma fusão de local e universal, de presente e eterno, expressa em uso


absolutamente revolucionário da linguagem, aproxima a sua obra das grandes
experiências literárias da cultura moderna.
b) É verdadeiramente mestre, pelo perfeito balanceio da ternura e do humor, o
senso psicológico e o encanto do estilo, em que se pressente a marca de Machado
de Assis.
c) Inspira-se, como já se observou, numa espécie de cristianismo primitivo. O
registro do cotidiano, nos limites de uma grande metrópole, é feito sempre através
do ângulo de visão das personagens.
d) Sua obra de ficção tem um caráter predominantemente memorialista. Nela se
acentuam os contrastes de requinte e fartura das casas-grandes com a
promiscuidade e a miséria das senzalas.
e) Sob as sugestões da prosa renovadora de Oswald de Andrade, é mais
espontâneo e comunicativo do que seu inspirador. Firma, aos demais uma posição
crítica sobre o Modernismo.

02. Identifique a alternativa que se refere a Guimarães Rosa.

a) Dentro de uma tendência gasta como o regionalismo, conseguiu criar uma


literatura de valor universal, revolucionando mesmo nosso próprio código lingüístico.
b) É pelo pitoresco que se afirma, uma vez que exerce como nenhum outro escritor
a capacidade de pintar paisagens com um colorido de apurado romantismo.
c) A crueza de seus temas e de sua linguagem afasta-o por certo de qualquer
poesia, mas identifica-o como digno herdeiro de nossos melhores autores realistas.
d) O convencionalismo de sua linguagem é compensado pela penetração
psicológica que o torna um dos maiores criadores de tipos humanos da nossa
literatura.
e) Como autor de vanguarda, soube expressar o ritmo da cidade moderna, as
inquietações do homem contemporâneo e o destino sombrio das grandes massas
proletárias.

03. Em Famigerado, qual a opção que apresenta a principal significação de registro


da obra.

a) o jagunço
b) a linguagem
c) a cidade regionalizada
d) a pobreza
e) o psicologismo

04. Tendo como base a questão anterior e a sua resposta correta, marque a opção
que revela dois mundos que estão sempre em confronto no conto.

a) o da oralidade e o da escrita
b) o da escrita e o do homem regionalizado
c) o da política e o da sociedade
d) o da cultura e o do jagunço com seus hábitos e costumes
e) c e d estão corretas

05. Guimarães Rosa utiliza-se, no texto, de alguns recursos comuns à linguagem


poética, além de neologismos, arcaísmos, vocabulário insólito, etc. Encontre
exemplos desses elementos.

volta

Edição nº15 - 12/11/99


João Guimarães Rosa, Uma Questão de jeito...
O jeito de ler o Rosa é um segredo que poucos, tirante os
iniciados, os do ramo, conseguem desvendar.
Trata-se de jeito mesmo, de um próprio modo não só de
entonar as palavras devidamente, mas também de dar aqueles
nós na língua, comendo letras ou inteiras sílabas, os espaços
certos entre as palavras, como só o conseguem os caipiras,
tabaréus, sertanejos, gente jacu, do mato.
As palavras, em si, além da sua sonoridade, às vezes não
trazem consigo pendurado nenhum significado preciso. Ou
melhor, trazem sim, mas não estão no comum dos dicionários,
pertencem a certo código impublicado do sertão. Despertam,
entretanto, uma sensação, uma desconfiança de que podem
significar mais do que simplesmente dizem. A questão é senti-
las, desnudá-las, traduzi-las para a linguagem entendível do
cidadão. Rosa, como poucos, diz coisas que sentimos, coisas
que nos remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa
vem, e diz no exato o que é aquilo, como se forma, a cor e o
cheiro que tem, o volume, e como vem à tona. Ele cria o
estímulo, a diferença de pressão necessária para esguichar pra
fora os sentimentos que nem suspeitávamos.
Tenho ouvido muita gente dizer que tem dificuldades para
entender o que o Rosa diz. Acham-no intrincado, a fala do
avesso, rebuscado, complica o que é simples. O fato é que o
Rosa não diz, ele sugere, desperta, alerta, é um impressionista
com sua língua própria, com pinceladas só dele.
Já vi gente desistir de lê-lo por isso. Não culpo quem assim
pensa, afinal que culpa tem quem nunca conviveu com gente
da espécie bruta que o Rosa cria no seu viveiro.
Quem vive no meio de computadores, tevê, cartões de crédito,
lê Nietzsche, Kafka e Shakespeare, quem está habituado à
leitura técnica, ao convívio com cidadãos informados e
modernos, deve ter mesmo alguns problemas para entendê-lo.
Não falo do literato, este tem a obrigação de saber o que está
fazendo. Estuda, pesquisa, e chega ao entendimento por meios
inacessíveis ao vulgo, ao estudante, ao leitor sem pretensões
literárias, filológicas ou filosóficas.
Para esses que lêem por prazer ou necessidade íntima, ou
mesmo pelo simples hábito de passar o tempo fuçando
páginas, digo uma coisa: o jeito de ler o Rosa é em voz alta,
buscando as inflexões, a entonação, o sotaque próprio do
jagunço, do sertanejo. Como um ator interpretando um papel,
impostando a voz, fazendo as caretas, gestos, franzindo a
testa, estendendo a mão para açambarcar o sertão todo inteiro
como se dono, o vasto mundo do Rosa, que no fundo é o
mundo.
Há quem tenha a sorte de ter sido criado no mato, esses já
vêm com uma certa vantagem: já têm a balda e a capacidade
de entender de ruídos, de cheiros, de vozes de animais, de
espécies de árvores, de ver o tempo empiricamente olhando
pro céu e dizendo: "hoje chove", sem a necessidade de
explicações maiores. O enviesado pensamento do matuto, a
sua codificação. É puro instinto. Esse é o tipo com qual Rosa
convive e universaliza, que reponta sempre aqui e ali, em cada
conto. O seu universo é ilimitado, como todo universo o é, ou
deveria ser. Capaz o jagunço de sentir coisas shakespearianas,
siberianas, desérticas, borgeanas, tudo, enfim, que um homem
pode sentir, sem a mínima exigência de legendas ou de
explicações complexas.
Rosa escarafunchou a fineza do espírito do sertanejo, o
tortuoso meio do seu raciocínio, o seu vezo econômico da
expressão pelas palavras. Um silêncio pode ser mais
significativo que muitas palavras, relevado aqui o repisado
lugar-comum.
Veja, por exemplo, o Soropita. Um homem com sua história de
valentias, anônimo num mundo circunscrito a um arraial e uma
cidade amiudada, no meio do nada. Cheio de dúvidas,
arrastando consigo um passado violento; mas gentil, amoroso,
cheio de cuidados para com a mulher que foi prostituta; o que
aceita, mas não admite nem de longe que outros saibam. No
trato com o cavalo é jeitoso, ele o cavalo se entendem à
perfeição mediante sutilíssimos toques, mensagens cifradas
para os desavisados, mas língua entre eles.
Rosa, já no começo de Dão-lalalão (O Devente), diz:
"Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo, tenteava-lhe
leve leve o fundo do flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo
só com a borda do pé e medindo mínimo achego, que o animal,
ao parecer, sabia e estimava."
Pode que exista meio de dizer isso melhor, mas eu duvido.
Essa linguagem, se lida no tom certo, é entendida pelo mais
simples caboclo. Rosa considera o cavalo como "alguém", não
uma simples coisa, animal de carga. Para ele o cavalo é um
parceiro.
Veja como ele, depois de exaltar as variadas qualidades de
Doralda, a mulher do jagunço, que gabava o trato que Soropita
destinava ao cavalo, encerra o parágrafo:
"Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé".
Saíam, Soropita e o seu cavalo, ele e Soropita.
Cada qual, quando exigido, tacitamente fazendo a sua parte:
"Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo
que o toque da bota do cavaleiro lhe segredasse um sussurro,
o cavalo ampliava o passo, sem escorrinhar cocéga..."
"...amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas,
governando-o nos trechos de fofo chão arenoso, e bambeando
para ceder à vontade do animal ladeira acima, ou nos
embrejados e estivados..."
Difícil entender isso? Apesar de palavras inexistentes
"escorrinhar", por exemplo - há algo ininteligível? Nada. É
como se ouvíssemos Soropita falando sua língua de "dia de
semana", como Rosa mesmo diz em "Famigerado", ou língua
em mangas de camisa e pé-no-chão, como disse Lobato. Clara
como água de bica que verte do barranco.
Quanto ao aspecto literário, suas inferências, seus arquétipos,
claro que Rosa é profundo demais pra muita gente. Ele era de
uma cultura soberba, umas tantas línguas que conhecia,
viajado no mundo e no sertão de Minas. Mas mesmo assim, o
entendimento de suas "estórias" é mais uma questão de
sensibilidade do que de conhecimento.
Ele mesmo espelha isso, na voz de Riobaldo Tatarana, dizendo
que não sabe nada, mas...
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que
nada não sei. Mas desconfio de muita coisa."
Questão de jeito mesmo.
Wilson Morais
wmorais@navedapalavra.com.br

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Conferências

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O ROMANCE ENTRE O ESPAÇO GEOGRÁFICO E O TEMPO HISTÓRICO-


SOCIAL:
Das matrizes gilbertianas a outros avanços

Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro

Antes de iniciar gostaria de esclarecer dois pontos. Sou muito verborrágico e corro o
risco de perder-me. Considerando a premência de tempo (acrescida da expectativa
criada com a visita do Ministro) não pretendo ler - o que me desagrada muito - mas
vou tentar acompanhar o texto. Por outro lado, o prazer de estar agora aqui neste
seminário está acoplado a um curso que, sob o patrocínio desta e da Fundação
Gilberto Freyre, estou ministrando neste momento. O tema aqui focalizado está
associado também à temática do curso.

O projeto de sondar o conteúdo geográfico nos espaços romanescos é, em verdade,


mais ambicioso. O universo do Sertão de Guimarães Rosa, visto aqui no Corpo de
Baile, é visto comparativamente. Em contraponto, focalizo também o Vidas Secas,
de Graciliano Ramos e O Cortiço, de Aluízio de Azevedo. Pareceu-me que o
contraste entre a rude vida rural do Nordeste e aquela vida marginal no nascedouro
da metrópole brasileira seria uma oportunidade valiosa para extrairmos algo de uma
possível visão "tropicológica".

Ao final, por ocasião dos debates, talvez tenhamos tempo de - recorrendo à ajuda da
projeção de algumas transparências - extrair alguns tópicos desta comparação.
Logo no início de Casa-Grande & Senzala, ao tratar da bipolaridade ou indecisão
étnica e cultural do português, entre Europa e África, Gilberto Freyre, antes da
discussão dos cientistas sobre este problema, enaltece a capacidade de Eça de
Queiroz em "surpreender magnificamente o luxo de antagonismos no caráter
português" no Gonçalo de A Ilustre Casa de Ramires.

Entre as vicissitudes climáticas mediterrâneas da Península Ibérica e o cadinho ou


tecitura de culturas várias - espaço geográfico e tempo histórico - o personagem de
um "romance" é tomado, sem receio, como símbolo arquétipo do colonizador dos
trópicos por excelência.

Não apenas aí neste trecho introdutório, mas em tão repetidas vezes a ponto de
configurar-se como atributo específico da obra, o sociólogo-antropólogo não
estabelece fronteiras entre os universos da ciência e da arte.

Neste difícil mundo do final do Século XX, enquanto várias "geografias" se


multiplicam, superpõem, conflitam ou se opõem na difícil tarefa de entendê-lo, está
emergindo uma contracorrente que, ao lado das tendências neopositivista,
estruturalista, materialista histórica, rotula-se de "humanista". Entre os reclamos de
rigor científico via quantificação e dos impulsos ideológicos em prol de "justiça
social" o reaparecimento de um velho paradigma vem mostrar o quanto está sendo
difícil e divergente a discussão-interpretação do mundo de hoje.

No momento exato em que se dá como arcaico e obsoleto o sabor lablanchiano da


"personalidade das paisagens e regiões" emerge, simultânea e concomitantemente
na Geografia e na Crítica Literária, em diferentes lugares, um esforço de
aproximação entre Geografia e Literatura.

Sem querer descartar os apelos individuais de geógrafos com Y-Fun Tuan (e mesmo
antropólogos como Lewis) quero apontar aqui dois esforços coletivos oriundos da
França e do Reino Unido. O primeiro caso provém da crítica literária e é resultado de
um colóquio organizado entre os dias 8 e 9 de maio de 1981 no Centro de Estudos
do Romance e do Romanesco na Universidade de Picardia, em França. (Crouzet,
Michel, Organizateur, 1981). Aquele do Reino Unido é iniciativa de geógrafos e se
incorpora numa coletânea (Pocock, Dougls C.D. Editor, 1985) intitulada Humanitic
Geography and Literature. Os críticos literários perseguem o que rotularam de
"Espaços Romanescos". Os geógrafos procuraram fazer Ensaios Sobre a
Experiência do Lugar.

Que isomorfismo poderíamos querer encontrar em coisas tão díspares quanto a


crítica literária e a geografia uma vez que a literatura é criação artística e a geografia
é, ou pelo menos pretende ser, construção científica? A noção de localização
espacial configurada no "lugar" é o denominador comum nessa possível aliança.

Procurando resumir o conteúdo daquelas duas obras em seus aspectos


fundamentais obter-se-ia o seguinte.

Os críticos literários, também eles, achavam-se ante o conflito, quase um sisma dos
espaços romanescos. Confrontando-se as idéias de Melle de Scudéry (Século XVII)
segundo a qual "il est certain que pour bien entendre les choses qui se passent, il
faut que l'espirit conçoive les lieux ou elles sont arrivées" ao princípio espacial do
romance, proposto por Michel Butor (atualidade) segundo o qual a ficção "sinscrit en
notre espace comme voyage, et que l'on peut dire à cet égard là le thème
fondamental de notre littérature romanesque" é constatar a oponência entre uma
concepção clássica, outra moderna. Tornava-se preciso que se atingisse a noção de
um "anti-espaço", ou seja, a passagem de uma plenitude a um vazio insistente. O
espaço capaz de qualificar estava reduzido, ele próprio, a algo sem quantidade, e o
jogo dos termos espaciais tornava-se um jogo sobre o sentido ou a ausência de
sentido. O conjunto de 14 trabalhos foi grupado, assim, em três subconjuntos: 1)
Figuras do Espaço; 2) O Sentido do Espaço; 3) Um antiespaço romanesco. Embora
o segundo subconjunto tenha maiores afinidades com os "lugares" no sentido
geográfico, a discussão toda é extremamente valiosa, para a Geografia que
compartilha, hoje, uma equivalente confusão do que seja seu "espaço".

A construção do "lugar" ou do conjunto de lugares que um romance contém levaria à


consideração de que o "espaço" é ao mesmo tempo meio do sentido e também seu
objeto. A concretude do lugar, em tanto que qualificado concretamente por um
espaço exterior, geográfico, seria uma necessidade corpórea, que se realiza num
continuum local mais ou menos definido e que a percepção do leitor tende a
identificar a uma realidade concreta, geográfica. Cada tradição cultural fornece uma
visão particular de mundo que o reveste de uma estrutura espaço-temporal.
Começando pela casa - fornecedora da noção corpórea de abrigo e segurança - os
lugares se ampliam à cidade, ao campo, região, País, ou seja, em diferentes
unidades escalares que podem ser definidas geograficamente. A este espaço
exterior se contrapõe aquele outro, interno, de dentro do indivíduo, para a passagem
dos quais se realiza aquela "viagem"(ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória física
e moral, externa e interior, real e simbólica que pode conduzir a noção do cheio
quanto do vazio. À noção da realidade geográfica juntar-se-ia aquela outra,
antropológica do imaginário.

Por outro lado, as experiências (12 experimentos) dos geógrafos no campo da


literatura assentam no princípio básico de que excetuadas a ficção científica, a
fantasia e a alegoria - a noção de "lugar", embora seja obra de imaginação e criação
literária, contém uma "verdade" que pode estar além daquela advinda da observação
acurada, do registro sistemático de fatos.

Esta capacidade paradoxal encontrável na literatura ou a ela conferida pelo


geógrafo, brota de um reconhecimento de que a essência ou a verdade do mundo
transcende a interpretação de dados coligidos por geógrafos, historiadores e
sociólogos. Não se trata, de nenhum modo, de substituir a análise científica pela
criação artística, mas apenas retirar desta (literatura) novos aspectos de
interpretação; reconhecê-la como um meio de enriquecimento.

O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica) advinda


daquilo que se atribui à revelação literária é a natureza holística identificável quando
a literatura atinge foros de universalidade, ou seja, quando ela transcende a um caso
particular de uma dada região - fisicamente varia - para falar da condição humana,
basicamente una.

Para uma Geografia cada vez mais antropocêntrica importa menos a distinção entre
as diferentes facetas do "homo economicus", capitalista-socialista, dominador-
dominado, e mais o homem verdadeiro e inteiro, homem humano. Nisto repousa o
caráter dessa emergente Geografia Humanística, ligada ela a um "novo humanismo"
que vise não o homem ocidental judaico-cristão capitalista, mas tentando alcançar o
"homem-universal".

Se Flaubert, um inconteste desbravador de novos caminhos à criação literária,


admitia que a poesia é tão precisa quanto a geometria e que a indução é tão
acurada quanto a dedução, o geógrafo Leroy Ladurie[1] supõe que embora
mesclando fatos exatos e erros (às vezes voluntários por motivação estética) pode-
se esperar da criação literária, senão a exatidão, pelo menos uma certa coerência e
justeza de conjunto na abordagem geográfica e econômica do romance.

Como extrato final poder-se-ia apontar a indicação de Pocock de que "o


comprometimento do geógrafo com a literatura na sua preocupação com o estudo
do lugar, varia ao longo de um continuum entre a configuração da paisagem e a
condição humana".

Apoiando-me no exemplo dado pelo fundador e sistema-tizador da Tropicologia,


caracterizada antes de tudo pela grande abertura à interdisciplinaridade, debate e
harmonização dos saberes convergentes para o entendimento do homem situado
nos trópicos, trago aqui neste Seminário esta tese que, não sendo de todo nova,
parece necessária aos nossos propósitos de pensar tropicologicamente.

Trata-se, sem dúvida, de uma ousadia. Tenho aspirado, através de cerca de


quarenta anos, a tornar-me um geógrafo, para o que me tenho dedicado a
investigações mais ligadas ao domínio da natureza, ou seja, dos "lugares" criados
pelo homem. Talvez não possa obter créditos pela defesa do lado humanístico da
Geografia. Careço de qualquer credencial para penetrar no campo da criação
literária. Mas, talvez mesmo por tudo isto - com a petulância que só o ignorar
confere - esteja eu aqui, armando uma trama, mergulhando em nossa literatura e
procurando sustentar a validade da aliança entre Geografia e Literatura, em prol da
"consciência tropicológica" que nossa condição de maior país tropical exige de nós.

O meio utilizado para defesa desta suposição seria o de recorrer a um leque mais
variado de exemplos, o que certamente levaria a um extravasamento do tempo
disponível neste Seminário.

Assim sendo minha opção recai num aspecto da obra de João Guimarães Rosa que,
pela sua amplidão e riqueza, certamente poderá suprir a argumentação que
pretendo. Trata-se do seguinte experimento, para não exorbitar pretendendo o
"ensaio".

A Percepção holística da realidade do sertão a partir de um mosaico romanesco: o


corpo de baile, de Guimarães Rosa

Dez anos após a publicação de Sagarana (1946) Guimarães Rosa lançava ao


mesmo tempo (1956) Corpo de Baile e Grande Sertão:Veredas. Por sua inteireza, o
segundo é, com justiça, considerado a obra-prima do homem de Cordisburgo. Mas,
penso eu, Corpo de Baile - tal como foi apresentado na primeira edição - constitui-se
num painel, composto à moda de mosaico, que encerra uma inteireza equivalente
àquela do Grande Sertão: Veredas.

Embora com o consentimento, e até com justificativa do autor, conforme está


registrado na sua correspondência com Edoardo Bizarri, tradutor da obra rosiana
para o italiano[2] foi uma mutilação que, se explicável por argumentos comerciais de
"edição", não se justifica do ponto de vista artístico. Tanto o caráter unitário é
inconteste que o autor, admitindo a fragmentação, insiste na rotulação original
enquanto repete ou divide as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck (e o Coco de Festa
do Chico Barbóz).

O conjunto de sete "poemas" é apresentado numa dada seqüência, ao tempo em


que, no final do segundo volume, o autor apresenta um novo arranjo, classificatório,
separando em dois subconjuntos que ele designa como "os romances" e "os
contos".

Segundo o quadro em que procurei diagramar a estrutura da obra para o interesse


desta análise (anexo ao texto) notamos que os quatro romances seguem a
seqüência dos números ímpares, entremeados pelos contos, na numeração par da
seqüência. O primeiro subconjunto, rotulado de "Gerais", contém estórias
(romances) que têm lugar nos "gerais", ou seja, no conjunto de chapadões
entremeados de veredas que constituem o âmago do "sertão" afeito
geograficamente ao "espigão mestre" o divisor d'águas das nossas três grandes
bacias que, sem espetacularidade topográfica, ou antes bem modestamente, se
desenvolve entre Norte de Minas, da Bahia e chapadas do Meio Norte (Piauí e
Maranhão).

Este "lugar", de projeção regional, que como espaço geográfico limita-se, a leste,
pelo Rio São Francisco, adquire bordos ou fronteiras difusas e pouco claras nas
demais direções cardeais. Se o rio do Chico é fronteira clara, o Urucuia pode ser o
eixo deste sertão, geograficamente real sobre o qual Rosa criou o seu sertão onde
"a magia é inseparável de todos os atos da vida"[3]. E, ao longo do Urucuia, a Barra-
da-Vaca, volta e meia mencionada, talvez fosse o ponto onde, num mapa,
pudéssemos apoiar a ponta do compasso para circunscrever o universo rosiano[4].

Inserido neste espaço concreto, real, há espaços polivalentes que, não sendo
excepcionais, são complementares e de freqüente ocorrência, como os "pés de
serras". Tal é o caso do sítio Mutum, no primeiro romance Campo Geral onde,
segundo admite o autor, se encontram os germes de todo o conjunto da obra. Lugar
bonito, "entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer
parte; e lá chove sempre…Chuva que entristece a mãe de Miguelim, geralista, que
tem o coração oprimido pela paisagem estranha e pelos amores pecaminosos com o
cunhado (espaço externo geográfico e espaço individual, psicológico, interno).

As labutas de Nhô Berno Cássio (Bernardo Caz) na sua condição de agricultor


sitiante, que trabalha de sol a sol, lutando contra o empobrecimento (que parece
fatal), não se opõe, antes complementa a vida nas grandes fazendas de gado do
Pinhém (Estória de Lélio e Lina) e daquelas do Buriti Bom e Buriti Grande (cenário
do último romance, ele mesmo intitulado "Buriti"). E também da vida no próprio
"gerais" do Andrequicé, no qual se passa o romance Dão-Lalalão. Aqui, no cenário
dos chapadões entrecortados de veredas, e que constitui o âmago do sertão
rosiano, desenvolvem-se os romances de suas gentes simples e tão magicamente
vinculadas ao meio em que habitam. Não caberia aqui destacar exemplos, de tal
modo da escritura do autor liga o homem nas suas lidas quotidianas com o sertão
numa tal simbiose que exibe, como já foi notado com propriedade[5], "não o
Indivíduo em litígio com a Sociedade (…) mas a grande Aventura do Homem face a
face com o mundo elementar dos seres e realidades em bruto, ainda não domadas
em sua energia vital espontânea".

No índice do fim do livro o autor ajunta os três "contos" sob o título de Parábase.
Atinando-se com o fato de que no antigo teatro grego sob este nome se entendia um
"intervalo" crítico (ou cômico) no qual um ou mais atores ou o próprio autor expunha
suas opiniões ao público, entende-se por que eles estão alternadamente dispostos
como intervalos entre os romances[6].

Na mais longa de suas cartas a Bizzarri, o autor aponta ao tradutor o fato registrado
por Paulo Rónai, no livro Encontros com o Brasil, de que "a linha simbólica é
predominante nos 'contos', onde o enredo propriamente dito serve antes de
acompanhamento". Segundo declaração do próprio autor nesta mesma carta, cada
um dos contos - função "simbólica" intercalar à "realidade" dos romances - "se
ocupa, em si, com uma expressão de arte". O conto Uma Estória de Amor trata da
origem e do poder das "estórias" no que elas encerram de parábolas ou símbolos de
uma verdade "revelada". No O Recado do Morro a revelação é aquela do
nascimento de uma "canção", ou gesta popular sertaneja. O Cara-de-Bronze é a
procura e revelação da "Poesia".

Não obstante o conteúdo simbólico dos contos, eles encerram uma peculiaridade
extraordinária em termos de sua vinculação "espacial". Os contos têm seus enredos
situados em espaços intermediários, complementares ou periféricos ao complexo
"chapadões-veredas" expondo contrastes com eles. A grande fazenda onde vive
recluso o Cara-de-Bronze está nos grandes campos do Urubuquaquá - urucuias
monte, fundões e brejos. Abertos e plantados pastos em área de "Mato Grosso" em
vastidão de terra deprimida à borda dos chapadões, emitindo em direção a eles
matas galerias, que se estreitando ao neles penetrar, vai se confundir com as
veredas. A trajetória de Pedro Orósio como guia do naturalista em trabalho de
campo é dos Gerais para o planalto calcário até o Vale do rio das Velhas onde
termina a missão e onde se festeja Nossa Senhora do Rosário. O Morro das Garças,
de onde partiu o "recado" - "solitário escaleno e escuro feito uma pirâmide" -
destaca-se em meio às "enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo
Calcário". A Samarra, onde se ouviram as "estórias" era um lugar - "nem fazenda, só
um repasto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais".
Aos poucos moradores dali, na festa de inauguração da capela, vieram reunir-se "a
gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas". A borda daquela
chã, a "mesa-de-campo" sobre o Baixio da Samarra, fora escolhida por Manoelzão
para sítio da capela em devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, quando ele,
vindo do Maquiné, abrira a fazenda a mando de Frederico Freyre.

Outro aspecto importante a registrar é que, aqui nos "contos" a veia de naturalista e
geógrafo de Guimarães Rosa atinge suas culminâncias. Tudo se passaria como se,
ao carregar as tintas do entorno interfacial, o autor mais quisesse acentuar a
individualidade suave do sertão. Assim, pois, paradoxalmente, a criação artística no
tratamento simbólico "faz contraponto com a caracterização mais acurada - sem
nada a dever a um cientista - da paisagem geográfica.

