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INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR

CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Vol. 1

EDITORA AFILIADA

BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR (p. 1)

INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR

Vol. 1 - Contratos no Código de Defesa do Consumidor - 3ª edição,


revista, atualizada e ampliada - Cláudia Lima Marques.

BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR

1. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. revista,


atualizada
e ampliada - Cláudia Lima Marques.
2. Proteção do consumidor no contrato de compra e venda - Alberto do
Amaral
Júnior.
3. Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor - José
Reinaldo de Lima Lopes.
4. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito
brasileiro - Sílvio Luís Peneira Rocha.
5. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto (Os acidentes do
consumo no Código de Proteção e Defesa do Consumidor) - James Marins.
6. Controle das cláusulas contratuais abusivas - Teoria e prática -
Coordena-
ção: Antonio Herman V. Benjamin.
7. Proteção ao Consumidor - Maria Antonieta Zanardo Donato.
8. Código do Consumidor comentado. 2. ed. revista e ampliada, 2ª tiragem
-
Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins.
9. Condições gerais do contrato de adesão e contratos de consumo sob a
ótica
do Código do Consumidor - Renata Mandelbaum.
10. Direito do consumidor - Aspectos práticos - Perguntas e respostas -
Newton
de Lucca.

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marques, Cláudia Lima


Contratos no Código de Defesa do Consumidor. o novo regime das
relações
contratuais / Cláudia Lima Marques. - 3. ed. rev., atual, e ampl.,
incluindo mais de
250 decisões jurísprudenciais. - São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 1998. -
(Biblioteca de direito do consumidor; v. 1).
Bibliografia.

ISBN 85.203.1691-3
1. Consumidores - Leis e legislação - Brasil. 2. Consumidores - Proteção
-
Brasil. 3. Contratos. 4. Contratos - Brasil. I. Titulo.
II. Série.
98-4620 CDU-347.44:381.6 (81)
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Contratos e consumidores -
Direito
347.44:381.6(81) (p. 2)

CLÁUDIA LIMA MARQUES


CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O novo regime das relações contratuais
3ª edição
revista, atualizada e ampliada,
incluindo mais de 625 decisões jurisprudenciais
BIBLIOTECA DE DIREITO DO CONSUMIDOR - 1
EDITORA RT
REVISTA DOS TRIBUNAIS (p. 3)

INSTITUTO BRASILEIRO DE POLÍTICA E DIREITO DO CONSUMIDOR - v. 1


Biblioteca de Direito do Consumidor
CONTRATOS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
3ª edição - revista, atualizada e ampliada,
incluindo mais de 625 decisões jurisprudenciais
CLÀUDIA LIMA MARQUES
1ª edição: 1992 - 2ª edição: 1995.
© desta edição: 1999
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO
CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11-2433
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diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos
Autorais).

Impresso no Brasil (01 - 1999*)


ISBN 85-203-1691-3 (p. 4)

Aos meus mestres, brasileiros e alemães


e ao amigo Antônio Herman Benjamin,
em agradecimento pelo estímulo
e segura orientação intelectual.
A Johannes Doll, esposo e companheiro. (p. 5)

(p. 6, em branco)

APRESENTAÇÃO

"qui dit contractuel dit juste"{1}


Em 1933, Louis Josserand manifestava sua preocupação com o
fim daquilo que chamou a "idade de ouro"{2} da liberdade contratual. Ao
revés do que temia o grande jurista francês, o princípio da autonomia
da vontade - e de resto toda a teoria do contrato - hoje está mais forte
do que nunca, já que mecanismos foram e estão sendo idealizados para
corrigir suas imperfeições. E, entre todos os afetados por tais imper-
feições e exageros da teoria contratual clássica, o consumidor desponta
como sua maior vítima.
Na Exposição de Motivos do Segundo Substitutivo do Projeto de
Código de Defesa do Consumidor (CDC), de autoria do Deputado
Geraldo Alckmin e que está na origem do texto hoje vigente, assim
escrevemos: "a proteção do consumidor deve abranger todos os
aspectos do mercado de consumo. Muitas vezes - como no caso de
publicidade enganosa - o consumidor é lesado sem que sequer tenha
chegado a firmar efetivo contrato com o fornecedor. Mas é no instante
da contratação que a fragilidade do consumidor mais se destaca. É
também neste momento que as normas legais existentes, especialmente
aquelas do Código Civil, se mostram incapazes de lhe assegurar
proteção eficaz".
A proteção contratual do consumidor, de fato, está no âmago do
direito do consumidor E, passado um ano da vigência do CDC, não
se publicou nenhuma obra que cuide, com exclusividade, do novo
regime contratual instaurado.
* (1) Palavras de Fouillée, inspirado no pensamento de Kant.
(2) Josserand, Louis "Le contrat dirigé". In Recueil
Hebdømadaire, n. 32,
chronique, 1933, p. 19. (p. 7)
Não é, pois, sem razão que o Instituto Brasileiro de Política e
Direito do Consumidor sente-se profundamente honrado em iniciar sua
coleção Biblioteca de Direito do Consumidor, editada pela Revista dos
Tribunais, com o livro Contratos no Código de Defesa do Consumidor.
O Novo Regime das Relações Contratuais, de autoria da professora
Cláudia Lima Marques.
Conheci a professora Cláudia Lima Marques no "1.º Congresso
Europeu Sobre Condições Gerais dos Contratos", realizado em Coimbra,
em maio de 1988, quando eu era o relator brasileiro. Logo em seguida
a visitei na Alemanha, onde ela concluía seu mestrado.
Em contato com seus professores alemães pude perceber a imensa
estima que eles sentiam pela agora autora. Seu campo de pesquisa, já
naquela época, se encaminhava para a proteção contratual do consu-
midor.
Alguns aspectos da personalidade de Cláudia Lima Marques não
posso deixar de ressaltar aqui, mesmo correndo o risco de dizer muito
menos do que gostaria ou do que ela merece.
Sua juventude é o primeiro traço que chama atenção de qualquer
um que a encontre pela primeira vez. Mas por trás de suas feições
jovens, de imediato se percebe duas outras de suas qualidades: um
grande senso de responsabilidade - "germânica", se preferirem - e uma
vinculação perene com a defesa do interesse público. Realmente, em
todos os seus escritos e trabalhos vamos sempre encontrar o fio da
preocupação com os "vulneráveis" ou "débeis" da sociedade industrial
(weaker parties), massificados ou não. E, entre estes, a autora escolheu
o consumidor como seu objeto de pesquisa e de formulação jurídica.
Professora concursada da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, um dos membros mais ativos do Instituto Brasileiro de Política e
Direito do Consumidor, com importante papel na criação de sua seção
gaúcha, a autora tem diversos artigos sobre esta matéria publicados. É,
sem dúvida, um dos expoentes da nova geração de juristas que desponta
no país.
Mas será que o tema em questão merece realmente os estudos de
pessoa tão qualificada? Será que o consumidor e os contratos em que
é parte (contratos de consumo) são realmente dignos de uma pesquisa
aprofundada? Ou, indo mais longe, não seria pretensioso desejar,
através do estudo da posição jurídica do consumidor, reformar toda a
teoria dos contratos? (p. 8)
A resposta é bem simples: sem consumidor não há sociedade de
consumo, sem esta não há mercado e sem mercado não há contratação
massificada. Assim, estudar e regular o status contratual do consumidor
é, em último caso, afetar a grande maioria dos contratos firmados no
cotidiano do mercado.
A revolução industrial trouxe consigo a revolução do consumo.
Com isso, as relações privadas assumiram uma conotação massificada,
substituindo-se a contratação individual pela coletiva. Os contratos
passaram a ser assinados sem qualquer negociação prévia, sendo que,
mais e mais, as empresas passaram a uniformizar seus contratos,
apresentando-os aos seus consumidores como documentos pré-impres-
sos, verdadeiros formulários. Foi, por um lado, um movimento positivo
de transformação contratual ao conferir rapidez e segurança às transa-
ções na sociedade massificada. Mas o fenômeno trouxe, igualmente,
perigos parA os consumidores que aderem globalmente ao contrato,
sem conhecer todas as cláusulas".{3}
Mas não se imagine que a proteção contratual do consumidor seja
um problema brasileiro ou de terceiro mundo apenas. É um tema
universal que, de uma forma ou de outra, vem sendo enfrentado pelo
legislador desde o Código Civil italiano de 1942.
No Brasil, antes do CDC, não fazia mesmo sentido se falar em
proteção contratual do consumidor, já que este, assim denominado,
inexistia como entidade jurídica com perfil próprio. Havia, isso sim, ja
um esforço da jurisprudência no sentido de mitigar o rigor do nosso
Código Civil e o apego descomedido da doutrina a certos princípios que,
diante da sociedade de produção e consumo em massa, gritavam por
reforma.
Quando falamos em contratos no Código de Defesa do Consumi-
dor estamos, efetivamente, cuidando de contratos de consumo. E
quando estudamos os contratos de consumo ou sobre eles legislamos
assim o fazemos em razão de algo que poderíamos denominar de
vulnerabilidade contratual do consumidor. É esse fenômeno jurídico
- mas também econômico e social - que leva o legislador a buscar
formas de proteger o consumidor
* (3) Calais-Auloy, Jean. Droit de la Consommation. Paris, Dalloz,
1986, p. 143. (p. 9)
No plano da teoria do contrato, proteger o consumidor é, antes de
mais nada, um esforço de pesquisa da tipologia dessa vulnerabilidade,
de resto reconhecida ope legis (CDC, art. 4.º, I).
Na vida do mercado, busca-se tutelar o consumidor principalmen-
te em dois aspectos: na sua integridade físico-psíquica e na sua
integridade econômica. Muitos, com acerto, dirão que a tutela da saúde
do consumidor sobrepõe-se à sua proteção econômica. Mas a verdade
é que, além dessa preocupação sobre em relação a que proteger o
consumidor (integridade físico-psíquica ou integridade econômica), há
também uma outra sobre o quando tutelá-lo. E, neste ponto, a questão
contratual se torna central.
A fragilidade do consumidor manifesta-se com maior destaque em
três momentos principais de sua existência no mercado: antes, durante
e após a contratação. É, portanto, com os olhos voltados para o iter
contratual do consumidor que o legislador e os órgãos de implemen-
tação atuam. Em outras palavras: toda a vulnerabilidade do Consumidor
decorre, direta ou indiretamente, do empreendimento contratual e toda
a proteção é ofertada na direção do contrato. Daí a importância que
assume a matéria contratual no amplo círculo de proteção do consu-
midor.
Muito mais do que ocorre com o resguardo da saúde do consu-
midor, a tutela da sua integridade econômica (aí se incluindo a proteção
contratual) é uma questão de posição jurídica do sujeito amparado.
Aqui a proteção se dá em favor de quem contrata ou é estimulado a
contratar. O que se quer, por essa via, é a alteração da correlação de
forças, no plano econômico e jurídico, entre consumidores e fornece-
dores, francamente desfavorável àqueles. Como se vê, e não há como
fugir, tal tutela opera sobre ou ao redor do contrato de consumo.
Para auxiliar na superação das dificuldades contratuais do consu-
midor o direito tem articulado soluções as mais diversas, muitas de
caráter cosmético, outras atuando apenas no plano da informação e
umas poucas reconhecendo, pura e simplesmente, que o princípio da
autonomia da vontade exige uma profunda reflexão e, a partir, daí,
verdadeira revisão.
É importante, contudo, salientar que todo o esforço de reforma do
regime contratual encetado pelo direito do consumidor não visa arrasar
e sim aperfeiçoar a liberdade contratual. Seria, por assim dizer, uma
tentativa - nem a primeira, nem a última - de preservar a essência do (p.
10)
princípio. Conseqüentemente, o direito do consumidor não contesta a
validade da liberdade contratual (da mesma forma que não ataca o
regime da propriedade privada) mas, simplesmente, se insurge contra
a forma como ela tem se manifestado, em especial no mercado de
consumo.
Já em 1943, Friedrich Kessler, com muita propriedade, escrevia
que "a liberdade contratual permite que as empresas legislem através
de contratos e, o que é até mais importante, legislem de uma forma
autoritária sem que para tanto tenham que usar uma aparência autori-
tária. Os contratos de adesão, em particular, podem, pois, se tornar
instrumentos eficazes nas mãos de senhores feudais todo poderosos da
indústria e do comércio, permitindo-lhes impor sua própria nova ordem
feudal e subjugando um grande número de vassalos".{4}
A liberdade contratual, realmente como princípio absoluto -
sempre deu azo a inúmeros abusos. Ora, eram exageros, relacionados
com o discernimento do contratante débil, ora eram percalços oriundos
da liberdade plena de um dos contratantes e da ausência de liberdade
do outro. Tudo a provocar discrepância entre a vontade real e a vontade
declarada do consumidor. A teoria jurídica, em tais circunstâncias,
servia somente para amparar um mito de equilíbrio.
Os institutos clássicos de contenção dos abusos criados pelo
princípio da autonomia da vontade não amparavam, em absoluto, o
consumidor. Na fase da sociedade pessoal, antes do surgimento da
sociedade de consumo, na medida em que, de regra, só uma pequena
parcela da população detinha os meios de produção, é evidente que só
uns poucos, de fato, contratavam repetidamente. E para esta minoria
os instrumentos tradicionais se mostravam eficazes, que não fossem
para impedir, mas ao menos para reparar os vícios da liberdade
contratual.
Com o aparecimento da sociedade de massa os partícipes no
mercado se multiplicaram e os contratos explodiram em quantidade. Na
sociedade moderna o contrato deixou de ser um privilégio da minoria
e incorporou-se ao dia a dia do cidadão comum, em especial do
consumidor E em uma situação de explosão contratual os remédios
contratuais clássicos mostraram-se totalmente inadequados.
* (4) Kessler, Friedrich. "Contracts of adhesion - Some thoughts
about freedom
of contrat". In Columbia Law Review, vol. XLIII, maio, 1943, n. 4, p.
640. (p. 11)
É sob esse pano de fundo que surge o CDC e, agora, o livro da
professora Cláudia Lima Marques.
A autora, evidentemente, conhece o assunto da proteção contratual
do consumidor, mas não o esgota em seu livro. Como diz muito
modestamente, logo no pórtico de seu trabalho, trata-se de "uma
contribuição ao estudo dos reflexos do Código de Defesa do Consu-
midor no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no que se
refere ao regime das relações contratuais". Uma excelente e oportuna
contribuição.
Na primeira metade da Parte I, verdadeira introdução crítica,
Cláudia Lima Marques analisa "a renovação da teoria contratual",
distinguindo, nos passos da Comissão das Comunidades Européias,
contrato de adesão e contratos submetidos a condições gerais. Conclui
afirmando que o CDC, como "conseqüência da nova teoria contratual",
"é um reflexo de uma nova concepção mais social do contrato, onde
a vontade das partes não é a única fonte das obrigações contratuais,
onde a posição dominante passa a ser a da lei, que dota ou não de
eficácia jurídica aquele contrato de consumo".
Em seguida, na segunda metade da Parte I, a autora enfrenta um
dos maiores desafios da interpretação do CDC, ou seja, a identificação,
dentre as diversas modalidades de contratos, daqueles que se submetem
ou não ao regime codificado. A questão é da mais alta relevância. Basta
que lembremos a polêmica levantada pelos bancos - hoje totalmente
superada - sobre a inclusão de seus contratos na malha do CDC. Mais
recentemente, discutiu-se, nas páginas de O Estado de S. Paulo, a
questão dos contratos de transporte aéreo internacional.
A primeira metade da Parte II cuida da proteção do consumidor
na formação do contrato, analisando em profundidade o desapareci-
mento da regra do caveat emptor e o surgimento de uma obrigação geral
de informar, seja no momento publicitário, seja em instante mais
próximo da contratação propriamente dita ou até mesmo no âmbito do
próprio contrato.
Finalmente, na última metade da Parte II, a autora dedica-se a
proteção do consumidor quando da execução do contrato. É aí que
analisa as regras básicas norteadoras da interpretação dos contratos de
consumo, a proibição das cláusulas contratuais abusivas, o controle
judicial dos contratos de consumo e os diversos tipos de vícios de
produtos e serviços. (p. 12)
Se é certo que não concordamos em tudo e tudo com as posições
da autora, também podemos afirmar que não vacilaríamos em subscre-
ver sua obra por inteiro. E foi exatamente com esse espírito que a
recomendamos à editora e ao próprio Instituto de Política e Direito do
Consumidor.
ANTONIO HERMAN V. BENJAMIN
Membro do Ministério Público de SÃo Paulo
Mestre em Direito pela University of Illinois, EUA.
um dos redatores do Código de Defesa do Consumidor
e presidente do Instituto Brasileiro de Política
e Direito do consumidor. (p. 13)

(p. 14, em branco)

SUMÁRIO

Abreviaturas 21
Introdução à terceira edição 23
Introdução à segunda edição 27
Introdução à primeira edição 31
PARTE I - A RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL
1. A NOVA TEORIA CONTRATUAL 35
1. A concepção tradicional do contrato 37
1.1 Características principais 38
1.2 Origens da concepção tradicional de contrato 40
a) O direito canônico 40
b) A teoria do direito natural 41
c) Teorias de ordem política e a revolução francesa 42
d) Teorias econômicas e o Liberalismo 43
1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da
vontade 44
a) A liberdade contratual 45
b) A força obrigatória dos contratos 47
c) Os vícios do consentimento 47
2. A nova realidade contratual 49
2.1 Noções preliminares: Os contratos de massa 49
2.2 Os contratos de adesão 53
a) Descrição do fenômeno 53
b) A formação do vínculo 56
c) A disciplina dos contratos de adesão 58 (p. 15)
2.3 As condições gerais dos contratos (cláusulas contratuais ge-
rais) 59
a) Descrição do fenômeno 59
b) A inclusão de condições gerais nos contratos 62
c) A disciplina das condições gerais dos contratos 66
2.4 Os contratos cativos de longa duração 68
a) Descrição do fenômeno 68
b) A estrutura dos contratos cativos de longa duração 74
c) Disciplina 77
2.5 As cláusulas abusivas nos contratos de massa 80
3. Crise na teoria contratual clássica 84
3.1 Crise da massificação das relações contratuais 84
3.2 Crise da pós-modernidade 89
4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consu-
midor 101
4.1 A nova concepção social do contrato 101
a) Socialização da teoria contratual 102
b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva 105
c) Intervencionismo dos Estados 116
4.2 O Código de Defesa do Consumidor como conseqüência da nova
teoria contratual 117
a) Limitação da liberdade contratual 118
b) Relativização da força obrigatória dos contratos 122
c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos 126
d) Nova noção de equilíbrio mínimo das relações contra-
tuais 133
2. CONTRATOS SUBMETIDOS ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DE-
FESA DO CONSUMIDOR 139
1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou serviços 140
1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor 140
a) O consumidor stricto sensu 140
b) Agentes equiparados a consumidores 153
c) O fornecedor 162 (p. 16)
1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços 163
a) Contratos imobiliários 166
b) Contratos de transporte, de turismo e viagem 174
c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento 182
d) Contratos de seguro e de previdência privada 187
e) Contratos bancários e de financiamento 197
f) Contratos de administração de consórcios e afins 206
g) Contratos de fornecimento de serviços públicos 209
h) Compra e venda e suas cláusulas 215
i) Compra e venda com alienação fiduciária 216
2. Contratos de consumo e conflitos de leis no tempo 218
2.1 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de
leis 219
a) Características do Código de Defesa do Consumidor e refle-
xos na sua aplicação 220
b) O papel da Constituição Federal na interpretação e aplicação
do Código de Defesa do Consumidor 225
c) Os critérios de solução de conflitos de leis e suas dificul-
dades 229
d) Conflitos entre normas do Código Civil, de leis especiais e de
leis anteriores com o Código de Defesa do Consumidor 242
e) Conflitos entre normas do Código de Defesa do Consumidor
e de leis especiais e gerais posteriores 246
2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos
anteriores 254
a) As garantias constitucionais do direito adquirido e do ato
jurídico perfeito 257
b) A garantia constitucional da defesa do consumidor 271
c) A aplicação imediata das normas de ordem pública 272
CONCLUSÃO DA PARTE I 279
PARTE II - REFLEXOS CONTRATUAIS DO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR
3. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA FORMAÇÃO
DO CONTRATO 283
1. Princípio básico de transparência 286
1.1 Nova noção de oferta (art. 30) 288
a) Vinculação própria através da atuação negocial 294 (p. 17)
b) Publicidade como oferta 304
c) Informações e pré-contratos 318
d) Cláusulas contratuais gerais 321
e) Sanção 323
1.2 Dever de informar sobre o produto ou serviço (art. 31) 324
a) Amplitude do dever de informar do art. 31 325
b) A publicidade como meio de informação 327
c) Sanção. As regras sobre o vício do produto 333
1.3 Dever de oportunizar a informação sobre o conteúdo do contrato
(art. 46) 335
a) Amplitude do dever de informar do art. 46, 1.º 336
b) Sanção 337
1.4 Dever de redação clara dos contratos 339
a) Redação clara e precisa (art. 46) 339
b) Cuidados na utilização de contratos de adesão 340
c) Sanção 341
2. Princípio básico de boa-fé 342
2.1 Publicidade abusiva e enganosa 343
a) Conceito de publicidade 344
b) Publicidade como ilícito civil - A publicidade enganosa 347
c) Publicidade como ilícito civil - A publicidade abusiva 349
2.2 Práticas comerciais abusivas 352
a) Práticas comerciais expressamente vedadas 353
b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado 360
c) Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços 361
2.3 Direito de arrependimento do consumidor (art. 49) 362
a) A venda de porta-em-porta (door-to-door) 363
b) Regime legal da venda de porta-em-porta 365
c) Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distancia 374
4. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA EXECUÇÃO DO
CONTRATO 389
1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual 390
1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral 391
1.2 Proibição de cláusulas abusivas 401
a) Características gerais das cláusulas abusivas 402 (p. 18)
b) Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas 409
b.1 Lista única de cláusulas abusivas 410
b.2 Autorização excepcional de modificação de cláusulas 412
c) As cláusulas consideradas abusivas 415
c.1 A lista do art. 51 416
c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51 421
c.3 As cláusulas identificadas pela jurisprudência 424
1.3 Controle judicial dos contratos de consumo 548
a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos 549
b) Controle concreto e em abstrato 550
c) Papel do Ministério Público e das entidades de proteção ao
consumidor 552
1.4 Novas linhas jurisprudenciais de controle do sinalagma contratual
e de recurso à ineficácia de cláusulas 553
a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou
destacadas corretamente 554
b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo e corre-
ção monetária 557
c) A tendência de controle da novação contratual e do equilí-
brio 562
2. Princípio da confiança 573
2.1 Novo regime para os vícios do produto 576
a) Vícios de qualidade - vícios por inadequação 582
b) Vícios de qualidade por falha na informação 590
c) Vícios de quantidade 591
2.2 Novo regime para os vícios do serviço 592
a) Vícios de qualidade dos serviços 593
b) Vícios nos serviços de reparação 598
c) Vícios de informação 599
2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço 600
a) Noções gerais 600
b) Garantia legal e novo prazo decadencial 604
c) Relação da garantia contratual com a garantia legal 609
2.4 Garantia legal de segurança do produto ou do serviço (Respon-
sabilidade extracontratual do fornecedor) 615
a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos 618
b) Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço
- (A responsabilidade do comerciante) 620
c) Direito de regresso 630 (p. 19)
2.5 Inexecução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas 632
2.6 Inexecução contratual pelo fornecedor e desconsideração da
personalidade da pessoa jurídica 636
a) Noções gerais 636
b) A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica 637
CONCLUSÃO DA PARTE II E OBSERVAÇÕES FINAIS 641
BIBLIOGRAFIA 647 (p. 20)

ABREVIATURAS

CC ou CCB - Código Civil Brasileiro


CF - Constituição Federal
CDC - Código de Defesa do Consumidor
CNDC/MI - Conselho Nacional de Defesa do Consumi-
dor, Ministério da Justiça
CONDGs - condições gerais dos contratos
Brasilcon - Instituto Brasileiro de Política e Direito do
Consumidor
BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão)
BGH - Bundesgerichtshof (Corte Federal Alemã)
Dir. do Consumidor - Revista de Direito do Consumidor (São Paulo
Brasilcon)
DROITS - Revue française de Theorie Juridique (Revis-
ta, Paris)
JECP - Juizados Especiais e de Pequenas Causas
JZ - Juristen Zeitung (Revista, Tübingen)
NJW - Neue Juristische Wochenschrift (Revista,
Frankfurt)
RDM - Revista de Direito Mercantil (São Paulo)
Rev. AJURIS - Revista da Associação de Juízes do Rio Gran-
de do SuL (Porto Alegre)
Rev. eur. dr. consommation - Revue Européenne de Droit de la Consomma-
tion (Louvain. Bélgica)
Rev. int. dr. comp. - Revue internationale de droit comparé (Revis-
ta, Paris)
Rev. inf. legisl. - Revista de Informação Legislativa (Senado
Federal, Brasília)
RT - Revista dos Tribunais (São Paulo) (p. 21)
RF - Revista Forense (Rio de Janeiro)
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
TA - Tribunal de Alçada
TACiv - Tribunal de Alçada Cível
TJ - Tribunal de Justiça (p. 22)

INTRODUÇÃO À TERCEIRA EDIÇÃO

Sete anos após a sua entrada em vigor, o Código de Defesa do


Consumidor, Lei 8.078/90, continua a despertar o interesse da doutrina
brasileira e, principalmente, dos práticos do direito. Sua incorporação
ao sistema jurídico nacional foi surpreendente, sua assimilação na
jurisprudência lenta, mas decisiva, e hoje o direito contratual
brasileiro
não pode ser completamente entendido sem um estudo profundo dos
princípios e avanços impostos por essa lei. A jurisprudência brasileira
assimilou a maioria de seus novos conceitos e normas, mas resistiu a
alguns avanços, como demonstrará a análise de mais de 625 julgados
incorporados a esta obra. Nesse sentido, esta terceira edição deve-se
não só ao aparecimento de abundante doutrina especializada, mas,
principalmente, à necessidade de traçar um panorama nacional realista
sobre a aceitação e utilização do Código de Defesa do Consumidor na
jurisprudência brasileira. Ainda é cedo para esboçar um balanço da
efetividade dessa lei, mas as linhas jurisprudenciais já começam a
cristalizar-se, por vezes, em interpretações mais ousadas do que as da
doutrina, por vezes, ainda com um conservadorismo receoso com o
momento atual da ciência do direito. O cômputo geral foi, porém,
extremamente positivo e o CDC pode ser considerado uma lei de grande
utilização prática, como comprova o expressivo número de jurisprudên-
cias citadas.
Assim, na primeira parte mais teórica deste estudo, procuramos
aprofundar a análise desse momento atual, em que pese uma certa crise
da ciência do direito, crise na insegurança jurídica, crise na
multiplicidade
das leis, e propor novas saídas através de figuras e princípios tradici-
onais do direito, agora revitalizados. Incluímos assim um novo estudo
sobre a chamada crise da pós-modernidade, procurando captar os seus
reflexos no direito contratual brasileiro, pois, mesmo ciente da insegu-
rança dessa denominação e da ousadia de uma tal análise, pareceu-me
necessário e positivo propor uma discussão científica e crítica desse (p.
23)
novo tema, frente aos belos estudos da doutrina estrangeira que pude
acompanhar durante meu Doutorado na Alemanha.
Na prática, a grande discussão nacional continua sendo a
definição
exata do campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
discussão esta que tende a aumentar com a eventual aprovação de um
novo Código Civil, de um ainda maior número de leis especiais e
mesmo de uma legislação internacional com origem no Mercosul.
Motivo pelo qual aumentamos e atualizamos, nesta edição, a análise
do campo de aplicação da Lei 8.078/90 e dos eventuais conflitos com
outras normas. O CDC já possui sete anos de vigência e, com o
aumento da atividade Legislativa, resolvemos incluir um estudo sobre
os conflitos do CDC com as já existentes leis especiais posteriores em
matéria de contratos de consumo.
Na segunda parte desta obra, ao analisarmos os reflexos contra-
tuais do Código, procuramos trazer as linhas jurisprudcnciais mais
significativas, as novas discussões judiciais e extrajudiciais sobre a
forma e o conteúdo dos contratos de consumo, sem modificar, porém,
o espírito, nem o plano da obra. A idéia básica continua sendo
identificar no direito brasileiro, no mercado e na prática dos profissio-
nais do direito (law in action) as inovações e as discussões oriundas
dos novos princípios introduzidos ou concretizados no Código de
Defesa do Consumidor.
A pesquisa jurisprudencial executada não pode ser exaustiva, em
virtude da enorme produção jurisprudencial nacional existente sobre o
tema em face dos limites da autora. Tivemos como base a Revista de
Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito do Consumi-
dor, que já se encontra no 26º número, as pesquisas realizadas em todo
o Brasil do Departamento acadêmico do Brasilcon e as publicações em
revistas e repertórios especializados. Também a abundante doutrina
sobre o tema, em especial, os excelentes artigos e livros especializados,
não podem ser totalmente exauridos, mas, na medida do possível, foram
considerados.
Nesta edição, priorizamos a análise da jurisprudência (já
abundan-
te) dos Tribunais estaduais e aumentamos a análise da jurisprudência
dos Tribunais Superiores sobre temas que se referem a relações de
consumo. Por fim, mantivemos o plano e o caráter da obra, que
demonstrou ser útil aos profissionais do direito e aos estudantes
universitários. (p. 24)
Aumentada a parte teórica e, especialmente, atualizada e
complementada a análise da jurisprudência brasileira e das novas
práticas do mercado de consumo, espero que esta terceira edição possa
contribuir efetivamente para um ainda maior entendimento e aplicação
prática do Código de Defesa do Consumidor e das demais leis de
consumo no mercado brasileiro.
Junho 1998. (p. 25)

(p. 26, em branco)

INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO

A necessidade de uma nova edição atualizada desta obra nasceu,


em parte, da boa recepção que mereceu no Brasil inteiro; mas nasceu,
principalmente, do forte impacto das normas protetivas dos direitos do
consumidor no ordenamento jurídico nacional, especialmente no direito
civil. Nestes três primeiros anos de vigência do Código de Defesa do
Consümidor formou-se uma abundante e frutífera doutrina especializa-
da no tema, que só agora pôde ser considerada e analisada conjunta-
mente com a doutrina estrangeira no assunto.
Esta segunda edição, porém, somente ganha verdadeiro sentido,
quando analisada a prática contratual do mercado brasileiro após a
entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor. Foram as
mudanças voluntárias no dia-a-dia das relações de consumo e os
reflexos da imposição dos novos princípios do Código nas relações
litigiosas que nos levaram a atualizar e a modificar - esperamos que
para melhor - esta obra, complementando a visão teórica com os novos
reflexos práticos do CDC no regime dos contratos.
O núcleo principal desta segunda edição é, portanto, a atual
jurisprudência brasileira e a análise de suas tradicionais ou renovadas
linhas de pensamento em matéria de relações contratuais de consumo.
Esta nova edição traz cerca de 267 decisões jurisprudenciais brasileiras,
não só dos Tribunais Superiores e Tribunais Estaduais principais, mas
também algumas decisões originais de magistrados de primeiro grau
e das Câmaras Recursais dos juizados Especiais e de Pequenas Causas.
Trata-se naturalmente, de uma pesquisa aleatória e incompleta, vincu-
lada em muito as fontes limitadas da autora.
A pesquisa jurisprudencial executada não teve pretensões de ser
exaustiva, nem foi seu intento reproduzir em detalhes as linhas
tradicionais do direito contratual clássico, ao contrário, o levantamento
tem caráter exemplificativo e concentrou-se na influência do CDC e das
(p. 27)
novas linhas doutrinárias do direito contratual na atuação diária e
efetiva do Judiciário.
Face a experiência acumulada nestes primeiros anos de aplicação
do Código, esperamos que semelhante obra possa ajudar ao profissional
do direito e aplicador da lei a identificar rapidamente a influência
modificadora - ou não - dos princípios da boa-fé objetiva e de eqüidade
contratual no sistema do direito civil brasileiro, servindo a pesquisa
jurisprudencial especialmente para identificar a eficácia prática da lei
nova e os campos onde sua aplicação ainda não é aquela desejada.
A jurisprudência brasileira tem contribuído muito para o desen-
volvimento e interpretação do Código de Defesa do Consumidor,
mesmo se observarmos que sua atuação é ainda diferenciada, e, por
vezes, até contraditória de Estado para Estado da Federação. Conside-
ramos, porém, que a atuação concreta e prudente dos juízes brasileiros
está a merecer um destaque especial da doutrina, e se possível no
sentido original do pensamento dos julgadores. De forma a poder
reproduzir com a máxima sinceridade intelectual o pensamento e a ratio
do julgador, superando a sua simples utilização como apoio às opiniões
emitidas na primeira edição, optamos por reproduzir nas notas de
rodapé muitas das ementas das decisões citadas, mesmo conscientes de
que as ementas são pálida representação do conteúdo dos acórdãos e
do pungente direito dos juízes nesta matéria. Esperamos que esta
opção não torne a leitura excessivamente pesada, e que, ao contrário,
possa ser um efetivo instrumento de pesquisa e de convencimento para
o profissional do direito, ao possibilitar uma visualização mais imediata
da argumentação e da motivação aceita pela jurisprudência citada.
Entre a jurisprudência analisada e reproduzida incluímos também
decisões dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, tendo em vista
a importância conquistada por estes Juizados na efetiva (e rápida)
defesa dos interesses dos consumidores. De forma a evitar qualquer
discussão sobre a legitimidade desta "fonte jurisprudencial", mencio-
naremos apenas as decisões das Câmaras Recursais, constituídas por
magistrados de carreira, decisões que foram reproduzidas nos veículos
oficiais de publicação dos Tribunais de Justiça de cada Estado. A
jurisprudência oriunda dos Juizados é pouco conhecida ou divulgada,
mesmo entre os conciliadores, árbitros e juízes. Nesse sentido, consi-
deramos que sua divulgação pode ser fator importante para a conquista
de uma maior harmonia de decisões no país, assim como contribuir para (p.
28)
uma salutar - e pouco existente - "troca de experiências" com as vias
tradicionais da Justiça.
Quanto às modificações executadas no texto, foram incluídas, na
primeira parte do livro, análise mais detalhada sobre os contratos de
longa duração, sobre a definição de consumidor stricto sensu e agentes
equiparados pelo CDC a consumidores, assim como sobre a aplicação
do CDC no tempo e os conflitos de leis oriundos de sua entrada em
vigor. Especialmente modificada e complementada pela atual prática
jurisprudencial apresenta-se a parte dois desta obra, onde foi incluída
uma análise mais detalhada do fenômeno da vinculação própria através
da negociação contratual, assim como novos títulos sobre as caracte-
rísticas das cláusulas abusivas, sobre a autorização excepcional de
modificação de algumas cláusulas pelo Judiciário e sobre as principais
cláusulas abusivas identificadas pela jurisprudência brasileira nestes
primeiros anos de vigência do CDC.
O Código de Defesa do Consumidor, como lei nova e
rejuvenescedora do Direito Civil brasileiro, tem atraído a atenção de
juristas interessados na evolução da ciência jurídica e dos instrumentos
legais garantidores de relações sociais mais equilibradas e leais; tem
despertado contínuo interesse nos profissionais do direito em geral,
advogados, conciliadores, membros do Ministério Público e magistra-
dos. O CDC conseguiu em poucos anos transformar-se em uma
realidade, uma lei de assumida função social a impor um novo patamar
de harmonia e de boa-fé objetiva no mercado de consumo. Sua
importância e seus reflexos positivos no ordenamento jurídico brasilei-
ro, especialmente no que se refere ao novo regime das relações
contratuais, não podem mais ser negados. Esperamos que este trabalho,
renovado e atualizado com a nova doutrina e jurisprudência brasileira
possa ser uma contribuição válida ao estudo e à prática das novas linhas
positivadas no Direito Civil pátrio pelo Código de Defesa do Consu-
midor.
Dezembro 1994. (p. 29)

(p. 30, em branco)

INTRODUÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO

1. Plano da obra

I - O presente trabalho pretende ser uma contribuição ao estudo


dos reflexos do Código de Defesa do Consumidor no ordenamento
jurídico brasileiro, especialmente no que se refere ao regime das
relações contratuais. Trata-se de analisar o Código, enquanto inovação,
mas de explicitá-lo, enquanto resultado da evolução teórica e doutrinária
do direito como ciência. Este aspecto foi até agora pouco observado
pelos autores que comentam as normas do Código, como se este
rompesse com a história e a evolução do pensamento jurídico. Bem ao
contrário, o Código rompe com o pensamento individualista, liberal da
concepção clássica de contrato, mas representa a própria evolução, a
própria positivação da teoria da função social do contrato, que desde
o século XIX aparecia nos ensinamentos ideais de mestres como
Jehring, Morin e outros. Os juristas, acostumados com o pensamento
tradicional, poderão assim situar-se e situando-se, interpretar as normas
do Código com maior embasamento, com maior segurança, entendendo
e sua ratio, evitando assim interpretações que deturpem o seu fim, que
as tornem inócuas ou radicais em excesso. O chamado Direito do
Consumidor é parte do Direito, é parte da ciência, é parte da evolução
do pensamento jurídico, criando novos conceitos, pensando topicamente
e dando novo conteúdo a noções-chaves como a boa-fé, a eqüidade
contratual, a válida manifestação de vontade, a equivalência de pres-
tações, a transparência e o respeito entre parceiros Na fase pré-
contratual.
Este estudo volta-se, assim, tanto para aqueles que estão agora
aprendendo, quanto para os profissionais do direito, que a todo
momento devem sugerir condutas, julgar e resolver problemas envol-
vendo as relações contratuais entre consumidores (todos) e fornecedo-
res (profissionais). (p. 31)
II - O presente trabalho divide-se em duas grandes partes. uma
mais teórica, dedicada ao estudo da evolução da Teoria Contratual, que
tem por fim apresentar o Código de Defesa do Consumidor (CDC)
como conseqüência desta renovação no pensamento jurídico, e uma
segunda, mais prática, onde será analisado o novo regime legal imposto
pelas normas do Código quando da formação dos contratos de consumo
e quando da execução destes. Esta segunda parte estudará uma a uma
das normas do Código que possuem algum reflexo nas relações
contratuais, mesmo que este reflexo seja indireto, eventual ou futuro,
pois as novas normas acompanham as relações de consumo desde a sua
fase pré-contratual até uma nova proteção na fase pós-contratual. A
apresentação das normas do Código será sistematizada tendo em vista
os novos princípios básicos que o CDC introduz no ordenamento
jurídico brasileiro, de forma a facilitar a sua interpretação e o enten-
dimento de sua ratio. Da mesma forma optamos pela transcrição das
principais normas no texto, para facilitar a leitura e a rapidez no
entendimento de nossas observações.
Em face da novidade do tema, recorremos, em muito nesta
primeira edição, à experiência do direito comparado, que nos foi
transmitida, tão sensatamente, pelos mestres alemães e suíços. Por fim,
cabe esclarecer que a exposição sobre o novo regime das cláusulas
abusivas é propositalmente sintática, porque o tema comporta, em face
da experiência do direito comparado, uma análise monográfica, que já
está sendo preparada.
O presente trabalho é, portanto, amplo em sua análise, pois ampla
é a aplicação da nova lei nas relações contratuais no mercado brasileiro,
mas não pretende ser mais do que um primeiro passo, uma primeira
contribuição para o entendimento desse fato novo, deste novo espírito
introduzido no ordenamento brasileiro. É um estímulo à discussão, uma
modesta tentativa de sistematização, aberta à crítica e crescimento, em
face da novidade e da importância do tema.

2. Introdução ao tema

A Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como


Código de Defesa do Consumidor ou CDC, entrou em vigor em 11 de
março de 1991, representando uma considerável inovação no ordena-
mento jurídico brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora (p.
32)
do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil,
passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como
ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas
expectativas nas relações de consumo no mercado.
Em matéria contratual, não mais se acredita que assegurando a
autonomia de vontade e a liberdade contratual se alcançará, automa-
ticamente, a necessária harmonia e eqüidade nas relações contratuais.
Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de
distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizaram,
aparecendo os métodos de contratação estandardizados, como os
contratos de adesão e as condições gerais dos contratos. Hoje estes
métodos predominam em quase todas as relações entre empresas e
consumidores, deixando claro o desnível entre os contratantes - um,
autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. É uma realidade
social bem diversa daquela do século XIX, que originou a concepção
tradicional e individualista de contrato, presente em nosso Código Civil
de 1917. Ao Estado coube, portanto, intervir nas relações de consumo,
reduzindo o espaço para a autonomia de vontade, impondo normas
imperativas de maneira a restabelecer o equilíbrio e a igualdade de
forças nas relações entre consumidores e fornecedores.
O art. 1º do Código de Defesa do Consumidor deixa claro que a
nova Lei representa exatamente esta intervenção estatal, ordenada pela
Constituição Federal de 1988, em seus arts. 5º, inciso XXXII e 170,
inciso
V. No Código estão positivadas as novas regras para a proteção do
consumidor, as quais têm como fim justamente harmonizar e dar
transparência às relações de consumo (veja art. 4º, caput in fine CDC).
O novo Código pretende regular todas as matérias conexas às
relações de consumo na sociedade; ao nosso estudo, porém, interessa
somente a mais representativa e abrangente destas relações: a relação
contratual entre o consumidor e o fornecedor de bens ou serviços.
Vários enfoques poderiam ser dados ao estudo do novo regime das
relações contratuais entre consumidor e fornecedor de bens e serviços.
Neste estudo, vamos sistematizar as novas normas, relacionando-as
com os princípios básicos instituídos pelo Código de Defesa do
Consumidor, destacando o que elas têm de novo em relação ao
ordenamento jurídico brasileiro tradicional, pois somente o conheci-
mento e o domínio dessas mudanças possibilitará uma adaptação sem
grandes traumas dos contratos e das práticas comerciais existentes no
mercado. (p. 33)

(p. 34, em branco)

Parte 1 - A RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL

1 - A NOVA TEORIA CONTRATUAL

SUMARIO: 1. A concepção tradicional do contrato - 1.1 Caracterís-


ticas principais - 1.2 Origens da concepção tradicional de contrato: a)
O direito canônico; b) A teoria do direito natural; c) Teorias de ordem
política e a revolução francesa; d) Teorias econômicas e o Liberalismo
- 1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da
vontade: a) A liberdade contratual; b) A força obrigatória dos contratos;
c) Os vícios do consentimento - 2. A nova realidade contratual - 2.1
Noções preliminares: Os contratos de massa - 2.2 Os contratos de
adesão: a) Descrição do fenômeno; b) A formação do vínculo; c) A
disciplina dos contratos de adesão - 2.3 As condições gerais dos
contratos (cláusulas contratuais gerais): a) Descrição do fenômeno; b)
A inclusão de condições gerais nos contratos; c) A disciplina das
condições gerais dos contratos - 2.4 Os contratos cativos de longa
duração: a) Descrição do fenômeno; b) A estrutura dos contratos
cativos de longa duração; c) Disciplina - 2.5 As cláusulas abusivas nos
contratos de massa - 3. Crise na teoria contratual clássica - 3.1 Crise
da massificação das relações contratuais - 3.2 Crise da pós-modernidade
- 4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consu-
midor - 4.1 A nova concepção social do contrato: a) Socialização da
teoria contratual; b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva; c)
Intervencionismo dos Estados - 4.2 O Código de Defesa do Consumi-
dor como conseqüência da nova teoria contratual: a) Limitação da
liberdade contratual; b) Relativização da força obrigatória dos contra-
tos; c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos; d) Nova noção
de equilíbrio mínimo das relações contratuais.

A idéia de contrato vem sendo moldada, desde os romanos, tendo


sempre como base as práticas sociais, a moral e o modelo econômico
da época. O contrato, por assim dizer, nasceu da realidade social. (p.
35)
Efetivamente, sem os contratos de troca econômica, especial-
mente os contratos de compra e venda, de empréstimo e de permuta,
a sociedade atual de consumo não existiria como a conhecemos. O
valor decisivo do contrato está, portanto, em ser o instrumento jurídico
que possibilita e regulamenta o movimento de riquezas dentro da
sociedade.{1}
Para as partes, o contrato objetiva, fundamentalmente, uma troca
de prestações, um receber e prestar recíproco. Assim, contrato de
compra e venda é um sinalagma, em que um contratante assume a
obrigação de pagar certo preço para alcançar um novo status jurídico,
status de proprietário (seja de um automóvel, televisão ou mesmo de
bens alimentícios), enquanto o outro assume a obrigação de transferir
um direito seu de propriedade, porque lhe é mais interessante, no
momento, ser credor daquela quantia. A idéia de troca, de reciprocidade
de obrigações e de direitos serve para frisarmos a existência dentro da
noção de contrato de um equilíbrio mínimo das prestações e
contraprestações, equilíbrio mínimo de direitos e deveres. Note-se que
o contrato remedia a desconfiança básica entre os homens e funciona
como instrumento, antes individual, hoje social, de alocação de riscos
para a segurança dos envolvidos e a viabilização dos objetivos alme-
jados pelas partes.{2}
Para a teoria jurídica, o contrato é um conceito importantíssimo,
uma categoria jurídica fundamental trabalhada pelo poder de abstração
dos juristas, especialmente os alemães do século XIX, quando sistema-
tizaram a ciência do direito.{3} É o negócio jurídico por excelência,
onde
o consenso de vontades dirige-se para um determinado fim. É ato
jurídico vinculante, que criará ou modificará direitos e obrigações para
as partes contraentes, sendo tanto o ato como os seus efeitos permitidos
e, em princípio, protegidos pelo Direito.
* (1) Assim ensinam os mestres comparatistas Zweigert/Koetz, p. 7,
sobre a
evolução desta visão econômica do contrato e sua importância ainda nos
dias de hoje, Poughon, Le contrat, pp. 47 e ss.
(2) Como relembram os mestres da common law, o contrato, além da
exchange
functíon, possui uma importante função de alocação de riscos na sociedade
moderna, veja o excelente Atiyah, p. 716.
(3) Sobre o sistema do direito e a evolução dos conceitos da
Teoria do Direito,
veja a obra basilar de Karl Larenz, Metodologia e sobre a história do
pensamento jurídico, veja o excelente Wieacker. (p. 36)
A concepção de contrato, a idéia de relação contratual, sofreu,
porém, nos últimos tempos uma evolução sensível, em face da criação
de um novo tipo de sociedade, sociedade industrializada, de consumo,
massificada, em face, também, da evolução natural do pensamento
teórico-jurídico.
O contrato evoluirá, então, de espaço reservado e protegido pelo
direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para
ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma
série de imposições cogentes, mas eqUitativas.
Este primeiro capítulo é, portanto, dedicado ao estudo da
referida
evolução da teoria contratual, evolução esta oriunda da realidade social
e da ciência do Direito, que, no Brasil, culminará com a criação do
Código de Defesa do Consumidor.

