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Ano x / Número 32
maio 2012

Guerra
Estética e narrativas de conflito
nas artes, na política, na ciência
e no esporte

Por Jorge Amado, Martin Parr,


Amós Oz, Dor Guez, Dora Longo
Bahia, Michel Houellebecq, Ilana
Feldman, Franklin Foer, Lasar
Segall, Ed Viggiani, Wagner
Morales e Tatiana Salem Levy
Dora Longo Bahia, Escalpo carioca, 2005
Acrílica sobre construção de madeira
260 x 350 cm
Foto: Edouard Fraipont
4

Editorial

Proximidade
e distância
Em 1942, há 70 anos, o Brasil entrava na
Segunda Guerra Mundial ao lado das Forças
Aliadas. A Força Expedicionária foi mandada
para Europa apenas em 1944, mas a guerra Provocação
já estava presente entre nós de outra
maneira: ao longo dos anos 1930 e 1940,
ampliada
e apesar das politicas restritivas do Estado
Novo, imigrantes fugindo do nazifascismo “Arriscar a vida é excitante”, disse Michel
Expediente acharam refúgio no país. Além disso, Houellebecq em recente passagem pelo Brasil,
todos acompanhavam, nas manchetes onde falou no ciclo de debates Fronteiras do
Conselho Editorial dos jornais, nas rádios e nos cinemas, Pensamento. “O desejo de violência no homem,
Ernesto Strauss; Flavio Mendes Bitelman;
Raul Meyer; Yael Steiner os acontecimentos no Velho Continente. em particular seu desejo de violência coletiva,
A guerra parecia próxima e distante; seu lado animal de rebanho, se satisfaz
Publisher Flavio Mendes Bitelman
fantasiada e vivida. Por essas razões, diante das revoluções e das guerras.”
Superintendente Executiva Yael Steiner na mesma época, Lasar Segall tentou dar Com seu costumeiro tom irônico, exposto
Editores Benjamin Seroussi e Michel Laub um peso real a esse imaginário e trabalhou na pág. 42, o escritor francês identifica no futebol
no caderno Visões de Guerra, exposto um escoadouro moderno para esse impulso
Coordenação Editorial
Martine Birnbaum agora no Centro da Cultura Judaica. destrutivo. Uma das ideias desta edição foi ampliar
A Revista 18 dá continuidade, no papel o espectro de sua provocação, numa perspectiva não
Projeto Gráfico Estúdio Campo
impresso, ao que o CCJ promove nos necessariamente pessimista: por meio de narrativas
Atualização do Projeto Gráfico seus espaços: ela é mais uma e linguagens diversas, investigar até que ponto a
e Diagramação Joana Amador
ferramenta para pensar a cultura judaica. guerra está presente nas principais representações –
Revisão Daniel Pellizzari Partindo do tema da guerra, do exemplo artísticas, políticas, sociais, psicológicas – do mundo
Impressão Eskenazi Indústria Gráfica de Segall e de sua simultânea proximidade contemporâneo. E até que ponto, além do inevitável
e distância, os editores escolheram rastro de tragédias, ela também pode aguçar
Impresso nos papéis
Off set, 90g/m2 e 180g/m2. caminhos diversos para entender como a consciência histórica e individual –
essa herança está presente nas nossas o que é uma das prerrogativas da arte.
Tiragem 5000 exemplares
vidas de hoje – em sentidos que vão A reflexão é feita por nomes heterogêneos,
As matérias assinadas não necessariamente do literal ao simbólico, com sua carga separados no tempo, na geografia e nas respectivas
refletem a opinião da Revista 18 ou do
Centro da Cultura Judaica. de violência e humanidade. áreas de atuação. De maneira mais temática,
Amós Oz mostra como a guerra aparece –
Colaboraram nesta edição Nilton Serson ou não – na literatura israelense. Ilana Feldman
Alexandre Rodrigues, Amós Oz, André Conti, Presidente do Centro da Cultura Judaica
e André Conti desvendam suas relações com
Breno Lerner, Daniel Pellizzari, Dor Guez, Dora
Longo Bahia, Ed Viggiani, Fábio Zuker, Franklin o cinema e os videogames. Jorge Amado escreve
Foer, Jorge Amado, Ilana Feldman, Martin Parr, sobre o engajamento antifascista na obra de Lasar
Michel Houellebecq, Renato Parada, Segall. E Dor Guez aponta, na série fotográfica
Tatiana Salem Levy e Wagner Morales Al-Lydd, a memória dolorosa que o conflito do
Agradecimentos Oriente Médio deixou na paisagem da cidade de Lod.
Alcino Leite Neto, Ana Paula Cohen, Companhia Já de um ponto de vista menos direto, mas
das Letras, Dor Guez, Eyal Danon, Galeria igualmente vigoroso, Alexandre Rodrigues conta
Vermelho, Israeli Center for Digital Art, Joana
Casa de Cultura de Israel a história dos boxeadores judeus que encontraram
Reiss Fernandes, Jorge Schwartz, Juliana
Vettore, Marcos Gallon, Marcelo Monzani, nos ringues uma chance de afirmação étnica.
Museu Lasar Segall, Pierina Camargo, Rosa Renato Parada revela como as metáforas de batalha
Rua Oscar Freire, 2500 . São Paulo . SP Esteves, Thyago Nogueira e Wagner Morales são indissociáveis da experiência de um paciente
CEP 05409-012 . TEl.: (11) 3065 4333
de câncer e sua família. E no ensaio Bored Couples,
www.culturajudaica.org.br Capa Foto de Martin Parr, série Bored Couples
culturajudaica@culturajudaica.org.br (Martin Parr/ Magnum Photos) complementado com um conto de Tatiana
Salem Levy, no coroamento de um conjunto
Horário de funcionamento cartas
revista18@culturajudaica.org.br que vai do coletivo ao individual, do grande painel
3ª a Sáb., das 12h às 19h / Dom., das 11h às 19h
ao relato íntimo, Martin Parr mostra o quanto pode
Apoie as atividades do Centro da Cultura Judaica haver de bélico no tédio e na incomunicabilidade
Entre em contato conosco - Projetos e Patrocínios
de um casal sentado para comer.
Tel (11) 3065-4330 e/ou 7868-4096
Marketing: cultural@culturajudaica.org.br
e/ou claudiafichel@culturajudaica.org.br Benjamin Seroussi e Michel Laub
6

Colaboradores

1. Alexandre Rodrigues/ 2. Amós Oz/ 1. E


 scritor, jornalista e músico carioca
radicado em Porto Alegre, é autor do livro
10. Jornalista americano, colaborador
de veículos como New Republic e Slate,

3. André Conti/ 4. Breno Lerner/ 5. Daniel de contos Veja se você responde


essa pergunta (Não Editora).
é autor de Como o futebol explica
o mundo (Zahar).

Pellizzari/ 6. Dor Guez/ 7. Dora Longo Bahia/ 2. Principal nome da literatura israelense, 11. U
 m dos mais conhecidos escritores

8. Ed Viggiani/ 9. Fábio Zuker/ 10. Franklin Foer/ publicou romances como A caixa preta
e a autobiografia De amor e trevas
brasileiros do século XX, autor
de romances traduzidos no mundo todo

11. Jorge Amado/ 12. Ilana Feldman/ (Companhia das Letras). e adaptados para cinema e televisão.

13. Martin Parr/ 14. Michel Houellebecq/ 3. Poeta e editor de quadrinhos da


Companhia das Letras, colunista do
12. P
 esquisadora, crítica e realizadora
carioca. Atualmente finaliza a

15. Renato Parada/ 16. Tatiana Salem Levy/ caderno Tec, da Folha de S. Paulo, e
autor do blogue de games http://jogatina.
tese de doutorado Jogos de cena:
ensaios sobre o documentário brasileiro

17. Wagner Morales blogfolha.uol.com.br contemporâneo na ECA/USP.

4. Superintendente da Editora Melhoramentos, 13. F


 otógrafo e documentarista inglês
gourmand, pesquisador e editor.  que integra a equipe da agência Magnum,
com mais de 40 livros publicados.
5. Escritor, tradutor e fundador da editora
Livros do Mal, é autor de Digam a Satã 14. M
 ais conhecido escritor francês
que o recado foi entendido, a ser lançado da atualidade, acaba de ter seu
em 2013. romance O mapa e o território
lançado no Brasil pela Record.
6. Fotógrafo e artista nascido em Jerusalém,
conferencista na Academia de Arte 15. F
 otógrafo, colaborador de diversas
e Design Bezalel, Jerusalém, que já teve revistas e editoras brasileiras. Mantém
mostras individuais em cidades como o site http://www.renatoparada.com
Nova York e Berlim.
16. N
 ascida em Portugal e criada no Rio
7. Nascida em São Paulo, já apresentou de Janeiro, publicada em diversos
sua obra em várias exposições, entre elas países, em 2011 lançou o romance
Escalpo carioca e outras canções, Centro Dois rios (Record).
Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro.
17. A
 rtista visual, atualmente vive e trabalha
8. Fotógrafo paulistano com passagens em Paris. Participou da 7a e da 8a
por alguns dos principais órgãos Bienais do Mercosul e foi convidado
de imprensa brasileiros, além de prêmios pela 28a Bienal de São Paulo para fazer
como o da APCA. a curadoria do espaço Video Lounge.

9. Graduando em Ciências Sociais


e assistente de programação
do Centro da Cultura Judaica.
8

Guimátria Sumário

p. 10 p. 14 p. 18 p. 28
No hebraico, as letras têm valor numérico.
Somando os números das letras, pode-se atribuir 1. 2.

um valor a palavras, frases ou textos e perceber


relações entre eles. Esse método interpretativo
se chama guimátria, do grego geometria.
Conheça abaixo, nome, grafia e valor numérico
atribuído a cada letra do alfabeto hebraico:

valor opinião análise ENSAIO fotográfico ensAio


numérico Um quadro de Segall Uma definição de tragédia Al-Lydd Olho, arma e espetáculo
letra grafia atribuído Por Jorge Amado (e de comédia) Por Dor Guez Como a lógica da guerra
Amós Oz e as ambiguidades é semelhante à do cinema.
da literatura israelense Por Ilana Feldman
alef ‫א‬ 1
beth ‫ב‬ 2
guimel ‫ג‬ 3
dalet
hey
‫ד‬
‫ה‬
4
5
p. 32 p. 36 p. 44 p. 46
vav ‫ו‬ 6 3.

zain ‫ז‬ 7
chet ‫ח‬ 8
tet ‫ט‬ 9
iod ‫י‬ 10
kaf ‫כ‬ 20
lamed ‫ל‬ 30
mem ‫מ‬ 40
nun ‫נ‬ 50
ENSAIO resenha depoimento ENSAIO fotográfico
samech ‫ס‬ 60
Mercado, ideologia e bombas Estrelas no ringue O mundo que desaparece de vista Bored couples
ain ‫ע‬ 70 A história dos games de temática Como os judeus fizeram 26 campeões Os conceitos de vitória e derrota Por Martin Parr
pei ‫פ‬ 80 militar, de Orwell ao Hezbollah. mundiais de boxe no século XX na luta contra o câncer.
Por André Conti Por Alexandre Rodrigues Por Renato Parada
tzadi ‫צ‬ 90
kuf ‫ק‬ 100
resh ‫ר‬ 200
shin
tav
‫ש‬
‫ת‬
300
400 p. 50 ps. 2, 42, 52 p. 55
1 e 5. Museu Lasar Segall / 2 e 3. Divulgação / 4. Cristovão Tezza

4. 5.

EXPOSIÇÃO/FILMES/

8= ‫ח‬
LIVROS/MÚSICA/receitas

+ 10= ‫י‬ p. 62
glossário

18=‫ = חי‬vida
O vocabulário da guerra

ficção
Conto de Tatiana Salem Levy
VINHETAs
Escalpos cariocas, por Dora
NO CENTRO
e MAIS
p. 66
Longo Bahia/ Futebol, por Michel UM POUCO
(hai)
. Houellebecq e Ed Viggiani Carta dos editores
10
Guimátria

Opinião 923=

Por Na pág. oposta, o pintor em


Jorge Amado frente à obra Guerra

Um quadro de Segall Éramos vários na sala maior do atelier de Lasar Segall.