Na unidade dos "Gerais" os personagens como que se entrelaçam e completam. A


ingenuidade e candura infantil de Miguelim se continua na pureza e sensibilidade do
mancebo Lélio - no mais lírico dos romances - sobrepondo-se o amor acima do
desencontro cronológico entre o jovem vaqueiro e D. Rosalina, uma velhinha. No
romance de Soropita o recontador dos capítulos da novela de rádio ouvidos no
Andrequicé e transmitido aos moradores do Ão, o espaço interior ganha maior
profundidade, descendo o herói a purgatórios e infernos dantescos pelos ciúmes e
insegurança no seu amor por Doralda. Mas mesmo aqui o espaço exterior - os
gerais - está presente, descrito primorosamente e parte integrante do "bailado" dos
personagens. Além da minuciosidade de descrição da paisagem ao longo do trajeto
para o Ão, ao se encontrarem Soropita e Dalberto e relembrarem suas andanças
com as boiadas, o rosário de topônimos contidos às páginas 497 e 498 dão ampla
cobertura do universo regional. A descoberta do mundo através dos olhos míopes de
Miguelim e a descrição das lidas da vaqueirama na fazenda do Pinhém e seus
anexos entrelaçam o meio físico e cultural numa composição dificilmente superável
por monografias geográficas e sociológicas. Miguelim, a criança frágil da primeira
história, passada no Mutum, ressurge moço astuto e criativo no último romance -
como o vacinador de bezerros no Buriti Bonito.

Na passagem de alguns personagens de uns para outros romances, tecem eles o


caráter socioeconômico do tempo. "Perdoa teu pai, Miguelim que ele trabalha
demais, pra gente sair debaixo da pobreza"(pg 120) é uma advertência que irá
demonstrar o malogro dos esforços do Nhô Berno Cássio pois que seu filho menor -
Thomezinho - ao reaparecer na estória de Lélio e Lina, na figura do vaqueiro Thomé,
com suas irmãs Drelina e Chica casadas com peões de fazenda, deixam claro o
insucesso da família Caz. Sua própria condição de amasiado com Jini - a mulata de
verdes olhos - sua "tristeza" e o ar de "soberba" de suas irmãs, atestam a melancolia
do declínio social. O próprio dono da fazenda do Pinhém atravessa o romance (de
Lélio e Lina) navegando em apertos "por via do desapreço em que estava caindo o
gado puro zebu". Ao final da estória, crescentemente endividado, acabou perdendo
a fazenda. A despedida de Seu Sencler e D. Rute dos vaqueiros e agregados do
Pinhém é a cena patética que antecede o final, com a fuga de D. Rosalina e "seu
mocinho" Lélio.

Embora o autor zele pela atemporalidade dos romances, onde jamais uma data é
mencionada, não há como escapar de associar o "tempo" à crise do zebu dos anos
trinta-quarenta que afetou profundamente as Minas Gerais e se encontra "cantada"
na trova do vaqueiro Doraldo, amigo de Soropita, no Dão-Lalalão.

"Adeus, cidade de Uberaba


divisa de São Mateus!
Vender boi ficou pecado
que será de mim, meu Deus"? (p. 503)

Nos contos que compõem a Parábase pode-se encontrar páginas onde a escritura
atinge tanto caráter literário antológico quanto exatidão e justeza na descrição (não
raro interpretação) geográfica.

Nas beiradas das chãs e chapadões da drenagem no Baixio da Samarra, onde a


hierarquia da drenagem daqueles festões vai dos muitos riachinhos ao córrego das
Pedras, ao rio de Janeiro e, daí, ao São Francisco, o fenômeno de difusão e
oscilação do escoamento dá ensejo a maravilhosa narração da "morte" do riachinho
que passava em meio a recém aberta fazenda de gado às expensas da mata.

"Foi no meio duma noite, indo para a madrugada,


todos estavam dormindo…(p. 149)

Em O Recado do Morro talvez estimulado pela "presença" do naturalista


deslumbrado o autor assume esta feição e oferece descrições primorosas da
paisagem cáustica mineira da bacia do rio das Velhas.

De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal.

Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras,
por prolongação…(p.388 a 391).

E assim também, mais adiante, "o país natalício" de Pedro Orósio: "O chapadão de
chão vermelho, desregral, o frondoso cerrado escuro feito um mar de árvores, e os
brilhos risonhos na grava da areia"…(p. 412 e 413. E ainda na 458 - 459).

Mas é no conto Cara-de-Bronze onde a criação artística e elaboração científica de


Rosa se aliam de modo mais enfático. O conto assume a feição mais estranha (não
convencional) possível. A montagem um tanto quanto joyciana é feita teatralmente
em diálogos e assume (deliberada e claramente) a forma de roteiro cinematográfico.

Época de chuvas no Urubuquaquá. A vaqueirama reunida na coberta dos carros


questiona o destino do Cara-de-Bronze, o fazendeiro, recluso, paralítico deformado
pela lepra, no seu quarto, em colóquio com o mensageiro por ele enviado, há dois
anos, sabe-se-Deus para onde. Na varanda da casa o violeiro João Fulano canta
trovas, que permeiam os diálogos ou "cenas".

Aqui a escritura rosiana capricha na nova técnica expressional, já chamada de


"apocalíptica". E, ao lado da maior "espiritualidade"do conto, posto que todo o
mistério indecifrável da viagem do vaqueiro - o Grivo, aquele "menino das palavras
sozinhas" que encantava Miguelim com "suas histórias compridas, diferentes de
todas" (pg. 86) que reaparece aqui no conto como o "mensageiro da poesia" - não
passava do desejo do fazendeiro próximo da morte religar-se ao seu lugar de
nascimento e à memória de sua juventude. Este intento simbólico tem como
contraponto um exacerbamento da informação factual, naturalista, que chega a
derramar-se em enormes notas de pé-de-página que são verdadeiros inventários
florísticos. Plantas que realmente existem na região mas que são arroladas pela
"poesia" contida nos seus nomes vulgares.

Da periferia do Sertão no Urubuquaquá, onde o fazendeiro enriquecera com o


gadame, até o longínquo Buriti-de-Inácia Vaz, no Maranhão, o Grivo procede a longa
travessia, testemunhando "a briga da caatinga com os gerais". Viajante e estudioso
do sertão, Rosa explica ao seu tradutor (Bizzarri, op. cit. p. 60) que os campos
gerais, como "paisagem e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até lá (o
Maranhão), ininterrompidamente.

Outro aspecto importante a registrar nos contos da Parábase é a vinculação íntima


do espaço exterior (geográfico) ao espaço interior (psicológico). Os personagens
aqui são alienígenas e demonstram claramente a luta para ligar-se à terra de
origem.
Manuelzão erige a capela na Samarra em honra a sua mãe, que jamais aquiescera
em sair do seu lugar de origem, e que foi enterrada no lugar que ela elegera para se
erguer a capela.

Pedro Orósio o Pê-Boi do O Recado do Morro, ante a traição e armadilha em que


caíra na festa de arraial à beira do rio das Velhas, e após lutar como o rei contra os
sete traidores cavaleiros, "abrindo grandes pernas, esquipou, mesmo com a noite" e,
medindo o mundo seguiu "por tantas serras, pulando de estrela em estrela, até aos
seus gerais".

O Cara-de-Bronze, rico mas impossibilitado de locomover-se, às portas da morte


encarrega o "menino das estórias longas" para trazer-lhe ao Urubuquaquá do seu
fim o Buriti-de-Inácia Vaz do seu começo: "O que se manda buscar é um raminho
com orvalhos…".

Nossa sabedoria popular registra que nenhum homem se descompromete "do lugar
onde enterrou o umbigo". Do umbigo materno, do seu nascer ele passa ao vínculo
com o lugar - a Terra - para onde retornará após a morte. E ao longo da vida, grande
parte do seu esforço e energia (vital) é desprendida - na sua solidão - em querer
juntar umbigos, como dizia Doralda a Soropita…"nunca te deixar, era se eu pudesse
estar guardada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos…".
União, pacto solidário, cumplicidade para a difícil travessia…

Penso que esta vinculação do Homem à Terra - da configuração do lugar à condição


humana - é que emana a "universalidade" que procuramos.

É pena que os leitores italianos tenham sido privados das notas das páginas 610,
617 e 618. Na correspondência entre Rosa e Bizzarri notamos que o autor reluta e
depois cede em favor da eliminação daqueles apodos à escritura do Cara-de-
Bronze. Parece-me que a evocação de Dante e Goethe como das Upanixades era
um chamamento do autor à sua sintonia de universalidade. Na velha cultura dos
vedas nas frases de Platão nos versos dos representantes da latinidade e do
saxônico na poesia, os trechos escolhidos querem demonstrar a sintonia do homem
universal, vista aqui do nosso sertão mas solidária com aquelas manifestações.

O próprio cientista do O Recado do Morro- O Seu Alquiste (ou Olquiste), que intuíra
a importância da mensagem captada pelo Gorgulho, e acompanhara com interesse
a seqüência da transmissão do recado através dos "seres não-reflexivos"[7], ao ver
nascida a canção pela arte do cantador Laudelim, estabelece a sintonia dessa "coisa
muito importante" que são "estas cantigas migradouras, que pousam no coração do
Povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas", com as sagas
dinamarquesas. Como na saga de Horof, filho de Helgi, segundo registra o Saxo
Gramaticus (p. 456).

Ao escritor que produz sua obra em "efervescência de caos, trabalho quase


'mediúnico'"(Bizzarri, p. 57) junta-se o geógrafo que sua vida de diplomata lhe
ensejara - diretor da Divisão de Fronteiras, rodeado de mapas; representante do
Ministério das Relações Exteriores nas Assembléias Gerais do Conselho Nacional
de Geografia. Viajante atento, sempre tomando notas num caderno, recolhendo
material precioso para recriar uma linguagem e uma tessitura revolucionária no
romance, Rosa foi, ele próprio, um mensageiro da poesia.
Ele chega a confessar a Bizzarri (p.58) a seguinte valoração para a construção de
sua obra literária:

a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto


b) enredo: 2 pontos
c) poesia: 3 pontos
d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.

Mas logo em seguida adverte do "subjetivo" de uma avaliação de autor, daquilo "que
o autor gostaria, hoje, que o livro fosse". E acrescenta, ainda, que "em arte, não vale
a intenção".

Toda essa minha superficial "travessia" pelo seu Corpo de Baile quer demonstrar
que aquele simples ponto atribuído por ele aos lugares vale muito mais. Não que
seja necessário alterar a ordem ou hierarquia da sua valoração mas porque, os
outros três itens estão de tal modo interligados ao primeiro que qualquer tentativa de
separação seria precária. Tal avaliação nos faz lembrar Verlaine que admitia na
produção poética as categorias de "vers donnés" e "vers captés". Muito significante
oculto para o autor pode ter um significado captado pelo leitor.

E talvez a razão fundamental da precariedade dessa avaliação valorativa esteja na


atitude declarada do autor em "defender o altíssimo primado da intuição, da
revelação, da inspiração, sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da
razão, a megera cartesiana" (Bizzarri, p. 58).

O querer "ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo
principalmente", é querer abraçar o mundo holisticamente, é querer procurar o
homem universal. A influência do Tao é indisfarçável na tentativa de integração
cósmica a partir de uma técnica expressional que de aparentemente apocalíptica
seria, efetivamente, mais ligada a uma preocupação não linear mas antes em
estabelecer conjunções entre contrastes e oposições. O que bem pode ser
exemplificado no Cara-de-Bronze.

Influência taoística que ressoa na própria Física Moderna e enseja um novo espírito
científico.

Voltando ao ponto de partida e retornando à lição de Gilberto Freyre poderia


estabelecer um elo entre os dois. Após meio século de existência, várias edições
nacionais e estrangeiras de Casa-Grande & Senzala não conseguiram fechar o ciclo
das discussões e debates sobre a obra.

A idéia de tempo-espaço ali contida, a própria estrutura da obra onde os "capítulos"


de modo nenhum "separam" os assuntos, numa escritura que antes emaranha o
leitor num vigoroso jogo de conjunções - dentre outros vários atributos - a tornam
obra viva e perene, decorridos tantos anos. E ainda permanece a grande dificuldade
em rotulá-la, em definitivo, como construção científica ou obra-de-arte.

Por caminhos opostos, o mineiro e o pernambucano parecem se encontrar. A


questão fica em aberto. Disso tudo parece ficar a certeza de que só alcançamos a
universalidade quando mergulhamos em nós mesmos, unindo nosso espaço
(cultural, social) interno com aquele externo no qual estamos situados. Daí a
insistência tropicológica em nossa condição de "homem situado".

Tal é o "recado" que um aprendiz de geógrafo - sertanejo da Chapada do Corisco, à


beira do Parnaíba - após sua longa migração e vivência pelo sul traz ao terreiro de
Apipucos onde hoje reina a saudade ao lado do grande acervo das lições deixadas,
para ser discutidas e vivificadas.

Notas

1) Referência coligida em Arlette Michel, no seu estudo intitulado Paysages


Balsacieus et Geógraphie Métaphysique dans Le Médecin de Campagne, contido na
coletânea Les Spaces Romanesques, organizado por Michel Crouzet (p. 142), já
citado no texto. Le Roy Ladurie exprimiria esta idéia na introdução (Prefácio) à
edição do Le Médecin de Campagne, Paris, Galimard, 1974, (pp.9 - 41). [volta]

2) BIZZARRI, Edoardo. J. Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor


italiano Edoardo Bizzarri. São Paulo; T.A. Queiroz: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,
1980. Obra fundamental e imprescindível ao acompanhamento da primeira edição
do Corpo de Baile e ao que pretendo apresentar neste trabalho. [volta]

3) Na carta datada de 21.XI.63, catalogada sob o número XIII, entre as páginas 57 e


61 da citada obra. [volta]

4) Veja-se por exemplo, na orelha interna da capa da primeira edição do Grande


Sertão: Veredas, onde, guiado por instrução do próprio autor, Poti desenhou o vale
do Urucuia, especificando aquele topônimo. [volta]

5) Em COELHO, Nelly Novaes, VERSIANI, Ivana. Guimarães Rosa Dois Estudos.


São Paulo; Edições Quirson Ltda., Instituto Nacional do Livro, 1975, p. 11. [volta]

6) PARÁBASE - O dicionário AURÉLIO registra: 1. Na antiga tragédia grega, o


momento dramático em que os membros do coro, despindo as vestimentas cênicas
e arrancando as máscaras, recobravam suas verdadeiras personalidades e se
dirigiam aos espectadores, interpelando-os em seu próprio nome ou em nome do
poeta. 2. No antigo teatro grego, intervalo crítico, ou cômico, no qual um ou mais
atores, ou o próprio autor, expunha suas opiniões ao público. FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, p. 1032. [volta]

7) O que Rosa assim designa são os muitos personagens abobados, retardados,


alguns "messiânicos", que perambulam pelo sertão. Também eles refletem uma
faceta do quadro social onde a pobreza ou sucessivos cruzamentos consangüíneos
nas pequenas comunidades sertanejas isoladas ensejam. [volta]

Fonte: MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O romance entre o espaço


geográfico e o tempo histórico-social: das matrizes gilbertianas a outros avanços. In:
SEMINÁRIO DE TROPICOLOGIA: trópico e história social, 1988, Recife. Anais...
[prelo]
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João Guimarães Rosa, Uma Questão de jeito...


O jeito de ler o Rosa é um segredo que poucos, tirante os iniciados, os do ramo,
conseguem desvendar.
Trata-se de jeito mesmo, de um próprio modo não só de entonar as palavras
devidamente, mas também de dar aqueles nós na língua, comendo letras ou inteiras
sílabas, os espaços certos entre as palavras, como só o conseguem os caipiras,
tabaréus, sertanejos, gente jacu, do mato.
As palavras, em si, além da sua sonoridade, às vezes não trazem consigo
pendurado nenhum significado preciso. Ou melhor, trazem sim, mas não estão no
comum dos dicionários, pertencem a certo código impublicado do sertão.
Despertam, entretanto, uma sensação, uma desconfiança de que podem significar
mais do que simplesmente dizem. A questão é senti-las, desnudá-las, traduzi-las
para a linguagem entendível do cidadão. Rosa, como poucos, diz coisas que
sentimos, coisas que nos remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa vem, e
diz no exato o que é aquilo, como se forma, a cor e o cheiro que tem, o volume, e
como vem à tona. Ele cria o estímulo, a diferença de pressão necessária para
esguichar pra fora os sentimentos que nem suspeitávamos.
Tenho ouvido muita gente dizer que tem dificuldades para entender o que o Rosa
diz. Acham-no intrincado, a fala do avesso, rebuscado, complica o que é simples. O
fato é que o Rosa não diz, ele sugere, desperta, alerta, é um impressionista com sua
língua própria, com pinceladas só dele.
Já vi gente desistir de lê-lo por isso. Não culpo quem assim pensa, afinal que culpa
tem quem nunca conviveu com gente da espécie bruta que o Rosa cria no seu
viveiro.
Quem vive no meio de computadores, tevê, cartões de crédito, lê Nietzsche, Kafka e
Shakespeare, quem está habituado à leitura técnica, ao convívio com cidadãos
informados e modernos, deve ter mesmo alguns problemas para entendê-lo. Não
falo do literato, este tem a obrigação de saber o que está fazendo. Estuda, pesquisa,
e chega ao entendimento por meios inacessíveis ao vulgo, ao estudante, ao leitor
sem pretensões literárias, filológicas ou filosóficas.
Para esses que lêem por prazer ou necessidade íntima, ou mesmo pelo simples
hábito de passar o tempo fuçando páginas, digo uma coisa: o jeito de ler o Rosa é
em voz alta, buscando as inflexões, a entonação, o sotaque próprio do jagunço, do
sertanejo. Como um ator interpretando um papel, impostando a voz, fazendo as
caretas, gestos, franzindo a testa, estendendo a mão para açambarcar o sertão todo
inteiro como se dono, o vasto mundo do Rosa, que no fundo é o mundo.
Há quem tenha a sorte de ter sido criado no mato, esses já vêm com uma certa
vantagem: já têm a balda e a capacidade de entender de ruídos, de cheiros, de
vozes de animais, de espécies de árvores, de ver o tempo empiricamente olhando
pro céu e dizendo: "hoje chove", sem a necessidade de explicações maiores. O
enviesado pensamento do matuto, a sua codificação. É puro instinto. Esse é o tipo
com qual Rosa convive e universaliza, que reponta sempre aqui e ali, em cada
conto. O seu universo é ilimitado, como todo universo o é, ou deveria ser. Capaz o
jagunço de sentir coisas shakespearianas, siberianas, desérticas, borgeanas, tudo,
enfim, que um homem pode sentir, sem a mínima exigência de legendas ou de
explicações complexas.
Rosa escarafunchou a fineza do espírito do sertanejo, o tortuoso meio do seu
raciocínio, o seu vezo econômico da expressão pelas palavras. Um silêncio pode ser
mais significativo que muitas palavras, relevado aqui o repisado lugar-comum.
Veja, por exemplo, o Soropita. Um homem com sua história de valentias, anônimo
num mundo circunscrito a um arraial e uma cidade amiudada, no meio do nada.
Cheio de dúvidas, arrastando consigo um passado violento; mas gentil, amoroso,
cheio de cuidados para com a mulher que foi prostituta; o que aceita, mas não
admite nem de longe que outros saibam. No trato com o cavalo é jeitoso, ele o
cavalo se entendem à perfeição mediante sutilíssimos toques, mensagens cifradas
para os desavisados, mas língua entre eles.
Rosa, já no começo de Dão-lalalão (O Devente), diz:
"Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo, tenteava-lhe leve leve o fundo do
flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo só com a borda do pé e medindo mínimo
achego, que o animal, ao parecer, sabia e estimava."
Pode que exista meio de dizer isso melhor, mas eu duvido. Essa linguagem, se lida
no tom certo, é entendida pelo mais simples caboclo. Rosa considera o cavalo como
"alguém", não uma simples coisa, animal de carga. Para ele o cavalo é um parceiro.
Veja como ele, depois de exaltar as variadas qualidades de Doralda, a mulher do
jagunço, que gabava o trato que Soropita destinava ao cavalo, encerra o parágrafo:
"Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé".
Saíam, Soropita e o seu cavalo, ele e Soropita.
Cada qual, quando exigido, tacitamente fazendo a sua parte:
"Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo que o toque da bota
do cavaleiro lhe segredasse um sussurro, o cavalo ampliava o passo, sem
escorrinhar cocéga..."
"...amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas, governando-o nos
trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do animal ladeira
acima, ou nos embrejados e estivados..."
Difícil entender isso? Apesar de palavras inexistentes "escorrinhar", por exemplo - há
algo ininteligível? Nada. É como se ouvíssemos Soropita falando sua língua de "dia
de semana", como Rosa mesmo diz em "Famigerado", ou língua em mangas de
camisa e pé-no-chão, como disse Lobato. Clara como água de bica que verte do
barranco.
Quanto ao aspecto literário, suas inferências, seus arquétipos, claro que Rosa é
profundo demais pra muita gente. Ele era de uma cultura soberba, umas tantas
línguas que conhecia, viajado no mundo e no sertão de Minas. Mas mesmo assim, o
entendimento de suas "estórias" é mais uma questão de sensibilidade do que de
conhecimento.
Ele mesmo espelha isso, na voz de Riobaldo Tatarana, dizendo que não sabe nada,
mas...
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa."
Questão de jeito mesmo.
Wilson Morais
wmorais@navedapalavra.com.br
Título: A dimensão mítico-sacral em "Dão-lalalão (o devente)"
Autora: Odília Carreirão Ortiga
Orientador: Prof. Dr. Celestino Sachet
Defesa: 3 de setembro de 1979
Resumo:
Análise de cunho interpretativo de Noites do sertão, de Guimarães Rosa, sob os aspectos estrutural,
temático e retórico-estilístico, na busca do mítico-sacral numa das narrativas, "Dão-lalalão". O corpus
foi submetido a um processo de desmontagem das três funções espaciais (referencial, mítica e figura
do discurso) e de seus componentes (lugar e elementos). Foram analisados e interpretados os
elementos água e ar, primordiais na obra, e estabelecidas semelhanças com a narrativa bíblica em
geral, especialmente a do Apocalipse, e analogias com a narrativa mítica.
NOITES DO SERTÃO JOÃO GUIMARÃES ROSA

O sertão criado por Guimarães Rosa é uma realidade geográfica, social, política,
mas também é uma realidade psicológica e metafísica. Nesse espaço (sertão-
mundo), o sertanejo não é apenas o homem de uma região e de uma época
específicas, mas homem universal defrontando-se com problemas eternos: o bem e
o mal; o amor; a violência; a existência ou não de Deus e do Diabo etc. Daí
classificar-se seu regionalismo como regionalismo universalista.

João Guimarães Rosa:


sua HORA e sua VEZ
* Luiz Otávio Savassi Rocha
"Todos os poemas são um só poema/todos os porres são um mesmo
porre/não é de uma vez que se morre/ todas as horas são extremas."
Mário Quintana
"For the creative impulse in the artist, springing from the tendency to
immortalize himself, is so powerful that he is always seeking to protect
himself against the transient experience, which eats up his ego."
Otto Rank (Art and Artist)
"Tenho horror ao efêmero."
J.G. Rosa (depoimento a Emir Rodriguez Monegal)

J oão Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908


e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária
– uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis
filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto
Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" – comerciante, juiz-de-paz, caçador de
onças e contador de estórias. Segundo Valentin Paz-Andrade, membro da Real
Academia Galega e autor do livro A galeguidade na obra de Guimarães Rosa :
a cepa genealógica torna-se translúcida nesses patronímicos: nuns e noutros cintila a
ascendência minhoto-duriense do futuro escritor, especialmente em relação ao
sobrenome dos Guimarães que são citados nos fólios do Nobiliário de Dom Pedro,
conde de Barcelos, filho del-Rei Dom Diniz, de Portugal, e também nas notas do
Marquês de Montebello, com a variante Guimaraens, ainda hoje existente na Galiza.

Ressalte-se ainda que o nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e


hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" – do latim
cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua
sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado
a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de
tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu
significado. Com efeito, esses nomes de quente semântica poderiam ter sido
invenção do próprio Guimarães Rosa...(1)

A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por
vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da
Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A
contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as
conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e
descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos
mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em
muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe
rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas,
quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas
e ouvidas na roça.
A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor com certa dose
de mágoa:
Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao
modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom de
verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de
poder fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias,
poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as
melhores coisas vistas e ouvidas.

Segundo seu tio Vicente Guimarães:(2)


Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos
de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com
dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro,
compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se
movesse o pensamento.

Essa preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, ajudaria a


compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética
rosiana. À guisa de exemplo, veja-se o seguinte trecho, extraído do conto O
burrinho pedrês, em que se observa uma verdadeira versificação da prosa:
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos,
caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos,
borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho
macheado, e as armas antigas do boi cornalão...

A miopia – "vista curta" –, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor


ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca),
médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A
alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em
miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do
conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira,
exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais
que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de
foco e recomendando que "por ora era preciso ler o menos possível para não
agravar a moléstia". Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que
precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente
pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.
Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta
própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei
Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez
amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu
prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos
incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso
primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre
Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo
Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime
de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida,(3)
retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres
alemães, tendo, desde logo, para não perder a oportunidade, se dedicado ao
estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus
conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista
concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de
russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo
alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do
lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do
dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que
estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais
profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento,
gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16


anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor,
recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte
de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela; o
corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade.(4) Estando Ismael de
Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João
Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: "As
pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por
ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Em 1929, ainda como estudante, João Guimarães Rosa estreou nas letras.
Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título
grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné
para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Visava mais os prêmios
(cem mil réis o conto) do que propriamente a experiência literária; todos os
contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930. Mais
tarde, Guimarães Rosa confessaria que nessa época escrevia friamente, sem
paixão, preso a moldes alheios – era como se garimpasse em errada lavra. Com
efeito, nessa primeira experiência como escritor chamam a atenção o esquema
convencional do conto de suspense, a escritura inteiramente despersonalizada e
a falta de originalidade dos temas, verdadeiros protótipos inspirados nos
modelos ingleses da época. Mesmo assim, já se esboçava o espírito lúdico do
autor na escolha dos nomes próprios como atestam, por exemplo, Tragywyddol
e Duw-Rhoddoddag, respectivamente, o nome de um personagem e de um
castelo no conto O mistério de Highmore Hall. Seja como for, essa primeira
experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que
pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos
prefácios de Tutaméia:
"Tude se finge, primeiro; germina autêntico é depois."
Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral
Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes; essa
primeira união não dura muito, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda
em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma,
escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel
Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de
Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro
Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala
Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da
Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está
estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres "FAC QUOD IN TE
EST"; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt
Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do
Dr. Tulp, datada de 1632).
O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23
de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse
lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua
oração argumentando com uma "licção da natureza":
Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de
troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raizes, que sómente os
annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.
Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha
bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma
de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem
incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.

Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:


Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora
plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas,
desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e
Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva
de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica
frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.

Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio


pelos problemas da gente brasileira:
E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior
importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro
proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados
do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e
as condições do nosso meio infectante.

Mais adiante, continua:


Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico
commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil
de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de
Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre
kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a
servir de pasto.

Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de
l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se
faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’

Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista,


humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna,
bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais
simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos
actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da
expressão, homens no meio dos homens.
Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores
opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo
Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a
ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo
com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.

Tambem, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor


collaboradora dos clinicos avisados.

De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os


companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo
ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento,
respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘
– Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas
sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’

Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de


outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que
aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o
medico da familia?

Mais adiante refere-se às pesadas críticas de que sempre foram alvo os


médicos, destacando entre os que tentaram denegrir a classe a figura do genial
dramaturgo Molière e fazendo menção a sua peça L’Amour Médecin,(5) mas
contrapõe a essas críticas uma série de gestos meritórios e de real grandeza
praticados por médicos abnegados, a ponto de elas lhe parecerem cada vez
mais injustificadas:
Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record
indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.

Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.

Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas


apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou
pretensa superioridade.

E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda


guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do
seu tempo.

Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.

A causa? Parece-me simples.

É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se
infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que
a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos
hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro
ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes
hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe
involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios
corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a
cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a
sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’,
arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar
aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!

Guimarães Rosa prossegue em sua linguagem peculiar e, já na parte final do


discurso, refere-se à "Oração" do "illuminado Moysés Maimonides":
Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a
força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico,
ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o
humano, naquelle que soffre!...

E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho
proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento,
mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:

‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero,
é que o socorro já vem perto!).

E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as


despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um
tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.

Depois de formado, Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, então


município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos; ali, passa a
conviver harmoniosamente até mesmo com raizeiros e receitadores,
reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a
ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de
Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão
enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era
adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do
Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do
Grande Sertão: Veredas.(6) Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas
que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No
conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e
Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que
exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração
a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente:
Cassiano perguntou:

– Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?

– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono
de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua
pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do
cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso – homem "inteligente,


bom e justo" – a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto –
Uai, eu?, de Tutaméia, que assim se expressa a respeito:
Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava
mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes
idéias. Eu – a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço,
um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa
de estar prevenido?"

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada


ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto
mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século
eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina. Aliás, foi
justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o
futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião
do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima
Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho,
chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já
estava resolvido. É ainda Vilma quem lembra que sua mãe chegou a se
esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico
que chorava convulsivamente!
Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz
respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos
àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de
intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha;
uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em
conversa com os "calões" (7) na "língua disgramada que eles falam", como
diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de
Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as
mamparras lá deles". Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o
outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com
especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu
temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas. Do conto
Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:
Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-
curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados,
iam acudir àquela parte.

A boiada, do norte.

Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa


cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-
Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore!
– o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti
um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e
nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na
cova.

De volta de Itaguara, Guimarães Rosa atua como médico voluntário da Força


Pública, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, indo servir no
setor do Túnel. Posteriormente entra para o quadro da Força Pública, por
concurso. Em 1933 vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º
Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério,8 em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de
Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as
dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e
solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da
corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao
estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e
nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria
obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta
de 1930 existiu na região do Rio São Francisco (Antônio Dó, o famigerado
bandido do sertão mineiro – referido de passagem no Grande Sertão: Veredas
–, morreu na segunda metade da década de 20).
Quando Guimarães Rosa servia em Barbacena, um amigo de convívio diário,
impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável
conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar
concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico
do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de
Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o
segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de
"vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a
seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de
1934:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après
avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só
posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos
subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou
com o futebol.

Em 1936, Guimarães Rosa concorreu com um livro de versos intitulado


Magma ao prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. O poeta
Guilherme de Almeida, relator do parecer da comissão julgadora, dirigiu
palavras altamente elogiosas ao livro do escritor mineiro, concedendo-lhe o
primeiro lugar e negando-se a outorgar a qualquer outro trabalho o segundo
lugar, tal o desnível de qualidade que havia entre os demais concorrentes e o
primeiro colocado. Não seria injusto considerar Guilherme de Almeida o
verdadeiro descobridor de Guimarães Rosa, aquele que teve a lúcida antevisão
do "gênio engarrafado". Em seu parecer, o poeta assim se referiu a Magma:
"Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade de vegetal
em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao
resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos". Esses rasgados
elogios ao que parece não chegaram a convencer o autor que preferiu não
permitir a divulgação de seu livro de poemas, somente publicado em 1997, 30
anos após sua morte. Diga-se de passagem que em entrevista concedida a
Günter Lorenz,(9) Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo
de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom
confidencial:
Meu começo, foram poesias (...) escrevi um volume nada pequeno de poesias que
foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria
felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo,
conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais
escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E
quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo,
mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia
profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da
verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a
estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das
chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.

Em 1937, durante "sete meses de exaltação e deslumbramento" consoante mais


tarde ele próprio declararia, Guimarães Rosa escreveu uma série de contos e os
reuniu em um volume; em dezembro do mesmo ano resolveu concorrer ao
prêmio Humberto de Campos instituído pela Livraria José Olympio Editora.
Remeteu os originais à comissão julgadora (constituída por Graciliano Ramos,
Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Peregrino Júnior),
usando, na oportunidade, o pseudônimo de VIATOR (em latim – o passageiro,
o viandante); o título dos originais era tão-somente Contos. Participaram do
concurso mais 57 candidatos e Guimarães Rosa obteve o 2º lugar, perdendo
por 3 votos contra 2 no confronto direto com Luís Jardim, que concorria com o
livro Maria Perigosa.
Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue
para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria
a ser sua segunda mulher. Sobre as vivências do escritor na Alemanha leia-se
O mau humor de Wotan, A velha, A senhora dos segredos e Homem, intentada
viagem – artigos publicados no livro póstumo Ave, Palavra, todos eles com
algum conteúdo autobiográfico. Durante a guerra, por várias vezes escapou da
morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. Ademais,
embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de
judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da
mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher
foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção
que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque
que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. A concessão da
homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos
dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do
Holocausto. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua
gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo
Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Com efeito, Guimarães Rosa, na
qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes
dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo
governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte
mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor,
D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem
confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi
que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos
arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de
depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa.
Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem,(10)
seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor
de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar
morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é
internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os
quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, cognominado "o
pequeno Chagall dos trópicos" já que, no início de sua carreira, tentou adaptar
para a temática dos trópicos a maneira do pintor, gravador e vitralista russo
MarcChagall, recentemente falecido. Ficam retidos durante 4 meses e são
libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida
passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário
da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana,
fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto
Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas
Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo
protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela
solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela
asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas). Sobre a
constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se
expressa:
Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em
muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade
velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre
chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às
nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no
hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático,
como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores
humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se
mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.

Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios.
Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais,
com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios
claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis
de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além
dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por
alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos,
móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos,
em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres
índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo
em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de
eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.

Um ano depois de regressar da Colômbia, retoma os originais dos Contos com


os quais concorrera ao prêmio Humberto de Campos e, após "cinco meses de
reflexão e lucidez", refaz inteiramente o livro, submetendo-o a uma verdadeira
depuração e suprimindo duas estórias. O volume é publicado em 1946 pela
Editora Universal com o título Sagarana, esgotando-se, no mesmo ano, duas
edições. A palavra sagarana, de formação híbrida, foi cunhada pelo próprio
autor e resulta da justaposição de saga, substantivo comum de proveniência
germânica, aplicada genericamente a narrativas históricas ou lendárias, e rana,
adjetivo tupi que significa "parecido com, mal feito, tosco". Os contos de
Sagarana, num total de nove, seriam, pois, parecidos com lendas, lendas toscas,
rudes; ou, conforme os via o próprio Guimarães Rosa, "uma série de histórias
adultas da Carochinha".
Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa
ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço
da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e,
depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional
Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade
esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em
Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida
demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate),(11)
saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha,
um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e
que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-
reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo
Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa
manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra:
Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi
dos meus...

... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita
fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta
escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para
chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em
patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu
senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só
havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos
bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João
Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de
Paz. Mas, apesar de suas constantes andanças pelo exterior, o escritor não
perde contato com sua terra. Em novembro de 1947 publica no Correio da
Manhã a reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, resultado de uma
viagem ao pantanal matogrossense que o deixou deslumbrado a ponto de
considerar a região "um verdadeiro paraíso terrestre, um Éden..." A reportagem
em questão foi publicada pela segunda vez em 1952 (Edições Hipocampo,
Niterói), numa tiragem de apenas 110 exemplares numerados e assinados pelo
autor. Atualmente, Com o Vaqueiro Mariano está incluída no volume póstumo
Estas Estórias (1969). Do mesmo modo, a crônica Ao Pantanal, incluída no
também póstumo Ave, Palavra (1970), refere-se a essa viagem e baseia-se em
notas de diário:
Ou – de como se devassa um Éden. Igual a todo éden, aliás, além e cluso. Mesmo em
Corumbá, primeiro ouvimos quem nos dissuadisse: – ‘À Nhecolândia? Aquilo não
existe. É o dilúvio...’

17 hs 10'. Chegamos. De que abismo nascemos, viemos? Mas no princípio era o


querer de beleza. No princípio era sem cor.

Em 1948, Guimarães Rosa está novamente em Bogotá como Secretário-Geral


da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização
do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge
Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista
Revolucionaria, de curta mas decisiva duração. O assassinato de Gaitán
desencadeou uma violentíssima revolta popular, o chamado Bogotazo, à qual
aderiu a própria polícia da capital e que levou às ruas cerca de 200 mil pessoas.
A revolta estendeu-se a todo o país, mas, em virtude de seu caráter anárquico
(pilhagem e cerca de duas mil mortes só em Bogotá), o exército debelou-a
rapidamente. Decretou-se, em conseqüência, o estado de sítio no país. Em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa assim se
refere ao incidente:
Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua
alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se,
incendiava-se, matava-se, etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança,
o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num
bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a
notas: ‘12.IV.48-22hs 55’. Tiros. Apagamos a luz.’ Mas, o que, com João Neves, por
sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas:
paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul,
citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e
amigo. E todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos
por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente


como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil,
é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em
1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a
Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro
de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que
exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos
casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969,
em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico
culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira
Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler
Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que,
durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da
Chancelaria Brasileira.
Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente
com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da
viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias),
de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São
Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40
léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel
Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da
novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim.
Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no
sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – "ele perguntava
mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles
grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos,
costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos,
estórias... A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa
famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil
no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês
Peter Wilhelm Lund – "o pai da paleontologia brasileira" – e do extraordinário
botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães
Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar
de "seu Alquiste", ou "Olquiste", que aparece no conto O recado do morro,
cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:(12)
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa.
Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste – espigo, alemão-rana,
com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe
nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se
amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos
poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de
chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho,
para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça
um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e
desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor:
fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a
tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos."

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava
nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.

Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para
se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-
da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-
de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha,
tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho
e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.

Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o
segurassem, ia lá, aceitava o abraço?

Finalmente, em 1956, dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães


Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas
de Corpo de Baile – longos poemas em prosa, de feição barroca –,13 em dois
volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três
volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes
são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e
Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua
versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956,
no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão:
Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a
crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes.
O fato é que ninguém lhe fica indiferente. Enquanto alguns colocam o livro no
pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das
primeiras páginas, considerando-o "um matagal indevassável". Em matéria
publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não
conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não
conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura,
começou a lhe parecer "uma história de cangaço contada para lingüistas". Por
sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou:
"A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui
um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito." Passadas
quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com
Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, "no calor da hora", sentindo o
cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:
Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos,
certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só
contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não
é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão
admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a
escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar
inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.

As raízes da inspiração rosiana, em Grande Sertão: Veredas (como, de resto,


em quase toda sua obra), mergulham no grande magma anônimo da cultura
popular brasileira como bem demonstra Leonardo Arroyo em seu magnífico
livro A cultura popular em Grande Sertão: Veredas; só que essa cultura passa
por um processo de depuração e, sem perder sua autenticidade, é submetida a
um tratamento refinado, guiado por disciplinada e vigorosa consciência
estética, num milagre possível apenas em se tratando de um artista genuíno,
capaz, nas palavras de Mallarmé, de "donner un sens plus pur aux mots de la
tribu".
O romance recebeu três prêmios: O Machado de Assis, do Instituto Nacional
do Livro; o Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo e o Paula Brito, da
municipalidade do Rio de Janeiro. As edições de Grande Sertão: Veredas se
sucederam mas, ainda hoje, fica a sensação de que a maioria das pessoas que
se referem ao livro não o leram, pelo menos da forma como deveriam ler, de
acordo com a recomendação do próprio autor: "Minha literatura é para bois,
não é para ser engolida de vez".
Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um
seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18
de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de
Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e
obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos
como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros
limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise
dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento
foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica,
destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado
pela bexiga preta (14) (capítulo 17) – uma travessia que, nas palavras de
Riobaldo, durou "só um instantezinho enorme" –, vendo-se as fogueiras
ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a
recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher
ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou
pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido
pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos
personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio
narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e
mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma
fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília,
representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala
carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou
de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade
do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da
terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de
teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: "Então fico com o Pasolini, que
preferia os não-atores..." Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final
quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge
a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um
passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes. Ora, o manuelzinho-
da-crôa (Charadrius collaris), ave não-Passeriforme da família Charadriidae,
vive sempre em casal e pode ser visto como um símbolo da fidelidade
conjugal, donde sua importância no contexto do romance dada a forte relação
afetiva existente entre Diadorim e Riobaldo, relação essa que pelas emoções
que mobiliza tem muitas das características de uma verdadeira relação
conjugal, a começar pela exigência de exclusividade por parte de Diadorim. É
preciso não esquecer que, na obra rosiana, os menores detalhes são fortemente
carregados de significação como, aliás, adverte o próprio Riobaldo-Rosa no
Grande Sertão: Veredas: "Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa."
Ainda em 1956, João Guimarães Rosa prefaciou a Antologia do Conto
Húngaro, com seleção, tradução e notas de seu amigo Paulo Rónai, professor e
poliglota húngaro, naturalizado brasileiro. No prefácio, o autor de Grande
Sertão: Veredas faz inteligentes reflexões a respeito da língua magiar, dando a
entender que a considerava uma língua próxima da ideal, uma língua que
qualquer escritor (ele incluído) quereria para si, para o exercício de sua arte,
mercê de sua insuperável potencialidade e plasticidade.
Pela importância desses comentários para o entendimento, inclusive, do
próprio fazer literário rosiano, eles merecem ser aqui transcritos, na íntegra:
Disse já que o húngaro, por seu rico registro de vogais – que a caracterizam
imediatamente – e da prevalência das claras sobre as surdas, dá-se como uma das
línguas mais sonoras, musicais, em seu vozeio. Sonorosa, se bem que de ritmo
fundamental muito enérgico, nela as seqüências de inflexões naturalmente modulam e
fácil melodiam. De si concretizante, figurativa, imagista, encerra copiosa quantidade
de onomatopéias. Sua gramática, parca, põe garra mais curta que a da emoção. Suas
palavras nem sempre se fecham na racional fixidez conceitual explícita, na rigidez
denotativa, antes guardam sob o significado uma ativa carga potencial, rudimentar,
com o que, nos diversos momentos, inteiram-se mais variadamente de sentido, e,
segundo as soluções rítmicas, se reembebem de um halo vivaz. Será, se dizer posso,
uma língua menos ‘da lei’ que ‘da graça’; uma língua para homens muito objetivos,
ou para poetas.
Nem não é tudo. Também, e o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere,
fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável, velozmente evolutiva, toda
possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa.
Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela
aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, que, nas exaltadas
arremetidas criadoras de uma experimentação contínua, os escritores lhe infligem,
segundo as mais sutis ou volumosas intenções. Suas partes obedecem à arte. Deste
ponto-de-vista, nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante, sem inércia. Por
sua própria natureza original, permite todas as caprichosas e ousadas manipulações
da gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é a criação de neologismos, o
verbum confingere. O intercambiar dos sufixos e das partículas verbais é universal:
os radicais aí estão, à espera de um qualquer afixo, como os forames de um painel de
mesa-telefônica, para os engates ad libitum. Possível, mesmo, é a engendra de
sufixos novos, partindo de terminações singulares ou peregrinas de vocábulos. Vale é
o valível. Imissões adúlteras não são ilegítimas. A seiva arcaica se redestila.
Absorvem-se os ruralismos. Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre si,
as palavras armam um fecundo comércio.

Molgável, moldável, digerente assim – e não me refiro em espécie só à língua


literária – ,ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano:
faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e
da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja e forja, maleia-se, faz mó do
monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares comuns,
escapa à viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não
deixam.

Os felizes escritores húngaros usam e mais usam da tratabilidade daquele


esquematismo opulento, de um aparelho de tanta liberdade. E não o praticam apenas
nos casos de necessidade elementar, conforme o ‘Sunt novis rebus nova ponenda
nomina’ ciceroniano. Nesse contínuo operatório, querem não menos as operações
estéticas fantasistas. O que eles buscam, às inspirações, toda-a-vida, é a máxima
expressividade, a mais ponta para penetrar a matéria; o jogo eficaz. São todos
individualistas. Desde que o entenda, cada um pode e deseja criar sua ‘língua’
própria, seu vocabulário e sintaxe, seu ser escrito. Mais do que isso: cada escritor
húngaro, na prática, quase que não pode deixar de ter essa língua própria, pessoal.
O alcance disso é mágico. Com isso, está o espírito geral da gente, que ele invoca. E
essa é tendência que não arrefece. Cada jornal, em Budapeste, é escrito em seu
dialeto ‘da casa’, às vezes fora da linguagem culta corrente – diz Laczkó Géza; e
ajunta: ‘Na vida de sociedade húngara não basta ter-se espírito; mas a forma
lingüística do dito espirituoso tem também de ser espirituosa’. Será que – como se
fosse ainda o guerreiro em movimento ou solitário pastor, nas estepes antigas do
Pamir ou, depois, onde volga o Volga e dona o Don – em o versar de seu idioma o
magiar ficou sempre nômade.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve


para os pais:
Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima
da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os
trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece
coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para
assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo
relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à
casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram
uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

Mais tarde, o escritor aproveitaria a experiência, cristalizando-a de forma


magistral no conto Os cimos, que encerra a coletânea em Primeiras Estórias:
Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas
mil pessoas faziam a grande cidade.
E: – Pst – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido
horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os
tantos meigos vermelhos do pássaro – depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de
enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da
árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em
momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo
da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos
arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos
silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio. O Tio, também, estava de
fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros
– quem sabe, seus filhotes – da banda da mata. O grande bico para cima, desferia,
por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: – ‘Crrée!’...
O menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O
Menino se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.

Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962


justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É
um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais
acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao
tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o
qual chamava, carinhosamente, de "o amarelinho", numa referência à cor da
capa da edição da Livraria José Olympio Editora):
Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo.
Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende
ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra
nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo
poético, anti-racionalista e anti-realista.

Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do


novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de
1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um
marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de
perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se
permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas. Essa impressão é corroborada pela leitura das cartas que
escreveu aos pais entre 1958 e 1964, em que confessa, reiteradamente, a
necessidade que tinha de fazer tudo "picadinho", "miudinho", "devagarinho":
20/12/58: Ultimamente não tenho andado bem. Passei mesmo por um susto, há 15
dias. Fui ao médico, fiz todos os exames e felizmente achou-se que não era tão grave.
Estou é com a pressão muito alta, eu que sempre tive pressão baixa... ..."Também
tenho descansado mais, vou levando a vida com mais sossego, me defendendo, pois o
pior é que tenho de evitar qualquer esforço físico, e as emoções, surpresas,
contrariedades, sustos, etc. Fazendo assim – dizem os médicos – poderei chegar aos
90 anos... Não me alargarei mais pois ainda tenho de ir fazendo tudo picadinho,
miudinho, a fim de evitar o cansaço."

11/6/59: "... o médico me recomenda maior número de horas de sono, dormir antes
da meia-noite, viver com moderação e calma, não me preocupar nem me afobar;
enfim tudo tem de ir num ritmo sossegado, picadinho, devagarinho... Rezar é o que
importa. Como o sr. está vendo, coloco o centro da vida na RELIGIÃO. Com isso
consigo despreocupar-me e evito que a pressão arterial suba mais."

9/7/64: "... desde uns anos para cá só posso trabalhar mais devagarinho, o que
complica o expediente. Sinto mais o frio, o calor, as mudanças bruscas do tempo, etc.
A gente vai vivendo, vai empurrando, vai rezando e agüentando.
Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958
seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da
hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular
como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um
tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida
ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando
recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece
com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor
chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí,
tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de
fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido
dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal
chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante,
desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não
repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios


cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece
ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à
Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879
por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a
matéria – "... the nothingness of matter and the allness of spirit" –, negando
categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral,
da doença e da morte.
Segundo Suzi Frankl Sperber – que teve acesso à biblioteca-espólio do escritor
e reuniu no livro Caos e Cosmos suas observações a respeito da influência das
leituras espirituais de Guimarães Rosa sobre sua obra, tomando como ponto de
partida os trechos assinalados pelo próprio autor – as publicações do Christian
Science Journal, datadas de 1961, são as mais abundantemente sublinhadas,
marcadas, semeadas de pontos de exclamação e de signos do infinito. A autora
reconhece ter encontrado outros textos alusivos à Ciência Cristã menos
anotados e datando de 1956; mas acredita que a segunda leitura dos textos, em
1961, teria influenciado muito mais intensamente o escritor a ponto de essa
influência se fazer sentir em Primeiras Estórias, publicado em 1962.
Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia
Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10
votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de
agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da
posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois. Por essa
ocasião aumenta o seu conceito no exterior e seus livros começam a ser
traduzidos para vários idiomas apesar das enormes dificuldades encontradas
pelos tradutores, obrigando-os a manter estreita correspondência com o autor.
Passa a interessar, igualmente, aos cineastas; assim é que, em 1966, o conto A
hora e vez de Augusto Matraga possibilita a Roberto Santos a realização de um
filme admirável, que se projeta em vários festivais internacionais. O mesmo
não se pode dizer da tentativa dos irmãos Santos Pereira de transpor para o
cinema o romance Grande Sertão: Veredas, que se converteu num verdadeiro
fiasco: em meio a um sertão disciplinado e maquilado, privilegiaram-se os
cavalos, o que levou alguns críticos a considerá-lo "um filme hípico com
veleidades épicas".
Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos,
em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira
Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa
e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio
Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do
referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma
longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente
sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então,
sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia
o interlocutor a seus textos, à "conversa manuscrita". A entrevista foi publicada
como parte de um livro de Lorenz – Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e
Basiléia, 1970 –, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita
no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da
entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e
imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa
altura, com um jacaré do Rio São Francisco... Na opinião de Willi Bolle
(Guimarães Rosa – artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o
ficcionista:
atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que
conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser
considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que
isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer
esclarecimentos – o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer –, mas
indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor
metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os
críticos para solucionar enigmas.

A opinião de Willi Bolle é, de certa forma, endossada pela própria filha do


escritor, Vilma Guimarães Rosa, autora de Relembramentos: João
Guimarães Rosa, meu pai, quando afirma:
Havia nele um certo mistério, em parte espontâneo, em parte cultivado como
elemento de encanto.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de


representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no
qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente
com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de
Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do
país. Foi premiado o livro Jorge, um brasileiro, do escritor mineiro Oswaldo
França Júnior.
Em meados do mesmo ano Guimarães Rosa publica Tutaméia (Terceiras
Estórias), um conjunto de 44 narrativas curtas das quais 4 desempenham
também o papel de "prefácios" ("prefácios travestidos", na visão de Lenira M.
Covizzi). Tutaméia é uma espécie de "livro testamento", um texto
decodificador da obra rosiana ou, ainda, a chave estilística de sua obra, um
resumo didático de sua criação. Nos 4 "prefácios travestidos", através de
rodeios e circunlóquios, por meio de alegorias e parábolas, o autor analisa o
seu gênero, seu instrumento de expressão, a natureza de sua inspiração, a
finalidade de sua arte, de toda a Arte. As estórias propriamente ditas, em
número de 40, primam pela excessiva concentração. Na visão de Paulo Rónai:
são episódios cheios de carga explosiva, retratos que obrigam o leitor a reconstruir
os dramas que moldaram os traços dos originais, romances em potencial
comprimidos ao máximo. Fiel ainda desta vez ao cenário das obras anteriores, isto é,
aos de sua infância, Guimarães Rosa faz caber neles a angústia existencial dos
personagens e a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza que
o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que aquilo que não é passa a
influir no que é, que o que poderia ter sido modifica o sentido do que houve. Isso num
estilo que tira dos processos da fala sertaneja, propensa ao lacônico e ao sibilino, ao
pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao enfático e ao colorido;
que vai buscar seu léxico num enorme estoque de regionalismos, arcaismos,
latinismos, plebeismos e brasileirismos, completando-o por criações de cunho
individualíssimo; e que se inova, sobretudo, por ousadias sintáticas e capazes de
sugerir o que não é dito num jogo de anacolutos, reticências e omissões.

De acordo com Aglaeda Facó, a trajetória percorrida pelo escritor desde


Sagarana até Tutaméia partiu "da mais pictórica iconização" e evoluiu para a
"mais metafísica simbolização". Segundo a autora, a partir de Primeiras
Estórias e, sobretudo, em Tutaméia, "o que estava no sintagma é pressionado
para o paradigma e a decomposição prismática analítica da realidade vai dando
lugar a uma decomposição prismática sintética" – uma espécie de "passagem
do IMPRESSIONISMO para o CUBISMO". O livro Tutaméia foi o último
publicado em vida pelo autor; após sua morte foram publicados,
respectivamente em 1969 e 1970, os livros Estas Estórias (contendo a obra-
prima Meu Tio, o Iauaretê que trata, de forma exemplar, da extinção da cultura
indígena e de suas trágicas conseqüências) e Ave, Palavra (com páginas
antológicas como Uns inhos engenheiros, De stelle et adventu magorum, Circo
do miudinho, Minas Gerais e As garças).
Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista
a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja
gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os
jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a
entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando
da mini-saia, que considerava "uma gracinha", à bomba atômica. Diz-se
torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma "adorar" música de
carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho
lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original
de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia
aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto
escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão
primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da
mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição
feminina, admite que não, afirmando que "antigamente havia um exagero, o
homem era homem demais e a mulher era mulher demais".15 Indagado se já
teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: "Acho que a
verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se
fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de
sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai." Instado a emitir um
conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos,
destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: "Viver
é obrigação sempre imediata".16 Elogia as gerações jovens, que considerava
cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente
feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que
"estamos entrando na era da sinceridade", referindo-se às gerações moças,
termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou
apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios
discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica
etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de
repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo,
esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e
perdidos, sem saber o que estava acontecendo...
A posse na Academia Brasileira de Letras teve lugar na noite de 16 de
novembro de 1967 sendo que, na oportunidade, o escritor foi saudado por
Afonso Arinos de Melo Franco – mineiro de Belo Horizonte, mas com fortes
laços a ligarem-no à legendária e sertaneja Paracatu –, que pronunciou
importante discurso denominado O Verbo e o Logos. Em fragmento exemplar
de sua oração, Afonso Arinos procura estabelecer um paralelo entre a obra de
Mário de Andrade e a de Guimarães Rosa, ambos "revolucionários", mas cada
um a seu modo:
Não me parece possa haver comparação entre o vosso e o estilo de Mário de
Andrade, como algumas vezes se tem feito. A renovação lingüística que Mário se
propôs era mais imediata, impetuosa e polêmica; em uma palavra: destruidora. O
grande polígrafo tinha em vista, ao lado da criação própria, demolir, arrasar as
construções condenadas da falsa opulência verbal ou do academicismo tardio. O
trabalho de demolição se faz às pressas e, no caso de Mário, com uma espécie de
consciência humilde do sacrifício que impunha à própria durabilidade. No vosso
caso, a experiência, pela época mesma em que começou, foi sempre construtiva. Não
tendes em vista derrubar nada, desfazer nada de preexistente, mas levantar no espaço
limpo. Não sois o citadino Mário, que precisava dinamitar o São Paulo burguês para
erguer no chão conquistado a Paulicéia desvairada. Sois o sertanejo Rosa,
conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os
antiplanos e os imateriais da construção. Devemos respeitar a Mário pelo propósito
de sacrificar-se na destruição. Podemos admirar e partilhar em vós a esperança
construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas
artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é
Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as
inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes
com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes
inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.

Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no
Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como
escritora. Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e
escreveu, compungido, para a "jovem colega": "Vir eu queria, queria. Posso
não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado,
balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você
sabe." Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino
arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-
lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais... Ao invés
da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em
data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu
encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de
Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar
"fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima
de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro
mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos
Drummond de Andrade,(17) tão avesso às honras acadêmicas...

No discurso de posse (1 h e 20’ de duração), Guimarães Rosa procura traçar o


perfil do seu antecessor e amigo, o ministro João Neves da Fontoura, de quem
fora chefe-de-gabinete no Itamarati; refere-se, também, ao patrono da cadeira
n. 2 da Academia, Álvares de Azevedo – "o que morreu moço, poento de
poesia" – e ao fundador dessa mesma cadeira, Coelho Neto – "amoroso pastor
da turbamulta das palavras". Vale lembrar que, nos dias que antecederam a
posse, o escritor recorrera ao médico Pedro Bloch a fim de que este o ajudasse
a controlar rigorosamente a voz, a respiração e a velocidade de leitura do
discurso, em mais uma demonstração de forte tendência perfeccionista. No
início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra
natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por
"Cordisburgo":
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas
Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do
Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de
sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes:
‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo
Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer
ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para
realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado,
gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a
erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e
fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração
– pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do
mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma
noção mágica do universo.

Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe
e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz
Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão
feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do
Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que


fala sobre a fé e a amizade:
João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de
realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando
parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé...’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira,
sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um
enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de
amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a
soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto
feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido
rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você
mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não,
porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E
porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida
a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa
solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de
testamento.

E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se


vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto
do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano
Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas
não morrem, ficam encantadas", que pronunciara pela primeira vez em 1926,
diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre
amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em
sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado "a palmeira de
Deus" –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de
inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente,
apresentando-se a João Neves como "Cordisburgo", última palavra pública que
pronunciou:
Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima,
que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-
me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu:
que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu,
com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e
terríveis balbúrdias.

Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos
vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para
provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito
único, sumário: João Neves da Fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao


teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam
encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o
mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O
mundo é mágico.

— Ministro, está aqui Cordisburgo.

Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se,


claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se
chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena
consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a
posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em
Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por
socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo,
estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres:
"MORRE O MAIOR ESCRITOR". Que lhe seja dada a palavra ao final desta
tentativa de biografia que se quer, pelo menos, honesta:
Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao
histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda,
desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só RELIGIÃO – mas
impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo
(tentativa de) com o . O mais, você deduz.(18)

Morto Guimarães Rosa – lá se vão três décadas –, resta sua obra singular, por
demais estudada, mas cujo poder de sedução ainda não foi satisfatoriamente
explicado; afinal, como ensina – ou aprende – o próprio Riobaldo, "muita coisa
importante falta nome".
Notas
1. Aliás, no conto O recado do morro, do livro No Urubùquaquá, no Pinhém, o escritor batizou
um personagem com o nome do próprio pai: "Mas, nesse justo momento, vinham chegando os
frades – frei Sinfrão e frei Florduardo – evinham enérgicos."
2. O escritor infantil Vicente Guimarães, mais conhecido por Vovô Felício, é autor do livro
Joãozito – Infância de João Guimarães Rosa. Publicou também, pela Editora Minerva (RJ),
em 1968, a estória Última aventura do Sete-de-Ouros, uma adaptação, para crianças, do
conto O Burrinho Pedrês, de seu sobrinho J. G. Rosa.

3. Segundo Vicente Guimarães, Joãozito era um menino "nojoso", "cheio de nica", "ni-quento".
Ao que parece, tais atributos o escritor, de certa forma, transferiu-os mais tarde para Riobaldo,
herói anti-heróico, ao atestar a reação do protagonista de Grande Sertão: Veredas ante o hábito,
comum no interior do Brasil, de comer tanajuras fritas com farinha, uma herança alimentar
indígena assimilada pelo colonizador branco através, possivelmente, do mameluco: "Mas o
esgaboar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume,
fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam e perturbavam, nos ombros dos homens
e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois
tive de sacudir fora da crôa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem
faminto come frita com farinha essa imundície..."

4. O episódio da morte do estudante goiano Oseas é mencionado por Pedro Nava no livro
Beira-Mar, em cujas páginas o autor revive os velhos tempos de estudante de Medicina em
Belo Horizonte.

5. No dia 17 de fevereiro de 1673, quando fazia o papel principal em sua peça Le malade
imaginaire, de cunho autobiográfico, onde, com sua habitual irreverência, satirizava os
médicos que lhe teriam minado a saúde, Molière passou mal e, horas depois, morreu. A classe
médica, exultante, deliciou-se com a irônica advertência: ai daqueles que se atrevem a dizer
verdades sobre ela...

6. Segundo o Prof. Paulo Rónai (comunicação pessoal), Quelemém é a transcrição exata do


nome próprio Kelemen, forma húngara do antropônimo Clemente (lat. clemens). Como se vê, o
nome faz jus ao personagem: "Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que
mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele."

7. O termo "calões", utilizado por Manuel Fulô, deriva de um dos nomes genéricos da nação
dos ciganos, isto é, de kalo (no plural kala), que significa negro, o que, para muitos estudiosos,
é um elemento a mais a comprovar sua origem hindustânica. Já uma pessoa estranha, que não
pertence à mesma raça, é conhecida por gajão ou ganjão, e Manuel Fulô tem consciência disso:
"Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p’r’ali, repassavam, acertavam no freio,
e depois era só chegar pra o ganjão e passar a perna nele, na barganha..."

8. Mário Palmério, escritor e compositor, mineiro de Monte Carmelo, autor de Vila dos
Confins e de Chapadão do Bugre, foi o sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira
de Letras, tomando pos-se em 22/11/1968.

9. LITERATURA deve ser vida: Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa.
Minas Gerais: Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 395, 23 mar. 1974, p. 8 a 13.

10. Uma foto da solenidade de entrega do prêmio, vendo-se D. Aracy junto às bandeiras do
Brasil e de Israel, pode ser vista na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina
de Minas Gerais da FM – UFMG.

11. Os movimentos das peças do xadrez foram ensinados ao menino Joãozito pela Profª. Maria
de Lourdes Rocha Correa, filha mais velha do Cel. Geraldino Rocha, casada com o Sr. Adolfo
Correa. O pai deste, de nome Sérgio Correa, embarcava, na estação ferroviária de Cordisburgo,
com destino ao Rio de Janeiro, o gado que engordava na Fazenda da Ponte, de sua propriedade,
sendo o inspirador da figura do Major Saulo, do conto O Burrinho Pedrês, de Sagarana.

12. No conto O recado do morro, uma mensagem, ouvida durante uma expedição por um velho
eremita, passa de boca em boca, de forma ininteligível, por uma seqüência de personagens
marginais – seres primitivos de senso embotado mas de sentidos apurados – até chegar a um
bardo popular que, não só capta a mensagem – um recado infralógico emanado do Morro da
Garça –, como também lhe dá forma e sentido, convertendo-a numa obra de arte (a canção
popular) e permitindo a decifração, por parte do protagonista (Pedro Orósio), do código nela
con-tido. No referido conto, além da Gruta ou Lapa Nova do Maquiné, situada a 6 km da sede
urbana de Cordisburgo, Guimarães Rosa menciona a Fazenda Saco dos Cochos, a Fazenda
Bento Velho, o Ribeirão da Onça, o Córrego do Cuba, a Rua dos Pequis, a Rua dos Pacas, a
Rua de Cima, a Rua de Baixo, o Hotel do Sinval, a Igreja do Rosário (já demolida), a Matriz do
Sagrado Coração, o povoado das Lajes, o distrito da Lagoa, o Araçá (Araçaí, cidade vizinha de
Cor-disburgo) e o Morro da Garça – "solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide" –,
acidente geográfico situado próximo à sede do município do mesmo nome (18 30S 44 35W),
entre os municípios de Curvelo e de Corinto.
13. Para Davi Arrigucci Jr. (Guimarães Rosa e Gôngora: Metáforas. In: Achados e
Perdidos, Pólis, São Paulo, 1979), que aproxima o escritor mineiro do poeta espanhol Luís de
Gôngora (1561-1627), o estilo de ambos seria melhor definido como maneirista do que
propriamente como barroco. De acordo com o referido ensaísta, embora as diferenças entre os
dois autores sejam óbvias, sua atitude em face da linguagem é semelhante, na medida em que
"ambos admitem, se não declarada, implicitamente, a insuficiência do instrumento lingüístico
que revolucionam à sua maneira, moldando-o a suas necessidades individuais de expressão"; e
mais, na medida em que "ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão do mundo
que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase".

14. A expressão bexiga preta refere-se a uma forma grave de varíola (doença hoje em dia
praticamente extinta) acompanhada de manifestações hemorrágicas e de sério
comprometimento do estado geral, não raro evoluindo para o óbito.

15. A propósito dessa afirmativa, cabe mencionar que, nu-ma época em que semelhante
procedimento era inusitado, Guimarães Rosa escreveu um conto magistral denominado Esses
Lopes (contido no livro Tutaméia) no qual ele se coloca sob a pele da protagonista e,
assumindo provisoriamente a condição feminina – numa atitude empática –, procura
experimentar o mundo a partir dessa nova perspectiva: "Má gente, de má paz; deles, quero
distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou,
idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia
d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes
nenhum me venha, que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e
esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas,
primeiro, os outros obram a história da gente."

16. Uma variante da frase citada na entrevista, é esta outra – "A gente pensa que vive por gosto,
mas vive é por obrigação", que aparece em A estória do homem do pinguelo; a referida estória
foi publicada, inicialmente, na revista Senhor (março de 1962) e, mais tarde, foi incluída no
volume póstumo Estas Estórias.

17. A Galiza, região da Espanha situada a noroeste da península ibérica, na fronteira com
Portugal, está atualmente dividida em quatro províncias; o nome Galiza é de origem céltica,
gaulesa, e o idioma regional muito se aproxima do português. A estirpe dos Andrade (como a
dos Guimarães) tem suas raízes plantadas na Galiza; dali, alguns ramos emigraram para
Portugal e, posteriormente, para o Brasil, fixando-se principalmente na região de Itabira e
Antônio Dias, em Minas Gerais, como demonstram Ormi Andrade Silva e José Gomide Borges
no livro Dois séculos dos "Andrade", publicado em 1984.

18. Carta de J. Guimarães Rosa a seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21/5/1958.

* Luiz Otávio Savassi Rocha é professor da Faculdade de Medicina da


UFMG.

Embora partindo, quase sempre, da realidade objetiva – sua matéria-prima –, Guimarães


Rosa procura, ao se referir às aves – como a tudo mais em sua obra –, privilegiar a dimensão
poética. Ademais, na dependência do contexto e/ou do clima que pretende criar, ele o faz ora
de forma descritiva, analítica, ora de forma sintética. Assim, por exemplo, quando o tema é o
vôo do pica-pau, a opção, em Buriti (NOITES DO SERTÃO), é pela primeira alternativa:

"Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um picapau-
da-cabeça-vermelha, em seu vôo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo,
com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá
novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole
– um coração na mão –; já atravessou o mundo."

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Perseguindo a tradição regionalista, já largamente explorada em nossa literatura por
autores de várias gerações e épocas, Guimarães Rosa não apenas consegue
realizar aquilo que era quase impossível – renovar essa tradição –, mas também
levar a literatura brasileira a um de seus pontos mais altos.

João Guimarães Rosa (1908-1967), mineiro de Cordisburgo, desde cedo mostrou


interesse por línguas e pelas coisas da natureza: bichos, plantas, insetos. Formou-
se em Medicina e exerceu a profissão, clinicamente pelo interior de seu Estado,
onde recolheu importante material para as suas obras. Em 1934, ingressou na
carreira diplomática, chegando a embaixador, e passou a viver em vários países,
sempre escrevendo e ampliando seu conhecimento sobre línguas e culturas
diferentes. Guimarães morreu em 1937, três dias depois de tomar posse na
Academia Brasileira de Letras.

Como escritor, Guimarães Rosa é uma das principais expressões da literatura


brasileira. A genialidade de sua obra unanimemente tem deslumbrado as várias
tendências da crítica e do público. Embora já tivesse conquistado um prêmio com
um livro de poemas (nunca publicado), Guimarães Rosa estreou em 1946, com o
lançamento de Sagarana (contos). De cunho regionalista, a obra surpreendeu a
crítica e levou o escritor ao renome, em virtude da originalidade de sua linguagem e
de suas técnicas narrativas, que apontavam uma mudança substancial na velha
tradição regionalista. Dez anos depois, o autor confirmaria as expectativas, dando a
público, de uma só vez, em 1956, duas obras-primas: Corpo de baile (novelas) e
Grande sertão: veredeas (romance). O autor publicou ainda Primeiras estórias
(1962) e Tutaméia - Terceiras estórias (1967). Atualmente a obra Corpo de baile é
publicada em três partes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e
Noites do Sertão.

A Novidade da linguagem

A tradição regionalista na literatura brasileira é antiga. Começa com os românticos


Alencar e Taunay, passa pelos autores naturalistas e pré-modernistas, como
Domingos Olimpio e Euclides da Cunha, e pelos modernistas de 30, como Graciliano
Ramos e José Lins do Rego.

Para todos esses momentos da prosa regionalista, sempre se colocou aos autores
um problema de difícil solução: a linguagem a ser empregada. O autor deveria
empregar a língua culta, que lhe era própria, ou a língua regional, ou as duas? A
solução para esse problema quase sempre foi a da mistura: o narrador empregava
uma língua culta, com alguns termos regionais, as personagens utilizavam a
linguagem típica da região. O emprego da língua regional, nesse caso, quase
sempre ficava no nível do vocabulário.
A grande novidade lingüística introduzida pelo regionalismo de Guimarães Rosa foi a
de recriar, na literatura, a fala do sertanejo não apenas no nível do vocabulário, mas
também no da sintaxe (construção das frases) e no da melodia da frase. Explorando
as técnicas do foco narrativo em primeira pessoa, do discurso direto e do indireto
livre, a língua falado do serão está presente em toda a obra, resultado de inúmeros
anos de observação, anotações e pesquisa lingüística. Observe, neste fragmento do
conto 'Sarapalha', de Sagarana, o conhecimento minucioso do autor sobre a
vegetação e a língua regionais:

Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou


caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-
de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangera,-na de volta; e nem pôde
recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o
espinho-agulha e com o gervão em flor.

Observe a preocupação do autor com a construção sintática e melódica das frases


neste fragmento inicial de Grande sertão: veredas:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem, não, Deus esteja.
Alvejei mira em árvore, no quintal no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia
isso faço, gosto; desde mal em mim mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum
bezerro: um bezerro branco erroso, os olhos de nem ser.

Contudo, a linguagem de Guimarães Rosa não tem como intenção realista de


retratar a língua do sertão mineiro exatamente como ela é. Sua preocupação vai
além: tomando por base a língua regional, Guimarães recria a própria língua
portuguesa, a partir do aproveitamento de termos em desuso, da criação de
neologismos, do emprego de palavras tomadas de empréstimo a outras línguas e da
exploração de novas estruturas sintáticas.

Além disso, sua narrativa faz uso de recursos mais comuns à poesia, tais como o
ritmo, as

Observe, como exemplo, as aliterações e o ritmo deste fragmento do conto 'O


burrinho pedrês', que sugerem o movimento dos bois em marcha. Note também
como as palavras, apoiados no ritmo e na pontuação, poderia ser dispostas em
versos de cinco sílabas (redondilhas menores):

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as


caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de
guampas, estrondos e baques, e do berro queixoso do gado junqueira, de chifres
imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do
sertão...

A propósito de sua linguagem literária, Guimarães Rosa comenta:

Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a
ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo,
mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e
creio que este é meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no
Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros
idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se
deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros.
A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos
inimigos da poesia.

Regionalismo e universalismo

Outro aspecto de destaque da obra roseana é sua capacidade de transpor os limites


do espaço regional, em que quase sempre se situam textos, e alcançar uma
dimensão universal.

Em Grande sertão: veredas, o narrador Riobaldo afirma: "o sertão é o mundo". E é


com esse pressuposto que a narrativa roseana vai nos envolvendo, como se
também nós fôssemos sertanejos e jagunços e fizéssemos parte daquele mundo.
Passamos então a lidar com os mais variados temas que preocupam o homem
sertanejo: o bem e o mal, Deus e o diabo, o amor, a violência, a morte, a traição, o
sentido e o aprendizado da vida, a descoberta infantil do mundo, etc.

E notamos, então, que essas reflexões não são exclusivas do sertão mineiro; são
também nossas, do homem urbano, do homem do campo, do norte e do sul do país,
e até mesmo fora dele. Na verdade, Guimarães Rosa é um escritor universal, que
consegue com profundidade vasculhar a alma humana e captar suas inquietações,
seus conflitos e anseios, sem, contudo, perder o sabor da psicologia, da língua e dos
valores do homem do sertão mineiro.

Enfim, Guimarães Rosa é um desses escritores que representam a síntese de toda


uma trajetória de experiências formais e ideológicas da literatura de uma geração e,
às vezes, da literatura de um século. Assim foi com Machado de Assis no século
XIX; assim é com Guimarães Rosa na prosa brasileira do século XX.

Fonte: Cereja, William. Literatura Brasileira.

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Ensinar e Aprender
1. As obras de Guimarães Rosa são reconhecidas como um marco na evolução de
nossa literatura. Na elaboração de seu obra utilizou-se de vários processos:
exploração dos aspectos sonoros, criação de palavras, linguajar regionalista etc..
Pesquisar as novas tendências na literatura brasileira, após 1945.

2. Em seus textos, Guimarães Rosa utiliza termos regionais a fim de caracterizar


seus personagens e suas realidades.
a) Identificar no texto abaixo três expressões regionais e seus significados, como por
exemplo: debulhar o milho: retirar os grãos de milhoda espiga.
-"Diacho, de menino, carece de trabalhar, fazer alguma coisa, é disso que carece! -
o Pai falava, que redobrava: xingando e nem olhando Miguilim. Mãe o defendia,
vagarosa, dizia que ele tinha muito sentimento. - "Uma póia!" - o Pai desabusava
mais. - "O que ele quer é sempre ser mais do que nós, é um menino que despreza
os outros e se dá muitos penachos. Mais bem que já tem prazo para ajudar em coisa
que sirva, e calejar os dedos, endurecer casco na sola dos pés, engrossar esse
corpo!" Devagarzinho assim, só suspiro, Mãe calava a boca. E Vovó Izidra
secundava, porque achava que, ele Miguilim solto em si, ainda podia ficar
prejudicado da mente do juízo.
Daí por diante, não deixavam o Miguilim parar quieto. Tinha de ir debulhar milho no
paiol, capinar canteiro de horta, buscar cavalo no pasto, tirar cisco nas grades de
madeira do rego. Mas Miguilim queria trabalhar, mesmo. O que ele tinha pensado,
agora, era que devia copiar de ser igual como o Dito."
(ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. in Ficção completa. v.1. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.526).
b) Entrevistar pais, avós, tios, vizinhos coletando informações sobre as diferentes
regiões do Brasil:
- local de origem;
- vocábulos diferentes e seus significados;
Apresentar aos colegas as palavras coletadas.

3. Guimarães Rosa faz uso de ortografia própria, divergente em muitos pontos da


ortografia oficial. Sua invenção lingüística abrange o nível semântico (significado), o
sintático (combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria palavras (neologismos),
descobre associações imprevistas entre elas e reproduz ruídos da natureza ainda
não registrados.

Com orientação do professor, identificar no conto "O burrinho pedrês", páginas 22 a


25, (Sagarana, 23ª ed. José Olímpio: 1980) neologismos apresentados em sua
narrativa e interpretá-los.

4. No romance Grande Sertão: Veredas o personagem Riobaldo, ex-jagunço e chefe


de bando, conta a um suposto interlocutor suas aventuras da juventude, as pelejas
de que participou, seus temores e dúvidas a respeito da existência de Deus e do
Diabo.

Ler no livro o trecho no qual Riobaldo faz o pacto com o Diabo (11ª ed., páginas 317
a 319).
a) Identificar os vários termos utilizados pelo personagem para designar o Diabo.
b) Discutir porque Riobaldo evita empregar a palavra Diabo.
5. Em 1932, Guimarães Rosa retorna a Belo Horizonte como voluntário da Força
Pública. Nesta época, ele atuava em uma das frentes da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Pesquisar as causas e conseqüências dessa revolução.
6. Ler com atenção o depoimento de Guimarães Rosa. A partir desse depoimento,
redigir uma dissertação (argumentativa).
"Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a
rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do
sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da
proximidade da morte." Guimarães Rosa.
Bibliografia do autor
Sagarana (1946); Grande Sertão: Veredas (1956); Corpo de Baile (1956); Primeiras
Estórias (1962); Tutaméia (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra (1970).
Bibliografia
BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
FARACO, C.E. & MOURA, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
HOLZEMAYR, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996.
(Roteiro de Leitura).
MACEDO, Tânia. Guimarãres Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
PEREZ, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.
ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SANTO, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática,
1996.
SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática,
1996. (Ensaio).
ZILBERMAN, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.

Edição nº15 - 12/11/99


Primeira Estórias
João Guimarães Rosa Rosa, como poucos, diz coisas que sentimos, coisas que nos
remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa vem, e diz no exato o que é aquilo,
como se forma, a cor e o cheiro que tem, o volume, e como vem à tona. Ele cria o
estímulo, a diferença de pressão necessária para esguichar pra fora os sentimentos de
que nem suspeitávamos. " ( Wilson Morais, escritor, em artigo sobre Guimarães Rosa)
1. Biografia do Autor:
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de
muita coisa."
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908 e
morreu no Rio de Janeiro, três dias após ter tomado posse na Academia
Brasileira de Letras. Filho da classe média, Rosa fez seus primeiros
estudos na cidade natal :
"(...) aprendeu as primeiras letras com Mestre Candinho, em
Cordisburgo, e francês com Frei Esteves, franciscano. Foi sempre aluno
excelente, surpreendendo os professores pela inteligência e aplicação.
Desde cedo mostrou inclinação para línguas, e, aos seis anos, lia o
primeiro livro em francês Les Femmes qui Aiment.
Em 1918 o avô leva-o para Belo Horizonte, matriculando-o no primeiro
ano colegial do colégio Arnaldo, onde estudaram também Carlos
Drummond de Andrade e Gustavo Capanema. E ele entrega-se aos
livros, com entusiasmo; em breve, vamos encontrá-lo a pedir licença
para freqüentar a biblioteca da cidade. Embora o seu grande amor ao
estudo, não desprezava os esportes, principalmente futebol. Mas foram
as línguas a sua principal paixão: estudava-as com afinco, sem se
descuidar das respectivas gramáticas.
Outra matéria de sua predileção foi a História Natural. Dos dez aos
catorze anos colecionou insetos, borboletas; amava os animais,
aprendeu a conhecê-los intimamente e a sua obra mostra bem os
profundos conhecimentos que tem da matéria. Quando ia a Cordisburgo,
pelas férias, explorava os matos, à procura de cobras.
Lia bastante, tendo conhecido Euclides da Cunha ainda nos bancos
escolares. Entretanto, o estilo árido, difícil para a sua idade, fazia-o pular
páginas, amortecia-lhe o interesse. Só muito mais tarde ( quando
Sagarana já se encontrava em provas) é que o releu devidamente.
Terminados os preparatórios, Guimarães Rosa matriculou-se na
Faculdade de Medicina de Minas gerais. Durante o curso médico
conheceu no Hospital sa Santa Casa de Belo Horizonte o Dr. Juscelino
Kubitschek de Oliveira de quem se tornou bom amigo. A propósito dele,
dizia Guimarães Rosa ao seu amigo, o romancista e professor Geraldo
França de Lima: "Jamais uma pessoa me tratou tão bem."
Nesse época, premido por necessidade financeira, escreveu contos,
publicados na revista O Cruzeiro. Concorreu quatro vezes, e em todas foi
premiado com cem mil-réis. Mas escrevia friamente, sem paixão, preso a
moldes alheios, como confessou. Na verdade, eram os cem mil-réis do
prêmio...
Depois de formado, foi Guimarães Rosa exercer a profissão em Itaguara,
município de Itaúna, onde permaneceu por dois anos. A razão da escolha
é que lhe haviam dito não existir médico por aquelas bandas.
E, na verdade, era excelente iniciar a profissão sem concorrência...
Aproveitava todos os momentos disponíveis para estudar ( mesmo
durante as viagens a cavalo), e de tal modo se familiarizou com a
profissão que era capaz de dar o diagnóstico apenas pela fisionomia do
doente. Cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que,
a cavalo, tinha que percorrer. Nem podia ser de outra forma, porque,
quando chegava ao local, o dona da casa, a fim de baratear a consulta,
aproveita-lhe a presença para uma revisão geral na saúde da família.
Médico dedicado, acabou por se tornar repeitadíssimo naquelas regiões.
Perder um doente era, para ele, particularmente , algo trágico. E uma
vez em que isso aconteceu , ficou aflitíssimo, sem saber que resolução
tomar. O padre já esperava ao lado do morto, para encomendar-lhe o
corpo, e Rosa ainda lhe aplicava injeções sobre injeções, como se
pretendesse ressuscitá-lo.
Foi uma noite de agonia. Em casa, mais tarde, o futuro escritor fechou-
se no quarto, sem querer jantar, imaginando represálias por parte dos
parentes e amigos do morto, quem sabe um linchamento... Soube,
depois, que a preocupação era inteiramente infundada, e que todos
haviam reconhecido que ele fizera o impossível.
*