1. A concepçâo tradicional do contrato

Na ciência jurídica do século XIX, a autonomia de vontade era


a pedra angular do Direito.{4} A concepção de vínculo contratual desse
período está centrada na idéia de valor da vontade, como elemento
principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de
direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual.{5} Como
afirma Gounot,{6} "da vontade livre tudo procede e à ela tudo se
destina".
É a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo
no direito. A função das leis referentes a contratos era, portanto,
somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização
dos efeitos queridos pelos contraentes.{7} A tutela jurídica limita-se a
* (4) Veja os clássicos ensaios de Michel Villey, "Essor et
décadence du
voluntarisme juridique" e de A. Rieg, "Le rôle de la volonté dans la
formation de l’acte juridique d’aprés les doctrines allemandes du XIX
siécle", ambos nos Archives de Philosophie du Droit, vol. 4, Paris,
Sirey,
1957, pp. 87/98 e 126-132.
(5) Assim, os comparatistas alemães Zweigert/Koetz, p. 7; veja
também o
recente Jacques Ghestin, "La notion de contrat", in Recueil Dalloz/Sirey,
1990, n. 23, p. 147.
(6) No original, "de la volonté libre tout procede, à elle tout
aboutit", apud
Bessone, Natura Ideologica, p. 944.
(7) Relembre-se aqui a noção clássica de negócio jurídico, como
declaração de
vontade dirigida a um fim, tutelando o direito tanto esta vontade como os
efeitos pretendidos pelas partes, veja a obra de Azevedo, pp. 6 e ss. (p.
37)
possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas
próprias assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no
momento de Contratar, e desconsiderando por completo a situação
econômica e social dos contraentes.
Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais deveriam
compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas,
para permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos,
assim como a liberdade contratual. Esta concepção voluntarista e liberal
influenciará as grandes codificações do Direito e repercutirá no
pensamento jurídico do Brasil, sendo aceita e positivada pelo Código
Civil Brasileiro de 1917.{8}

1.1 Características principais

Como primeira aproximação ao estudo da concepção tradicional


de contrato vamos examinar a definição do grande sistematizador do
século XIX, Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual, o contrato é
a união de mais de um indivíduo para uma declaração de vontade em
consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes
("Vertrag ist die Vereiningung mehrerer zu einer übereinstimmenden
Willenserklärung, wodurch ihre Rechtsverhältnisse bestimmt werden"){9}.
Esta definição, em princípio simples, tem grande valor para a
nossa análise, pois nela já podemos encontrar os elementos básicos que
caracterizarão a concepção tradicional de contrato até os nossos dias:
(1) a vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando direitos
e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito. Em outras pala-
vras, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está
diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu
reflexo{10} mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual.
* (8) Assim Couto e Silva, Perspectivas, p. 134.
(9) Apud Zweigert/Koetz, p. 6.
(10) Concordam Weil/Terré, p. 25, Rieg, p. 126, Larenz/AT, p. 35,
Laufs, p. 255,
Raizer, p. 12, Almeida Costa, p. 77, Reale/Nova Fase, p. 87, Couto e
Silva,
RT 655, p. 7, Gomes/Transformações, p. 9, porém, para os comparatistas
Zweigert/Koetz, p. 9, Koendgen, p. 119 e Kramer/Muenchener, p. 1090, os
dogmas teriam o mesmo nível, sendo a característica mais importante a
liberdade contratual, a qual não seria simples "reflexo" ou elemento do
dogma
da autonomia da vontade. A tradição brasileira e francesa é a que
seguimos. (p. 38)
Para esta concepção, portanto, a vontade dos contraentes, decla-
rada ou interna, é o elemento principal do contrato. A vontade
representa não só a genesis, como também a legitimação do contrato{11}
e de seu poder vinculante e obrigatório.
Tendo em vista o papel decisivo da vontade a doutrina, a
legislação e a jurisprudência, influenciadas por esta concepção, irão
concentrar seus esforços no problema da realização dessa autonomia
da vontade;{12} somente a vontade livre e real, isenta de vícios ou
defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigações e
de direitos.
Nesse sentido, a função da ciência do direito será a de proteger
a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas
partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto,
a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas
próprias através dos contratos,{13} desinteressando-se totalmente pela
situação econômica e social dos contraentes{14} e pressupondo a existên-
cia de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação.
Esta concepção clássica de contrato, individualista, liberal e
centrada na idéia de valor da vontade, influenciará o pensamento
brasileiro,{15} sendo aceita pelo Código Civil de 1917.{16}
Mas a concepção clássica de contrato não é fruto de um único
momento histórico, ao contrário, ela representa o ponto culminante
e aglutinador da evolução teórica do direito após a idade média e da
evolução social e política ocorrida nos séculos XVIII e XIX, com
a revolução francesa, o nacionalismo crescente e o liberalismo
econômico. A compreensão desta teoria clássica contratual exige,
portanto, que se analise igualmente as origens dessa concepção,
sempre tendo em vista o reflexo que estas influências teóricas e sociais
tiveram no nascimento da doutrina da autonomia da vontade (1.2).
* (11) Assim, Kramer/Muenchener, p. 1091 (ver § 145, 3, b).
(12) Concordam Zweigert/Koetz, p. 8.
(13) Nesse sentido Raizer, p. 12.
(14) Assim, o mestre de Porto Alegre, Couto e Silva/Perspectiva,
p. 134.
(15) Veja sobre a repercussão do pensamento Filosófico-jurídico
europeu no
pensamento jurídico brasileiro, a lição de Reale, Nova Fase, p. 219.
(16) Assim, Pontes de Miranda/Fontes, p. 377 e Couto e
Silva/Perspectiva,
p. 137. (p. 39)
É necessário, igualmente, que se identifique que conseqüências
jurídicas se originaram, nos ordenamentos jurídicos de quase todos
os povos europeus e também entre nós, da aceitação desta concepção
clássica de contrato (1.3).

1.2 Origens da concepção tradicional de contrato

A concepção tradicional de contrato, segundo frisamos, está


intimamente ligada a idéia de autonomia da vontade, eis porque é
possível identificar suas origens analisando a evolução deste dogma
basilar do direito. Segundo doutrinadores franceses,{17} quatro são as
principais origens da doutrina da autonomia da vontade no direito:

a) O direito canônico - O direito canônico contribuiu decisiva-


mente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e,
portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender a validade e
a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito
do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana.{18}
O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato
do homem. É o direito canônico que vulgariza a fórmula ex nudo pacto
nascitur. Para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava
uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo. Assim,
livre do formalismo excessivo do direito romano, o contrato se
estabelece como um instrumento abstrato e como uma categoria
jurídica.{19}
* (17) Assim Weill/Terré, p. 50 sobre as origens da doutrina da
autonomia da
vontade.
(18) Segundo Puig Peña, p. 2, o pactum ou conventio, no direito
romano,
significava um simples acordo que por si só não gerava uma actio, nem
vínculo obrigacional, sendo necessário um plus (causa civilis) para se
transformar em contractus: a forma especial, ou mais tarde, a execução
por
uma das partes. De outro lado, se Roma possuía um conceito mais objetivo
de contrato e diferenciado do atual, isto não impede que alguns doutrina-
dores visualizem na relação de forças entre o disposto na lex e as
instituições do ius (incluindo aqui os atos jurídicos) um conceito de
autonomia privada bastante semelhante ao atual, como espaço reservado
para a auto-determinação dos indivíduos, veja a controvérsia em Frezza,
p.
481 e Carressi, p. 265.
(19) Assim concluem também Mazeaud/Mazeaud/Chabas, p. 53. (p. 40)

b) A teoria do direito natural - É na teoria do direito natural


que
encontramos, porém, a base teórico-filosófica mais importante na
formação dos dogmas da concepção clássica: a autonomia da vontade
e a liberdade contratual. Como ensina Reale,{20} à luz do Direito
Natural,
especialmente devido às idéias de Kant, a pessoa humana tornou-se um
ente de razão, uma fonte fundamental do direito, pois, é através de seu
agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza. Kant{21}
chegaria
mesmo a afirmar que a autonomia da vontade seria "o único princípio
de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem". Estas
idéias de Kant tiveram muita influência na Alemanha à época da
sistematização do direito e serão uma das bases da Willenstheorie,{22}
para a qual a vontade interna, manifestada sem vícios, é a verdadeira
fonte do contrato, a fonte que legitima os direitos e obrigações daí
resultantes, os quais devem ser reconhecidos e protegidos pelo direito.
Para Wieacker,{23} os pandectistas do século XIX, ao
sistematizarem
a ciência do direito e os conceitos jurídicos, basearam-se na ética da
liberdade - e do dever de Kant. Para este famoso historiador do direito,
é na ideologia do jusnaturalismo que vamos encontrar a fonte do que
ele chama "paixão burguesa pela liberdade". Efetivamente, é no direito
natural que encontramos a base do dogma da liberdade contratual, uma
vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do
homem, liberdade esta que só poderia ser restringida pela vontade
(Wille) do próprio homem.{24} O próprio Kant{25} afirmada que as pessoas
* (20) Reale/Nova, p. 61.
(21) Kant, "Kritik der Praktischen Vernunft" apud Reale/Nova, p.
60.
(22) Assim concluem tb. Zweigert/Koetz, p. 8.
(23) Wieacker, p. 280.
(24) Concordam igualmente Zweigert/Koetz, p. 8, em interessante
estudo. Ernst
Wolf relembra que o § 823 do BGB ao citar os bens e valores, os quais
lesados originam a pretensão de ressarcimento por ato ilícito no direito
alemão, inclui "a liberdade", como interesse e direito natural do homem.
Wolf, Ernst, "Vertragsfreiheit - eine Illusion?", FSKeller, p. 360.
(25) Kant/Grundlegung zur Methaphysik der Sitten, p. 375: "Man
sah den
Menschen Durch seine Pflicht an Gesetze gebunden, man liess es sich aber
nicht einfailen, dass er nur seiner eigenen und dennoch allgemeinen
Gesetsgebung unterworíen sei, und dass er nur verbunden sei, seinen
eigenen, den Naturzweck nach aber allgemeinen gesetzgebenden Willen
gemaess zu handeln". (p. 41)
só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão, no caso, o
contrato. Wieacker chega a considerar o jusnaturalismo, com as
influências por ele recebidas da tradição católica, como a força mais
poderosa no desenvolvimento do direito, depois do Corpus Iuris
Civile.{26} Mas não só as teorias ético-jurídicas tiveram influência na
formação de concepção clássica de contrato, também as teorias de
ordem política e econômica ajudaram a moldá-la.

c) Teorias de ordem política e a revolução francesa - Já se


afirmou
que o direito moderno nasce com a Revolução Francesa,{27} neste sentido
queremos destacar a influência que a famosa teoria do contrato social
exerceu sobre o direito contratual. Esta teoria de Rousseau lança a idéia
do contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organi-
zada, isto é, o Estado. Aqui vamos reencontrar o dogma da vontade livre
do homem, pois, segundo esta revolucionária teoria francesa, a auto-
ridade estatal tem o seu fundamento no consentimento dos sujeitos de
direito, isto é, os cidadãos. Suas vontades se unem (em contrato) para
formar a sociedade, o Estado como hoje o conhecemos. Nas palavras
célebres de Rousseau: "Já que nenhum homem possui uma autoridade
natural sobre o seu semelhante, e uma vez que a força não produz
nenhum direito, restam, portanto, os contratos (as convenções) como
base de toda a autoridade legítima no meio dos homens".{28}
Note-se que também aqui está presente a idéia de renúncia à parte
da liberdade individual. É necessário renunciar através do contrato
social, mas a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O
contrato é, assim, não só a fonte das obrigações entre indivíduos, ele
é a base de toda a autoridade. Mesmo o Estado retira sua autoridade
de um contrato, logo a própria lei estatal encontra aí sua base. O
contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que
vale porque deriva de um contrato. O contrato, tornando-se um a priori
do direito, revela possuir uma base outra, uma legitimidade essencial
* (26) Wieacker, p. 297.
(27) Assim Reale/Nova, p. 73.
(28) Nas palavras originais, Rousseau, p. 45, L. I., Cap. IV:
"puisque aucun
homme n’a une autorité naturelle sur son semblable, et puisque la force
ne
produit aucun droit, restent donc les conventions pour base de toute
autorité
légitime parmi les hommes". (p. 42)
e autônoma em relação às normas: a vontade dos cidadãos.{29} A teoria
do contrato social conduz, portanto, à idéia de importância da vontade
do homem.{30}
Destaque-se, por fim, a maior realização da Revolução Francesa
no campo do Direito Civil, o Código Civil Francês de 1804. O Code
Civil, elaborado na época napoleônica, conjuga as influências indivi-
dualistas e voluntaristas da época com as idéias do Direito Natural
Moderno: tendo, segundo Reale,{31} remota fonte hobbesiana. Marco da
história do direito, esta codificação, que influenciada grande parte dos
ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu
sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art.
1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para
aqueles que as fizeram.{32} Esta visão extremamente voluntarista do
direito contratual influenciará várias codificações, inclusive a nossa,
moldando para sempre a concepção clássica de contrato.

d) Teorias econômicas e o Liberalismo - As teorias econômicas


do século XVIII, em resposta ao corporativismo e as limitações
impostas pela igreja católica, propõem a liberdade como panacéia
universal.{33} Para estas teorias, é basicamente necessária a livre movi-
mentação das riquezas na sociedade.{34}
Uma vez que o contrato é o instrumento colocado à disposição
pelo direito para que esta movimentação aconteça, defendem a neces-
* (29) Assim Puig Peña, p. 3. Já o mestre alemão
Coing/Rechtsphilosophie, p. 33,
observa que exatamente neste momento, o homem (Menschen) volta a ser
visto como cidadão (Bürger) e o direito dos homens (direito natural) vai
cedendo espaço para o direito dos cidadãos (direito civil ou bürgerliches
Recht, em alemão), direito dos iguais na sociedade civil.
(30) Assim Weil/Terré, p. 51.
(31) Reale, Nova Fase, p. 87 e Villey, p. 683.
(32) No original: "Art. 1.134 - Les conventions légalment formées
tiennet lieu
de li à ceux qui les ont faites", nossa tradução no texto foi
influenciada por
aquela de Reale, Nova Fase, p. 90, veja também sobre o sistema contratual
do Code Civil, Morin, Révolte, p. 13 a 17.
(33) Kramer/Krise, p. 22.
(34) Veja Amaral, Autonomia, p. 26 e tb. o excelente Atiyah, p.
277, o qual
destaca a importância da idéia de propriedade privada, a possibilitar
essa
liberdade de trocas de mercadorias na sociedade. (p. 43)
sidade da liberdade contratual. Acreditava-se, na época, que o contrato
traria em si uma natural eqüidade, proporcionaria a harmonia social e
econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual. O contrato seria
justo e eqüitativo por sua própria natureza. Na expressão da época: "Qui
dit contractuelle, dit juste".{35}
O modelo do synalagma serve como base para esta visão econô-
mica do contrato, a qual reafirmará ser este precipuamente um
instrumento de troca do "inútil" pelo "útil", visando a realização de
interesses individuais daqueles que contrataram. Note-se aqui uma
dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação
das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de
mercado de cada objeto cedido (sua nova "utilidade"). Evolui-se, assim,
para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos,
mas sim uma troca de valores.{36}
No século XIX, auge do Liberalismo, do chamado Estado Moder-
no, coube a teoria do direito dar forma conceitual ao individualismo
econômico da época, criando a concepção tradicional de contrato,{37} em
consonância com os imperativos da liberdade individual e principal-
mente do dogma máximo da autonomia da vontade.{38}

1.3 Reflexos da teoria contratual e do dogma da autonomia da vontade

A doutrina da autonomia da vontade considera que a obrigação


contratual tem por única fonte a vontade das partes. A vontade humana
é assim o elemento nuclear, a fonte e a legitimação da relação jurídica
contratual e não a autoridade da lei. Sendo assim, é da vontade que se
origina a força obrigatória dos contratos, cabendo à lei simplesmente
colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumpri-
mento das promessas e limitar-se a uma posição supletiva. A doutrina
da autonomia da vontade terá também outras conseqüências jurídicas
* (35) Assim Koendgen, p. 119, segundo Ghestin, "L’utile", p. 36 a
expressão é
de Fouillée, veja em português Schwab/Ajuris 39, p. 17 "quem diz
contratual, diz justo".
(36) Assim conclui tb. Poughon, pp. 54 e ss.
(37) Veja detalhes na tese de Lobo, pp. 35 e ss. e em Bessone,
Natura ideologica,
p. 945.
(38) Assim também, excelente, Reale, Nova Fase, p. 91. (p. 44)
importantes como a necessidade do direito assegurar que a vontade
criadora do contrato seja livre de vícios ou de defeitos, nascendo aí a
teoria dos vícios do consentimento. Acima de tudo o princípio da
autonomia da vontade exige que exista, pelo menos abstratamente, a
liberdade de contratar ou de se abster, de escolher o parceiro
contratual,
o conteúdo e a forma do contrato. É o famoso dogma da liberdade
contratual.
Vejamos, portanto, em detalhes estas conseqüências e reflexos no
mundo do direito da aceitação da doutrina da autonomia da vontade:

a) A liberdade contratual - A idéia de autonomia de vontade está


estreitamente ligada a idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio
indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual
significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar,
liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e
os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir
a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção
do direito.
Para alguns novos autores alemães,{39} os dogmas da autonomia da
vontade e da liberdade contratual deveriam ter o mesmo nível e
importância na caracterização da teoria tradicional do contrato. Evitan-
do teorizar se o dogma da liberdade contratual teria sua origem na
doutrina da autonomia da vontade ou não, eles preferem uma análise
funcional da teoria contratual, destacando que o contrato é, para o
liberalismo econômico do século XIX, um dos mais importantes
institutos jurídicos, pois instrumentaliza a movimentação de riquezas
na sociedade. Para estes autores,{40} a idéia de liberdade contratual
preencheu três importantes funções à época do liberalismo, momento
de maturação da concepção tradicional de contrato. De um lado
permitia que os indivíduos agissem de maneira autônoma e livre no
mercado, utilizando assim de maneira optimal as potencialidades da
economia, baseada em um mercado livre, e criando, assim, outra
importante figura: a livre concorrência. De outro lado, nesta economia
livre e descentralizada, deveria ser assegurado a cada contraente a
* (39) Assim os comparatistas famosos, Zweigert/Koetz, p. 9, o
respeitado
comentário do BGB, Kramer/Muenchener, p. 1090 e a Habilitationsschrift
de Koendgen, p. 119.
(40) Koendgen, p. 119 a Kramer/Muenchener, p. 1091. (p. 45)
maior independência possível para se auto-obrigar nos limites que
desejasse, ficando apenas adstrito à observância do princípio máximo:
pacta sunt servanda. Koendgen{41} destaca aqui, que esta ampla liberdade
de contratar pressupõe juridicamente a aceitação de que a obrigação
assumida é limitada a determinado ato e em determinado espaço de
tempo. Ganha, assim, importância para o direito o consenso, a vontade
de indivíduo, o Conteúdo e os limites desta vontade, interna ou
declarada. A terceira função do dogma da liberdade contratual pode ser
denominada como função "protetora". Na visão liberal, o Estado
deveria abster-se de qualquer intervenção nas relações entre indivíduos.
Assim, se o indivíduo era livre e tinha a possibilidade de se auto-
obrigar, tinha direito também de defender-se contra a imputação de
outras obrigações para as quais não tenha manifestado a sua vontade.
Como se observa, mesmo nesta exposição alternativa do dogma
da liberdade contratual este aparece intrinsecamente ligado à autonomia
da vontade, pois é a vontade, que, na visão tradicional, legitima o
contrato e é fonte das obrigações, sendo a liberdade um pressuposto
desta vontade criadora, uma exigência, como veremos, mais teórica do
que prática.
Preferimos aqui destacar os reflexos que ambos os dogmas
tiveram na teoria contratual tradicional, assim temos, por exemplo, o
princípio da liberdade de forma das convenções, o da livre estipulação
de cláusulas e a possibilidade de criar novos tipos de contratos, não
tipificados nos Códigos.
Na teoria do direito, a liberdade contratual encontra um
obstáculo
somente: as regras imperativas que a lei formula.{42} Mas no direito
contratual tradicional estas regras são raras e têm como função
justamente proteger a vontade dos indivíduos, como, por exemplo, as
regras sobre capacidade. No mais, as normas legais restringem-se a
fornecer parâmetros para a interpretação correta das vontades das partes
e a oferecer regras supletivas para o caso dos contratantes não
desejarem regular eles mesmos determinados pontos da obrigação
assumida, como, por exemplo, as regras sobre o lugar e o tempo do
pagamento.
* (41) Koendgen, pp. 119 e 120.
(42) Assim Carbonnier, p. 146 e Weil/Terré, p. 53. (p. 46)

b) A força obrigatória dos contratos - Se, para a concepção


clássica de contrato, a vontade é o elemento essencial, a fonte, a
legitimação da relação contratual; se, como vimos, até mesmo a
sociedade politicamente organizada tem sua fonte em um contrato
social; se o homem é livre para manifestar a sua vontade e para aceitar
somente as obrigações que sua vontade cria; fica claro que, por trás da
teoria da autonomia da vontade, está a idéia de superioridade da
vontade sobre a lei.{43} O direito deve moldar-se à vontade, deve
protegê-
la e reconhecer a sua força criadora. O contrato, como diz o art. 1.134
do Código Civil francês, será a lei entre as partes. A própria lei,
oriunda
do Estado, vai buscar o seu poder vinculante na idéia de um contrato
entre todos os indivíduos desta sociedade. A vontade é, portanto, a força
fundamental que vincula os indivíduos.
À idéia de força obrigatória dos contratos significa que uma vez
manifestada a vontade as partes estão ligadas por um contrato, têm
direitos e obrigações e não poderão se desvincular, a não ser através
de outro acordo de vontade ou pelas figuras da força maior e do caso
fortuito (acontecimentos fáticos incontroláveis pela vontade do ho-
mem). Esta força obrigatória vai ser reconhecida pelo direito e vai se
impor frente à tutela jurisdicional. Ao juiz não cabe modificar e adequar
à eqüidade a vontade das partes, manifestada no contrato, ao contrário,
na visão tradicional, cabe-lhe respeitá-la e assegurar que as partes
atinjam os efeitos queridos pelo seu ato. Lembre-se por último que,
como corolário da liberdade e autonomia da vontade, a força obriga-
tória dos contratos fica limitada às pessoas que dele participaram,
manifestando a sua vontade (inter partes).

c) Os vícios do consentimento - Do dogma da autonomia da


vontade, como elemento criador das relações contratuais, retira-se o
postulado que só a vontade livre e consciente, manifestada sem
influências externas coatoras, deverá ser considerada pelo direito. Aqui,
portanto, a base da teoria dos vícios do consentimento, presente no
Código Civil brasileiro, nos arts. 86 a 113. Se na formação do contrato
estiver viciada a vontade de uma das partes, o negócio jurídico é
passível de anulação. Como se vê, a validade (e a eficácia) jurídica do
contrato mais uma vez dependem da vontade criadora. A própria
* (43) Assim concluem Weil/Terré, p. 55. (p. 47)
escolha, no art. 147, II do CC, da figura da anulabilidade rende
homenagem a autonomia da vontade, pois ao contrário da nulidade, que
deve ser declarada ex officio pelo juiz, a anulabilidade só repercutirá
na validade e eficácia do ato se for manifestado o interesse das partes
neste sentido e antes da prescrição da ação.
Ao direito interessava, portanto, identificar qual vontade serve
de fonte e legitimação do contrato, se a vontade interna (posição
defendida pela Willenstheorie) ou se a vontade declarada (posição
defendida pela Erklärungstheorie).{44} Apesar da grande influência
exercida por Savigny, defendendo a prevalência da vontade interna,
os códigos se dividiram, especialmente o Código Civil Alemão (BGB)
de 1900, de um lado aceitando a figura do erro e de outro,
preocupados com a segurança e a estabilidade das relações jurídicas
e a proteção do terceiro de boa-fé, confirmando o conteúdo do que
foi efetivamente declarado.{45}
Ainda quanto às conseqüências do dogma da autonomia da
vontade, cabe destacar que se o consentimento viciado não obriga o
indivíduo, o consentimento livre de vícios o obriga de tal maneira que
mesmo sendo o conteúdo do contrato injusto ou abusivo, não poderá
ele, na visão tradicional, recorrer ao direito a não ser em casos
especialíssimos de lesão.{46} Os motivos que levaram o indivíduo a
contratar, suas expectativas originais, são irrelevantes.
Nas discussões do fim do século XIX, no início do século XX,
sobre a prevalência da vontade interna ou da vontade declarada
encontra-se já a semente da nova concepção de direito dos contratos.
É a discussão entre a visão filosófica e metafísica do contrato e uma
visão mais social ou funcional do processo. Vejamos, portanto, como
a posterior evolução da sociedade, com a revolução industrial e
massificação do consumo, acentuou ainda mais esta discrepância entre
o que os norte-americanos, corretamente, denominam law-in-the-books
e law-in-action.{47}
* (44) Veja Nery, pp. 8 a 15.
(45) Sobre a posição de compromisso dos §§ 116 e seguintes do
BGB, veja
Koendgen, p. 3.
(46) Veja sobre a lesão e cláusula rebus sic stantibus. Couto e
Silva/RT, p. 7 e
a obra específica de Caio M. da Silva Pereira.
(47) Expressão de Friedman, apud Koendgen, p. 2. (p. 48)

2. A nova realidade contratual

2.1 Noções preliminares: Os contratos de massa

Na concepção tradicional de contrato, a relação contratual seria


obra de dois parceiros em posição de igualdade perante o direito e a
sociedade, os quais discutiriam individual e livremente as cláusulas de
seu acordo de vontade. Seria o que hoje denominaríamos de contratos
paritários ou individuais.{48} Contratos paritários, discutidos
individual-
mente, cláusula a cláusula, em condições de igualdade e com o tempo
para tratativas preliminares, ainda hoje existem, mas em número muito
limitado e geralmente nas relações entre dois particulares (consumido-
res), mais raramente, entre dois profissionais e somente quando de um
mesmo nível econômico.
Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de
distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersona-
lizou{49} e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados,
predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e
consumidores.{50} Dentre as técnicas de conclusão e disciplina dos
chamados contratos de massa, destacaremos, neste estudo, os contratos
de adesão e as condições gerais dos contratos ou cláusulas gerais
contratuais.
Como se observa na sociedade de massa atual, a empresa ou
mesmo o Estado, pela sua posição econômica e pelas suas atividades
de produção ou de distribuição de bens ou serviços, encontram-se na
iminência de estabelecer uma série de contratos no mercado. Estes
contratos são homogêneos em seu conteúdo (por exemplo, vários
contratos de seguro de vida, de compra e venda a prazo de bem móvel),
mas concluídos com uma série ainda indefinida de contratantes. Logo,
por uma questão de economia, de racionalização, de praticidade e
mesmo de segurança, a empresa predispõe antecipadamente um esque-
* (48) Em nosso trabalho O Controle Judicial das Cláusulas
Abusivas nos
Contratos de Consumo usamos o termo contratos paritários, já Alpa, em "Le
contrat "individuel" et sa définition", Rev. int. dir. comp. 1988, 327,
prefere
a expressão contrato individual.
(49) Assim Pasqualotto/RT, p. 55.
(50) Assim tb. Roppo, p. 313. (p. 49)
ma contratual, oferecido à simples adesão dos consumidores, isto é,
pré-redige um complexo uniforme de cláusulas, que serão aplicáveis
indistintamente a toda esta série de futuras relações contratuais.
Alguns comparam esta predisposição do texto contratual a um
poder paralelo de fazer leis e regulamentos privados (lawmaking
power).{51} Poder este que, legitimado pela economia e reconhecido pelo
direito, acabaria por desequilibrar a sociedade, dividindo os seus
indivíduos entre aqueles que detêm a posição negocial de elaboradores
da "lex" privada e os que a ela se submetem, podendo apenas aderir
a vontade manifestada pelo outro contratante.
Certo é que os fenômenos da predisposição de cláusulas ou
condições gerais dos contratos e do fechamento de contratos de adesão
tornaram-se inerentes à sociedade industrializada moderna: em espe-
cial, nos contratos de seguros e de transportes já se observa a
utilização
destas técnicas de contratação desde o século XIX.{52} Hoje, elas
dominam quase todos os setores da vida privada, onde há superioridade
econômica ou técnica entre os contratantes, seja nos contratos das
empresas com seus clientes, seja com seus fornecedores, seja com seus
assalariados.{53}
Note-se que estas novas técnicas contratuais, de pré-elaboração
unilateral do conteúdo do contrato, também são utilizadas por empresas
públicas ou concessionárias de serviços públicos (por exemplo, no
fornecimento de água, luz, serviços de transporte, correios,
telefonia).{54}
* (51) Veja sobre a discussão proposta, Bessone, Natura
Ideologica, pp. 947-951;
o tema da natureza das cláusulas predispostas e dos contratos por adesão,
se predominantemente normativos ou voluntários, já foi objeto de vários
estudos, entre os quais destacam-se as obras pioneiras de Saleilles e
Raiser.
A doutrina atual aceita o caráter contratual, privado e voluntário do
negócio
jurídico concluído através da utilização dessas novas técnicas
contratuais,
o que não invalida a discussão proposta, pois como lembra Calais-Auloy,
p. 121, a legitimação e o reconhecimento de um "poder regulamentador"
a ser atribuído a determinados agentes sociais é fenômeno conhecido no
direito público.
(52) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 21 (Einl. 7), lembrando que
Raiser
visualizava os primórdios destas técnicas já no séc. XV (?).
(53) Assim o mestre francês Calais-Auloy, p. 141.
(54) Veja a excelente exposição sobre o tema do mestre italiano
Alpa/Diritto,
pp. 185 e ss. (p. 50)
Também em matéria de contratos de trabalho, as técnicas de contratar
em massa são utilizadas.{55} A análise dos contratos de trabalho, porém,
escapa aos limites deste estudo. A nós interessa especialmente as
relações contratuais entre consumidores e seus fornecedores de bens ou
serviços, sejam pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas,
segundo as definições dos arts. 2º e 3º do novo Código de Defesa do
Consumidor.
Por fim cabe lembrar que nas relações de massa nem sempre os
contratos serão feitos por escrito, pois ao lado dos contratos de adesão,
expressos em formulários, existem os contratos orais, a aceitação
através das chamadas condutas sociais típicas{56} os simples recibos, os
tickets de caixas automáticas.{57} Em nosso estudo, todos estes fenôme-
nos devem ser levados em conta.
A prefixação de todo o conteúdo do contrato, ou de parte deste,
de maneira unilateral e uniforme por só uma das partes contratantes não
passou despercebida aos estudiosos do Direito, existindo duas expres-
sões para descrever esta realidade. De um lado prefere a doutrina
germânica a expressão "condições gerais dos contratos", ou na tradução
de Portugal "cláusulas gerais contratuais", de outro, a doutrina francesa
utiliza a expressão "contratos de adesão".
Note-se que a expressão "condições gerais dos contratos" enfatiza
mais a fase pré-contratual, onde são elaboradas estas listas independen-
tes de cláusulas gerais a serem oferecidas ao público contratante,
enquanto utilizando a expressão contrato de adesão a doutrina francesa
destaca o momento de celebração do contrato, dando ênfase à vontade
criadora do contrato, vontade esta que somente adere à vontade já
manifestada do outro contratante.
Poderíamos chegar à conclusão que os dois conceitos possuem o
mesmo conteúdo, visualizado de momentos diferentes. Esta conclusão,
porém, é apenas superficial e por sua simplificação não serve ao
objetivo de nosso estudo, que é analisar estas modernas técnicas, as
* (55) Veja sobre o tema Gomes/transformações, pp. 178 e ss.
(56) A expressão é de Larenz/AT, p. 471 (§ 28, II).
(57) Veja o interessante artigo de Koehler sobre a problemática
da contratação
automatizada, muito em voga na Europa, tratando também da prestação de
serviços através de robôs e computadores. (p. 51)
quais abrangem tanto os contratos de massa por escrito como os
contratos orais ou não escritos.{58}
Neste sentido, para dar maior clareza à exposição, vamos inici-
almente acatar a diferenciação feita pela Comissão das Comunidades
Européias{59} entre contratos de adesão e contratos submetidos a
condições gerais. Como contratos de adesão entenderemos restritiva-
mente os contratos por escrito, preparados e impressos com anteriori-
dade pelo fornecedor, nos quais só resta preencher os espaços referentes
à identificação do comprador e do bem ou serviços, objeto do contrato.
Já por contratos submetidos a condições gerais dos negócios entende-
remos aqueles, escritos ou não escritos, em que o comprador aceita,
tácita ou expressamente, que cláusulas, pré-elaboradas unilateral e
uniformemente pelo fornecedor para um número indeterminado de
relações contratuais, venham a disciplinar o seu contrato específico.
Típico aqui seriam os contratos de transporte, contratos de administra-
ção de imóveis e mesmo alguns contratos bancários.
As expressões condições gerais dos contratos e contratos de
adesão não são, portanto, sinônimas, mas, segundo a doutrina e a lei
alemã,{60} a expressão condições gerais pode englobar todos os contratos
de adesão com formulários impressos, contratos modelo e os contratos
autorizados ou ditados pelos órgãos públicos, pois estes também são
compostos por cláusulas pré-elaboradas unilateral e uniformemente
pelos fornecedores, com a única diferença que nestes casos as condi-
ções gerais estão inseridas no próprio texto do contrato e não em anexo.
Eis porque muitos autores utilizam indistintamente os termos.{61}
Neste estudo, vamos tratar separadamente os temas para que se
possa estudar os aspectos individuais de cada técnica de contratação
em massa. Assim, analisaremos no primeiro título os contratos de
adesão, reservando o segundo título para o estudo das chamadas
condições gerais dos contratos.
* (58) Concorda tb. Nery/Anteprojeto, p. 292, retirando, porém,
outras conclusões.
(59) Em seu Bulletin des Communautés Européennes Supplément 1/84,
p. 6,
item 10.
(60) Veja o parágrafo primeiro da lei alemã (AGBG) e
Ulmer/Brandner/Hensen,
p. 95, nota 66.
(61) Os autores argentinos costumam denominar "contratos por
adhesión a
condiciones generales", pois o contrato de adesão está integrado por
cláu-
sulas, e estas cláusulas são condições gerais, veja Stiglitz/Stiglitz, p.
52. (p. 52)
Hoje, estas novas técnicas contratuais são indispensáveis ao
moderno sistema de produção e de distribuição em massa, não havendo
como retroceder o processo e eliminá-las da realidade social. Elas
trazem vantagens evidentes para as empresas (rapidez, segurança,
previsão dos riscos, etc.), mas ninguém duvida de seus perigos para os
contratantes vulneráveis ou consumidores. Estes aderem sem conhecer
as cláusulas, confiando nas empresas que as pré-elaboraram e na
proteção que, esperam, lhes seja dada por um Direito mais social.{62}
Esta
confiança nem sempre encontra correspondente no instrumento contra-
tual elaborado unilateralmente, porque as empresas tendem a redigi-los
da maneira que mais lhe convém, incluindo uma série de cláusulas
abusivas e inequitativas.{63}
Nesta segunda edição, parece-nos útil incluir, além de uma
análise
dos métodos ou técnicas de contratação de massa, uma análise, ainda
que preliminar, das atuais relações contratuais complexas, por alguns
chamadas de "pós-modernas". Esta nova realidade aliaria os métodos
conhecidos de contratação de massa a relações complexas de longa
duração, envolvendo serviços, uma cadeia de fornecedores organizados
internamente e com uma característica determinante; a posição de
catividade dos clientes-consumidores. Denominaremos este fenômeno
de "contratos cativos de longa duração", face a incerteza que cerca o
movimento pós-moderno e sua eventual importância na ciência do
direito, e face também a nossa opinião pessoal de que a nova teoria
contratual, como aqui vamos analisá-la, e as linhas "modernas" e
científicas de defesa dos interesses dos consumidores são suficientes
e aptas a fornecer respostas eqüitativas a essa nova realidade
contratual,
já vislumbrada no mercado.

2.2 Os contratos de adesão

a) Descrição do fenômeno - Contrato de adesão é aquele cujas


cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual
economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur, isto é, sem que
* (62) Neste sentido vale lembrar a conclusão de Mallinvaud, p.
50, que o Direito
do Consumidor teria como função "restabelecer nas relações contratuais o
equilíbrio", logo a mesma função que visualisamos no novo direito dos
contratos (veja nesse Capítulo, o título 4).
(63) No mesmo sentido Calais/Auloy, p. 143. (p. 53)
o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancial-
mente o conteúdo do contrato escrito.{64}
O contrato de adesão é oferecido ao público em um modelo
uniforme, geralmente impresso, faltando apenas preencher os dados
referentes à identificação do consumidor-contratante, do objeto e do
preço. Assim, aqueles que, como consumidores, desejarem contratar
com a empresa para adquirirem bens ou serviços já receberão pronta
e regulamentada a relação contratual, não poderão efetivamente discu-
tir, nem negociar singularmente os termos e condições mais importan-
tes do contrato.
Desta maneira, limita-se o consumidor a aceitar em bloco (muitas
vezes sem sequer ler completamente) as cláusulas, que foram unilateral
e uniformemente pré-elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um
papel de simples aderente à vontade manifestada pela empresa no
instrumento contratual massificado.{65} O elemento essencial do contrato
de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial, a falta de
um debate prévio das cláusulas contratuais e sim, a sua predisposição
unilateral, restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou
rejeitar o contrato, não podendo modificá-lo de maneira relevante. O
consentimento do consumidor manifesta-se por simples adesão ao
conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços.
Podemos destacar como características do contrato de adesão: 1)
a sua pré-elaboração unilateral; 2) a sua oferta uniforme e de caráter
geral, para um número ainda indeterminado de futuras relações con-
tratuais; 3) seu modo de aceitação, onde o consentimento se dá por
simples adesão à vontade manifestada pelo parceiro contratual econo-
micamente mais forte.
O fenômeno dos contratos de adesão é cada vez mais comum
na experiência contemporânea, produzindo-se em múltiplos domínios
como, por exemplo, o dos seguros, o dos planos de saúde, o das
operações bancárias, o da venda e aluguel de bens. Também as
empresas públicas e as concessionárias de serviços públicos empre-
gam esta técnica de contratação em massa. O Poder Público utiliza-
se de contratos de adesão nas suas relações diretas com os consu-
* (64) Veja Bricks, p. 5, sobre as criticas a esta expressão veja,
por todos, Nery,
Anteprojeto, p. 288.
(65) Assim Roppo, pp. 311 e 312. (p. 54)
midores de seus serviços e, na maioria das vezes, predispõe as
cláusulas dos contratos que serão oferecidos pelos concessionários
aos consumidores.{66}
Em regra os contratos de adesão são elaborados pelo próprio
fornecedor-ofertante, mas também existem contratos oferecidos à
adesão, cujo conteúdo deriva de recomendações ou imposições de
associações profissionais. Neste caso a doutrina francesa os denomi-
nava de "contratos-tipo" (contrats-types), pois a imposição é como se
fosse um regulamento que restringe a liberdade dos membros daquela
profissão, hoje a expressão é utilizada quase como um sinônimo de
contrato de adesão.{67}
Também a lei ou um regulamento administrativo pode "ditar" o
conteúdo de um determinado contrato, neste caso são denominados
"contratos dirigidos" ou contratos "ditados", como por exemplo, no
Brasil, os contratos oferecidos por administradoras de consórcios,
ditados através de Portaria Ministerial.
A expressão contrats d’adhesion costuma ser atribuída ao profes-
sor francês Raymond Saleilles, em sua obra do início do século, o qual
pretendia destacar através desta denominação que nestes contratos
somente uma vontade predomina, a que dita a sua "lei", dita o conteúdo
do contrato não mais a um individuo somente, mas a uma coletividade
indeterminada de pessoas, as quais vão se limitar a aderir à sua vontade.
Para o autor francês, o contrato de adesão se aproxima de uma
declaração unilateral de vontade, aproxima-se mesmo da lex romana,
do regulamento, devendo esta característica ser levada em conta quando
da interpretação dos contratos.{68}
Realmente, no contrato de adesão não há liberdade contratual de
definir conjuntamente os termos do contrato, podendo o consumidor
somente aceitá-lo ou recusá-lo. É o que os doutrinadores anglo-
americanos denominam contrato em uma take-it-or-leave-it basis.{69}
Sendo assim, por muito tempo discutiu a doutrina o caráter
contratual ou não dos contratos de adesão. Para alguns, por sua
* (66) Veja a excelente exposição sobre o tema do mestre
brasileiro Gomes,
Transformações. Contratos, p. 15.
(67) Assim ensina Ghestin, Clauses Abusives, p. IX.
(68) Veja por todos Nery, Anteprojeto, p. 288.
(69) Assim Cheshire and Fifoot’s, Contract, p. 21. (p. 55)
estrutura pré-elaborada unilateralmente, por suas características que
eliminam a fase de discussão pré-contratual, estes contratos se apro-
ximariam dos atos de direito público, dos atos regulamentares. Para
outros não haveria um real acordo de vontades, mas sim um ato
unilateral.
Hoje a doutrina é unânime em aceitar o caráter contratual dos
contratos de adesão (veja título 3). Trata-se de um acordo de vontades
representado pela adesão, não sendo essencial ao contrato que seu
conteúdo seja discutido cláusula a cláusula em uma fase preliminar,
assim também a igualdade de forças dos contratantes não é essencial.
Mesmo existindo, na prática, um desigual poder de barganha (unequal
bargaining power){70}, não se deve negar o caráter contratual do contrato
de adesão (ou por adesão), pois a manutenção do vínculo, na maioria
das vezes, beneficia o contratante mais fraco, deve-se sim criar normas
e uma disciplina específica adaptada às suas características especiais
e que permita um controle efetivo da eqüidade contratual. Passemos,
pois, ao exame da formação deste vínculo contratual.

b) A formação do vínculo - Enquanto não houver a manifestação


de vontade do consumidor, o simples modelo pré-elaborado do contrato
de adesão não passa, na feliz expressão alemã, de um pedaço de papel
(Stück Papier).{71} O consentimento do consumidor, a sua adesão, é que
provoca o nascimento do contrato, a concretização do vínculo contra-
tual entre as partes.
Declaração de vontade - Uma vez que nos contratos de adesão
o consumidor tem de aceitar em bloco as cláusulas preestabelecidas
pelo fornecedor, na maioria das vezes, o consumidor sequer lê com-
pletamente o instrumento contratual ao qual vai aderir. Modernamente,
porém, considera-se que exista um dever de transparência nas relações
de consumo. Assim, o consumidor deve ser informado, pelo menos,
deve ter a oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do
contrato. Além do que deverá o contrato de adesão ser redigido de tal
forma a possibilitar a sua compreensão pelo homem comum.
* (70) Veja Bessone, Law of Contract, p. 499, tb. Calais-Auloy,
Clauses Abusivcs,
p. 155.
(71) Preferindo utilizar a expressão com exclusividade para as
"condições gerais
dos contratos", veja Nery, Anteprojeto, p. 292. (p. 56)
Os contratos de adesão são contratos escritos e, portanto, o
consentimento do consumidor seguirá esta forma. Os contratos de
adesão, geralmente, apresentam-se em formulários impressos, sendo
hoje também comum os elaborados por computadores, o que não os
descaracteriza.
Note-se que pelas suas próprias características o contrato de
adesão exige somente a capacidade dos parceiros contratuais, o con-
sentimento se dá por adesão a uma vontade manifestada de maneira
complexa no instrumento contratual, sendo a figura do erro totalmente
irrelevante. Para alguns autores da escola francesa poderia haver no
contrato de adesão um permanente vício do consentimento, a coação.
Esclareça-se que para alguns doutrinadores desta escola só se poderia
falar em contrato de adesão quando o fornecedor se encontrasse em
posição de monopólio de fato ou de direito, logo, como que forçando
o consumidor a contratar.{72} Tal análise, porém, peca pelo exagero, pois
uma liberdade de contratar ou não, ainda que mínima, geralmente
persiste. O que há é uma superioridade econômica e social, a qual pode
levar facilmente a abusos.
Interpretação - A interpretação dos contratos de adesão mereceu
especial atenção da doutrina desde a sua identificação como método
de contratação no início do século. A regra geral é que se interprete
o contrato de adesão, especialmente as suas cláusulas dúbias, contra
aquele que redigiu o instrumento. É a famosa interpretação contra
proferentem{73} presente tanto nas normas do Código Civil Brasileiro
(art. 423).
Outra linha mestra da interpretação dos contratos de adesão é a
da prevalência das cláusulas acertadas individualmente sobre aquelas
impressas ou uniformes. Sendo assim, se alguma cláusula estiver
escrita à máquina ou à mão, pressupõe-se que esta derive de uma
discussão individual, de um acordo de vontades sobre aquele ponto
específico da relação contratual, devendo prevalecer e derrogar as
outras cláusulas do formulário padrão. Note-se igualmente que a
inclusão desta cláusula particular não descaracteriza o contrato como
de adesão, sendo também indiferente quem fez a última oferta, se o
fornecedor, elaborador do formulário, ou o consumidor.
* (72) Veja detalhes em Vallespinos, pp. 309 a 315.
(73) Veja von Hippel, p. 123. (p. 57)

c) A disciplina dos contratos de adesão - O contrato de adesão


não é uma espécie nova e independente de contrato, trata-se de
contratos de compra e venda, contratos de transporte, contratos de
locação e outros mais variados tipos de contratos, em que se usa, sim,
um método comum de contratação, o de oferecer o instrumento
contratual já impresso, prévia e unilateralmente elaborado, para a
aceitação do outro parceiro contratual, o qual simplesmente "adere" à
vontade manifestada no instrumento contratual.
Este método de contratação obteve sucesso pelas vantagens que
sua utilização traz aos fornecedores e mesmo aos consumidores. A
contratação é mais rápida e facilitada, não se faz uma diferenciação
entre os consumidores desta ou de outra classe social, o método
racionaliza a transferência de bens de consumo na sociedade, possibi-
litando também a previsão dos riscos por parte dos fornecedores. Entre
as vantagens que apresenta, está a rapidez de sua adaptação a novas
situações, bastando elaborar um novo contrato modelo e imprimi-lo em
um novo formulário. De outro lado a sua elaboração prévia e unilateral
como se facilita a inclusão de cláusulas abusivas, cláusulas que
asseguram vantagens unilaterais e excessivas para o fornecedor que as
elabora.
Sendo assim, por suas características e originalidade, tanto a
interpretação dos contratos de adesão (controle formal), quanto o
controle do conteúdo, da eqüidade dos contratos de adesão, mereceram
especial atenção dos doutrinadores.
Na década de quarenta, um professor norte-americano duvidava
da possibilidade do direito dos contratos manter sua unidade, em face
do incremento do uso dos contratos de adesão.{74} Realmente, a proli-
feração das técnicas de contratação em massa exigiria uma modificação
profunda na teoria contratual e a criação de uma disciplina específica
para os contratos de consumo. Uma vez que, pela doutrina alemã, os
contratos de adesão podem ser incluídos entre aqueles que utilizam
condições gerais, examinaremos agora este outro fenômeno ou método
da contratação em massa, para só então abordarmos em detalhes a nova
disciplina dos contratos de consumo, especialmente no que se refere
ao combate às cláusulas abusivas.
* (74) Rakoff, p. 1.176. (p. 58)