Ele voltou a tela imensa para nós. E a guerra surgiu
é liberdade contra escravidão. A tragédia que o nazis-
mo desencadeou sobre o mundo está representada
à nossa frente em todo o seu horror. Nunca a senti nestes três quadros: a matança dos judeus em todos
tão cruamente, nem na leitura dos mais renomados os países onde o nazismo assentou sua bota; a fuga
correspondentes, nem no cinema, onde assistimos desesperada de quantos se puderam salvar, gente de
aos jornais do front, nem mesmo nos discursos dos todas as pátrias, em busca de paz; e, por fim, a guerra.
líderes. Ali, no quadro do grande pintor paulista, a Já conhecia os dois primeiros quadros. Fiquei parado
guerra não era descrição ou fotografia de coisa pas- diante do último e, naquela noite paulista, o meu sono
sada, de instantes já vividos, de fatos superados. Ali se povoou com as figuras trágicas do pintor. Nunca
ela estava presente nos olhos dos mortos, nos pés mais poderei esquecer este quadro, mesmo que não
dos que se equilibravam sobre cadáveres, na angústia venha a vê-lo novamente. Jamais quem o viu poderá
dos rostos deformados, nas cores que o artista con- esquecê-lo.
seguira. Talvez em nenhum momento o meu ódio ao É realizado com a dor humana e é um grito de pro-
nazifascismo tenha se elevado tanto como quando testo. É a contribuição de um artista para a batalha do
contemplei o quadro de Segall. E só então compre- homem livre contra as forças da opressão.
endi a razão da campanha sórdida da quinta-coluna Anuncia-se para breve uma exposição de arte
contra este mestre da pintura e este inigualável cria- moderna na Bahia, sob o patrocínio do núcleo da As-
dor de beleza, quando da sua última exposição no Rio sociação de Escritores. Desenhos e xilogravuras de
de Janeiro. A quinta-coluna se lançou contra ele com Segall serão expostos ao lado de trabalhos de outros
uma ferocidade inaudita. Não foi apenas o atentado a artistas nacionais. Mas eu fico pensando em quando
gilete contra os quadros, como fizeram na exposição poderemos ver os grandes quadros dos pintores mo-
de arte moderna de Belo Horizonte. Não. Contra Se- dernos do Brasil e, principalmente, quando poderão
gall eles ergueram todas as trincheiras e usaram todas os baianos admirar e sentir a grande arte ante os qua-
as armas. Colunas e colunas de jornais se encheram dros de Lasar Segall, quando poderão sentir o máximo
de acusações ao pintor extraordinário, ao maior artis- de ódio ao nazifascismo ante Guerra, tela que bastaria
ta brasileiro, àquele que se voltou sem medo para a para imortalizar qualquer pintor. A exposição que se
realidade do seu tempo. A multidão desfilava pelas sa- anuncia é uma realização digna de todos os louvores.
las onde estavam os quadros e se emocionava ante o É um primeiro passo para a vinda, à nossa capital,
Pogrom e o Navio de emigrantes, ficava muda e quieta dos grandes artistas que tragam seus grandes qua-
ante esta representação espantosa da Guerra. Esses dros. A começar por Lasar Segall.
quadros explicavam a campanha contra Segall. Não
está ele, timidamente, pintando flores e naturezas-
-mortas nesta hora de angústias do mundo. Sua pin- Crônica de 19/7/1944 publicada em Hora da guerra
tura é combate, é luta, é democracia contra fascismo, (Companhia das Letras, 296 págs.)
12

Lasar Segall, Guerra, 1942


Pintura a óleo sobre tela, 183 x 268 cm
Acervo do Museu de Arte de São Paulo
14
Guimátria

Análise 958=

Por
Amós Oz

não os amou. Por serem europeus, eram rotulados de lhas enquanto atirávamos pedras contra eles na Intifada
Uma definição de tragédia cosmopolitas. Eram rotulados de intelectuais sem raízes. dos judeus de 1946/47. As ironias da história...

(e de comédia) De parasitas. Esse era o vocabulário compartilhado por


nazistas e por comunistas. Cidades – Meus pais me diziam que um dia, não
enquanto vivessem, mas durante minha vida, nossa Je-
A literatura israelense reflete as ambiguidades de um país Fuga – Meus pais foram brutalmente expulsos da Euro- rusalém iria se desenvolver e se tornar uma cidade de
dividido entre o certo e o certo pa nos anos 1930. Por sorte, porque se a Europa não os verdade. Eu não tinha a menor ideia sobre o que estavam
tivesse expulsado não haveria nenhum deles na década falando. Para mim, Jerusalém era a única cidade real. Até
de 1940. Nenhum lugar do mundo queria os judeus na mesmo Tel-Aviv era um sonho para mim. Mas hoje sei que
época. A política para a imigração judaica no Canadá era ao usarem o termo “de verdade”, meus pais queriam di-
de que “um já é muito”. A Austrália foi mais sofisticada. O zer uma cidade com um rio no meio, com pontes, uma
primeiro-ministro declarou que a discriminação é horrível: cidade europeia.
“Por isso não vamos deixar os judeus entrarem aqui, pois
não queremos importar o antissemitismo”. Meu avô na Li- Germes – A imigração foi difícil para todos, mesmo
tuânia pediu um visto americano. Disseram que precisava para os filhos e os netos dos imigrantes. E não só para
esperar 17 anos. Pediu cidadania francesa, negada. Pe- os europeus. Um milhão de israelenses vieram de países
diu cidadania britânica, recusada também. Foi suficiente- islâmicos e árabes. Eles têm a mesma relação de amor
mente maluco para pedir cidadania alemã alguns meses e ódio com o Egito, o Iraque, o Marrocos e o Iêmen que
antes da ascensão de Hitler ao poder, e sou eternamente meus pais tinham com a Europa. Logo que chegou a
grato por terem dito não porque, caso contrário, eu não Israel, minha avó Shlomit, uma senhora muito europeia,
estaria aqui hoje. A triste resolução foi viajar para Jerusa- burguesa, bem educada, com domínio de três ou quatro
lém, o único lugar que os aceitava. línguas, saiu nas ruas quentes e poeirentas de Jerusalém,
com seus odores, suas colinas áridas ao crepúsculo. De
Amor e ódio – Meus pais foram para Israel, mas man- lá, com um vestido de seda e um chapéu fedora com plu-
Sanidade – Poucos romances israelenses descrevem Foguetes – O imigrante é alguém que chega determi- tiveram essa relação de amor e ódio com a Europa. Essa ma, lançou um olhar apavorado para as ruas. Olhou para
como é lutar numa guerra, e não é por acaso. É uma ex- nado a esquecer completamente o antigo país. Só que mistura de nostalgia e decepção. Não a compartilharam os homens no mercado, seminus, bronzeados, muscu-
periência tão diferente, tão remota, que acho impossível nunca conseguirá fazê-lo. E espera que no novo país comigo. Você não compartilha com crianças sua decep- losos, lavados de suor e gritando numa língua gutural, e
traduzi-la em palavras. O campo de batalha é feito de todas as esperanças sejam concretizadas. Muito rapida- ção com uma amante que o expulsou. Meu pai brincava: deu seu seu veredicto: “O Levante é cheio de micróbios”.
odores terríveis, por exemplo, e não há palavras suficien- mente, percebe que não serão. É aí que a sua família vira “Na Tchecoslováquia há os tchecos, os eslovacos e os Isso se tornou seu slogan durante 25 anos de vida em
tes no idioma para transmiti-los. Na Guerra dos Seis Dias uma espécie de Cabo Kennedy. O filho da família torna-se tchecoslova-cos, que somos nós, os judeus. Na Iugoslá- Jerusalém. Estava sempre lutando contra os germes. Ao
[vencida por Israel em 1967], fui recrutado como oficial um foguete no qual a família injeta vitaminas, recursos, via, há sérvios, croatas, montenegrinos e eslovenos, mas enxergarem minha avó, os germes fugiam. Ela fervia tudo,
júnior na fronteira egípcia. Logo no início, estava sentado educação e ambições, esperando que um dia esse fo- há também os iugoslavos, que somos nós, os judeus”. E legumes, frutas. Quase fervia a si mesma tomando três
com meus homens numa colina e de repente bombas guete leve as esperanças da família lá para cima. Além assim por diante. Como criança, não entendia como essa banhos quentes todos os dias, verão ou inverno. Quan-
começaram a explodir no meio de nós. Vi que estavam disso, imigrantes sempre se sentem inseguros, e sob a piada era amarga. do estava com mais de 80 anos e problemas cardíacos
sendo lançadas por estranhos na colina oposta. Sabem ameaça de uma vizinhança hostil os traumas do passado sérios, o médico disse: “Se a senhora continuar com isso,
qual foi meu primeiro instinto? Chamar a polícia. Digo redobram. Eles sempre acham que os filhos são a coisa Línguas – Meu pai lia 16 línguas e falava 11, todas com não me responsabilizo pelo que pode acontecer”. Ela
que isso foi a última coisa sã que fiz naquele período. O mais importante de suas vidas, e isso se reflete muito em um sotaque russo muito forte. Minha mãe e ele conver- pensou e decidiu que tinha mais medo dos germes que
resto foi insano. nossa literatura. savam entre si em russo e polonês para que eu não en- do médico e continuou tomando seus três banhos escal-
tendesse. Não porque estivessem falando de sexo, mas dantes. Morreu na banheira.
Imigrantes – Há muito pouco sobre o campo de ba- Europa – Hoje em dia todo mundo é europeu, e quem porque falavam de catástrofes. Do holocausto que tinha
talha em nossa literatura, mas há muito sobre os trau- não é está na fila para se tornar. Um dia a Turquia vai virar acabado de ocorrer na Europa e do holocausto iminente Tragédia e comédia – Na certidão de óbito, que
mas do passado. Quase todos nós, israelenses, somos europeia. Quem sabe isso também não aconteça com o que poderia vir a ocorrer em Jerusalém se os britânicos não vi, provavelmente disseram que a causa foi um infarto
imigrantes, ou filhos ou netos de imigrantes. Há hoje no Iraque e o Irã? Mas há oitenta anos os únicos europeus saíssem e os árabes viessem para cima de nós. Insistiam do miocárdio. Isso é bom para a polícia, não para o es-
mundo inteiro cerca de 8 milhões de falantes de hebraico. na Europa eram judeus, como meus pais. Os outros eram para que eu aprendesse só o hebraico. Na década de critor. Apaguei a justificativa e escrevi: “Causa da morte:
Isso é muito. Quando eu era menino, o número total era patriotas noruegueses, búlgaros, irlandeses, poloneses. 1940, em Jerusalém, eles não queriam que eu soubesse limpeza”. Mas mesmo isso não é suficiente: escavei um
de algumas centenas de milhares, todos na Palestina Bri- Meus pais eram poliglotas, conheciam muitas culturas da nenhuma língua europeia. Tinham medo de que se apren- pouco mais e digo que a causa foi sua fobia do Oriente
tânica. Todos acima de 45 falavam outras línguas – ídiche, Europa e as amavam. Conheciam as histórias dos vários -desse uma língua europeia me deixaria seduzir pelo Médio. Acredito que sob essa fobia havia um fascínio se-
ladino, russo. A maior parte dos falantes de hebraico não países. Adoravam a paisagens, as pequenas aldeias com charme fatal da Europa. Iria para a Europa e seria morto creto, erótico, por aqueles homens seminus no mercado.
a tem como língua materna. E a experiência da imigração seus campos e seu riacho, e amavam as cidades antigas por lá. As primeiras palavras em inglês que aprendi, além Em última instância, acredito que ela morreu de raiva. Fi-
tem um impacto muito grande na literatura, não menor com aquelas catedrais, praças, o som dos sinos no es- de “sim” ou “não”, foram “British go home” (“britânicos, cou com raiva de si mesma por ter medo de sua própria
que a do campo de batalha. curo. Acima de tudo, amavam a música. Mas a Europa vão para casa”), que nós, crianças, gritávamos às patru- atração. Tragédia ou comédia, ficção ou não-ficção? Não
16