Dois anos mais tarde retornou Guimarães Rosa a Belo Horizonte. Por
ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, atua como médico
voluntário da Força Pública, indo servir no setor do Túnel. Encontrou-se
de novo com o amigo Doutor Juscelino , e na pequena localidade
estreitaram as relações de amizade. ( Trinta e cinco anos depois, ao
tomar posse na Academia, quando recebia o abraço do ex-presidente da
República que fizera parte da mesa -, Rosa assim lhe responde ao
cumprimento: - "Com a mão na pala, meu coronel.")
Posteriormente Guimarães Rosa entra no Quadro da Força Pública, por
concurso. Em 1934, vamos encontrá-lo em Barbacena, como oficial-
médico do 9o. Batalhão de Infantaria.
Aí a vida calma dá-lhe oportunidade para se entregar melhor aos seus
livros. Mesmo sem se descuidar da medicina, retorna ao estudo das
línguas. "Estudava as línguas para não me afogar completamente na
vida do interior"- confessará depois. E através de um russo branco que
se encontrava meio perdido por aquelas bandas, como soldado da polícia
militar de Minas, pôde confrontar pela primeira vez a sua pronúncia.
Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do exército
czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos
Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. Foi a essa
altura que um amigo, impressionado com os conhecimentos que tinha
Guimarães Rosa das línguas estrangeiras, deu-lhe a sugestão:
- Se você gosta tanto de estudar línguas, por que não faz concurso para
o Itamarati?
Rosa pensou no caso, e acabou por aceitar o conselho. Adquiriu livros,
estudou muito, e em 1934 veio para o Rio, enfrentar o concurso para o
Ministério do Exterior, onde detém o segundo lugar.
Durante todo esse tempo, manteve suas ligações com a literatura.
Além dos contos, escrevia versos, chegando a organizar uma seleção
deles num volume Magma com o qual concorreu em 1936 ao prêmio de
poesia da Academia Brasileira. O livro sai vitorioso, sendo o parecer do
relator o poeta Guilherme de Almeida altamente lisonjeiro. Apesar disso,
tal obra não foi publicada até hoje.
Em 1937, a saudade da terra levou Guimarães Rosa a escrever os contos
de Sagarana, onde, com estilo vigoroso, apresenta a paisagem mineira
em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e
dos criadores de gado- estórias de gente simples vividas ou imaginadas
o mundo em que passara a infância e a mocidade. Transpunha também,
para o livro, a linguagem rica e pitoresca daquela gente, registrando
regionalismos, muitos deles ainda não utilizados em literatura.
Levou sete meses para escrever o livro "sete meses de exaltação, de
deslumbramento"- declarará. Em dezembro de 1937, resolve concorrer
com o volume ao Prêmio Humberto de Campos, instituído então pela
Livraria José Olímpio. Queria ganhar o concurso, naturalmente; mas
desejava, sobretudo, saber do valor do seu trabalho. Não conhecia
ninguém da área literária, e a opinião da comissão julgadora
( constituída por Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais
Neto, Dias da Costa e Pelegrino Júnior) era um excelente meio de tomar
o próprio pulso. Remeteu à Comissão os originais que então se
intitulavam apenas Contos para disputar o prêmio com outros 57
concorrentes. Saiu vencido por três votos a dois. No mundo literário
ninguém sabia quem era o autor que chegara à final do concurso: era o
desconhecido Viator. Um dos juízes, o grande e saudoso Graciliano
Ramos, a propósito do assunto escreveu artigo divulgado na imprensa do
país em 1946 "Conversa de bastidores onde dá de púlico esclarecimentos
( incluído em Linhas Tortas, livro póstumo de Graciliano).
O livro Sagarana não foi o que se submeteu ao concurso sob o simples
título de Contos. Sagarana é a depuração deste, escoimado, reduzido
( de quinhentas e tantas páginas às três centenas de hoje), refeito,
portanto, segundo o critério rigoroso do Autor. No depoimento de
Graciliano Ramos está a história do Prêmio Humberto de Campos de
1938, e importa transcrevê-lo na íntegra é o que se faz logo após este
perfil biobibliográfico.
Em 1938, nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, o escritor segue para
a Europa, onde recebe a notícia de que a obra premiada fora Maria
Perigosa, coletânea de contos de Luís Jardim ( de quem, aliás, o escritor
se tornaria, mais tarde, amigo e admirador).
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é
internado, com Cícero Dias, Cyro de Freitas Vale e outros, em Baden-
Baden. Aproxima-se de Cícero Dias, com quem faz amizade, e acaba por
mostrar-lhe os originais de Sagarana. O pintor gosta do livro, e anima-o
a publicá-lo.
Libertado mais tarde com os outros, em troca de diplomatas alemães, o
escritor retorna ao Brasil. Depois de rápida passagem pelo Rio, segue
para Bogotá, como secretário de Embaixada, de onde volta em 1944. Um
ano depois, retoma os originais de Sagarana, e, em cinco meses de
trabalho contínuo, refaz inteiramente o livro, suprimindo duas histórias.
O volume é publicado em 1946 pela Editora Universal, com sucesso
ruidoso, esgotando-se, no mesmo ano, duas edições. Recebe o prêmio
da Sociedade Felipe d'Oliveira e é aclamado como uma das mais
importantes obras de ficção aparecidas no Brasil contemporâneo."
(Renard Perez, em primeiras Estórias, José Olímpio Editora, 1946)

Em 1956, publica Corpo de Baile ( novelas, hoje divididas nos livros


Manuelzão e Miguelin, No urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão) e
sai nas livrarias seu primeiro e único romance: Grande Sertão: Veredas.
Em 1963 é eleito por unanimidade para a Academia Brasileira; só tomará
posse em 1967. Três dias depois, um infarto agudo o levou embora.
Encantou-se. Ou, como escreveu Drummond:
"Guardava rios no bolso
cada qual com sua água
sem misturar,sem conflitar?
Ficamos sem saber o que era joão
e se João existiu
de se pegar."
*
2. Estas Primeiras Estórias:
O livro Primeiras Estórias , publicado em 1962, inicia um tempo em que
as narrativas rosianas iniciam por se tornarem curtas, distanciando-se
daquelas contidas, por exemplo, em Sagarana ou em Manuelzão e
Miguilin. Em Tutaméia ( 1967), elas seriam muito breves, como um
condensamento.
Nosso livro guarda 21 histórias curtas, mas o assunto é o mesmo que
permeou a trajetória do escritor: os "causos"pontilhados da tradição
oral, os enredos que mostram desde o tom épico, o filosofante, o lírico, o
hermético.
Embora nesse conjunto não haja propriamente uma linha temática, um
fio condutor, é bom lembrar que neles predomina a poesia saborosa na
organização das palavras e cada conjunto, oração ou período depende de
nós, da nossa capacidade de observação, de nossa paciência para que se
instaure o significado esplêndido que tem.
Ler Guimarães Rosa nunca deve ser tomado como obrigação; ler Rosa
exige os critérios do desvendamento, do amor pelo texto e pelo escritor
e, sobretudo, descobrir que por detrás de aparentes causos de homens
briguentos, de deslumbramentos de crianças, de loucuras, misticicismo,a
mor e violência, lá está o homem e sua plenitude, o estar-no-mundo, o
descobrir da existência verdadeira e valiosa.
Guimarães Rosa não é apenas um escritor: ele é uma espécie de guia
para nós, os cegos de nós mesmos...
De acontecimentos mais ou menos banais, cotidianos cria-se o momento
da paixão, o estado da paixão que nos levará a caminhar, palmilhar,
perceber em cada coisa ou canto o milagre, o insuspeitável, o
extraordinário, o que foge à simples concepção da vida inútil.
Rosa não é apenas um contador de causos mineiros: é um desvendador
dos mistérios de cada ser e suas personagens, habitantes dos desvãos
de Minas Gerais, habitam um mundo de inquietações e intranqüilidades,
um mundo de devaneios e mistérios, um mundo de desejos de grandes
saídas. Abrigam, elas, um mundo universal dentro de si mesmas. Dito
isso, poderiam transitar por Wall Street, pelas ruas de Londres, em
Sidney , ou Buenos Aires: têm o que todo humano que busca resposta
tem: uma inquietação da vida, um desejo de transcender. Jamais
permanecem elas mesmas após o que vivem: elas acham novos
caminhos, sustentam sentimentos, rompem regras, direcionam-se para a
existência verdadeira.
Ler Rosa, é mesmo para poucos... Após sua leitura, a vida exige que nos
tornemos comprometidos conosco, com os que amamos, com a procura
da existência que valha a pena. Rosa é danoso em nós: faz-nos pensar,
refletir sobre o que brilha, vigoroso e íntimo, lá no fundo de nossas
vidas. Dá-nos a dimensão da dor, da alegria, das transformações. E
projeta em nossas almas o profundo elo com a nossa mesma existência.

Ler Rosa é para poucos.


Ler Rosa é quase que caminhar sobre um abismo... de nós mesmos, da
humanidade, dos homens.
Ler Rosa é travessia de nós mesmos. .. por isso tão perigosa. E tão
urgente.

3. Os contos, um a um:
"Considero a língua como meu elemento metafísico: escrevo
para me aproximar de Deus." ( JGRosa)
I. As Margens da Alegria
Tema: a infância
"ESTA É A ESTÓRIA. ia um menino, com os tios, passar dias no lugar
onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz;
para ele, produzia-se em caso de sonho."
O Menino não tem nome; seu nome é apenas menino.
O pai e a mãe vão levá-lo ao aeroporto e, durante a viagem, até o piloto
conversou com ele. A cidade, que no futuro terá um grande lago
artificial, é certamente Brasília. Deram-lhe balas e chicletes e o tio
ensinava coisas sobre o assento reclinável.
Chegaram.
O conto está dividido em cinco partes, nomeadas apenas com algarismos
romanos. A segunda, é a chegada na cidade que se construía:
" O Menino via, vislumbrava. Respirava muito."
Foi à cozinha, daí poderiam ser vistos índios e caçadores, onça, leão,
lobos? Ouviu os passarinhos e seu canto comprido. "Isso foi o que abriu
seu coração."
Viu também um peru. Note que o Menino, aqui, está em estado de
descoberta, de si mesmo e do mundo que o cerca. O peru, colérico,
andando, "gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo o coração. Mas
só bis-viu. Já o chamavam, para passeio."
A parte III se inicia com um passeio de jeep: iam ao sítio do Ipê.
papagaios, veados de rabo branco, flores, "imundície de perdizes", a
tropa de seriemas, o par de garças, o buriti à beira do corguinho...
O menino pensava no peru.
Na parte IV, vão ver onde se construiria o lago. Um mundo de máquinas,
compressoras, árvores que eram derrubadas.
Ele tem vergonha de falar sobre o peru.
Fica pensando na árvore que vira morrer, ali derrubada.
Na parte final, quando chegam de volta à casa, fica com medo de sair
para o terreiro, mas lá reencontra o peru. Estava anoitecendo, e ele
sabia que todo sim de dia traz esta tristeza, assim, no peito das pessoas.
O peru não era o mesmo que vira ao chegar: era aniversário do doutor e
o degolaram, jogaram a cabeça do primeiro peru no monturo. O outro, o
peru pequeno, bicava aquela cabeça com certo ódio.
E o Menino tem a experi6encia de que tudo se substitui, todas as coisas.
E encantado ficou, por isso:
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro
vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! tão pequenino, no ar, um
instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria."
II. Famigerado
Tema: violência e engano
Um grupo de quatro cavaleiros chega à casa de um médico do arraial.
Damázio, dos Siqueiras, se apresenta ao doutor que já o conhecia de
nome:
"Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando
também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara evitava o de
evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal,
de mim a palmo?"
Os três cavaleiros, à distância respeitosa, pareciam mais testemunhas de
algo que iria acontecer:
"Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem,
para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até
na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena,
mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também,
não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a
extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse não, conquanto os
costumes. Conservava-se de chapéu."
Damázio, por fim, declara:
"- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
O narrador o descreve: cenho carregado, catadura de canibal, os ínvios
olhos "Tudo de gente brava."
Por fim, esclareceu a que vinha:
"- Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um
moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à
revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde
nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de
evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava,
pensava. Cabismeditado. Do que , resolveu. Levantou as feições. Se é
que se riu: aquele crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se
fito à meia esguelha. Lateja-lhe um orgulho indeciso."
Era difícil para aquele homem falar o que queria. Ia devagar, aquilo era
coisa que mexera no seu orgulho... O narrador observa que "ele
enignava".
E num repente:
"- Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é
mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-
gerado...?
Disse, de golpe, mas trazia entre dentes aquela frase.
(...)
- Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas
seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo
claro..."
O médico perguntou se o que viera saber não era "famigerado":
"- Famigerado? Habitei preâmbulos, bem que eu me carecia noutro
ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus
cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
- Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram
comigo, pra testemunho..."
(...)
- Famigerado é inóxio, é "célebre", notório, notável..."
O homem pede que lhe em linguagem de "dia de semana", o que se
deve entender como diferente da linguagem do padre na missa, aos
domingos, tão difícil.
É aí que o médico responde que famigerado é "importante", que merece
louvor e respeito.
Observe isso: nos dicionários, essa versão para a palavra é real: que
tem fama, célebre, notável. No entanto, por estar freqüentemente
associada à palavra malfeitor, bandido, ela adquire, vulgarmente, o
sentido de "bandido, malfeitor, assassino". A confusão fez-se aí: o
engenheiro disse a palavra como o vulgo a diz, mas o médico trouxe-a à
tona na forma que o dicionário indica.
Confirmado que não era palavra feia, nem desaforada ou caçoável,
Damázio dispensa as testemunhas e sorriu:
"- A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só
pra azedar a mandioca..."
Agradeceu, apertou a mão do médico, diz que de outra vez aceitaria
entrar na casa.
E se foi, esporeando o cavalo.
III. Soroco, sua mãe, sua filha
tema: a loucura, a solidariedade
Chegou ao povoado, vindo do Rio, e agora aguardava na linha de
resguardo, um vagão especial, com as janelas de grade. Chamava a
atenção de todos os moradores:
"Ia servir para levar duas mulheres, para longe , para sempre. O trem
do sertão passava às 12h45.
E muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para
esperar."
Para não se entristecerem, conversavam.
Iam para o hospício de Barbacena a mãe de Soroco, uma mulher velha,
com mais de setenta anos, e a filha, ainda moça, a única que Soroco
possuía. Soroco era viúvo e "Afora essas, não se conhecia dele o parente
nenhum. Para o pobre, os lugares são mais longe."
Soroco era homem grande, "brutalhudo", cara grande, barbudo, a voz
grossa; as crianças tinham medo dele. A filha, bem, leia esta descrição
magnífica desta cena da chegada da filha:
"Aí, paravam. A filha a moça tinha pegado a cantar, levantando os
braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das
palavras o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e
os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de
admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça
em cima dos espantados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de
mais misturas, tiras e faixas, dependuradas-virundangas: matéria de
maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a
cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se
assemelhavam."
De braços dados com as duas, Soroco se dirige à estação de trens: "Era
uma tristeza. Parecia enterro."
As pessoas estavam entre curiosas e apiedadas. Soroco calçara suas
botinas, "botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e
atalhado, humildoso. Todos diziam a eles seus respeitos, de dó. Ele
respondia: "- Deus vos pague essa despesa..."
Foram anos muito tristes, os últimos. E Soroco aguentara tudo. As
mulheres enlouquecidas, a trabalheira que davam. Mas agora
precisavam ir.
A moça começou a cantar alto, com o rosto virado pro povo, enquanto a
velha se sentava numa escadinha. A velha era quietinha, mas diante da
cantoria da neta, comoçou por cantar baixinho e depois mais alto:
"Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos
aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de
grades."
Observe que o narrador tem marcas típicas da oralidade do contador de
causos: "Aí que..." "tinham de..."
Até que o trem, manobrando, juntou o vagão em que as duas estavam
embarcadas e "apitou, e passou, se foi, o de sempre."
Soroco de chapéu na mão, pobre homem, sequer quis esperar o trem
sumir. Todos apiedados de Soroco:
"Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente,
todos gostavam demais de Soroco."
Esquisito, talvez sentindo a grande solidão que lhe restara, Soroco
empertigou-se todo e... pôs a cantar aquela cantiga insólita. Num átimo,
todos se juntaram a ele "E com as vozes tão altas!
Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele,
os mais detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de
não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Soroco para a casa dele, de verdade. A
gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga."
IV. A menina de lá
tema: infância
"Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo
de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno
sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o
terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando
descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria,
Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos
enormes."
Inventava histórias e palavras que espantavam as pessoas, tudo vago e
esquisito: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de
meninos e meninas sentados a uma mesa de doce, comprida, por um
tempo que nunca se acabava. Ou uma que mostrava a necessidade da
gente fazer uma lista de coisas que no dia por dia a gente vem
perdendo.
Nem sequer tinha quatro anos. Da sua quietude e placidez nada saía que
perturbasse as pessoas. Era calma, concentrada. Pra comer, tinha um
ritual: comia primeiro o ovo, carne, torresmos, o que havia de mais
gostoso e só depois é que comia o arroz, o feijão, a abóbora, agora
lentamente.
"De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente.
"Nhinhinha, que é que você está fazendo?"- perguntava-se. E ela
respondia, alongada, sorrida, moduladamente: "- Eu... to-u...fa-a-
zendo." Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?"
E era impossível puni-la por qualquer coisa que fosse.
Gostava da noite e das estrela , às quais chamava de "estrelinhas pia-
pia.
Dizia que o ar "estava com cheiro de lembrança. "A gente não vê quando
o vento se acaba..."
E dizia coisas imprevisíveis, inexplicáveis:
" O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: -
"Alturas de urubuir..."não, disse só: "- ... altura de urubu não ir."O
dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: "Jabuticaba de vem-me-
ver..." Suspirava, depois: "- Eu quero ir para lá."- Aonde? "Não sei."
E respondia coisas despropositais: "- Eeeu? Tou fazendo saudade."
Qutra hora, quando se conversava sobre parentes mortos, dizia que ia
visitá-los. O narrador nos diz que nunca mais viu a menina. Mas foi por
aí que começou a fazer milagres.
Se desejava um sapo, dizia, e logo ele entrava , aos pulinhos, pela sala.
Ou desejava pãezinhos de goiaba, logo aparecia alguém que de muito
longe lhe trazia.
Quando a Mãe adoeceu, foi só a Menina abraçá-la e ele sarou logo.
A seca chegou, queriam que a Menina pedisse chuva. Ela disse que não
podia. Mas quando, dois dias depois, desejou ver um arco-íris, choveu.
Pensavam Mãe e Pai que quando a Menina crescesse, tudo isso passaria.
Mas a menina adoeceu e morreu, talvez por causa das péssimas águas
da redondeza. Todos pareciam ter morrido a metade. Tiantônia contou,
então, que quando fizera aparecer o arco-íris ela dissera que queria ser
enterrada num caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes.
O Pai se recusou a ir encomendar o caixão, achando que colaboraria
ainda mais na morte da Menina. Mas a Mãe acredito que fosse só
encomendar o caixão e que, por milagre da Menina, sairia igualzinho ao
que ela encomendara.
V. Os irmãos Dagobé
tema: vingança/violência
Havia acontecido na vila uma enorme desgraça: um lagalhé chamado
Liojorge, estimado de todos, no entanto, matara o mais velho dos quatro
irmãos Dagobé, gente absolutamente facínora.
E estava ali o velório; a casa não era pequena, mas as pessoas já se
apertavam nela, tal era a curiosidade.
"Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita
desunião, sem mulher em lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica
do recém-finado. Este fora o grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre,
que botara na obrigação da ruim fama os mais moços "os meninos",
segundo seu rude dizer."
Tudo tinha um ar de espantoso.
Liojorge o matara de medo, porque tal Dagobé, sem sabida razão,
ameaçara de cortar-lhe as orelhas.
VI. A Terceira Margem do Rio
tema: a loucura
"Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas
pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro,
ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros,
conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava
no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu
que ,certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa."
É assim que o narrador começa sua história.
A canoa era de pau vinhático para durar uns vinte ou trinta anos na
água. Acrescenta:
"E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta."
O pai pôs o chapeu e sem alegria nem cuidados, "decidiu um adeus para
a gente.
"Nem falou outras palavras, não pegou matula ou trouxa, não fez a
alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar,
mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: - Cê
vai, ocê fique, você nunca volte!"
O menino pediu para ir junto, o pai pôs a bênção nele e o mandou para
trás. Desamarrou a canoa e pelo remar saiu no rio:
"Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executara
a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio,
sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais."
Tentaram de tudo para trazê-lo de volta: nada o demoveu. O narrador
vê-se na obrigação de alimentar o pai e deixa-lhe alimento todos os dias.
Até o padre foi chamado a interceder: nenhum resultado, lá continuava o
pai, movendo-se naquela canoa, fizesse sol ou chuva, alienado,
procurando suas próprias margens.
Os filhos cresceram, a irmà se casou, teve filho, levaram a criança pra
mostrar-lhe: nada.
Mãe, irmão e irmã vão se mudando para a cidade, só mesmo falta o
narrador:
"Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci,
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação,
no rio, no ermo sem dar razão de seu feito.
(...)
E apontavam já em mimuns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta
culpa? "
E negando ser doido, um dia aconteceu:
"Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e
declarado, tive que reforçar a voz: "- Pai, o senhor está velho, já fez o
seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e
eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu
lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo."
Mas o pai escutara o filho e ficou em pé, manejou o remo na água.
Concordando.
A filho fugiu. Observe o fecho:
"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar
calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do
mundo. Mas, então, ao menos que, no artigo da morte, peguem em
mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que
não pára, de longas beiras: e , eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro o
rio."
Para você responder: que terceira margem é esta?
VII. Pirlimpsiquice
tema: infância/ revelação do encantado, maravilhoso

"Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao


que sei, ao que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve.
Ainda, hoje, adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que
da desordem, e menos da desordem do que do rumor. Depois, os padres
falaram em pôr fim a festas dessas, no Colégio."
O texto narra, em primeira pessoa, um acontecimento inexplicável que
se deu durante uma apresentação teatral, feita por adolescentes que
freqüentavam um colégio de padres, sob o comando do Dr. Perdigão,
professor de corografia e história-pátria.
O narrador se indaga se tiveram culpa no desfecho precipitado, nos
acontecimentos que ocorreram , tão distante do que se previa no ensaio.
A peça escolhida era Os filhos do Doutor Famoso, em cinco atos. O
narrador seria o "ponto", ou seja, aquele que ficava embaixo do palco e
que, durante os esquecimentos da fala, "soprava"o texto..
Representariam a peça em caráter beneficente. Mas na turma que ia
representar, estavam "de mal"o Ataualpa, que seria o "Dr. Famoso"e o
Darcy, o filho do Capitão. No dia do espetáculo, o pai de um dos atores
estava à morte, e um parente veio buscá-lo. O narrador, então, vai levar
um susto, mas é colocado sobre o palco, para ocupar o lugar daquele
faltante.
Ocorre que o narrador teve um branco, ficou imóvel e gago, o que
arrancou gritos da platéia. E tudo começou a acontecer: ele só conseguiu
gritar um viva à Virgem Maria. A platéia delirou. Os atores , também
imobilizados, ficaram no palco, feito estátuas, quando os outros
entravam.
Então, um tal de Zé Boné, meio estúrdio, começou a representar a
"sobrepeça" , uma outra história, inventada, para desespero dos padres
e do Doutor Perdigão, cada um falando o que lhe vinha à cabeça:
"Mas de repente eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro
estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim?
Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava.
E fiz uma força, comigo, para me soltar do encantamento. Não podia,
não me conseguia para fora do corrido, contínuo, do incessar. Sempre
batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de
seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o
verdadeiro viver? E era bom demais, bonito o milmaravilhoso a gente
voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso
próprio falar. E como terminar? "
Era a tal pirlimpsiquice, a magia e a loucura da cena. E o narrador conta
que só havia uma maneira de parar. Deu uma cambalhota e despencou
do palco.
E o mundo pareceu ter se acabado.
No outro dia, o Gamboa veio e falou: "Eh, eh, hem? Viu como era que a
minha estória era a de verdade?"
Pulou-se, ferramos fera briga.
VIII. Nenhum, nenhuma
tema: misticismo, o transcendente
Num lugar que parece ser dentro de uma grande casa de uma fazenda, é
que acontece esta história: um Menino, que ali estava de passagem,
penetrara num quarto, no extremo da varanda onde se achava um
homem "sem aparência, se bem que, por certo, como curiosamente se
diz, já "entrado em anos"; ele deveria ser o dono de lá.
Há, no conto, por parte do narrador, uma espécie de evocação da
infância que só é resgatada através de cheiros, luzes. E é assim ( seria
em 1914?) que ele evoca uma Moça, aureolada de certa luz, com certo
som de voz.
O narrador se perde nos labirintos da memória:
"Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me:
adivinhar o verdadeiro e real, já havido. Infância é coisa, coisa?
E continua:
"A Moça e o Moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar,
diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido.
Eles olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a
cantar, as árvores pe-ante-pé, as nuvens desconcertadas: como do
assoprado das cinzas a esplendição das brasas. Eles se olhavam para
não distância, estiadamente, sem saberesm, sem caso. Mas a Moça
estava devagar, mas o Moço estava ansioso. O Menino, sempre lá perto,
tinha de procurar-lhes os olhos. (...) Mas o menino queria que os dois
nunca deixassem de assim se olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida,
também, não."
O menino talvez tivesse chegado ali em "desviada viagem, sem pessoas
da família. Todos imaginavam poder esconder o que havia num
determinado quarto, o Homem dizia ser impossível se esconder algo de
um menino.
E o que havia naquele quarto?
Uma mulher, uma velha, velhinha, velhíssima e inacreditável. Nem sabia
mais quem era. A Moça, com muito amor, tratava dela.
O menino, assustado, foi se refugiar na cozinha, o Moço lhe disse que
sossegasse, que não era a Morte, não. O Homem, calado, rezava terços.
"Diziam ao Menino, demonstravam-lhe: que a Velhinha não era
sombração, mas sim pessoa. Sem que lhe soubessem o verdadeiro
nome, chamavam-na a "Nenha". Ela ficava tão quieta, no meio da alta
cama de torneados, o catre com a cabeceira dourada, que ali quase se
sumia, nos panos, algo inviolável em sua exigüidade, e respirava. Era
cor de cidra, em todas as rugazinhas e os olhos abertos, garços. O que
ela não tinha era pálpebras? Todavia, um trêmito, uma babinha, no
murcho, a boca, e era o docemente incompreensível. O Menino sorriu.
Perguntou: - "Ela beladormeceu?"A Moça beijou-o. A vida era o vento
querendo apagar uma lamparina. O caminhar das sombras de uma
pessoa imóvel."
A Moça dizia ao Moço que ele ainda não sabia sofrer. Levaram a Velhinha
para um grande jardim, traziam-na para tomar sol,acomodadinha num
cesto, que parecia um berço. E o Menino quis brincar com ela. Davam-
lhe comidinha mole na boca, traziam-lhe a pedida água.
Ela, a Velhinha, já não reconhecia ninguém. O Homem podava as
roseiras, o Moço pegou a mão da Moça e o Menino ficou enciumado.
De quem era a Velhinha era mãe?
Tinham se esquecido, ela também.
Moço e Moça se separaram, a Velhinha morreu; o Menino foi embora
com ele:
"Será que posso viver sem dela me esquecer, até a grande hora? Será
que em meu coração ela tenha razão? "O Menino não respondeu, só
pensou, forte: - "Eu também!"
E ele tinha raiva desse Moço...
Ao voltar para casa, o Menino chorou e gritou na presença dos pais:
"- Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se
esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!..."
E eles abaixaram a cabeça, figuro que estremeceram.
Porque eu desconheci meus Pais eram-me tão estranhos; jamais poderia
verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?"
Este é um conto chamado hermético. O Menino, que num dado instante
de sua vida conhece o Amor das pessoas, entre as pessoas e pelas
pessoas, acaba renegando os pais "desconhecidos", tão formais, tão
neutros, tão sem nenhum destinamento senão ser eles mesmos e nunca
UM.
IX Fatalidade
tema: violência
"Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade, veio à casa
do Meu Amigo, por questão de vida e morte, pedir providências. Meu
Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de
cavalaria e delegado de polícia. Por tudo, talvez, costumava afirmar: "-
Que a vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é
impossível. O que vemos , é apenas milagre; salvo melhor
raciocínio."Meu Amigo sendo fatalista."
Quando o homenzinho apareceu, o Amigo estava no fundo do quintal,
exercitando-se. Dava tiros com carabinas e revólveres, alternadamente.
Dizia, naquele exato instante em que o homenzinho viera procurá-lo,
que quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas
possibilidades.
O homenzinho era caipira, podia ser visto isso pelo traje e tinha entre
"vinte-e-muitos e trinta anos."
"Miúdo, moído. Mas concreto como uma anta, e carregado o rosto,
gravado, tão submetido, o coitado; as mãos calosas, de enxadachim.
Meu Amigo, mandando-lhe sentar e esperar, continuoum baixo, a
conversa; fio que, apenas, para poder melhor observar o outro, vez a
vez, com o rabo-do-olho, aprontando-lhe a avaliação. Do que disse: - Se
o destino são componentes consecutivas além das circunstâncias gerais
de pessoa, tempo e lugar... e o karma..."Ponto é que o Meu Amigo
existia, muito; não se fornecia somente figura fabulável, entenda-se. O
homenzinho se sentara na ponta da cadeira, os pés e os joelhos juntos,
segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre."
Tinha apelido de Zé Centeralfe, que era homem de obedecer leis, tinha
um primo oficial de justiça. Ameaçado, viera dar parte. Era casado, na
igreja e no cartório, sem filhos, morador no arraial do Pai-do-Padre. Vivia
bem com a mulher, gostava do trabalho e daquela vida de casado.
Mas para lá, no arraial, fora dar um homem chamado Herculinão Socó,
que se engraçara com a mulher do Zé... Ela não podia sequer botar o pé
pra fora de casa, que lá estava o deslavado vagabundo a persegui-la.
Mudaram-se para o Amparo e lá arranjaram uma casinha, uma roça,
uma horta. Mas logo o homem tornou a aparecer, por birra.
Fugiram de lá também, a custo.
O delegado insinua que sua carabina faria uma festa naquele desordeiro
desrespeitador.
E, tomado de coragem, o homenzinho pegou a carabina e se foi.
Depois, seguiu o Zé. Viu quando este depôs Herculinão na terra, arriado:
"O Centeralfe se explicou: "Este iscariotes..."
O delegado, convidou o Zé Centeralfe para o almoço:
"Meditava, o Meu Amigo. Disse: "Esta nossa Terra é inabitada. prova-se ,
isto...", - pontuante."
IX. Seqüência
tema: amor
De madrugada, uma vaca viajava.
"Vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha
vermelha, a cor grossa e afundada o tom intenso de azamar. Ela
solevava as ancas, no trote balançado e manso, seus cascos no chão
batiam poeira. Nem hesitava nas encruzilhadas. Sacudia os chifres,
recurvos em coroa, e baixava a testa, ao rumo, que reto a trazia, para o
rio, e para lá do rio a terras de um Major Quitério, nos confins do dia, à
fazenda do Pãodolhão."
No Arcanjo, onde a estrada se aproxima do povoado, foi notada e
tomada por rês fujã; tentaram prendê-la, feroz ela se desvencilhou e foi-
se. No riachinho do Gonçalves, parou para beber; mulheres lavando
roupa, deixavam tudo e corriam dela.
"Tio Terêncio, o velho,, à porta da casa, conversou com o outro: "-Meu
fio, q'vaca qu"é essa? "- "- Nhô pai, e'a n'é nossa, não." Seguia certa;
por amor, não por acaso.
Só , assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente entre o
primeiro canto dos melros e o terceiro dos galos o sol saindo à sua
frente, num céu quase da sua cor. Fazia parte de um gado, transportado,
de boiadeiros, gado de coração ativo. Viera do Pãodolhão sua querência.
Apressava-se nela o empolgo de saudade que adoece o boi sertanejo em
terra estranha, cada outubro, no prever os trovões. Apanhara a boca-da-
estrada para os onde caminhos fronteando o nascente."
Quando seu Rigério soube que a vaca estava à procura da antiga
"querência"( lugar onde fora criada e crescera), apenas disse: "Diaba".
Um dos filhos, percebendo que o pai a necessitava de volta, tomou a
sério o que era a busca.
"Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo:
levar em brio e tomar conta. Atou o laço na garupa. Disse: "É uma
vaquinha pitanga?"Pôs-se a cavalo. Soubesse que por lá o botava, se
capaz. Saiu à estrada-geral. Ia indo, à espora leve. Ia
desconhecidamente. Indo de oeste para leste.
Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava de o bastante. Ante o
morro, a passo, breve, nem parava para os capins dos
barrancos"arrancava-os, mesmo em marcha, no mesmo surdo
inssossego. Se subia cabeceava, num desconjuntado trabalho de si. Se
descia era beira-abismos, patas abertas, se borneando. Após, no plano,
trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam. Olhava-as:
alteou-se e berrou o berro encheu a região tristonha. O dia era grande,
azul e branco, por cima de matos e poeiras. O sol inteiro."
E a vaquinha ia pelo caminho, bebia num córrego, pulou uma cerca, o
rapaz, teimoso também, já vinha perto. De repente, ele a viu e pôs-se a
persegui-la.
A vaquinha procurando a sua querência, o rapaz procurando o que
agradasse ao pai. E na perseguição, chegou à casa de um Major Quitério.
E lá viu a moça por quem se apaixonou. A vaca o levara lá, quem diria,
para cumprir seu destino. Observe a linguagem, como é:
"O rapaz e a vaca entravam pela porteira-mestra dos currais. O rapaz
desapeava. Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a escada.
Tanto tinha de explicar.
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a
segunda. Era alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-
se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele
a ela diria: "É sua." Essas duas almas se transformavam? E tudo à sazão
do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais
horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos."
XI. O Espelho
tema: misticismo e descobertas
"- Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a
que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.
Tomou-me tempo, desânimos, esforços. dela me prezo, sem vangloriar-
me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando
conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que
sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade um
espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou,
as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de
um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando
nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."
O narrador se reporta ao leitor, diretamente, como podemos observar. E
conta fatos, uma série deles, desafiando o leitor, a quem chama de
"senhor" ( lembre-se aqui que esse expediente também é usado em
Grande Sertão: Veredas) a seguir seu raciocínio tortuoso.
O narrador conta uma experiência que um dia viveu num banheiro de
um edifício público: ver-se num determinado ângulo de um espelho,
estranhar-se até à náusea, desconhecer-se como criatura viva e
independente de si mesmo. É a mesma experiência que vivemos quando,
inesperadamente, nos vemos sem que queiramos, desprevenidos, no
espelho de um shopping, numa vitrina. Nossa imagem, é a do Outro, um
ser alheio a nós, que em nós habita.
E narra, ainda, algo mais terrível: aos poucos, vai perdendo sua imagem
no espelho, ela vai se enevoando tristemente, até que nada mais lhe
reste. Perder a identidade, olhar até que não se possa ver a não ser
nossas próprias máscaras, a cara que não temos, o que nunca fomos:
"Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se
de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser,
não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-
me, não viso a afeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo,
as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me
vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água
limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu nào tinha formas,
rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência
física. Eu era o transparente contemplador? ... Tirei-me. Aturdi-me a
ponto de me deixar cair numa poltrona."
E começa a se exercitar para enxergar-se novamente.
Toda existência humana é isso: fazer e refazer-se.
Não temos o rosto que nos atribuem, mas não temos, também, o rosto
de nossas múltiplas máscaras sociais. E quantas máscaras usamos.
No viver, e viver é perigoso, segundo Guimarães Rosa, fingimos
demasiadamente, perdemos nossa própria identidade até que,
metaforicamente, não possamos mais nos ver nos verdadeiros espelhos.
Cadê nosso rosto que se perdeu?
Cadê nossa verdadeira face diante do que somos, vivemos e
representamos?
É preciso muito esforço, depois das perdas, para que voltemos a nos
"enxergar". É quando, finalmente, cansados de ser os outros,
reconstruímos belamente nosso rosto. Ainda que nos custe muito. O
aprendizado de "enxergar-se", identificar-se, valorizar-se é esse. Pouco a
pouco e passo-a-passo, recapturamos o que há de perdido em nós nos
espelhos da vida.
"Sim? Mas , então, está irremediavelmente destruída a concepção de
vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de
bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do
senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne a dar-me,
a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da
ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados.
Sim?"
XII. Nada e a nossa condição
tema: loucura
Esta é mais uma estória que tem como tema a loucura.
Um certo Tio Man'Antônio, rico fazendeiro dono da Torto-Alto, bondoso
ao extremo, depois que morre-lhe a esposa Tia Liduína, também
bondosa e sensata pessoa, transforma-se.
"Sua mulher, Tia Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte
de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta. Tio Man'Antônio, com
nenhum titubeio, mandou abrir, par em par, portas e janelas, a longa,
longa casa. Entre que as filhas, orfanadas, se abraçavam, e revestia-se a
amada morta, incôngruo visitou ele, além ali, um pós um, quarto e
quarto, cômodo e cômodo."
Derruba a mata da fazenda e só deixa delas as árvores de que Tia
Liduína mais gostava.
"Ah! ora, que e quem, pois e era uma enorme, feita fantasia. Porque,
aquém e além, como árvores deixadas para darem sombra aos bois no
ruminar do calor, só e muito se divisavam, consagradas, a vistosa
sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da sorocaba, e, para
fevereiro-março e junho-julho, sem folhas, sendo-se só de flores, a
barriguda rósea e a paineira purpúrea-quase-rubra, magnificentes,
respectivas. Outras, outras. Mas , não mais, no qual lugar, que aqueleas
que Tia Liduína em vida preferiria amar seus bens de alegria!"
E as filhas se espantaram quando, no ano seguinte ao da morte da
mulher, o pai se dispusesse a dar uma festa para comemorar tal
estranho aniversário. E vieram os primos, e as moças se apaixonaram,
se casaram e foram embora, morar na idade. Tio Man'Antônio ficou
sozinho, mas não triste. Se se aborrecia, se levantava e ia para algum
rude trabalho ou, então, punha-se nas asas da imaginação, ficava
imaginando coisas.
Rico, não estimava os bens.
Aos poucos, entre os pobres, pretos, brancos, pardos e mulatos
distribuiu suas terras, tudo feito secretamente. Para as filhas e genros,
mandava dinheiro , dizendo fingindo vender as terras.
"De seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa,
naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e espaçoso: e
de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro, sempre com
um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos. Nada. Talvez não.
Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta. Aos outros
amasse-os não os compreendesse."
Mas o beneficiados se acostumaram rápido, fazendo-se de donos. Não o
amavam e, assim sendo, julgavam que ali, mesmo que ilhado naquela
casa, era ainda o dono e o senhor. Majestade.
Mas morreu, de repente, dormindo, Tio Man'Antônio. Chorou-se, tocou-
se o sino, chamaram os parentes. De repente, à noitinha, incendiou-se
de repente a Casa, incendiaram-se os pastos e terra em volta, ardeu o
defunto até virar cinza.
"Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas e, por elas, após ainda
encaminhou-se, senhor, para a terra, gleba tumular, só; como a
conseqüência de mil atos, continuadamente.
Ele que como que no Destinado se convertera Man'Antônio, meu Tio."
XIII. O Cavalo que bebia cerveja
tema: loucura
Esta é a estória de um italiano chamado Giovânio; narrada por seu
caseiro Reivalino Belarmino, era morador de uma chácara "meio
ocultada, escurecida pelas árvores, que nunca se viu plantar tamanhas e
tantas em roda de uma casa."
Foi da mãe que Reivalino ouviu as histórias de como o estrangeiro
chegara àquelas bandas, no ano da gripe espanhola, acautelado e
espantado.
Os moradores da redondeza comentavam que ele comia toda a espécie
de imundície: caramujo, até rã, com braçadas de alface. Jantava com a
vasilha entre as pernas grossas. Muita salada e a carne, que à parte ele
cozinhava.
"Demais gastasse era com cerveja, que não bebia à vista da gente. Eu
passava por lá, ele me pedia: - "Irivalíni, bisonha outra garrafa, é para o
cavalo..."Não gosto de perguntar, não achava graça. Às vezes eu não
trazia, às vezes trazia, e ele me indenizava o dinheiro, me gratificando.
Tudo nele me dava raiva. Não aprendia a referir meu nome direito.
Desfeito ou ofensa, não sou o de perdoar a nenhum de nenhuma.
Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que atravessávamos por
diante da porteira, para pegar a pinguela do riacho. '"Dei'stá, coitado,
penou na guerra..."- minha mãe explicando. Ele se rodeava de diversos
cachorros, graúdos, para vigiarem a chácara. De um, mesmo não
gostasse, a gente via, o bicho em sustos, atipático o menos bem
tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de ao pé dele, que
estava, a toda hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por
nome "Mussulino". Eu remoía o rancor."
O narrador nos informa que não entendia porque um homem daqueles,
cheio de catarros, rouco e gordo, pudesse ter tido dinheiro para comprar
terra cristã.
Quase que caminhar o homem não podia e fumava uns charutos
pequenos e catinguentos, muito mascados e babados.
E cavalos tinha uns três ou quatro, bem alimentados.
Gostava, no entanto, da mãe do narrador, a quem tratava com
benevolências, e quando ela adoeceu, o estrangeiro ofertou ao narrador
dinheiro. Nada adiantou, a mãe morreu. E o homem convidou Belarmino
para trabalhar na chácara.
E toda vez que o rapaz passava por lá, o homem pedia que ele
comprasse cerveja para o cavalo. Belarmino imaginava pelo lado de
dentro o que haveria naquela casa grande, sempre trancada, nem para
comer, nem para cozinhar.
Foi quando chegaram uns homens e o delegado os apresentou como
autoridades. Eles fizeram perguntas, perguntaram se o patrão não tinha
sinal na perna de "argolão",marca dos presos.
Eram homens do consulado. Uns dias antes, o estrangeiro andou com o
empregado pela casa que fedia, de tal fechada, mostrando coisas,
satisfazendo-lhe a curiosidade. O subdelegado Prescílio apareceu por lá e
perguntou ao Giovânio que coisa era aquela de cavalo beber cerveja. e,
no dia seguinte, apareceu lá com um soldado, querendo revistar a casa.
Ele abriu e, para o pasmo do subdelegado, num dos quartos estava um
cavalo grande, ancudo, feito esses cavalos de brinquedo das crianças,
com crinas e tudo, bem no centro do quarto.
Belarmino viu, certa vez, o patrão chorar enquanto comia, enquanto o
ranho descia do nariz dele. Daí foi tomado de pena e foi ao subdelegado
e disse que se mais alguém o incomodasse, ele saía na briga com eles.
U m dia, o patrão o chamou, apresentando-lhe, de costas no chão da
sala, o irmão que ele abrigava ali, sem ter dito nunca pra ninguém:
"Josepe, meu irmão..."
O delegado chegou para examinar:
"Mas, aí, se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o
morto não tinha cara, a bem dizer só um buracão, enorme, cicatrizado
antigo, medonho, sem nariz, sem faces a gente devassava alvos ossos, o
começo da goela, gargomilhos, golas. "Que esta é a guerra..."- seu
Giovânio explicou boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda
doçuras."
O narrador diz que foi embora, não deu abraço no homem não por nojo,
mas por vergonha. Depois que morreu, deixou a chácara para o
empregado:
"Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo irmão, por
minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as
árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido
quarto. Lá nunca voltei."
Nunca mais voltou ali, mas ainda bebe cervejas que a casa, vendida, lhe
paga.
XIV. Um moço muito branco
tema: misticismo/ o metafísico
"Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca de Serro Frio, em
Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas
da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se
projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num
terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu
vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho temporal, com
assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas do rio e
córregos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se
que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de
morros, grotas escancaradas, riachos longe transportados, matos
revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos."
Morreram as criações, outras vagavam por aí.
E na Fazenda do Casco, que pertencia ao Hilário Cordeiro, apareceu um
moço coberto de trapos, em "lástima de condições":
"Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve,
semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda
claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente
não depara nem nunca viu."
Hilário Cordeiro o hospedou, perdida a memória do moço, perdida a fala.
Ficou com dó dele. Não lhe puseram nome, posto já ter um, mas
esquecido. Parecia um bom homem, mas sem lembranças nenhumas.
Levaram o rapaz na missa e um tal de Duarte Dias, pai de uma linda
moça chamada Viviana, não gostou dele. Não gostava de ninguém.
Havia na cidade um negro recém-alforriado chamado José Kakende,
músico sem juízo, quando viu o rapaz , disse:
"O rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplendor, e nela, entre
fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato
e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando,
de dentro, desceram os Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores."
O moço muito branco, ao ver um cego na saída da igreja, deu a ele uma
coisa que trazia no bolso, a semente de uma árvore, que plantada nos
fins dos acontecimentos aqui narrados, deu árvore linda, de uma única e
grande flor, sem que nunca desse semente ou muda.
Apareceu, então Duarte Dias, e pretextando poder o moço muito branco
ser um de seus parentes desaparecidos no cataclismo, quis levá-lo.
Hilário Cordeiro não quis, dizendo que o moço lhe trouxera muita sorte.
Mas eis que Viviana apareceu e o moço, num gesto de quase-amor, lhe
pôs a mão espalmada no seio, delicadamente.
Duarte Dias, irado, bradou: "Tem que casar! Agora tem de casar!"
Viviana, que era moça triste, teve nela despertada ( e para sempre) a
Alegria.
Na missa de Nossa Senhora das neves, lá estavam o moço e Duarte Dias
que suplicava precisar levá-lo embora. Motivo: tinha-lhe grande afeição.
E o moço, pegando-lhe a mão, levando o cego Kekende consigo, foi até
as terras dele e indicou para que cavassem ali, perto de uma tapera,
numa olaria: acharam lá muitos diamantes. Duarte Dias se transformou
em homem bom e generoso.
Um dia, José Kakende contou que ajudara o a acender nove fogueiras e
que, num certo instante, o moço criara asas e se fora, mal nascido o sol.
Duarte Dias morreu, Viviana conservou a alegria para sempre.
O moço muito branco?
Ele cintilava, ausente.
XV. Luas-de-mel
Tema: amor
Um fazendeiro, cujo nome era Joaquim Norberto, dá guarida a um casal
que estava fugindo junto porque o pai dela não aceitara namoro nem
noivado.
O pai da moça era homem reconhecidamente duro, mas Seotaziano
recomendara que Joaquim os abrigasse e ele o fez.
A qualquer instante o pai e os capangas poderiam intervir e , nesse
clima, realiza-se o casamento.
Durante o casamento, Joaquim Norberto é tomado de saudades do seu
próprio casamento com Sa-Maria Andreza e dispõe-se a recordar, com
ela, a lua-de-mel.
O título refere-se ao fato de que duas luas-de-mel ali se passam nesta
noite: a dos fugitivos e a de Joaquim Norberto e a esposa.
No meio da noite , avisam o pai do "fato consumado", e o major aceita
de bom gosto, convidando a todos para uma festa.
XVI. Partida do audaz navegante
Tema: infância
"Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não
acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha,
aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim.
Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar ovos com
torresmos e descascar os mamões maduros e descascar os mamões
maduros. Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as
chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-
dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, pele e Brejeirinha- elas
brotavam nu galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo."
Pele é a filha mais velha, carinhosa e gentil; Brejeirinha é a menor,
sempre dando trabalho e Ciganinha, sempre em estado de sonho, graças
aos seus namoros com o primo Zito.
Brejeirinha é a protagonista e , durante a chuvinha, inventara uma
história sobre um audaz navegante. Pele rezara a Santo Antônio.
Assim que cessa a chuva, pedem à Mãe para ir espiar o riachinho que se
enchera. Brejeirinha vê um cogumelo e dá-lhe o nome de audaz
navegante, enfeitam o cogumelo de cuspe, folhinhas de bambu, ramos,
gravetos e florezinhas amarelas. Colocam lá também um cliclete. O Zito
põe uma moeda. É dessa forma que o audaz navegante já pode partir.
Brejeirinha inventa uma moça e diz que ambos se amam, que assim, rio
abaixo, ele não vai sozinho, então o Audaz Navegante, nome dado ao
cogumelo, já não vai partir sozinho.
XVII. A Benfazeja
tema: loucura
Num lugar, perdido no meio do mundo, vivia uma mulher velha e muito
feia, chamada Mula-Marmela; magra, feia demasiadamente, era guia de
um cego chamado Retrupé. O cego pedia esmolas rudemente.
Diziam que Mula-Marmela tinha cometido um crime hediondo: matara o
pai do cego Retrupé, que era um monstro de perversidade. O
Mumbungo, marido que Mula-Marmela assassinara.
O cego, de maus modos, pedia esmolas:
"O Retrupé, com seu encaninzar-se, blasfemífero, e prepotente esmolar,
ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele quisesse, o pão-
por-deus. "- Ele é um tranca! o cínico e canalha, vilão. Mas só, às vezes,
alguém de longe, desabafava. O homem maligno, com cara de matador
de gentes. Sobre os trapos, trazia um facão, pendente. Estendia,
imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de cão,
superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava o silêncio.
Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem
podia.
Tinha medo, também; disso vocês nunca desconfiaram. temia-a à
mulher que o guiava."
O Mumbungo era homem mau , "monstro de perversias". Dizem que
"esfaqueava rasgado". Gostava da mulher, queria-a e temia-a, da
mesma forma que o filho hoje o faz, temendo.
O narrador observa que, depois da morte do Mumbungo, podem viver
em paz. Por causa da benfazeja, a Mula-Marmela, que praticara o bem
tirando aquele demônio do marido do mundo. Antes de Retrupé ficar
cego, ia pelo caminho do pai, precisando de sofrimento e sangue para
estar no mundo. Foi aí que, dizem, cegou aquele filho do diabo.
Um dia, Retrupé tentou matar sua guia, acordado no meio de uma febre,
estonteado. Mas dizem também que Mula-Marmela, apesar do
sofrimento, amparando-o e gritando "meu filho!", apressou-lhe a morte.
E partiu Mula-Marmela da cidade, sozinha, a fim de espiar suas culpas
ou, quem sabe, desfrutar a vida como A benfazeja.

XVIII. Darandina
tema: loucura
O narrador é um médico-residente num hospício ( o Instituto).
Como se dá a história, que é tragicômica e é narrada por um mordaz
médico que em tudo põe os olhos e nada deixa escapar?
Assim: um homem muito bem posto, acusado de roubar uma caneta e,
perseguido por outros, sobe com rapidez numa palmeira-real. Os
funcionários do hospício ficam observando aquilo e decidem que ele é
meio louco.
Um médico plantonista, que não é o narrador, diz que o homem é
secretário das Finanças Públicas, o que é contado à multidão que,
achando coerente o que ele faz, devido ao seu trabalho, aceita o fato
como normal. O verdadeiro secretário recebe pedido de desculpas. E
uma outra multidão, agora, formada pela polícia, corpo de bombeiros,
capelão, enfermeiros, padioleiros, chega.
Um professor, Dartanhã, aproveita a darandina ( confusão) e contesta a
autoridade do diretor do hospital. Enquanto tudo acontecia lá embaixo, o
homem , lá em cima, dizia:
"- O feio está ficando coisa..." (...) Querem comer-me ainda verde?!"
Tira os sapatos, a roupa, os bombeiros tentam resgatá-lo, os
cinegrafistas o filmam, jornalistas e fotógrafos também estão lá. E o
doido, lá em cima, resolveu, então, balançar-se na palmeira, recebendo,
agora, os aplausos do público.
Mas, num momento, o doido recuperou o equilíbrio mental. Só que nem
o público, nem os diretores, nem os médicos aceitavam isso, assim, de
repente. Pretendiam linchá-lo. Foi ai que o louco deu gritos contra a
ordem estabelecida e gritando "Viva a luta! Viva a liberdade!"despencou
de lá de cima nu como viera ao mundo. , mas foi amparado pela
multidão.
De igual, depois daquilo, só mesmo a palmeira.
XIX. Substância
tema: amor
Esta é mais uma estória de amor destas Primeiras Estórias . Quem fazia
o polvilho mais branco da fazenda de Sionésio era Maria Exita:
"Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o patrão
nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque,
contra a menos infeliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a
mãe, leviana, desaparecida de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por
atos de morte; o outro, igual, feroz, foragido, ao acaso de nenhuma
parte; o pai razoável bom-homem, delatado com a lepra, e prosseguido,
certo para sempre, para um lazareto. Restassem-lhe nem afastados
parentes(...)"
E lá ficava Maria Exita, trabalhando o melhor polvilho, o mais branco, o
mais alvo entre todos os polvilhos que já puderam, um dia, fazer.
Sionésio recebera a fazenda de herança e, devido à escassez da
produção de qualquer outra coisa, plantava mandioca e em tudo punha
seu olho de dono., não deixava de trabalhar nem aos domingos e
feriados.
Um dia, numa festa, encontrou Maria Exita, em quem jamais
reconheceria aquela menina feia e magra que em suas terras chegara,
largada. Apaixonou-se por ela. E num dia lindo, aberto e claro, foi até as
pedras onde ela trabalhava e propôs casamento.
Recebeu em resposta um largo sorriso:
"Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar?
Voc6e, comigo, vem e vai?"
E ela: "Vou, demais."
(...)
Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os
Pássaros."

XX.Tarantão, meu patrão

tema: loucura
O narrador deste conto é Vaga-Lume, ajudante-de-ordens de Iô João-de-
Barros-Dinis-Robertes, a personagem protagonista de nosso conto. Iô
João era um bom homem, D. Quixote sertanejo que, já velhinho, meio
aluado, precisava dos cuidados de alguém.
Cismava com tudo.
Acordou, certa feita, e disse que ia matar o Magrinho, que era seu
sobrinho-neto, médico que lhe dera injeções necessárias e aplicara-lhe
uma lavagem intestinal.
Para tanto, escolheu um cavalo e pediu ao Vaga-Lume que arreiasse
outro, a fim de acompanhá-lo. E, esbravejando que fizera um pacto com
o Demônio, lá se foi para a cidade, fincando a espora no animal.
Vagalume, desesperado, ia atrás do velho, com medo que despencasse
do baio imponente. Na pressa de matar o sobrinho médico, o velho
calçara um pé de botina amarela e outro de bota preta. E em vez de um
facão, trazia uma faca de cozinha sem-graça.
Louco, tomado, segundo ele mesmo pelo Demo, consegue arregimentar
14 coitados pobres que acreditam nas suas doideiras. Vão para a cidade
em busca de Magrinho. Havia uma festa lá. os parentes acharam graça,
loucura, quando o velho invadiu a festa e sentenciou:
"- Eu pido a palavra..."
Fez um discurso esquisito, que a todos comoveu. Ao terminar. Todos os
abraçaram e ele comeu fartamente, bebeu, dançou. Não houve Demo,
não houve morte.
E depois foi embora. Para morrer.
XXI. Os Cimos
tema: infância
Esta estória termina os 21 contos de que se forma este livro; e parece
completar o que se anuncia no primeiro desta série de contos, sobre o
Menino.
Está dividida em 4 partes: O inverso afastamento, Aparecimento do
pássaro, O trabalho do pássaro e O desmedido momento.
O Menino está sofrendo porque a Mãe está doente, longe dele, numa
cidade muito distante. esta dor é pura depuração, parte do rito da
iniciação do crescimento e do conhecimento do mundo.
O tucano parece ser o símbolo do desconhecido, mas também do
encantador demais. Quando o tio, recebendo notícias, anuncia que a Mãe
do menino está bem, não corre mais perigo, a imagem do pássaro, da
luz do dia, da natureza se fundem numa só, em plenitude.
E o Menino, feliz, sabe que não estará sozinho outra vez.
"E vinha a vida."
Profa. Esther PS Rosado

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ESPAÇO ABERTO

RÁDIO-AULAS

PORTUGUÊS
PROF. JADIEL HORTEGAL

ANÁLISE DA OBRA LITERÁRIA

João Guimarães Rosa (Famigerado)

Formado médico, exerceu pouco a profissão. O domínio de vários idiomas levou


Guimarães Rosa à carreira diplomática. Prestou concurso para o Itamarati e, em
1938, já era cônsul-adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha. Em Bogotá, foi
secretário da Embaixada Brasileira.
Em 1952, em excursão ao Estado do Mato Grosso, conviveu com vaqueiros do
oeste do Brasil e começou a realizar um projeto majestoso: o livro Grande sertão:
veredas, que publicou em 1956.