2.3 As condições gerais dos contratos (cláusulas contratuais gerais)

a) Descrição do fenômeno - Entende-se como contratos subme-


tidos a condições gerais{75} aqueles contratos, escritos ou não escritos,
em que o comprador aceita, tácita ou expressamente, que cláusulas pré-
elaboradas pelo fornecedor, unilateral e uniformemente para um núme-
ro indeterminado de relações contratuais, venham a disciplinar o seu
contrato específico.
Assim condições gerais dos contratos (CONDGs) é aquela lista
de cláusulas contratuais pré-elaboradas unilateralmente para um núme-
ro múltiplo de contratos, a qual pode estar ou não inserida no
documento contratual e que um dos contraentes oferece para reger a
relação contratual no momento de sua celebração. Trata-se, portanto,
de uma técnica de pré-elaboração do conteúdo de futuros contratos.{76}
Segundo a doutrina européia,{77} as características principais da
noção de CONDG são:
1. São cláusulas ou condições de um contrato, independente do
tipo de contrato. Mesmo negócios jurídicos unilaterais dirigidos a um
contrato podem estar aqui incluídos, como por exemplo a declaração
de um paciente exonerando dos eventuais resultados da intervenção
médica, ou uma renúncia a determinado crédito.{78}
2. São cláusulas pré-elaboradas, isto é, pré-redigidas antes da
conclusão do contrato por uma das partes para ser incluídas em um
futuro contrato. As cláusulas são consideradas pré-elaboradas também
quando estão arquivadas em um computador e são impressas na hora
para o cliente, ou datilografadas segundo um formulário, mesmo de
memória pelo advogado da empresa. Neste sentido já foram conside-
* (75) Os portugueses preferem a expressão cláusulas contratuais
gerais, veja
Decreto-Lei n. 446/85, comentado por Almeida Costa ou por Amaral.
(76) Assim Couto e Silva, Condições Gerais dos Negócios, p. 29,
para o qual
a racionalização dos serviços e a industrialização criaram o "hábito" de
se
determinar, por antecipação, as cláusulas dos futuros contratos.
(77) Estão sendo consideradas aqui a doutrina alemã e a doutrina
portuguesa
tendo em vista o desenvolvimento que encontraram as leis sobre condições
gerais desses países.
(78) Veja a exposição das características em Koetz/Muenchener, p.
1.624, AGBG
§ 1(5 a 10) e no clássico Raiser, p. 42. (p. 59)
radas CONDGs as cláusulas pré-elaboradas pelo tabelião e incluídas
em um contrato por escritura pública.{79}
3. As cláusulas devem ser pré-elaboradas para um número
múltiplo e indeterminado de contratos,{80} e não pré-elaboradas para
um único contrato. Assim, por exemplo, quando o advogado da
empresa elabora um contrato específico, não estamos diante de
CONDGs, mas sim quando elabora um contrato modelo ou a lista
de cláusulas que deverão integrar vários futuros contratos de compra
e venda, de aluguel, de empréstimo etc., a serem firmados por seu
cliente e consumidores. Note-se que a evolução dos contratos modelos
ou a modificação de algumas cláusulas não descaracteriza as cláusulas
como CONDGs.
4. As cláusulas são pré-elaboradas unilateralmente por um dos
contraentes, ou mesmo por terceiros, e são oferecidas à aceitação do
outro. Interessante é o caso em que um terceiro, Tabelião, Imobiliária,
Associação de empresários, elabora a lista de cláusulas contratuais.
Para a doutrina portuguesa,{81} o importante é a existência de CONDGS,
independente de terem sido elaboradas pelo proponente ou por terceiro.
Já a doutrina alemã utiliza como critério o fato do terceiro ser neutro
em relação à relação contratual (tabelião) ou não (Imobiliária).{82}
Parece-me, porém, que a primeira solução é mais justa, porque ao
direito interessa a técnica de pré-elaboração unilateral e de simples
opção de aceitação para o outro contraente e não a ideologia do
elaborador das CONDGs.
Como veremos, as CONDGs não têm caráter de regulamento, elas
fazem parte da oferta concretizada pelo fornecedor, sendo necessária
a sua aceitação de outro parceiro contratual.{83}
Cabe lembrar, igualmente, que as CONDGs podem constituir uma
parte externa ao contrato, um anexo, um cartaz afixado no estabeleci-
mento, ou, ao contrário, podem estar inseridas no texto do documento
* (79) Assim Walchsloefer, Zehn Jahre, p. 167.
(80) Assim também Koetz/Muenchener, p. 1.625.
(81) Assim a lei portuguesa, art. 2º, veja em Almeida
Costa/Comentários, p. 19.
(82) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 55 (Vor § 1 (5), mas a regra
comporta
exceções, ver Walchsloefer, p. 167.
(83) Assim Schawab/"Validade", p. 9. (p. 60)
contratual, não importando a sua extensão, o modo como estão
escritas, a sua autoria ou a forma e tipo do contrato.{84}
Historicamente, o fenômeno da pré-elaboração unilateral de
CONDGs é inerente à sociedade industrializada. Hoje, na prática,
existem quase que exclusivamente contratos onde o conteúdo, a
exceção do objeto e do preço, já estão determinados em CONDGs ou
contratos formulário.{85} Assim, também, por vezes, condutas sociais
típicas na sociedade{86} vão indicar o fechamento de um contrato e a
aceitação de determinadas cláusulas gerais, como, por exemplo, ao
embarcar em um ônibus, ou ao utilizar as prestações oferecidas por
máquinas automáticas, fecha-se um contrato submetido a determinadas
condições gerais ou condições de utilização afixadas em um lugar
visível para o consumidor.
Como frisamos anteriormente, as expressões CONDGs e os
contratos de adesão ou contratos formulários não são sinônimos.
Relembre-se, porém, que a expressão CONDGs, como a caracteri-
zamos aqui, pode englobar os próprios contratos de adesão, os
contratos com formulários impressos, contratos-modelo e contratos
autorizados ou ditados pelo Poder Público, pois estes também são
compostos de cláusulas pré-elaboradas unilateral e uniformemente
pelos fornecedores.
Mas as CONDGs caracterizam-se ainda pelo que os doutrina-
dores portugueses denominam de uma maior rigidez,{87} isto é, não
* (84) Assim a lei alemã, AGBG § 1 (2) e principalmente o art. 2º
da lei
portuguesa, veja Almeida Costa/Comentários, p. 19.
(85) Koetz/Muenchener, p. 1.622, este autor excetua os
pequenos contratos de
compra à vista de gêneros, que não seriam
estandardizados. No Brasil, como
o CDC será aplicado também a estes contratos não incluídos a observação
no texto principal.
(86) A expressão sozialtypisches Verhalten é de Larenz/AT, p. 471
(§ 28, II) o qual
via nesta conduta também uma forma de aceitação, onde haveria, porém,
problemas na declaração de vontade. Hoje não mais se duvida que haja um
ato concludente, a maioria dos autores rebatem as dúvidas de Larenz
(assim
Kramer/Muenchener, p. 1.125, § 151/7), argumentando que isto pouco
importa para a natureza do vínculo, pois o animus contratual existe. Veja
em
português os ensinamentos de Nery/Anteprojeto, p. 284 e ss., o qual,
porém,
concorda com Larenz, não equiparando estas condutas a contratos.
(87) Assim Almeida Costa/Comentários, p. 17, tb.
Nery/Anteprojeto, p. 291. (p. 61)
há possibilidade de alteração na CONDG de um empresário a pedido
do consumidor. Assim, não há a inclusão de cláusulas discutidas
individualmente na lista de CONDGs,{88} mas a inclusão destas
cláusulas individuais é possível nos contratos de adesão (assim, §
1º, art. 54 do CDC).

b) A inclusão de condições gerais nos contratos - As condições


gerais dos contratos, como podemos observar, não possuem força de
normas legais ou regulamentos,{89} elas necessitam ser inseridas em um
contrato para que ganhem força obrigatória em relação às partes
contratantes envolvidas.{90}
Logo, não basta que o fornecedor determine ao seu departamento
jurídico que elabore uma lista de cláusulas ou condições gerais e estas
fiquem nas mãos do gerente da loja para que desta vontade unilateral
do fornecedor se originem direitos e deveres para os futuros contratan-
tes. As CONDGs terão de ser inseridas nos contratos.
O tema da inclusão de CONDG nos contratos de massa fechados
pelos fornecedores de bens e serviços com consumidores é um dos
temas mais delicados do novo direito dos contratos, pois, como
sabemos, nem sempre estes contratos de massa terão a forma escrita.
A aceitação das CONDGs - O princípio geral em matéria de
inclusão de CONDGs em contratos de massa pode ser por nós resumido
como Princípio da Transparência,{91} significando que as condições
gerais unilateralmente elaboradas pelo fornecedor só integrarão o
contrato se o consumidor tiver conhecimento delas ou pelo menos tiver
tido a oportunidade de ter conhecimento de sua inserção no contrato,
antes ou durante a celebração do contrato, e aceitar o seu uso. Se o
consumidor não foi informado de seu uso, se não houve transparência,
* (88) Assim a lei alemã, § 1.º, Abs. (2).
(89) Esta tese foi fortemente defendida nos anos 70 por autores
alemães, mas
hoje o caráter contratual das CONDGs é unânime, assim Ulmer/Brandner/
Hensen, p. 55 (Vor § 1(5).
(90) Veja neste sentido, em português, Schwab/"Validade", p. 9.
(91) Aqui o termo, oriundo da doutrina alemã, Transparenzgebot
está sendo
utilizado em sentido não próprio, em sentido mais amplo, quase como um
sinônimo de "dever de informação", pois consideramos a expressão "trans-
parência" muito didática e constitui um dos objetivos básicos do CDC
brasileiro, art. 4º. Veja o Cap. III, 1 e Koendgen, "Transparenz", p.
943. (p. 62)
o silêncio do consumidor não será interpretado como tendo aceito a
inclusão das CONDGs.
A doutrina alemã preocupou-se desde cedo com o problema e
desenvolveu algumas linhas básicas{92} para a inclusão de CONDGs nos
contratos de massa. Vejamos, é necessário que exista o chamado pacto
de inserção ou pacto de inclusão das CONDGs; este pacto não constitui
um contrato em separado, mas faz parte do próprio contrato de
consumo.
São três os pré-requisitos do pacto de inclusão:
1. O primeiro requisito é que o consumidor tenha sido informado
pelo fornecedor que condições gerais serão usadas no futuro contrato.{93}
Normalmente o consumidor será informado pelo fornecedor no mo-
mento do fechamento do contrato que o fornecedor usa CONDGs para
todos os seus contratos. Para a doutrina alemã não basta que após o
fechamento do contrato o fornecedor dê um recibo para o consumidor,
onde no verso estejam impressas as CONDGs pactuadas. Os consumi-
dores têm que ter sido informados antes do fechamento do contrato da
utilização das CONDGs (lei alemã, AGBG § 2º, I), assim também se
o contrato for por escrito, deve haver uma menção em seu texto sobre
a utilização das CONDGs.{94}
A idéia básica é que, as CONDGs podem influenciar a decisão
do consumidor e portanto seria um dever do fornecedor informar sobre
o seu uso. Na disciplina do novo Código de Defesa do Consumidor
brasileiro, as CONDGs fazem parte da oferta que o fornecedor faz ao
público, existindo assim um dever de informar ao consumidor dessas
CONDGs, que farão parte do futuro contrato (neste sentido os arts. 30
e 46 do CDC).
Excepcionalmente, em alguns tipos de contratos, nos quais seria
difícil haver uma menção expressa da utilização de CONDGs na hora
da celebração dos contratos, como, por exemplo, nos contratos orais,
* (92) Veja os comentários exaustivos de Ulmer/Brandner/Hensen, §
2(23-54), pp.
118 a 135.
(93) Assim tb. Larenz/AT, p. 488 (§ 29, a, I).
(94) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, pp. 119 e 120, mencionado
também "a p.
123 que as CONDGs impressas no verso dos bilhetes de teatro, tickets de
garagem, recibos etc., podem não ser consideradas incluídas nos
contratos,
pois foram entregues para conhecimento após a conclusão do contrato. (p.
63)
nos contratos de transporte em ônibus, Contratos automatizados, nos
de guarda de automóveis em estacionamentos, a doutrina germânica
impõe a afixação das CONDGs em lugar visível no local em que o
contrato será fechado, para que o consumidor possa tomar conhecimen-
to destas, se quiser.{95}
2. O segundo pré-requisito para a inclusão das CONDGs é mais
subjetivo, é a possibilidade do consumidor tomar conhecimento do
conteúdo real das CONDGs.{96} Isto é, não basta a simples menção que
CONDGs vão ser usadas no contrato, é necessário que o homem
comum possa ler e entender o que significam aquelas cláusulas, quais
as obrigações e os direitos que está aceitando (assim também a
contrario sensu, art. 46, in fine, do Código brasileiro). Relembre-se
aqui, que não raramente o vendedor procura introduzir suas CONDGs
no contrato de um modo um pouco furtivo: um texto impresso em letras
pequenas, de cor verde, um texto longo, de difícil leitura, impresso no
verso de documentos. Nesse sentido, a exigência do CDC de maior
transparência (veja art. 4º, caput e art. 46).
3. O terceiro requisito é a aceitação, tácita ou expressa, do
consumidor.{97} Assim, se o fornecedor informa sobre a utilização das
CONDGs e o consumidor tendo tido a oportunidade de tomar conhe-
cimento do conteúdo da CONDG imposta, aceita a oferta e fecha o
contrato de consumo, aceitou a inclusão das CONDGs em seu contrato
específico. Também prevê a doutrina que possa haver uma aceitação
anterior ao contrato, em uma convenção básica ou em um pré-contrato,
principalmente no caso de relação contratual reiterada entre dois
comerciantes.
Note-se que o problema da inclusão de CONDGs nos contratos
é, em última análise, um problema de interpretação da declaração de
vontade do consumidor. O consumidor precisa manifestar a sua
concordância com a validade das CONDGs e, uma vez inseridas nos
* (95) Assim o texto da lei alemã AGBG, veja em Larenz/AT, p. 488.
(96) Assim tb. Koetz/Muenchener, p. 1640, lembrando que a chamada
cláusula
"salvadora" (ex.: "A responsabilidade do fornecedor fica limitada ao que
permite a lei") foi considerada pela jurisprudência alemã como não
compreensível ao homem comum, que não possui conhecimentos detalha-
dos sobre a ordem jurídica.
(97) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 138. (p. 64)
contratos de consumo, as CONDGs serão submetidas a um controle,
no caso da lei alemã, a um controle judicial, que declarará ineficazes
as cláusulas abusivas eventualmente existentes nas CONDGs aceitas.{98}
Vejamos, portanto, o problema da interpretação das CONDGs.
Interpretação das condições gerais dos contratos - Uma vez
inseridas na relação contratual, as CONDGs poderão ser objeto de
discussão e de interpretação em uma futura lide. Na interpretação de
suas cláusuLas deverá o jurista utilizar-se, de um lado, dos métodos
tradicionais de interpretação dos negócios jurídicos,{99} os quais como
se sabe ainda se encontram muito influenciados pelos dogmas da
autonomia da vontade e da liberdade contratual, mas deverá também
levar em conta a natureza especifica das CONDGs e de sua elaboração.
Assim, desenvolveram-se princípios específicos para a interpreta-
ção dos contratos submetidos a CONDGs. O principal princípio é o da
primazia das cláusulas pactuadas individualmente, escritas ou não,
sobre as cláusulas presentes nas CONDGs (Vorrang der Individuala-
brede).{100} Estas cláusulas pactuadas individualmente ganhariam em
força, uma Vez que fruto da vontade de ambos os contratantes e não
somente expressão da vontade daquele que formula unilateralmente as
CONDGs.
Na doutrina européia,{101} por muito tempo se discutiu se a
condi-
ções especiais (de entrega, de preço, de qualidade) pactuadas oralmente
com o cliente prevaleceriam frente as cláusulas da própria CONDG
inserida no contrato, as quais previam a validade somente de condições
especiais pactuadas por escrito ou frente a uma pessoa previamente
autorizada pelo fornecedor. Atualmente, a maioria da doutrina aceita a
primazia da cláusula pactuada oralmente, afirmando que neste caso,
pela divergência entre as cláusulas, houve uma não aceitação da vali-
dade das cláusulas da CONDG, referente a exigência do pacto escrito.{102}
* (98) Assim Schwab/"Validade", p. 17.
(99) Veja no direito brasileiro o art. 85 do Código Civil e a
obra de doutorado
de Custódio Ubaldino Miranda, em especial pp. 169 e ss.; veja também as
regras sobre interpretação do Código Civil Italiano, arts. 1.362 a 1.371,
estas
já direcionadas para a função social do novo direito dos Contratos.
(100) Assim também Larenz/AT, p. 492 (§ 29, a, II).
(101) Assim alerta o belga Fontaine, p. 202.
(102) Brox, AT, p. 103 (Rdn. 204,1). Note-se que neste caso a
aceitação de uma
cláusula individual em princípio, segundo a lei alemã, § 1, Abs. 2. (p.
65)
Assim também, em caso de dúvida quanto ao sentido das
cláusulas das CONDGs serão estas interpretadas a favor do contratante
que não as redigiu. É o princípio da interpretatio contra proferentem,
já presente no art. 1.370 do Código Civil Italiano de 1942.{103} O Código
de Defesa do Consumidor brasileiro, como veremos a seguir, contem-
pla norma semelhante em seu art. 47, porém referente a todos os tipos
de contratos de consumo (interpretação a favor do consumidor).
Por fim, a nova função do direito dos contratos, a procura do
equilíbrio e da justiça contratual, faz com que se relembre aqui o
sempre importante princípio da interpretação dos negócios jurídicos de
acordo com a boa-fé. Este princípio sempre foi aceito pela doutrina e
jurisprudência brasileira,{104} apesar de nosso Código Civil de 1917 não
possuir norma semelhante à cláusula geral do § 242 do Código Civil
Alemão ou a do art. 1.366 do Código Civil Italiano. Mas agora a norma
do art. 47 do CDC, assim como a cláusula geral de boa-fé no controle
das cláusulas abusivas (art. 51, IV do CDC), permitirão que o jurista
brasileiro interprete as cláusulas das CONDGs de maneira a respeitar
a confiança e os legítimos interesses dos consumidores que aceitaram
estas cláusulas pré-redigidas.
c) A disciplina das condições gerais dos contratos - O direito
disciplina o modo e os requisitos para a inserção de CONDGs nos
contratos de massa, escritos ou não. É o controle chamado "formal"
do contrato. Este controle formal em muito se aproxima do controle
apregoado pela concepção tradicional de contrato, controle da decla-
ração de vontade, do consenso e da liberdade contratual. As CONDGs,
porém, são um fenômeno novo e complexo, onde a vontade e a
superioridade técnica, jurídica e econômica de um contratante impõe-
se ao outro, eis porque, via de regra, o simples controle formal e o
recurso e interpretação não são suficientes para estabelecer a eqüidade
e a justiça contratual.
Em se tratando de contratos submetidos a CONDGs não há
liberdade contratual, liberdade de determinar o conteúdo do contrato,
descaracterizaria a lista como CONDG, passando a ser um contrato de
adesão, submetido ao controle da lei.
* (103) Assim tb. Alpa/Diritto, p. 185. De igual teor é o § 5. da
lei alemã-AGBC,
veja comentários em Ulmer/Brandner/Hensen, p. 247. Assim tb. o Projeto
de Código Civil Brasileiro, 634-B de 1975, art. 423.
(104) Veja a obra de Couto e Silva, Obrigação, p. 70. (p. 66)
pois as CONDGs são rígidas e pré-elaboradas unilateralmente. Pode
também não haver suficiente liberdade de contratar, liberdade de
escolher o parceiro contratual, pois os bens ou serviços oferecidos
pelo fornecedor podem ser daqueles de extrema necessidade, ou pode
estar o fornecedor em uma situação de monopólio. Mas mesmo que
o fornecedor esteja apenas oferecendo o melhor preço, se não há uma
livre concorrência em matéria de CONDGs, isto é, se todas as
CONDGs oferecidas pelos vários fornecedores do mercado são
praticamente as mesmas, como ocorre normalmente, o consumidor
por uma questão de economia e praticidade se vê dirigido a aceitar
as CONDGs impostas, confiando que nenhum problema ocorrerá.
Não é raro que as Condições Gerais contenham cláusulas chama-
das abusivas, oriundas da própria possibilidade de elaborar as CONDGs
unilateralmente e com anterioridade. Trataremos das cláusulas abusivas
em detalhes a seguir, agora o importante é assinalar que coube ao
direito a função de disciplinar o conteúdo das CONDGs, de maneira
a controlar estes abusos.
Este controle pode ser preventivo, ditando o legislador o
conteúdo destas CONDGs ou exigindo a prévia autorização de algum
órgão administrativo. Ou pode ser repressivo, punindo o legislador
o utilizador de cláusulas abusivas em CONDGs, através do controle
pelo Poder Judiciário destas cláusulas e da sua substituição por
outras, sem que o fornecedor possa se desvincular do contrato
assumido com o consumidor. É o chamado controle do conteúdo
dos contratos submetidos a CONDGs que tem se mostrado bem mais
eficiente e que, por sua importância, será tratado em capítulo especial
(capítulo 3).
O fenômeno das condições gerais dos contratos e sua utilização
em inúmeras relações contratuais, exigiu do Direito uma adaptação
específica, a qual tomou a forma de um intervencionismo legal cada
vez mais amplo no setor dos contratos de consumo. Assim, vários
países promulgaram leis específicas para a defesa, pelo menos
contratual, do consumidor: Suécia (1971), Dinamarca e Venezuela
(1974), Alemanha e México (1976), Inglaterra (1977), França (1978),
Áustria (1979), Irlanda (1980), Colômbia e Noruega (1981),
Luxemburgo (1984), Espanha (1984), Portugal (1985), e agora o
Brasil (1990). (p. 67)

2.4 Os contratos cativos de longa duração

a) Descrição do fenômeno - Na segunda edição, pareceu-nos


necessário incluir, nesta seção dedicada à análise da nova realidade
contratual massificada, algumas observações sobre um fenômeno que
já se observa no mercado brasileiro atual. Trata-se de uma série de
novos contratos ou relações contratuais que utilizam os métodos de
contratação de massa (através de contratos de adesão ou de condições
gerais dos contratos), para fornecer serviços especiais no mercado,
criando relações jurídicas complexas de longa duração, envolvendo
uma cadeia de fornecedores organizados entre si e com uma caracte-
rística determinante: a posição de "catividade" ou "dependência" dos
clientes, consumidores.
Esta posição de dependência ou, como aqui estamos denominan-
do, de "catividade", só pode ser entendida no exame do contexto das
relações atuais, onde determinados serviços prestados no mercado
asseguram (ou prometem) ao consumidor e sua família "status",
"segurança", "crédito renovado", "escola ou formação universitária
certa e qualificada", "moradia assegurada" ou mesmo "saúde" no
futuro. A catividade há de ser entendida no contexto do mundo atual,
de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de publicidade
massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renovados
riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança quanto ao futuro.
Os exemplos principais destes contratos cativos de longa duração
são as novas relações banco-cliente, os contratos de seguro-saúde e de
assistência médico-hospitalar, os contratos de previdência privada, os
contratos de uso de cartão de crédito, os seguros em geral, os serviços
de organização e aproximação de interessados (como os exercidos pelas
empresas de consórcios e imobiliárias), os serviços de transmissão de
informações e lazer por cabo, telefone, televisão, computadores, assim
como os conhecidos serviços públicos básicos, de fornecimento de
água, luz e telefone por entes públicos ou privados.
Denominaremos este fenômeno, estas novas relações contratuais
de "contratos cativos de longa duração", sem, porém, desconsiderar que
outras denominações poderiam ter sido usadas, como as de "contratos
múltiplos", "serviços contínuos", "relações contratuais triangulares",
"contratos conexos", "contratos de serviços complexos de longa dura-
ção" etc. (p. 68)
Alguns doutrinadores estão denominando estas relações contra-
tuais cativas de contratos "pós-modernos".{105} Na edição anterior, de
1995, preferimos não utilizar esta expressão, uma vez que a maioria
desses contratos são contratos conhecidos mesmo antes da revolução
industrial (por exemplo, os contratos bancários) e não, especificamente,
agora na fase industrial que vivemos ou, na fase pós-industrial que
caracterizaria a pós-modernidade européia. O novo aqui não é a espécie
de contrato (seguro, por exemplo), mas a sua relevância no contexto
atual, a sociedade de consumo atual beneficia e fomenta estes serviços,
considerados, então, socialmente essenciais, a necessitar uma nova
disciplina.
Efetivamente, na Europa, pós-industrial e primeiro-mundista,
alguns estudiosos do direito começaram a elaborar nos anos 80 e 90
uma visão "pós-moderna" de nossa ciência,{106} ensaiou-se inclusive a
ídentificação de uma estrutura "pós-moderna" dos contratos. Apesar de
pouco tratada no direito brasileiro{107} esta "vaga" de pós-modernidade
já se observa no direito da vizinha Argentina{108} e como toda nova
teoria
ou visão do direito traz em si o binômio: contestação da ordem
estabelecida e transformação em nova ordem.{109}
* (105) Assim o mestre argentino, Ghersi, "La estrutura...", p.
621.
(106) Precursores do movimento são os autores italianos e
alemães, veja as
primeiras observações (ainda muito discutíveis) de Calasso, p. 13 a 20.
(107) Exceção feita aos estudos de José Eduardo Faria e Eros
Roberto Grau, veja
a conferência de Eros Grau no Congresso "Contratos no Ano 2000", em
Brasilia, 9 de março de 1994, sobre o momento atual da ciência do direito
(Anais do Congresso, ainda inédito).
(108) Nesse sentido as criticas observações do Professor da
Universidade de
Buenos Aires, Carlos Alberto Ghersi, "Responsabilidad de empresas
telefónicas", capítulo primeiro, especialmente pp. 41 e ss.
(109) Na segunda edição, mencionamos ceticamente: "Esta "vaga" de
pós-
modernidade que observamos na vizinha Argentina e na, sempre importante
para o Direito Comparado, Europa relembra a "vaga" dos anos 80, vinda
da América do Norte e sua "economic analysis of law". A pergunta crucial
é se sobreviverá e realizará a "revolução" no direito que pretende ou se,
como a análise econômica do direito, tenderá a transformar-se em apenas
mais uma "visão" do direito, teoria jurídica. Como ensinou André-Vicent,
Ph.-I, "Les Révolutions et le Droit", Paris, LGDJ, 1974, p. 7, "Deux
élements som essentiels au phénomêne révolutionnaire: une contestation de
l’ordre établi, la réalisation d’un ordre nouveau; une contestation
radicale (p. 69)
Nesta edição, e ainda sem o distanciamento histórico necessário
para observar a "verdade" ou não da teoria, sua efetiva aceitação e seus
eventuais efeitos no direito, gostaríamos simplesmente tecer algumas
considerações sobre o seu potencial identificador de alguns fenômenos
contratuais de massa. Esses estudiosos, porém, tiveram o mérito de
identificar uma nova geração de contratos de massa, que estamos aqui
denominando de "contrato cativo de longa duração" para evitar a
expressão, ainda muito incerta, de "contrato pós-moderno"; identifica-
ram, em última análise, a importância renovada (e mesmo avassaladora)
dos contratos de serviços no mundo atual.
As relações contratuais envolvendo serviços possuem indiscutível
importância atual e no futuro. O mercado brasileiro dos serviços é um
dos mais pungentes e importantes, envolvendo milhões de consumido-
res.{110} Estes novos serviços complexos, estas relações contratuais,
denomine-se ou não de pós-modernas, multiplicam-se no mercado
brasileiro, preocupando juristas, consumidores, e, agora, chegando aos
Tribunais.{111}
A sabedoria, quero crer, está não em negar a verdade da mudança,
a verdade do momento em que vivemos, mas sim em visualizar o
*aboutissant à une transformation radicale." O movimento pós-moderno no
direito é uma contestação radical e pode originar uma mudança radical no
direito (desregulamentação, recuo do Estado e "desestatização" da socie-
dade) ou um novo "positivismo" (espero, ético) no Direito, que deixará
pouco espaço para a autonomia da vontade nos contratos; veja o nosso
artigo
"A Abusividade nos Contratos de Seguro-Saúde e de Assistência Médica
no Brasil", Anais do Congresso de Brasília, mar./94, ainda inédito)."
(110) Impressiona o dado fornecido pela revista Isto É, n. 1.270, de
2.2.94,
segundo a qual 32 milhões de brasileiros estão ligados a alguma entidade
privada prestadora de serviços de saúde ou de seguro-saúde, movimentando
10 bilhões de dólares por ano.
(111) Os Tribunais que mais cedo notaram esta mudança foram os
Juizados
Especiais e de Pequenas Causas, hoje os Tribunais de Alçada e Justiça. A
jurisprudência divulgada dos JEPC no RS apontam como contratos mais
sujeitos a lides: os consórcios, os serviços públicos de telefonia, água
e luz,
os planos de saúde, os planos de previdência privada, as relações de
locação
e condomínio envolvendo "terceiro", a imobiliária, sem falar nos
contratos
de fornecimento de produtos ou serviços (especialmente móveis sob medida
e trabalhos de reparação), veja ns. 7/8, contendo estatísticas, da
Revista
Juizado de Pequenas Causas - Doutrina e Jurisprudência, abr./ago.93, Ed.
Tribunal de Justiça do RS. (p. 70)
fenômeno, compreendê-lo e estudá-lo. E estudá-lo na realidade brasi-
leira (não pós-industrial), adaptando-o para solucionar as lides que
começam a multiplicar-se. A sabedoria realmente parece estar no uso
dos instrumentos jurídicos que dispomos, em especial o novo Código
de Defesa do Consumidor e as novas linhas constitucionais, de forma
a dar respostas razoáveis e justas aos casos concretos.
Ou seja, caminho inverso de prever o esgotamento e proclamar
a imprestabilidade dos instrumentos científicos tradicionais do direito,
o que necessitamos é fornecer respostas equitativas e práticas às
questões jurídicas atuais, à nova realidade contratual. Neste sentido
interessante buscar elementos no direito comparado.
Observe-se que o realismo norte-americano{112} denominou estes
contratos de "relacionais" (relational contracts),{113} destacando os
elementos sociológicos que condicionam o nascimento e a estabilidade
destes contratos complexos de longa duração. A contribuição destes
estudos, que remontam a 1974, foi grande, pois, observando as relações
"não-contratuais", as projeções de troca dos empresários e sua orga-
nização em networks, baseadas mais na confiança, solidariedade e
cooperação no que em vínculos contratuais expressos, desenvolveu a
noção de um contrato aberto, de uma relação contínua, duradoura ao
mesmo tempo em que modificável pelos usos e costumes ali desenvol-
vidos e pelas atuais necessidades das partes.{114}
O potencial deste modelo de pensamento contratual é fascinante.
Identificar um contrato relacional onde há vínculo, mas não necessa-
riamente contratual, como nas parcerias econômicas furtivas e momen-
tâneas de hoje, identificar um contrato relacional, onde o vínculo
oficialmente já acabou, mas há relacionamento a posteriori, como em
um contrato cumprido, não renovado, mas novado ou mesmo reescrito.
Identificar um contrato relacional, onde existem vários contratos, com
* (112) Assim Oechsler, p. 92.
(113) O iniciador desta teoria foi Ian Macneil (veja Macneil, p.
691 e ss.). Veja
também seus outros artigos: "Contracts: Adjustment to Long-Term Economic
Relations Under Classical, Neoclassical, and Relational Contract Law",
in Northwestern U.L.Rev. (1977/78), 854 e ss.; "Values in Contract:
Internal and External", in Northwestem U.L. 78(1983), 340 e ss.;
"Relational
Contract: What We Do and Do not know", in Wis. L. Rev. 1985, 483 e ss.
(114) Veja a adaptação desta doutrina para o Brasil, em Macedo,
Relacional,
p. 127 e ss. (p. 71)
várias e diferentes pessoas jurídicas, como os contratos com bancos
múltiplos, seis contratos em um só, ou um contrato com quatro pessoas
diferentes (banco, corretora, financeira, seguradora ou fornecedora de
serviços outros), tudo em um só relacionamento de consumo.
Note-se, porém, que esse modelo contratual foi criado em virtude
de dificuldades específicas e imanentes ao sistema da commom law com
as relações de longa duração.{115} Essas dificuldades de englobar na
relação contratual as promessas e informações não formais ou não
escritas, de preencher as lacunas contratuais com uma interpretação
integrativa pelo Judiciário, são menores em um sistema contratual não
solene, como o brasileiro ou o continental europeu.{116} Os demais
problemas apresentados podem ser solucionados, no direito brasileiro,
pelos princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações
de consumo ou pela teoria da aparência.{117}
Sendo assim, a mais importante contribuição destes estudos à
nova teoria contratual brasileira é a criação de um modelo teórico
contínuo que engloba as constantes renegociações e as novas
promessas, bem destacando que a situação externa e interna de
catividade e interdependência dos contratantes faz com que as
revisões, novações ou renegociações contratuais naturalmente con-
tinuem ou perenizem a relação de consumo, não podendo estas,
porém, autorizar abusos da posição contratual dominante ou validar
prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou superar deveres
* (115) Assim Oechsler, p. 93. Especial dificuldade apresenta a
doutrina da
"Consideration" na conclusão de renegociações ou modificações contra-
tuais não formais.
(116) O sistema do CDC, que será analisado mais adiante, segue
esta linha não
solene e ainda a amplia nos ais. 30, 34 e 48, incluindo toda e qualquer
informação na relação contratual de consumo. Sobre o sistema continental
europeu, veja Oechster, p. 109 e ss.
(117) Segundo Oechster, p. 114, a teoria do contrato relacional é
uma re-
importação" do modelo jurídico alemão. A solução alemã baseada na
responsabilidade pela confiança teria sido recebida nos EUA justamente
para suprir os problemas da common law com relações de longa duração
e que agora estaria retornando ao continente. A leitura do original de
Macneil, ao contrário, parece partir de observações básicas sociológicas,
quanto às raízes do contrato, para só então aprofundar-se na relação de
confiança; veja Macneil, p. 701 e ss, em especial. (p. 72)
de cooperação, solidariedade e lealdade que integram a relação em
toda a sua duração.{118}
Em resumo, a teoria do contrato relacional pode contribuir,
especialmente, nos contratos de mútuo e em geral de fornecimento de
serviços, para uma nova compreensão da confiança despertada pela
atividade dos fornecedores e para a aceitação de uma readaptação
constante das relações de longa duração de forma a não frustrar as
expectativas legítimas das partes, apesar da limitada vontade manifes-
tada inicialmente.{119}
Nesse sentido, correta a observação de que o mundo que se
desenha no horizonte é o mundo dos serviços. Serviços que, prestados
por entes públicos ou por privados, constituem-se em simples abstra-
ções, fazeres e informações, os quais passam a ser, além de úteis,
imprescindíveis para a vida e o conforto do homem do final do séc. XX.
Vivemos, portanto, um momento de mudança: da acumulação de
bens materiais, para a acumulação de bens imateriais; dos contratos de
dar para os contratos de fazer; do modelo imediatista da compra e venda
para um modelo de relação contratual continuada, reiterada; da subs-
tituição, privatização ou terceirização do estado como prestador de
serviços, de relações meramente privadas para relações particulares de
iminente interesse social ou público.{120} Momento, de uma crescente
importância da fase pré-contratual, onde nascem as expectativas legí-
timas das partes e de uma exigente fase contratual de realização da
confiança despertada, com o aparecimento mesmo de alguma pós-
eficácia dos contratos já cumpridos.
* (118) Como ensina Macedo, Relacional, p. 335, a teoria
contratual relacional tem
função descritiva, analítica, mas "o modelo relacional tem também caráter
normativo e prescritivo. Assim é que ele recomenda uma revalorização e
ampliação do uso do princípio da boa-fé, justiça e equilíbrio contratual
como princípios capazes de orientar os agentes contratuais e operadores
do
direito na direção do reconhecimento das circunstâncias fáticas
concretas".
(119) Assim também conclui Oechster, p. 117 e ss.
(120) Quanto a estas mudanças veja Ghersi, Estrutura..., 626:
"... el estado
posfordista produce la revolución de los servicios y el modelo de
contratación
prevalente será otro o mejor otros, más regulativos, duraderos o de
tracto
sucesivo; con intervención estatal; con rígida distribuición en los
beneficios
de contrato...; de estructura de adhesion, pero más férrea, con un perfil
más
objetivo que subjetivo." (p. 73)
Trata-se da crise dos antigos paradigmas e aparecimento de novos
paradigmas do direito{121} e, mais do que isso, contamos nós, os
aplicadores do direito, com instrumentos jurídicos antigos e novos;
instrumentos da ciência moderna do direito, esculpidos pelos ideais da
Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, com a
necessária leitura atual da sociedade industrial e massificada.
Se o consumidor do futuro será não só um acumulador de bens,
mas um acumulador de serviços, de fazeres que assegurarão a ele e a
sua família o bem-estar, a segurança, a saúde, o lazer, o status, as
informações, o crédito e todos os outros "bens imateriais" e serviços
oferecidos (e desejados) no mercado brasileiro, o direito terá de
acompanhar esta mudança. Uma melhor análise desta nova realidade
pode indiciar características importantes da estrutura contratual do
futuro, facilitando a sua interpretação e a aplicação das normas (de
direito privado, de ordem pública e mesmo de direito público), entre
elas as de defesa do consumidor, as quais regulam esses novos (velhos)
contratos de serviços.

b) A estrutura dos contratos cativos de longa duração - Os


contratos de serviços sempre foram conhecidos, mas, segundo alguns
doutrinadores, o mercado atual apresenta relações contratuais com
características tão especiais, que as destacariam. São relações envolven-
do fazeres, normalmente serviços privados ou mesmo públicos, servI-
ços prestados de forma contínua, cativa, massificada, serviços autori-
zados pelo Estado ou privatizados, prestados por pequeno grupo de
empresas, geralmente com a utilização de "terceiros" para realização
do verdadeiro objetivo contratual (a realização da prestação direta ao
consumidor), organizando para tal verdadeiras cadeias invisíveis (pool
ou mix) de fornecedores diretos e indiretos (por exemplo: hotéis,
transportadoras e agentes de turismo, nos contratos de viagem fechada
ou de pacote turístico; médicos e hospitais, nos contratos e planos de
saúde; instituições bancárias, nos contratos de cartão de crédito;
fabricantes de automóveis ou de eletrodomésticos, nos contratos com
as administradoras de consórcios etc.).
Tratam-se de serviços que prometem segurança e qualidade,
serviços cuja prestação se protrai no tempo, de trato sucessivo, com
* (121) Sobre a crise dos paradigmas e a teoria de Thomas Kuhn
analisando o
desenvolvimento científico, veja a excelente exposição de Alberto do
Amaral Jr., "Proteção do Consumidor", pp. 17 e ss. (p. 74)
uma fase de execução contratual longa e descontínua, de fazer e não
fazer, de informar e não prejudicar, de prometer e cumprir, de manter
sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. São serviços contínuos
e não mais imediatos, serviços complexos e geralmente prestados por
fornecedores indiretos, fornecedores-"terceiros", aqueles que realmen-
te realizam o "objetivo" do contrato, daí a grande importância da noção
de cadeia ou organização interna de fornecedores e sua solidariedade.
O contrato é de longa duração, de execução sucessiva e protraída,
trazendo em si expectativas outras que os contratos de execução
imediata. Estes contratos baseiam-se mais na confiança, no convívio
reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos
serviços, pois trazem implícita a expectativa de mudanças das condi-
ções sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de
relação contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consu-
midor (por exemplo, futura assistência médica para si e sua família)
depende da continuação da relação jurídica fonte de obrigações. A
capacidade de adaptação, de cooperação entre contratantes, de conti-
nuação da relação contratual é aqui essencial, básica.
Tais serviços envolvem normalmente obrigações denominadas
"duradouras" nas quais "o adimplemento sempre se renova sem que se
manifeste alteração no débito".{122} O débito contratual continua o
mesmo, isto é, o dever de prestar continua total, assim, mesmo que,
por exemplo, o segurado tenha usado os serviços, o dever de prestar
assistência médica ou de reembolsar os gastos com saúde, renova-se,
continua o mesmo e total, conforme o objetivo do contrato. Não se trata,
nestes casos, de mera divisão da prestação contratual no tempo ou de
obrigação divisível, fracionável no tempo e no espaço, mas de obriga-
ções renovadas no tempo, que "são adimplidas permanentemente e
assim perduram sem que seja modificado o conteúdo de dever de
prestação, até seu término".{123} Entre as relações que podem ser
denominadas "cativas", outras existem que aproximam-se mais do
modelo da compra e venda a prazo, de forma divisível, pois, aqui
apenas observa-se o outro lado da relação jurídica, o lado passivo do
devedor-consumidor. A obrigação do consumidor-devedor pode ser
* (122) Assim ensinava o grande mestre da Faculdade de Direito da
UFRGS,
Clóvis V. do Couto e Silva, "A Obrigação como Processo", pp. 211 e 212.
(123) Assim ensina Couto e Silva, "Obrigação como Processo", p.
212. (p. 75)
divisível nos contratos de consórcios ou mesmo na locação envolvendo
os serviços de uma imobiliária, mas a obrigação do administrador do
consórcio e do grupo, da empresa imobiliária, administradora e do
locador não são divisíveis ou fracionáveis, ao contrário, renovam-se,
são obrigações reiteradas até o término do vínculo contratual e a
realização total de seu objetivo.
O objeto principal destes contratos muitas vezes é um evento
futuro, certo ou incerto, é a transferência (onerosa e contratual) de
riscos referentes a futura necessidade, por exemplo, de assistência
médica ou hospitalar, pensão para a viúva, formação escolar para os
filhos do falecido, crédito imediato para consumo. Para atingir o
objetivo contratual os consumidores manterão relações de convivência
e dependência com os fornecedores desses serviços por anos, pagando
mensalmente suas contribuições, seguindo as instruções (por vezes,
exigentes, burocráticas e mais impeditivas do que) regulamentadoras
dos fornecedores, usufruindo ou não dos serviços, a depender da
ocorrência ou não do evento contratualmente previsto.
Nestes contratos de trato sucessivo a relação é movida pela busca
de uma segurança, pela busca de uma futura prestação, status ou de
determinada qualidade nos serviços, o que reduz o consumidor a uma
posição de "cativo"-cliente do fornecedor e de seu grupo de colabo-
radores ou agentes econômicos. Após anos de convivência, da atuação
da publicidade massiva identificando o status de segurado, de cliente
ou de conveniado a determinada segurança para o futuro, de determi-
nada qualidade de serviços, após anos de contribuição, após atingir
determinada idade e cumprir todos os requisitos exigidos, não interessa
mais ao consumidor desvencilhar-se do contrato.
Tratam-se, igualmente, não só de contratos comutativos, mas
geralmente de contratos aleatórios, cuja contraprestação principal do
fornecedor fica a depender da ocorrência de evento futuro e incerto.
Os profissionais do direito estão mais acostumados a analisar contratos
comutativos. Em especial nas relações securitárias, a presença do aleas,
do risco inerente a esta relação contratual, pode levar a interpretações
nem sempre corretas. Neste sentido, não é demais frisar que incerta
nesses contratos é a "necessidade" da prestação e não "se" e "como",
com que qualidade, segurança e adequação, deve ela ser prestada. A
aproximação no tratamento jurídico dos contratos aleatórios e
comutativos será observada nas novas leis. (p. 76)
Verifica-se, igualmente, uma nova solenidade envolvendo estes
contratos, concluídos todos por escrito e, no caso dos seguros, através
de apólices especiais: são em sua maioria contratos regulamentados,
subordinados às disposições da leis especiais, de leis gerais imperativas
e das demais regulamentações administrativas aplicáveis.{124}
Estes novos contratos de longa duração envolvem, em sua maioria,
serviços "autorizados", são controlados, fiscalizados pelo Estado ou por
conselhos de profissionais, todos, porém, são prestados por um grupo
reduzido de fornecedores, únicos que possuem o poder econômico, o
know How, a autorização ou a concessão estatal para oferecê-los no
mercado. Tratam-se de negócios jurídicos privados, mas cuja importân-
cia econômica e social leva o Estado a autorizar o seu fornecimento,
controlar e fiscalizar o seu fornecimento e mesmo, ditar o conteúdo do
contrato.{125}
Observadas estas especialidades dos contratos de serviço em
questão, sob o signo da continuidade dos serviços, massificação e
catividade dos clientes, prestabilidade por terceiros do verdadeiro
objeto (ou interesse) contratual, internacionalidade ou grande poder
econômico dos fornecedores e, acima de tudo, crescente substituição
do Estado por fornecedores privados; concluiu-se que os modelos
tradicionais de contrato (contratos envolvendo obrigações de dar,
imediatos e menos complexos) fornecem poucos instrumentos para
regular estas longíssimas, reiteradas e complexas relações contratuais,
necessitando seja a intervenção regulamentadora do legislador, seja a
intervenção reequilibradora e sábia do Judiciário.

c) Disciplina - Estes novos contratos complexos envolvendo


fazeres na sociedade representam o novo desafio da teoria dos contra-
* (124) Sobre a definição de contrato regulamentado, como no
Brasil, os contratos
de planos de consórcios, de seguros, veja os ensinamentos de Orlando
Gomes, "Seguro-saúde", p. 251. Sobre fontes heterônomas dos contratos,
veja os ensinamentos basilares de Enzo Roppo, "O Contrato", ob. cit.,
pp. 137 e ss.
(125) Veja, neste sentido, o parecer de Orlando Gomes, "Seguro-
Saúde", op. cit.,
p. 250; note-se que o art. 20 do Código Civil brasileiro já mencionava
formalidades especiais e autorizações para se constituir determinadas
pessoas jurídicas, que irão atuar em determinados setores econômicos,
como o mercado financeiro, bancário, securitário etc. (p. 77)
tos. São Serviços prestados por um fornecedor ou por uma cadeia de
fornecedores solidários, organizados internamente, sem que o consu-
midor, na maioria das vezes, fique consciente desta organização.
Tratam-se de serviços que no contexto da vida moderna, de grande
insegurança e de indução através da publicidade massiva à necessidade
de acumulação de bens materiais e imateriais (o chamado "poder da
necessidade" e a "sedução das novas necessidades"), vinculam o
consumidor de tal forma que, ao longo dos anos de duração da relação
contratual complexa, torna-se este cliente-"cativo" daquele fornecedor
ou cadeia de fornecedores, tornando-se dependente mesmo da manu-
tenção daquela relação contratual ou verá frustradas todas as suas
expectativas. Em outras palavras, para manter o vínculo com o
fornecedor aceitará facilmente qualquer nova imposição por este
desejada.
Esta fática submissão garante um "poder de imposição" em grau
mais elevado do que o conhecido na pré-elaboração dos instrumentos
contratuais massificados, pois aqui o poder se renova constantemente
durante a obrigação de longa duração, permitindo inclusive modifica-
ções formalmente "bilaterais" do conteúdo da obrigação e do preço,
pois contam com a teórica "aceitação" do co-contratante mais vulne-
rável. Tal novo poder reflete-se nas cláusulas do contrato massificado
e em suas futuras modificações e permite mesmo que o fornecedor
libere-se do vínculo contratual, sempre que este não lhe seja mais
favorável ou interessante (rescindindo, denunciando, resolvendo o
vínculo, cancelando o plano etc).
Uma vez que tais relações contratuais cativas podem durar anos
e visam, na maioria das vezes, a transferência de riscos futuros ou o
suprimento de uma necessidade futura, estabelecendo um verdadeiro
processo de convivência necessária entre a empresa fornecedora de
serviços e os consumidores, notou-se que a ótica escolástica tradicional,
de uma análise estática e unitemporal da relação obrigacional de
execução diferida ou contínua não mais oferecia respostas adequadas.
O lapso de tempo que se situa entre o nascimento da obrigação e o
momento previsto para a satisfação da obrigação principal não pode
mais ser visto como um "espaço vazio",{126} ao longo do qual o devedor
* (126) A expressão é de Giovanni Muraro, "L’implemento Prima del
Termine", in
Rivista di diritto Civile, n. 3, ano XXI, mai.-jun./75, p. 270. (p. 78)
não é obrigado a qualquer comportamento particular, não se lhe impõe
qualquer dever de conduta. Ao contrário, a relação obrigacional é um
todo contínuo, onde desde o seu nascimento (e mesmo antes) as partes
estão vinculadas por uma série de deveres anexos de conduta
(Nebenpflichten), impostos, pelo princípio geral de boa-fé na execução
das obrigações.{127} Mesmo antes do vencimento ou da ocorrência do
evento futuro e incerto, que dá ensejo à prestação principal, já estão
as partes vinculadas a uma série de atos, de condutas gerais, instrumen-
tais ou acessórias em relação ao adimplemento principal, condutas estas
não menos importantes para o bom cumprimento das obrigações, para
a realização dos interesses legítimos das partes do que a obrigação
principal.
Trata-se, portanto, de uma nova visão da obrigação, como um
complexo de atos, condutas, deveres a prolongar-se no tempo, do
nascimento à extinção do vínculo. Aceitar a existência de deveres de
conduta anexos aos contratos, deveres anexos contratuais ou obrigações
acessórias oriundas do princípio da boa-fé objetiva (como o dever de
informar, de cooperar, dever de cuidado, de sigilo, de conselho, de
lealdade etc.), significa reconhecer a imposição de um novo patamar
de boa-fé no mercado, boa-fé criadora de deveres de conduta contratual.
A noção de boa-fé objetiva, enquanto novo princípio a guiar a
conduta dos contraentes nos contratos cativos significa uma nova e
importante limitação ao exercício de direitos subjetivos. O exercício de
um direito subjetivo, como o de estabelecer livremente o conteúdo e
as cláusulas contratuais, será contrário à boa-fé (leia-se, abusivo)
quando se utiliza para uma finalidade objetiva ou com uma função
econômico-social distinta daquela para qual foi ele atribuído ao seu
titular pelo ordenamento jurídico, como também quando se exercita
este direito de maneira ou em circunstâncias desleais.{128} O princípio
da
boa-fé objetiva, limitadora de direitos (= poderes) definirá um novo
"grau" de abusividade das cláusulas e práticas comerciais presentes nos
contratos oferecidos no mercado.
* (127) Sobre os deveres anexos impostos pelo Princípio da Boa-fé
Objetiva, veja
detalhes neste capítulo, n. 41, letra "c", sobre a nova teoria contratual
e
a obra de Larenz, "Sch.", I, ob. cit., pp. 26 e ss.
(128) Assim os ensinamentos de Luis Diez-Picazo, em seu famoso
"Prólogo à
Edição Civitas" da obra citada de Wieacker, pp. 19 e 20. (p. 79)
Para disciplinar tais relações Contratuais complexas, cativas, de
longa duração, passou-se, portanto, a uma visão dinâmica destes
contratos massificados, de como sua especialidade e indiscutível
importância social imprimem a necessidade de uma nova interpretação
das obrigações assumidas, de uma visualização mais precisa da gama
de deveres principais e secundários existentes nestas relações contra-
tuais e de que, em virtude da confiança despertada, o paradigma
máximo aqui há de ser o princípio da boa-fé objetiva.