importa. Isso transmite um pouco da experiência dos imi- calorosos, briguentos, em resumo, uma nação muito me- a Europa colonizadora, branca e sofisticada. Olhamos E o oposto de acordo não é idealismo e integridade. É
grantes e um pouco da essência da literatura israelense. diterrânea. Nós nos sentimos à vontade num filme de Felli- para os árabes e não os vemos como vítimas da Europa, fanatismo e morte. Quando digo que teremos de chegar a
É divertida, e também chocante. Quando somos jovens, ni, não num filme de Ingmar Bergman. mas como uma nova encarnação de nossos opressores um acordo, não me refiro a capitulação. Não vou dizer que
achamos que comédia e tragédia são planetas distintos. do passado. Cossacos, os que faziam os pogroms. Antis- precisamos aceitar tudo que o inimigo quer. Estive em um
Na minha idade percebemos que são duas janelas atra- Deus, moral, política – Amo Israel mesmo quando semitas. Os nazistas. Muitos escritores israelenses com- campo de batalha duas vezes, e se a existência de Israel
vés das quais vemos a mesma paisagem. não gosto. Mesmo quando não consigo suportá-lo por partilham dessa opinião, e muito da literatura israelense fosse ameaçada iria uma terceira e uma quarta. Mas só
questões políticas. Eu diria que Israel não é uma nação, lida com essa ambiguidade moral. É um conflito entre lutaria pela existência de Israel e sua liberdade. Não por
Sonhos – Países nascem da geografia e da história. não é um país, é uma coleção calorosa de discussões. certo e certo. Os palestinos estão na Palestina e não têm lugares sagrados, interesses nacionais, recursos. Acor-
Nascem de política e demografia. Israel, não. Israel nas- Oito milhões de cidadãos, oito milhões de primeiros-mi- outra terra. Os judeus estão em Israel e não têm outra ter- do não é dar a outra face, é uma tentativa de encontrar o
ceu de um sonho, e tudo que nasce assim está desti- nistros, oito milhões de profetas e messias, todos com ra. Muitos palestinos foram para países árabes vizinhos, outro na metade do caminho. Digo que sei o que é isso
nado a ser uma decepção. A única maneira de manter sua fórmula particular para a redenção instantânea. Todo mas foram humilhados e mantidos em campos em con- porque estou casado com a mesma mulher há 50 anos.
um sonho intacto, róseo, é nunca vivê-lo. Isso vale para mundo berrando e ninguém ouvindo. Cada fila de ônibus dições desumanas. Aprenderam a duras penas que não
tudo: viagens ao exterior, escrever um romance, viver uma pode virar um seminário entusiasmado, discutindo enfa- são sírios, não são libaneses, não são egípcios. Esperando pelo Messias – Não gosto da fazer
fantasia sexual, ter uma família. Israel é uma pequena de- ticamente sobre política, moral, história e o verdadeiro profecias ou previsões, mas um dia haverá uma embai-
cepção. Mas a decepção não está na natureza de Israel, objetivo de Deus. Então participamos de um seminário Acordo – Essa é uma definição de tragédia: um con- xada palestina em Israel e uma embaixada israelense na
mas na natureza dos sonhos. na rua com completos desconhecidos, que, embora flito entre certo e certo. Às vezes é também um conflito Palestina, e essas duas embaixadas estarão próximas
discordem em relação a tudo, estão tentando chegar ao entre errado e errado, mas acredito na possibilidade de uma da outra, na Jerusalém oriental (árabe) e na Jerusa-
Fundadores – Alguns dos fundadores de Israel so- começo da fila. Se você vier a Israel como turista e não um acordo histórico entre israelenses e palestinos. Não lém ocidental (judia). Nasci em Jerusalém e amo a cidade
nharam um país bíblico, uma renovação dos antigos rei- conseguir dormir, pegue o telefone, ligue para qualquer apenas é possível, como é viável. Teremos de dividir um por inteiro, mas ela está dividida entre judeus e árabes e
nos de Davi e Salomão. Uma nação de soldados, cléri- número e tenha uma discussão fantástica sobre o assun- país muito pequeno em dois países menores. Precisare- isso terá de ser resolvido por um acordo. As pesso-as me
gos, profetas e camponeses. Outros sonharam que Israel to que escolher mos dividir a casa em casas geminadas e aprendermos perguntam: e os lugares sagrados? Minha avó Shlomit,
deveria virar uma réplica de um schtetl do leste europeu. a conviver como vizinhos. Mas tenho uma boa notícia: a quando eu era um menininho, disse que a diferença en-
Outros, marxistas sionistas, acreditavam em Stalin. Até Escritores e profetas – Israel deve ser o único país maioria dos judeus israelenses e a maioria dos palestinos tre os judeus e os cristãos era de que os últimos acham
1952, sonhavam que Stalin visitaria um kibutz. Eles o fa- do mundo onde primeiros-ministros convidam escritores aceita a solução de dois Estados. Israel ao lado da Pa- que o Messias já veio e ainda vai voltar, e os primeiros
riam conhecer o estábulo, o galinheiro, e depois o trariam e poetas para uma conversa de fim de noite, não no ga- lestina. Pesquisas de opinião pública mostram mês após pensam que ele ainda está por vir. “Por causa dessa
para uma longa discussão e revelariam a ele o significado binete, mas em sua casa. Já passei por isso com sete mês que 70% da população em Israel e na Palestina ocu- diferença, você não imagina quanto ódio, perseguição
do marxismo e do leninismo. No final da noite, Stalin se ou oito de nossos primeiros-ministros. Ele vai perguntar pada aceitam a solução de dois estados. e derramamento de sangue aconteceram. Por que sim-
levantaria e lhes diria em russo: “Seu socialismo supera o ‘o que fizemos de errado?’ ou ‘para onde vamos?’ Vai plesmente não podemos esperar para ver? Se o Messias
nosso”. E havia também os sionistas de classe média do admirar as respostas e ignorá-las completamente. Mas Sacrifícios – Estão felizes com isso? Não. Vão dançar disser: ‘Olá, que bom vê-los de novo’, os judeus terão de
leste europeu, que sonharam em criar no meio do Oriente é natural. Não se pode esperar que a geração atual de nas ruas quando essa solução for implantada? Não. Será se desculpar com os cristãos. Se o Messias disser ‘Que
Médio uma cópia do império Áustro-Húngaro do impe- escritores e intelectuais de Israel seja mais bem sucedida percebida como uma amputação tanto por uns quanto prazer conhecê-los’, todos os cristãos terão de pedir des-
rador Francisco José, com gente muito educada, todo do que os profetas. Mesmo os profetas, em sua época, por outros. Os israelenses terão de sacrificar a Cisjordâ- culpas aos judeus. Até então”, disse a minha avó, “viva
mundo se cumprimentando com “Herr Direktor” e “Herr não conseguiam mudar a mente dos dirigentes ou o co- nia, berço histórico do povo judeu, onde ocorreram mui- e deixe viver”. Essa é a minha resposta para os locais
Doktor” e paz e tranquilidade. ração das pessoas. tos eventos bíblicos. Os palestinos terão de dizer adeus sagrados em Jerusalém: que haja acordos práticos para
a cidades como Haifa, que pertenciam a eles antes de que todos possam rezar, judeus, cristãos e muçulmanos.
Fellini e Bergman – Evidentemente, aqueles sonhos Vítimas – De um modo estranho, Israel é um campo de 1948. Vai doer, mas a cirurgia é inevitável. Os dois po- Não vamos colocar bandeiras em cima desses locais.
não podiam se concretizar. Em parte porque se concreti- refugiados ameaçado. A Palestina também é um campo vos não podem viver em conjunto, como uma família feliz,
zar não faz parte da natureza dos sonhos, e em parte por- de refugiados. O conflito entre israelenses e palestinos é porque não estão felizes e nem sequer são uma única Shakespeare e Tchekov – Para terminar, e voltan-
que eram sonhos excludentes. Então, o que aconteceu? um conflito trágico entre duas vítimas da Europa. Os ára- família. São duas famílias infelizes. Precisam dividir a do ao gênero do conflito israelense-palestino: tragédias
Alguns dos sonhos morreram, foram esquecidos. Muitos bes foram vítimas por meio do colonialismo, exploração e casa. Todos sabem disso, exceto os líderes. Acho que no podem ser resolvidas à maneira shakespeariana e à ma-
ainda estão vivos e lutando uns com os outros. Alguns se humilhação. Os judeus foram vítimas por meio de discri- fundo os líderes também sabem, mas não têm coragem neira de Tchekov. Na tragédia de Shakespeare, no final o
tornaram pesadelos, e alguns são a realidade de Israel. minação, perseguição e, em última instância, genocídio de fazer o que sabem que precisa ser feito. Se pudesse palco é coberto de cadáveres e talvez a justiça prevaleça.
Há uma grande diferença entre o país da imprensa – não sem precedentes. Podemos imaginar que duas vítimas usar uma metáfora simples, diria o seguinte: o paciente Na conclusão de uma tragédia de Tchekov, todos estão
conheço a imprensa brasileira, falo da americana e a eu- do mesmo opressor se amariam, se abraçariam e iriam israelense e palestino está relutantemente pronto para a melancólicos, infelizes, decepcionados e amargos, mas
ropeia – e o real. Na mídia 80% dos israelenses são faná- juntas para as barricadas. Não. Na vida real, dois filhos cirurgia, mas os médicos são covardes. vivos. Em Israel, eu e meus companheiros escritores lu-
ticos religiosos ou moradores furiosos de assentamentos, do mesmo pai violento não se amam. Eles olham um para tamos não por um final feliz, porque não há possibilidade
19% são soldados impiedosos e 1% são autores e inte- o outro e dizem: “Você é como ele. Não, você é como ele”. Vida e morte – Sei que a palavra acordo tem uma co- de um final feliz. Queremos uma conclusão tchekoviana.
lectuais maravilhosos, como eu, que criticam o governo e notação muito negativa para os ouvidos de jovens idea-
lutam pela paz. Na verdade, 80% vivem na planície costei- Certo e certo – Os árabes não nos veem como o que listas, que tendem a pensar que um acordo é desonesto. Trechos de palestra proferida em São Paulo, 2011,
ra, não moram em Jerusalém ou nos assentamentos. Não somos na realidade, um grupo de refugiados semi-histé- Acordo é uma coisa mole, é falta de integridade... Não no no aniversário de 25 anos da Companhia das Letras,
são ortodoxos, são de classe média, ruidosos, falantes, ricos. Eles nos veem como uma extensão dos opressores, meu vocabulário. Para mim, a palavra é sinônimo de vida. editora de Oz no Brasil
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Guimátria

Ensaio fotográfico 65=

Por
Dor Guez Al Lydd, 2010, fotografias P&B, 35x50cm
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A obra de Dor Guez confronta o espectador com a memória dos palestinos que ficaram e dos que
tiveram de sair ao fim da Guerra de 1948, logo depois da independência de Israel. Al-Lydd, o nome
árabe da atual Lod, representa a memória da antiga cidade palestina. As imagens desta série trazem,
em meio à paisagem contemporânea, ruínas e resquícios quase imperceptíveis de casas destruídas.
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Guimátria