Conjunto da Obra

Após a publicação dos contos de Sagarana, em 1946, Guimarães Rosa estabelecia


na Literatura Brasileira uma completa transformação linguística, que se iria
intensificado sempre à medida que suas outras obras de ficção iam aparecendo.

Caracterizam sua obra:

a) Manejo da palavra e deslocamento da sintaxe: O ciclo de novelas de corpo de


baile - desdobrado em Manuelzão e Miguilim. No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites
do Sertão - e o romance Grande sertão: veredas apresenta uma alteração profunda
no manejo da palavra, que consiste , sobretudo, numincomum deslocamento da
sintaxe, no emprego de um vocabulário ora arcáico, ora neológico, na ousadia
mórfica, que recria a linguagem.
b) Transcendência do regionalismo: Os elementos folclóricos pitorescos e
meramente documentais, lugares-comuns da maioria das obras regionalistas,
ganhariam novos significados com Guimarães Rosa: o escritor lida com eles de uma
forma inusitada, situando-se entre a realidade e a fantasia, localizando-se num plano
mítico.
c) Reinvenção do sertão: Questionando a linguagem da ficção e reunindo elementos
linguísticos da própria realidade sertaneja, reinventa o sertão, chamando a atenção
em todas as obras, mas principalmente em Grande Sertão Veredas para o fato de
que "o sertão é o mundo". Transforma, assim, esse território num espaço-metáfora,
em que tudo pode acontecer.
d) Inserção de momentos de "epifania": São histórias , historietas, eventos que
"revelam" à personagem aspectos antes não percebidos.
e) Temática universalizante: ao transformar o sertão no mundo, Guimarães Rosa
torna-o universal, fazendo caber dentro dele todos os temas . Ao mesmo tempo, "o
sertão é dentro da gente" , ou seja, é a interpretação que cada um de nós tem do
mundo.

Famigerado

Foi de certa feita o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel.
Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha
porta, equiparado, exato: e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance , insolitíssimo. Tomei-me os nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com
cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco curto pesadamente. Seu cavalo
era alto, um alazão; bem arredado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida [ ... ] O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me
miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse que não, conquanto os costumes.
Conservava-se de chapéu [ ... ] Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta [ ... ] Ele falou:
- "Eu vim perguntar a vósmecê uma opinião sua explicada ..."
Carregara a celha. Carregava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu [ ... ]
- "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueira ... Estou vindo da
Serra ..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira ? O feroz de histórias de léguas com
dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo [ ... ]
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente.
Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava.
Cabismeditado. Do que, se resolveu, levantou as feições. Se é que se riu: aquela
crueldade de dentes [ ... ] E pá.
- "Vosmecê me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é:
fasmisgerado ... faz-me gerado ... falmisgeraldo ... familhas-gerado ... ?
Disse, de golpe, trazia entre dentes, aquela frase. Soara como riso seco. Mas, o
gesto, que se seguiu, imperava-se de toda rudez primitiva, de sua presença dilatada.
Detinha minha resposta, não queria que eu a desse por imediato. E já aí outro susto
vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem [ ... ]
- "Saiba vosmecê que sai ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas,
expresso direto pra mor de lhe perguntar a pergunta , pelo claro ..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem tem o
legítimo o livro que aprende as palavras .... [ ... ] Agora, se me faz mercê , vosmecê
me fale, no pau da pérola, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
Famigerado? [ ... ] Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até
então, mumumudos. Mas, Damázio:
- "Vosmecê declare. Estes daí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo,
pra testemunho."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria escrito o caroço: o verivérbio.
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável" ...
- "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
Vilta nenhuma, neenhum doesto. São expressões neutras , de outros usos ...
- "Pois ... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito ...
- "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era pra se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
Olhe: eu, como o senhor me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse! ...
- "Ah! bem! ..." soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas . Subiu em si degradava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: "Vocês podem ir, compadres.
Vocês escutaram bem a boa descrição ..." e eles prestes se partiram. Só aí se
chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:
- "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída! " [ ... ]. Oh, pois.
Esporou, foi-se o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.
(Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio. 1969. p. 8-13)

GEOALPHA PRATICANDO EXERCÍCIOS

01. Assinale a alternativa que se refere a João Guimarães Rosa.

a) Uma fusão de local e universal, de presente e eterno, expressa em uso


absolutamente revolucionário da linguagem, aproxima a sua obra das grandes
experiências literárias da cultura moderna.
b) É verdadeiramente mestre, pelo perfeito balanceio da ternura e do humor, o
senso psicológico e o encanto do estilo, em que se pressente a marca de Machado
de Assis.
c) Inspira-se, como já se observou, numa espécie de cristianismo primitivo. O
registro do cotidiano, nos limites de uma grande metrópole, é feito sempre através
do ângulo de visão das personagens.
d) Sua obra de ficção tem um caráter predominantemente memorialista. Nela se
acentuam os contrastes de requinte e fartura das casas-grandes com a
promiscuidade e a miséria das senzalas.
e) Sob as sugestões da prosa renovadora de Oswald de Andrade, é mais
espontâneo e comunicativo do que seu inspirador. Firma, aos demais uma posição
crítica sobre o Modernismo.
02. Identifique a alternativa que se refere a Guimarães Rosa.

a) Dentro de uma tendência gasta como o regionalismo, conseguiu criar uma


literatura de valor universal, revolucionando mesmo nosso próprio código lingüístico.
b) É pelo pitoresco que se afirma, uma vez que exerce como nenhum outro escritor
a capacidade de pintar paisagens com um colorido de apurado romantismo.
c) A crueza de seus temas e de sua linguagem afasta-o por certo de qualquer
poesia, mas identifica-o como digno herdeiro de nossos melhores autores realistas.
d) O convencionalismo de sua linguagem é compensado pela penetração
psicológica que o torna um dos maiores criadores de tipos humanos da nossa
literatura.
e) Como autor de vanguarda, soube expressar o ritmo da cidade moderna, as
inquietações do homem contemporâneo e o destino sombrio das grandes massas
proletárias.

03. Em Famigerado, qual a opção que apresenta a principal significação de registro


da obra.

a) o jagunço
b) a linguagem
c) a cidade regionalizada
d) a pobreza
e) o psicologismo

04. Tendo como base a questão anterior e a sua resposta correta, marque a opção
que revela dois mundos que estão sempre em confronto no conto.

a) o da oralidade e o da escrita
b) o da escrita e o do homem regionalizado
c) o da política e o da sociedade
d) o da cultura e o do jagunço com seus hábitos e costumes
e) c e d estão corretas

05. Guimarães Rosa utiliza-se, no texto, de alguns recursos comuns à linguagem


poética, além de neologismos, arcaísmos, vocabulário insólito, etc. Encontre
exemplos desses elementos.

volta

Edição nº15 - 12/11/99


João Guimarães Rosa, Uma Questão de jeito...
O jeito de ler o Rosa é um segredo que poucos, tirante os iniciados, os do ramo,
conseguem desvendar.
Trata-se de jeito mesmo, de um próprio modo não só de entonar as palavras
devidamente, mas também de dar aqueles nós na língua, comendo letras ou
inteiras sílabas, os espaços certos entre as palavras, como só o conseguem os
caipiras, tabaréus, sertanejos, gente jacu, do mato.
As palavras, em si, além da sua sonoridade, às vezes não trazem consigo
pendurado nenhum significado preciso. Ou melhor, trazem sim, mas não estão no
comum dos dicionários, pertencem a certo código impublicado do sertão.
Despertam, entretanto, uma sensação, uma desconfiança de que podem significar
mais do que simplesmente dizem. A questão é senti-las, desnudá-las, traduzi-las
para a linguagem entendível do cidadão. Rosa, como poucos, diz coisas que
sentimos, coisas que nos remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa vem, e
diz no exato o que é aquilo, como se forma, a cor e o cheiro que tem, o volume, e
como vem à tona. Ele cria o estímulo, a diferença de pressão necessária para
esguichar pra fora os sentimentos que nem suspeitávamos.
Tenho ouvido muita gente dizer que tem dificuldades para entender o que o Rosa
diz. Acham-no intrincado, a fala do avesso, rebuscado, complica o que é simples. O
fato é que o Rosa não diz, ele sugere, desperta, alerta, é um impressionista com
sua língua própria, com pinceladas só dele.
Já vi gente desistir de lê-lo por isso. Não culpo quem assim pensa, afinal que culpa
tem quem nunca conviveu com gente da espécie bruta que o Rosa cria no seu
viveiro.
Quem vive no meio de computadores, tevê, cartões de crédito, lê Nietzsche, Kafka
e Shakespeare, quem está habituado à leitura técnica, ao convívio com cidadãos
informados e modernos, deve ter mesmo alguns problemas para entendê-lo. Não
falo do literato, este tem a obrigação de saber o que está fazendo. Estuda,
pesquisa, e chega ao entendimento por meios inacessíveis ao vulgo, ao estudante,
ao leitor sem pretensões literárias, filológicas ou filosóficas.
Para esses que lêem por prazer ou necessidade íntima, ou mesmo pelo simples
hábito de passar o tempo fuçando páginas, digo uma coisa: o jeito de ler o Rosa é
em voz alta, buscando as inflexões, a entonação, o sotaque próprio do jagunço, do
sertanejo. Como um ator interpretando um papel, impostando a voz, fazendo as
caretas, gestos, franzindo a testa, estendendo a mão para açambarcar o sertão
todo inteiro como se dono, o vasto mundo do Rosa, que no fundo é o mundo.
Há quem tenha a sorte de ter sido criado no mato, esses já vêm com uma certa
vantagem: já têm a balda e a capacidade de entender de ruídos, de cheiros, de
vozes de animais, de espécies de árvores, de ver o tempo empiricamente olhando
pro céu e dizendo: "hoje chove", sem a necessidade de explicações maiores. O
enviesado pensamento do matuto, a sua codificação. É puro instinto. Esse é o tipo
com qual Rosa convive e universaliza, que reponta sempre aqui e ali, em cada
conto. O seu universo é ilimitado, como todo universo o é, ou deveria ser. Capaz o
jagunço de sentir coisas shakespearianas, siberianas, desérticas, borgeanas, tudo,
enfim, que um homem pode sentir, sem a mínima exigência de legendas ou de
explicações complexas.
Rosa escarafunchou a fineza do espírito do sertanejo, o tortuoso meio do seu
raciocínio, o seu vezo econômico da expressão pelas palavras. Um silêncio pode ser
mais significativo que muitas palavras, relevado aqui o repisado lugar-comum.
Veja, por exemplo, o Soropita. Um homem com sua história de valentias, anônimo
num mundo circunscrito a um arraial e uma cidade amiudada, no meio do nada.
Cheio de dúvidas, arrastando consigo um passado violento; mas gentil, amoroso,
cheio de cuidados para com a mulher que foi prostituta; o que aceita, mas não
admite nem de longe que outros saibam. No trato com o cavalo é jeitoso, ele o
cavalo se entendem à perfeição mediante sutilíssimos toques, mensagens cifradas
para os desavisados, mas língua entre eles.
Rosa, já no começo de Dão-lalalão (O Devente), diz:
"Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo, tenteava-lhe leve leve o fundo do
flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo só com a borda do pé e medindo
mínimo achego, que o animal, ao parecer, sabia e estimava."
Pode que exista meio de dizer isso melhor, mas eu duvido. Essa linguagem, se lida
no tom certo, é entendida pelo mais simples caboclo. Rosa considera o cavalo como
"alguém", não uma simples coisa, animal de carga. Para ele o cavalo é um
parceiro.
Veja como ele, depois de exaltar as variadas qualidades de Doralda, a mulher do
jagunço, que gabava o trato que Soropita destinava ao cavalo, encerra o
parágrafo:
"Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé".
Saíam, Soropita e o seu cavalo, ele e Soropita.
Cada qual, quando exigido, tacitamente fazendo a sua parte:
"Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo que o toque da bota
do cavaleiro lhe segredasse um sussurro, o cavalo ampliava o passo, sem
escorrinhar cocéga..."
"...amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas, governando-o nos
trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do animal ladeira
acima, ou nos embrejados e estivados..."
Difícil entender isso? Apesar de palavras inexistentes "escorrinhar", por exemplo -
há algo ininteligível? Nada. É como se ouvíssemos Soropita falando sua língua de
"dia de semana", como Rosa mesmo diz em "Famigerado", ou língua em mangas
de camisa e pé-no-chão, como disse Lobato. Clara como água de bica que verte do
barranco.
Quanto ao aspecto literário, suas inferências, seus arquétipos, claro que Rosa é
profundo demais pra muita gente. Ele era de uma cultura soberba, umas tantas
línguas que conhecia, viajado no mundo e no sertão de Minas. Mas mesmo assim, o
entendimento de suas "estórias" é mais uma questão de sensibilidade do que de
conhecimento.
Ele mesmo espelha isso, na voz de Riobaldo Tatarana, dizendo que não sabe nada,
mas...
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa."
Questão de jeito mesmo.
Wilson Morais
wmorais@navedapalavra.com.br

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Conferências

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O ROMANCE ENTRE O ESPAÇO GEOGRÁFICO E O TEMPO HISTÓRICO-


SOCIAL:
Das matrizes gilbertianas a outros avanços

Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro

Antes de iniciar gostaria de esclarecer dois pontos. Sou muito verborrágico e corro o
risco de perder-me. Considerando a premência de tempo (acrescida da expectativa
criada com a visita do Ministro) não pretendo ler - o que me desagrada muito - mas
vou tentar acompanhar o texto. Por outro lado, o prazer de estar agora aqui neste
seminário está acoplado a um curso que, sob o patrocínio desta e da Fundação
Gilberto Freyre, estou ministrando neste momento. O tema aqui focalizado está
associado também à temática do curso.

O projeto de sondar o conteúdo geográfico nos espaços romanescos é, em verdade,


mais ambicioso. O universo do Sertão de Guimarães Rosa, visto aqui no Corpo de
Baile, é visto comparativamente. Em contraponto, focalizo também o Vidas Secas,
de Graciliano Ramos e O Cortiço, de Aluízio de Azevedo. Pareceu-me que o
contraste entre a rude vida rural do Nordeste e aquela vida marginal no nascedouro
da metrópole brasileira seria uma oportunidade valiosa para extrairmos algo de uma
possível visão "tropicológica".

Ao final, por ocasião dos debates, talvez tenhamos tempo de - recorrendo à ajuda da
projeção de algumas transparências - extrair alguns tópicos desta comparação.

Logo no início de Casa-Grande & Senzala, ao tratar da bipolaridade ou indecisão


étnica e cultural do português, entre Europa e África, Gilberto Freyre, antes da
discussão dos cientistas sobre este problema, enaltece a capacidade de Eça de
Queiroz em "surpreender magnificamente o luxo de antagonismos no caráter
português" no Gonçalo de A Ilustre Casa de Ramires.

Entre as vicissitudes climáticas mediterrâneas da Península Ibérica e o cadinho ou


tecitura de culturas várias - espaço geográfico e tempo histórico - o personagem de
um "romance" é tomado, sem receio, como símbolo arquétipo do colonizador dos
trópicos por excelência.

Não apenas aí neste trecho introdutório, mas em tão repetidas vezes a ponto de
configurar-se como atributo específico da obra, o sociólogo-antropólogo não
estabelece fronteiras entre os universos da ciência e da arte.

Neste difícil mundo do final do Século XX, enquanto várias "geografias" se


multiplicam, superpõem, conflitam ou se opõem na difícil tarefa de entendê-lo, está
emergindo uma contracorrente que, ao lado das tendências neopositivista,
estruturalista, materialista histórica, rotula-se de "humanista". Entre os reclamos de
rigor científico via quantificação e dos impulsos ideológicos em prol de "justiça
social" o reaparecimento de um velho paradigma vem mostrar o quanto está sendo
difícil e divergente a discussão-interpretação do mundo de hoje.

No momento exato em que se dá como arcaico e obsoleto o sabor lablanchiano da


"personalidade das paisagens e regiões" emerge, simultânea e concomitantemente
na Geografia e na Crítica Literária, em diferentes lugares, um esforço de
aproximação entre Geografia e Literatura.

Sem querer descartar os apelos individuais de geógrafos com Y-Fun Tuan (e mesmo
antropólogos como Lewis) quero apontar aqui dois esforços coletivos oriundos da
França e do Reino Unido. O primeiro caso provém da crítica literária e é resultado de
um colóquio organizado entre os dias 8 e 9 de maio de 1981 no Centro de Estudos
do Romance e do Romanesco na Universidade de Picardia, em França. (Crouzet,
Michel, Organizateur, 1981). Aquele do Reino Unido é iniciativa de geógrafos e se
incorpora numa coletânea (Pocock, Dougls C.D. Editor, 1985) intitulada Humanitic
Geography and Literature. Os críticos literários perseguem o que rotularam de
"Espaços Romanescos". Os geógrafos procuraram fazer Ensaios Sobre a
Experiência do Lugar.
Que isomorfismo poderíamos querer encontrar em coisas tão díspares quanto a
crítica literária e a geografia uma vez que a literatura é criação artística e a geografia
é, ou pelo menos pretende ser, construção científica? A noção de localização
espacial configurada no "lugar" é o denominador comum nessa possível aliança.

Procurando resumir o conteúdo daquelas duas obras em seus aspectos


fundamentais obter-se-ia o seguinte.

Os críticos literários, também eles, achavam-se ante o conflito, quase um sisma dos
espaços romanescos. Confrontando-se as idéias de Melle de Scudéry (Século XVII)
segundo a qual "il est certain que pour bien entendre les choses qui se passent, il
faut que l'espirit conçoive les lieux ou elles sont arrivées" ao princípio espacial do
romance, proposto por Michel Butor (atualidade) segundo o qual a ficção "sinscrit en
notre espace comme voyage, et que l'on peut dire à cet égard là le thème
fondamental de notre littérature romanesque" é constatar a oponência entre uma
concepção clássica, outra moderna. Tornava-se preciso que se atingisse a noção de
um "anti-espaço", ou seja, a passagem de uma plenitude a um vazio insistente. O
espaço capaz de qualificar estava reduzido, ele próprio, a algo sem quantidade, e o
jogo dos termos espaciais tornava-se um jogo sobre o sentido ou a ausência de
sentido. O conjunto de 14 trabalhos foi grupado, assim, em três subconjuntos: 1)
Figuras do Espaço; 2) O Sentido do Espaço; 3) Um antiespaço romanesco. Embora
o segundo subconjunto tenha maiores afinidades com os "lugares" no sentido
geográfico, a discussão toda é extremamente valiosa, para a Geografia que
compartilha, hoje, uma equivalente confusão do que seja seu "espaço".

A construção do "lugar" ou do conjunto de lugares que um romance contém levaria à


consideração de que o "espaço" é ao mesmo tempo meio do sentido e também seu
objeto. A concretude do lugar, em tanto que qualificado concretamente por um
espaço exterior, geográfico, seria uma necessidade corpórea, que se realiza num
continuum local mais ou menos definido e que a percepção do leitor tende a
identificar a uma realidade concreta, geográfica. Cada tradição cultural fornece uma
visão particular de mundo que o reveste de uma estrutura espaço-temporal.
Começando pela casa - fornecedora da noção corpórea de abrigo e segurança - os
lugares se ampliam à cidade, ao campo, região, País, ou seja, em diferentes
unidades escalares que podem ser definidas geograficamente. A este espaço
exterior se contrapõe aquele outro, interno, de dentro do indivíduo, para a passagem
dos quais se realiza aquela "viagem"(ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória física
e moral, externa e interior, real e simbólica que pode conduzir a noção do cheio
quanto do vazio. À noção da realidade geográfica juntar-se-ia aquela outra,
antropológica do imaginário.

Por outro lado, as experiências (12 experimentos) dos geógrafos no campo da


literatura assentam no princípio básico de que excetuadas a ficção científica, a
fantasia e a alegoria - a noção de "lugar", embora seja obra de imaginação e criação
literária, contém uma "verdade" que pode estar além daquela advinda da observação
acurada, do registro sistemático de fatos.

Esta capacidade paradoxal encontrável na literatura ou a ela conferida pelo


geógrafo, brota de um reconhecimento de que a essência ou a verdade do mundo
transcende a interpretação de dados coligidos por geógrafos, historiadores e
sociólogos. Não se trata, de nenhum modo, de substituir a análise científica pela
criação artística, mas apenas retirar desta (literatura) novos aspectos de
interpretação; reconhecê-la como um meio de enriquecimento.

O sustentáculo dessa concepção aparentemente estranha (ou anticientífica) advinda


daquilo que se atribui à revelação literária é a natureza holística identificável quando
a literatura atinge foros de universalidade, ou seja, quando ela transcende a um caso
particular de uma dada região - fisicamente varia - para falar da condição humana,
basicamente una.

Para uma Geografia cada vez mais antropocêntrica importa menos a distinção entre
as diferentes facetas do "homo economicus", capitalista-socialista, dominador-
dominado, e mais o homem verdadeiro e inteiro, homem humano. Nisto repousa o
caráter dessa emergente Geografia Humanística, ligada ela a um "novo humanismo"
que vise não o homem ocidental judaico-cristão capitalista, mas tentando alcançar o
"homem-universal".

Se Flaubert, um inconteste desbravador de novos caminhos à criação literária,


admitia que a poesia é tão precisa quanto a geometria e que a indução é tão
acurada quanto a dedução, o geógrafo Leroy Ladurie[1] supõe que embora
mesclando fatos exatos e erros (às vezes voluntários por motivação estética) pode-
se esperar da criação literária, senão a exatidão, pelo menos uma certa coerência e
justeza de conjunto na abordagem geográfica e econômica do romance.

Como extrato final poder-se-ia apontar a indicação de Pocock de que "o


comprometimento do geógrafo com a literatura na sua preocupação com o estudo
do lugar, varia ao longo de um continuum entre a configuração da paisagem e a
condição humana".

Apoiando-me no exemplo dado pelo fundador e sistema-tizador da Tropicologia,


caracterizada antes de tudo pela grande abertura à interdisciplinaridade, debate e
harmonização dos saberes convergentes para o entendimento do homem situado
nos trópicos, trago aqui neste Seminário esta tese que, não sendo de todo nova,
parece necessária aos nossos propósitos de pensar tropicologicamente.

Trata-se, sem dúvida, de uma ousadia. Tenho aspirado, através de cerca de


quarenta anos, a tornar-me um geógrafo, para o que me tenho dedicado a
investigações mais ligadas ao domínio da natureza, ou seja, dos "lugares" criados
pelo homem. Talvez não possa obter créditos pela defesa do lado humanístico da
Geografia. Careço de qualquer credencial para penetrar no campo da criação
literária. Mas, talvez mesmo por tudo isto - com a petulância que só o ignorar
confere - esteja eu aqui, armando uma trama, mergulhando em nossa literatura e
procurando sustentar a validade da aliança entre Geografia e Literatura, em prol da
"consciência tropicológica" que nossa condição de maior país tropical exige de nós.

O meio utilizado para defesa desta suposição seria o de recorrer a um leque mais
variado de exemplos, o que certamente levaria a um extravasamento do tempo
disponível neste Seminário.

Assim sendo minha opção recai num aspecto da obra de João Guimarães Rosa que,
pela sua amplidão e riqueza, certamente poderá suprir a argumentação que
pretendo. Trata-se do seguinte experimento, para não exorbitar pretendendo o
"ensaio".
A Percepção holística da realidade do sertão a partir de um mosaico romanesco: o
corpo de baile, de Guimarães Rosa

Dez anos após a publicação de Sagarana (1946) Guimarães Rosa lançava ao


mesmo tempo (1956) Corpo de Baile e Grande Sertão:Veredas. Por sua inteireza, o
segundo é, com justiça, considerado a obra-prima do homem de Cordisburgo. Mas,
penso eu, Corpo de Baile - tal como foi apresentado na primeira edição - constitui-se
num painel, composto à moda de mosaico, que encerra uma inteireza equivalente
àquela do Grande Sertão: Veredas.

Embora com o consentimento, e até com justificativa do autor, conforme está


registrado na sua correspondência com Edoardo Bizarri, tradutor da obra rosiana
para o italiano[2] foi uma mutilação que, se explicável por argumentos comerciais de
"edição", não se justifica do ponto de vista artístico. Tanto o caráter unitário é
inconteste que o autor, admitindo a fragmentação, insiste na rotulação original
enquanto repete ou divide as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck (e o Coco de Festa
do Chico Barbóz).

O conjunto de sete "poemas" é apresentado numa dada seqüência, ao tempo em


que, no final do segundo volume, o autor apresenta um novo arranjo, classificatório,
separando em dois subconjuntos que ele designa como "os romances" e "os
contos".

Segundo o quadro em que procurei diagramar a estrutura da obra para o interesse


desta análise (anexo ao texto) notamos que os quatro romances seguem a
seqüência dos números ímpares, entremeados pelos contos, na numeração par da
seqüência. O primeiro subconjunto, rotulado de "Gerais", contém estórias
(romances) que têm lugar nos "gerais", ou seja, no conjunto de chapadões
entremeados de veredas que constituem o âmago do "sertão" afeito
geograficamente ao "espigão mestre" o divisor d'águas das nossas três grandes
bacias que, sem espetacularidade topográfica, ou antes bem modestamente, se
desenvolve entre Norte de Minas, da Bahia e chapadas do Meio Norte (Piauí e
Maranhão).

Este "lugar", de projeção regional, que como espaço geográfico limita-se, a leste,
pelo Rio São Francisco, adquire bordos ou fronteiras difusas e pouco claras nas
demais direções cardeais. Se o rio do Chico é fronteira clara, o Urucuia pode ser o
eixo deste sertão, geograficamente real sobre o qual Rosa criou o seu sertão onde
"a magia é inseparável de todos os atos da vida"[3]. E, ao longo do Urucuia, a Barra-
da-Vaca, volta e meia mencionada, talvez fosse o ponto onde, num mapa,
pudéssemos apoiar a ponta do compasso para circunscrever o universo rosiano[4].