2.5 As cláusulas abusivas nos contratos de massa

O fenômeno da elaboração prévia e unilateral, pelos fornecedores,


das cláusulas dos contratos possibilita aos empresários direcionar o
conteúdo de suas futuras relações contratuais com os consumidores
como melhor lhes convém. As cláusulas contratuais assim elaboradas
não têm, portanto, como objetivo realizar o justo equilíbrio nas
obrigações das partes, ao contrário, destinam-se a reforçar a posição
econômica e jurídica do fornecedor que as elabora.{129}
Não é raro, portanto, que contratos de massa, contenham cláusulas
que garantam vantagens unilaterais para o fornecedor que as elaborou,
diminuindo os seus deveres em relação ao consumidor, exonerando-o
de responsabilidades, diminuindo assim seus riscos e minimalizando os
custos de uma futura lide.{130} Assim, por exemplo, as cláusulas referen-
tes às obrigações do fornecedor em caso de inadimplemento, total ou
parcial terão como objetivo, geralmente, limitar ao máximo estas
obrigações, limitar a responsabilidade contratual do fornecedor, trans-
feri-la a terceiros ou fixar sancionamentos indevidos para o caso de
rescisão por parte do consumidor.
A concepção e a redação unilateral pelo fornecedor do conteúdo
do contrato, como que convida à elaboração de cláusulas que primam
pela unilateralidade’{131} dos direitos que asseguram, garantindo vanta-
* (129) Veja por todos Calais-Auloy, Clauses Abusives, pp. 115 e
ss.
(130) Assim p. ex.: as cláusulas exonerativas de responsabilidade
pelo fato do
produto, por vício ou defeito. Roppo, p. 365, relembra que a cláusula de
eleição do foro permite concentrar o trabalho forense e o departamento
jurídico em um só local, diminuindo os custos, veja o artigo de Xavier
sobre
o tema.
(131) Assim tb. o mestre Alpa/Diritto, p. 184 e o Ombudsman sueco
Edling, p. 7. (p. 80)
gens somente para o fornecedor de bens e serviços, quebrando o
equilíbrio do contrato e enfraquecendo ainda mais a posição contratual
do consumidor.
São as chamadas cláusulas abusivas, as quais incluídas em
contratos de adesão ou em condições gerais dos contratos vão ser
oferecidas à aceitação pelos consumidores. Poderíamos perguntar
porque o consumidor aceitaria contratar sob estas condições que lhe são
tão gritantemente desfavoráveis.
Em verdade, a maioria dos consumidores que concluem contratos
pré-redigidos o fazem sem conhecer precisamente os termos do
contrato. Normalmente, o consumidor não tem a oportunidade de
estudar com cuidado as cláusulas do contrato, seja porque ele as
receberá só após concluir o contrato, seja porque elas se encontram
disponíveis somente em outro local, seja porque o instrumento contra-
tual é longo e impresso em letras pequenas e em uma linguagem técnica,
tudo desestimulando a sua leitura e colaborando para que o consumidor
se contente com as informações gerais (e nem sempre totalmente
verídicas) prestadas pelo vendedor. Assim, confiando que o fornecedor
cumprirá, pelo menos, o normalmente esperado naquele tipo de
contrato, ele aceita as condições impostas, sem plena consciência de
seu alcance e de seu conteúdo.
Mas mesmo que o consumidor tenha oportunidade de inteirar-se
plenamente do conteúdo contratual, lendo com calma as cláusulas pré-
redigidas, ainda assim pode vir a aceitar as cláusulas abusivas, ou
porque a cláusula estava redigida de maneira a dificultar a compreensão
de seu verdadeiro alcance para uma pessoa sem conhecimentos jurí-
dicos aprofundados, ou porque o consumidor necessita do bem ou
serviço oferecido. Esta última hipótese pode acontecer quando o
serviço oferecido é daqueles imprescindíveis à vida moderna (forne-
cimento de água, luz, gás etc.), quando o fornecedor encontra-se em
posição de monopólio, ou quando todos os fornecedores oferecem
praticamente as mesmas condições contratuais (por exemplo: transporte
aéreo), quando o serviço ou produto desejado, no momento, só é
prestado por aquele fornecedor (por exemplo: determinado espetáculo,
filme ou produto em determinada faixa de preço). Note-se que mesmo
se o consumidor, um jovem advogado, por exemplo, tiver plena
consciência do abuso de determinadas cláusulas do contrato de locação
residencial, referentes ao pagamento da taxa de cadastro no valor de (p.
81)
um aluguel, ao pagamento das reformas e reparações no apartamento,
o que poderá ele fazer? Raramente a Administradora modificará as
cláusulas do ajuste, preferindo então locar para outro dos muitos
candidatos, perdendo o consumidor a chance de viver naquele agradá-
vel bairro da cidade, em apartamento do tamanho e do preço que
desejava. Assim, ponderando bem os interesses envolvidos e não
querendo ficar privado do bem, o consumidor submete-se e adere à
vontade poderosa do fornecedor de bens. A desigualdade fática entre
os contratantes é flagrante.
A abusividade da cláusula contratual é, portanto, o desequilíbrio
ou descompasso de direitos e obrigações entre as partes, desequilíbrio
de direitos e obrigações típicos àquele contrato específico; é a
unilateralidade excessiva, é a previsão que impede a realização total do
objetivo contratual, que frustra os interesses básicos das partes presen-
tes naquele tipo de relação, é, igualmente, a autorização de atuação
futura contrária à boa-fé, arbitrária ou lesionária aos interesses do
outro
contratante, é a autorização de abuso no exercício da posição contratual
preponderante (Machtposition).
A abusividade é, assim, abstrata, potencial ou atual, porque
ataca
direitos essenciais àquele tipo de contrato, porque impõe excessivas ou
surpreendentes obrigações, porque leva à lesão do co-contratante.
A abusividade é potencial, porque a cláusula talvez ainda não
tenha sido executada ou exigida, logo, no mundo dos fatos, sua
abusividade é apenas potencial e talvez o consumidor - que geralmente
não lê ou se intera totalmente do conteúdo dos contratos - desconheça
a sua inclusão em sua relação contratual. É atual, pois no mundo do
direito, no conteúdo do contrato, já "existe" tal previsão abusiva,
mesmo que não tenha aquele direito contratual sido exercido, mesmo
que a previsão não tenha surtido ainda efeitos no mundo dos fatos, mas
os direitos e obrigações, que ela assegura ou impõe, já compõem (e
desequilibram ou frustram) a relação jurídica que vincula o fornecedor
e o consumidor.
A abusividade é abstrata, porque jurídica, como o abuso de
direito
é fenômeno jurídico da má utilização do próprio direito, das autoriza-
ções, da liberdade concedida ao indivíduo. E por ser um fenômeno
jurídico, a abusividade das cláusulas contratuais necessita, para sua
identificação, da atividade do intérprete, do aplicador da lei, daquele
que, examinando a relação jurídica e o contrato que vincula o (p. 82)
consumidor e o fornecedor, irá concluir pelo caráter abusivo da
cláusula.
Assim, é a presença da cláusula abusiva nos contratos
massificados
ou na relação jurídica individual que a torna atual, é a execução do
contrato que vai, na maioria das vezes, esclarecer o potencial abusivo
da previsão contratual, mas é a interpretação do contrato in concreto,
em qualquer desses momentos, a atividade básica para a identificação
da abusivfdade das cláusulas.
Em outras palavras, a estipulação de cláusulas abusivas é conco-
mitante com a celebração dos contratos, mas a "descoberta", a
"identificação" de sua abusividade é geralmente posterior, é atividade
do intérprete do contrato, do aplicador da lei, face aos reclamos daquele
que, ao executar o contrato, verificou o abuso cometido.
A atividade do intérprete para reconhecer a abusividade das
cláusulas é, portanto, crucial e deve se concentrar na visão dinâmica
e total dos contratos. Segundo a nova Diretiva da Comunidade Euro-
péia,{132} a abusividade deve ser observada não na leitura isolada da
cláusula, mas na leitura do todo do contrato, na função da cláusula no
contrato como está redigido, na repercussão da cláusula naquela
espécie de contrato, pois cada contrato têm objetivo e finalidades
diferentes, possui características essenciais suas, desperta e envolve
outros tipos de interesses e expectativas entre os contratantes.{133}
Assim
uma cláusula poderia ser abusiva se vista isoladamente, mas não se
vista no todo daquele contrato, ou vice-versa, uma cláusula de exclusão
ou de revogação poderia ser lícita na maioria dos contratos de longa
duração, mas não naquele tipo específico ou não naquele contrato,
redigido de determinada maneira maliciosa.
A inserção de cláusulas abusivas nos contratos de massa e sua
aceitação pelos consumidores é, portanto, uma realidade a exigir do
novo direito dos contratos uma resposta.
* (132) Diretiva n. 93/13, de 5.4.93, art. 4, texto em alemão
publicado na íntegra
in EuZW, 11/1993, pp. 352-354 (Fonte oficial: ABLEG Nr. L, 95, de
21.4.93, p. 29).
(133) Veja detalhes sobre a nova Diretiva Européia sobre
cláusulas abusivas em
Hans Micglitz, "AGB-Gesetz und die EG-Richtlinie über missbräuchliche
Vertragsklauseln in Verbraucherverträgen", in: Zeitschrift für
europäisches
Privatrecht (ZEuP), 1993/522-535. (p. 83)

3. Crise na teoria contratual clássica

3.1 Crise da massificação das relações contratuais

Com a industrialização e a massificação das relações contratuais,


especialmente através da conclusão de contratos de adesão, ficou
evidente que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à
realidade socioeconomica do séc. XX.{134}
Em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que
real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro
o desnível entre os contraentes - um autor efetivo das cláusulas, outro,
simples aderente - desmentindo a idéia de que assegurando-se a
liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual.
Em outros novos contratos a liberdade de escolha do parceiro ou
a própria liberdade de contrair não mais existia (contratos necessários),
sendo por vezes a própria manifestação da vontade irrelevante, face ao
mandamento imperativo da lei (contratos coativos).{135}
A crise na teoria conceitual do direito era inconteste.{136} Em
1937,
Gaston Morin{137} sabiamente preconizava a "revolta dos fatos contra os
códigos", o declínio e o fim da concepção clássica de contrato. Pois,
apesar de asseguradas, no campo teórico do direito, a liberdade e a
autonomia dos contratantes, no campo prático dos fatos, o desequilíbrio
daí resultante já era flagrante.
Cumpre, porém, esclarecer que se o voluntarismo e, portanto, a
concepção tradicional de contrato se encontravam efetivamente em
declínio,{138} para a idéia de contrato esta foi uma crise de
transformação,
* (134) Veja, por todos, Batiffol, La crise..., p. 13 e ss.
(135) Assim denomina Gomes, Transformações, pp. 17 e ss.
(136) Clássicas tornaram-se as exposições de Gaston Morin, "Les
Tendances
actuelles de la théorie les contrats" in: Revue trímestrielle de droit
civil,
XXVI, 1937, pp. 553 e ss., veja também Weil/Terré, p. 67. Em 1945 Morin
escreveria a pequena brochura La révolte du droit contre le code, com o
expressivo subtítulo: "La révision nécessaire des concepts juridiques.
(137) Morin/"Tendances", apud Reale, Nova Fase, p. 103.
(138) Assim concordava Morin/Révolte, p. 12, que denominou o
fenômeno de
desagregação da teoria contratual do Code Civil. (p. 84)
ou nas palavras lúcidas de Galvão Teles,{139} uma crise de verdadeiro
rejuvenescimento.
Desde fins do século XIX, o direito não ignorava o aparecimento
das doutrinas socialistas, exigindo normas de tutela específica da classe
operária e de suas relações Contratuais com o empresariado.{140} A
revolução industrial fomentou a formação de classes; os problemas
sociais crescem e dão origem à primeira intervenção poderosa do
Estado Liberal nas relações privadas: o Direito do Trabalho.{141}
A Igreja Católica propõe, em suas encíclicas,{142} uma doutrina
social, a mudança de uma moral individual para uma ética social,
combatendo tanto as idéias marxistas quanto as do liberalismo selva-
gem, pois considera que a razão do Estado é vetar pelo bem comum,
devendo, portanto, amparar os direitos dos cidadãos, especialmente os
mais fracos.
No início do século XX, bem antes de seus colegas, Jhering{143}
vislumbra a insuficiência da ciência do direito da época, a Jurisprudên-
cia dos Conceitos, afastada dos elementos sociais e dos problemas dos
tempos modernos, afirmando: "A vida não é o conceito; os conceitos
é que existem por causa da vida".{144} Jhering proporia, então, o exame
dos fins substanciais do direito, dos fins práticos das normas jurídicas,
integrando, assim, elementos sociais na ciência do direito.
As idéias de Jhering foram o ponto de partida da "Jurisprudência
dos Interesses" do início do nosso século e tiveram uma atuação
libertadora para os juízes ao interpretar as leis e preencher as lacunas,
pois poderiam aplicar os juízos de valor contidos na lei sem descuidar
do caso concreto em julgamento.{145} Mas, infelizmente, a "função social
* (139) Galvão Teles, p. 48.
(140) Veja Reale, Nova Fase, p. 103.
(141) Em seu clássico trabalho A revolta do direito contra o
Código, Morin
destaca a importância que o surgimento de um novo regime para os
contratos de trabalho representou na transformação da teoria contratual,
veja
Morin/Révolte, pp. 40 e ss.
(142) Veja por exemplo a primeira encíclica social do Papa Leão
XIII "Rerum
Novarum", de 1891, publicada em Documentos Pontifícios, Ed. Vozes,
Petrópolis, 1985.
(143) Assim Larenz, Metodologia, p. 48.
(144) Apud Larenz, Metodologia, p. 49.
(145) Assim Larenz, Metodologia, pp. 53 e 59. (p. 85)
do direito privado" preconizadas por Jhering{146} permaneceu nas pági-
nas dos livros e revistas doutrinárias não chegando a sensibilizar o
legislador do Direito Civil. Temas como a responsabilidade por dano,
o abuso de direito, a teoria da base do negócio jurídico (Geschäftsgrun-
dlage), a onerosidade excessiva, as restrições sociais ao direito de
propriedade, a proteção da confiança nas relações contratuais, as
cláusulas abusivas nos contratos de adesão, só encontrariam alguma
disciplina legal após a segunda Guerra ou no pioneiro Código Civil
italiano de 1942.
Desde esta época, duas tendências entram em choque, na ciência
do direito: de um lado os primeiros clamores por uma socialização do
Direito, os quais pediam maior liberdade ao juiz e maior inspiração
social nas normas jurídicas, com a relativação do dogma da autonomia
de vontade; de outro, a teoria pura de Hans Kelsen{147} voltava-se
novamente para a norma, para o labirinto teórico do próprio direito
como ciência.
Na Europa, antes da segunda Guerra Mundial, a socialização
iniciada do Direito foi incapaz de conter o fortalecimento do poder do
Estado. Estado e Direito tornaram-se sinônimos. O Estado refortalecido
começa um processo estatizante, passa a dirigir e a intervir na atividade
econômica, transforma-se em grande parceiro contratual. Deste proces-
so resulta o fortalecimento do Direito Administrativo e do Direito de
Trabalho, mas, também, refletirá na chamada "publicização" do Direito
Civil.{148}
Note-se que, mesmo tendo sido elaborado à época do Fascismo,
o Código Civil Italiano de 1942, em alguns aspectos, dá início à
socialização do Direito, pois ao mesmo tempo em que respeita os
esquemas tradicionais do Direito, disciplina questões jurídicas reclama-
das pela nova sociedade de consumo, como o contrato de adesão e as
condições gerais dos contratos.
No Brasil, mesmo após a segunda Guerra, a tendência mundial
de socialização do Direito Civil, especialmente do Direito dos contra-
* (146) Segundo ensina Larenz, Metodologia, p. 47, von Gierke já
utilizara a
expressão em obra de 1889.
(147) Veja detalhes e crítica à teoria de Kelsen, em Larenz,
Metodologia, pp. 81
e ss.
(148) Assim Reale, Nova Fase, p. 111, veja Raizer, p. 12. (p. 86)
tos, terá pouca repercussão legislativa, exceção feita às novas leis
sobre
inquilinato, seguros e promessa de compra e venda. A Teoria Pura de
Kelsen, porém, fascinará muitos juristas brasileiros, mesmo que nessa
teoria pura, a "justiça" ou a "injustiça" do conteúdo de uma norma
nenhuma importância tenha, bastando que a norma tenha sido efetiva-
mente estabelecida de maneira legítima pela norma fundamental
correspondente.{149}
Sendo assim, fácil compreender porque, apesar dos vários proje-
tos{150} de Código elaborados, as normas brasileiras sobre contratos
continuaram as mesmas desde o início do século. Mas, também, no
Brasil, todo o individualismo e voluntarismo presentes nestas normas,
não mais se adaptava à realidade do século XX, com a proliferação dos
contratos de adesão, dos contratos cativos de longa duração, a concen-
tração monopolizante de poder em mão das empresas e dos conglome-
rados Industriais, a presença do Estado na Economia obrigando os
particulares em muitos casos a contratar, o novo valor dado aos bens
imateriais, autorais e aos direitos fundamentais. Porém, no caso
brasileiro, a crise da concepção clássica de contrato só terá uma solução
na década de oitenta, mais especificamente, com a edição da nova
ordem constitucional, e de seu reflexo mais importante até agora no
campo contratual: o Código de Defesa do Consumidor, o CDC se
propõe a restringir e regular, através de normas imperativas o espaço
antes reservado totalmente para autonomia da vontade, instituindo
como valor máximo a eqüidade contratual.
Podemos, assim, concluir que a crise levou o conceito de contrato
a um desenvolvimento fecundo.{151} Para muitos o que foi denominado
de crise do contrato era, em verdade, a crise do dogma da autonomia
da vontade.{152} Efetivamente, no mundo atual podemos verificar que o
campo de utilização dos contratos tem se ampliado. Não só o número
* (149) Assim também concluiu Larenz, Metodologia, p. 89.
(150) Destaca-se aqui o Projeto de Código Civil 634/75, que
pretendia, desde
1972, instituir normas em "consonância com o imperativo da função social
do contrato", Exposição de Motivos na parte referente ao Direito das
Obrigações, p. 20.
(151) Assim Galvão Teles, p. 48, Lisboa, p. 103, afirma: "O
contrato é instituto
jurídico insubstituível".
(152) Veja, por todos, Alterini/López Cabana, p. 14. (p. 87)
de contratos concluídos é bem maior, em virtude do desenvolvimento
da sociedade de consumo, como novos tipos de contratos foram
criados (por exemplo: leasing, franchising, factoring, know-how,
hedging, shopping center), demonstrando a maleabilidade e a
fecundidade deste instrumento jurídico.{153}
Certo é que a decadência do voluntarismo no Direito Privado
levou à relativização dos conceitos.{154} O direito dos contratos, em
face
das novas realidades econômicas, políticas e sociais, teve que se
adaptar e ganhar uma nova função, qual seja, a de procurar a realização
da justiça e do equilíbrio contratual.{155}
No novo conceito de contrato, a eqüidade, a justiça
(Vertragsgerechtigkeit) veio ocupar o centro de gravidade,{156} em subs-
tituição ao mero jogo de forças volitivas e individualistas, que, na
sociedade de consumo, comprovadamente só levava ao predomínio da
vontade do mais forte sobre a do vulnerável. É o que o Projeto de
Código Civil (PL 118/84) denomina "função social do contrato", novo
limite ao exercício da autonomia da vontade.{157}
Esta renovação teórica do contrato à procura da eqüidade, da boa-
fé e da segurança nas relações contratuais vai aqui ser chamada de
socialização da teoria contratual. É importante notar que esta sociali-
zação, na prática, se fará sentir em um poderoso intervencionismo do
Estado na vida dos contratos e na mudança dos paradigmas, impondo-
se o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das
* (153) Assim também Weil/Terré, p. 67.
(154) Assim tb. Gomes, Transformações preconiza o abandono de
conceitos, p.
9, em obra hoje clássica, Atiyah, p. 727, relembra que a crise na
liberdade
contratual é coincidente com a crise na liberdade de propriedade ou, no
caso
brasileiro, com o reconhecimento da existência de uma função social
também para a propriedade privada.
(155) Para os comparatistas alemães Zweiger/Koetz, p. 8, a nova
função do direito
dos contratos é a justiça ou eqüidade contratual; na lição basilar de
Atiyah/
Contract, p. II: "The tendency nowdays is to look on lhe law as a
positive
instrument for the achievement of justice"; para referido autor, o
princípio
moral e legal de que as obrigações assumidas devem ser cumpridas passa
a ser complementado por outro princípio, segundo o qual o agente não deve
tirar vantagem de um contrato abusivo ("unfair contract").
(156) Assim Galvão Teles, p. 48.
(157) Dispõe o art. 421 do projetato Código Civil: "A liberdade
de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do contrato". (p. 88)
obrigações. A reação do direito virá através de ingerências legislativas
cada vez maiores nos campos antes reservados para a autonomia da
vontade, tudo de modo a assegurar a justiça e o equilíbrio contratual
na nova sociedade de consumo.

3.2 Crise da pós-modernidade

Com a sociedade de consumo massificada e seu individualismo


crescente nasce também uma crise sociológica,{158} denominada por
muitos de pós-moderna.{159} Os chamados tempos pós-modernos são um
desafio para o direito.{160} Tempos de ceticismo quanto à capacidade da
ciência do direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas
que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade
assustadora.{161} Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do
abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do
modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar
a evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência
dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito
mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos
fundamentais dos cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise
de desconstrução,{162} de fragmentação,{163} de indeterminação à procura
de uma nova racionalidade,{164} de desdogmatização do direito;{165} para
* (158) Assim Tourraine, p. 159, e Lipovetsky, p. 7.
(159) A base da expressão no direito parece ter surgido na
França, em especial
na revista Droit et Societé e nos pensadores franceses Derrida, Foucault,
Baudrillard e Lyotard, veja Carty, p. viii.
(160) Assim Ghersi, La Posmodernidad, p. 14.
(161) Exemplos deste ceticismo são os importantes estudos
críticos de Unger, p.
5 e ss.
(162) Assim Carty, p. viii: "Pos-modernism as a method of legal
desconstruction
can as well be applied to the English and other legal orders".
(163) Assim Ghersi, Modernos conceptos, p. 200, é bastante
negativo, conside-
rando a fragmentação do direito um caminho para seu esvaziamento e
destruição como instrumento de Justiça na sociedade, a ser substituído
pela economia. Veja "La fragmentación, como ideario filosófico", ob.
cit.,
p. 200 e ss.
(164) Ladeur, p. 481.
(165) Assim Boaventura de Souza Santos, p. 17. (p. 89)
outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador
a influenciar o direito.{166} Este fenômeno aumentaria a liberdade dos
indivíduos,{167} mas diminui o poder do racionalismo, da crítica em
geral,
da evolução histórica{168} e da verdade, também em nossa ciência, o
direito.{169} Fenômeno contemporâneo à globalização{170} e à perda da
individualidade moderna,{171} assegura novos direitos individuais à dife-
rença,{172} destaca os direitos humanos,{173} mas aumenta o radicalismo e
o conservadorismo acrítico das linhas tradicionais.{174}
Nesta terceira edição, pareceu-me interessante incluir uma
análise
mais profunda sobre a crise da teoria contratual oriunda destes novos
movimentos sociais, filosóficos, culturais e econômicos, que estão
sendo denominados pós-modernos e seus eventuais reflexos no direito
civil e nos métodos de contratação. Ao tratar dos contratos cativos de
longa duração na segunda edição, optamos por não utilizar esta
terminologia "pós-moderna", justamente por sua insegurança e pelas
críticas constantes que recebe, inclusive de autores como Habermas.{175}
* (166) Assim, Jayme, p. 36 e ss. Como ensina Lopes,
Transformações, p. 77,
"tanto o direito faz parte da cultura quanto possui sua própria cultura:
o
sistema jurídico é constituído de uma "cultura". São as atitudes que
fazem
do sistema um todo, uma unidade, e que determinam o lugar dos aparelhos
e das normas na sociedade globalmente considerada. A cultura jurídica
engloba tanto as atitudes, hábitos e treinamento dos profissionais quanto
do cidadão comum." Tal linha de pensamento possui tradição no Brasil,
através da escola de Recife e a influência do "culturalismo jurídico" de
Tobias Barreto; sobre o tema veja o nosso artigo, "Cem anos", p. 21 e ss.
(167) Assim Friedman, Republic, p. 61.
(168) Assim Vatino, p. XII.
(169) Assim Foucault, p. 80 e ss.
(170) Jayme, p. 36.
(171) Ghersi, La Posmodernidad, p. 56, menciona relações
econômicas sem
sujeito, relações de grupos.
(172) Jayme, p. 37.
(173) Höffe, p. 285 e ss.
(174) Assim também Gellner, p. 11.
(175) Como afirma Habermas, reconhecer, nomear ou denominar um
fenômeno,
como se faz com o pós-modernismo, significa se distanciar suficientemente
deste e, mesmo, decretar o seu fim. Habermas não se considera pós-
moderno, está comprometido com os ideais da modernidade, chega a
ironizar a freqüente utilização na literatura atual desta denominação
"pós", (p. 90)
Nesta edição, porém, após a observação da jurisprudência e da doutrina
brasileira, não posso deixar de concluir pela atualidade do tema, a
superar qualquer problema de simples denominação.{176}
Vivemos um momento de mudanças, não só legislativas, mas
políticas e sociais. Os europeus estão a denominar este momento de
queda, rompimento ou ruptura (Umbruch), de fim de uma era e de
início de algo novo, ainda não identificado, de pós-modernidade. Seria
a crise da era moderna e de seus ideais concretizados na revolução
francesa, "de liberdade, de igualdade e de fraternidade,{177} que não se
realizaram para todos, nem são hoje considerados realmente realizá-
veis. Momento em que se desconfia da força e suficiência do direito
para servir de paradigma à organização das sociedades democráticas,
atualmente em um capitalismo neoliberal bastante agressivo, com fortes
efeitos perversos e de exclusão social.{178} Vivemos um momento de
mudança também no estilo de vida, da acumulação de bens materiais,
passamos a acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar, para
os contratos’ de fazer, do modelo imediatista da compra e venda para
um modelo duradouro da relação contratual, da substituição, da
terceirização, das parcerias fluídas e das privatizações, de relações
meramente privadas para as relações particulares de iminente interesse
social ou público.{179}
Se a realidade denominada pós-moderna{180} é a realidade da pós-
industrialização, do pós-fordismo, da tópica, do ceticismo quanto às
*mas, por fim, reconhece a importância destes pensadores como sensíveis
indicadores do Zeitgeist, do pensamento e espírito atual a indicar uma
mudança. Veja Habermas, p. 12.
(176) Como ensinam Alterini/López Cabana, na idéia de crise e sua
análise não
há somente o elemento negativo, de desaprovação, mas o elemento positivo,
de esperança na descoberta da soLução nova, de superação dos problemas
identificados e de evolução. Assim Alterini/López Cabana, p. 12.
(177) Assim Carty, p. 1.
(178) Veja por todos Tourraine, Alain, "Uma Visão Critica da
Modernidade", in:
Cadernos de Sociologia/UFRGS, vol. 5, p. 36 e ss.
(179) Veja detalhes em meu trabalho sobre time-sharing, p. 64 e
ss.
(180) Lyotard, p. 13: "Dieses Wort [postmodern] ist auf dem
amerikanischen
Kontinent, bei Soziologen und Kritikern gebräuchlich. Es bezeichnet den
Zustand der Kultur nach den Transformationen, welche die Regeln der
Spiele der Wissenschaft, der Literatur und der Kunste seit dem Ende des
19 Jahrhunderts getroffen haben". (p. 91)
ciências, quanto ao positivismo;{181} época do caos, da multiciplicidade
de culturas e formas, do direito à diferença, da "euforia do individu-
alismo e do mercado",{182} da globalização e da volta ao tribal. É também
a realidade da substituição do Estado pelas empresas particulares, de
privatizações,{183} do neoliberalismo, de terceirizações, de comunicação
irrestrita, de informatização e de um neoconservadorismo. Realidade
de acumulação de bens não materiais, de desemprego massivo,{184} de
ceticismo sobre o geral, de um individualismo necessário, da coexis-
tência de muitas metanarrativas simultâneas e contraditórias. Realidade
de perda dos valores modernos, esculpidos pela revolução burguesa e
substituídos por uma ética meramente discursiva e argumentativa {185} de
legitimação pela linguagem, pelo consenso momentâneo e não mais
pela lógica, pela razão ou somente pelos valores que apresenta.{186}
É uma época de vazio, de individualismo nas soluções{187} e de
insegurança jurídica,{188} onde as antinomias são inevitáveis e a de-
regulamentação do sistema convive com um pluralismo de fontes
legislativas e uma forte internacionalidade das relações.{189} É a
condição
pós-moderna que, com a pós-industrialização e a globalização das
economias, já atinge a América Latina e tem reflexos importantes na
ciência do direito.{190} É a crise do Estado do Bem-Estar Social.
* (181) Habermas, p. 35.
(182) Assim Ghersi, La posmodernidad, p. 27: "No queda pues más
que añadir,
la posmodernidad es también la posmoralidad, es posolidaria, es sin duda
le euforia del individualismo y el mercado, gobernados desde la tumba de
Bentham por el nuevo perfil utilitarista, aliado al placer y a la
felicidad
consumista".
(183) A crítica dos efeitos negativos ao consumidor latino-
americano da combi-
nação entre privatizações, desregulamentação e utilização apenas fictícia
de
entes reguladores e de meios alternativos de solução de controvérsias é
feita
por Stiglitz, Defensa, p. 130 e ss.
(184) Assim a visão negativa de Ghersi sobre o pós-modernismo,
Ghersi, La
posmodernidad, p. 13 e ss.
(185) Veja quanto aos atuais problemas da "teoria do discurso"
Alexy, p. 13 e ss.
(186) Kaufmann, Grundprobleme, p. 224 e ss.
(187) Assim a visão negativa de Lipovetsky, p. 7.
(188) Sobre a tensão entre o moderno e o pós-moderno e a
insegurança no
direito, veja o excelente prólogo de Oliveira Jr., p. 7 e ss.
(189) Jayme, p. 36 e ss.
(190) Veja por todos Ghersi, p. 13. (p. 92)
Chame-se como desejar o momento atual de crise (Umbruch) e
de mudança, a sua realidade supera qualquer expectativa e seus reflexos
no direito não podem mais ser negados. Na procura de quais seriam
os reflexos desta crise "sociológica" no contrato, partiremos de uma
análise mais ampla, elaborada por meu professor orientador de Dou-
torado, Erik Jayme da Universidade de Heidelberg, com base nos
elementos da cultura pós-moderna e seus reflexos no direito como
ciência, para só então examiná-los enquanto sintomas da crise pós-
industrial do direito dos contratos.
Segundo Erik Jayme,{191} as características, os elementos da
cultura
pós-moderna no direito, seriam: o Pluralismo, a Comunicação, a
Narração, o que Jayme denomina de "le retour des sentiments", sendo
o Leitmotive da pós-modernidade, a valorização dos direitos humanos.
Para Jayme o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise
da pós-modernidade.
o Pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes
legislativas
a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos
sistemas genéricos normativos (Zersplieterung); manifesta-se no
pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de
consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente
e na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os
fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente
despersonalizadas.{192} Pluralismo também na filosofia aceita atualmente,
onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios
têm sempre uma dupla função, o double coding, e onde os Valores são
muitas vezes antinômicos.{193} Pluralismo nos direitos assegurados, no
direito à diferença e ao tratamento diferenciado dos diferentes, ao
privilégio de alguns, nos espaços e setores "de excelência".
A comunicação seria um valor máximo da pós-modernidade. A
nova legitimação do direito, da Justiça, estada na comunicação e no
* (191) Jayme, p. 36.
(192) Veja sobre pluralismo no direito Friedman, The Republic, p.
11 e ss. Com
uma visão positiva deste momento de pluralismo, veja Benedetti, p. 161,
que recorrendo a fonte romana comum na Europa preleciona ser uma crise
de crescimento: "Tutto il discorso si puó sintetizzare con una formula:
lunità nella molteplicità".
(193) Kaufmann, Grundprobleme, p. 226, e Jayme, p. 246 e ss. (p.
93)
revival da autonomia da vontade, associada a valorização extrema do
tempo e do direito como instrumento de comunicação, de informação.
Manifestar-se-ia na valorização do passar do tempo nas relações
humanas, na valorização do eterno e do transitório, da necessidade de
fixar/congelar momentos e ações para garantir a proteção dos mais
fracos e dos grupos que a lei quer privilegiar. A comunicação segundo
muitos é o atual método de legitimação de todas as ciências, o discurso
legitima, a informação cria mitos e transforma-se em verdade, tudo
jogos de palavras (Sprachspiele).{194} Assim a nova ética e filosofia são
discursivas{195}, assim o consentimento do indivíduo para ser legitimador
é só aquele informado e esclarecido.{196} Comunicação é também
internacionalidade das relações jurídicas e a revalorização do direito
internacional privado e das técnicas de harmonização e unificação das
leis.{197}
O elemento da narração origina-se na comunicação, é a conse-
qüência deste impulso de contato, de informação que invade a filosofia
do direito e as próprias normas legais. Haveria, segundo Jayme, um
novo método de elaborar normas legais, não normas para regular
condutas, mas normas que narram seus objetivos, seus princípios, suas
finalidades, positivando os objetivos do legislador no microssistema de
forma a auxiliar na interpretação teleológica e no efeito útil das
normas.{198} O método tradicional de elaborar normas que impunham
condutas teria sido superado, pois estas não mais asseguram que os
objetivos propostos serão alcançados. Assim o legislador passa a
esclarecer seu próprio objetivo (ratio legis), ajudando e fixando a
interpretação da norma no futuro, como normas narrativas, que ilumi-
nam a interpretação segundo Jayme,{199} mesmo que não cogentes.
Normas-objetivo, segundo o jus-filósofo brasileiro, Eros Roberto
Grau.{200}
* (194) Veja Lyotard, p. 87 e ss.
(195) Kaltfmann, Grundprobleme, p. 213.
(196) Charbin, p. 7.
(197) Jayme, p. 247.
(198) A definição de normas narrativas é de Erik Jayme, Narrative
Normen im
Internationalen Privat - und Verfahrensrecht, Mohr: Tübingen, 1993, p.
16. No Brasil, veja os ensinamentos de Eros Roberto Grau.
(199) Jayme, Narrative Normen, p. 16.
(200) Grau, Direito, p. 130 e ss. (p. 94)
O que Jayme denomina retour des sentiments é, de um lado, a
volta de uma certa "emocionalidade", no discurso jurídico, de outro lado
é o imponderável, a procura de novos elementos sociais, ideológicos e/
ou de fora do sistema, que passam a influir a argumentação e as
decisões jurídicas, criando forte insegurança e imprevisibilidade quanto
a solução a ser efetivamente encontrada.{201} A pós-modernidade teria
assim as características de uma crise de final de século, de início de
algo novo, de mudanças, de inseguranças frente a algo que não se
entende e que passivamente se observa.
O último elemento, verdadeiro Leitmotive destacado por Jayme,
é um revival dos direitos humanos, como novos e únicos valores
seguros a utilizar neste caos legislativo e desregulador, de múltiplas
codificações e microssistemas, de leis especiais privilegiadoras e de
leis
gerais ultrapassadas, de soft law e da procura de uma eqüidade cada
vez mais discursiva do que real.{202}
Parece-me que a crise da pós-modernidade é, em verdade, uma
mudança na maneira de pensar o direito. Demonstra de certa forma um
certo apatismo e imobilismo em relação às novidades, aos novos
desafios, assim como ilumina uma desconcertante crise de ideais e
confusão de valores e linhas jurídicas, que têm influência no direito
contratual deste final de século.{203} Se assim podemos afirmar, os
estudos sobre as mudanças na pós-modernidade, exista ela ou não,
como momento histórico, acabaram por realçar ou espelhar o que já
acontecera: a transformação do modelo contratual, em face dos limites
do modelo contratual do século XIX.
Trata-se de uma fotografia, de um momento guardado para ser
estudado, mas que ainda nem denominação fixa tem. A verdade é que
do modelo estático da compra e venda, de um dar, passamos para um
modelo dinâmico, complexo, reiterado e de fazeres de longa duração,
como nos contratos de serviços e nos aqui estudados contratos cativos.
Passamos de um contrato bilateral e comutativo, para o modelo de um
contrato múltiplo, conexo, triangular ou plúrimo, onde nos pólos
encontram-se uma variada gama de sujeitos, como o fornecedor direto
* (201) Jayme, p. 261 e ss.
(202) Assim Jayme, p. 56 e p. 167 e ss.
(203) "Reich", in RT 728, p. 19, chega a mencionar uma filosofia
"pós-
intervencionista" e "ecológica" de proteção do consumidor. (p. 95)
e a cadeia de fornecedores indiretos e sujeitos protegidos (individuais
ou coletivos), como o consumidor-contratante, o consumidor stricto
sensu e os consumidores equiparados.
A noção de sinalagma, de nexo mínimo in concreto, ganha
destaque, assim como a da confiança. Trata-se de um contrato muitas
vezes aleatório e, se não, um contrato fictamente-comutativo, pois o
importante passa a ser o nexo das prestações e seu equilíbrio
(symalagma), não a prestação em si, mas seus anexos, sua qualidade,
sua funcionalidade, a informação que a acompanha, o status que
assegura, a rapidez e a segurança quanto ao seu prestar. Os valores que
nos movem a contratar são outros, outros os desejos, outras as pressões,
as necessidades do mundo atual, algumas plúrimas e passageiras, em
um quase consumismo.{204}
Do contrato com regime geral e único, passamos para o contrato
Com regime jurídico também plural, tendo em vista a aplicação de uma
série de leis especiais e gerais à mesma relação contratual em seus mais
diversos aspectos. Este conviver de normas de diversas hierarquias e
finalidades traz consigo o problema da solução de antinomías, mais do
que a segura teoria da revogação expressa, hoje quase não mais usada.
Onde há Zersplitterung, onde houve uma auto-implosão das grandes
codificações e o aparecimento de vários microssistemas. As antinomias
são inevitáveis e mesmos os princípios constitucionais, por vezes, são
propositadamente contraditórios.
No novo modelo contratual há uma revalorização da palavra
empregada e do risco profissional, aliada a uma grande censura
intervencionista do Estado quanto ao conteúdo do contrato. É um
acompanhar mais atento para o desenvolvimento da prestação, um
valorizar da informação e da confiança despertada. Alguns denominam
de renascimento da autonomia da vontade protegida. O esforço deve
ser agora para garantir uma proteção da vontade dos mais fracos, como
os consumidores. Garantir uma autonomia real da vontade do contra-
tante mais fraco, uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta
das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros
métodos agressivos de venda, é o objetivo.
Esta "nova autonomia" foi denominada por Nicole Charbin , em
sua tese de doutorado de 1988, de vontade racional ("vontade
* (204) Assim tb. Macneil, Adjustment, p. 856 e ss. (p. 96)
rationnelle").{205} A denominação parece-me feliz, pois indica a impor-
tância dos novos direitos dos consumidores: o direito à informação, o
direito à reflexão e ao eventual arrepedimento como forma de proteção.
Os métodos de venda mudaram e estão cada vez mais agressivos,
emocionais e apelativos, os desejos dos consumidores aprimoraram-se
e o consumismo não é mais um fenômeno isolado, assim está cada vez
mais difícil alcançar esta vontade realmente refletida ou "racional",
como prefere Charbin.
A tese de Charbin é um exemplo de teoria pós-moderna, pois tenta
criar um double coding, mudando o sentido exatamente do dogma mais
tradicional da teoria contratual: a autonomia de vontade. Agora, quer
Charbin frisar a autonomia do outro, do mais fraco, do consumidor;
sendo assim a expressão autonomia ganha um novo perfil, uma dupla
significação e nunca mais poderá ser apenas (e unilateralmente)
entendida como "autonomia do mais forte", do comerciante, do
profissional. Assim também frisa o Juiz Schimasky da Corte Federal
Alemã, em um artigo de doutrina sobre a autonomia de vontade e os
contratos bancários, que a liberdade contratual é uma norma de
proteção (constitucional) de pessoas e a Corte sempre tentou proteger
esta liberdade. "Entretanto não podemos proteger a liberdade contratual
daquele que quer justamente reduzir, limitar ou mesmo excluir a
liberdade contratual da outra parte. Liberdade é sempre a liberdade do
outro." O magistrado da mais alta corte civil da Alemanha destaca ainda
que o contrato é "por essência bilateral, a liberdade contratual é
portanto indivisível, ela significa a liberdade dos dois e não somente
a liberdade do contratante mais forte."{206}
O Professor Erik Jayme, considerou o contrato de time-sharing ou
de multipropriedade como o modelo de contrato da época pós-
moderna.{207} O time-sharing pode ser definido como um contrato
múltiplo e complexo, visando o uso habitacional de um imóvel, de um
complexo de imóveis, assim como dos serviços conexos a esta fruição,
tudo por certo tempo a cada período de um ano.{208}
* (205) Charbin, p. 216.
(206) Schimansky, p. 462 e 463.
(207) Jayme, p. 247.
(208) Veja nosso artigo sobre time-sharing, in Revista Direito do
Consumidor,
v. 22, p. 64 e ss. (p. 97)
É paradigmático, pois possui uma série de características que
podem ser classificadas como pós-modernas, a começar por seu objeto
que é o lazer temporário, o uso de um imóvel em uma área turística
e serviços conexos, por uma semana ou duas a cada ano.{209} Também
há que destacar a natureza dos direitos assegurados aos consumidores,
direitos múltiplos, mas nem todos de natureza real, já que a
multipropriedade no mais das vezes não transfere nem envolve direitos
de propriedade, só direitos reais de uso.{210} Estes direitos limitados
de
uso aliados a grande quantidade de serviços anexos prestados podem
mesmo permitir tipificar este contrato como preponderantemente um
contrato de fornecimento de serviços. Outra característica pós-moderna
é a multiplicidade de agentes que envolvem este fornecimento de
serviços e a fruição dos direitos de uso assegurados pelo contrato de
time-sharing, desde o organizador (o incorporador ou verdadeiro
proprietário do imóvel e do complexo turístico), o simples vendedor,
o verdadeiro proprietário, o administrador do imóvel e do complexo de
turismo, os fornecedores diretos da alimentação, de passeios etc. E
muitas vezes um contrato "sem fronteiras" ou internacional, pois as
áreas e complexos turísticos muitas vezes localizam-se em outro país
que o de domicílio ou nacionalidade do consumidor e a participação
em "Círculos de Trocas Internacionais" torna possível que a fruição do
direito de uso temporário dê-se em qualquer país.{211}
Como se pode observar, os valores ou elementos da pós-moder-
nidade são fluídos, os estudos jurídicos ainda incipientes. Em um
momento permite esta vaga pós-moderna a criação de teorias como a
de Charbin, que prega a revalorização dos direitos humanos. Em outro
momento, o radicalismo identifica novamente a vontade como única
fonte de legitimação jurídica. Em outras palavras, a revalorização da
vontade é positiva no caso do direito do consumidor, mas se radicalizada
pode levar a conclusões incoerentes, como a própria deslegitimação do
Judiciário para resolver lides de consumo. Observe-se neste sentido o
discurso que envolve a arbitragem, a mediação ou outros métodos
alternativos de solução de controvérsias, como seriam mais rápidos ou
* (209) Veja Martinek, p. 268.
(210) Veja Tepedino, propondo a solução através da propriedade da
figura do
condomínio, para maior segurança dos multiproprietários, p. 106 e ss.
(211) Veja, por todos, a obra de Tepedino, p. 7 e ss. (p. 98)
mais "legítimos", discurso que omite a discussão sobre perpetuação do
desequilíbrio ou a imparcialidade do árbitro. Note-se que o discurso
pós-moderno pode disfarçar uma visão neoliberal da economia e da
sociedade, com todos os seus perigos,{212} assim como internamente
prega um enorme ceticismo quanto a capacidade da ciência (em geral
e também da ciência do direito) fornecer respostas eficientes aos
problemas atuais.{213} A pós-modernidade também leva alguns a aceitar
a exclusão social de muitos,{214} aceitar uma visão passiva do Estado
frente ao hedonismo do mercado e da nova sociedade.{215}
Sendo assim, em tempos pós-modernos é necessária uma visão
crítica do direito tradicional, é necessária uma reação da ciência do
direito, impondo uma nova valorização dos princípios, dos valores de
* (212) A fase pós-moderna ou a pós-modernidade apregoa de um lado
o
esgotamento, os estertores do Estado Social (Welfare State), reeditando
ora
a insegurança legal, como aliás já se observa na Argentina que, ainda
terceiro-mundista, caminha para a desregulamentação, desindustrialização
e a privatização total, ora, em sentido inverso, fomentando a hiper-
regulamentação, face a natural reação do Estado frente ao vazio
legislativo
e ao abuso das liberdades econômicas. O Estado "Pós-moderno" passa
então a impor um forte (radical) controle no mercado, quanto à execução
dos contratos socialmente importantes, cujo conteúdo passa ele, totalmen-
te, a ditar, como se observa na Europa.
(213) A pós-modernidade seria a nova fase da sociedade, do
esgotamento, dos
ideais da Revolução Francesa e, conseqüentemente do Direito Moderno
iniciado com estes ideais. A Pós-modernidade iniciou como um movimento
artístico, cultural, filosófico, fora dos ideais iluministas e face à
observação
dos limites da ciência frente ao caos, apregoando uma negação ou
desestruturação dos modelos tradicionais da ciência moderna, uma fase de
crise dos paradigmas, de desmistificação dos conceitos, de desregulamen-
tação, desburocratização e desestatização. Em suma, fase de insegurança
conceitual e fática, a qual estaria fadada a ser logo substituída por uma
volta
ao radical controle estatal das atividades no mercado, a imputação de
novos
e imperativos deveres e pelo estabelecimento de uma estrutura contratual
"repressiva", um contrato de consumo ditado, extremamente formal, regu-
lamentado e controlado pelo Estado.
(214) Sobre o tema comenta Domont-Naert, p. 29, citando Lenoir:
"Une societé
de consommation qui est aussi une societé du spetacle devient par là-même
une société de frustation pour bon nombre de ceux que leurs revenues
excluent d’une abondance aux limites incertaines et subjectives".
(215) Neste sentido a crítica de Ghersi, p. 24 e ss. Veja sobre a
atual importância
dos direitos negativos frente ao Estado, Ladeur, p. 491 e ss. (p. 99)
Justiça e eqüidade e, principalmente, no direito civil, do princípio da
boa-fé objetiva, como paradigma limitador da autonomia de vontade.{216}
Caso contrário, o próprio direito brasileiro ao privilegiar os mais
fortes
levará à opressão e exclusão dos mais fracos na sociedade. A crise atual
leva a pensar na necessidade de proteção da vontade do Consumidor,
como ideal utópico remanescente da metanarrativa da modernidade, de
tratamento desigual aos desiguais.
É tempo de alterar o ponto de concentração do direito civil e
pensar no grupo que recebe as declarações, na confiança despertada
pela atuação profissional dos fornecedores e não só em estabelecer
normas que privilegiam aquele que declara, aquele que redige os
contratos massificados, aquele que impõe seus métodos de marketíng
agressivos ou emotivos de venda. No novo direito contratual, a
liberdade contratual do profissional não deve ser a única a merecer
proteção jurídica, pois sua posição de poder (Machtposition) nas
tratativas contratuais é clara e intrínseca aos métodos contratuais
atuais,
mas, sim, deve concentrar no outro, no direito e na liberdade do outro.
A liberdade do consumidor é que deve ser protegida, sua autonomia
de vontade, racional e efetiva. São tempos de relações contratuais
múltiplas, despersonalizadas e a durar no tempo e estender-se a toda
uma cadeia de fornecedores de serviços e produtos. Tempos que
impõem uma visão da obrigação como um processo muito mais
complexo e duradouro do que uma simples prestação contratual, um
dar e um fazer momentâneo entre parceiros contratuais teoricamente
iguais, conhecidos e escolhidos livremente.
Segundo o emérito professor de Filosofia do Direito da Univer-
sidade de Erlangen-Nürnberg, Reinhold Zippelius, o Direito deve ser
um instrumento para uma organização social justa e equilibrada
(zweckmäBiger und gerechter Sozialgestaltung).{217} Nesta visão, as
normas jurídicas são, portanto, instrumentos que ajudam a determinar
a realidade social, conforme os objetivos considerados justos e dese-
jáveis para aquela sociedade. O direito pode ser, portanto, um instru-
mento de justiça e inclusão social na sociedade atual, instrumento de
* (216) Concorda Lopes/Transformações, p. 141 e ss., sobre a
necessidade de
resposta do direito e de presença ativa e coordenadora do Estado
na
sociedade.
(217) Zippelius, p. 258. (p. 100)
proteção de determinados grupos na sociedade, de realização dos novos
direitos fundamentais,{218} de combate ao abuso do poder econômico e
a toda atuação dos profissionais que seja contrária a boa-fé no tráfico
entre consumidores e fornecedores no mercado.
Esta visão ativa e positiva do direito civil, como instrumento de
combate aos males da sociedade atual através da imposição de um
patamar superior de respeito e lealdade nas relações sociais, é possível
no Brasil após o advento do Código de Defesa do Consumidor, como
será a seguir analisada.