Ensaio 392=

Por Nas imagens desta página e das


Ilana Feldman páginas seguintes, cenas de Filme de
Guerra, de Wagner Morales

Olho, arma e espetáculo ta o corpo do espectador com estímulos sensório-motores


e efeitos físico-químicos, fazendo uso de choques per-
ção, pois a mão do piloto dispara a câmera ao mesmo
tempo em que aciona a arma. Assim, “para o homem de
ceptivos e toda sorte de intensificação e explosão, sejam guerra a função da arma é a função do olho”.
Com lógica semelhante à do cinema, a guerra influenciou visuais, sonoras ou dramáticas, sejam em melodramas, Com isso, o violento rompimento do continuum es-
a produção do imaginário do nosso tempo tragédias ou policiais. Por isso não interessam os gêneros pacial deflagrado pela arma aérea e os fulminantes pro-
cinematográficos e seus conteúdos, mas a linguagem e gressos das tecnologias de guerra explodiram, a partir de
seus artifícios que, através do corte, o elemento bélico da 1914, a antiga visão homogênea do espaço euclidiano
filmagem e da montagem – associado pelo crítico André (tão fortemente experimentado pelos combatentes das
Bazin à ideia de morte, de interrupção –, organizará ou guerras de trincheira), engendrando a heterogeneidade
bombardeará a percepção do espectador. dos campos de percepção. A partir da transmutação
Fascinado, absorto e com sua percepção crítica esti- da guerra de um complexo militar-industrial (que Walter
lhaçada pela velocidade, Virilio lembra que o espectador Benjamin chamaria de “complexo místico-científico”) em
desse cinema de guerra é conduzido à hipnose, ao transe, um complexo comunicacional-informacional, logo se in-
ao delírio cinemático e aos efeitos psicotrópicos. Não por tensifica a criação de uma indústria de massa por meio
acaso, a grande contribuição ao cinema de Apocalypse da qual o cinema opera um desarranjo psicotrópico na
Now, de Francis Ford Coppola (1979), considerado por percepção do espectador, perturbação sensorial que se
Virilio, sem qualquer explicação, uma “semidecepção”, foi torna o desenho de uma nova geometria da visão.
Parafraseando George Orwell em 1984, uma guerra não cepção detonada pelo impacto psíquico das armas, pois, ter expressado através da linguagem cinematográfica o Muitas décadas mais tarde, em L’écran du désert:
é para ser ganha, mas para ser eternizada. Não por aca- segundo ele, “não existe arma sofisticada sem mistifica- estado de alucinação e delírio em que se encontravam os chroniques de la guerre, lançado apenas na França em
so, essa eternização tem sido garantida pela lógica do ção psicológica”, assim como não existe guerra sem re- soldados americanos no Vietnã, alterando a própria per- 1991, Virilio desenvolveria ainda mais o tema, tendo como
espetáculo que rege a ordenação visual dos conflitos presentação – já que, além de instrumentos de destruição, cepção dos espectadores que, a partir de então, teriam alvo a transformação da aceleração cinemática na ime-
desde a Primeira Guerra Mundial, quando a presença do as armas são também “instrumentos de percepção”. uma experiência sensorial mais próxima da “desrealiza- diaticidade do tempo dito real: “Não há política possível
visor telescópico da câmera a bordo dos aviões milita- É por isso que, para Virilio, “a história das batalhas é, ção” dos combates ou daquilo que Virilio identifica como a na escala da velocidade da luz. A política é o tempo da
res prefigura uma mutação sem retorno nas percepções antes de mais nada, a história da metamorfose de seus “transformação da guerra na terceira dimensão do cinema”. reflexão. Hoje não temos mais tempo para refletir, as coi-
e sensibilidades de então. A partir desse momento uma campos de percepção”, já que as armas, com seu pode- sas que vemos já aconteceram, e é necessário reagir ime-
“desrealização” crescente do engajamento militar se fará rio simbólico e material, operam como estimuladores de Tecnologia e sentidos diatamente. Uma política do tempo real é possível? Uma
notar, circunstância em que, segundo o arquiteto e ur- fenômenos físico-químicos sobre os órgãos do sentido. Considerado o primeiro western da história do cinema, O política autoritária, sim. Quando não há mais tempo para
banista francês Paul Virilio, “a imagem se prepara para Segundo Gustave Le Bon, autor de Psicologia das mas- grande roubo do trem, dirigido por Edwin Porter em 1903, partilhar, o que partilhamos? Emoções”.
triunfar sobre o objeto, o tempo sobre o espaço, em uma sas, obra escrita no final do século XIX e que marcará o apresenta, ao final, um plano-próximo de um persona-
guerra industrial na qual a representação dos aconteci- pensamento de Virilio, “a guerra não atinge somente a gem (o ladrão-cowboy) que, olhando para a câmera, atira Alvos nervosos
mentos domina a apresentação dos fatos”. vida material dos povos, mas também seus pensamen- nos olhos do espectador. Anos antes, por volta de 1882, Sem nunca perder do horizonte a relação entre guerra,
Em Guerra e cinema, trabalho fundamental lançado tos”. Não é o racional que conduz o mundo, “mas as for- o médico fisiologista francês Étienne-Jules Marey, pes- tecnologia e percepção, Virilio apostará desde Guerra e
original e coincidentemente em 1984 (seguido do subtí- ças de origem afetiva, mítica ou coletiva que conduzem quisando a decomposição do movimento, inventa o fuzil cinema na ideia de que todos nós, espectadores, somos
tulo “Logística da percepção”) e reeditado no Brasil pela os homens”. Assim, “as forças imateriais são as verdadei- cronofotográfico, colocando a cronofotografia a serviço “alvos nervosos” em potencial: corpos afetados e configu-
Boitempo em 2005, Paul Virilio dedica-se a essa ousada ras condutoras dos combates”. da pesquisa militar sobre o movimento. Marey, defende rados por determinadas relações com as tecnologias de
empreitada: investigar historicamente a íntima relação Se o trabalho de Virilio vai justamente associar a ideia Virilio, foi um elo essencial entre a arma automática e a imagem e as biotecnologias; corpos atravessados pela
entre a logística da guerra e o desenvolvimento de dis- de imaterialidade não apenas ao campo da percepção, fotografia instantânea, pois seu fuzil cronofotográfico não aceleração dos fluxos e por desejos de hiperestimulação
positivos de visualização a partir da cronofotografia1 e do para ele em mutação permanente, mas ao campo da pro- só precedeu a câmera dos irmãos Lumière, pioneiros do e excitação; corpos turbinados, “bombados” e bombar-
cinematógrafo, tendo como foco principal o resultado do dução do imaginário, é porque uma guerra não pode ser cinema, como também era descendente direto das ar- deados. Em “Do super-homem ao homem superexcitado”,
acoplamento dessas duas tecnologias, guerra e cinema, jamais separada do espetáculo “mágico” que sua logísti- mas de tambor e cilindro giratório. texto publicado em A arte do motor, lançado aqui em 1996,
na percepção e na capacidade de afetação dos corpos. ca solicita, já que “abater o adversário é menos capturá- Se ao final do século XIX as pesquisas científicas Virilio lança como epígrafe a sugestiva frase de Nietzsche:
Repleto de informações históricas descritas como -lo do que cativá-lo, é infligir-lhe, antes da morte, o pavor acerca dos novos aparatos óticos, motivadas por fins “O que mais importa ao homem moderno não é mais o
detalhes picantes de uma história assombrosa, a nossa, da morte”. Sendo assim, Guerra e cinema não tratará de médicos e militares, acabaram por divulgá-los como en- prazer ou o desprazer, mas estar excitado” – pensamento
Guerra e cinema revela a proximidade de quem conheceu elencar uma relação de “filmes sobre guerra” (que conte- tretenimento para o olhar nas grandes feiras populares que já apontava para uma necessidade de constantes es-
a guerra e seus aparatos tecnológicos de perto. Como um nham temáticas bélicas ou cenas de batalhas), mas de – o que contribuiu para a emergência de um novo regime timulações nervosas desde fins do século XIX.
durante a ocupação nazista na França, Virilio presenciou defender a existência de uma osmose absoluta entre as de percepção, baseado em um novo observador –, as Se o público, a partir do momento em que aprende a
a capacidade de mobilização, alcance e alteração da per- lógicas da guerra e do cinema industrial. pesquisas na área da aviação também possibilitaram que, controlar suas reações nervosas, começa a ver o perigo
No entanto, em uma lacuna deixada por Virilio, seria a partir de 1914, o avião deixasse de ser um meio de voar ou a iminência da morte como algo extremamente exci-
1. Método de análise do movimento por meio de fotografias tiradas
preciso definir como filmes de guerra, e não apenas filmes para tornar-se um “modo de ver”. Desde sua origem, pos- tante, é porque, acredita Virilio, as clássicas salas de cine-
sucessivamente com intervalos iguais, considerado a base epistemológica
a partir da qual se pôde desenvolver o cinematógrafo. sobre guerra, todo e qualquer cinema sinestésico, que afe- tula Virilio, o campo de batalha é um campo de percep- ma poderiam ser tomadas no passado como “campos de
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treinamento”, onde as massas aprendiam a controlar o das imagens, entre os gabinetes de guerra e os escritó- Estendendo-se não apenas às dimensões do espaço, “cinemetralhadora” de aviação, híbrido de arma e câmera
medo do desconhecido ou, como dizia Hitchcock, do que rios de propaganda. Os ditadores já não governam, mas mas ao conjunto da realidade, a “guerra total” prescinde filmadora. Tais “máquinas de visão”, paulatinamente e a
sequer existe. Hoje, certamente os campos de treinamen- comportam-se como diretores de cinema. “Hitler profa- de limites claros e alvos fixos. partir de uma crescente demanda por aceleração, subju-
to, ou de percepção, não se restringem às salas escuras. na nada mais do que o realismo cotidiano, e a própria Se o lendário diretor norte-americano Samuel Fuller garão a visão humana ao aparato técnico, automatizando-
Os jovens que operam eximiamente games simuladores natureza de seus crimes permanece incompreensível se dizia que “o cinema é um campo de batalha”, frase que -a e industrializando-a, na medida em que um verdadeiro
– esses híbridos da indústria do entretenimento com o nos esquecermos de seu extraordinário conhecimento ficou notória, o próprio campo de batalha passava a ser mercado de percepção sintética é instaurado. Herdeira
complexo industrial-militar –, realizando operações cirúr- técnico nos campos da direção teatral, da trucagem, do também cinematográfico. Agora, a totalidade da realida- direta da linha de tiro – e estando presente das câme-
gicas, assépticas e pautadas por uma relação de acele- mecanismo de alçapões e cenas giratórias e, sobretudo, de tornava-se cinemática, isto é, obedecia a princípios de ras de vigilância aos mais longínquos satélites –, a “visão
ração constante, também estão tendo, porém de modo das diferentes possibilidades de iluminação e manejo movimento e construção estética calcados na articulação sem olhar”, dessubjetivada, é o efeito visível do invisível e
muito mais eficaz e efetivo, suas percepções estimuladas de refletores”. Segundo seu ministro Albert Speer, Hitler entre imagens e sons. E é justamente quando os Aliados contínuo processo de “desregulação da percepção”.
e superexcitadas por uma disposição bélica. preocupava-se mais com a eficácia psicológica de uma se colocam na vanguarda das técnicas cinemáticas que Embora Virilio não se aprofunde em uma investigação
Em um momento oportuno e em pouquíssimo tem- arma do que com sua força operacional. o carisma de Hitler pode ser atacado e seu poderio en- metodológica sobre o estatuto da percepção na contem-
po, esses mobilizados jovens competidores poderiam ser Dessa forma, a Alemanha nazista promovia uma im- tra em declínio. “Em 30 de abril”, sintetiza Virilio, “Hitler poraneidade, oferece pistas para compreendermos que,
convocados a usar suas habilidades para constituir uma bricada relação entre cinema, poderio militar e propagan- abandona o inferno das imagens suicidando-se em sua agora, não se trata mais de perguntar qual é o sujeito da
complexa e virtualizada máquina de guerra, assim como da, cujo objetivo era reunir e tratar instantaneamente a ‘câmera escura’ do bunker da Chancelaria de Berlim”. percepção, pois a percepção, cada vez mais desregula-
nos anos 1940 Vannevar Bush, citado por Virilio, então informação, garantindo a eficácia e a coesão do conjunto da e automatizada, emancipada do próprio olhar, tem se
diretor do Escritório de Pesquisa Científica e Desenvolvi- das representações dos conflitos, endereçadas tanto aos Desregulação da percepção tornado resultado ou efeito de um acoplamento do corpo
mento durante o governo Roosevelt, achava que os milha- soldados, pilotos e oficiais quanto à população civil. Para Desde as alturas das fortificações que dominaram o com as “máquinas de visão”. Com isso, torna-se cada
res de jovens que dirigiam carros e se interessavam por tanto, o exército alemão passou a contar com um cinegra- passado, com a inovação arquitetônica das “torres de vez mais tênue a linha divisória entre a realidade ocular
mecânica, eletrônica e motocicletas encontravam-se, sem fista em cada uma de suas unidades e fronts de batalha, observação” e do modelo panóptico desenvolvido pelo e a construção midiática de um mundo em vias de des-
perceber, em verdadeiros campos de habilitação militar. o que possibilitou (embora Virilio não comente o assunto) jurista Jeremy Bentham no século XVIII (um dispositivo de materialização, para o qual “o cinematógrafo dos irmãos
a naturalização do uso da câmera na mão, já que não era visão e de poder minuciosamente analisado por Michel Lumière tem mais credibilidade do que o sentinela melan-
Guerra total e pancinema possível montar um tripé em meio a um campo de guer- Foucault em Vigiar e punir, mas que escapa a Virilio), pas- cólico que não acredita em seus próprios olhos”.
Embora os soldados da Primeira Grande Guerra tenham ra, hoje um sedimentado e repisado código do realismo sando pelo uso do balão, da aviação e da restituição foto- Se o cinema fora então inventado pelos irmãos Lu-
sido protagonistas de combates sangrentos, foram tam- cinematográfico. gráfica dos campos de batalha em 1914 até o “satélite de mière para “salvar o ser pela aparência”, como defendia
bém os primeiros espectadores de um espetáculo pirotéc- No dia 18 de fevereiro de 1943, Goebbels faz seu alerta avançado”, não cessamos de assistir à expansão o crítico André Bazin, para fazer perpetuar a vida em seu
nico, no qual já se reconhecia seu aspecto espetacular e pronunciamento oficialmente denominado “Guerra to- do campo de percepção dos conflitos. Assim, “a visão movimento e duração, também fora inventado no cora-
grandioso. Grandiosidade e perturbação – uma sensação tal”, estabelecendo uma data histórica. A partir de então, ocular vai progressivamente cedendo lugar aos procedi- ção das máquinas de morte. Por isso, convém não esque-
de vertigem da técnica, de “desrealização” puramente ci- comenta Virilio, a massa de figurantes-sobreviventes mentos ótico-eletrônicos mais sofisticados”. cer que essa ambiguidade irremediável entre a câmera, o
nemática – presentes nos impressionantes e impressiona- alemães é precipitada da “guerra total” a um “pancine- Nessa nova ordem visual, da “máquina de guerra olho, a arma e o espetáculo, entre a preservação da vida
dos relatos de Ernst Jünger, Apollinaire e Marinetti mencio- ma”, um cinema tão total quanto a própria guerra. Nesse moderna” por excelência, o avião, passamos às novas e sua exposição, bem como sua insidiosa coação, irá
nados por Virilio. momento, as populações reivindicam a guerra como um performances das “máquinas de espreita”, como a foto- sempre comparecer no mais ínfimo e ingênuo dos gestos,
Mas é a partir da Segunda Guerra que o poder real espetáculo cada vez mais grandioso, capaz de rivalizar grafia aérea ou o fotograma cinematográfico, tendo como como ligar uma traquitana qualquer e apertar o botão do
passa a dividir-se entre a logística das armas e a logística mais uma vez com as superproduções hollywoodianas. auge desse processo o desenvolvimento da Blitzkrieg, a REC – mesmo que seu olhar não esteja mais lá.
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Guimátria

Ensaio 1134=

Por Abaixo, da esq. para a dir., Carpet Invaders,


André Conti War in the north e Stone throwers

Mercado, ideologia e bombas


A história dos games de temática militar, dos modelos sem personagens
nem contexto aos heróis que pilotam um tanque do Hezbollah

Impossível contabilizar quantos pássaros foram arremes- tornar aquela guerra representativa de todas as guerras Segunda Guerra. A campanha principal culmina na in- Variáveis e estratégia
sados para a morte. Na ponta do dedo, milhões dessas e, por extensão, traçar uma crítica orwelliana ao próprio vasão da Inglaterra e dos Estados Unidos e a queda de A consequência natural dessa mentalidade é o gênero
aves pereceram nos campos de batalha, deixando um conceito de guerra. Tampouco os responsáveis por esses Washington marca o fim da partida. conhecido como grand strategy. Enquanto os jogos de
rastro indelével de extinção suína. jogos são leitores fervorosos do Homo Ludens. O único Não há registro de controvérsia acerca do jogo. É estratégia reduzem a guerra a elementos mais básicos,
Embora a única referência efetivamente militar em An- contexto necessário são os dois tanques. O único olhar como um xadrez com peças pintadas: o que importa simplificando a realidade, a grand strategy tenta dar conta
gry Birds seja o capacete utilizado pelos porcos, a técnica sobre a guerra diz respeito a vento, distância, força e são os movimentos no tabuleiro. A diferença é que as do maior número possível de elementos. É como se, para
para dizimá-los é uma das mais antigas em termos de ângulo. De resto, o gráfico só está ali para representar regras desse xadrez tentam simular o funcionamento cada variável num jogo comum, houvesse vinte outras.
guerra: a balística. Na Idade Média usavam o trébuchet. visualmente as contas sendo feitas pelo sistema. Podem estratégico de uma guerra, e os movimentos no tabu- Por conta disso, o grau de liberdade é imenso. He-
No século XX, migramos para a artilharia. No iPhone, um ser tanques se matando, mas também minhocas (a série leiro precisam levar em conta as linhas de suprimento, o arts of Iron 3, da produtora sueca Paradox Interactive,
dedo conduz a ave camicase à morte. “Worms”), porcos (Hogs of War) ou aves (Angry Birds). moral das tropas, os desenvolvimentos tecnológicos etc. maior representante do gênero, simula os gabinetes po-
Não é de espantar que os primeiros jogos eletrônicos Se há uma exaltação, ela soa menos patriótica do A mudança faz parte da evolução natural dos jo- líticos e militares de dezenas e dezenas de nações na
de balística fossem de temática militar. Artillery, de 1980, que técnica. Computer Bismarck, por exemplo, é o opos- gos de estratégia, que migraram do tabuleiro para os Segunda Guerra, tudo fruto de ampla pesquisa histórica.
punha em confronto dois tanques de guerra. Com base to de Artillery. Há um objetivo expresso de simular da ma- computadores. O grande avanço que o PC trouxe ao Pode-se controlar qualquer força militar ou país e há de
na distância entre ambos e na força e direção do vento, neira mais acurada possível eventos históricos reais, no gênero foi a capacidade de simulação a partir de uma se lidar com diplomacia, comércio, indústria, comunica-
ajustava-se o ângulo do canhão. Dizimar o adversário era caso as últimas batalhas do navio de guerra Bismarck, base concreta de dados. Enquanto num tabuleiro de ções e outros tantos fatores, todos infinitamente ajustá-
uma experiência quase matemática. A primeira versão, in- na Segunda Guerra. O jogador controla a força britânica, War os “fatos históricos” são decorrência das atitudes veis e modificáveis.
clusive, trazia apenas textos e tabelas, sem gráficos. que enfrenta uma série de unidades alemãs, incluindo o (e da sorte) dos jogadores, um jogo como Panzer Ge- Novamente, não há uma questão ideológica sendo
O recorte balístico de Artillery também dispensa en- Bismarck. A frota nazista tem superioridade técnica, mas neral pode armazenar dados estatísticos reais e assim tratada; o ponto de vista é técnico. Jogar com a Grã-Bre-
redo, personagens, contexto. Funciona porque o jogador uma eventual vitória do jogador, e portanto dos Aliados, reagir às estratégias do jogador de forma supostamen- tanha representa um começo tortuoso e reforços no meio
preenche as lacunas necessárias: qual guerra é aquela, não é representada como a superação de uma tirania ou te verossímil. do caminho. Controlar a Polônia aumenta o grau de difi-
de que lado estamos etc. Um texto técnico descrevendo coisa que o valha. O navio pisca um pouco, solta um pio Lembrando que, em 1980, o mercado para jogos de culdade do jogo, mas não é uma rota moralmente mais
a mesma situação, com os pormenores da influência do metálico e desaparece. Fim de caso. computador era restrito a quem dispusesse de conhe- correta do que escolher a Itália, por exemplo. A ironia é
vento no uso de canhões, seria frio e tedioso. cimento técnico, necessário para instalar e operar os que, ao expressar nominalmente as diferenças entre táti-
Moral das tropas aplicativos. Por serem inicialmente destinados a esse ca e estratégia, os jogos dessa linha seguem muito mais
Força e ângulo Da mesma forma, a empresa responsável por Computer público de engenheiros eletrônicos, programadores e a concepção leninista (estratégia como o plano geral da
Ainda assim, ao abrir mão de um contexto histórico defi- Bismarck lançou, quinze anos depois, a série Panzer Ge- hobbistas, fazia todo sentido que os jogos reduzissem revolução, tática como as batalhas e problemas imedia-
nido, não parece que a intenção do desenvolvedor seja neral, em que o jogador conduz as tropas alemãs pela a guerra a seus elementos mais técnicos e numéricos. tos) do que qualquer outra coisa.
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Abaixo, da esq. para a dir.: Stone throwers,