Inserido neste espaço concreto, real, há espaços polivalentes que, não sendo
excepcionais, são complementares e de freqüente ocorrência, como os "pés de
serras". Tal é o caso do sítio Mutum, no primeiro romance Campo Geral onde,
segundo admite o autor, se encontram os germes de todo o conjunto da obra. Lugar
bonito, "entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer
parte; e lá chove sempre…Chuva que entristece a mãe de Miguelim, geralista, que
tem o coração oprimido pela paisagem estranha e pelos amores pecaminosos com o
cunhado (espaço externo geográfico e espaço individual, psicológico, interno).
As labutas de Nhô Berno Cássio (Bernardo Caz) na sua condição de agricultor
sitiante, que trabalha de sol a sol, lutando contra o empobrecimento (que parece
fatal), não se opõe, antes complementa a vida nas grandes fazendas de gado do
Pinhém (Estória de Lélio e Lina) e daquelas do Buriti Bom e Buriti Grande (cenário
do último romance, ele mesmo intitulado "Buriti"). E também da vida no próprio
"gerais" do Andrequicé, no qual se passa o romance Dão-Lalalão. Aqui, no cenário
dos chapadões entrecortados de veredas, e que constitui o âmago do sertão
rosiano, desenvolvem-se os romances de suas gentes simples e tão magicamente
vinculadas ao meio em que habitam. Não caberia aqui destacar exemplos, de tal
modo da escritura do autor liga o homem nas suas lidas quotidianas com o sertão
numa tal simbiose que exibe, como já foi notado com propriedade[5], "não o
Indivíduo em litígio com a Sociedade (…) mas a grande Aventura do Homem face a
face com o mundo elementar dos seres e realidades em bruto, ainda não domadas
em sua energia vital espontânea".

No índice do fim do livro o autor ajunta os três "contos" sob o título de Parábase.
Atinando-se com o fato de que no antigo teatro grego sob este nome se entendia um
"intervalo" crítico (ou cômico) no qual um ou mais atores ou o próprio autor expunha
suas opiniões ao público, entende-se por que eles estão alternadamente dispostos
como intervalos entre os romances[6].

Na mais longa de suas cartas a Bizzarri, o autor aponta ao tradutor o fato registrado
por Paulo Rónai, no livro Encontros com o Brasil, de que "a linha simbólica é
predominante nos 'contos', onde o enredo propriamente dito serve antes de
acompanhamento". Segundo declaração do próprio autor nesta mesma carta, cada
um dos contos - função "simbólica" intercalar à "realidade" dos romances - "se
ocupa, em si, com uma expressão de arte". O conto Uma Estória de Amor trata da
origem e do poder das "estórias" no que elas encerram de parábolas ou símbolos de
uma verdade "revelada". No O Recado do Morro a revelação é aquela do
nascimento de uma "canção", ou gesta popular sertaneja. O Cara-de-Bronze é a
procura e revelação da "Poesia".

Não obstante o conteúdo simbólico dos contos, eles encerram uma peculiaridade
extraordinária em termos de sua vinculação "espacial". Os contos têm seus enredos
situados em espaços intermediários, complementares ou periféricos ao complexo
"chapadões-veredas" expondo contrastes com eles. A grande fazenda onde vive
recluso o Cara-de-Bronze está nos grandes campos do Urubuquaquá - urucuias
monte, fundões e brejos. Abertos e plantados pastos em área de "Mato Grosso" em
vastidão de terra deprimida à borda dos chapadões, emitindo em direção a eles
matas galerias, que se estreitando ao neles penetrar, vai se confundir com as
veredas. A trajetória de Pedro Orósio como guia do naturalista em trabalho de
campo é dos Gerais para o planalto calcário até o Vale do rio das Velhas onde
termina a missão e onde se festeja Nossa Senhora do Rosário. O Morro das Garças,
de onde partiu o "recado" - "solitário escaleno e escuro feito uma pirâmide" -
destaca-se em meio às "enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo
Calcário". A Samarra, onde se ouviram as "estórias" era um lugar - "nem fazenda, só
um repasto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais".
Aos poucos moradores dali, na festa de inauguração da capela, vieram reunir-se "a
gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas". A borda daquela
chã, a "mesa-de-campo" sobre o Baixio da Samarra, fora escolhida por Manoelzão
para sítio da capela em devoção a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, quando ele,
vindo do Maquiné, abrira a fazenda a mando de Frederico Freyre.
Outro aspecto importante a registrar é que, aqui nos "contos" a veia de naturalista e
geógrafo de Guimarães Rosa atinge suas culminâncias. Tudo se passaria como se,
ao carregar as tintas do entorno interfacial, o autor mais quisesse acentuar a
individualidade suave do sertão. Assim, pois, paradoxalmente, a criação artística no
tratamento simbólico "faz contraponto com a caracterização mais acurada - sem
nada a dever a um cientista - da paisagem geográfica.

Na unidade dos "Gerais" os personagens como que se entrelaçam e completam. A


ingenuidade e candura infantil de Miguelim se continua na pureza e sensibilidade do
mancebo Lélio - no mais lírico dos romances - sobrepondo-se o amor acima do
desencontro cronológico entre o jovem vaqueiro e D. Rosalina, uma velhinha. No
romance de Soropita o recontador dos capítulos da novela de rádio ouvidos no
Andrequicé e transmitido aos moradores do Ão, o espaço interior ganha maior
profundidade, descendo o herói a purgatórios e infernos dantescos pelos ciúmes e
insegurança no seu amor por Doralda. Mas mesmo aqui o espaço exterior - os
gerais - está presente, descrito primorosamente e parte integrante do "bailado" dos
personagens. Além da minuciosidade de descrição da paisagem ao longo do trajeto
para o Ão, ao se encontrarem Soropita e Dalberto e relembrarem suas andanças
com as boiadas, o rosário de topônimos contidos às páginas 497 e 498 dão ampla
cobertura do universo regional. A descoberta do mundo através dos olhos míopes de
Miguelim e a descrição das lidas da vaqueirama na fazenda do Pinhém e seus
anexos entrelaçam o meio físico e cultural numa composição dificilmente superável
por monografias geográficas e sociológicas. Miguelim, a criança frágil da primeira
história, passada no Mutum, ressurge moço astuto e criativo no último romance -
como o vacinador de bezerros no Buriti Bonito.

Na passagem de alguns personagens de uns para outros romances, tecem eles o


caráter socioeconômico do tempo. "Perdoa teu pai, Miguelim que ele trabalha
demais, pra gente sair debaixo da pobreza"(pg 120) é uma advertência que irá
demonstrar o malogro dos esforços do Nhô Berno Cássio pois que seu filho menor -
Thomezinho - ao reaparecer na estória de Lélio e Lina, na figura do vaqueiro Thomé,
com suas irmãs Drelina e Chica casadas com peões de fazenda, deixam claro o
insucesso da família Caz. Sua própria condição de amasiado com Jini - a mulata de
verdes olhos - sua "tristeza" e o ar de "soberba" de suas irmãs, atestam a melancolia
do declínio social. O próprio dono da fazenda do Pinhém atravessa o romance (de
Lélio e Lina) navegando em apertos "por via do desapreço em que estava caindo o
gado puro zebu". Ao final da estória, crescentemente endividado, acabou perdendo
a fazenda. A despedida de Seu Sencler e D. Rute dos vaqueiros e agregados do
Pinhém é a cena patética que antecede o final, com a fuga de D. Rosalina e "seu
mocinho" Lélio.

Embora o autor zele pela atemporalidade dos romances, onde jamais uma data é
mencionada, não há como escapar de associar o "tempo" à crise do zebu dos anos
trinta-quarenta que afetou profundamente as Minas Gerais e se encontra "cantada"
na trova do vaqueiro Doraldo, amigo de Soropita, no Dão-Lalalão.

"Adeus, cidade de Uberaba


divisa de São Mateus!
Vender boi ficou pecado
que será de mim, meu Deus"? (p. 503)
Nos contos que compõem a Parábase pode-se encontrar páginas onde a escritura
atinge tanto caráter literário antológico quanto exatidão e justeza na descrição (não
raro interpretação) geográfica.

Nas beiradas das chãs e chapadões da drenagem no Baixio da Samarra, onde a


hierarquia da drenagem daqueles festões vai dos muitos riachinhos ao córrego das
Pedras, ao rio de Janeiro e, daí, ao São Francisco, o fenômeno de difusão e
oscilação do escoamento dá ensejo a maravilhosa narração da "morte" do riachinho
que passava em meio a recém aberta fazenda de gado às expensas da mata.

"Foi no meio duma noite, indo para a madrugada,


todos estavam dormindo…(p. 149)

Em O Recado do Morro talvez estimulado pela "presença" do naturalista


deslumbrado o autor assume esta feição e oferece descrições primorosas da
paisagem cáustica mineira da bacia do rio das Velhas.

De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal.

Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras,
por prolongação…(p.388 a 391).

E assim também, mais adiante, "o país natalício" de Pedro Orósio: "O chapadão de
chão vermelho, desregral, o frondoso cerrado escuro feito um mar de árvores, e os
brilhos risonhos na grava da areia"…(p. 412 e 413. E ainda na 458 - 459).

Mas é no conto Cara-de-Bronze onde a criação artística e elaboração científica de


Rosa se aliam de modo mais enfático. O conto assume a feição mais estranha (não
convencional) possível. A montagem um tanto quanto joyciana é feita teatralmente
em diálogos e assume (deliberada e claramente) a forma de roteiro cinematográfico.

Época de chuvas no Urubuquaquá. A vaqueirama reunida na coberta dos carros


questiona o destino do Cara-de-Bronze, o fazendeiro, recluso, paralítico deformado
pela lepra, no seu quarto, em colóquio com o mensageiro por ele enviado, há dois
anos, sabe-se-Deus para onde. Na varanda da casa o violeiro João Fulano canta
trovas, que permeiam os diálogos ou "cenas".

Aqui a escritura rosiana capricha na nova técnica expressional, já chamada de


"apocalíptica". E, ao lado da maior "espiritualidade"do conto, posto que todo o
mistério indecifrável da viagem do vaqueiro - o Grivo, aquele "menino das palavras
sozinhas" que encantava Miguelim com "suas histórias compridas, diferentes de
todas" (pg. 86) que reaparece aqui no conto como o "mensageiro da poesia" - não
passava do desejo do fazendeiro próximo da morte religar-se ao seu lugar de
nascimento e à memória de sua juventude. Este intento simbólico tem como
contraponto um exacerbamento da informação factual, naturalista, que chega a
derramar-se em enormes notas de pé-de-página que são verdadeiros inventários
florísticos. Plantas que realmente existem na região mas que são arroladas pela
"poesia" contida nos seus nomes vulgares.

Da periferia do Sertão no Urubuquaquá, onde o fazendeiro enriquecera com o


gadame, até o longínquo Buriti-de-Inácia Vaz, no Maranhão, o Grivo procede a longa
travessia, testemunhando "a briga da caatinga com os gerais". Viajante e estudioso
do sertão, Rosa explica ao seu tradutor (Bizzarri, op. cit. p. 60) que os campos
gerais, como "paisagem e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até lá (o
Maranhão), ininterrompidamente.

Outro aspecto importante a registrar nos contos da Parábase é a vinculação íntima


do espaço exterior (geográfico) ao espaço interior (psicológico). Os personagens
aqui são alienígenas e demonstram claramente a luta para ligar-se à terra de
origem.

Manuelzão erige a capela na Samarra em honra a sua mãe, que jamais aquiescera
em sair do seu lugar de origem, e que foi enterrada no lugar que ela elegera para se
erguer a capela.

Pedro Orósio o Pê-Boi do O Recado do Morro, ante a traição e armadilha em que


caíra na festa de arraial à beira do rio das Velhas, e após lutar como o rei contra os
sete traidores cavaleiros, "abrindo grandes pernas, esquipou, mesmo com a noite" e,
medindo o mundo seguiu "por tantas serras, pulando de estrela em estrela, até aos
seus gerais".

O Cara-de-Bronze, rico mas impossibilitado de locomover-se, às portas da morte


encarrega o "menino das estórias longas" para trazer-lhe ao Urubuquaquá do seu
fim o Buriti-de-Inácia Vaz do seu começo: "O que se manda buscar é um raminho
com orvalhos…".

Nossa sabedoria popular registra que nenhum homem se descompromete "do lugar
onde enterrou o umbigo". Do umbigo materno, do seu nascer ele passa ao vínculo
com o lugar - a Terra - para onde retornará após a morte. E ao longo da vida, grande
parte do seu esforço e energia (vital) é desprendida - na sua solidão - em querer
juntar umbigos, como dizia Doralda a Soropita…"nunca te deixar, era se eu pudesse
estar guardada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos…".
União, pacto solidário, cumplicidade para a difícil travessia…

Penso que esta vinculação do Homem à Terra - da configuração do lugar à condição


humana - é que emana a "universalidade" que procuramos.

É pena que os leitores italianos tenham sido privados das notas das páginas 610,
617 e 618. Na correspondência entre Rosa e Bizzarri notamos que o autor reluta e
depois cede em favor da eliminação daqueles apodos à escritura do Cara-de-
Bronze. Parece-me que a evocação de Dante e Goethe como das Upanixades era
um chamamento do autor à sua sintonia de universalidade. Na velha cultura dos
vedas nas frases de Platão nos versos dos representantes da latinidade e do
saxônico na poesia, os trechos escolhidos querem demonstrar a sintonia do homem
universal, vista aqui do nosso sertão mas solidária com aquelas manifestações.

O próprio cientista do O Recado do Morro- O Seu Alquiste (ou Olquiste), que intuíra
a importância da mensagem captada pelo Gorgulho, e acompanhara com interesse
a seqüência da transmissão do recado através dos "seres não-reflexivos"[7], ao ver
nascida a canção pela arte do cantador Laudelim, estabelece a sintonia dessa "coisa
muito importante" que são "estas cantigas migradouras, que pousam no coração do
Povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas", com as sagas
dinamarquesas. Como na saga de Horof, filho de Helgi, segundo registra o Saxo
Gramaticus (p. 456).

Ao escritor que produz sua obra em "efervescência de caos, trabalho quase


'mediúnico'"(Bizzarri, p. 57) junta-se o geógrafo que sua vida de diplomata lhe
ensejara - diretor da Divisão de Fronteiras, rodeado de mapas; representante do
Ministério das Relações Exteriores nas Assembléias Gerais do Conselho Nacional
de Geografia. Viajante atento, sempre tomando notas num caderno, recolhendo
material precioso para recriar uma linguagem e uma tessitura revolucionária no
romance, Rosa foi, ele próprio, um mensageiro da poesia.

Ele chega a confessar a Bizzarri (p.58) a seguinte valoração para a construção de


sua obra literária:

a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto


b) enredo: 2 pontos
c) poesia: 3 pontos
d) valor metafísico-religioso: 4 pontos.

Mas logo em seguida adverte do "subjetivo" de uma avaliação de autor, daquilo "que
o autor gostaria, hoje, que o livro fosse". E acrescenta, ainda, que "em arte, não vale
a intenção".

Toda essa minha superficial "travessia" pelo seu Corpo de Baile quer demonstrar
que aquele simples ponto atribuído por ele aos lugares vale muito mais. Não que
seja necessário alterar a ordem ou hierarquia da sua valoração mas porque, os
outros três itens estão de tal modo interligados ao primeiro que qualquer tentativa de
separação seria precária. Tal avaliação nos faz lembrar Verlaine que admitia na
produção poética as categorias de "vers donnés" e "vers captés". Muito significante
oculto para o autor pode ter um significado captado pelo leitor.

E talvez a razão fundamental da precariedade dessa avaliação valorativa esteja na


atitude declarada do autor em "defender o altíssimo primado da intuição, da
revelação, da inspiração, sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da
razão, a megera cartesiana" (Bizzarri, p. 58).

O querer "ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São
Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo
principalmente", é querer abraçar o mundo holisticamente, é querer procurar o
homem universal. A influência do Tao é indisfarçável na tentativa de integração
cósmica a partir de uma técnica expressional que de aparentemente apocalíptica
seria, efetivamente, mais ligada a uma preocupação não linear mas antes em
estabelecer conjunções entre contrastes e oposições. O que bem pode ser
exemplificado no Cara-de-Bronze.

Influência taoística que ressoa na própria Física Moderna e enseja um novo espírito
científico.

Voltando ao ponto de partida e retornando à lição de Gilberto Freyre poderia


estabelecer um elo entre os dois. Após meio século de existência, várias edições
nacionais e estrangeiras de Casa-Grande & Senzala não conseguiram fechar o ciclo
das discussões e debates sobre a obra.
A idéia de tempo-espaço ali contida, a própria estrutura da obra onde os "capítulos"
de modo nenhum "separam" os assuntos, numa escritura que antes emaranha o
leitor num vigoroso jogo de conjunções - dentre outros vários atributos - a tornam
obra viva e perene, decorridos tantos anos. E ainda permanece a grande dificuldade
em rotulá-la, em definitivo, como construção científica ou obra-de-arte.

Por caminhos opostos, o mineiro e o pernambucano parecem se encontrar. A


questão fica em aberto. Disso tudo parece ficar a certeza de que só alcançamos a
universalidade quando mergulhamos em nós mesmos, unindo nosso espaço
(cultural, social) interno com aquele externo no qual estamos situados. Daí a
insistência tropicológica em nossa condição de "homem situado".

Tal é o "recado" que um aprendiz de geógrafo - sertanejo da Chapada do Corisco, à


beira do Parnaíba - após sua longa migração e vivência pelo sul traz ao terreiro de
Apipucos onde hoje reina a saudade ao lado do grande acervo das lições deixadas,
para ser discutidas e vivificadas.

Notas

1) Referência coligida em Arlette Michel, no seu estudo intitulado Paysages


Balsacieus et Geógraphie Métaphysique dans Le Médecin de Campagne, contido na
coletânea Les Spaces Romanesques, organizado por Michel Crouzet (p. 142), já
citado no texto. Le Roy Ladurie exprimiria esta idéia na introdução (Prefácio) à
edição do Le Médecin de Campagne, Paris, Galimard, 1974, (pp.9 - 41). [volta]

2) BIZZARRI, Edoardo. J. Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor


italiano Edoardo Bizzarri. São Paulo; T.A. Queiroz: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,
1980. Obra fundamental e imprescindível ao acompanhamento da primeira edição
do Corpo de Baile e ao que pretendo apresentar neste trabalho. [volta]

3) Na carta datada de 21.XI.63, catalogada sob o número XIII, entre as páginas 57 e


61 da citada obra. [volta]

4) Veja-se por exemplo, na orelha interna da capa da primeira edição do Grande


Sertão: Veredas, onde, guiado por instrução do próprio autor, Poti desenhou o vale
do Urucuia, especificando aquele topônimo. [volta]

5) Em COELHO, Nelly Novaes, VERSIANI, Ivana. Guimarães Rosa Dois Estudos.


São Paulo; Edições Quirson Ltda., Instituto Nacional do Livro, 1975, p. 11. [volta]

6) PARÁBASE - O dicionário AURÉLIO registra: 1. Na antiga tragédia grega, o


momento dramático em que os membros do coro, despindo as vestimentas cênicas
e arrancando as máscaras, recobravam suas verdadeiras personalidades e se
dirigiam aos espectadores, interpelando-os em seu próprio nome ou em nome do
poeta. 2. No antigo teatro grego, intervalo crítico, ou cômico, no qual um ou mais
atores, ou o próprio autor, expunha suas opiniões ao público. FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, p. 1032. [volta]

7) O que Rosa assim designa são os muitos personagens abobados, retardados,


alguns "messiânicos", que perambulam pelo sertão. Também eles refletem uma
faceta do quadro social onde a pobreza ou sucessivos cruzamentos consangüíneos
nas pequenas comunidades sertanejas isoladas ensejam. [volta]

Fonte: MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. O romance entre o espaço


geográfico e o tempo histórico-social: das matrizes gilbertianas a outros avanços. In:
SEMINÁRIO DE TROPICOLOGIA: trópico e história social, 1988, Recife. Anais...
[prelo]

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João Guimarães Rosa, Uma Questão de jeito...


O jeito de ler o Rosa é um segredo que poucos, tirante os iniciados, os do ramo,
conseguem desvendar.
Trata-se de jeito mesmo, de um próprio modo não só de entonar as palavras
devidamente, mas também de dar aqueles nós na língua, comendo letras ou inteiras
sílabas, os espaços certos entre as palavras, como só o conseguem os caipiras,
tabaréus, sertanejos, gente jacu, do mato.
As palavras, em si, além da sua sonoridade, às vezes não trazem consigo
pendurado nenhum significado preciso. Ou melhor, trazem sim, mas não estão no
comum dos dicionários, pertencem a certo código impublicado do sertão.
Despertam, entretanto, uma sensação, uma desconfiança de que podem significar
mais do que simplesmente dizem. A questão é senti-las, desnudá-las, traduzi-las
para a linguagem entendível do cidadão. Rosa, como poucos, diz coisas que
sentimos, coisas que nos remexem por dentro sem achar jeito de sair. Rosa vem, e
diz no exato o que é aquilo, como se forma, a cor e o cheiro que tem, o volume, e
como vem à tona. Ele cria o estímulo, a diferença de pressão necessária para
esguichar pra fora os sentimentos que nem suspeitávamos.
Tenho ouvido muita gente dizer que tem dificuldades para entender o que o Rosa
diz. Acham-no intrincado, a fala do avesso, rebuscado, complica o que é simples. O
fato é que o Rosa não diz, ele sugere, desperta, alerta, é um impressionista com sua
língua própria, com pinceladas só dele.
Já vi gente desistir de lê-lo por isso. Não culpo quem assim pensa, afinal que culpa
tem quem nunca conviveu com gente da espécie bruta que o Rosa cria no seu
viveiro.
Quem vive no meio de computadores, tevê, cartões de crédito, lê Nietzsche, Kafka e
Shakespeare, quem está habituado à leitura técnica, ao convívio com cidadãos
informados e modernos, deve ter mesmo alguns problemas para entendê-lo. Não
falo do literato, este tem a obrigação de saber o que está fazendo. Estuda, pesquisa,
e chega ao entendimento por meios inacessíveis ao vulgo, ao estudante, ao leitor
sem pretensões literárias, filológicas ou filosóficas.
Para esses que lêem por prazer ou necessidade íntima, ou mesmo pelo simples
hábito de passar o tempo fuçando páginas, digo uma coisa: o jeito de ler o Rosa é
em voz alta, buscando as inflexões, a entonação, o sotaque próprio do jagunço, do
sertanejo. Como um ator interpretando um papel, impostando a voz, fazendo as
caretas, gestos, franzindo a testa, estendendo a mão para açambarcar o sertão todo
inteiro como se dono, o vasto mundo do Rosa, que no fundo é o mundo.
Há quem tenha a sorte de ter sido criado no mato, esses já vêm com uma certa
vantagem: já têm a balda e a capacidade de entender de ruídos, de cheiros, de
vozes de animais, de espécies de árvores, de ver o tempo empiricamente olhando
pro céu e dizendo: "hoje chove", sem a necessidade de explicações maiores. O
enviesado pensamento do matuto, a sua codificação. É puro instinto. Esse é o tipo
com qual Rosa convive e universaliza, que reponta sempre aqui e ali, em cada
conto. O seu universo é ilimitado, como todo universo o é, ou deveria ser. Capaz o
jagunço de sentir coisas shakespearianas, siberianas, desérticas, borgeanas, tudo,
enfim, que um homem pode sentir, sem a mínima exigência de legendas ou de
explicações complexas.
Rosa escarafunchou a fineza do espírito do sertanejo, o tortuoso meio do seu
raciocínio, o seu vezo econômico da expressão pelas palavras. Um silêncio pode ser
mais significativo que muitas palavras, relevado aqui o repisado lugar-comum.
Veja, por exemplo, o Soropita. Um homem com sua história de valentias, anônimo
num mundo circunscrito a um arraial e uma cidade amiudada, no meio do nada.
Cheio de dúvidas, arrastando consigo um passado violento; mas gentil, amoroso,
cheio de cuidados para com a mulher que foi prostituta; o que aceita, mas não
admite nem de longe que outros saibam. No trato com o cavalo é jeitoso, ele o
cavalo se entendem à perfeição mediante sutilíssimos toques, mensagens cifradas
para os desavisados, mas língua entre eles.
Rosa, já no começo de Dão-lalalão (O Devente), diz:
"Soropita, a bem dizer, não esporeava o cavalo, tenteava-lhe leve leve o fundo do
flanco, sem premir a roseta, vezes mesmo só com a borda do pé e medindo mínimo
achego, que o animal, ao parecer, sabia e estimava."
Pode que exista meio de dizer isso melhor, mas eu duvido. Essa linguagem, se lida
no tom certo, é entendida pelo mais simples caboclo. Rosa considera o cavalo como
"alguém", não uma simples coisa, animal de carga. Para ele o cavalo é um parceiro.
Veja como ele, depois de exaltar as variadas qualidades de Doralda, a mulher do
jagunço, que gabava o trato que Soropita destinava ao cavalo, encerra o parágrafo:
"Era pelo meio do dia. Saíam de Andrequicé".
Saíam, Soropita e o seu cavalo, ele e Soropita.
Cada qual, quando exigido, tacitamente fazendo a sua parte:
"Nem dado a sentir o frio do metal da espora, mas entendendo que o toque da bota
do cavaleiro lhe segredasse um sussurro, o cavalo ampliava o passo, sem
escorrinhar cocéga..."
"...amparava o cavalo com firmeza de rédea, nas descidas, governando-o nos
trechos de fofo chão arenoso, e bambeando para ceder à vontade do animal ladeira
acima, ou nos embrejados e estivados..."
Difícil entender isso? Apesar de palavras inexistentes "escorrinhar", por exemplo - há
algo ininteligível? Nada. É como se ouvíssemos Soropita falando sua língua de "dia
de semana", como Rosa mesmo diz em "Famigerado", ou língua em mangas de
camisa e pé-no-chão, como disse Lobato. Clara como água de bica que verte do
barranco.
Quanto ao aspecto literário, suas inferências, seus arquétipos, claro que Rosa é
profundo demais pra muita gente. Ele era de uma cultura soberba, umas tantas
línguas que conhecia, viajado no mundo e no sertão de Minas. Mas mesmo assim, o
entendimento de suas "estórias" é mais uma questão de sensibilidade do que de
conhecimento.
Ele mesmo espelha isso, na voz de Riobaldo Tatarana, dizendo que não sabe nada,
mas...
"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa."
Questão de jeito mesmo.
Wilson Morais
wmorais@navedapalavra.com.br
Título: A dimensão mítico-sacral em "Dão-lalalão (o devente)"
Autora: Odília Carreirão Ortiga
Orientador: Prof. Dr. Celestino Sachet
Defesa: 3 de setembro de 1979
Resumo:
Análise de cunho interpretativo de Noites do sertão, de Guimarães Rosa, sob os aspectos estrutural,
temático e retórico-estilístico, na busca do mítico-sacral numa das narrativas, "Dão-lalalão". O corpus
foi submetido a um processo de desmontagem das três funções espaciais (referencial, mítica e figura
do discurso) e de seus componentes (lugar e elementos). Foram analisados e interpretados os
elementos água e ar, primordiais na obra, e estabelecidas semelhanças com a narrativa bíblica em
geral, especialmente a do Apocalipse, e analogias com a narrativa mítica.

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