4. A nova concepção de contrato e o Código de Defesa do Consumidor

4.1 A nova concepção social do contrato

A nova concepção de contrato é uma concepção social deste


instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação
da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os
efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta{219} e onde a
condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em
importância.{220} Nas palavras visionárias de Morin "l’homme n’apparait
plus comme la seule efficiente du droit, mais il devient la cause
finale".{221}
Á procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo
moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como
verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passará a
proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança
depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contra-
tantes.
* (218) Assim Oliveira Jr., p. 191 e s. e Sarlet, p. 49 e s.
(219) Assim Zweiger/Koetz, pp. 6 e 7, e Batiffol, La crise, p.
19.
(220) Aqui aludimos tanto à proteção dos trabalhadores nos
últimos séculos,
quanto a nova proteção contratual dos consumidores.
(221) Morin/Révolte, p. 109, em tradução livre: o homem não
aparece mais como
causa eficiente do direito (origem deste), mas passa a ser a causa final
deste
(a razão do direito). (p. 101)
Conceitos tradicionais como os do negócio jurídico e da autono-
mia da vontade permanecerão,{222} mas o espaço reservado para que os
particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas
imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor. É
uma nova concepção de contrato no Estado Social, em que a vontade
perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu Lugar elemento
estranho às partes, mas básico para a sociedade como um todo: o
interesse social.{223}
Haverá um intervencionismo cada vez maior do Estado nas
relações contratuais, no intuito de relativizar o antigo dogma da
autonomia da vontade com as novas preocupações de ordem social,
com a imposição de um novo paradigma, o princípio da boa-fé objetiva.
E o contrato, como instrumento à disposição dos indivíduos na
sociedade de consumo, mas, assim como o direito de propriedade,
agora limitado e eficazmente regulado para que alcance a sua função
social.
Para analisar esta evolução do pensamento jurídico até a formação
do novo conceito social de contrato, dividiremos o nosso estudo em três
partes, inicialmente tratando da evolução teórica do direito dos contra-
tos, que aqui será denominada de socialização da teoria contratual, e
após, analisando o método escolhido para alcançar esta socialização na
prática, a imposição de um princípio limitador e auto-criador, o
princípio da boa-fé, e o fenômeno do intervencionismo do Estado na
relação contratual.
a) Socialização da teoria contratual - Mencionamos anteriormen-
te, que as proposições de Jhering e a Jurisprudência dos Interesses
* (222) Parte da doutrina estrangeira discorda e chega a afirmar
que a autonomia
da vontade teria perdido seu valor como princípio e nada mais seria do
que
uma visão atrasada do direito (Atiyah), mais realista Tallon, p. 83,
resume
esta visão ao parafrasear o famoso "adage" inglês, afirmando que a
autonomia da vontade, assim como os "writs", estaria morta, mas ela
continuaria a nos governar, tanto ela fascinou os juristas e inspirou o
nosso
direito positivo". Particularmente, preferimos afirmar a permanência do
princípio da autonomia da vontade no direito atual, ressaltando apenas a
evolução ocorrida quanto ao seu conteúdo e aos seus novos limites. Nesse
sentido tb. Batiffol, La crise, p. 26.
(223) Esta é a conclusão de Paulo Lobo em sua tese sobre o
contrato no Estado
Social, pp. 127 e 128. (p. 102)
(Interessenjurisprudenz) marcaram uma nova etapa na evolução do
pensamento jurídico, pois permitiram que elementos sociais, interesses
outros que não os derivados da doutrina da autonomia da vontade,
passassem a integrar as preocupações do direito dos contratos.
Assim também as novas teorias italianas sobre negócio
jurídico,{224}
influenciaram esta evolução, ao destacarem o papel maior da lei na
nova noção do contrato.
Para o grande mestre italiano, Betti,{225} a autonomia da vontade
não
seria a fonte única da obrigação. Na sua famosa definição, a autonomia
da vontade deveria ser entendida como auto-regulamentação dos
interesses particulares. O contrato seria um ato de auto-regulamentação
de interesse das partes, e, portanto, por excelência, um ato de autonomia
privada, mas este ato deveria ser realizado nas condições permitidas
pelo direito, pois só assim a lei dotaria de eficácia jurídica o
contrato.
A posição dominante, portanto, é da lei.
O contrato seria, então, um instrumento que o Direito oferece
para
possibilitar a auto-regulamentação dos interesses dos particulares. A
vontade é pressuposto e fonte geradora das relações jurídicas já
reguladas em abstrato e em geral, pelas normas jurídicas.{226} A ordem
jurídica é que, em última análise, reconhece a autonomia privada, é ela
pois, quem pode impor limites a esta autonomia.
Estes postulados abalariam a onipotência da vontade individual na
teoria do direito. Valores como a eqüidade, a boa-fé e a segurança nas
relações jurídicas tomam lugar ao lado da autonomia da vontade na
nova teoria contratual.
Assim, se na concepção clássica de Savigny a vontade interna
deveria prevalecer sobre a vontade declarada, vamos observar, quando
da renovação da teoria contratual, que a preferência recairá sobre a
vontade declarada e a aparência de vontade, na chamada Teoria da
Confiança. Enquanto, a Willenstheorie de Savigny valoriza o dogma da
vontade, como criadora e única legitimadora do vínculo, peca por
desconsiderar a necessidade de segurança das relações jurídicas. Assim,
propõe a anulação do contrato mesmo tendo em vista a dificuldade de
* (224) Veja a interessante exposição de Gomes, Transformações,
pp. 42 e ss.
(225) Betti, Emilio, Teoria general del negocio juridico, trad.
espanhola, Ed. Rev.
de Derecho Privado, Madri, p. 43.
(226) Veja Gomes, Transformações, p. 44 citando Betti. (p. 103)
prova da vontade interna da pessoa, e uma eventual boa-fé do outro
contraente ou de terceiro que adquiriu o bem. Na Teoria da Confiança
(Vertrauenstheorie), abrandamento da antiga Teoria da Declaração,
valoriza-se mais a vontade declarada do que a vontade interna, tudo
com o fim de dar maior certeza e segurança às relações contratuais.{227}
É o elemento social, representando pela confiança, ganhando em
significação. De modo que, pela Teoria da Confiança, hoje majoritária,
admite-se a responsabilidade de quem, por seu comportamento na
sociedade, fez nascer no outro contratante a justificada expectativa no
cumprimento de determinadas obrigações.{228} Vamos observar reflexos
desta teoria no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, quando
a publicidade ou as informações prestadas pelo vendedor vão ser
inseridas no contrato (art. 30), uma vez que criam no consumidor
justificadas expectativas em relação ao bem, ao serviço ou às obriga-
ções acessórias ao contrato. Em outras palavras, na nova concepção de
contrato, o declarante deve responder pela confiança que o outro
contratante nele depositou ao contratar.{229}
O direito dos contratos socializado redescobre o papel da lei,
que
não será mais meramente interpretativa ou supletiva, mas cogente (veja
art. 1º do CDC). A lei protegerá determinados interesses sociais e
servirá como instrumento limitador do poder da vontade.
Fala-se mais modernamente na função do direito dos contratos
como orientador da relação obrigacional e como realizador da
eqüitativa distribuição de Deveres e Direitos.{230} É o que os
comparatistas
alemães Zweigert e Koetz{231} visualizam como nova função do direito
dos contratos, a realização da eqüidade contratual, dentro da
concepção de um "Welfare State". Em nossa opinião esta almejada
justiça contratual encontra-se justamente na equivalência das presta-
ções ou sacrifícios, na proteção da confiança e da boa-fé de ambas
as partes.
* (227) Assim também Nery, p. 11 e Gomes, Transformações, p. 14.
(228) Assim Koendgen, p. 132, utiliza a expressão "Schutz
legitimer Erwartungen",
assim, a nova função do direito dos contratos seria proteger os legítimos
interesses e expectativas das pessoas.
(229) Assim Nery Jr., p. 11.
(230) Assim Koendgen, pp. 135 e ss.
(231) Zweigert/Koetz, p. 7, utilizam a expressão
Vertragsgerechtigkeit. (p. 104)
O direito desenvolve, assim, uma teoria contratual "com função
social", bem ao estilo daquelas descritas por Wiehweg,{232} isto é, o
direito deixa o ideal positivista (e dedutivo) da ciência, reconhece a
influência do social (costume, moralidade, harmonia, tradição) e passa
a assumir proposições ideológicas, ao concentrar seus esforços na
solução dos problemas. É um estilo de pensamento cada vez mais
tópico,{233} que se orienta para o problema, criando figuras jurídicas,
conceitos e princípios mais abertos, mais funcionais, delimitados sem
tanto rigor lógico, como veremos no CDC,{234} pois só assumem
significação em função do problema a resolver, são fórmulas jurídicas
de procura da solução do conflito, fórmulas que jamais perdem a sua
qualidade de tentativa.{235}
Como resultado desta mudança de estilo de pensamento, as leis
passam a ser mais concretas, mais funcionais e menos conceituais.{236}
É o novo ideal de concretude das leis, que para alcançar a solução dos
novos problemas propostos pela nova realidade social (título 2.2), opta
por soluções abertas, as quais deixam larga margem de ação ao juiz
e à doutrina, usando freqüentemente noções-chaves, valores básicos,
princípios como os de boa-fé, eqüidade, equilíbrio, equivalência de
prestações e outros. São topoi da argumentação jurídica, fórmulas
variáveis no tempo e no espaço, de inegável força para alcançar a
solução justa do caso concreto.{237}
b) Imposição do princípio da boa-fé objetiva - Como novo
paradigma para as relações contratuais de consumo de nossa sociedade
* (232) Em sua obra de filosofia do Direito, Tópica e
Jurisprudência, traduzida
para o português por Tércio Ferraz Jr., veja Wiehweg, pp. 86 e 87.
(233) Na definição de Wiehweg, p. 33, a tópica seria uma techne
do pensamento
que se orienta para o problema, ou nas palavras introdutórias de
Ferraz Jr.,
p. 3, é um modo de pensar por problemas.
(234) Por exemplo, quanto ao problema dos abusos da
vulnerabilidade do
consumidor na venda de "porta-em-porta" (art. 49), a solução será um novo
direito de arrependimento, de desistir do contrato, baseado no topoi
princípio da boa-fé nas relações de consumo, veja Cap. III, 2.3.
(235) Conclusão baseada no conceito de pensamento tópico no
direito, presente
na introdução de Ferraz Jr., in: Wiehweg, p. 3.
(236) O ideal de "concretude" das leis foi perfeitamente
explicado na Exposição
de Motivos do Projeto de Código Civil n. 634/75, pp. 14 e 15.
(237) Veja Wiehweg, p. 4. (p. 105)
massificada, despersonalizada e cada vez mais complexa, propõe a
ciência do direito o renascimento ou a revitalização de um dos
princípios gerais do direito há muito conhecido e sempre presente desde
o movimento do direito natural: o princípio geral da Boa-fé. Este
princípio ou novo "mandamento" (Gebot) obrigatório a todas as
relações contratuais na sociedade moderna, e não só as relações de
consumo, será aqui denominado de Princípio da Boa-Fé Objetiva para
destacar a sua nova interpretação e função. Efetivamente, o Princípio
da Boa-Fé Objetiva na formação e na execução das obrigações possui
uma dupla função na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos
deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados
deveres anexos, e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito,
hoje abusivo, dos direitos subjetivos.{238}
Inicialmente é necessário afirmar que a boa-fé objetiva é um
standard, um parâmetro objetivo, genérico, que não está a depender da
má-fé subjetiva do fornecedor A ou B, mas de um patamar geral de
atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira
normal e razoável naquela situação analisada.
Como ensinam os doutrinadores europeus,{239} fides significa o
hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromissos
assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a "fideli-
dade" e coerência no cumprimento da expectativa alheia independen-
temente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido
concluído; representando, sob este aspecto, a atitude de lealdade, de
fidelidade, de cuidado que se costuma observar e que é legitimamente
esperada nas relações entre homens honrados, no respeitoso cumpri-
mento das expectativas reciprocamente confiadas.{240} É o compromisso
expresso ou implícito de "fidelidade" e "cooperação" nas relações
contratuais, é uma visão mais ampla, menos textual do vínculo, é a
concepção leal do vínculo, das expectativas que desperta
(confiança).{241}
* (238) Veja obra clássica sobre a boa-fé, encontrável também em
espanhol, de
Franz Wieacker, contando com esclarecedor prólogo de Luis Diez-Picazo.
Sobre a importância deste novo Paradigma, veja a obra excelente de
Alberto
do Amaral Júnior, pp. 77 e ss.
(239) Veja Wieacker, "Buena fe", p. 61.
(240) Veja sobre a evolução da lides romana à noção européia e
pandectista,
Pasqualotto, p. 151 e ss.
(241) Betti, "Teoria General de las Obligaciones", tomo 1, p. 84.
(p. 106)
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma
atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respei-
tando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razo-
áveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução,
sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir
o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a
realização dos interesses das partes.{242}
A imposição, pela nova teoria contratual, do princípio geral de
boa-fé objetiva na formação e execução das obrigações obteve como
primeiro resultado - e, talvez, ainda o menos conhecido e aceito pelos
juristas - a modificação no modo de visualizar estaticamente a relação
contratual.
Passa-se a visualizar o contrato como uma relação jurídica dinâ-
mica, quê "nasce, vive e morre", vinculando durante certo tempo, talvez
mesmo anos, um fornecedor de serviços, por exemplo, o organizador
do plano de seguro-saúde ou a seguradora, e um consumidor e seus
dependentes. O contrato é uma relação jurídica total e contínua, que
nasce em determinada data, vinculando por exemplo, determinado
fornecedor do produto e um consumidor e desenvolvendo-se mesmo
antes do implemento do termo inicial ou do vencimento da prestação
principal através do nascimento, da modificação ou imposição de novos
direitos e deveres para ambas as partes. Assim em um simples contrato
de compra e venda de móveis sob medida para entrega em 60 dias, ou
em um contrato de compra e venda a prazo, com alienação fiduciária
ou mesmo em um contrato complexo e cativo, como o contrato de
consórcio para aquisição de bem móvel. Em todos estes exemplos
podemos concluir tratar-se a relação jurídica contratual em um feixe
de obrigações múltiplas e recíprocas.
Os doutrinadores alemães costumam afirmar que as relações
obrigacionais são, em verdade, uma "fila" ou uma "série" de deveres
de conduta e contratuais ("Reihe von Leistungspflichten und weiteren
Verhaltenspflichten"), vistos no tempo, ordenados logicamente, unidos
por uma finalidade. Esta finalidade, este sentido único ("sinnhaftes
Gefüge"), que une e organiza a relação contratual, é a realização dos
* (242) Sobre boa-fé como regra de conduta, como limite à
autonomia da vontade
e como fonte de novos deveres acessórios, veja a obra de Antonio
M.
da Rocha e Menezes Cordeiro, "Da Boa-fé no Direito Civil", vol. 1,
pp. 632 e ss. (p. 107)
interesses legítimos das partes ("vollständigen Befriedigung der
Leistungsinteressen aller Gläubiger"); realização do objetivo do con-
trato e o posterior desaparecimento da relação ("Erloschen").{243}
Trata-se de um verdadeiro processo que se desenvolve no tempo
("in der Zeit verlaufenden Prozess"), um processo social, um processo
jurídico, o contrato, visualizado dinamicamente, erradiando uma Série
de efeitos jurídicos ("Rechtsfolgen") durante a sua realização, antes
mesmo dessa e após.{244}
Esta visão dinâmica e realista do contrato é uma resposta à crise
da teoria das fontes dos direitos e obrigações,{245} pois permite
observar
que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de
execução), mais ainda, no seu momento de elaboração (de tratativas)
e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem nascer direitos e
deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Em outras
palavras o contrato não envolve só a obrigação de prestar, mas envolve
também uma obrigação de conduta.
A relação contratual nada mais é do que um contato social,{246}
um
contato na sociedade que une, vincula pessoas, contato onde necessa-
riamente não se pode esquecer ou desrespeitar os deveres gerais de
conduta, os deveres de atuação conforme a boa-fé e conforme o direito.
Estes deveres de conduta (Verhaltenspflichten) obrigam-nos a todos,
todos os dias, nas relações extracontratuais e muito mais, nas relações
contratuaIs.
Liberar os contratantes de cumprir Seus deveres gerais de
conduta,
significaria afirmar que na relação contratual os indivíduos estão
autorizados a agir com má-fé, a desrespeitar os direitos do parceiro
* (243) Assim as expressões e os ensinamentos hoje clássicos do
mestre alemão
Larenz, "Sch.", pp. 26, 27, 28.
(244) Larenz, idem, p. 28.
(245) A observação é do Prof. Clóvis do Couto e Silva, que
disseminou e
desenvolveu a teoria de Larenz no Brasil, ob. cit., p. 73.
(246) A expressão "contato social" foi desenvolvida pela doutrina
e jurisprudência
alemã para servir de ponto de encontro, de gênero, para as relações
contratuais e extracontratuais na sociedade, das quais nascem direitos e
obrigações, sempre ao interpretar o § 242 do BGB; sobre a evolução da
expressão "sozialen Kontakt", veja: Ralph Weber, "Entwicklung und
Ausdenung des § 242 BGB zum königlichen Paragraphen", in: JuS 1992,
p. 635. (p. 108)
contratual, a não agir lealmente, a abusar no exercício de seus direitos
contratuais, a abusar de sua posição contratual preponderante ("Ma-
chtposition"), autorizando a "vantagem excessiva ou a lesão do
parceiro contratual somente porque as partes firmaram um contrato,
escolhendo-se mutuamente de maneira livre no mercado.
A relação contratual não libera os contraentes de seus deveres de
agir conforme a boa-fé e os bons costumes, ao contrário, a vinculação
contratual os impõem, os reforçam.
A lógica - e o Direito - impõem que nesses contatos sociais,
nesses processos sociais, de inegável relevância jurídica, que são os
contratos,{247} os parceiros contratuais devam também observar seus
deveres de conduta, devam também tratar o outro com lealdade e
respeito, não danificar o patrimônio do próximo, não impedir que o
outro cumpra com os seus deveres, em suma, cooperar na medida do
possível segundo a lei.
Estes deveres de conduta que acompanham as relações contratuais
vão ser denominados de deveres anexos ("Nebenpflichten"), deveres
que nasceram da observação da jurisprudência alemã ao visualizar que
o contrato, enquanto fonte imanente de conflitos de interesses, deveria
ser guiado e, mais ainda, guiar a atuação dos contraentes conforme o
princípio da boa-fé nas relações.{248} Dever aqui significa a sujeição a
uma determinada conduta, sujeição esta acompanhada de uma sanção
em caso de descumprimento.{249}
Estes deveres de conduta gerais existem sempre, mas quando
integram uma relação contratual vão receber um novo nome especial,
uma vez que seu descumprimento dará razão a uma sanção com regime
* (247) Larenz, ob. cit., p. 14, chega a denominar estes contatos
de contatos
"negociais" ("geschäftliche Kontakts"), como grau dos contatos sociais.
(248) Sobre a evolução da noção de deveres anexos e a importância
da atuação
interpretadora da jurisprudência quanto ao § 242 do BGB, veja Larenz, ob.
cit., pp. 139 e 140. Referido autor utiliza como expressão genérica
também
"deveres anexos de prestação" ("Nebenleistungspflichten"), p. 138.
(249) Assim como o direito subjetivo é uma noção dupla, faculdade
de agir
conforme a norma autoriza (facultas agendi) e ação (em sentido material)
para proteger aquela faculdade ou atuação, o dever (subjetivado na pessoa
do fornecedor de serviços, por exemplo) também é um binômio, sujeição
obrigatória a uma conduta ou linha de conduta e sanção, resposta negativa
do direito, ao eventual descumprimento da conduta imposta. (p. 109)
especial, uma sanção contratual.{250} Descumprir o dever anexo de
informar o contratante sobre os riscos de um serviço a ser executado,
ou sobre como usar um produto, significa inadimplir, mesmo que
parcialmente.{251}
Assim, apesar de no Brasil consagrarmos a expressão alemã de
deveres anexos ou secundários, enquanto contratuais, tratam-se de
verdadeiras obrigações (obrigações acessórias, como os denominam os
franceses),{252} a indicar que a relação contratual obriga não somente ao
cumprimento da obrigação principal (a prestação), mas também ao
cumprimento das várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos
aquele tipo de contrato.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8 .078/90, trouxe como
grande contribuição a exegese das relações contratuais no Brasil a
positivação do princípio da boa-fé objetiva, como linha teleológica de
interpretação, em seu art. 4º, III e como cláusula geral, em seu art. 51,
IV, positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma
série de deveres anexos às relações contratuais.
O primeiro e mais conhecido dos deveres anexos (ou das obriga-
ções contratuais acessórias) é o dever de informar (Informationspflicht)
(veja arts. 30, 31 do CDC).
Este dever já é visualizado na fase pré-contratual, fase de
tratativas
entre o consumidor e o fornecedor, quando o consumidor escolhe, por
exemplo, o modelo de carro que pretende adquirir, uma simples
geladeira ou qual o plano de saúde deverá proteger sua família pelos
* (250) Nesse sentido, correta a observação de Junqueira de
Azevedo de que no
momento pré-contratual devemos denominá-los "deveres" e somente dentro
do contrato de "obrigações" acessórias, secundárias ou anexas, veja A.
Junqueira de Azevedo "A boa-fé na formação dos contratos", p. 79.
(251) Os doutrinadores alemães chegaram a elaborar mesmo uma nova
denomi-
nação para este tipo de inadimplemento, chamaram de "quebra positiva do
contrato" ("positive Vertragsverletzung"), positiva porque a obrigação
principal foi cumprida (as máquinas foram entregues, a operação foi
executada), mas "quebra" ou "ferimento" do contrato, porque a informação
devida (anexa) não foi prestada (os manuais não foram entregues, os
riscos
não foram esclarecidos para que o paciente pudesse escolher) e isto
frustrou,
prejudicou, o objetivo do contrato; veja a lição de Emmerich, pp. 240 e
ss.
(252) Sobre as obrigações acessórias do direito francês e sua
comparação com
alguns dos deveres anexos do direito alemão, veja Tese de Mayer.
(p. 110)
próximos anos, tipo, quais são as carências e as exclusões de cada tipo
de plano etc. Aqui as informações são fundamentais para a decisão do
consumidor (qualidade, garantias, riscos, carências, exclusões de res-
ponsabilidade, existência de assistência técnica no Brasil etc.) e não
deve haver indução ao erro, qualquer dolo ou falha na informação por
parte do fornecedor ou promessas vazias, uma vez que as informações
prestadas passam a ser juridicamente relevantes, integram a relação
contratual futura e, portanto, deverão depois ser cumpridas na fase de
execução do contrato, positivando a antiga noção da proibição do venire
contra factum proprium.{253}
Neste momento de tomada de decisão pelo consumidor, também
deve ser dada a oportunidade do consumidor conhecer o conteúdo do
contrato (veja art. 46 do CDC), de entender a extensão das obrigações
que assume e a abrangência das obrigações da prestadora de serviços.
É a nova transparência obrigatória nas relações de consumo, em
que vige um novo dever de informar, imputado ao fornecedor de
serviços e produtos, e uma nova relevância jurídica da publicidade,
instituída pelo CDC como forma de proteger a confiança despertada
por este método de marketing nos consumidores brasileiros.{254}
Esta inversão de papéis, isto é, a imposição pelo CDC ao
fornecedor do dever de informar sobre o produto ou serviço que oferece
(suas características, seus riscos, sua qualidade) e sobre o contrato que
vinculará o consumidor, inverteu a regra do "caveat emptor" (que
ordenava ao consumidor uma atitude ativa: se quer saber detalhes sobre
o plano de saúde, informe-se, descubra o contrato registrado em
cartório no Rio de Janeiro ou São Paulo... atue ou nada poderá alegar)
para a regra do "caveat vendictor" (que ordena ao vendedor ou corretor
de planos de saúde que informe sobre o conteúdo desse, riscos,
exclusões, limitações etc). Estabeleceu-se, assim, um novo patamar de
conduta, de respeito no mercado, que não admite mais sequer o dolus
bonus do vendedor, do atendente, do representante autônomo dos
fornecedores, face ao dever legal.
Interessante observar que a doutrina estrangeira visualiza dois
tipos de deveres de informação, o primeiro denominado dever de
* (253) Assim ensina Wieacker, ob. cit., p. 60.
(254) Veja sobre o princípio da transparência o trabalho de
Tomasetti, "O
objetivo", pp. 52 e ss. e o capítulo 3, da parte II desta obra. (p. 111)
"conselho" ou aconselhamento, e o segundo, dever de esclarecimento
simples.{255}
O dever de esclarecimento (Aufklarungspflicht, em alemão e
obligation de renseignements, em francês) obriga o fornecedor do
serviço (por exemplo, de seguro-saúde e de assistência médica a
Informar sobre os riscos do serviço do atendimento ou não em caso de
emergência, exclusões da responsabilidade contratual, modificações
contratualmente possíveis etc.), sobre a forma de utilização (necessI-
dade de autorizações, de exames prévios, de opiniões de médicos do
grupo, do tempo total de internação por ano etc.) e a qualidade dos
serviços (hospitais conveniados, médicos ligados ao grupo etc.).{256}
Já o dever de aconselhamento (Beratungspflicht, em alemão e
obligation de conseil, em francês) é um dever mais forte e só existe
nas relações entre um profissional, especialista, e um não especialista.
Cumprir ou não o dever de aconselhamento significa fornecer aquelas
informações necessárias para que o consumidor possa escolher entre
os vários caminhos a seguir (por exemplo: diferentes tipos de planos,
diferentes carências, diferentes exclusões etc.).
Este dever foi identificado como espécie mais forte, mais
exigente,
do gênero dever de informar, especialmente no caso dos médicos que
receitam determinado remédio, que aconselham o paciente a submeter-
se a determinada cirurgia ou a determinado tratamento, a utilizar
determinado hospital, deixando (ou omitindo) de informar as outras
possibilidades ou outros possíveis caminhos, que, como especialistas,
devem conhecer e informar.{257}
Este dever de informar existe também para o consumidor, quando
informa, por exemplo, seu estado de saúde à seguradora ou prestadora
de serviços. Aqui, porém, trata-se de pessoa leiga, que geralmente
* (255) Sobre a diferenciação elaborada na França e Alemanha sobre
o dever de
informar, veja excelente Mayer, ob. cit., pp. 101 a 104.
(256) Estas informações criam expectativas (agora) consideradas
legítimas, assim
se descumpridas (por exemplo, a qualidade apregoada, ou a cobertura dos
riscos não foi cumprida como anteriormente informado), reduzindo
faticamente o conteúdo do contrato (os hospitais não são mais
conveniados,
não há mais atendimento de emergência, como apregoado), há inadimple-
mento parcial, ou vício do serviço, na terminologia do CDC.
(257) Na terminologia portuguesa, todos os deveres de informação
são denomi-
nados deveres de esclarecimento, veja Menezes de Cordeiro, pp. 601 e ss.
(p. 112)
pressupõe a boa saúde sua e de seus dependentes. Se informações
especializadas são necessárias, há a seguradora de organizar esta pré-
seleção de clientes,{258} pois estas são normalmente desconhecidas ou
consideradas não relevantes pelo consumidor, a favor do qual milita
uma presunção de boa-fé subjetiva.{259}
O segundo dever anexo destacado pela doutrina é o "Dever de
Cooperação", dever (leia-se, obrigação contratual) de colaborar durante
a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva.
Cooperar é agir com lealdade e não obstruir ou impedir.{260}
Este dever será cumprido de um lado, evitando inviabilizar ou
dificultar a atuação do outro contratante, quando este tenta cumprir com
suas obrigações contratuais. Assim, por exemplo, quando o consumidor
necessite adimplir a sua obrigação e o fornecedor dificulta o pagamento
do consumidor, ao determinar que este só pode ser executado em local
especial ou em horas difíceis, ou somente após autorizado por deter-
minados papéis ou determinados servidores etc., descumpre seu dever
de conduta, suas obrigações acessórias conforme a boa-fé.{261}
* (258) Neste sentido, basilar a decisão da jurisprudência gaúcha,
antes do CDC:
"Seguro-saúde. Doença preexistente. A seguradora que recebe os prêmios,
independentemente de examinar a saúde do seu associado, não pode depois
escusar-se ao pagamento da cobertura alegando que a causa da internação
decorreu de doença preexistente. No caso, inocorre sequer essa relação de
causalidade. Ação improcedente. Apelo improvido" (Ap. Civ. 589041169,
5.ª C. civ., j. 22.8.89, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, in:
Jurispru-
dência TJRS, 1991, 23/119-122).
(259) Nesse sentido basilar foi a decisão do TJRS, 6.ª Câmara
Cível, Ap. C.
589069400, Rel. Luiz Fernando Koch, "Seguro-saúde. Pedido de restituição
de despesas médico-hospitalares. Incomprovação de que doença preexistente
e não declarada haja concorrido para o óbito de dependente do segurado.
Presunção de boa-fé do segurado quanto às declarações na proposta de
seguro. Ação improcedente. Apelo improvído" (in: Jurisprudência TJRS,
1990, v. 1, t. 14, pp. 297-301).
(260) Os doutrinadores franceses denominam este dever de
"obrigação de leal-
dade", de "fidelidade à execução", ao objetivo do contrato ("obligation
de
loyauté" ou "fidelité d’execution"), veja detalhes em Mayer, ob. cit., p.
102.
(261) Caso interessante é relatado pela jurisprudência, onde
seguradora de saúde
queria punir com a reabertura das carências para internação hospitalar
indivíduo que no dia do pagamento estava hospitalizado em Hospital
conveniado e, por isso, deixou de pagar no dia, adímplindo tão logo
recebeu (p. 113)
De outro lado, se o fornecedor está obrigado a cumprir com suas
obrigações (por exemplo: reembolsar ou fornecer determinados exames
e consultas médicas, entregar determinado bem, executar determinado
serviço) não deve dificultar o acesso do consumidor aos seus direitos
ou inviabilizar que a prestação seja devida (conhecida, tradicionalmen-
te, como exceptio doli).{262} Deve o fornecedor, igualmente, abster-se de
usar ou impor expedientes desnecessários ou maliciosos, como exigir
uma grande série de autorizações, documentos, solicitações só retiráveis
em determinados locais, em determinada hora e por decisão arbitrária
do próprio fornecedor, exigir comunicações imediatas ou em curto
espaço de tempo em matérias que envolvem a integridade física,
psíquica da pessoa e seus familiares, e ainda mais, exigindo esta
atuação contratual sob pena de perda dos direitos contratuais.
Estas dificuldades excessivas impedem o cumprimento da presta-
ção principal e significam o descumprimento das obrigações acessórias
oriundas do contrato e do dever de conduta segundo a boa-fé:
descumprir o dever de cooperação, de lealdade, significa inadimplir,
mesmo que parcialmente.
Este dever de lealdade, de cooperação, reflete-se também na
redação dos contratos, a qual é executada de maneira unilateral e prévia
pelo fornecedor. O fornecedor está autorizado a utilizar o método da
contratação em massa, através de contratos de adesão, e a imposição
de condições gerais, mas deve redigir estes textos de forma clara e
precisa, destacando as cláusulas que limitem ou excluam direitos do
consumidor.
Igualmente, podemos destacar o dever anexo de cuidado
(Schutzpflicht).{263} A imposição desta obrigação acessória no cumpri-
*alta. A partir do dia do vencimento da parcela não "paga", a seguradora
negou-se a cobrir seus gastos médicos, alegando que "terceiro" deveria
ter
pago em dia e que o doente deveria ter se preocupado com o pagamento...
na convalescência... O relator Des. Loureiro Ferreira afastou a
incidência de
tal cláusula sob o argumento de força maior e ausência de culpa do
consumidor (Ap. 592088512, TJRS, 3.ª Câmara,j. 30.9.92), mas a consciên-
cia do dever de conduta conforme a boa-fé, ou do dever contratual anexo
de
cooperação na execução das obrigações poderia também ter evitado a lide.
(262) Esta exceção tradicional é lembrada por Wieacker, ob. cit.,
p. 59.
(263) Os autores franceses denominam este dever anexo de
obrigação acessória
de "securité", veja Mayer, ob. cit., p. 113, já os portugueses preferem a
(p. 114)
mento do contrato tem por fim preservar o co-contratante de danos à
sua integridade: 1) a sua integridade pessoal (moral ou física) e 2) à
integridade de seu patrimônio.
Em seu primeiro aspecto, a obrigação de segurança, anexa ao
contrato, manifesta-se, por exemplo, quando da utilização de um meio
técnico para alcançar a realização do objetivo do contrato de serviço.
Assim, no contrato de transporte do passageiro e de sua bagagem este
será feito por um meio técnico (avião, ônibus, carro ou táxi) e deverá
o transportador cuidar que nenhum dano sobrevenha aos passageiros
e à bagagem sob sua responsabilidade, assim como cuidar para que o
meio utilizado (veículo) esteja em boas e adequadas condições.{264}
Esta tentativa de preservar a integridade do co-contratante
impõe-
se ao fornecedor de serviços para que no momento de sua atuação ou
ao organizar a atuação,{265} ou mesmo ao cobrar a sua dívida, não cause
danos morais ou patrimoniais ao co-contratante. Assim, quando divulga
informações que tomou conhecimento em razão da relação contratual,
deve cuidar para não causar danos (morais ou patrimoníais) ao
consumidor, desde o simples fornecimento de seu endereço para que
enviem correspondência comercial ou política até a divulgação de sua
situação financeira, de saúde ou opinião política, crença religiosa
etc.{266}
Em resumo, não deve o fornecedor do serviço abusar da sua
posição contratual preponderante de poder impor "normas", cláusulas
em relação com o consumidor, que façam este ter que suportar gastos
desnecessários, destruam o seu patrimônio ou cláusulas que tentem
obstruir, ou expor o consumidor à situação constrangedora, quando
tenta simplesmente cumprir com suas obrigações contratuais ou adimplir.
*expressão, dever de proteção, veja Menezes de Cordeiro, p. 610. Qualquer
das denominações é válida e útil à compreensão do fenômeno, motivo pelo
qual me inclino pela denominação "dever de cuidado", destacando seu
aspecto preventivo.
(264) Assim Mayer, ob. cit., p. 65.
(265) Veja neste sentido duas decisões do TAMG, sobre danos
morais por
acusações injustas de furto em estabelecimento comercial, in RT 712/242
(Ap. Civ. 171.069-6, j. 54.94, Rel. Juiz Roney Oliveira) e in RT 734/468
(Ap. Civ. 212.489-6, j. 10.4.96, J. Kildare Carvalho).
(266) O CDC impõe como objetivo a reparação integral e efetiva
dos danos
causados ao consumidores no mercado brasileiro, mencionando o art. 6.º,
VI do CDC os danos morais e patrimoniais. (p. 115)
Reconhecer a existência de deveres anexos de conduta significa,
igualmente, interpretar o contrato de forma mais abrangente. Redigido
de forma não clara, ou atuando o fornecedor em sentido contrário do
que informou ao consumidor (venire contra factum proprio), deverá o
fornecedor, uma vez vinculado ex lege por essas promessas e atuações,
cumprir o contrato totalmente. O fornecedor deverá realizar as expec-
tativas (agora legítimas) do consumidor, adimplir seu dever principal
e seus deveres anexos.
O princípio da boa-fé objetiva é, portanto, um princípio
limitador
do princípio da autonomia da vontade e um elemento criador de novos
deveres contratuais, que deve contar, para sua maior efetividade, com
sua previsão legal específica.
Para atingir este ambicioso fim, de eqüidade contratual e boa-fé
nas relações o Estado utilizará, então, o instrumento que dispõe, o poder
de regular a conduta dos homens através das leis, limitando assim a
autonomia privada. É o intervencionismo do Estado na vida dos
contratos, nosso próximo tema.
c) Intervencionismo dos Estados - A filosofia do Estado Liberal
exigia uma separação quase absoluta entre o Estado e a Sociedade,
Logo aquele não poderia intervir nas relações obrigacionais dos
particulares, ao contrário, deveria permitir a liberdade contratual como
reflexo do postulado máximo da autonomia da vontade, criadora do
próprio Estado politicamente organizado.{267}
Conseqüentemente, ao juiz não era permitido mais do que um
controle formal da presença ou da ausência da vontade e de um
consenso isento de vícios ou defeitos, nunca, porém, um controle do
conteúdo do contrato, da justeza e do equilíbrio das obrigações
assumidas. De outro lado, à lei cabia uma função interpretativa, no
máximo, supletiva da vontade.
Com o início da renovação da teoria contratual através das
tendências sociais antes mencionadas, em virtude dos postulados de um
novo Estado Social e da realidade da sociedade de massas, o Estado
passa a intervir nas relações obrigacionais.
* (267) Veja sobre o tema, na excelente tese de Paulo Luiz Lobo, a
comparação
do contrato no Estado Liberal e de como deveria ser o contrato no Estado
Social, especialmente, pp. 35 e ss. (p. 116)
No início, o intervencionismo estatal dar-se-á através da
planifi-
cação de certas atividades, pela fiscalização e controle de certos
negócios, pela fixação de quotas e preços mínimos. Mas, aos poucos,
o intervencionismo estatal evolui de modo a fomentar a edição de leis
limitadoras do poder de auto-regular determinadas cláusulas (p. ex.:
cláusulas de juros) e determinar o conteúdo de certos contratos,
passando a ditar o conteúdo daqueles contratos em atividades impres-
cIndíveis (por exemplo: transportes, fornecimento de água, luz).{268}
Assim, a intervenção do Estado na formação dos contratos vai ser
exercida não só pelo legislador, como também pelos órgãos adminis-
trativos.{269} Também o Poder Judiciário terá nova função, pois, se as
normas imperativas destas leis, aqui chamadas de intervencionistas,
restringem o espaço da liberdade individual no contrato, também
legitiMarão ao Judiciário para que exerça o tão reclamado controle
efetivo do conteúdo do contrato, controle da justiça contratual, em
especial, o controle das cláusulas abusivas.
No Brasil, este intervencionismo do Estado nas relações contra-
tuais concentrou-se no tabelamento de preços, no congelamento de
aluguéis e salários, na renovação compulsória de locações,{270} na
proscrição da usura e na declaração de ineficácia de certas cláusulas
exonerativas em determinados contratos, como o de transporte.{271}
Mas, exceção feita às normas trabalhistas, uma ampla intervenção
legislativa só aconteceria, com advento do Código de Defesa do
Consumidor, o qual em seus artigos deixa claro o espírito protetor da
nova concepção de contrato que o guia.

4.2 O Código de Defesa do Consumidor como conseqüência da nova


teoria contratual

Como acabamos de analisar, o direito contratual sofreu uma


profunda renovação. As suas transformações devem-se umas aos fatos,
como por exemplo, o incremento da vida contratual, cada vez mais
* (268) Veja a exposição de Couto e Silva/Obrigação, p. 22, assim
também Lobo,
p. 52.
(269) Assim Teles, p. 44.
(270) Veja a exposição de Bittar/Dirigismo, p. 243.
(271) Veja exposição de Villela, p. 29. (p. 117)
intensa e estandardizada, a mudança de uma economia agrária em
economia industrial e capitalista, concentradora de riquezas e de poder,
e a criação de uma sociedade de consumo. Outras, devem-se à
intervenção dos poderes públicos, chamados a corrigir e a dirigir as
forças econômicas e sociais, resultando na institucionalização dos
contratos e na intervenção legislativa neste campo antes reservado à
autonomia da vontade.
Segundo a nova visão do direito, o contrato não pode mais ser
considerado somente como um campo livre e exclusivo para a vontade
criadora dos indivíduos. Hoje, a função social do contrato, como
instrumento basilar para o movimento das riquezas e para a realização
dos legítimos interesses dos indivíduos, exige que o contrato siga um
regramento legal rigoroso. A nova teoria contratual fornecerá o
embasamento teórico para a edição de normas cogentes, que traçarão
o novo conceito e os novos limites da autonomia da vontade, com o
fim de assegurar que o contrato cumpra a sua nova função social.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor representa o
mais novo e mais amplo grupo de normas cogentes, editado com o fim
de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor,
segundo os postulados da nova teoria contratual.
Se no Título 1 desta obra, analisamos as conseqüências que a
aceitação da doutrina clássica da autonomia da vontade teve no campo
das idéias e postulados jurídicos, cabe agora refazer esta análise tendo
em vista, não mais o dogma único da vontade, mas as tendências sociais
da nova concepção de contrato, em seu reflexo mais visível, que é a
Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do
Consumidor.

a) Limitação da liberdade contratual - A teoria contratual


clássica, através da aceitação total do dogma da autonomia da vontade,
assegurava, no campo teórico do Direito, a igualdade e a liberdade de
todas as pessoas. O dogma da liberdade contratual era o reflexo mais
importante da força criadora da vontade. O indivíduo estaria, assim,
livre para contratar ou não contratar, para definir o conteúdo de suas
futuras obrigações, para escolher o parceiro contratual que lhe interes-
saSse.
No campo prático dos fatos, com a proliferação dos contratos de
massa, especialmente dos contratos de adesão, a liberdade contratual (p.
118)
já se encontrava limitada. Ao contrário do que se acreditava, o dogma
da liberdade contratual tornou-se uma ficção - em liberdade de um e
opressão do outro - assim como a esperada livre concorrência não foi
suficiente para conduzir a resultados aceitáveis.{272}
A concentração das empresas e os monopólios, estatais ou
privados, reduziram a liberdade de escolha do parceiro. Em casos de
serviços imprescindíveis, como água, luz, transporte, fala-se mesmo em
obrigação de contratar,{273} assim também, no caso de seguros tornados
obrigatórios, pois permanece a liberdade de escolha do parceiro, mas
não a de redigir ou não o contrato. O dirigismo contratual passa a
dominar.
O conteúdo de muitos contratos será ditado, regulamentado ou
autorizado pelo poder estatal. Os contratos pré-redigidos pelas empre-
sas substituirão o negócio jurídico bilateral antes concluído individu-
almente, desavarecendo o laborioso processo de negociações e discus-
sões preliminares. Permanece a liberdade de contratar, isto é, a de
realizar ou não um determinado contrato, mas a liberdade contratual,
liberdade para determinar o conteúdo da relação obrigacional{274}
sofreria
graves limitações através das novas técnicas de contratação e também,
através do intervencionismo legal na vida dos contratos, por exemplo,
quando da fixação obrigatória de preços ou da renovação compulsória
de locações para os atuais inquilinos.
Galvão Teles{275} destaca que além dessas limitações da liberdade
contratual, provindas do exterior, na nova sociedade de consumo teriam
tomado grande vulto as, por ele chamadas de, "autolimitações",
referindo-se às limitações voluntárias da liberdade futura de contratar
* (272) Assim também Schwab, "Liberdade", p. 17, destaca
igualmente à p. 19
o início do intervencionismo legal na Alemanha no campo da livre
concorrência para proibir os abusos e a concorrência desleal. As leis
contra
a concorrência desleal, apesar de, em última análise, levarem à defesa do
consumidor, não serão analisadas por nós no momento, pois queremos
concentrar o nosso estudo no direito contratual, na evolução do conceito
de contrato. Veja, porém, sobre o tema o excelente von Hippel, "Defesa",
pp. 26 e ss.
(273) Veja o interessante artigo de Gomes, "Obrigação de
Contratar", reflexo
deste pensamento tão em voga à época.
(274) Concordam tb. Wald, "Adesão", p. 258 e Pasqualotto, p. 53.
(275) Teles, p. 45. (p. 119)
assumidas pelas partes, por exemplo, nos contratos que regulam outras
futuras relações e nos pré-contratos, como entre nós a promessa de
compra e venda de imóvel.
O declínio da liberdade contratual é, portanto, um fato na
moderna
sociedade de consumo. O direito embutido da nova concepção de
contrato ao invés de combater este declínio, tentando, por exemplo,
assegurar a plena liberdade defendida pelos clássicos, aceita estes
novos limites impostos. Passa, porém, a verificar: a) se os limites
provêm do poder estatal, se foram legitimamente impostos, respeitando
os direitos constitucionais e tendo amparo em alguma lei; b) se provêm
dos particulares, se estas limitações, como por exemplo a imposição
do conteúdo do contrato, foram abusivas ou se respeitarem os novos
postulados sociais da boa-fé, da segurança, do equilíbrio e da eqüidade
contratual.
A aceitação de uma liberdade contratual limitada vai ter reflexos
na teoria do Direito. Assim, na nova noção da oferta, reforça-se o
caráter vinculante da oferta, em nome da segurança das relações
contratuais e da proteção da confiança, mas, e principalmente, passam
a integrar a oferta todas as informações (mesmo as publicitárias), que
possam fazer nascer expectativas ilegítimas quanto à qualidade, à
quantidade do produto ou quanto ao tipo de obrigações assumidas se
aceita a oferta. Nesse sentido, veja a interessante concepção de oferta
do art. 30 e ss. do novo Código brasileiro de Defesa do Consumidor,
a qual analisaremos em detalhes no Capítulo 3 deste livro.
Assim também, o novo direito dos contratos vai limitar a possi-
bilidade das empresas recusarem a contratar com determinada pessoa
ou em determinadas ocasiões, seja por respeito aos direitos constitu-
cionais, seja por passar a considerar ilícito o uso do poder econômico
e do monopólio para forçar, por exemplo, um aumento de preços. A
recusa de contratar, em alguns casos será punida pelas normas jurídicas
(veja, por exemplo, o art. 35 do Código de Defesa do Consumidor),
com desvantagens de ordem econômica, podendo estas ser interpreta-
das como levando a uma verdadeira "obrigação de contratar".{276} A tese
é discutível. Relembre-se aqui que, desde Jhering e sua idéia de culpa
in contrahendo, mesmo não nascendo o contrato, poderiam nascer
obrigações de indenizar prejuízos para aquele que frustra a conclusão
* (276) Veja as conclusões de Gomes/Transformações. (p. 120)
de um contrato com condutas reprováveis.{277} Assim, no caso em exame,
não haveria obrigação de contratar stricto sensu, mas uma punição,
equivalente aos eventuais direitos oriundos do contrato, se for recusada
a oferta.
A limitação da liberdade contratual vai possibilitar, assim que
novas obrigações, não oriundas da vontade declarada ou interna dos
contratantes, sejam inseridas no contrato em virtude da lei ou ainda em
virtude de uma interpretação construtiva dos juízes, demonstrando mais
uma vez o papel predominante da lei em relação à vontade na nova
concepção de contrato.
A nova teoria contratual impregnada por uma visão total da
relação e conforme a boa-fé passa também a valorizar o tempo como
elemento relevante. Na formação do vínculo, o tempo será considerado
como aliado, da racionalidade e reflexão na decisão dos consumidores.
O Código de Defesa do Consumidor reconhece a importância das novas
técnicas de vendas, muitas delas agressivas, do marketing e do contrato
como forma de informação do consumidor, protegendo o seu direito
de escolha e sua autonomia racional, através do reconhecimento de um
direito mais forte de informação (arts. 30, 31, 34,46 ,48 e 54 do CDC)
e um direito de reflexão (art. 49 do CDC).
Na execução do contrato, o tempo também passa a ser valorizado,
seja pela visão da obrigação como um processo, a protrair-se no tempo
para alcançar um só bom fim: a realização das expectativas legítimas
de ambas as partes; seja pela valorização do tempo como fator de
pressão e catividade. Quanto mais duradoura a relação, mais difícil e
prejudicial é seu rompimento para o consumidor, assim cláusulas antes
normais, como a de fim de vínculo, passam a ser consideradas abusivas,
se a escolha não couber ao consumidor ou se não for colocada à sua
disposição (Art. 54, § 2.º, do CDC). Destacam-se os deveres de
cooperação e de adaptação para uma maior possibilidade de manuten-
ção do vínculo contratual.
A necessidade de proteção da liberdade do contratante mais fraco
leva a impor novos riscos profissionais aos fornecedores, que não
poderão ser transferidos aos consumidores por nenhuma manifestação
vAlida da vontade, a redefinir o abuso.
* (277) Veja sobre o assunto também Pasqualotto, RT, p. 54. (p.
121)
Da mesma maneira, a nova concepção social levará a um
renascimento do formalismo,{278} pois o dever de empregar determinadas
formas para o nascimento de obrigações jurídicas representa uma
proteção extra para os contratantes menos preparados. A forma leva o
contratante a pensar na seriedade do ato que está empreendendo,
contribui para que este conheça o teor da obrigação que está assumindo
ou, pelo menos, protege e dá publicidade do ato para terceiros.
Relembre-se aqui a legislação brasileira sobre o compromisso de
compra e venda de imóveis não loteados.{279} Observe-se, também que
de certa maneira as novas leis intervencionistas vão ocasionar um
renascimento da defesa da liberdade de contratar, da liberdade de
escolha do parceiro contratual, através do novo dever de informação
imposto ao fornecedor, para que o consumidor possa escolher o
parceiro que melhor lhe convier{280} (veja o inc. III do art. 6.º do CDC)
Por fim, cumpre mencionar que esta nova concepção de contrato
trouxe como reflexo a possibilidade do poder estatal, seja através do
legislador, seja através do controle judicial ou administrativo, proibir
determinadas cláusulas abusivas nos contratos de massa, tema que
trataremos em detalhes no capítulo terceiro desta obra.