UnderSiege, Global conflicts, Gulf war II, War
against terror e The night Bush was captured

Ideologia e mercado fornecem programadores, scripters etc., mas não pos- trói uma cidade muçulmana. O jogo tem apenas um final Modelo alternativo
Claro que seria ingenuidade dizer que séries de tiro em suem indústria própria. possível: a destruição completa de ambas as cidades. Como alternativa viável ao monolito ideológico, os títulos
primeira pessoa, como “Call of Duty” e “Battlefield”, onde Ou de Carpet Invaders, que substitui os alienígenas de mais interessantes parecem pertencer à empresa síria
os inimigos são majoritariamente árabes (na ocasional Jogos proibidos Space Invaders por uma tapeçaria persa. Ou ainda de (T) Afkar Media. Os jogos da Afkar reproduzem grandes gê-
vertente “árabes do futuro”), não tenham componente De modo que a predominância será sempre de solda- error, em que o jogador assume o papel de Bush, Blair ou neros vigentes no mercado americano, mas inseridos na
ideológico. Com a popularização dos jogos eletrônicos, dos americanos matando árabes, comunistas, alieníge- Bin Laden na guerra ao terror. O objetivo da instalação — realidade do Oriente Médio. O jogo de tiro em terceira
o público foi de “especialista” a geral. Paralelamente, a nas e, no caso de Angry Birds, suínos opressores. Por que exige que o jogador se mova, pule e interaja com o pessoa UnderSiege usa apenas eventos reais, tirados de
tecnologia os aproximou da experiência cinematográfica. isso um jogo como The Night Bush Was Captured cau- ambiente — é sempre o mesmo: matar civis e conseguir relatórios da ONU. Como estão numa zona de ocupação,
Inseridos na lógica da cultura de massa, os jogos vão sa tanto estranhamento. Do ponto de vista técnico ele mais poços de petróleo. a resistência militar é “legítima”, de acordo com as pró-
atender a ideologia dominante, como ocorre no cinema. não difere de qualquer jogo de tiro em primeira pessoa, prias Nações Unidas. Mas ao colocar o jogador contra
Mas “Call of Duty” não é um jogo para adolescentes embora seja menos sofisticado. As próprias missões — Doutrina e momento tropas israelenses, UnderSiege não busca inspirar ódio
de direita, assim como o filme Os Vingadores não se des- “inferno americano”, “Bush caçado como um rato” etc. Trata-se de críticas mais abrangentes, que usam a lingua- aos adversários. Eles são apenas o inimigo “real”, no sen-
tina a converter a juventude ao partido Republicano. Ape- — são apenas o espelho do que nos acostumamos a jo- gem dos jogos de forma livre para passar algum tipo de tido concreto, e UnderSiege parece estar mais interessa-
nas apresentam uma concepção de mundo (no caso, a gar. No penúltimo “Call of Duty”, por exemplo, uma das discurso pré-estabelecido. Mais impactantes são os jogos do em conectar o jogador a uma realidade imediata do
capitalista) como realidade definitiva. Nesse sentido, não fases consiste em invadir Cuba e assassinar Fidel Cas- “de momento”, como Special Force, desenvolvido pelo He- que em demolir a civilização ocidental.
há diferença entre os jogos e qualquer outro produto da tro (representado como um vilão cruel e cartunesco). zbollah, e cujo objetivo é a destruição de um tanque de A mesma empresa produz ainda Quaraish, jogo de
indústria cultural. Os avanços técnicos entre um “Battle- The Night Bush Was Captured fez parte da mostra guerra israelense. O mote, digamos, é o mesmo de Artil- estratégia em tempo real nos moldes de Age of Empires,
field” e outro, por exemplo, conferem à série uma ideia de “Forbidden Games”, organizada pelo Centro Israelen- lery. Todavia, a função é crítica e doutrinadora (entre uma da Microsoft. Enquanto a versão americana narra séculos
progressão, quando na verdade estamos apenas adqui- se de Cultura Digital, na cidade de Holon. A ideia da tela e outra, atira-se na cabeça de Ariel Sharon). de história de um ponto de vista do Ocidente, Quaraish
rindo o mesmo jogo sabe-se lá quantas vezes. mostra era apresentar uma produção alternativa de jo- O mesmo tipo de anseio parece ser aplacado pelo trata da origem do Islã. O jogador controla os persas, os
É uma questão de mercado. Os custos de produção gos, que vai desde “reações sanguíneas” — respostas chamado “ciclo Nasrallah”. Para além de assassinar de romanos, os beduínos ou os árabes. O público, que vai
dos grandes jogos são quase equivalentes aos do cine- imediatas a conflitos como os do Egito e da Síria — a inúmeras formas o atual líder do Hezbollah, a pontuação de jovens do Oriente Médio à população de imigrantes na
ma, e exigem um público consumidor que dê conta do in- obras críticas que exploram a miríade de possibilidades nesses jogos em geral é contabilizada pela habilidade Europa, tem acesso a um tipo de criação de identidade
vestimento. Por isso, a produção está praticamente toda narrativas dos jogos. de um governo em humilhar o outro. Tanto essa série muito menos homogêneo do que o modelo predominante
localizada nos Estados Unidos e na Europa. Países como Caso do fliperama War on Terror, em que o jogador quanto Special Force viraram febre entre a juventude do oferece. Segundo a própria empresa, “se não fizermos,
a Índia, onde a mão de obra especializada é abundante, precisa defender Nova York ao mesmo tempo que des- Oriente Médio. quem vai fazer?”. É isso aí.
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Guimátria

Resenha 333=

Por
Alexandre Rodrigues

Estrelas no ringue

Como os judeus fizeram


26 campeões mundiais de boxe
na primeira metade do século XX.
E como essa tradição desapareceu

Quatro décadas antes de Muhammad Ali, outro lutador re-


presentou um símbolo para os jovens de uma etnia opri-
mida, sem oportunidades e não raras vezes perseguida.
Benny Leonard, campeão mundial de pesos-leves de 1917
a 1925, lutava com a estrela de Davi no calção. Chamado
de “O Mago dos Guetos”, eleito diversas vezes o maior pe-
so-leve de todos os tempos, ele lotava de fãs os enfumaça-
dos clubes de boxe dos Estados Unidos quando o esporte,
antes da televisão e contando com apenas oito categorias
ao invés da miríade de associações que vieram a diluir sua
importância, estava no auge.
Leonard foi o expoente de um fenômeno inusitado. En-
tre 1910 e 1940, houve nada menos de 26 campeões mun-
diais judeus. Vários deles são personagens que o então
menino Allen Bodner viu lutar e cujas biografias recupera
em When boxing was a Jewish sport, livro de 1997 que ga-
nhou nova edição em 2011. “Como Ali, Benny Leonard, com
a estrela de seis pontas que usava com tanto orgulho no
calção, mandava uma mensagem aos guetos através da
América: ‘Você pode nos ver como mascates e sovinas’”,
escreve Budd Schulberg no prefácio. “‘Mas podemos subir
no ringue com você (...). Talvez você consiga nos derrubar
(...), mas não pode nos manter lá embaixo. Temos habilida-
de e coragem para vencê-lo em seu próprio jogo’”.

Benny Leonard, o “mago dos guetos”


38

Intelecto e força física


Essa história começa com Daniel Mendoza, sefardita,
campeão inglês entre 1791 e 1795 e hoje reconhecido
por introduzir técnica e velocidade como substitutos da
força bruta. Tanto ele, que se apresentava nos ringues
como “O Grande Rabino”, como Aby Belasco foram res-
ponsáveis pela diminuição nos ataques antissemitas em
Londres. Um século depois, do outro lado do Atlântico,
novas gerações de judeus entraram nos ringues para
redefinir novamente o boxe. 16% dos campeões e 30%
dos lutadores da época eram judeus. Em 1928 esse era
o grupo dominante no esporte, seguido por irlandeses e
italianos. Uma linhagem firmada por Joe Choynski, que
se destacou entre 1888 e 1904, e Abe Attel, o “Pequeno
Hebreu” (1901-1912), além de Kid Kaplan (1925-1927),
Benny Bass (1927-1928) e Izzy Schwartz (1927-1929).
Isso só para ficar entre os campeões. Também houve Lew
Tendler, Artie Levine e Maxi Shapiro, excelentes boxeado-
res que nunca chegaram ao título mundial. E os melhores
fabricantes de luvas e alguns dos empresários mais des-
tacados eram judeus.
Mas como uma tradição historicamente voltada para
o conhecimento e o intelecto acabou se envolvendo e
obtendo sucesso num esporte baseado na força física?
Em 1907, o então reitor de Harvard Charles Eliot reclamou
que os judeus eram “inferiores em estatura e desenvol-
vimento físico a qualquer outra raça”. Bodner encontra
uma explicação na história e na economia. A maioria dos
boxeadores judeus fazia parte da segunda leva de imi-
grantes a chegar aos Estados Unidos, no final do século
XIX, oriundos principalmente da Rússia e do leste euro-
peu, onde os acontecimentos políticos invariavelmente
terminavam em perseguições e pogroms. Para aquela
geração pobre, que vivia em guetos com apartamentos
sem aquecimento nem luz elétrica e ainda enfrentavam
o antissemitismo, ir para a faculdade não era uma opção.
25% dos presos e 75% das prostitutas de Nova York na
década de 1910 eram judeus, que também dominavam
a distribuição ilegal de bebidas alcoólicas. Assim, foram
literalmente à luta.

Conflito e estigma
“Quando os judeus percebiam oportunidades, tiravam
vantagem delas. Ainda que o boxe fosse uma novidade
para eles, não era diferente de nada que vinham fazendo
para melhorar sua condição econômica”, escreve Bodner.
Os lutadores encontraram uma comunidade onde não
havia preconceito, lembrada como “uma grande família”

Em sentido horário, a partir do alto à esq., Allie Stolz, Artie Levine, Sammy Farber e Julie Bort:
“Talvez você consiga nos derrubar, mas não pode nos manter lá embaixo”
40

Sid Terris e Abie Reibman:


lutas reais e metafóricas

nos depoimentos de ex-atletas. Mesmo assim não foi um


fenômeno bem digerido na época, e ainda não é. Pratica-
mente não há citações sobre ele em obras importantes de
historiadores acerca dos judeus da primeira metade do
século XX nos Estados Unidos. Benny Leonard escondeu
sua profissão da família mesmo quando era campeão
(caso semelhante ao do protagonista do romance A mar-
ca humana, de Philip Roth). Muitos lutadores adotaram
apelidos para se esconder. O boxe recebia adjetivos
como “brutal” e os lutadores eram considerados “uma
vergonha”, recebendo pouca ou nenhuma cobertura nos
jornais das próprias comunidades. Em alguns círculos,
era mais respeitável ser gângster do que boxeador.
O livro destaca esse conflito. Ao entrevistar 31 ex-bo-
xeadores, empresários e treinadores, Bodner descobriu
que eles não se viam lutando pelos judeus nos ringues.
Queriam apenas ganhar dinheiro. Ao mesmo tempo, leva-
ram a sério suas raízes. Quase todos mantinham vínculos
com as sinagogas e suas comunidades, sem renegá-las
mesmo ao serem vítimas de preconceito.