b) Relativização da força obrigatória dos contratos - Na visão


tradicional, a força obrigatória do contrato teria seu fundamento na
vontade das partes. Uma vez manifestada esta vontade, as partes
ficariam ligadas por um vínculo, donde nasceriam obrigações e direitos
para cada um dos participantes, força obrigatória esta, reconhecida pelo
direito e tutelada judicialmente.
A nova concepção de contrato destaca, ao contrário, o papel da
lei. É a lei que reserva um espaço para a autonomia da vontade, para
a auto-regulamentação dos interesses privados. Logo, é ela que vai
legitimar o vínculo contratual e protegê-lo. A vontade continua essen-
cial à formação dos negócios jurídicos, mas sua importância e força
diminuíram, levando à relativízação da noção de força obrigatória e
intangibilidade do conteúdo do contrato.
* (278) Assim Malinvaud, p. 53.
(279) Veja o Dec.-lei 58, de 10.12.37, art. 22, como redação
determinada pela Lei
6.064, de 27.12.73.
(280) Assim tb. Malinvaud, p. 52 e o artigo sobre o tema de
Fradera. (p. 122)
Assim, o princípio clássico de que o contrato não pode ser
modificado ou suprimido senão através de uma nova manifestação
volitiva das mesmas partes contratantes sofrerá limitações (veja neste
sentido os incisos IV e V do art. 6º do CDC). Aos juízes é agora
permitido um controle do conteúdo do contrato, como no próprio
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, devendo ser suprimidas
as cláusulas abusivas e substituídas pela norma legal supletiva (art. 51
do CDC). É o intervencionismo estatal, que ao editar leis específicas
pode, por exemplo, inserir no quadro das relações contratuais novas
obrigações com base no Princípio da Boa-Fé (dever de informar,
obrigação de substituir peça, renovação automática da locação etc.),
mesmo que as partes não as queiram, não as tenham previsto ou as
tenham expressamente excluído no instrumento contratual.{281} Relembre-
se aqui também o enfraquecimento da força vinculativa dos contratos
através da possível aceitação da teoria da imprevisão (veja neste sentido
o interessante e unilateral inciso V do art. 6.º do CDC).
Assim também a vontade das partes não é mais a única fonte de
interpretação que possuem os juízes para interpretar um instrumento
contratual. A evolução doutrinária do direito dos contratos já pleiteava
uma interpretação teleológica do contrato, um respeito maior pelos
interesses sociais envolvidos, pelas expectativas legítimas das partes,
especialmente das partes que só tiveram a liberdade de aderir ou não
aos termos pré-elaborados.
As leis, aqui chamadas de leis intervencionistas, autorização o
Poder Judiciário a um controle mais efetivo da justiça contratual e ao
exercício de uma interpretação mais teleológica, onde os valores da lei
tomam o primeiro plano e delimitam o espaço para o poder da vontade.
O juiz ao interpretar o contrato não será um simples servidor da
vontade
das partes; será, ao contrário, um servidor do interesse geral.{282} Ele
terá
em vista tanto o mandamento da lei e a vontade manifestada, quanto
os efeitos sociais do contrato e os interesses das partes protegidos pelo
direito em sua nova concepção social.
A pluralidade não é só de leis imperativas a considerar, é também
de agentes econômicos, o que revaloriza a solidariedade, como forma
de responsabilização da cadeia organizada de fornecedores na socie-
* (281) Assim tb. concluem Galvão Teles, p. 45 e Weil/Terré, p.
65.
(282) Na expressão feliz de Weil/Terré, p. 66, "serviteur de
l’intérêt général". (p. 123)
dade de consumo atual (arts. 14, 18 e 20 do CDC),{283} e com isto abala
as estruturas da divisão entre responsabilidade civil contratual e
extracontratual. A pluralidade é também de sujeitos envolvidos e
sujeitos a proteger, identificados como sujeitos a tutelar de forma
diferenciada, os mais fracos na sociedade.
Relativiza-se, assim, o postulado que os contratos só têm efeito
entre as partes (res inter alios acta). As novas tendências sociais da
concepção de contrato postulam que, em alguns casos, o raio de ação
do contrato deva transcender a órbita das partes. Como exemplo,
relembre-se a tentativa doutrinária de estender a garantia contratual
contra vícios ou defeitos aos terceiros vítimas de um fato do produto,
principalmente na doutrina francesa;{284} relembre-se igualmente a inten-
sificação na vida moderna dos contratos em benefício de terceiros,
como os contratos de seguro de vida e o de transporte de mercadorias
em alguns casos. Aqui, localiza-se um dos mais importantes fenôme-
nos, desafios, do novo direito dos consumidores. Nas relações contra-
tuais de massa a crédito, a relação se estabelece entre o consumidor
e a empresa de crédito, mas o bem é fornecido pela empresa-vendedora.
Neste triângulo contratual, a acessoriedade da relação de crédito em
relação ao cumprimento dos deveres da relação de fornecimento do
bem deve ficar clara, para evitar que uma fique independente da outra,
impossibilitando as reclamações do consumidor.
Assim também, as fases anteriores e posteriores ao momento da
celebração do contrato ganham em relevância.{285} Disciplina-se o pré-
contrato, reforçando a sua força obrigatória para que conceda em
alguns casos direito real ao beneficiário. Reforçam-se os requisitos da
fase pré-contratual ao impor deveres de informação ao fornecedor. Mas
especial atenção receberá a fase pós-contratual. A doutrina já havia
desenvolvido a teoria da culpa post factum finitum, a qual, baseada
no princípio da boa-fé, estendia a eficácia do contrato para além do
cumprimento do dever principal.{286} As novas leis intervencionistas,
* (283) Veja sobre a solidariedade entre médico credenciado e
organizador de
plano ou seguro de saúde, Aguiar Jr, RT 718, p. 47.
(284) Veja sobre o assunto a obra de Leães, A responsabilidade do
fabricante pelo
fato do produto.
(285) Assim Peneira de Almeida, p. 22, veja art. 46 CDC.
(286) Veja a obra de Menezes de Cordeiro sobre o tema, tb.
Pasqualotto, p. 54
e Peneira de Almeida, p. 30. (p. 124)
especialmente no que se refere ao consumo de bens duráveis,
disciplinarão os deveres anexos à obrigação, impondo, por exemplo,
o dever de prestação da chamada assistência pós-venda (veja o art.
18, § 1.º do CDC), o dever de informar sobre o modo e a técnica
de utilização de produtos (veja art. 18, caput, in fine), assim como
disciplinando a garantia legal e a garantia contratual oferecida pelo
fornecedor (veja arts. 24 e 50 do CDC).
Em se tratando de contratos cativos e de longa duração, ressurge
no direito contratual um fator quase que extinto, a (agora mega)
personalidade das relações. As relações de massa, através do método
do contrato de adesão e dos atuais métodos de marketing, tendem a ser
despersonalizadas. Carlos Alberto Ghersi chegou a denominar as
relações pós-modernas de "contratos sem sujeito".{287} Com a devida
vênia ao mestre argentino, parece-me que, em se tratando de contratos
cativos de longa duração, a manutenção subjetiva do fornecedor ainda
importa ao consumidor. Importa ao consumidor quem seja o seu
fornecedor principal, não enquanto pessoa a quem subjetivamente
confia, como nos moldes pré-industriais, mas enquanto imagem-
qualidade, enquanto grupo consolidado, enquanto status, enquanto
marca e garantia.{288} A manutenção do vínculo com o fornecedor de uma
marca consolidada, ou de uma determinada qualidade difereciada, ou
de um grupo economicamente forte pode ser importante, e é relevante
para o consumidor ao integrar o grupo de fatores que vai assegurar que
este receba o que deseja. Fator para que realize as suas expectativas
legítimas mesmo no futuro ainda indeterminado. Trata-se aqui de uma
reação à fluidez e à fragmentação cada vez maior das relações
contratuais. A cessão de direitos ou da posição contratual por parte do
fornecedor, muitas vezes utilizada como técnica para poder modificar
as cláusulas contratuais iniciais, pode abalar o sinalagma funcional e
afetar a realização das expectativas legítimas do consumidor. Logo,
deve ser especialmente cuidada, controlada e mesmo evitada.{289}
Como se observa, o postulado da força obrigatória dos contratos
encontra-se muito modificado pelas novas tendências sociais da noção
* (287) Ghersi, Posmodernidad, p. 56.
(288) Veja neste sentido sobre os controles e os interesses dos
consumidores em
matéria de fusão e em especial de cessão de carteiras de seguro, Rubén
Stiglitz, in Stigliz, p. 70 e ss.
(289) Sobre o tema da cessão e do sinalagma, veja Gernhuber, p.
58. (p. 125)
de contrato. O papel dominante agora é o da lei, a qual com seu
intervencionismo restringe cada vez mais o espaço para a autonomia
da vontade.

c) Proteção da confiança e dos interesses legítimos - Ao tratar


aqui da proteção da confiança como conseqüência da nova concepção
social e não mais, exclusivamente, da teoria dos vícios do consentimen-
to, pretendemos chamar a atenção para este elemento social agora
alçado à condição de valor do contrato, a confiança.
Note-se, porém, que a teoria dos vícios do consentimento continua
a estar presente mesmo na nova concepção social de contrato, tanto que,
algumas de suas idéias vão ser usadas como base para novas figuras
e obrigações impostas pelas leis intervencionistas. Assim a idéia de
erro, como falsa visão da realidade, a qual leva uma pessoa a contratar
em circunstâncias que normalmente - se tivesse a verdadeira visão da
realidade não contrataria, será uma das fontes da nova figura do
direito do consumidor, o dever de informar, o qual foi imposto de
maneira abrangente aos fornecedores de bens e serviços pelo novo
Código brasileiro.
Ainda quanto à teoria dos vícios do consentimento, cabe salientar
aqui que a nova concepção social do contrato levará os doutrinadores
e a jurisprudência mundial, especialmente a italiana, a, em caso de
divergência entre a vontade interna e a vontade declarada, preferirem
a vontade declarada, criando a teoria da confiança.{290}
A teoria da confiança, como já mencionamos anteriormente,{291}
pretende proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nasce-
ram no outro contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações
assumidas e no vinculo criado através da declaração do parceiro.
Protege-se, assim, a boa-fé e a confiança que o parceiro depositou na
declaração do outro contratante. A vontade declarada, porém, não
prevalecerá se o outro contratante souber ou puder saber razoavelmente
que aquela não era a vontade interna de seu parceiro. A teoria da
confiança apesar de estar presente, segundo alguns, mesmo no Código
Civil Alemão de 1900,{292} serve à nossa análise porque nela observamos
* (290) Veja Nery Jr., p. 11.
(291) Quando da análise feita sobre a socialização da teoria
contratual (4.1).
(292) Assim defende Gomes/Transformações, p. 15. Já Nery Jr., p.
14, considera
que a teoria, como a entendemos, teria sido adotada somente em 1942 no
(p. 126)
exatamente esta transformação na visão protetiva do direito, da von-
tade individual, para o impacto social.{293} A teoria da vontade concen-
trava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade,
concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua
vontade, concentrava-se no momento da criação do contrato: a teoria
da confiança concentra-se também em um indivíduo, qual seja o que
recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé, mas tem como
fim proteger os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do
direito, a proteção dos legítimos interesses e a segurança das relações.
O CDC institui no Brasil o princípio da proteção da confiança do
consumidor. Este princípio abrange dois aspectos: 1) a proteção da
confiança no vínculo contratual, que dará origem às normas cogentes
do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do contrato de consumo,
isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de cada parte, através da
proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma interpretação sempre
pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação contratual,
que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram garantir
ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim
como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e serviços.
Uma outra conseqüência da nova concepção social do contrato,
que pretendemos frisar, é justamente a mudança do momento de
proteção do direito. Não mais se tutela exclusivamente o momento da
criação do contrato, a vontade, o consenso, mas, ao contrário, a
proteção das normas jurídicas vai concentrar-se nos efeitos do contrato
na sociedade, por exemplo, no momento de sua execução procurando
assim harmonizar os vários interesses e valores envolvidos e assegurar
a justiça contratual.
É o que tentamos aqui denominar como efeito de proteção à
confiança e aos interesses legítimos das partes em uma relação
contratual. Note-se que a expressão "legítimos interesses", traz ínsita
uma certa idéia de valor, como se o direito valorasse a relação
contratual e escolhesse alguns dos interesses das partes como tuteláveis
e outros como "não-legítimos". É nesse sentido que o mestre brasileiro
*Código Civil Italiano. No Código Alemão estariam presentes a teoria da
declaração e um principio geral de boa-fé (§ 242), observação que nos
parece correta.
(293) Com opinião contrária Gomes/Transformações, p. 15. (p. 127)
Reale{294} prevê uma nova fase do direito: a Jurisprudência dos Valores,
valores estes que levariam o legislador a intervir e, por exemplo, a
destruir o importante dogma da personalidade da pessoa jurídica se em
jogo estiver a proteção do consumidor. É o caso do art. 28 do CDC
brasileiro, o qual prevê a desconsideração da personalidade da pessoa
jurídica em prol dos interesses dos consumidores.
Entre os novos legítimos interesses poderiam ser incluídos alguns
antes denominados motivos do ato e fora da proteção do direito: agora
estes podem ser protegidos. Os motivos quando razoáveis e amparados
na boa-fé passam a integrar a relação contratual, como se a ordem
jurídica brasileira tivesse aceito a teoria francesa da causa e a tivesse
interpretado de maneira subjetiva e psicológica,{295} protegendo as
expectativas legítimas que o consumidor teria, mesmo que não se
tratem de qualidades essenciais do produto ou de qualidades expres-
samente garantidas no contrato. Neste sentido, por exemplo, o inciso
III do art. 18 do novo Código de Defesa do Consumidor brasileiro.
Em tempos pós-modernos, frise-se também a valoração de ele-
mentos sociais e antropológicos externos ao contrato ou prévios. Em
sua nova obra sobre o direito contratual europeu, Heinz Kötz destaca
um fator considerado até então metajurídico como cada vez mais
relevante na solução dos conflitos contratuais do momento: a pressão
(der Zwang). Encontrando-se um dos contraentes em posição vulnera-
vel de pressionado (Zwanglage), em posição estruturalmente submissa
(strukcturelle Unterlegenheit), o exercício de determinados direitos por
parte do co-contratante profissional em posição de poder (Machtposition)
pode ser um abuso do direito ou um ato contrário aos bons costumes
e à boa-fé exigida no tráfico jurídico.{296}
Podemos efetivamente identificar na nova relevância jurídica
deste fator "pressão", a origem das normas sobre o direito de reflexão,
direito de arrepender-se sem causa dos contratos concluídos sobre a
pressão das vendas diretas, normas que impõem um grande formalismo
informativo para o consumidor, como que tentando protegê-lo de sua
condição de inferioridade, de leigo, de vulnerável, normas tentando
* (294) ReaLe/Nova Fase, p. 129.
(295) Veja sobre a evolução na França em Weil/Terré, p. 65 e
sobre a causa no
Direito brasileiro, Martins Costa.
(296) Koetz, p. 200 e ss. (p. 128)
protegê-lo da pressão do marketing, dos métodos de venda, do
consumismo exagerado, do superendividamento, das posições
monopolistas dos fornecedores, das novas necessidades criadas pela
sociedade de consumo.
Em se tratando de relações contratuais cativas, parece-me impor-
tante destacar a nova relevância jurídica deste fator estrutural-social a
pressão. A pressão está no método de venda, de aproximação direta pré
contratual, ou no marketing. A pressão está muitas vezes no próprio
objeto do contrato, se essencial ou urgente. Tratando de saúde, de
segurança e de casos de emergência devemos considerar o natural abalo
do consumidor, o que leva o direito a renovar os deveres dos forne-
cedores de informar, de cooperar e de tratar com lealdade este
consumidor. A pressão estrutural nas trativas reflete-se na engenharia
final do contrato. A confiança despertada e as expectativas agora
legítimas podem vir a ser frustradas, pois o desequilíbrio estrutural
inicial permite que o fornecedor tente transferir ou garantir-se contra
riscos profissionais seus.
Em contratos de longa duração, o interesse legítimo do consumi-
dor é no sentido da continuidade da relação contratual. Interessa-lhe,
via de regra, a renovação contratual chegado o termo final do contrato
e, em princípio, que esta renovação se faça nos mesmos termos e
condições da apólice inicial.
Em matéria de contratos de crédito, novos estudos europeus
também valorizam a pressão exercida pela necessidade de crédito como
acessório essencial ao consumo de nossos dias. Se a origem latina da
expressão "crédito" encontra-se na idéia da confiança no outro ("crede"),
esta confiança protegida era, originalmente, aquela do credor em
relação ao pagamento futuro do débito pelo devedor; hoje, porém, esta
relação de confiança é entendida de forma necessariamente bilateral,
confiança a exigir un tratamento legal, transparente e não abusivo entre
o profissional do crédito e seu consumidor.
A jurisprudência e a doutrina brasileiras tentam atualmente
compatibilizar, harmonizar, estes dois princípios básicos do novo
direito privado (autonomia da vontade e boa-fé), mais do que os opor.
Esta solução exige uma mudança na ótica do aplicador da lei, não
somente proteger a autonomia e a eficácia da vontade do profissional,
mas elaborar técnicas de proteção da vontade do consumidor. Em outras
palavras, não somente proteger a confiança do "vendedor" do crédito, (p.
129)
mas também a confiança despertada nos consumidores, seja pela
publicidade, seja pela atuação, seja pelo contrato, pelos profissionais
do crédito e do financiamento aos indivíduos no mercado.
No direito comparado observa-se que as técnicas legislativas de
proteção aos consumidores em matéria de contratos envolvendo crédito
visam inicialmente garantir uma nova proteção da vontade dos consu-
midores contra as pressões da sociedade de consumo, isto é, garantir
uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco. Uma
vontade protegida pelo direito, vontade liberta das pressões e dos
desejos impostos pela publicidade e por outros métodos agressivos de
venda, uma vez que a concessão do crédito ao consumidor está ligada
faticamente a uma série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais
de superendividamento, insolvência, abusos contratuais etc. Como
requer Charbin, esta nova autonomia é vontade racional, vontade
qualificada, única a legitimar a vinculação do contratante leigo e
vulnerável.{297}
Ainda sobre a nova valorização positiva da pressão (Zwang) em
matéria de concessão de crédito ou através de métodos de venda e
marketing, é necessário frisar que a jurisprudência e a nova legislação
não recorrem às noções clássicas de "coação , exercício regular do
direito" ou de "estado de necessidade". Trata-se mais de um juízo de
constatação de que a sociedade pós-moderna ou a sociedade atual traz
consigo uma grande carga de "pressões" juridicamente relevantes, que
nem sempre são bem resolvidas ou resistíveis pelos indivíduos em geral,
os quais necessitam então de uma carga extra de proteção para alcançar
o reequilíbrio de suas relações contratuais originadas destas pressões.
Trata-se aqui não de uma valoração da atuação do outro, do
fornecedor e, sim, de uma simples constatação objetiva que "pressões"
existem na sociedade e que desequilibram estruturalmente as contratações
realizadas, daí nascendo a necessidade de uma resposta jurídica
reequilibradora, como o controle do conteúdo do contrato, como um
novo formalismo informativo, como o direito de arrependimento sem
causa. Isto sempre no intuito de reequilibrar-se ou suprir a "falha
fática"
na liberdade ou na vontade do contratante mais fraco. Trata-se, pois,
de um critério objetivo e atual. O mundo de hoje traz novos desafios
ao direito dos contratos e estes só podem ser respondidos convenien-
* (297) Charbin, p. 216. (p. 130)
temente através da aplicação realista e objetiva dos princípios da boa-
fé e da confiança, como no caso concreto descrito.
Note-se, porém, que por vezes a jurisprudência valora negativa-
mente o exercício destas pressões e nem sempre somente com a noção
de abuso do direito. Em decisões históricas de 1993 a 1996, a Corte
Constitucional alemã (BVerfG) e a Corte Federal alemã (BGH) che-
garam a considerar "contrária aos bons costumes e à boa-fé" a
utilização da necessidade de crédito, de vínculos familiares e da posição
contratual de poder na renegociação de grandes dívidas dos Bancos,
ao exigir que os familiares (mesmo estudantes e esposas) assinassem
garantias contratuais acessórias, que efetivamente "penhoravam" o
futuro patrimonial dos indivíduos, superendividando-os para sempre,
pois sabia-se desde o ínicio que não teriam condições de "garantir" ou
adimplir a grande dívida assumida.{298}
Efetivamente, identifica-se na Alemanha uma nova tendência
jurisprudencial, de certa forma pós-moderna, unindo a proteção dos
direitos fundamentais e dos direitos do consumidor, considerando
garantias normais no mercado dos contratos de crédito, como a
exigência do aval do filho ou da esposa nas dívidas do pai ou marido,
como violadoras dos direitos fundamentais destes garantes.
Na decisão de 1993,{299} a Corte constitucional alemã impôs às
Cortes inferiores, em matéria de controle das cláusulas de um contrato
* (298) A decisão da Corte constitucional é BVerfG Beschl. v.
19.10.1993 - 1BvR
567/89 u.la., in: NJW 1994,36, comentada por Tiedke ZIP 1995,521,
Honsetl NJW 1994,565, Löwe ZIP 1993, 1759.Veja a resposta do BGH,
IX Senat, j. 2.11.95, considerando contrário aos bons costumes, em caso
envolvendo esposa, in FamRZ 1996, p. 277279 e BGH, IX Senat, j.
25.04.96, em caso envolvendo esposa divorciada, in WM 1996, p. 1124-
1128. Veja caso envolvendo proteção à companheira, BGH, IX Senat, j.
23.1.97, in WM 1997, p. 465 e seg. Veja caso envolvendo garantia baseada
em eventual herança e inexigibilidade anterior, in BGH, IX Senat, j.
23.1.97,
in WM 1997, p. 467.
(299) BVerfG Beschl. v. 19.10.93 - 1BvR 567/89 u.la., in: NJW
1994,36. A
ementa original é a seguinte: "Die Zivilgerichte müssen - insbesondere
bei
der Konkretisierung und Anwendung von Generalklauseln wie § 138 und
§ 242 BGB - die grundrechtlcihe Gewährleistung der Privatautonomie in
Art. 2,I GG beachten. Daraus ergibt sich ihre Pflicht zur Inhaltskontrole
von
Verträge, die einen der beiden Vertragspartner ungewöhnlich stark
belasten
und das Egbnis strukturell ungleicher Verhandlungsstärke sind". (p. 131)
bancário, a consideração do direito fundamental de desenvolvimento
da personalidade (art. 2, I, da Grundgesetz), quando as Cortes civis
realizassem a concreção ou subsunção do que seria contrário às
cláusulas gerais de respeito aos bons costumes (§ 138 do BGB) e à boa-
fé (§ 242 do BGB).
Para concretizar a cláusula geral do § 138 e § 242 do BGB, as
Cortes deveriam, segundo a Corte Constitucional alemã, utilizar-se da
noção de direitos fundamentais do indivíduo (no caso concreto um
estudante de medicina de 21 anos, que serviu de avalista da dívida do
pai, um pequeno comerciante) a desenvolver sua personalidade (desen-
volvimento da personalidade econômica e social) no futuro. Como
conseqüência, este contrato de garantia deveria ser considerado contrá-
rio aos bons costumes e à boa-fé, logo ineficaz, uma vez que o garante
não tinha nem patrimônio, nem trabalho e estava fazendo uma quase
"consignação" de seu futuro e o co-contratante mais forte (Machtpo-
sition) aproveitara-se do desequilíbrio intrínseco estrutural da relação
para exigir tais garantias.
A Corte Constitucional expressamente ordenou às cortes Civis a
necessidade do controle do conteúdo dos contratos de crédito e
contratos bancários, nos quais o contratante mais fraco é obrigado a
suportar cargas anormais para suas condições pessoais (superendivida-
mento, no original, Überschuldung). O mais interessante e revolucio-
nário aqui é a proibição de um abuso frente a um terceiro (filho), que
não é, nem será consumidor direito do crédito, e o efeito indireto dos
direitos fundamentais em relações entre particulares (Drittewirkung).
A pressão é valorizada também nas chamadas vendas emocionais,
com as realizadas por empreendimentos de time-sharing ou
multipropriedade e nas atualíssimas vendas com marketing direto ou
teleshopping. Em ambos os casos, deve haver recurso ao novo prazo
de reflexão e o conseqüente direito de arrependimento do consumidor,
como forma de protegê-lo destas pressões da sociedade moderna.
Antigamente, nas vendas de porta em porta era a presença física do
fornecedor ou seu representante que representava a "pressão". Hoje, as
novas técnicas criam uma nova vulnerabilidade ao consumidor, pela
distância, pelo limite das informações conseguidas ou interessantes a
este, pela rapidez da contratação, por sua internacionalidade eventual,
pela fluidez e despersonalização necessária do próprio relacionamento
contratual eventual. (p. 132)
Conclui-se, por fim, que na proteção da confiança dos legítimos
interesses não basta a intervenção única do legislador. Estes elementos
sociais introduzidos na proteção pela teoria do direito exigirão um
estudo caso a caso a ser feito pelos defensores das partes e por fim pelo
Poder Judiciário; estudo este baseado principalmente no Princípio da
Boa-Fé e nas condições que deram origem à relação contratual. Logo,
a nova concepção social vai destacar o papel do controle e da decisão
judicial nos contratos de consumo. A confiança volta-se em última
análise para o direito, o mercado deve ser um local seguro, onde possa
haver harmonia e lealdade nas relações entre consumidores e fornece-
dores e onde não necessite-se sempre "desconfiar" do outro.

d) Nova noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais -


Nesta terceira edição, em face da análise da jurisprudência brasileira
e dos mais comuns conflitos envolvendo relações de consumo, gosta-
ríamos de frisar que o Código de Defesa do Consumidor introduz,
igualmente, um segundo e poderoso instrumento para alcançar a justiça
ou eqüidade contratual (Vertragsgerechtigkeit), qual seja, uma nova
noção de equilíbrio mínimo das relações contratuais.
Efetivamente, com o advento do CDC o contrato passa a ter seu
equilíbrio, conteúdo ou eqüidade mais controlados, valorizando-se o
seu sinalagma.{300} Segundo Gernhuber, sinalagma é um elemento
imanente estrutural do contrato, é a dependência genética, condiciona-
da e funcional de pelo menos duas prestações co-respectivas, é o nexo-
final que oriundo da vontade das partes é moldado pela lei.{301}
Sinalagma
não significa apenas bilateralidade, como muitos acreditam, influenci-
ados pelo art. 1.102 do Code Civil francês, mas sim contrato, conven-
ção, é um modelo de organização (Organisationsmodell) das relações
privadas.{302} O papel preponderante da lei sobre a vontade das partes,
a impor uma maior boa-fé nas relações no mercado, conduz o
ordenamento jurídico a controlar mais efetivamente este sinalagma e,
por conseqüência, o equilíbrio contratual.
* (300) Exemplo desta linha é a decisão já citada do TJRS, ín Rev.
de Jurispru-
dência do TJRS 185, p. 373 e ss.
(301) Gernhuber, p. 57.
(302) Etimologicamente a palavra grega significa contrato ou
convenção e só no
direito romano, e em sua interpretação na idade média, que passou a ser
considerada sinônimo de bilateralidade perfeita nos contratos; veja
Gernhuber,
p. 57 e ss. (p. 133)
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, na filosofia das normas do
CDC estaria a proteção do consumidor contra a lesão e os negócios
lesionários, preocupando-se especialmente com a justiça comutativa e
o princípio da eqüidade.{303} A figura da lesão teria sido revigorada e
aceita assim como no Projeto de Código Civil de 1975 (Projeto de Lei
da Câmara 118 de 1984), em seu art. 157.{304}
Esta preocupação econômica, com a parte mais frágil e "neces-
sitada" na sociedade de consumo, seria como um novo paradigma do
CDC, ao lado do aqui já estudado princípio da boa-fé. Data venia ao
grande mestre brasileiro, continuo a considerar que o fenômeno de
proteção dos interesses econômicos do consumidor, seja através do
controle de cláusulas abusivas, seja através desta procura de um novo
equilíbrio contratual, é,em verdade, uma projeção do princípio da
confiança e da boa-fé positivados no CDC e não, especialmente, da
noção de lesão. Concentrar-se no desequilíbrio apenas econômico do
contrato de consumo seria uma visão limitada da noção de eqüidade
contratual (Vertragsgerechtigkeit) imposta pelo CDC e pelo princípio
da boa-fé objetiva. A noção há de ser mais ampla, pois o que se quer
é o reequilíbrio total da relação, inclusive de seu nível de tratamento
leal e digno, única forma de manter e proteger as expectativas legítimas
das partes, que são a base funcional que origina a troca econômica.
Note-se que o famoso § 9º da AGBG da Alemanha não possui
nenhuma menção expressa sobre o equilíbrio contratual. Esta noção foi
desenvolvida pela jurisprudência como incluída no princípio da boa-
fé, nas exigências de segurança, confiança e lealdade do tráfico jurídico
e que agora encontra reflexo na Diretiva européia sobre cláusulas
abusivas de 1993.
No Brasil, porém, estamos mais acostumados a unir a noção de
boa-fé a efeitos e atitudes externas do relacionamento contratual,
reservando à noção de lesão, o olhar interno do equilíbrio (razoável)
do contrato. Queremos nesta obra frisar que a boa-fé autoriza e mesmo
obriga a este olhar interno do contrato, do relacionamento contratual
como um todo, impondo novos deveres e novos limites aos que ocupam
* (303) Pereira, Lesão, p. 210 e 212.
(304) Segundo o art. 157 do Projeto: "Ocorre a lesão quando uma
pessoa, sob
premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação
manifes-
tamente desproporcional ao valor da prestação oposta". (p. 134)
as posições contratuais, de forma a permitir a realização das expecta-
tivas legítimas.
Assim, para muitos, esta noção de procura de equilíbrio e
eqüidade contratual está inserida no princípio da boa-fé ou no princípio
formuladOr-máximo, o da confiança. A boa-fé objetiva valoriza os
interesses legítimos que levam cada uma das partes a contratar, e assim
o direito passa a valorizar, igualmente e de forma renovada, o nexo
entre as prestações, sua interdependência, isto é, o sinalagma contratual
(nexum). Da mesma forma, ao visualizar, sob influência do princípio
da boa-fé objetiva, a obrigação como uma totalidade de deveres e
direitos no tempo e ao definir também como abuso a unilateralidade
excessiva ou o desequilíbrio irrazoável da engenharia contratual,
valoriza-se, por conseqüência, o equilíbrio intrínseco da relação em sua
totalidade e redefine-se o que é razoável em matéria de concessões do
contratante mais fraco (Zumutbarkeit).{305} O desequilíbrio significativo
de direitos e deveres, em detrimento do consumidor, na relação
contratual vista como um todo passa a ser indício de abuso, a chamar
a ação reequilibradora do novo direito contratual em sua visão
social.{306}
Já em 1976, o Conselho da Europa esclareceu que para "deter-
minar se uma cláusula contratual era ou não abusiva deveriam os
países-membros utilizar o princípio segundo o qual não deve haver
"entre os direitos e obrigações dos dois contratantes, os quais decorrem
da totalidade do contrato, nenhum desequilíbrio em prejuízo dos
interesses dos consumidores."{307} Trata-se, pois, de uma análise funcio-
* (305) Veja por todos os autores alemães, Fikentscher, p. 130.
(306) Segundo a definição do art. 3 da Diretiva 93/13/CEE de 5 de
abril de 1993
relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores,
é considerada de cláusula abusiva "quando, a contrário da exigência de
boa-
fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumi-
dor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato", in
Direito do Consumidor, 21, p. 307.
(307) No original a Résolution 76/47 adoptée par le Comité des
Ministres du
Conseil de L’Europe, 16.11.1976, Clauses Abusives dans les contrats
conclus par des consommateurs et méthodes de contrôle appropriées: "Le
critère permettant, dans le cadre de la Résolution, de déterminer si une
clause est ou non abusive est le principe selon lequel il ne doit y avoir
entre
les droit et obligations des deux parties, tels qu’ils découlent de
l’ensemble
du contrat, aucun déséquilibre au détriment des intérêts des
consommateurs"
(p. 13, Exposé des Motifs, Strasbourg, 1977). (p. 135)
nal e contextual da cláusula, de seus fins e efeitos desequilibradores
da engenharia contratual básica.
Também o Código de Defesa do Consumidor brasileiro trabalha
com a noção de "desvantagem exagerada" (art. 51, IV e § 1 .º, do CDC),
isto é, não basta o exagero nos direitos assegurados ao fornecedor por
contrato, não basta a vantagem deste fornecedor, o importante é o
prejuízo, a desvantagem irrazoável (Unzumutbarkeit) para o consumi-
dor, este, sim, sujeito tutelado na nova noção de equilíbrio das relações
contratuais. Protegem-se no Código o objetivo e o equilíbrio contratual,
assim como sanciona-se a onerosidade excessiva (art. 51, § 1.º, do
CDC), revitalizando a importância da comutatividade das prestações,
reprimindo excessos do individualismo e procurando a justa proporcio-
nalidade de direitos e deveres, de conduta e de prestação, nos contratos
sinalagmáticos.{308}
As expectativas legítimas são, igualmente, o conjunto de circuns-
tâncias cuja existência ou permanência é objetivamente típica ou
necessária para aquele tipo de contrato ou para que aquele contrato em
especial possa se constituir em uma regulamentação sensata,{309} com
razoável distribuição de riscos. Este conjunto de motivações, de causas
iniciais que representam as finalidades do negócio admitidas bilateral-
mente ou típicas daquela relação são a base mínima (objetiva) da
relação, do contrato de consumo. Excluídas aquelas circunstâncias que
fazem parte dos riscos contratuais típicos,{310} excluídas as
expectativas
legítimas, que também são denominadas de "causas" ou fontes da
confiança despertada no parceiro contratual mais fraco e devedor
(Vertrauensumstände), o desequilíbrio da relação é flagrante. Estas
expectativas legítimas são, portanto, consideradas, especialmente na
doutrina atual alemã, como juridicamente relevantes e protegidas pela
cláusula geral do § 242 do BGB sobre boa-fé e das necessidades do
* (308) Pereira, Lesão, p. 213.
(309) Esta é parte da definição de Larenz da base do negócio,
Larenz, Base, p.
171 e ss.
(310) Fikentscher, p. 130: "Umstände, auf deren Vorliegen,
Entstehen oder
Weiterbleiben der Schuldner bei Einigung seiner Verbindlichkeit so sehr
vertraut, dass sich de Gläubiger nach Treu und Glauben mit Rucksicht auf
die von Schuldner verfolgten Motive auf die Abhängigmachung des
Vertrags von dem fraglichen Unstand eigelassen hätte oder
rechtlicherweise
hätte einlassen müssen..." (p. 136)
tráfico jurídico na sociedade atual.{311} Em outras palavras, são estas
expectativas legítimas que formam a "base" do negócio (Geschäfts-
grundlage), e será a quebra objetiva da base do negócio (Wegfall der
Geschäftsgrundlage) motivo para a revisão do conteúdo dos contratos,
sempre na tentativa de manutenção do vínculo e de adaptação da
relação ao razoável e suportável por ambos os contratantes.{312}
De qualquer forma, priorize-se a lesão ou a boa-fé, um juízo de
constatação desta mudança de "visão" do direito civil brasileiro é
necessário. É inegável a importância que atinge hoje, na jurisprudência
brasileira o controle judicial e administrativo sobre os parâmetros de
equilíbrio econômico dos contratos,{313} especialmente os bancários,
assim como o controle antes quase inexistente sobre a proporcionali-
dade das prestações mesmo nos contratos aleatórios, como os de
seguro-saúde.{314}
Como ensina o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr.: "...Os
princípios fundamentais que regem os contratos deslocam seu eixo do
dogma da autonomia da vontade e do seu corolário da obrigatoriedade
das cláusulas, para considerar que a eficácia dos contratos decorre da
lei, a qual sanciona porque são uteis, com a condição de serem justos...
O primado não é da vontade, é da justiça, mesmo porque o poder da
vontade de uns é maior que o de outros e nos contratos de adesão, como
é o caso dos autos, é mínimo o componente de vontade do aderente
para estabelecer o conteúdo da avença" (in Recurso Especial 45.666-/
5-SP, j. 17.5.94, Rel. Min. Barros Monteiro).{315}
* (311) Assim Fikentscher, p. 129 e ss.
(312) Veja Larenz, Base, p. 171 e ss.
(313) Observe-se a série de ações contra reajustes nos contratos
de seguro-saúde,
nas escolas e universidades, além das ações que discutem o limite
constitucional sobre os juros e os critérios de reajuste nos contratos de
financiamento e leasing, como exemplo veja decisões do STJ, in LEX 98,
p. 42 e ss; do TJSP, in LEX 137, p. 312, e RT 697, p. 64 e ss.
(314) Veja a representativa jurisprudência sobre o controle das
mensalidades,
prêmios e outras prestações em matéria de seguro-saúde: Assim ações
coletivas do IDEC no TJSP, Ap. Civ. 180.713-2, Elias Elmyr Manssour, do
MPSP, Ap. C. 261.539-2, j. 31.10.95, Jacobina Rabello, Ap. C. 205.533-
1, j. 14.09.93, Euclides de Oliveira, AI 20.893-4, j. 20.11.96, Aldo
Magalhães e várias ações individuais de consignação e sobre imposição
unilateral de reajuste neste mesmo Estado.
(315) Veja voto na íntegra in Revista Direito do Consumidor, v.
17, p. 179-180. (p. 137)
Parece-nos uma nova conscientização da função do contrato
como operação econômica distributiva na sociedade atual, e a tentar
evitar a exclusão social e o superendividamento através de uma visão
mais social e controlada do contrato.{316} O Estado passa, assim, a
interessar-se pelo sinalagma interno das relações privadas e a revisar
os excessos, justamente porque, convencido da desigualdade intrínseca
e excludente entre os indivíduos, deseja proteger o equilíbrio mínimo
das relações sociais e a confiança do contratante mais fraco.
* (316) Lorenzetti, p. 468. (p. 138)

2. CONTRATOS SUBMETIDOS ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR


SUMÁRIO: 1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou
serviços - 1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor: a) O
consumidor stricto sensu; b) Agentes equiparados a consumidores; c)
O fornecedor - 1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços:
a) Contratos imobiliários; b) Contratos de transporte, de turismo e
viagem; c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento; d)
Contratos de seguro e previdência privada; e) Contratos bancários e de
financiamento; f) Contratos de administração de consórcios e afins; g)
Contratos de fornecimento de serviços públicos; h) Compra e venda e
suas cláusulas; i) Compra e venda com alienação fiduciária - 2.
Contratos de consumo e conflitos de leis no tempo - 2.1 Aplicação
do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de leis: a) Caracte-
rísticas do Código de Defesa do Consumidor e reflexos na sua
aplicação; b) O papel da Constituição Federal na interpretação e
aplicação do Código de Defesa do Consumidor; c) Os critérios de
solução de conflitos de leis e suas dificuldades; d) Conflitos entre
normas do Código Civil, de leis especiais e de leis anteriores com o
Código de Defesa do Consumidor; e) Conflitos entre normas do
Código de Defesa do Consumidor e de leis especiais e gerais
posteriores - 2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos
contratos anteriores: a) As garantias constitucionais do direito adqui-
rido e do ato jurídico perfeito; b) A garantia constitucional da defesa
do consumidor; c) A aplicação imediata das normas de ordem pública.

Atualmente, denomina-se contratos de consumo todas aquelas


relações contratuais ligando um consumidor a um profissional, forne-
cedor de bens ou serviços.{1} Esta nova terminologia tem como mérito
* (1) Assim na expressão do mestre Calais-Auloy, p. 183. (p. 139)
englobar a todos os contratos civis e mesmo mercantis, nos quais, por
estar presente em um dos pólos da relação um consumidor, existe um
provável desequilíbrio entre os contratantes. Este desequilíbrio teria
reflexos no conteúdo do contrato, daí nascendo a necessidade do direito
regular estas relações contratuais de maneira a assegurar o justo
equilíbrio dos direitos e obrigações das partes, harmonizando as forças
do contrato através de uma regulamentação especial.
O Código de Defesa do Consumidor, justamente, estabelece
normas de proteção e defesa do consumidor (art. 1.º do CDC) e institui
em seus arts. 46 e ss. uma proteção contratual às "relações de
consumo".
Para identificarmos quais são os contratos submetidos às novas
normas de Código é necessário ter uma visão clara do campo de
aplicação desta lei, tanto ratione personae, definindo quem será
considerado consumidor e quem são os fornecedores de bens e
serviços, quanto ratione materiae, incluindo ou excluindo contratos
especiais, como os de trabalho, contratos administrativos, ou as técnicas
especiais de contratação, aqui referidas, como os contratos de adesão
e as condições gerais dos contratos.

1. Contratos entre consumidor e fornecedor de bens ou serviços

O campo de aplicação do Código possuiria por força do art. 1.º


uma importante limitação ratione personae, aplicando-se somente aos
contratos onde está presente um consumidor frente a um fornecedor de
produtos ou serviços.
1.1 Conceitos de consumidor e de fornecedor

a) O consumidor stricto sensu - Quando se fala em proteção do


consumidor, pensa-se, inicialmente, na proteção do não-profissional
que contrata ou se relaciona com um profissional, comerciante, indus-
trial ou profissional liberal. É o que se costuma denominar de noção
subjetiva de consumidor,{2} a qual excluiria do âmbito de proteção das
* (2) Veja Benjamin, "Conceito", p. 71; e Comparato, p. 34; veja
igualmente
sobre o conceito de consumidor no CDC, a obra crítica e original de Maria
Antonieta Donato, pp. 63 e ss. (p. 140)
normas de defesa dos consumidores todos os contratos concluídos
entre dois profissionais, pois estes estariam agindo com o fim de
lucro.{3}
O legislador brasileiro parece ter, em princípio, preferido uma
definição mais objetiva de consumidor. O art. 2.º do Código afirma
expressamente que consumidor é "toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliZa produto ou serviço como destinatário final".{4} Na
definição legal, a única característica restritiva seria a aquisição ou
utilização do bem como destinatário final.{5} Certamente, ser
destinatário
final é retirar o bem de mercado (ato objetivo), mas e se o sujeito
adquire o bem para utilizá-lo em sua profissão, adquire como profis-
sional (elemento subjetivo), com fim de lucro, também deve ser
considerado "destinatário final"? A definição do art. 2.º do CDC não
responde à pergunta, é necessário interpretar a expressão "destinatário
final".
Nas primeiras edições deste livro, identificamos duas correntes
doutrinárias quanto à definição do campo de aplicação do Código: os
finalistas e os maximalistas.
Para os finalistas, pioneiros do consumerismo,{6} a definição de
consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora concedida
aos consumidores. Esta tutela só existe porque o consumidor é a parte
vulnerável nas relações contratuais no mercado, como afirma o próprio
CDC no art. 4.º, inciso I. Logo, convém delimitar claramente quem
merece esta tutela e quem não a necessita, quem é o consumidor e quem
não é. Propõem, então, que se interprete a expressão "destinatário final"
do art. 2.º de maneira restrita, como requerem os princípios básicos do
CDC, expostos no art. 4.º e 6.º.{7}
* (3) Assim Benjamin, "Conceito", p. 77.
(4) Veja observações de Moraes, pp. 22 e 23; Donato ao conceituar
o
consumidor "standard" considera a destinação final seu elemento
teleológico
e principal, p. 90 e ss.
(5) Veja a opinião de Alpa, in Contratto e impresa , p. 372 e
ss., segundo a
qual é inoportuno definir-se legalmente consumidor de forma única, para
todas as relações de consumo, mas sim precisar o conteúdo desta
expressão em casos particulares.
(6) Principalmente AntÔnio Herman Benjamin, também Alcides
Tomasetti Jr.,
Eros Grau, Adalberto Pasqualotto, Benjamin/"Conceito", p. 77.
(7) Assim Benjamim, Comentários, p. 27, citando Eros Grau. (p.
141)
Destinatário final é aquele destinatário fático e económico do
bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta
interpretação teleológica não basta ser destinatário fático do produto,
retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência,
é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo
para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria
novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no
preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a
exigida "destinação final" do produto ou do serviço.
Esta interpretação restringe a figura do consumidor àquele que
adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família,
consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de
maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável.
Consideram que restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles
que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de
proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos,
onde o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de
consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores recla-
mam mais benesses do que o Direito Comercial já lhes concede.
Note-se que, de uma posição inicial mais forte, influenciada pela
doutrina francesa e belga, como veremos, os finalistas evoluíram para
uma posição mais branda, se bem que sempre teleológica, aceitando
a possibilidade do Judiciário, reconhecendo a vulnerabilidade de uma
pequena empresa ou profissional, que adquiriu, por exemplo, um
produto fora de seu campo de especialidade, interpretar o art. 2.º de
acordo com o fim da norma, isto é, proteção ao mais fraco na relação
de consumo, e conceder a aplicação das normas especiais do CDC{8}
analogicamente também a estes profissionais.
Já os maximalistas vêem nas normas do CDC o novo regulamento
do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadas para
proteger somente o consumidor não-profissional. O CDC seria um
Código geral sobre o consumo, um Código para a sociedade de
consumo,{9} o qual institui normas e princípios para todos os agentes do
* (8) Assim Antônio Herman Benjamin, em sua participação no II
Congresso
de Daños, em Buenos Aires.
(9) Assim nosso pensamento inicial, em 1989, no Ministério da
Justiça, quando
da elaboração do Projeto de CDC pelo Conselho Nacional de Defesa do (p.
142)
mercado, os quais podem assumir os papéis ora de fornecedores, ora
de consumidores. A definição do art. 2.º deve ser interpretada o mais
extensamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do
CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações
no mercado. Consideram que a definição do art. 2.º é puramente
objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim
de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço.{10} Destina-
tário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira
do
mercado e o utiliza, o consome, por exemplo, a fábrica de celulose que
compra carros para o transporte dos visitantes, o advogado que compra
uma máquina de escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado
quando adquire canetas para uso nas repartições e é, claro, a dona de
casa que adquire produtos alimentícios para a família.
Esta bipolarização das opiniões traz a necessidade que se reflita
mais sobre o tema, não basta repetir o que diz o art. 2.º do CDC, é
necessário definir uma linha para interpretá-lo. Para tanto, vamos
inicialmente observar a experiência no direito comparado, após, vamos
delimitar o problema da definição de consumidor segundo as normas
de nosso CDC e, então, em um terceiro momento, definir a interpre-
tação que nos parece a mais razoável.
Vejamos a experiência no direito estrangeiro de delimitação do
campo de aplicação ratione personae das leis tutelares dos direitos dos
consumidores. Assim, na França a Lei n. 78-23, de 10 de janeiro de
1978,{11} dizia-se aplicável somente à proteção contra cláusulas abusivas
inseridas em "contratos concluídos entre profissionais e não-profissio-
nais ou consumidores" (art. 35 da lei). Logo, estariam excluídos do
campo de aplicação da lei os contratos entre dois profissionais. A
jurisprudência francesa, porém, frente aos inúmeros contratos entre
*Consumidor-CNDC/MJ e no I Congresso Internacional de Direito do
Consumidor, USP, São Paulo, 1989. Interessante observar que, após três
anos de vigência, a tendência maximalista permanece na doutrina (veja
Donato, p. 90 e ss.), e continua presente na jurisprudência, nas novas
técnicas de aplicação das normas ou dos princípios do CDC a novos casos
no mercado de consumo, veja nossa análise na letra "b" deste título.
(10) Assim manifestação dos representantes da AGADEMI -
Associação Gaú-
cha de Empresas do Mercado Imobiliário, no Congresso de Porto Alegre.
(11) É a chamada Loi Scrivener, cujo decreto regulamentar é o
Décret n. 78.464,
de 24.3.78. veja Calais-Auloy, p. 161. (p. 143)
pequenos empresários ou profissionais liberais e fornecedores de bens,
em que os primeiros, apesar da profissão, agiam nestes contratos sem
conhecimentos técnicos especiais e fora do campo de sua atividade
comercial, acabou, em 1987, relativizando o conceito{12} e entendendo
que o profissional, nestes casos, também é consumidor.
A doutrina belga,{13} porém, critica esta tendência francesa
atual
e considera que só uma definição subjetiva e restrita da pessoa do
consumidor permite identificar o grupo mais fraco na relação do
consumo, único que mereceria a tutela especial do direito. Neste
sentido, o necessário divisor de águas seria o fim de lucro do
profissional ao contratador, assim, no caso das pessoas jurídicas, só
aquelas sem fins lucrativos poderiam ser assemelhadas a consumido-
res.{14}
Outra experiência significativa no direito comparado é a da lei
alemã, de 1976 sobre as condições gerais dos contratos, conhecida pela
sigla AGB-Gesetz.{15} Note-se que esta lei alemã optou, desde 1976, por
controlar também as condições gerais inseridas em contratos entre dois
profissionais ou comerciantes. Mas, supondo que nestes casos haveria
um maior equilíbrio no poder de barganha e discussão do conteúdo,
tentou reduzir a proteção concedida{16} ao considerar aplicável somente
a cláusula geral proibitória de cláusulas abusivas contrárias à boa-fé do
§ 9.º da lei (§ 24 da AGB-Gesetz).
É necessário esclarecer que esta proteção mitigada para os
contratos envolvendo dois comerciantes só existe quando o contrato
"faz parte da atividade do estabelecimento do comerciante", caso em
que o § 24 manda aplicar, além da cláusula geral, os usos e costumes
comerciais. Na palavra atividade estaria a idéia de utilização direta ou
* (12) Veja Decisão da Corte de Cassação: Civ. 28 abril 1987. D.
1988. J. 1 (Bull.
civ. 1987. I, n. 134). assim tb. o Prof. Claude Witz, em seu curso na
Universidade do Sarre, destacou igualmente a importância da decisão Cas.
civ. 16 juillet 1987, D. 1988, 49.
(13) Assim Bourgoignie, Éléments, pp. 46 e 47.
(14) Assim também Benjamin, no artigo "Conceito", anterior ao
CDC, p. 77.
(15) "Gesetz zur Regelung des Rechts der allgemeinen
Geschaeftsbedingungen
(AGB-Gesetz)", de 9.12.76.
(16) Semelhante é a lei portuguesa, Dec.-Lei 446/85, de 25 de
outubro, que prevê
listas diferentes de cláusulas abusivas conforme se trata de contrato
entre
dois comerciantes: veja sobre o assunto Amaral, p. 254 e ss. (p. 144)
indireta na produção. assim, por exemplo, uma loja de roupas que
compra produtos de limpeza e os utiliza para limpar o estabelecimento,
de forma a atrair clientes, os estaria utilizando "na atividade" do
estabelecimento comercial. Nos demais contratos, a proteção concedida
ao profissional é a mesma concedida a um consumidor comum.
Mas, a jurisprudência alemã{17} acostumada até 1976 a controlar o
conteúdo de todos os contratos de modo a garantir o cumprimento do
princípio basilar do sistema jurídico alemão, o princípio da boa-fé,{18}
acabou por interpretar extensivamente a cláusula geral do § 9.º da Lei
e a conceder praticamente a mesma tutela aos contratos entre comer-
ciantes.{19} O resultado deste alargamento do campo de aplicação da lei
foi decisivo e, hoje, mais de 50% dos casos de aplicação da lei nos
Tribunais referem-se a litígios entre comerciantes, o que reduz o nível
de proteção concedido pela jurisprudência.
Para nós, esta experiência alemã de alargamento do campo de
áplicação ratione personae da lei parece indicar que, em se tratando
de contratos pré-elaborados unilateralmente, contratos de adesão e de
condições gerais dos contratos, a caracterização do contratante como
profissional pouca importância tem.{20} Assim, se o direito almeja um
reequilíbrio contratual neste campo, deve estender a proteção nestes
casos também aos contratos entre dois profissionais, sempre que um
deles estiver em situação mais fraca, mais vulnerável. A pergunta que
fica é se esta extensão deve ser feita prioritariamente pelo sistema
tutelar do CDC ou pelos sistemas gerais.{21} O sistema geral de direito
comercial brasileiro conhece o princípio da boa-fé, assim também o
sistema geral de direito privado, especialmente com o proposto no
Projeto de Novo Código Civil, PL 118/84, que, em seu art. 422, obriga
* (17) Veja sobre a evolução da jurisprudência alemã o excelente
comentário:
Ulmer/Brandner/Hensen/Schmidt, p. 349 e também Heinrichs, Zehn Jahre,
p. 30.
(18) Sobre o princípio da boa-fé do § 242 do BGB no sistema
jurídico alemão,
veja Larenz, AT, pp. 38 e ss.; em português, veja Pasqualotto, pp. 52 e
54.
(19) Cf. o comentário Wolff/Horn/Lindacher, p. 509, a
jurisprudência entendeu
que as cláusulas dos §§ 10 e 11 eram exemplos dos valores perseguidos
pelo § 9.
(20) Assim conclui tb. Brandner, Zehn Jahre, p. 53.
(21) Veja com posição restritiva, Pasqualotto, p. 81 e ss. (p.
145)
a todos os contratantes (leigos e profissionais) a guardar na conclusão
e na execução dos contratos os princípios da probidade e da boa-fé.{22}
Não é demais lembrar que o critério da destinação final
(Endverbraucher) foi recusado pelos elaboradores da lei alemã de 1976
sob o argumento de ser "pouco prático",{23} pois exigiria do fornecedor
de bens saber se seu parceiro contratual será ou não o destinatário final
do bem para poder orientar o conteúdo do contrato. A crítica, no caso
brasileiro fica esvaziada, uma vez que o CDC tem um campo de
aplicação material mais amplo, regulando relações contratuais e
extracontratuais, o que leva a concluir que o critério da destinação
final
seria o único adequado. Resta interpretar este critério.
Voltando nossas atenções para o CDC brasileiro, devemos, em
primeiro lugar, limitar o problema. Trata-se neste estudo de definir
quem é consumidor em uma relação contratual no mercado brasileiro.
Isto porque o CDC utiliza-se de uma técnica multiplicadora do seu
campo de aplicação, qual seja a de dividir os indivíduos entre
consumidores (art. 2.º, caput) e pessoas equiparadas a consumidor
(parágrafo único do art. 2.º). No campo extracontratual, o CDC
considera suas normas aplicáveis a "todas as vítimas do evento danoso"
causado por um produto ou serviço, segundo dispõe o seu art. 17. As
vítimas não são, ou não necessitam ser consumidores stricto sensu, mas
a elas é aplicada a tutela especial do CDC por determinação legal do
art. 17, que as equipara aos consumidores. O parágrafo único do art.
2.º do CDC estabelece este princípio de equiparação:
"Art. 2.º...
"Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de
pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações
de consumo."
Estamos aqui procurando a definição de consumidor stricto sensu,
concentrada na idéia de "destinatário final", e não a de bystander ou
terceiro na relação contratual, que de alguma forma interveio ou foi
vítima da relação de consumo. De qualquer maneira, pode ser impor-
tante para as nossas conclusões saber que as normas do CDC são
* (22) PL 118/84, versão Diário do Senado Federal - dez.1997, p.
00144, consta
por erro como art. 421.
(23) Assim Koetz, Muenchener, p. 1951, § 24 (1) AGBG. (p. 146)
aplicáveis por lei, a pessoas que em princípio não poderiam ser
qualificadas como consumidores stricto sensu.
Feitas estas observações, passamos a definir quem é consumidor
striCtO sensu no sistema do CDC brasileiro. Dispõe o art. 2.º:
"Art. 2.º - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que
adquire
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."
É necessário interpretar a norma do art. 2.º. O Código, como
afirmamos anteriormente, em matéria contratual, representa a evolução
do pensamento jurídico para uma teoria contratual que entende o
contrato enquanto sua função social. Para atingir este intento, a nova
teoria pensa muitas vezes de maneira tópica, isto é, pensa-se por
problemas, tentando resolver um a um, como faremos a seguir.
No caso dos contratos, o problema é o desequilíbrio flagrante de
forças dos contratantes. Uma das partes é vulnerável, é hipossuficiente,
é o pólo mais fraco da relação contratual, pois não pode discutir o
conteúdo do contrato; mesmo que saiba que determinada cláusula é
abusiva, só tem uma opção "pegar ou largar", isto é, aceitar o contrato
nas condições que lhe oferece o fornecedor ou não aceitar e procurar
outro fornecedor.
O novo direito dos contratos procura evitar este desequilíbrio,
procura a eqüidade contratual. Mas existe desequilíbrio em um contrato
firmado entre dois profissionais? Como regra geral, presume-se que não
há desequilíbrio, ou que não é tão grave a ponto de merecer uma tutela
especial, não concedida pelo direito civil e pelo direito comercial. Esta
presunção está presente, igualmente, na lei alemã. Mas, como obser-
vamos, por vezes o profissional é um pequeno comerciante, dono de
bar, mercearia, que não pode impor suas condições contratuais para o
fornecedor de bebidas, ou que não compreende perfeitamente bem as
remissões feitas a outras leis no texto do contrato, ou que, mesmo sendo
um advogado, assina o contrato abusivo do único fornecedor legal de
computadores, pois confia que nada ocorrerá de errado. Nestes três
casos, pode haver uma exceção à regra geral, o profissional pode
também ser "vulnerável", ser "hipossuficiente" para se proteger do
desequilíbrio contratual imposto.
Existem três tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica e a
fática. Na vulnerabilidade técnica, o comprador não possui conheci-
mentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é (p.
147)
mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto
à sua utilidade,{24} o mesmo ocorrendo em matéria de serviços.{25} A
vulnerabilidade técnica, no sistema do CDC, é presumida para o
consumidor não-profissional, mas também pode atingir o profissional,
destinatário final fático do bem, como vimos no exemplo da jurispru-
dência francesa.
Já a vulnerabilidade jurídica ou científica,{26} é a falta de
conheci-
mentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de
economia.{27} Esta vulnerabilidade, no sistema do CDC, é presumida
para o consumidor não-profissional, e para o consumidor pessoa física.
Quanto aos profissionais e às pessoas jurídicas vale a presunção em
contrário, isto é, que devem possuir conhecimentos jurídicos minimos
e sobre a economia para poderem exercer a profissão, ou devem poder
consultar advogados e profissionais especializados antes de obrigar-se.
Mas há ainda a vulnerabilidade fática ou sócio-econômica, onde
o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que
por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder
* (24) Assim ensina Amaral Jr./Boa-fé, p. 28: "...o consumidor é
vulnerável
porque não dispõe dos conhecimentos técnicos necessários para a elabo-
ração dos produtos ou para a prestação dos serviços no mercado. Por essa
razão, o consumidor não está em condições de avaliar, corretamente, o
grau de perfeição dos produtos e serviços".
(25) Assim ensina a decisão do TARS, Ap. Civ. 193 184 132, 5.ª
Câm, rel. João
Carlos Branco Cardoso, j. 17.3.94, onde se lê, no corpo do acórdão, p. 5:
"O que pode se apreender da experiência do dia-a-dia, é que a pessoa,
qualquer que seja, desimportando sua condição de professora universitária
na espécie, ao procurar um plano de saúde, deseja a maior cobertura
possível. Por isso contrata, e o seu poder de barganha é mínimo,
limitando-
se a escolher entre as várias alternativas, porém não podendo alterá-
las".
(26) A vulnerabilidade jurídica do consumidor foi identificada e
protegida pela
corte suprema alemã, nos contratos de empréstimo bancário e financiamen-
to, afirmando que o consumidor não teria suficiente "experiência ou
conhecimento econômico, nem a possibilidade de recorrer a um especia-
lista", veja BGHZ 93.264 (1984), BGH-NJW-RR 1986, 205 e comentários
em Schmelz, p. 1219 (NJW maio 1991).
(27) Amaral Jr/Boa-fé, p. 28 e 29, maximaliza esta
vulnerabilidade, afirmando:
"No plano jurídico, todavia, a vulnerabilidade do consumidor manifesta-Se
na alteração dos mecanismos de formação dos contratos, que deu origem
ao aparecimento e consolidação dos contratos de massa". (p. 148)
econômico ou em razão da essencialidade do serviço,{28} impõe sua
superioridade a todos que com ele contratam, por exemplo, quando um
médico adquire um automóvel, através do sistema de consórcios, para
poder atender suas consultas e submete-se às condições fixadas pela
administradora de consórcios, ou pelo próprio Estado. Em se tratando
de vulnerabilidade fática, o sistema do CDC a presume para o
consumidor não-profissional (o advogado que assina um contrato de
locação abusivo, porque necessita de uma casa para a sua família perto
do colégio dos filhos), mas não a presume para o profissional (o mesmo
advogado que assina o contrato de locação comercial abusivo, para
localizar o seu escritório mais próximo do Foro), nem a presume para
o consumidor pessoa jurídica (veja art. 51, inciso I, in fine).{29} Isto
não
significa que o Judiciário não possa tratar o profissional de maneira
"equivalente" ao consumidor, se o profissional efetivamente provar a
sua vulnerabilidade, que levou ao desequilíbrio contratual. Trata-se,
porém, da exceção e não da regra.
Concluindo, concordamos com a interpretação finalista das nor-
mas do CDC. A regra do art. 2.º deve ser interpretada de acordo com
o sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da
* (28) Na sociedade brasileira atual, essenciais são não somente
os serviços
públicos ou ex-públicos. Veja decisão do TJSP, cuja ementa é a seguinte:
Contrato de adesão. Convênio médico-hospitalar. Liberdade ampla de
contratar. Igualdade entre as partes. Inocorrência. Serviço necessário à
saúde. Relativa liberdade. Recurso não provido. O princípio da autonomia
da vontade parte do pressuposto de que os contratantes se encontram em
pé de igualdade, e que, portanto, são livres de aceitar ou rejeitar os
termos
do contrato. Mas isso nem sempre é verdadeiro. Pois a igualdade que reina
no contrato é puramente teórica, e via de regra, enquanto o contratante
mais
fraco no mais das vezes não pode fugir à necessidade de contratar, o
contratante mais forte leva uma sensível vantagem no negócio pois é ele
que dita as condições do ajuste" (Ap. C. 232.777-2, Rel. Gildo dos
Santos,
j. 19.5.94).
(29) Assim manifestaram-se por uma limitação teleológica da
definição de
consumidor os professores paulistas Alcides Tomasetti Junior e Antônio
Herman V. Benjamin, quando do Seminário Internacional de Direito do
Consumidor - USP, 24 a 27 de setembro de 1990, sendo deste último a idéia
de uma presunção de hipossuficiência no caso do consumidor pessoa física.
Preferimos, porém, como ensina Adalberto Pasqualotto, reservar a expres-
são hipossuficiente para os aspectos processuais (art. 6, VIII) e
desenvolver,
em direito material, o conceito de vulnerabilidade. (p. 149)
norma, a qual vem determinada de maneira clara pelo art. 4.º do CDC.
Só uma interpretação teleológica da norma do art. 2.º permitirá definir
quem são os consumidores no sistema do CDC. Mas além dos
consumidores stricto sensu, conhece o CDC os consumidores-equipa-
rados, os quais por determinação legal merecem a proteção especial de
suas regras. Trata-se de um sistema tutelar que prevê exceções em seu
campo de aplicação sempre que a pessoa física ou jurídica preencher
as qualidades objetivas de seu conceito e as qualidades subjetivas
(vulnerabilidade), mesmo que não preencha a de destinatário final
econômico do produto ou serviço.
O destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o
que
retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo
(destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de
produção (destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem
para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está
transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao
seu cliente, seu consumidor.{30}
Portanto, em princípio, estão submetidos às regras do Código os
contratos firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional,
e entre o fornecedor e o consumidor, o qual pode ser um profissional,
mas que, no contrato em questão, não visa lucro, pois o contrato não
se relaciona com sua atividade profissional, seja este consumidor
pessoa física ou jurídica.
Em face da experiência no direito comparado, a escolha do
legislador brasileiro, do critério da destinação final, com o parágrafo
único do art. 2.º e com uma interpretação teleológica permitindo
exceções, parece ser uma escolha sensata. A regra é a exclusão ab initio
do profissional da proteção do Código, mas as exceções virão através
da ação da jurisprudência, que em virtude da vulnerabilidade do
profissional, excluirá o contrato da aplicação das regras normais do
Direito Comercial e aplicará as regras protetivas do CDC.
Se a jurisprudência inicial privilegiava a corrente maximalista
quanto à interpretação do art. 2.º do CDC, estes mais de seis anos de
experiência de prática com o CDC parecem ter sensibilizado os
magistrados quanto à necessidade de uma interpretação cuidadosa na
* (30) Adotando um conceito mais estrito de "insumo" para a
produção estão
Fábio Ulhoa Coelho, "Compra", p. 42 e Donato, p. 88. (p. 150)
concessão da tutela especial do consumidor stricto sensu, combinada
sim com generosa flexibilidade nas equiparações e exceções previstas
em lei, sempre utilizando o princípio da vulnerabilidade do art. 4.º,
inc.
I, do CDC. Esta tendência atual tende a generalizar-se. O próprio
Mercosul, em Resolução do Grupo Mercado Comum 123/96{31} tentou
definir consumidor-destinatário final e resolver as dificuldades desta
interpretação afirmando: "Não se considera consumidor ou usuário
aquele que, sem constituir-se em destinatário final, adquire, armazena,
utiliza ou consome produtos ou serviços com o fim de integrá-los em
processos de produção, transformação, comercialização ou prestação a
terceiros".{32} A redação não foi feliz, pois bastaria comprovar que este
comerciante "constitui-se em destinatário final", para quebrar a exclu-
são. Sua lógica, porém, foi minimalista e mesmo se a Resolução não
entrou em vigor e tende a ser revogada, pois o Projeto de Regulamento
Comum de Defesa do Consumidor do Mercosul foi superado em
virtudes de falhas no texto acordado, o Comitê Técnico 7 da CCM/
Mercosul deixou clara a sua intenção de exclusão das relações
intercomerciantes.
Outro fator que deve ser considerado é que, no Brasil, o Projeto
de novo Código Civil pode introduzir definitivamente em todas as
relações civis e comerciais o paradigma da boa-fé e com isso, imagina-
se, diminua o interesse dos "consumidores"-profissionais de incluírem
suas relações comerciais inter ou intrafornecedores como relações de
consumo, preferindo o sistema tutelar geral do novo Código Civil (e
Comercial) ao ágil sistema do CDC.
Efetivamente, grande número de empresas têm tentado ver reco-
nhecido no Judiciário seu status de "consumidoras"-destinatárias finais
fáticas, pois o sistema do CDC demonstrou ser um setor de excelência
e eficiência do direito civil brasileiro, onde as soluções de mérito e de
justiça contratual realmente realizam-se. Apoiadas por advogados
atualizados, as empresas tornaram-se litigantes comuns a recorrer ao
sistema do CDC para resolver seus problemas contratuais intercomerciais,
deturpando, assim, o espírito protetivo do CDC e colocando em perigo
a proteção do verdadeiro consumidor stricto sensu. A atual resposta
* (31) Mercosul/GMC/Res, 123/96, assinada em Fortaleza, em 13 de
dezembro
de 1996.
(32) Anexo de Conceitos, n. I, terceira frase, in:
Mercosul/GMC/Res. 123/96,
assinada em Fortaleza, em 13 de dezembro de 1996. (p. 151)
mais clara da jurisprudência e a eventual atualização que o projetado
novo Código Civil trará ao sistema geral de direito civil e comercial
tendem a superar este problema inicial da introdução do CDC no
ordenamento jurídico brasileiro.
Na primeira edição deste livro, ainda antes da manifestação da
jurisprudência brasileira, tivemos a oportunidade de afirmar:
Correta a corrente finalista, pois há verdadeiro perigo que a
interpretação extensiva da norma do art. 2.º transforme o CDC em lei
de proteção do consumidor-profissional, do comerciante ou do indus-
trial, quando destinatário final fático do produto e, de regra,
destinatário
final fático do serviço. Observando os princípios positivados no CDC,
perece-me hoje que uma interpretação maximalista estaria realmente
em desacordo com o espírito excepcional da tutela e o fim visado pelo
Código, mas caberá à jurisprudência brasileira dar uma palavra decisiva
sobre o assunto.
Se nossa opinião, continua sendo no sentido da não caracteri-
zação ab initio dos profissionais como consumidores stricto sensu,
podemos verificar que a posição adotada pela jurisprudência brasileira
foi de extrema originalidade. Invocados os novos direitos presentes
no CDC em contenda entre dois profissionais, a solução jurispru-
dencial quanto a abusividade das cláusulas contratuais foi sempre no
sentido de um uso "analógico" ou inspirador e como verdadeiro
princípio geral (de boa-fé) das normas do CDC.{33} De outro lado, a
jurisprudência valorizou os artigos presentes no CDC que criavam
a figura do "agente equiparado a consumidor", tanto no campo
* (33) Exemplo desta linha de utilização "analógica" do CDC aos
contratos entre
profissionais, no caso duas sociedades anônimas, é a decisão do TARS, 2.ª
C. Cível (Ap. Cível n. 191031798, j. 9.5.91. in: Julgados TA/RS, 78/284-
287), Rel. Paulo Heerdt: "Contrato de leasing. Plano Verão. Cabível a
consignatória para discutir índice do reajuste. Ainda que as Leis
7.738/89
e 7.74/89 tenham permitido utilização de índice alternativo previsto em
contrato, não pode o Judiciário chancelar cláusula abusiva em contrato
que,
por ser de adesão, fere claramente a paridade de tratamento entre os
contratantes. Posição reiterada da jurisprudência. agora consagrada pela
Lei
de Defesa do Consumidor. Apelo provido para julgar procedente a consig-
natória"; em sentido exatamente contrário, decisão do TAPR, de 18.12.91,
comentada e criticada por William Santos Ferreira, in: Direito do Consu-
midor, 11, p. 196 e ss. (p. 152)
extracontratual{34} quanto no contratual (art. 2.º, parágrafo único,
arts.
17 e 29 do CDC), tema que passamos a tratar.

b) Agentes equiparados a consumidores - Nestes primeiros anos


de aplicação do CDC, duas foram as linhas utilizadas pela jurispru-
dência para atingir a ampliação do campo de aplicação do CDC: a
primeira foi a de considerar o CDC como novo paradigma geral de
boa-fé nas relações contratuais e utilizar os seus princípios, em
especial, a sua cláusula geral do art. 51, IV (cláusula geral de boa-
fé),{35} mesmo a contratos mercantis{36} ou a contratos de polêmica
* (34) Mesmo sem citar o art. 17 do CDC, em acórdão referente a
perdas e danos
por acidente causado por caminhão da empresa apelante, que apresentara
defeito após o conserto pela empresa apelada, a 7.ª Câm. Cív. do TJ/RS
decidiu: "Indenização. Conserto. Verificada por perícia bastante e
insuspei-
ta, a falha do conserto, feito poucos dias antes, procede, a indenização,
pretendida pelo dono do veículo consertado. Responsabilidade do reparador
pelo conserto feito, consoante o art. 14 do Código de Defesa do
Consumidor
(Lei 8.078/90)". (Ap. Cív. 591007174, j. 10.4.91, Rel. Waldemar Luiz de
Freitas Filho, publicado in: Rev. Jurisprudência TJRGS, 152/541-543).
(35) Exemplo claro desta linha é a decisão no Proc. 10.113-288/91
(Esteio/RS),
de 23.5.91, do Juiz Carlos Alberto Etcheverry, no qual o magistrado
examinava a "validade das cláusulas" do contrato de arrendamento mercan-
til (Leasing entre duas empresas) "à luz da regulamentação contida no
Código de Defesa do Consumidor" face a natureza de contrato de adesão,
uma vez que: "Cabe ao Poder Judiciário, quando inexiste lei que verse
especificamente sobre a matéria ou, existindo, não é, por hipótese,
aplicável
a negócios jurídicos celebrados antes de sua vigência, restabelecer o
equilíbrio e a igualdade entre as partes, de forma a permitir a
conciliação
e harmonia entre os fins individuais e sociais...", fazendo suas as
palavras
de Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 1983, p. 101), segundo o
qual:
"Deverá a jurisprudência servir-se da cláusula da boa-fé e, sobretudo, da
cláusula geral da ordem pública (art. 280.0), em ordem realização de uma
sindicância sobre o conteúdo destes contratos" (de adesão). (p. 14 da
citada
sentença, ainda inédita); contra esta linha, pela não aplicação ao
leasing
mercantil do CDC, veja decisão do TAPR, Ap. Cív. 45.711-0, 4ª C., j.
18.12.91, Rel. Juiz Ulysses Lopes, publicada na íntegra in: RT
678/180-184.
(36) Em decisão analisando a nulidade do título sacado em virtude
de cláusula
mandato, em discussão judicial envolvendo uma empresa de calçados e uma
instituição bancária, o Juiz João Sedinei Ruaro, declarou seu voto na
seguinte linha: "Mesmo que se possa discutir o enquadramento da relação
negocial do financiamento bancário como relação de consumo, parece certo
que é legítima e válida a invocação e aplicação dessa norma do Código do
(p. 153)
inclusão no sistema do CDC, como, para muitos, são alguns contratos
bancários{37} ou contratos de locação;{38} a segunda linha ampliadora do
impacto do CDC no mercado veio através da interpretação dada ao
art. 29 do CDC. A jurisprudência valorizou a técnica do próprio CDC
de instituir "consumidores-equiparados" ao lado dos consumidores
stricto sensu e passou a exercer um controle de cláusulas abusivas
em contratos de adesão que estariam inicialmente fora do campo de
aplicação do CDC,{39} como o contrato entre dois profissionais; assim
como a valorar práticas comerciais abusivas entre dois fornecedores
ou dois grupos de empresários, práticas que possuiriam reflexos
apenas mediatos no que se refere à proteção dos consumidores stricto
sensu.
O ponto de partida desta extensão do campo de aplicação do CDC
é a observação de que muitas pessoas, mesmo não sendo consumidores
stricto sensu, podem ser atingidas ou prejudicadas pelas atividades dos
fornecedores no mercado. Estas pessoas, grupos e mesmo profissionais
podem intervir nas relações de consumo de outra forma a ocupar uma
posição de vulnerabilidade. Mesmo não preenchendo as características
de um consumidor stricto sensu, a posição preponderante (Machtpo-
*Consumidor em face da presença e integração no caso de todos os
elementos constantes do dispositivo em exame, autorizando a aplicação
extensiva e analógica da lei, atuante o seu espírito e os objetivos
visados
pelo legislador, buscando inequivocamente afastar as cláusulas abusivas
e prejudiciais à parte economicamente mais fraca." (Ap. C. 192044378,
TARS, 3ª C. Cível, j. 27.5.92, Rel. Juiz Danúbio Edon Franco, p. 14
(Declaração de voto) do acórdão ainda inédito).
(37) Veja a decisão do TARS - Ap. Cív. 191011477 - 1.ª C. Cív. -
j. 9.4.91 - Rel.
Juracy Vilella de Souza: "É nula a cláusula contratual que cria mandato
para
ser utilizado por pessoa jurídica, integrante do mesmo grupo econômico do
mutuante, contra os interesses do mandante, porque abusiva e contrária o
que
estabelece a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor)", publicado
na íntegra in: Revista de Direito do Consumidor, 6/264-266.
(38) Veja a decisão sobre a abusividade da cobrança da "taxa de
contrato", taxa
de intermediação dos contratos de locação a decisão de Brasília, de
28.5.92,
reproduzida na íntegra in: Revista de Direito do Consumidor, 6/295-296.
(39) Veja a manifestação pioneira de Hapner, Código, p. 153,
contra esta
extensão do conceito, veja Benjamin, Anteprojeto, p. 147, para o qual o
art.
29 representa apenas uma visão coletiva do consumidor, equiparado do
parágrafo único do art. 2.º. (p. 154)
sition) do fornecedor e a posição de vulnerabilidade destas pessoas
sensibilizaram o legislador e, agora, os aplicadores da lei.{40}
O princípio da vulnerabilidade do consumidor está disposto no
art.
4º, inc. I do CDC, e, como vimos, a vulnerabilidade pode ser técnica,
jurídica (como é o caso do consumidor pessoa física ou do profissional
liberal frente a uma instituição bancária ou financeira) ou fática. Na
constatação da vulnerabilidade fática, o ponto de concentração é o
possível parceiro contratual, a posição monopolista (monopólio de fato
ou de direito), a especialidade ou a redução da oferta, o seu grande
poder econômico, em suma, a sua superioridade fática frente ao outro
parceiro contratual.{41}
Na análise anterior, defendemos o ponto de vista que a pessoa
jurídica ou o profissional não se beneficia da presunção de
vulnerabilidade, mas pode prová-la, sempre que destinatário final
econômico do produto ou serviço. No caso de extensão do campo de
aplicação do CDC face ao art. 29, a vulnerabilidade continua sendo
elemento essencial, superado, apenas, foi o critério da destinação final.
Mesmo não sendo destinatário final (fático ou econômico) do produto
ou serviço, pode o agente econômico ou profissional liberal vir a ser
beneficiado das normas tutelares do CDC enquanto consumidor-
equiparado. Isto porque, concentrado talvez nesta vulnerabilidade
fática, instituiu o legislador brasileiro três normas de extensão do
campo de aplicação pessoal do CDC, três disposições legais conceituando
os agentes que considera equiparados a consumidores (parágrafo único
do art. 2.º, arts. 17 e 29).
* (40) Neste sentido exemplar a decisão do TJRS, que em caso de
franchising
entre dois comerciantes, decide: "Contrato de Adesão. Desequilíbrio entre
as partes. Prevalência do foro da obrigação. Não é por se cuidar de
relação
de consumo, que não é, que se afasta sedizente eleição de foro, em
contrato
de franchise, senão porque demonstrada satisfatoriamente, a
vulnerabilidade
de um dos figurantes, evidenciando-se o desequilíbrio entre as partes do
negócio, permitindo a aplicação do art. 29 do CDC, verdadeiro canal de
oxigenação do ordenamento jurídico comum" (AI 597036102, j. 29.4.97,
Des. Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior, in Revista de Jurisprudência do
TJRGS, v. 184, p. 184 e ss.)
(41) Concorda Donato, p. 108, considerando que o exame da
vulnerabilidade é
a solução para o impasse entre as posições finalistas e maximalistas
sobre
a aplicação do CDC, pp. 107 e 108. (p. 155)
Como verificamos anteriormente, o parágrafo único do art. 2.º do
CDC é das normas de extensão a norma mais geral, segundo a qual:
"Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis que haja intervindo nas relações de consumo". Assim,
apesar de não se caracterizar como consumidor stricto sensu, a criança,
filha do adquirente a qual ingere produto defeituoso e vem a adoecer
por fato do produto é consumidor-equiparado e beneficia-se de todas
as normas protetivas do CDC aplicáveis ao caso. A importância do
parágrafo único do art. 2.º é seu caráter de norma genérica,
interpretadora,
aplicável a todos os capítulos e seções do Código.
A proteção do terceiro, bystander, complementada pela disposição
do art. 17 do CDC, que aplicando-se somente a seção de responsabi-
lidade pelo fato do produto e serviço (arts. 12 a 16) dispõe: "Para
efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas
do evento". Logo, basta ser "vítima" de um produto ou serviço para
ser privilegiado com a posição de consumidor legalmente protegido
pelas normas sobre responsabilidade objetiva pelo fato do produto
presentes no CDC.
Na hipótese de cláusulas abüsivas terem sido inseridas em um
contrato unilateralmente redigido por um fornecedor de serviços, por
exemplo, uma Instituição Bancária e ser este contrato oferecido a
adesão de um profissional liberal ou de um pequeno comerciante,
poderão estes usar do patamar de boa-fé e respeito das expectativas
legítimas introduzidas pelo CDC no sistema de direito brasileiro? No
caso da imposição da prática da venda casada ou de recusa de venda
entre comerciantes, poderá o pequeno empresário considerá-la abusiva
e requerer sua proibição com base no CDC? Trata-se somente de um
caso de direito comercial? Trata-se de prática comercial ou prática
contratual que prejudica somente diretamente empresários ou prejudica
indiretamente também aos consumidores, finais e potenciais, e a todo
o mercado.
Nas hipóteses que aqui mencionamos, a jurisprudência brasileira
passou a valorizar o art. 29 do CDC. O art. 29 é uma disposição
especial, que abre o capítulo V do Código sobre "Práticas Comerciais",
aplicável, portanto, a todas as seções do capítulo, quais sejam: a seção
sobre oferta (arts. 30 a 35), sobre publicidade (arts. 36 a 38),{42}
sobre
* (42) Nesse sentido Maria Elizabete Vilaça Lopes, p. 166, destaca
que em se
tratando da publicidade "não é bastante dizer que as pessoas protegidas
por (p. 156)
práticas abusivas (árts. 39 a 41), sobre cobrança de dívidas (art. 42),
sobre Banco de Dados e Cadastros de Consumidores (arts. 43 a 45) e
que se diz aplicável também ao capítulo posterior, o Capítulo VI,
dedicado à "Proteção Contratual".
Trata-se atualmente, portanto, da mais importante norma extensiva
do campo de aplicação da nova lei ao dispor: "Art. 29. Para os fins deste
Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as
pessoas determináveis ou não, expostos às práticas nele previstas"
(grifo nosso).
O art. 29 supera, portanto, os estritos limites da definição
jurídica
de consumidor para imprimir uma definição de política-legislativa!
Parece-nos que, para harmonizar os interesses presentes no mercado de
consumo, para reprimir eficazmente os abusos do poder econômico,
para proteger os interesses econômicos dos consumidores-finais, o
legislador concedeu um poderoso instrumento nas mãos daquelas
pessoas (mesmo agentes econômicos) expostas às práticas abusivas.
Estas, mesmo não sendo "consumidores stricto sensu", poderão utilizar
das normas especiais do CDC, de seus princípios, de sua ética de
responsabilidade social no mercado, de sua nova ordem pública, para
combater as práticas comerciais abusivas!
Em verdade, o potencial desta norma ainda foi pouco explorado
pelos agentes econômicos presentes no mercado brasileiro, talvez rece-
osos que um dia ela seja usada contra si próprios. Na verdade, sua
potencialidade ainda é quase desconhecida e parece conter como único
limite a idéia de prejuízo (direto ou indireto) para os consumidores face
à prática comercial abusiva. O art. 4º do CDC, em inc. VI, estabelece
como norma-objetivo do CDC, como princípio norteador da interpreta-
ção do próprio art. 29, "a coibição e repressão eficientes de todos os
abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência
desleal", desde que "possam causar prejuízos aos consumidores". As-
sim, um comerciante poderia exigir, por exemplo, a abstenção de outro
comerciante que está vinculando uma propaganda enganosa no mercado
*essas normas são os consumidores em potencial. É mais do que isso: não
só os consumidores em potencial, ou seja, aqueles que podem vir a
adquirir
ou utilizar produto ou serviço como destinatários finais. Incluem-se
todas
as pessoas expostas às práticas comerciais, inclusive a empresa". Também
nesse sentido manifestação de Alcides Tomasetti Júnior, relembrando o
combate à concorrência desleal e sua ligação com a proteção do
consumidor. (p. 157)
(art. 37, § 1 .º) ou a nulidade de uma cláusula presente nas suas
condições
gerais de venda, mesmo em contrato comercial (arts. 51 e 54), alegando
prejuízo indireto aos consumidores (em verdade, ao mercado).
Ao valorizar o art. 29 do CDC, a jurisprudência tenta aproximar-
se da vontade interventora do legislador brasileiro. A surpresa com esta
decisão extensiva do legislador só é superada se observamos que a
jurisprudência alemã também foi autorizada a controlar os contratos
comerciais e suas condições gerais firmadas entre dois profissionais
desde 1976, assim como a lei portuguesa variando apenas o grau e a
extensão deste controle conforme a natureza comercial ou não do
contrato. A idéia básica, porém, é a mesma, de imposição de um
patamar mínimo de lealdade e boa-fé objetiva.
Nesse sentido, destaca-se como verdadeiro leading case, a decisão
do Tribunal de Alçada/RS, 2.ª Câm. Cív., Ap. cív. 192188076, Rel. Paulo
Heerdt, j. 24.9.92, com a seguinte ementa: "Contrato de crédito rotativo.
Juros e correção monetária. Código de Defesa do Consumidor. Conceito
de consumidor para os fins dos capítulos V e VI da Lei 8.078/90. Exegese
do art. 29 do CDC. Contrato de adesão. Cláusula abusiva. Controle
judicial dos contratos. Ainda que não incidam todas as normas do CDC
nas relações entre Banco e empresa, em contrato de crédito rotativo,
aplicam-se os Capítulos V e VI, por força do art. 29 do CDC, que amplia
o conceito de consumidor possibilitando ao Judiciário o controle das
cláusulas contratuais abusivas, impostas em contratos de adesão. Cláu-
sula que permite variação unilateral de taxa de juros é abusiva porque,
nos termos do art. 51, X e XIII, possibilita variação de preço e modifi-
cação unilateral dos termos contratados, Possibilidade de controle judi-
cial, visando estabelecer o equilíbrio contratual, reduzindo o vigor do
princípio "pacta sunt servanda"... Ação declaratória julgada procedente
para anular lançamentos feitos abusivamente, Sentença reformada."
(grifo nosso){43}
A clareza da lição jurisprudencial dispensa comentários; se o art.
29 amplia o conceito de consumidor, a lição vale igualmente para os
profissionais submetidos à prática abusiva proibida pelo Capítulo V do
CDC. Podemos, portanto, concluir que se assim for interpretado o art.
29 uma nova série de hipóteses passarão a incluir-se no campo de
* (43) Acórdão publicado na íntegra in: Revista de Direito do
Consumidor,
6/274-277. (p. 158)
aplicação das normas dos capítulos V e VI do CDC, permitindo uma
tutela protetiva daquele profissional, consumidor-equiparado, justa-
mente no âmbito contratual, de forma a reequilibrar a relação e reprimir
o uso abusivo do poder econômico.
Trata-se talvez de uma nova conscientização da intrincada corre-
lação entre as ações dos agentes econômicos individuais e os reflexos,
por vezes danosos e difusos, na sociedade. Neste conflito de interesses
e forças da dinâmica sociedade de massas em que vivemos, a ação de
um grupo social, os fornecedores, pode efetivamente determinar rea-
ções e prejuízos em um grupo difuso de indivíduos, consumidores e
mesmo profissionais, equiparados a consumidores, por estarem direta
ou indiretamente conectados às práticas dos primeiros.
A visão do Estado, como mediador dos interesses envolvidos, vai
determinar a relevância jurídica ou não destes atos,{44} a incluir ou
excluir
determinado grupo de indivíduos do âmbito das novas leis tutelares dos
consumidores. De certa forma, o legislador do CDC previa a passivi-
dade do consumidor stricto sensu, a prevalência do fornecedor mono-
polista e a possibilidade de que talvez o consumidor equiparado viesse
a instigar a resposta do sistema, o combate efetivo das práticas
abusivas,
com diretos e indiretos reflexos positivos para o consumidor, forçando
a instituição de um mercado mais harmônico e menos abusivo. De certa
forma, o art. 29 agora valorizado renova o sistema, legitimando a
atuação de novos agentes econômicos em virtude do dado comum de
vulnerabilidade, verdadeiro status análogo ao de consumidor, renova,
principalmente, ao instituir instrumentos mais ágeis e sanções mais
rígidas do que as conhecidas no direito da concorrência, de parcos
efeitos no Brasil.
Concorde-se ou não a decisão do legislador e sua interpretação
pela jurisprudência, parece-nos certa a tendência, em se tratando de
contratos unilateralmente redigidos, contratos de adesão, de expandir
o campo de aplicação do CDC. Não está, porém, superado o receio que
manifestamos na anterior edição que a expansão da aplicação do CDC
venha a baixar o nível de proteção concedido ao consumidor.{45}
* (44) Sobre o tema veja interessante parecer de Waldírio
Bulgarelli, "Abuso do
Poder Econômico e Proteção do Consumidor" in: Direito Empresarial
Moderno, p. 33.
(45) Exemplo de utilização "maximalista" na jurisprudência gaúcha
é o AI
59623517, rel. Cláudio A. R. Lopes Nunes, j. 10.4.97, in Revista de (p.
159)
Esperamos, portanto, que a jurisprudência mantenha a linha atual de
razoabilidade no controle dos contratos de adesão, privilegiando
realmente aqueles consumidores-equiparados que se encontram em
fática situação de vulnerabilidade{46} e assegurando para os consumido-
res stricto sensu eficaz equilíbrio e boa-fé nas suas relações contra-
tuais.{47}
Concluímos, então, afirmando que em virtude do disposto no art.
29 do CDC, assim como foi interpretado pela jurisprudência, o
legislador brasileiro, para proteger os interesses econômicos dos
consumidores, concedeu um novo e poderoso instrumento (as ações
autorizadas pelo CDC e sua ética de boa-fé objetiva nas relações
negociais) para que os "consumidores-equiparados" (na maioria, tam-
bém empresários) combatam as práticas comerciais abusivas que os
lesam diretamente e que, mediatamente, prejudicam os outros consu-
midores e a harmonia do mercado.
A extensão do campo de aplicação do CDC aos empresários, em
casos de incidência das normas materiais dos capítulos V e VI, pode
ser considerada quase um novo privilégio, determinado por razões de
política legislativa e tendo em vista a realidade brasileira de pouca
organização da sociedade civil e de passividade dos consumidores-
finais. Se a jurisprudência atual ainda tende a considerar este novo
"privilégio" como positivo, duas tendências contrárias a este "maxima-
lismo" se avizinham: na Europa unificada, defende-se a superação da
visão atual do consumidor como mero agente econômico e a imposição
de uma visão mais social do consumidor, consumidor como pessoa,
*Jurisprudência do TJRGS, v. 182, p. 231 e ss. Tratava-se do
relacionamen-
to entre importadora e exportadora de automóveis, e a cláusula atacada
foi a de eleição do foro.
(46) Neste sentido conclui tb. em sua tese, Donato, p. 247; a
autora apesar de
discordar com os exemplos por nós fornecidos na primeira edição, pp. 248
e 249, conclui que tb. na aplicação do art. 29 o elemento teleológico da
vulnerabilidade é decisivo para a extensão da proteção dos capítulos V e
VI às relações entre profissionais.
(47) Veja interessante decisão do STJ, que em contrato de crédito
rural recusa
a utilização do CDC, não porque inaplicável a relação intercomerciantes,
mas porque o contrato era anterior a entrada em vigor do CDC, in RE
90.162-RS, j. 28.5.96, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. (p. 160)
como sujeito de direitos do século XXI;{48} da mesma forma, o Projeto
de Código Civil, PL 118/84, unifica{49} em grande medida as obrigações
civis e comerciais, regula "o direito da empresa" (art. 966 e ss., PL
118/
84){50} e impõe como patamar igualitário para todos os contratos o
princípio da boa-fé (art. 422, PL 118/84), função social do contrato
(art.
421, PL 118/84) e intervenção reequilibradora nos contratos de adesão
(arts. 423 e 424, PL 118/84). Logo, se este projeto for definitivamente
aprovado não será mais no status de consumidor equiparado que o
comerciante lesado na relação interempresarial procurará sua proteção,
mas no direito civil (e comercial) geral. Avistam-se, pois, modificações
na jurisprudência.
A própria jurisprudência gaúcha evoluiu para considerar que o
princípio da vulnerabilidade (presumida para o consumidor pessoa
física), imposto pelo CDC, está subsumido no art. 29 do Código, sendo
deste pré-requisito lógico. Assim só incluem-se na proteção "equipa-
rada" deste artigo aqueles "profissionais" ou leigos que, vulneráveis,
comprovam sua situação de vulnerabilidade fática, econômica, jurídica
ou técnica. O Des. Antonio Janyr Dall’Agnoll, em seu voto, após
* (48) Assim Alpa in: Contratto e impresa, p. 372 e 373. Note-se
que esta visão
do consumidor como pessoa foi a iniciadora do movimento consumerista
e da consumer rights rhetoric , com o discurso de J. F. Kennedy em 1962:
"The consumer is no longer seen merely as a purchase and user of goods
and services for personal, family or group purposes but also as a person
concerned with the various facets of society which may affect him either
directly or indirectiy as a consumer..." (apud, Reich, Consumer, p. 20).
Esta
visão mais individual de consumidor e do grupo de consumidores a ser
protegidos pela lei tende a prejudicar a visão maximalista, pois o homo
economicus geralmente age só e assim será protegido, o que não impede,
porém, que seja protegido quando somente organizado através de uma
pessoa jurídica ou em grupo conseguirá seu intento. Veja-se ainda Alpa,
Banche di Dati, p. 54, sobre o que chama de nova "dignidade social", e
o direito como instrumento de proteção da identidade individual dos
consumidores, pessoas que têm seus dados armazenados em Banco de
Dados Públicos e Privados.
(49) Veja Parecer final do Senador Josapah Marinho, Parecer 749
de 1997 in
Diário do Senado Federal, ano LII-Sup."A" ao n. 208, 15.11.97, p. 8.
Trata-se de um novo Livro da Parte Especial, que ficaria dividida em Dir.
das Obrigações (Livro I, art. 232 e ss.), Dir. da Empresa (Livro II, art.
966
e ss.), Dir. das Coisas (Livro III, art. 1.196 e ss.), Dir. de Família
(Livro
IV, art. 1.511 e ss.), Dir. das Sucessões (Livro V, art. 1.797 e ss.).
(p. 161)
reproduzir o texto do art. 29 do CDC, pontifica: "Esta "exposição às
práticas" implica, ao que me consta, justamente a idéia de sujeição. Este
o sentido que se há de extrair: evidenciando o desequilíbrio entre os
figurantes do negócio, qualquer que seja ele, portanto, inclusive os que
não se enquadrem como "de consumo", incidem os dispositivos dos dois
capítulos referidos. A regra contida no art. 29 do CDC, tenho dito com
alguma freqüência, evidencia-se como verdadeiro canal de oxigenação
do ordenamento jurídico. Foi através dele que se generalizou, eviden-
ciado o desequilíbrio contratual, vale dizer, a vulnerabilidade de um dos
figurantes do negócio jurídico, entre outras, a aplicação das cláusulas
abusivas".{51}

c) O fornecedor - Quanto ao outro pólo da relação contratual de


consumo, o Código define fornecedor de bens ou serviços, em seu art.
3.º, como "toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvol-
vem atividades de produção, montagem, criação, construção, transfor-
mação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de
produtos ou prestação de serviços." Sendo que como serviço, o § 2º
do art. 3º entende também as atividades de natureza bancária, finan-
ceira, de crédito e securitária, ficando excluídas apenas as de caráter
trabalhista.
A definição é novamente ampla. Quanto ao fornecimento de
produtos o critério caracterizador é desenvolver atividades tipicamente
profissionais, como a comercialização, a produção, a importação,
indicando também a necessidade de uma certa habitualidade, como a
transformação, a distribuição de produtos. Estas características vão
excluir da aplicação das normas do Código todos os contratos firmados
entre dois consumidores, não-profissionais. A exclusão parece-me
correta, pois o Código ao criar direitos para os consumidores, cria
deveres, e amplos, para os fornecedores.
Quanto ao fornecimento de serviços, a definição do art. 3º do
CDC foi mais concisa e, portanto, de interpretação mais aberta,
menciona apenas o critério de desenvolver atividades de prestação de
serviços. Mesmo o § 2.º do art. 3º define serviço como "qualquer
atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração...",
* (51) AI 597036102, j. 29.4.97, Des. Antonio Janyr Dall’Agnol
Júnior, in
Revista de Jurisprudência do TJRGS, v. 184, p. 186. (p. 162)
não especificando se o fornecedor necessita ser um profissional. A
remuneraçãO do serviço é o único elemento caracterizador, e não a
profissiOnalidade de quem o presta. A expressão "atividades" no caput
do art. 3.º, parece indicar a exigência de alguma reiteração ou habitua-
lidade, mas fica clara a intenção do legislador de assegurar a inclusão
de um grande número de prestadores de serviços no campo de aplicação
do CDC, à dependência única de ser o co-contratante um consumidor.
Nesse sentido a definição de consumidor ganha em importância
e tendo em vista a dificuldade normal que terão os juristas para definir,
caso a caso, a presença do consumidor e do fornecedor nos contratos
existentes no mercado, continuaremos nosso estudo analisando mais
detiBdamente os tipos ou espécies de contratos onde a aplicação do
CDC será constante.
1.2 Contratos de fornecimento de produtos e serviços