Lutas metafóricas
Ao contrário da média dos esportistas, mesmo os campe-
Todo um segmento do movimento judaico torná-lo forte e vigoroso, ágil e potente.” ões abandonaram as luvas antes dos 30 anos, capitulan-
Músculos contra acreditava que o futebol, e o esporte de Os judeus, exortava em artigos e do em busca de uma atividade mais respeitável. Em 1938
o antissemitismo maneira mais geral, os libertaria da violência palestras, deviam investir em ginásios já eram minoria no esporte. A partir da década de 1940
e tirania do antissemitismo. O polemista e pistas de atletismo, pois o esporte simplesmente desapareceram, dando lugar aos negros
Max Nordau, um dos pais do sionismo “vai reforçar-nos no corpo e no caráter”. e porto-riquenhos, que seguiam o mesmo caminho de
A doutrina que impulsionou na virada do século, criou uma doutrina O judaísmo musculoso não foi uma afirmação das comunidades pobres. Com as novas opor-
atletas judeus no futebol e outros intitulada Muskeljudentum, ou judaísmo quimera intelectual. As palavras retumbantes tunidades econômicas do pós-guerra, a geração seguin-
esportes nos anos 1910 e 1920 musculoso. Nordau afirmava que as vítimas de Nordau capitalizaram-se pelas lideranças te de judeus retomou a tradição de estudo. Desde então
do antissemitismo padeciam de uma doença das comunidades judaicas da Europa apenas um deles, Mike Rossman, peso-leve como Benny
própria chamada Judendot, ou angústia Central. Das 52 medalhas olímpicas obtidas Leonard, voltou a ser campeão mundial (1978-1979).
Franklin Foer judaica. A vida no gueto sujo provocara pela Áustria entre 1896 e 1936, 18 foram Na época, também pesou entre os lutadores o medo
nos judeus a efeminação e o nervosismo. ganhas por judeus – 11 vezes mais do que de que os golpes recebidos na cabeça causassem le-
“Nas estreitas ruas judaicas”, escreveu ele, teriam obtido caso seu desempenho fosse sões cerebrais, algo que Bodner ouviu de vários ex-luta-
“nossos pobres membros esquecem proporcional ao tamanho de sua população. dores ao mencionarem Muhammad Ali, portador do mal
como é caminhar com alegria. Na escuridão E embora a maior parte desses feitos tenha de Parkinson. Reunidos em 1992 no Ring 8, organização
de casas sem a luz do sol, nossos olhos ocorrido em competições individuais, que auxilia ex-boxeadores em dificuldades, a maioria con-
se acostumam a piscar com nervosismo. especialmente na esgrima e na natação, cordou com Artie Levine, que se considerava “muito sor-
Por medo da perseguição constante, os judeus também brilharam no futebol. tudo” por ter abandonado a carreira sem nenhuma lesão.
o timbre de nossas vozes se reduz Durante as décadas de 1910 e 1920, boa Bodner faz uma abordagem concisa do boxe, assim
a um suspiro ansioso.” parte da seleção húngara era composta por como de seus praticantes judeus, a partir de uma pers-
Para derrotar o antissemitismo e judeus. Por um breve momento, o sucesso pectiva histórico-social. Trata-se um livro menos sobre
erradicar a Judendot, os judeus precisavam obtido por eles no esporte imitava boxe e mais sobre boxeadores, arenas enfumaçadas,
não apenas reinventar sua política corporal suas realizações no plano intelectual. judaísmo e cultura jovem no início do século XX. Mas é
– tinham de reinventar os próprios corpos. sobretudo um livro sobre o afeto do autor, filho de um
Nordau escreveu: “Desejamos devolver Trecho do livro Como o futebol explica ex-boxeador amador e empresário do esporte, por seus
ao flácido corpo judeu o tônus perdido, o mundo (Jorge Zahar Editor, 223 páginas). heróis e suas lutas reais e metafóricas.
42
Guimátria

Futebol e guerra 257=

Por
Ed Viggiani

A guerra aumenta a taxa de adrenalina não somente


dos generais, mas também dos simples soldados. Ar-
riscar a vida é excitante. O homem ama o combate. O
desejo de violência no homem, em particular seu de-
sejo de violência coletiva, seu lado animal de rebanho,
se satisfaz diante das revoluções e das guerras.
Se as revoluções e as guerras, como previa Comte,
acabassem por desaparecer, dando lugar ao consen-
so liberal e a guerras limitadas ao campo econômico,
seria necessário encontrar um canal de escoamento
para esse desejo de violência.
Parece-me que esse canal já foi descoberto. E ob-
tém um sucesso crescente no conjunto do planeta. É
o futebol. O futebol permite uma liberação de adrena-
lina real, embora menos poderosa que a do combate
físico efetivo. Oferece um suspense claramente mais
forte que o de qualquer produção cinematográfica
imaginável, enquanto a guerra real é na maioria das
vezes relativamente entediante. O futebol permite a
reconstituição da identidade nacional lúdica, porque
temporária e facultativa. Portanto tem um caráter de
distração, na medida em que continuará dissipando
as identidades nacionais que antes serviam para ini-
ciar e conduzir as guerras.

Michel Houellebecq em palestra no ciclo


Fronteiras do Pensamento. Porto Alegre, 2007
44
Guimátria

Depoimento 901=

Por
Renato Parada

O mundo que
desaparece de vista
Até meu pai morrer de câncer, nossa
família lutou uma batalha em que
os conceitos de vitória e derrota
fugiam ao senso comum
“O câncer não é um campo de concentração, mas par- dois mundos que tem início outra batalha solitária e família, trazendo a sensação de que agora, depois
tilha com ele a característica da aniquilação: nega a claustrofóbica. É como se o doente de câncer não de tantos meses, começaríamos a sofrer juntos. Não
possibilidade de vida fora e além de si mesmo; englo- pudesse ter pensamentos negativos nem dividi-los mais sozinhos.
ba toda a vida. A rotina diária de um paciente torna-se com alguém. Afinal de contas, será curado pelo pen- Dizer a verdade insuportável para meu pai, ao in-
tão intensamente dedicada à sua doença que o mun- samento positivo, pela força de vontade Por querer vés de lhe tirar o chão, forneceu uma nova base para
do desaparece de vista.” A analogia é de Siddhartha viver. Se ceder um milímetro que seja nessa postura, ele continuar na guerra com outras armas, conce-
Mukherjee, oncologista e autor do livro O Imperador a doença avança. A guerra para se integrar às faci- bendo e planejando conceitos renovados de vitória.
de Todos os Males, uma biografia médica, histórica, lidades do mundo dos saudáveis é solitária e des- Agora ele sentia que podia confiar em nós, que nada
política e social da doença que nos acompanha des- conexa, marcada pela ladainha que recomenda “não estava sendo escondido. Apesar da tristeza, agora
de o primeiro caso registrado, no Século VII a.C.. desanime, tudo vai dar certo, tenha fé!” enquanto havia um senso de apreciação de sua parte. Como
Meu pai foi transferido para esse campo quando tudo só piora e fica mais difícil. se tivesse recebido a oportunidade de concluir sua
descobriu que estava com câncer de pulmão metas- Vi meu pai chorando apenas uma vez. Um choro história antes de partir.
tático. Até então era um homem de sucesso, bonito parecido com o choro de um bebê, profundo, intenso, A despedida é um dos momentos mais profundos
e saudável. “Você está com câncer”, repetia sozinho carregado de saudade dos tempos em que tudo esta- nos relacionamentos. A perspectiva de que as coi-
para seu reflexo no espelho do banheiro, numa tenta- va bem. Foi como abrir as comportas de uma represa. sas não duram para sempre é surpreendentemente
tiva de digerir a nova realidade. Poder chorar é uma benção. As tensões se aliviam libertadora. Dar amor e carinho, oferecer cuidados
Uma das primeiras batalhas na luta contra uma e o ânimo se acalma, deixando um novo rastro de ou perdoar, ceder e sentir gratidão pelos momentos
doença pode ter como alvo seu estigma social. Um sabedoria para aceitar a realidade. que passamos juntos se torna incondicional. Nossa
problema de enfermidades cujas causas e cura se- Toda a confusão e todo o sofrimento do mundo apreciação se concentra no momento presente.
guem misteriosas para a ciência é a quantidade de surge das melhores intenções de cada universo par- Mas esquecemos que todos nós temos uma
metáforas que atraem para si, advertiu Susan Sontag ticular, das limitações em nossa capacidade de es- doença terminal. Que nossos próprios dias são
no ensaio Doença como metáfora. Aconteceu com a tabelecer uma comunicação verdadeira com o outro. contados. Que, mais cedo ou mais tarde, tudo que
tuberculose, associada aos excessos do romantismo, Se a morte é uma verdade insuportável, faz sentido identificamos como “eu” irá se desfazer. Nossos rela-
e com a AIDS, que chegou a ser definida como “pes- tentar escondê-la para minimizar o sofrimento en- cionamentos, nossa profissão, nossas posses, nos-
te gay”. Com o câncer não é diferente. Um paciente quanto se avança até algo que não pode ser evitado. sas opiniões, nosso corpo, tudo se mostrará fugaz.
não é somente alguém que sofre de uma condição Isso é amor. Mas há outros casos. Talvez a verdade Diante disso, a ideia de que “tudo vai dar certo” so-
biológica. Há todo um aspecto de vergonha no pro- insuportável se mostre de outra maneira “para aque- mente nos enfraquece. E quando chega a hora de en-
cesso, insinuando uma espécie de punição para pes- les extraordinariamente esclarecidos e inteligentes”, carar a verdade nos sentimos sozinhos, ameaçados,
soas infelizes, amarguradas e frustradas, incapazes como diz Sontag. A tensão é máxima. A linha é mui- vitimizados e negligenciados. Como se o mundo, ou
de compartilhar suas angústias e cuidarem da saúde. to sutil. O campo é minado. Um passo em falso e Deus, estivesse sendo injusto apenas conosco.
Isso se torna socialmente contagioso. Se antes as pode ocorrer uma explosão com consequências im- Em uma guerra onde o inimigo é desconhecido
pessoas sentiam satisfação ao cumprimentarem meu previsíveis. e traiçoeiro, as táticas para vencê-lo também se re-
pai, após o câncer sentiam constrangimento. Se an- Em uma tarde ensolarada, sem energia para sair velam desconhecidas e traiçoeiras. Fogem do senso
tes elas lidavam com sua imagem de sucesso, agora da cama, meu pai apertou o Pikachu de brinquedo comum, viram o bom senso do avesso. Uma nova
lidavam com uma sentença de morte. cujo barulho chamava quem estivesse na casa. En- perspectiva se mostra necessária, onde vencer ou
Todos nós temos dupla cidadania, diz Sontag trei no quarto e ele carinhosamente pediu para que perder não é mais a questão. Nesse momento o im-
no mesmo ensaio. Uma vale para o reino dos sau- eu me sentasse na cama ao seu lado. “Você está es- portante talvez seja lembrar que jamais permanece-
dáveis, e a outra para o reino dos doentes. Embora condendo alguma coisa de mim? Se estiver, quero remos em um único lugar. E, por mais grandiosas ou
queiramos usar apenas o passaporte do primeiro rei- que diga tudo, não esconda nada.” E as comportas terríveis que se mostrem, todas as guerras da nossa
no, inevitavelmente teremos de nos identificar com da minha represa, há tanto tempo no limite, foram vida não conseguem escapar de sempre ter um co-
os cidadãos do outro lugar. É no embate entre esses abertas. E o mesmo aconteceu com todos da nossa meço, um meio e um fim.
46
Guimátria

Ensaio fotográfico 1053=

Por
Martin Parr

bored couples
48

Martin Parr/ Magnum Photos


50

Ficção

Por
Tatiana Salem Levy

Tradução para Código‫מ‬morse


MCC

Morte da bezerra __ ___ ._. _ . _.. ._ _... . __.. . ._. ._. ._

Eu só pensava nisso – nela morta. Melhor: em como seria a minha . .._ ... .__. . _. ... ._ ..._ ._ _. .. ... ... ___ _. .
vida se ela morresse. O que nos perde é o pensamento. A ideia de que ._.. ._ __ ___ ._. _ ._ __ . ._.. .... ___ ._. . __ _._. _
__ __ ___ ... . ._. .. ._ ._ __ .. _. .... ._ ..._ .. _.. .
poderia haver vida depois da morte, da morte dela, começou a me
_ ... . . ._.. ._ __ ___ ._. ._. . ... ... . ___ __._ .._
perseguir. Eu fechava os olhos para dormir e me via sozinho na cama. . _. ___ ... .__. . ._. _.. . ___ .__. . _. ... ._ __ . _.
Finalmente, eu poderia estender os braços. Então abria os olhos e lá _ ___ ._ .. _.. . .. ._ _.. . __._ .._ . .__. ___ _.. . .
_. .. ._ .... ._ ..._ . ._. ..._ .. _.. ._ _.. . .__. ___ ..
estava ela, me olhando torto. ... _.. ._ __ ___ ._. _ . _.. ._ __ ___ ._. _ . _.. . ._
Ia mijar, fechava os olhos, e pensava nela. Morta. Não teria mais que .. ._ _._. ___ __ . ___ .._ ._ __ ..__. . ._. ... . __. .
._ .. ._. . .._ .._. . _._. .... ._ ..._ ._ ___ ... ___ ._.
escutar seus gritos, por que não baixei a tampa da privada. Por que . .... ___ ... .__. ._ ._. ._ _.. ___ ._. __ .. ._. . __ .
deixei a pasta de dentes aberta. Ah! Aquele silêncio bom, imenso, se ..._ .. ._ ... ___ __.. .. _. .... ___ _. ._ _._. ._ __ ._
alastrando pela casa, depois da morte dela. O difícil era abrir os olhos. .._. .. _. ._ ._.. __ . _. _ . . .._ .__. ___ _.. . ._. ..
._ . ... _ . _. _.. . ._. ___ ... _... ._. ._ ___ ... . _.
_ ___ ._ _... ._. .. ._ ___ ... ___ ._.. .... ___ ... . ._
.. . ... _ ._ ..._ ._ . ._.. ._ __ . ___ ._.. .... ._ _. _.
. ___ _ ___ ._. _ ___
.. ._ __ .. .___ ._ ._. .._. . _._. .... ._ ..._ ._ ___ ..
. ___ ._.. .... ___ ... . .__. . _. ... ._ ..._ ._ _. . ._..
._ __ ___ ._. _ ._ _. ___ _ . ._. .. ._ __ ._ .. ... __._
.._ . . ... _._. .._ _ ._ ._. ... . .._ ... __. ._. .. _ ___
... .__. ___ ._. __._ .._ . _. ___ _... ._ .. _.._ . .. ._
_ ._ __ .__. ._ _.. ._ .__. ._. .. ..._ ._ _.. ._ .__. ___
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_.. . ._.. ._ ___ _.. .. .._. _._. .. ._.. . ._. ._ ._ _... .
Dora Longo Bahia, Escalpo carioca, 2005
Acrílica sobre construção de madeira
255 x 350 cm
Foto: Edouard Fraipont
no
centro
e
mais
um
pouco
Destaques da
programação do Centro
da Cultura Judaica
e uma seleção de livros,
filmes, discos, músicas
e receitas de guerra

Casa de Cultura de Israel

Rua Oscar Freire, 2500. São Paulo. SP


CEP 05409-012. TEL.: (11) 3065 4333
www.culturajudaica.org.br
culturajudaica@culturajudaica.org.br

Horário de funcionamento
3ª a Sáb., das 12h às 19h / Dom., das 11h às 19h
56

Acontece no centro

Nestas páginas, reproduções de desenhos do caderno Visões de Guerra 1940-1943


Tinta preta pena e aguada, tinta sépia aguada e guache branco sobre papel
15,5x 19,5 cm
Museu Lasar Segall

Visões de Guerra, de Lasar Segall


Livro
Em parceria com o Museu Lasar Segall, o Centro da Cul- notícias veiculadas pela imprensa, o artista faz uma dura O Museu Lasar Segall, o Centro da Cultura Judaica e a
tura Judaica realiza a exposição Visões de Guerra, que crítica à insensatez do conflito, retratando o sofrimento e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo se associaram
traz setenta e cinco desenhos aquarelados – feitos en- debilidade humanas diante do horror. A exposição conta para a publicação do livro Visões de Guerra: Lasar Se-
tre 1940 e 1943 – que Segall (1891–1957) deixou prati- também com pinturas, esboços, desenhos, fotografias gall, com a totalidade dos trabalhos da série exposta no
camente prontos para publicação. Trata-se de narrativa e notícias que dialogam com o caderno, situando-o na CCJ. O livro conta, ainda, com textos críticos de Celso
visual e sequência quase cinematográfica de imagens obra de Segall e no contexto brasileiro e internacional Lafer, Berta Waldman e Jorge Coli.
dramáticas, reveladoras de um dos momentos mais som- da época.
brios na história da humanidade. Uma programação paralela ocorre, também, em
Até 12 de agosto
Tendo vivenciado a brutalidade da Primeira Guerra diálogo com a exposição. Com encontros – realizados no
no Centro da cultura judaica
na Alemanha, Segall trabalha nesse caderno já no Bra- CCJ e em instituições parceiras –, uma mostra de filmes Horário: Terça a Sábado e feriados, das 12h às 19h.
sil, durante a Segunda Guerra. A partir de um jogo en- de guerra e atividades educativas diversas, as atividades Domingos, das 11h às 19h.
tre memória, cartas de amigos e parentes europeus e propõem uma imersão na obra de Segall. Mais informações: www.culturajudaica.org.br
58

Guia

Por
Alexandre Rodrigues

Filmes

NADA DE NOVO OS DOZE O FRANCOATIRADOR NASCIDO A QUEDA – AS GUERRA AO TERROR


NO FRONT CONDENADOS PARA MATAR ÚLTIMAS HORAS
MICHAEL CIMINO, 1978 DE HITLER KATHRYN BIGELOW, 2008
LEWIS MILESTONE, 1930 ROBERT ALDRICH, 1967 STANLEY KUBRICK, 1987
Três amigos, moradores de uma “Um dia de trabalho concluído
OLIVER HIRSCHBIEGEL, 2005
Baseado no conto homônimo Não apenas durante o conflito, cidadezinha, reencontram-se como O cineasta produziu mais duas é mais um dia de vida” é a máxima
de Erich Maria Remarque. Passado mas pelas décadas seguintes, prisioneiros de guerra no Vietnã obras-primas sobre a guerra: Glória de três militares obrigados a engolir
Durante décadas, autores e cineastas
na Primeira Guerra, explora de forma o cinema americano explorou todas e são submetidos a torturas mentais. feita de sangue (1957) e Dr. Fantástico suas diferenças durante missões no
foram incapazes de lidar com o lado
mais ampla a dimensão gratuita as possibilidades da Segunda Guerra, De volta para casa, a experiência (1964). Aqui, do treinamento ao campo Iraque. Como ocorreu com o Vietnã,
humano de Hitler. Hirschbiegel quebrou
e insana de todos os conflitos. Oscars com levas de heróis durões matando continua a afetar suas vidas. de batalha, vemos a ruína moral de um os americanos começam a reencontrar
o paradigma. Baseado nas memórias da
de Melhor Filme e Melhor Diretor. nazistas sem demonstrar nenhuma jovem soldado, cada vez mais perdido suas contradições e abusos após
secretária do ditador, narra seus últimos
fraqueza ou dúvida. Aqui, um grupo ao virar numa máquina de matar. a ocupação do país numa guerra
dias, perturbado e confinado num abrigo
de criminosos condenados aceita que, na prática, está longe de acabar.
enquanto a loucura em que lançou a
a missão de destruir uma instalação APOCALYPSE Europa caminha para o final.
Oscar de Melhor Filme em 2009.

A GRANDE alemã em troca de perdão. NOW


ILUSÃO ALÉM DA LINHA
FRANCIS FORD COPPOLA, 1979 VERMELHA VALSA com BASHIR
JEAN RENOIR, 1937 SOLDADO ANÔNIMO
M*A*S*H O inferno pessoal no qual
TERRENCE MALICK, 1998 ARI FOLMAN, 2008
o diwwretor mergulhou enquanto
História de soldados franceses SAM MENDES, 2005
filmava nas Filipinas é uma história
em um campo de prisioneiros ROBERT ALTMAN, 1970 A Batalha de Guadalcanal, primeira Documentário de animação com
à parte, tema do documentário
na Alemanha, também durante grande ofensiva dos Aliados contra as Pior que a batalha é a espera pela toques psicodélicos e extravagantes.
Apocalipse de um cineasta (2008).
a Primeira Guerra, o filme era A equipe de um hospital de campanha forças imperiais japonesas no Pacífico, batalha. Durante a primeira Guerra O ex-soldado de Israel que lutou na
Coppola criou um épico sobre
chamada por Josef Goebbels usa humor negro e sexo para manter é o pano de fundo para esta narrativa do Golfo (1991), soldados comuns Guerra do Líbano, hoje diretor, não
a Guerra do Vietnã a partir
de “inimigo cinematográfico número 1”. a sanidade. Enredo passado na Guerra entre o realismo e uma certa metafísica, chegam ao front loucos por ação, consegue se lembrar do conflito e
da história – baseada num livro
Com quase todas as cópias destruídas de Coreia, mas o contexto é mesmo pontuada por digressões em off e cenas mas se defrontam com o tédio entrevista veteranos para reconstruir
de Joseph Conrad – de um
durante a Segunda Guerra, foi o conflito do Vietnã. Com um roteiro deslumbrantes. Adaptação do romance enquanto apenas os aviões suas próprias memórias. Focado
capitão enviado para assassinar
restaurado no início dos anos 1960. fragmentado e múltiplos personagens, de James Jones e retorno de Malick atacam os iraquianos. nos jovens, tem uma mensagem:
um coronel supostamente
permanece uma das mais ácidas à direção depois de duas décadas. na guerra, não há heroísmo.
louco no meio da selva.
criticas contra a estupidez da guerra.

O RATO JOGOS DO PODER


QUE RUGE PLATOON 13 DIAS QUE BASTARDOS
OS DUELISTAS ABALARAM O MUNDO MIKE NICHOLS, 2007 INGLÓRIOS
JACK ARNOLD, 1959 OLIVER STONE, 1986
RIDLEY SCOTT, 1977 ROGER DONALDSON, 2000 Baseado em fatos reais, conta a QUENTIN TARANTINO, 2009
Estamos nos tempos do Plano Marshall, Ganhador de quatro Oscars, história de Charlie Wilson, que esteve
que ajudou a reconstruir a Europa. Dois militares de Napoleão duelam inclusive Melhor Filme e Diretor, Apesar de ter durado mais de meio por trás do apoio aos mujahedin Uma paródia à maneira de Tarantino:
O minúsculo ducado de Grand durante quinze anos em diferentes a produção reabre, dez anos século, a Guerra Fria não inspirou que expulsaram os soviéticos do personagens com estilo, violência
Fenwick, afundado em dívidas, decide lugares da França. O resultado depois do fim do conflito, grandes filmes, tirando os thrillers Afeganistão em 1989. De certa forma estilizada e diálogos marcantes.
declarar guerra aos Estados Unidos de cada luta leva a um novo as feridas da Guerra do Vietnã. de espionagem. Ainda que não seja aquela guerra criou o Talebã, Osama Durante a Segunda Guerra, um
para perder e então, como os embate, provocando reflexões Um jovem recruta é obrigado uma obra-prima, 13 dias reconstrói Bin Laden e o 11 de setembro. tenente reúne um grupo de judeus,
europeus, receber ajuda econômica. dos personagens sobre honra, a se confrontar com os horrores os bastidores da crise da descoberta Tom Hanks recria com charme conhecidos como os Bastardos, para
Mas há um problema: eles vencem. obsessão e o vazio de suas vidas. e a dualidade moral no front. de mísseis soviéticos em Cuba, 1962. a personalidade do protagonista. atos de vingança contra os nazistas.
60

Guia

Livros Músicas

A ILÍADA OS SERTÕES O EXÉRCITO forças fascistas de Franco, com


apoio aéreo de Hitler. Hemingway
CAVALGADA tornou-se a mais sombria referência
musical à Guerra do Vietnã.
DE CAVALARIA foi um deles e da experiência DAS VALQUÍRIAS
HOMERO, ED. ATELIÊ EUCLIDES DA CUNHA, tirou a história de Robert Jordan,
Ed. NOVA AGUILAR ISAAC BÁBEL, Ed. COSAC NAIFY jovem americano das Brigadas RICHARD WAGNER,
O poema épico de Homero para Internacionais que tem como (AS VALQUÍRIAS, 1870)
GIVE PEACE
o fim da célebre Guerra de Tróia A insurreição do líder Antonio Uma das mais radicais experiências missão explodir uma ponte durante A CHANCE
é considerado o primeiro clássico Conselheiro e seus seguidores da literatura moderna, os contos um ataque à base de Segóvia. A Valquíria é a segunda parte
da literatura ocidental. Embora no interior da Bahia, e a campanha do livro refletem a experiência da tetralogia O anel do Libelungo. PLASTIC ONO BAND,
se passe em apenas algumas do Exército que foi até lá combatê-la, de Bábel, enviado à guerra contra A Cavalgada das valquírias é apenas (GIVE PEACE A CHANCE, 1969)
semanas ao final do cerco, reúne tiveram um observador privilegiado. a Polônia em 1920 e 1921. Russo, um trecho, mas se tornou a canção
personagens que se tornaram Euclides não apenas narra
lendários, como Aquiles e Odisseu. a Guerra de Canudos como traz
judeu e míope, o narrador é um estranho
entre os brutais cossacos. Com uma
AUSTERLITZ preferida do cinema para cenas
de batalha desde que Coppola a usou
Composto por John Lennon para os
Beatles, é o mais famoso hino do
as observações do autor sobre prosa expressionista, Bábel encarnou num ataque de helicópteros contra movimento contra a Guerra do Vietnã.
o sertão e seus habitantes. o ideal de uma literatura revolucionária W. G. SEBALD, um vilarejo em Apocalypse Now. Foi escrita na célebre lua de mel com
soviética mas acabou fuzilado em ED. COMPANHIA DAS LETRAS
Yoko Ono em que o casal ficou na
1940, num dos expurgos de Stalin. cama por duas semanas, em Montreal
DOM QUIXOTE Um historiador da Arquitetura
e Amsterdã, protestando contra os
ARDIL 22 se depara com a própria história
MASTERS OF WAR conflitos do mundo. A gravação reuniu
pessoal e de sua família, civilizações
CERVANTES, ED. L&PM dezenas de personalidades batendo
europeias agora perdidas,
JOSEPH HELLER, ED RECORD OS MENINOS campos de concentração e livrarias. BOB DYLAN, (1963)
palmas e os pés, às vezes fora de ritmo.
O livro do espanhol frequentemente
é citado como um dos maiores, Durante a Segunda Guerra,
DA RUA PAULO Misturando fatos históricos e ficção,
Sebald revigora a literatura sobre Dylan marcou gerações com suas
senão o maior romance de todos Joseph Heller foi piloto de
FERENC MÓLNAR, Ed. COSAC NAIFY a Segunda Guerra e o Holocausto. canções sobre o medo do holocausto
os tempos. Quando enlouquece,
Quixote sai pelo mundo enfrentando
bombardeiro. Sua própria experiência
serviu de inspiração para esta satírica
Foi seu último livro. Consagrado, nuclear e contra a Guerra Fria. Masters THERE’S A WAR
Engana-se quem pensa que o autor morreu após a publicação of war, escrita no inverno de 1962,
cavaleiros imaginários e moinhos e absurda visão da burocracia
a defesa de um território é um tema ao sofrer um ataque cardíaco no calor da crise da Baía dos Porcos,
de vento. Sua insanidade, de certo e da ganância durante o conflito. LEONARD COHEN, (NEW SKIN
que apenas toca ao mundo adulto. enquanto dirigia, em 2001. é uma das mais conhecidas. Nos meses
modo, é a insanidade da guerra.. FOR THE OLD CEREMONY, 1974).
Na Budapeste do final do século XIX, seguintes ao lançamento, o compositor
um grupo de meninos se vale tocou-a apenas três vezes, e depois A guerra é um tema constante na obra
ficou 30 anos sem executá-la ao vivo.
MATADOURO 5 de amizade e heroísmo para defender do poeta e cantor canadense, que nos
da invasão de outra turma o terreno A GUERRA anos 1970 se mudou para Israel e fez
GUERRA KURT VONNEGUT, Ed. L&PM
onde costumam brincar. Lançado
DOS TRONOS shows para os soldados no front da
E PAZ em 1907, o livro comoveu gerações. Guerra do Yom Kippur. Apesar de falar

Como Billy Pilgrim, o personagem R.R. MARTIN, ED. LEYA


THE END de um conflito universal entre ricos e
pobres, homens e mulheres, também
LIEV TOLSTÓI, Ed. COSAC NAIFY principal, Vonnegut foi prisioneiro remete ao cotidiano israelense.
THE DOORS, (THE DOORS, 1967)
Com centenas de personagens
alemão na noite em que Dresden
foi arrasada pelo bombardeio
POR QUEM Inspirador da popular série
de TV Game of Thrones (HBO),
e mais de mil páginas, é um aliado. Sua função – e também OS SINOS DOBRAM o premiado livro de Martin Originalmente, era sobre o
dos maiores romances de todos a do personagem – era entrar nas abre a série As crônicas rompimento de Jim Morrison com uma
os tempos em mais de um sentido. casas e retirar os corpos carbonizados ERNEST HEMINGWAY, de gelo e fogo, sobre o conflito ex-namorada. Mas após ser tocada WAR
O enredo se inicia alguns anos dos moradores. A experiência Ed. BERTRAND BRASIL entre os reinos de uma terra ao vivo por meses se transformou
antes da invasão da Rússia por traumática rendeu um dos melhores imaginária baseada em parte na numa obra sombria com um trecho que U2, (1983)
Napoleão, indo até depois de sua livros do autor, carregado de humor A Guerra Civil atraiu dezenas de Inglaterra do século XV. A trama faz referência ao Complexo de Édipo.
retirada e fazendo um painel negro e referências a viagens intelectuais que foram para a Espanha se concentra na politica, sem Então se passou mais de uma década Na percepção de Bono e seus
abrangente da sociedade russa. no tempo e à filosofia. combater e ser derrotados pelas esquecer de dragões e até zumbis. e, usada também em Apocalypse Now, companheiros em 1982, nada no mundo
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Guia Glossário

Por
Fábio Zuker

Língua e
confronto
era mais onipresente do que a guerra. as mãos que datam de antes das Europa – Área que se estende de 34 graus (e por vezes se confundindo com o
As canções do álbum se fixam civilizações greco-romanas. Algo próximo e 45 minutos a 80 graus de latitude norte, próprio Maghreb ou Ásia Central). Foi fruto
em seus efeitos materiais Objetos, lugares e conceitos ao boxe também era praticado entre e de 24 graus de longitude oeste a 65 graus de disputas entre judeus, romanos, árabes,
e emocionais. War desbancou Thriller, que ajudam a entender, direta os astecas. As regras oficiais, que o de longitude leste. Segundo menor continente mongóis, cristãos, turcos otomanos e,
ou indiretamente, a lógica da guerra transformaram em algo mais próximo ao do mundo, possui 10.530.751 km2 que mais recentemente, dividida entre franceses
de Michael Jackson, do topo das
e suas representações. Os termos formato atual, foram estabelecidas em 1867. serviram de palco para algumas das piores e britânicos durante o colonialismo. No
vendas na Inglaterra, legando um hit,
foram retirados das matérias carnificinas da história. Recentemente seus século 20, viu nascer nações independentes,
Sunday Bloody Sunday, em memória
que compõem a presente edição
C países firmaram um pacto de integração o que esteve longe de trazer paz – em muitos
do massacre de irlandeses pelo política e econômica, a União Europeia, casos, ao contrário, intensificou conflitos
exército britânico numa marcha de Câmera – Instrumento que, em sua projeto que vem sendo minado pela econômicos, étnicos, nacionais e religiosos.
protesto em 1972, na Irlanda do Norte. versão cinematográfica, tem por objetivo crise iniciada na década de 00.
captar imagens em movimento, que P
são fotogramas estáticos em sequência. F
Inventado no século XIX, o cinema Paz – Substantivo feminino. Relação
A CANÇÃO ornou-se indissociável do imaginário
da cultura de massas no século XX.
Futebol – Esporte que mais atrai fãs
no mundo, tem como objetivo colocar uma
tranquila entre cidadãos. O vocábulo
parece sempre dependente de seu oposto,
DO SENHOR A bola no gol do adversário sem tocá-la com guerra, para ganhar sentido: ausência de
DA GUERRA D as mãos, prerrogativa que fica restrita problemas e de violência, situação de uma
Acordo – Ajuste entre partes baseado ao goleiro. Fonte de desavenças, brigas nação ou estado que não está em conflito.
no desejo recíproco de fazer desaparecer Doença – Alteração da saúde física matrimoniais e familiares, suicídios Em hebraico, a palavra – shalom –
LEGIÃO URBANA, (MÚSICA as diferenças, ou atenuá-las num meio termo de um ser, que só pode ser compreendida e confusões generalizadas, sua beleza significa literalmente plenitude.
PARA ACAMPAMENTOS, 1992) que anule seus efeitos nocivos. Em termos como espelho de seu estado oposto, reside nas diferentes maneiras pelas
históricos, é mais frequente a supressão sadio. Ou como versão hipereficiente deste – quais os jogadores se empenham na tarefa, T
Gravada para um especial da Globo, do conflito por meio da violência, ou caso do câncer, cuja origem são células e no arsenal de metáforas e ressonâncias
a música foi por anos um hit ausente em negociações apenas levadas a sério que crescem patologicamente. Manifestação narrativas encerradas em cada partida. Terror – Historicamente, é o período
da discografia oficial da banda, quando um dos agentes beligerantes física da ideia de mortalidade. da Revolução Francesa no qual Robespierre
até ser incluída numa coletânea. estava em situação desfavorável. G levou adiante uma política generalizada
Os temas são o militarismo Drogas – Substâncias químicas que, de decapitação de opositores, até ser
Arma – Instrumento utilizado pra agredir. incorporadas ao organismo humano, Guerra – Extensão armada da diplomacia, ele próprio guilhotinado. A palavra, que em
e a hipocrisia, atacados pelos versos
Objeto ímpar, cujo grau de letalidade alteram seu funcionamento – às vezes luta entre nações, tribos, etnias e, num sentido seu sentido mais comum significa medo
de Renato Russo: “Veja que uniforme é por vezes objetivo, por vezes relacional, com reflexo nos sentidos. Existem em diversas mais alegórico, indivíduos, ideias e valores. intenso ou uma estratégia de guerrilha –
lindo fizemos para você/ E lembre-se variando de acordo com o agressor, a vítima culturas e podem ter finalidades lúdicas, Elemento constitutivo da marcha da história, ou de Estado – baseada na morte
sempre que Deus está do lado e o contexto. Uma pessoa mal-intencionada terapêuticas, religiosas e laborais. Sua história sua representação, lógica e imaginário de inocentes, é ainda utilizada para um
de quem vai vencer”. não precisa de mais que um batedor mistura-se com o desenvolvimento das filosófico e cultural está presente determinado gênero cinematográfico
de bolo para tirar a vida alheia. ciências biomédicas: diversas substâncias em diversos âmbitos da vida social. que joga com as reações do expectador
consideradas psicoativas possuem finalidades por meio de cenas assustadoras.
b medicinais e, de maneira complementar, I
MOSH algumas drogas médicas podem ser V
Bombardeio – Ato de lançar bombas consideradas psicoativos. Insanidade – Característica inerente
ou projéteis de artilharia a fim de danificar ou àquele ou àquela que perdeu as faculdades Videogame – Jogo em que se
EMINEM, (ENCORE, 2004) destruir um alvo. Manobra relacionada com E mentais. Em geral é considerado um estado manipulam eletronicamente imagens
a maximização de danos e, ao mesmo fisiológico destrutivo, mas também – de forma numa tela. Os tiranossauros do que hoje
O rapper lançou a música – e tempo, a higienização – um grau maior Espetáculo – A transformação do modelo tanto real quanto metafórica, tanto positiva conhecemos como videogame surgiram
um vídeo animado – para estimular de desumanização, portanto – da guerra, que idealiza o ser para o modelo do ter, e quanto trágica – motor de sensibilidade, nos EUA já na década de 40, como
com a vítima sofrendo os resultados do ter para aparecer, surge como parte do talento artístico e grandeza histórica. protótipos. Foi, porém, na década
os jovens a impedirem a reeleição
da agressão longe dos olhos de seu agente. processo de espetacularização da vida. A de 1970 que os videogames passaram
de George W. Bush, com um ataque
ao seu governo e à Guerra do Iraque.
máquina de propaganda do nazifascismo, o a ser vendidos comercialmente, atingindo
Boxe – Embora só tenha começado a ser capaz de transformar figuras ignóbeis em grande popularidade com o passar dos anos
Não conseguiu, mas o sucesso regulamentado na Inglaterra do século XVII, mitos vivos por meio da estética e do discurso Oriente Médio – Região ao redor ao possibilitar a encarnação vicária e lúdica
da canção ajudou na virada o esporte tem origens remotas. Há indícios ideológico, é um exemplo do fenômeno da parte sul e leste do Mar Mediterrâneo, de aventuras, guerras, esportes, lutas,
da opinião pública sobre o tema. arqueológicos da existência de lutas com levado às suas consequências mais sombrias. estendendo-se do Norte da África ao Irã jornadas de herói e desafios em geral.
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Comida

Por
Breno Lerner

Culinária para tempos sombrios


Receitas que tiraram sua inventividade e sabor
da escassez de alimentos durante a Segunda Guerra

Goulash Eggless Poor Knights Uncle Sam Latkes


Vegetariano Mayonnaise Fritters Com a chegada das tropas americanas,
de Paris No auge da guerra, cada membro A falta de açúcar e outros adoçantes a Europa foi apresentada ao corned
Usavam-se os vegetais que de uma família londrina tinha foi um dos maiores problemas das beef e ao spam, carnes enlatadas
estivessem disponíveis, como, direito a um único ovo por semana. idishe momes em suas cozinhas. fartamente distribuídas pelas generosas
por exemplo, uma batata, dois nabos A maionese sem ovos enriqueceu Aperfeiçoou-se o método de cozimento tropas do Tio Sam. Uma das geniais
e duas cenouras. A quantidade precisa sanduíches ao longo de todo o período. de frutas para fazer geleias a partir improvisações das idishe momes, já
de aveia não é preciosismo: são do seu açúcar natural, a sucralose. que batatas nunca faltaram, foi uma
as duas onças fornecidas pela ração. Ingredientes Geleias e pães velhos geraram reinvenção dos tradicionais latkes,
Como ervas eram plantadas em casa, 1 batata uma das receitas mais populares agora acrescidos com corned beef
podiam ser utilizadas para cozinhar. 1 colher de chá de mostarda na Londres sitiada pelos bombardeios. desfiado para tentar aumentar a
125ml de óleo quantidade de proteína das refeições.
Ingredientes vinagre a gosto Ingredientes A especialidade de Chanuká passou
500g de vegetais, cortados em cubinhos sal e pimenta do reino 8 fatias de pão italiano a ser servida o ano inteiro.
1 colher de sopa de óleo margarina para untar o pão
60g de aveia Cozinhe 1 batata e transforme-a em geleia, mel ou Karo (glucose de milho, Ingredientes
½ cubinho de caldo de carne, esfarelado purê, batendo muito bem. Adicione 1 o adoçante substituto mais utilizado 4 batatas raladas grossas
½ litro de caldo de vegetais colher de chá de mostarda e vinagre durante a Guerra) 2 colheres de sopa de farinha de trigo
sal, pimenta do reino e ervas secas a gosto. Sem parar de mexer, coloque um pouco de azeite para fritar 1 ovo (no final da Guerra começaram
para temperar 125ml de óleo e tempere com sal e açúcar e/ou canela (opcional) a ser distribuídos ovos liofilizados)
pimenta do reino. 200g de corned beef desfiado
Refogue os vegetais no óleo até Faça sanduíches usando margarina sal e pimenta do reino a gosto
dourarem. Adicione a aveia, mexendo e geléia ou outro recheio. Corte os óleo para fritar
sem parar, até absorver toda a gordura. sanduíches em tiras e frite até dourar de
Cubra com o caldo, polvilhe o cubinho ambos os lados. Se tiver açúcar e/ou Esprema bem as batatas e misture-as
esfarelado e cozinhe até formar canela, salpique nos bastonetes e sirva. com o corned beef. Bata o ovo com
um caldo bem grosso, por a farinha de trigo, o sal e a pimenta
aproximadamente 30 minutos. do reino (na época era uma mistura
Tempere a gosto e sirva bem quente. seca, pois os ovos eram desidratados).
Despeje a mistura de ovos nas batatas
e mexa bem. Aqueça o óleo e forme
pequenas panquecas com a mistura,
usando uma colher de sopa. Frite as
panquecas por aproximadamente 3
minutos de cada lado.
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Carta dos editores

Capas e escolhas
A escolha da capa de uma revista pode da revista, com 12 páginas dedicadas familiarizados com a cultura judaica vão
se tornar um intenso debate interno. Não foi ao trabalho de Joseph Dadoune (imagem reconhecer um símbolo retrabalhado,
diferente no caso do número anterior da 18. em azul), e no número 30, cujo centro os não familiarizados identificarão apenas
Dentro das diversas opções testadas, era o belo ensaio de Bob Wolfenson um elemento tradicional de seu imaginário –
as duas finalistas foram uma foto da sobre o Bom Retiro (acima, à direita). sem perceber o simbolismo irônico
série Crisálidas, de Madalena Schwartz A favor da capa com o trabalho de e/ou paradoxal que ele carrega.
(acima, à esquerda), que retratou travestis Bartana estava, sem dúvida, o fato de partir Foi pesando essas questões, e ao fim
e transformistas do meio artístico brasileiro de um símbolo da cultura judaica – a estrela priorizando a abertura para novos leitores, que
nos anos 1970, e a bandeira criada de David tal como aparece na bandeira a capa foi escolhida. Para quem abrir a revista,
por Yael Bartana (imagem em vermelho) de Israel. Longe de questões vinculadas à no entanto, os demais questionamentos
para o movimento Jewish Renaissance diversidade sexual e à nudez dos corpos – o também se fazem presentes.
Movement in Poland, trabalho apresentado que não deixa de ser assunto relevante para
nas Bienais de Veneza e São Paulo. A favor uma revista de cultura publicada no Brasil,
da primeira, além da imagem forte e sua num momento em que fotografias de Nan
composição perfeita para a inserção das Goldin que seriam expostas no Rio de Janeiro
chamadas, havia a possibilidade de aumentar foram consideradas chocantes –, a artista
o leque de leitores para além dos que se israelense mesclou a águia da bandeira da
interessam a priori por cultura judaica. Polônia com a estrela de David e criou uma
O encontro entre o título Outros exílios e nova imagem, familiar e estranha ao mesmo
a pose de um homem de traços andróginos tempo. Se esse trabalho se alinha com o
cria uma sobreposição sugestiva. Além disso, eixo editorial da 18, focado em iniciativas
as dez páginas que o ensaio de Madalena que pensam cultura judaica hoje – e, numa
ganhou na revista justifica, por seu peso decorrência natural, todas as culturas –,
na edição, sua representação na capa. por outro lado leva a uma ambiguidade
Tal critério foi observado no número 29 de interpretação. Enquanto leitores
A2

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