Do exame dos arts. 2.º e 3º do CDC, que definem os agentes


contratuais, consumidor e fornecedor de produtos ou serviços, podemos
concluir que as normas do Código estabelecem um novo regime legal
para todas as espécies de contratos (exceto os trabalhistas) envolvendo
consumidores e fornecedores de bens ou serviços, não importando se
existe lei específica para regulá-los (como o contrato de locação), pois
as normas de ordem pública (art. 1.º) do CDC estabelecem parâmetros
mínimos de boa-fé e transparência a serem seguidos obrigatoriamente
no mercado brasileiro.
São os contratos, agora denominados, de consumo, sejam eles de
compra e venda, de locação, de depósito, de abertura de conta corrente,
de prestação de serviços profissionais, de empréstimo, de financiamen-
to ou de alienação fiduciária, de transporte, de seguro, de seguro saúde,
só para citar os mais comuns.
Nota-se ainda, diferentemente da lei alemã, que se submeterão às
normas do CDC brasileiro tanto os contratos pré-elaborados como
quaisquer outros contratos envolvendo consumidores e fornecedores de
bens ou serviços. Isto porque, seguindo a solução da lei francesa,{52} o
Código subdividiu suas normas em normas especiais para a tutela dos
contratos de adesão (art. 54) e normas gerais aplicáveis às cláusulas
* (52) Veja Weil/Terré, p. 261 e o art. 35, 1.º e 3.º da Lei 78-
23. (p. 163)
abusivas (arts. 51 a 53), estejam elas inseridas em um contrato de
adesão ou em qualquer outro tipo de contratos, paritário ou não.{53}
O campo de aplicação do CDC, em matéria contratual, será vasto
e diferenciado, pois a nova lei estabelece parâmetros tanto para os
contratos envolvendo obrigações de dar, de transferir a propriedade ou
somente a posse do bem. denominados contratos de fornecimento de
produtos, quanto para os contratos envolvendo obrigações de fazer,
denominados genericamente de contratos de prestação de serviços.{54}
Como se sabe, o regime legal da obrigação de fazer e da obrigação
de dar sempre foi diferenciado e esta será uma das dificuldades sentida
pelo CDC, enquanto Código geral de proteção ao consumidor. Certo
é que o consumidor pode ser lesado tanto em um contrato visando a
prestação de um serviço, quanto em um contrato visando o fornecimen-
to de um produto. Esta bipolarização do campo de aplicação do CDC
forçou o legislador a prever normas específicas para os serviços e para
os produtos (veja arts. 12 e 14 sobre responsabilidade civil, arts. 18 e
20 sobre vício por inadequação). Note-se porém que, exatamente em
suas normas contratuais stricto sensu e pré-contratuais dos arts. 29 a
54 do CDC, o legislador omitiu qualquer tipo de tratamento diferen-
ciado entre estes dois contratos.
Conclui-se, portanto, que a disciplina da formação e do controle
do equilíbrio contratual será a mesma tratando-se de um contrato de
prestação de serviço ou de um contrato de fornecimento de produto.
O novo Código, porém, não desconhece que a execução desses
contratos será diferenciada e característica.
Como nem toda a obrigação de fazer é uma obrigação de
resultado, algumas expressões do CDC terão necessariamente uma
interpretação diferenciada conforme trate-se de contrato de prestação
de serviço ou contrato de prestação de produto. Assim, por exemplo
* (53) Esta é a orientação majoritária na doutrina, veja Nery,
Anteprojeto, p. 297
e Hapner, Código, p. 168, contra , a primeira manifestação de Paulo Luiz
Neto Lobo, Condições, pp. 157 e 158, superada no artigo "Contratos no
Código do Consumidor: Pressupostos Gerais", in: Revista de Direito do
Consumidor, 6/136.
(54) Aqui incluídos os contratos de garantia e todos aqueles
contratos com
prestações complexas, veja Bittar/"Adesão", p. 169 sobre os contratos de
massa de conteúdo especial. (p. 164)
a expressão "vício" do art. 18 e ss., terá sentidos diferentes conforme
a natureza da prestação. se ocorrer um vício do produto, este poderá
se referir à quantidade, à qualidade ou à informação prestada, se for
"vício" do serviço, refere-se à sua "qualidade" ou à sua informação
(art. 20). Serviço com vício de "qualidade" é aquele cujo valor foi
diminuído pela maneira como foi prestado, ou aquele definido como
impróprio, pois se mostrou inadequado para os fins que razoavelmente
dele se esperava (§ 2.º, art. 20). Se o contrato de serviço tinha como
objetivo uma obrigação de meio e não de resultado, como por exemplo
a obrigação de defender os interesses do cliente em uma ação cível,
não alcançado o resultado esperado pelo cliente, mesmo assim será
difícil caracterizar o vício de qualidade na prestação do serviço. A
noção contratual de vício na prestação do contrato facilitará a ação do
consumidor, mas, em se tratando de serviços, não é sempre a garantia
do resultado, da satisfação de todas as expectativas do consumidor. É
no máximo a garantia da adequação do serviço e da diligência no
fornecimento deste (art. 24). Já em se tratando de contratos de
fornecimento de produto, pela sua própria natureza, adequação e
resultado se mesclam, assim, se a embalagem afirma que possui o
produto 500 gramas, a noção de vício da quantidade é garantia deste
resultado. São disciplinas jurídicas diferentes, mas com um núcleo
comum; o art. 23 impõe uma garantia legal de adequação tanto do
produto, como do serviço. A finalidade é proteger a confiança, as
legítimas expectativas do consumidor, qualquer que seja o objeto do
contrato de consumo. É a aplicação do Princípio da Boa-Fé na
formação e execução de todos os contratos, especialmente nos contratos
de consumo envolvendo serviços, muitas vezes contratos cativos,
complexos e de longa duração.
Devemos concluir, portanto, que, ao regular tanto os contratos
Paritários quanto os contratos de massa, os contratos de prestação de
serviços e os contratos de fornecimento de produtos, está o Código de
Defesa do Consumidor determinando a aplicação de suas normas de
Interpretação e de proibição de abusos à grande maioria dos contratos
Civis hoje existentes na sociedade, invadindo searas tradicionalmente
dominadas pelas normas do Código Civil e, conforme se interprete a
figura do consumidor, também matérias regidas pelo Código Comercial.
A delimitação tem sido mais difícil em se tratando de contratos
de prestação de serviços, pois um dos contratantes geralmente é o (p.
165)
destinatário final, pelo menos fático, do serviço. Nesse sentido, os
contratos de prestação de serviços, tradicionalmente regulados por leis
especiais ou cujo conteúdo era imposto pelo Estado, têm despertado
muita controvérsia nos meios jurídicos quanto à sua inclusão ou não
no campo de aplicação do CDC. Sendo assim, queremos analisar a
situação de alguns dos principais contratos de fornecimento de serviços
e de produtos colocados à disposição dos consumidores no mercado
brasileiro, dando ênfase aos primeiros, sem, porém, nenhuma intenção
de análise exaustiva destes contratos.

a) Contratos imobiliários - Iniciaremos esta análise com os


contratos imobiliários pois estes têm despertado uma certa controvérsia
sobre a sua inclusão ou não no campo de aplicação do CDC.
Começaremos analisando os contratos elaborados ou concluídos com
as chamadas Imobiliárias, empresas administradoras e locadoras de
imóveis.
Quanto ao contrato de administração de imóvel, o proprietário,
que coloca o imóvel seu sob a administração da Imobiliária, não pode
ser caracterizado como consumidor stricto sensu, pois não é o desti-
natario final econômico. O bem está sendo, na verdade, colocado para
render frutos civis, aluguéis, logo o proprietário, futuro locador, age
como produtor, como fornecedor. Da mesma maneira a sociedade
imobiliária é fornecedora e o contrato entre eles está, em princípio,
excluído do campo de aplicação do CDC. A exceção poderá ser aceita
pela jurisprudência, se o proprietário, que coloca o imóvel a adminis-
tração pela Imobiliária, for de alguma forma "vulnerável" segundo OS
princípios do CDC, a merecer a tutela especial da nova lei. Como trata-
se, geralmente, de contrato de adesão e com cláusulas caracterizadamente
unilaterais, a hipótese de exceção poderá efetivamente acontecer,
principalmente com pessoas que só possuem um imóvel para alugar OU
que de alguma forma especial são vulneráveis às práticas da Imobili-
ária-fornecedor.
O contrato mais importante, porém, é o contrato de locação de
imóvel. Tratando-se de locação comercial a aplicação do CDC fica
afastada, mas tratando-se de locação residencial a aplicação das
normas protetivas do CDC será a regra,{55} como concorda a jurispru-
* (55) Assim concorda tb. Benjamin-Forense, p. 251; é grande a
importância da
aplicação do CDC aos contratos de locação em virtude de sua relevância
(p. 166)
dência.{56} No caso, trata-se, nas grandes cidades, de contratos de
adesão elaborados pelas Imobiliárias; nas pequenas cidades, de
contratos de locação ainda paritários e discutidos com cada inquilino.
O importante é poder caracterizar a presença de um consumidor e
um fornecedor em cada pólo da relação contratual.
O contrato de locação é hoje elaborado pela Imobiliária tendo em
vista a sua obrigação frente a pessoa, que deixou o imóvel sob sua
administração. As partes no contrato, porém, são o locador, proprietário
do imóvel, e o locatário. Inicialmente, é necessário que o locatario seja
o destinatário final fático e econômico do bem locado; nas locações
residenciais esta é a regra. Segundo dispõe o art. 2.º do CDC,
o consumidor não é somente aquele que adquire, mas também aquele que
utiliza o produto. Como afirma Calais-Auloy, a moradia é uma
necessidade pessoal e familiar, sendo, nesse sentido, objeto de consu-
mo.{57}
A definição legal de produto está disposta no § 1.º do art. 3.º
do
CDC e inclui qualquer bem, móvel ou imóvel.
Mas, e o fornecedor? O fornecedor é aquele que presta um serviço
ou entrega o produto. Segundo Clóvis Beviláqua,{58} o contrato de
Locação de coisa é aquele pelo qual uma das partes, mediante
remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante
certo lapso de tempo, o uso e gozo de uma coisa infungível. O locador
*social e da extrema vulnerabilidade fática, que se encontra o indivíduo
ao
necessitar alugar um imóvel para sua moradia e de sua família; tal
vulnerabilidade, aliada a um mercado de oferta escassa, parece incentivar
práticas abusivas, na contratação (cobrança de taxas abusivas, por ex.) e
na
elaboração unilateral dos contratos; o fenômeno é mundial, veja a reação
do direito alemão, na Tese de Doutorado de Tübinger, de Thomas Lang,
"Die Anwendung des AGB -Gesetz auf Formularmietverträge und deren
Inhaltskontrolle", Tübingen, 1987.
(56) Veja decisão do TARS, Ap. Civ. 195049630, j. 29.8.95, Rel.
Alcindo Gomes
Bittencourt, cuja ementa é: "Ação Civil Pública. Tem o Ministério Público
legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor. A relação
de intermediação de imóveis para locação submete-se às disposições do
Código de Defesa do Consumidor. Cláusulas de contrato de adesão cuja
nulidade se reconhece. Inaplicabilidade da Lei 8.078, de 11.9.90, aos
contratos firmados anteriormente à sua vigência. Recurso parcialmente
provido".
(57) Calais-Auloy, 1.ª ed., p. 33.
(58) Código Civil, comentado, art. 1.188. (p. 167)
entrega para o locatário a coisa alugada, a sua posse e o uso a que se
destina e deve garantir o uso pacífico da coisa locada durante o tempo
de contrato.{59}
O contrato é, portanto, uma cessão temporária do uso e gozo do
imóvel, sem transferência da propriedade; é contrato remunerado e de
prestação contínua.{60} Assim, a viúva que possui dois imóveis e coloca
um para alugar, através de uma Imobiliária, é fornecedora em relação
ao consumidor e o contrato de locação elaborado pela Imobiliária está
sob o novo regime de eqüidade e boa-fé do CDC.
A hipótese contrária pode parecer ineqüitativa, quando a mesma
viúva aluga para a família de um advogado, através de contrato
individual, sem participação da Imobiliária, seu segundo imóvel.
Mesmo neste caso, a viúva é fornecedora, e ao contrato se aplicam as
normas do CDC, mas note-se que as regras do CDC visam apenas o
reequilíbrio do contrato, a eqüidade, a justiça contratual, a qual não
será, em última análise, prejudicial à fornecedora.
Resta a possibilidade da jurisprudência brasileira, usando os
princípios do CDC, que têm seu ponto de partida na necessidade de
reequilibrar a relação contratual, quando esta for equilibrada e o
consumidor não hipossuficiente (art. 4.º, I), decida pela exclusão do
contrato, excepcionalmente, do campo de aplicação do CDC.
A regra, porém, é a inclusão dos contratos de locação não-
comercial no campo de aplicação do CDC, que como norma de ordem
pública estabelece um valor básico e fundamental de nossa ordem
jurídica. As complexas e reiteradas relações, as quais se estabelecem
entre o locatário, o locador, a imobiliária, o condomínio e sua
administração, formam uma série de relações contratuais interligadas
que estão a desafiar a visão "estática" do direito. Como verdadeiro
contrato cativo de longa duração, a locação e suas relações jurídicas
acessórias necessitam uma análise dinâmica e contextual, de acordo
com a nova teoria contratual, a reconhecer a existência de deveres
principais e deveres anexos para as partes envolvidas, seja o consumi-
dor, seja a cadeia organizada de fornecedores diretos e indiretos.
* (59) Veja art. 1189 e Lei 8.245/91.
(60) Não estamos tratando aqui do contrato de locação de
automóveis, muito
comum nos dias de hoje, mas consideramos clara a sua inclusão no campo
de aplicação do CDC; veja sobre o assunto a Súmula 492 do STF. (p. 168)
O equilíbrio contratual instituído pelo CDC impõe-se à lei
especial anterior, que é a Lei 6.649/79 e à lei especial nova, Lei 8.245/
91. Em ambos os casos, seguiremos a norma do art. 2.º, § 2.º da Lei
de Introdução ao Código Civil, como comentaremos em detalhes a
seguir no título 2.{61} Vale lembrar que as normas do CDC são gerais e
não revogam expressamente a lei especial existente e nem são revo-
gados por leis especiais posteriores, Como ensina Oscar Tenório,{62}
pode haver a coexistência da nova lei em face da anterior lei, desde
que compatíveis. A lei especial mais nova não afeta a vigência da lei
geral anterior,{63} no que não forem incompatíveis, sendo necessário
examinar a finalidade das duas leis. É a regra da compatibilidade das
leis.{64} O CDC não trata de nenhum contrato em especial, mas se aplica
a todos, a todos os tipos de contratos, se contratos de consumo. Neste
caso não revogará as normas especiais referentes a estes contratos, que
nem sempre são de consumo, mas afastará{65} a aplicação das normas
previstas nas leis especiais anteriores que forem incompatÍveis com o
novo espírito tutelar e de eqüidade do CDC.{66}
Se a lei é posterior, como no caso da Lei 8.245/91, é de se
examinar a compatibilidade do CDC com a lei mais nova. No caso, o
CDC e a nova Lei de Locações são perfeitamente compatíveis, tratam
de aspectos diferentes da mesma relação contratual e serão usadas
conjuntamente quando tratar-se de locações urbanas não-
comerciais.
Incompatibilidade há entre o disposto no art. 51, XI do CDC e a volta
à autonomia da vontade, prevista no art. 35 da nova Lei de Locações.
Existe ainda o contrato de locação de obra ou empreitada, o qual
objetiva a execução de determinada obra (resultado final), neste o
empreiteiro se obriga, sem subordinação ou vínculo empregatício, a
realizar certa obra para outro. É uma obrigação de fim (resultado final),
regulada pelo Código Civil de 1917 já com seguranças especiais, como
* (61) O título 2 deste capítulo é inteiramente dedicado ao estudo
dos conflitos
de leis no tempo referentes ao CDC.
(62) Tenório, Comentários à LICC, art. 2.º, § 2.º, p. 90.
(63) Veja o art. 7º, caput, do CDC.
(64) Tenório, Comentários, art. 2.º, § 2.º, p. 90.
(65) Assim a lição de Espínola/Espínola, p. 78, os quais propõem
um esforço
de interpretaçãO para conseguir compatibilizar as normas.
(66) Veja Tenório, pp. 89 e 81. (p. 169)
a garantia de "solidez e segurança" do art. 1.245. Mas a empreitada
situa-se no campo genérico da locação de serviços e se o empreiteiro
caracteriza-se facilmente como fornecedor, falta apenas caracterizar o
co-contratante como consumidor, sempre que for o destinatário final
do bem construído.
Quanto ao contrato de incorporação imobiliária, em que o
incorporador faz uma venda antecipada dos apartamentos, para arre-
cadar o capital necessário para a construção do prédio, fácil
caracterizar
o incorporador como fornecedor, vinculado por obrigação de dar
(transferência definitiva) e de fazer (construir). A caracterização do
promitente comprador como consumidor, dependerá da destinação final
do bem ou da aplicação de uma norma extensiva, como a presente no
art. 29 do CDC (veja o n. 1.1 desta análise).
Ao contrato aplica-se, então, em regra as normas do CDC. Isto
é importante em face da multiplicação do mercado imobiliário deste
tipo de contrato e o perigo de má utilização do instituto, o qual
trabalha
necessariamente com a figura da promessa de venda, tendo em vista
a venda antecipada. No caso existe lei especial, a Lei 4.591/64 e suas
modificações, mas as regras de ordem pública do CDC terão aplicação
para regular o novo equilíbrio e boa-fé obrigatórios aos contratos de
consumo.{67}
A jurisprudência brasileira tem sido constantemente chamada a
resolver litígios envolvendo consumidores e empresas de incorporação
ou de construção, e algumas linhas jurisprudenciais já podem ser
identificadas.
Na orientação atual do STJ e dos Tribunais Superiores é superável
a falta de registro do compromisso de compra e venda para a concessão
da escritura definitiva e mesmo da adjudicação compulsória,{68} uma vez
que os Tribunais não vêm aplicando a Súmula 167 do STF.{69}
* (67) Veja a decisão do JECP/SP, Colégio Recursal da Capital,
Rec. 8/92, j.
25.5.92, Rel. Juiz Roberto Caldeira Barioni, reproduzido na íntegra in
Direito do Consumidor, 3/213-215.
(68) Veja Súmula 76 do STJ: "A falta de registro do compromisso
de compra
e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em
mora o devedor". Veja igualmente caso não envolvendo um contrato de
consumo, mas mesmo assim interessante do STJ: Recurso Especial 8.877-
SP (91/0004054-1), Ministro César Asfor Rocha, j. 27.5.97, cuja ementa
(p. 170)
Quanto ao compromisso de compra e venda, foram identificadas
duas cláusulas consideradas abusivas, que merecerão nossa análise
mais detida na Parte II deste livro, a cláusula de perda das quantias
pagas ou cláusula de decaimento e, eventualmente, a cláusula de
financiamento condicional.
Ainda não totalmente resolvido pela jurisprudência pátria é o
problema da falta de registro imobiliário da incorporação, em verdade
um problema penal, segundo a lei específica (art. 50, parágrafo único,
I, da Lei 6.766/79) e que tem causado muitos prejuízos a consumidores
desavisados,{70} pois tornou-se prática oferecer e mesmo prometer vender
terrenos ainda não individualizados como loteamento. As fraudes neste
campo tem se multiplicado, inclusive com loteamentos fantasmas ou
áreas de proteção ambiental,{71} aproveitando-se do prazo legal de 6
meses para regularização ou mesmo ao completo arrepio da lei especial.
Nesse sentido destaco a orientação da Quarta Turma do STJ,{72}
que
parece basilar neste setor: a omissão do incorporador não deve
constituir estímulo ou vantagem para este, de modo a fazer perder sua
*é: "Processual civil e civil. Omissão inexistente. Promessa de compra e
venda não inscrita. Imóvel não loteado. Cláusula resolutória expressa.
Ineficácia. Necessidade de prévia interpelação. Precedentes. Tendo o
aresto
recorrido examinado, como na hipótese, todas as questões postas pelas
partes, não se pode falar em ofensa aos arts. 515 e 535, III, do Código
de
Processo Civil. "A falta de registro do compromisso de compra e venda de
imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o
devedor"
(Súmula 76/STJ), sendo ineficaz a existência de cláusula resolutória
expressa no referido tipo de pacto, de acordo com a jurisprudência desta
Corte. Recurso não conhecido".
(69) Assim a erudita decisão do 1.º TACivSP, reproduzida in: RT
698/103 e,
quanto a escritura definitiva, veja decisão do TAMG, in: RT 696/201.
(70) Veja-se a referida Decisão do 1.º TACivSP, onde houve
determinação do
envio das peças ao Ministério Público face a prática, em tese, de crime
de
ação pública, publicada na íntegra in RT 698/103.
(71) Assim a ação civil pública movida pelo Ministério Público do
Distrito
Federal e Territórios contra 500 condomínios irregulares e clandestinos
no
Distrito Federal.
(72) In LEX/STJ 53/97-106, REsp. 2.972-0-GO, j. 23.3.93, onde o
STJ reconhece
como título executivo o contrato de compromisso de compra e venda de
unidade autônoma, mesmo ante a falta de registro imobiliário da incorpo-
ração. (p. 171)
qualidade de incorporador e exonerá-lo de seus deveres e responsabi-
lidades decorrentes da lei (especial{73} e do CDC),{74} e do contrato.
Igualmente, vale a pena lembrar que muitos incorporadores e constru-
tores tentam maquiar seus empreendimentos, especialmente em áreas
mais pobres das cidades, como construção de um condomínio fechado
o que burla não só as normas urbanísticas, mas também tenta afastar
do fornecedor os seus deveres de construção da infra-estrutura neces-
sária à incorporação.
Os contratos de construção, presente um consumidor como contra-
tante, também serão regidos pelo CDC.{75} Note-se que, segundo dispõe
o art. 7.º, caput, CDC, os novos direitos do consumidor previstos no
Código não excluem outros direitos previstos na legislação ordinária
anterior, como o da garantia do art. 1.245 do Código Civil, desde que
compatíveis com as novas normas. A orientação inicial da 2.ª Seção do
STJ de que é de "vinte anos o prazo de prescrição da ação de indenização
contra o construtor, por defeitos que atingem a solidez e a segurança do
prédio, verificados nos cinco anos após a entrega da obra."{76} acabou
prevalecendo na Súmula 194 do STJ.{77} Na prática significa assegurar um
prazo ainda maior do que o previsto no CDC, logo, mais favorável ao
consumidor, encontrando plena aplicação o art. 7.º do CDC.
* (73) No excelente voto, o Min. Rel. Bueno de Souza baseia-se em
decisão do
TASP (RT 434/167) e ensina: "Aceitar razões especiosas para subtrair o
contrato da disciplina legal obrigatória, ou a transigência desavisada de
compromissário-comprador seduzido pela excelência aparente do negócio,
será tornar inútil a lei de atos propósitos no campo dos negócios
imobiliários
e que, eficazmente, procurou defender a economia popular." E complementa:
recusar-se a identificar o agente como incorporador "equivale mesmo a
negar vigência ao art. 29" da Lei 4.591/64. bem como "permitir se possa
extrair vantagem, precisamente, da ausência do registro imobiliário do
projeto de incorporação ..." (LEX/STJ 53/105).
(74) Em seu voto o Min. Fontes de Alencar cita expressamente o
art. 48 do CDC
e conclui: "O espírito da lei é no sentido de que essas declarações, ou
esses
pré-contratos, vinculam aquele que assume o compromisso".
(75) Veja RT 727/164.
(76) Veja Recurso Especial 62.068-SP, 3.ª T., j. 8.4.97, Rel.
Min. Nilson Naves,
in LEX JSTJ 99, p. 113-115, com citação dos Recursos Especiais 1.473,
5.522, 8.489, 30.293 e 72.482.
(77) Súmula 194 do STJ: "Prescreve em 20 (vinte) anos a ação para
obter, do
construtor, indenização por defeitos da obra". (p. 172)
Incluídos no campo de aplicação do CDC estão também os
contratos concluídos no novo sistema financeiro imobiliário, criado
pela Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, que institui uma alienação
fiduciária de bem imóvel. Para o consumidor, parece-me, salvo melhor
juízo, altamente prejudicial a criação desta nova base de direito real
(propriedade fiduciária de imóvel), pois a possibilidade de alienação
fiduciária da "sonhada casa própria" beneficia desnecessariamente o
fornecedor-credOr, ao evitar o atual trâmite judicial exigido para as
hipotecas. No novo sistema, o fiduciante, isto é, os fornecedores
indiretos (bancos e outros financiadores da construção) ou fornecedores
diretos (construtores, bancos e financiadores diretos do negócio com
o consumidor), como credor fiduciário imobiliário, pode beneficiar-se
do rápido e eficaz processo típico da alienação fiduciária, o qual
permite a retomada do bem imóvel, com despejo do consumidor e sua
famílía, se o devedor em mora e posterior venda em leilão.
A alienação fiduciária de bem móvel foi criada para superar um
problema prático do penhor, que exigia a retenção do bem pelo credor
para a sua efetivação. Seu sucesso foi imediato e os abusos por parte
dos fornecedores também, tanto que grande parte da jurisprudência
brasileira da década de 80 versa sobre contratos de compra e venda
com alienação fiduciária, dos consórcios de automóveis às suas formas
mais atuais. A alienação fiduciária de bem móvel teve como resultado
prático também a diminuição da importância do penhor, como
garantia. A recente instituição por lei deste novo direito real de
propriedade fiduciária parece ter como fonte inspiradora apenas a
vontade do Estado de beneficiar ou privilegiar os fornecedores do
setor imobiliário, especialmente os bancos e agentes financiadores
privados, para que encontrem maior facilidade na cobrança de seus
créditos e na retomada de imóveis dados em garantia. Este desen-
volvimento legislativo brasileiro parece-me na contramão da história.
A jurisprudência de ponta européia é toda no sentido de impor maior
respeito aos direitos humanos dos devedores-bancários justamente
quando da exigência de garantias de rápida execução, garantias
perigosas para o consumidor, que nem sempre consegue perceber que
perderá a posse do imóvel com o não pagamento até de uma parcela,
como permite o art. 26 da lei brasileira de 1997,{78} sempre que houver
* (78) Note-se que o art. 26 da Lei 9.514/97 menciona, no caput,
como fato
suficiente para a retomada regulada nos artigos 27,28 e 30, estar
"vencida (p. 173)
a específica previsão contratual a respeito e o consumidor for
constituído em mora.
Mencione-se ainda que a nova alienação fiduciária poderá tornar
superada a garantia real típica dos imóveis, a hipoteca, passando o
credor a exigir do construtor (fornecedor direto) e dos futuros compra-
dores (consumidores) como garantia a alienação fiduciária do imóvel
construído. A propriedade fiduciária é direito real registrável, segundo
o art. 23 da Lei 9.514/97, ocasionando o desdobramento da posse,
tornando-se o consumidor (fiduciante) possuidor direto e o credor
(fiduciário) possuidor indireto do imóvel. O consumidor torna-se
"depositário" do imóvel do credor e mesmo se a referida Lei de 1997
nada menciona sobre a possibilidade de prisão do depositário infiel, as
discussões judiciais ainda existentes sobre a constitucionalidade deste
modo de pressão aos consumidores-insolventes pode ganhar novo
impulso. Certo é que o consumidor pelo art. 22 da Lei 9.514/97 suporta
toda a responsabilidade decorrente do uso do imóvel.

b) Contratos de transporte, de turismo e viagem - Quanto aos


contratos de transporte destacaríamos o transporte de pessoas ou de
passageiros. Este transporte terrestre, por ônibus, por carro e, menos
freqüentemente, por trem pode firmar-se por escrito ou não, bastando
a conduta do consumidor ao subir no transporte coletivo para formalizar
o contrato, que se regulará geralmente por condições gerais afixadas
ou não no coletivo. Já o transporte aéreo utiliza as chamadas "condições
contratuais" anexadas ao bilhete, o mesmo ocorrendo com o transporte
lacustre e marítimo, quando não existe um contrato de adesão por
escrito.
O contrato de transporte de passageiros é um contrato de
prestação
de serviços, uma obrigação de resultado. Neste caso a caracterização
do profissional transportador como fornecedor não é difícil, nem a do
usuário do serviço, seja qual for o fim que pretende com o desloca-
mento, como consumidor.
Em matéria de contratos de transporte, desenvolveu-se na juris-
prudência brasileira a orientação inovadora de afastar a autonomia da
*e não paga, no todo ou em parte, a dívida", já o § 1.º do art. 26
menciona
a intimação para "satisfazer,no prazo de quinze dias, a prestação
vencida...",
logo, em teoria, uma só prestação vencida, bastaria, se o contrato assim
previsse, como parece também indicar o § 2º do referido art. 26 da Lei.
(p. 174)
vontade e desconsiderar a cláusula de não indenizar incluída pelo
transportador no contrato (Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal).
Nessa mesma linha de proteção do usuário-consumidor, conso-
lidou-se com a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça a
possibilidade de, em caso de acidente no transporte, cumular o
ressarcimento do dano material contratual (ferimentos, perda da
bagagem) com o de dano imaterial ou dano moral (morte, perda de
parte da visão, da possibilidade de locomoção, etc.).{79} A responsabi-
lidade contratual do transportador pelo acidente do passageiro,
segundo a Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal, não é elidida
por culpa de terceiro, contra o qual o fornecedor tem ação regressiva.
Estes entendimentos jurisprudenciais e a tendência de indenizar da
forma mais completa possível em caso de extravio ou dano à bagagem
do consumidor{80} têm resultado em um incremento dos seguros neste
ramo de atividade econômica. Já no transporte gratuito e, portanto,
excluído do campo de aplicação do CDC, a orientação jurisprudencial
tem sido outra. Neste sentido, especifica a Súmula 145 do STJ: "No
transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será
civilmente responsável por danos causados ao transportado quando
incorrer em dolo ou culpa grave".
* (79) Nesse sentido, veja a decisão do TARGS, 4.ª C. Civ., j.
21.3.92, Rel. Juiz Mauro
Duarte Gehlen, publicado in: Julgados n. 83, p. 329 e ss. onde um
passageiro foi ferido dentro do ônibus por pedra arremessada por um
piquete
grevista, acarretando o estilhaçamento do vidro e a perda do olho da
jovem
passageira. A tese de caso fortuito e força maior foi recusada e acompa-
nhando a mais recente doutrina francesa, considerou-se em especial o fato
da vítima ser ainda jovem estudante universitária, onde a perda de uma
das
qualidades físicas, de uma das habilidades ou prazeres humanos ocasiona
ainda maior trauma (os chamados "danos adolescentes" ou "danos psico-
lógicos").
(80) Esta tendência vem bem demonstrada na decisão do Juizado
Especial e de
Pequenas Causas, a qual traz a seguinte ementa: "Responsabilidade civil.
Extravio de bagagem. Indenização. Valor total. Prova testemunhal da
existência da bagagem. Validade. Reclamação depois de vinte e quatro
horas. Irrelevância. A indenização para ressarcimento dos danos oriundos
de extravio de bagagem deve ser a mais completa possível. Inaplicável, no
caso, a chamada indenização tarifária. A prova testemunhal das existência
da bagagem é suficiente. A reclamação após vinte e quatro horas não
afasta
o dever de indenizar. (Ap. Cív. 17/91, da Capital, Rel. DR. Wilber José
Palazzo, 1.ª Turma Recursal, 13.8.91)." (p. 175)
Devemos igualmente destacar as duas espécies de transportes, a
de passageiros e a de cargas. O contrato de transporte de cargas pode
ou não estar incluído no campo de aplicação do CDC, dependendo da
existência de um sujeito identificável como consumidor. No transporte
de cargas este pode ter fim de lucro, fins comerciais, ou pode
simplesmente ter como finalidade o transporte de carga pessoal do
consumidor ou bens que são de sua utilização pessoal ou de sua família
(mudanças etc.). Nesse caso, o transporte não se insere na cadeia de
contratos de produção e será um contrato de consumo.
Quanto ao transporte de passageiros, é sempre importante lembrar
que a prestação contratual e o regime, especialmente o conteúdo
contratual imposto pelo fornecedor, envolvem indiretamente (e podem
violar) direitos fundamentais dos indivíduos, tais como o direito à
liberdade e livre movimentação e o direito à vida e à integridade. Este
ponto de contato entre o direito constitucional e o direito civil ou
comercial influenciará a relação entre particulares (a chamada
"Drittewirkung" da doutrina alemã), impondo um exame mais agudo
da razoabilidade das cláusulas, da sua necessidade para aquele tipo de
transporte e da possibilidade de impor qualquer limite direito de
ressarcimento.{81}
No direito comparado, observa-se a importância que obtiveram os
chamados contratos de "viagem turística".{82} Estes contratos são fecha-
dos entre agências de turismo e consumidores, incluindo em seu objeto
não só a viagem (aérea, marítima ou terrestre), mas também a
hospedagem, os translados e uma série de atividades recreativas, como
excursões, idas a museus, shows etc. É um contrato de prestação de
serviço, mas os serviços nem sempre são prestados por prepostos da
agência e sim por uma verdadeira rede de fornecedores, ficando a
depender destes a qualidade da prestação no total. No caso, a relação
contratual do consumidor é com a agência de viagem, podendo exigir
desta a qualidade e a adequação da prestação de todos os serviços, que
* (81) Veja nossa análise sobre os conflitos de leis especiais
(que asseguram
privilégios históricos aos fornecedores do ramo do transporte aéreo, em
troca da inversão do ônus da prova e da facilitação do ressarcimento) e o
CDC, no artigo "A Responsabilidade do Transportador Aéreo", publicado
in: Direito do Consumidor, vol. 3, p. 155 ss.
(82) Veja Ulmer/Brandner/Hensen, p. 737 a 751 sobre a evolução na
Alemanha
e Ghersi, p. 584, sobre a evolução na Argentina. (p. 176)
adquiriu no pacote turístico contratado, como se os outros fornecedores
seus prepostos fossem.{83} Desde 1985, a jurisprudência estrangeira
diferencia entre o contrato de organização de viagens ou contratos de
viagem turística e contratos de intermediação de viagens. Tratando-se
de um contrato de organização de viagens, responsabilizam a agência
de viagens pela conduta de qualquer prestador de serviços envolvido
na viagem turística, prestador este que consideram como um "auxiliar"
da agência.{84}
A partir da entrada em vigor do CDC, também no Brasil, uma
nova importância foi reservada à qualidade (leia-se, expectativas
legítimas e razoáveis) e à informação na fase pré-contratual e durante
a execução dos contratos de viagens.{85} O resultado prático da inversão
de papéis (da caveat emptor para a caveat vendictor) e da imposição
legal de novos deveres aos fornecedores, também no ramo do turismo,
foi o reconhecimento pela jurisprudência de uma nova responsabilidade
(própria e solidária) para as agências de viagens, as quais comercializam
os chamados "pacotes turísticos" e passam a ser responsáveis pela
atuação de toda uma cadeia de fornecedores por eles escolhidos e
previamente contratados.{86} A prática jurisprudencial brasileira nestes
três anos passou mesmo a aceitar, nestes casos, a cumulação de danos
materiais (geralmente pequenos), com danos morais ou extrapatrimoniais
pela frustração das expectativas de lazer.{87}
* (83) Nesse sentido conclui tb. Ghersi, p. 585, veja também a
norma do art.
34, CDC.
(84) Veja decisão do Tribunal Federal Suíço, de 29.10.85 relatada
in: Revue
Européenne de Droit de la Consommation, 1987, 129.
(85) Exemplo deste novo posicionamento é a decisão: "Excursão
turística.
Condições precárias e inseguras de embarcação que autorizam o rompimen-
to do contrato pelo passageiro e sua recusa em empreender a viagem.
Responsabilidade da operadora e da vendedora. (Decisão unânime)". (Proc.
01190741957, Rec. 12/91, Rel. Antonio Guilherme Tanger Jardim, 3.ª
Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas, 28.6.91).
(86) Leading case, neste sentido vem reproduzido na Revista de
Direito do
Consumidor, 8/180.
(87) Veja neste sentido a decisão reproduzida na Revista de
Direito do Consu-
midor, 9/149-150, com a seguinte ementa: "Indenização - Dano moral -
Contrato - Turismo - Inadimplemento. O descumprimento contratual,
decorrente da suspensão de viagem turística, acarreta para o responsável
a
obrigação de indenizar por dano moral, face à frustração do lazer
ocasionada (p. 177)
No contexto do turismo desenvolve-se também uma outra
relação contratual que enormes proporções assume nos Estados
Unidos e na Europa, conquistando no final dos anos 90, o Brasil
e a América Latina, trata-se do Time-Sharing. Contrato de múltiplas
características geralmente visa o uso de um imóvel em área turística
por determinado tempo por ano (1 ou 2 semanas ou meses).{88} O
sucesso da fórmula deve-se a seu pragmatismo e flexibilidade: resolve
a crise do setor hoteleiro e turístico-imobiliário, ao assegurar-lhe
consumidores cativos, mas exige pequeno investimento dos clientes,
ávidos de alcançar o tão esperado lazer e descanso em áreas turísticas
valorizadas.{89} Por pequena soma de dinheiro, alcançam o consumidor
e sua família a fruição de um espaço, de um imóvel em localidade
turística procurada, sem que tenham de suportar os custos normais
de um imóvel próprio (manutenção contínua, impostos etc.), com-
binado com vantagens organizacionais: possibilidade de locar para
outros a "sua semana de férias" ou mesmo, em caso de não usufruir
no seu tempo e lugar determinado, de trocar os seus "direitos
habitacionais de uso" de forma a usufruir férias em outro lugar no
mundo, através de bolsa internacional de trocas.{90} Seu sucesso deve-
se também ao momento pós-moderno, da procura do lazer, do
internacional, da segurança de um momento especial de férias, do
*aos contratados (TAMG - Ap. Cível 145.375-6 - BH - 1.ª Câm. Cível -
Rel. Juiz Zulman Galdino - j. 22.12.92 )".
Do corpo da decisão, que se referia a um pacote turístico cujas
condições
foram alteradas unilateralmente à última hora, retira-se a frase do DD.
Relator, p. 150: "Quanto ao dano moral, entendo, data venia do MM. juiz
sentenciante, que ele existe, representado pela frustração da viagem,
pela
privação do lazer, das férias que constituem bem cuja perda é
perfeitamente
traduzida em valor pecuniário, pois houve um sofrimento, um abalo
psicológico dos autores em não podendo realizar o projeto da viagem. A
Constituição Federal (art. 5.º, X) garante e ampara a pretensão dos
autores."
(88) Detalhes na excelente exposição de Michael Martinek, Tomo
III, p. 268
e ss.
(89) Tepedino, p. 2.
(90) Segundo Tepedino, p. 1: "Com o termo multipropriedade
designa-se,
genericamente, a relação jurídica de aproveitamento econômico de uma
coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que
diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa
com
exclusividade e de maneira perpétua". (p. 178)
desejo dos turistas de ter, pelo menos por algumas semanas por ano,
uma "casa de férias" própria.{91}
Preferimos não incluir este típico contrato de consumo entre os
contratos imobiliários, antes tratados, porque nem sempre o contrato
de time-sharing faz nascer direitos reais em relação ao imóvel, podendo
ser meramente uma relação obrigacional entre a empresa (proprietária
ou exploradora de empreendimento turístico) e o consumidor (que
desfruta de um direito de uso limitado do imóvel de férias e de suas
"comodidades" semelhantes a um hotel). Em Portugal, na nova Lei 275,
de 1.8.93, define os direitos do consumidor resultantes desta relação
contratual de "direitos de habitação turística", porque podem ser
inclusive trocados por "direitos semelhantes" em outros locais, empre-
endimentos e hotéis, que trabalham com time-sharing. Assim também
a nova Diretiva da Comunidade para a proteção dos consumidores
envolvidos nestes contratos, Diretiva de 14.3.94, regula apenas os
aspectos obrigacionais da relação.
A relação do time-sharing é geralmente uma relação complexa,
envolvendo geralmente três personagens: o verdadeiro proprietário do
imóvel, geralmente um incorporador que tem interesse em revender o
"uso" do imóvel para os consumidores, o administrador do time-
sharing, que organiza ou diretamente cuida do empreendimento turís-
tico, das taxas e do fundo de manutenção, do oferecimento de
possibilidades de lazer e de alimentação para os consumidores, que
recolhe as taxas e ônus dos co-"condôminos" ou contratantes do time-
sharing e o consumidor, que vê neste direito de habitação periódica
uma segurança para férias e lazer, sem os ônus de uma propriedade e
sem o investimento inicial que significa a aquisição de um imóvel. A
complexidade do contrato de time-sharing e a pouca compreensão
alcançada pelo consumidor dos seus deveres e direitos futuros são
considerados fortes indícios da vulnerabilidade do consumidor ou
pessoa a ele equiparada que assina o contrato.{92}
A proteção assegurada ao consumidor nestas novas relações
Contratuais na Europa concentra-se em três temas: a) o direito de
* (91) Veja detalhes em Jayme, p. 246.
(92) Assim se manifestou o Professor de Heidelberg Erik Jayme, em
sua palestra
no IV Congresso Luso-alemão, em Konstanz, em 19.11.94; para o referido
professor a característica maior deste novo tipo contratual é "o serviço
complexo" prestado pelo administrador e (indiretamente) pelo
incorporador. (p. 179)
informação e de reflexão, permitindo a nova Diretiva um direito de
arrependimento (art. 5.º), proibindo o pagamento antecipado e obrigan-
do a utilização de uma tradução ou versão do contrato em uma língua
conhecida pelo consumidor; b) a proteção das expectativas legítimas dos
consumidores, estabelecendo as normas européias um tempo mínimo de
gozo do direito adquirido (1 semana) e valorizando o adimplemento dos
deveres secundários assumidos pelo administrador, tais como alimenta-
ção, organização de excursões,jogos etc; c) por fim, a jurisprudência
atua
protegendo os consumidores nos comuns pré-contratos de time-sharing,
nem sempre cumpridos. Esta nova linha de proteção do consumidor deve
aqui ser mencionada uma vez que se trata de uma relação contratual de
longa duração, que face ao vazio legislativo, deve ser guiada pelo
princípio de boa-fé na formação e na execução dos contratos.{93}
A caracterização destes contratos e relações como sendo de
consumo facilita atingirmos este nível de lealdade e respeito ao
consumidor também no Brasil. justamente pois este princípio de boa-
fé e seus deveres anexos encontra-se positivado na nova lei. Na prática
brasileira, os problemas mais comuns detectados nos contratos de time-
sharing foram as vendas agressivas e emocionais,{94} o desconhecimento
por parte do consumidor dos direitos que está realmente adquirindo,{95}
e das regras de uso do imóvel,{96} a transmissibilidade do time-sharing
e sua inclusão entre os direitos hereditários; os vícios, falhas e
problemas nos serviços prestados pelos complexos turísticos, pelos
complexos de férias e viagens, a variabilidade e abuso nas taxas de
* (93) Nesse sentido, interessante decisão do JECP/RS, com a
seguinte ementa:
"Prestação de serviços de lazer. Inteligência contratual. Não utilizadas
todas
as diárias do período-base contratual. a revalidação para posterior deve
obedecer à proporcionalidade prevista no contrato. Inviável alteração do
pedido após citação. Condenação em dinheiro afastada. Sentença parcial-
mente reformada." (Rec. 10/92, Rel. Dr. Carlos Alberto Alves Marques, 4.ª
Câmara Recursal, Porto Alegre, 13.4.93).
(94) Veja sobre o tema abundante jurisprudência na Parte II, item
2.3 deste
trabalho.
(95) Tepedino, p. 49.
(96) Neste sentido a jurisprudência tem permitido reabrir o
período de arrepen-
dimento do art. 49 do CDC, de sete dias, após a comunicação e ciência das
cláusulas e previsões de como se dará efetivamente o uso do imóvel. Veja
Acórdão de 10 de setembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela. Maria Isabel de
Azevedo Souza, TARGS, Ap. Cív. 196115299. (p. 180)
administração e as cláusulas de perda das quantias pagas e carências
das mais diversas.{97}
Além do método de venda agressivo, que dá lugar em muitos
casos ao arrependimento do consumidor com base no art. 49 do CDC,
o segundo maior problema apresentado neste tipo de time-sharing, no
Brasil, foi o perigo, comum a todos os contratos, de que o fornecedor
ou incorporador não possa construir o empreendimento hoteleiro
pretendido, apesar de ter arrecadado a poupança dos consumidores.
Neste caso, o Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul permitiu a
resolução do contrato e decretou a devolução das quantias pagas,
devido a insolvência do hoteleiro-empreendedor e do perigo iminente
de não concluir o prometido imóvel de Lazer.{98} A mora do fornecedor
foi contraposto o direito formativo extintivo do consumidor e o fator
tempo foi destacado como característico do time-sharing, declarando
o Tribunal: "Nesses empreendimentos, seja porque visassem o lazer
pessoal do interessado, seja porque objetivassem investimento, o tempo
é fator considerável, sendo demasiado o já ocorrido entre a data de
conclusão prometida (1990) e o de hoje (1994-1997)".{99}
A jurisprudência brasileira tem considerado a internacionalidade
do contrato como um perigo extra para o consumidor e assegurado a
reabertura do prazo de reflexão de sete dias do art. 49 do CDC, quando
o consumidor brasileiro é informado em português do teor do negócio,
em especial das cláusulas Limitadoras de seus direitos e das que afastam
direitos reais de propriedade, apesar do contrato e proposta insinuarem
* (97) Veja por todos Tepedino, p. 122 e ss.
(98) Acórdão de 15 de março de 1995, 7.ª Câmara. TARGS. Rel.
Antonio Janyr
Dall’Agnoll Júnior. Processo 194255485: Promessa de compra e venda.
Resolução. Mora na conclusão de obra. Perdas e danos Procede a
resolução de promessa de compra e venda, proposta pelo promitente
comprador quando a mora na conclusão da obra alcança extensão que vem
inutilizando a finalidade ordinária para a qual previsto o
empreendimento.
Assim, a indefinição quanto à conclusão de prédio hoteleiro em sistema de
tempo repartido (time-sharing), pelo promitente vendedor, em detrimento
manifesto do promitente comprador, que cumpre, atualizadamente, com
parcelas de sua prestação. Perdas e danos que se afastam, respeitantes ao
interesse positivo, por não satisfatoriamente demonstradas e
insuficiente-
mente registradas na inicial. Apelo parcialmente provido".
(99) Acórdão de 15 de março de 1995, 7.ª Câmara TARGS, Rel.
Antonio Janyr
Dall’Agnoll Júnior, Processo 194255485, p. 7 do original. (p. 181)
a aquisição destes direitos.{100} Neste caso, destaca a jurisprudência a
importância do princípio da boa-fé e da proteção da confiança do
consumidor, a teoria da aparência para estabelecer a responsabilidade
solidária e a legitimação passiva de todos os vários fornecedores
(diretos e representantes) envolvidos na negociação, uma vez que a
publicidade e a venda acontecem em território brasileiro.{101}

c) Contratos de hospedagem, de depósito e estacionamento - Nos


contratos de hospedagem o serviço será prestado por um fornecedor,
empresa de hospedagem, hotel ou mesmo um particular que será
remunerado por este serviço. O destinatário final do serviço de
hospedagem, por sua própria natureza é aquele que dele usufrui. O
agente do contrato pode ser, porém, uma empresa que envia seu
empregado para um curso ou seminário naquela cidade, ou que hospeda
seus clientes, enquanto duram as tratativas do negócio. Nestes dois
últimos casos poderia haver alguma dúvida se os contratos são de
consumo, ou simples contratos civis ou comerciais. Quer nos parecer
* (100) Veja Acórdão de 19 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela.
Maria Isabel
de Azevedo Souza, TARGS, Processo 196182760, publicado na Revista de
Direito do Consumidor 21, p. 185, cuja ementa é a seguinte:
"Multiproprie-
dade. Contrato internacional. Contração no Brasil. Empreendimento loca-
lizado no Uruguai. Língua estrangeira. Promitente vendedor. Mandatário.
Teoria da aparência. Desconhecimento das cláusulas relativas ao uso do
imóvel. Art. 49 do CDC.
1. É parte legítima para figurar no pólo passivo da ação de
resolução
de contrato internacional de promessa de compra e venda de ações relativa
ao uso de imóvel pelo sistema de multipropriedade a empresa brasileira
que,
no Brasil, promove a informação, publicidade e oferta do empreendimento
a ser realizado no exterior como se fosse o titular do direito. A
transmissão
de confiança de uma situação jurídica e a omissão de sua real condição de
mandatária importam na sua responsabilidade pela contratação. Ainda mais
quando foi a responsável pela elaboração do contrato, tendo infrigido O
princípio da transparência e do dever de informação. Fere o princípio da
boa-fé e da doutrina dos atos próprios a alegação de ilegitimidade
passiVa
ad causam.
2. Não obriga o consumidor a promessa de contrato de
multipropriedade
celebrado em língua estrangeira e do qual não teve ciência das cláusulaS
relativas ao uso do imóvel a ser adquirido. Apelação provida".
(101) Acórdão de 19 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara, Rela. Maria
Isabel de
Azevedo Souza, TARGS, Processo 196182760, p. 186 e 187, citando os
ensinamentos de Luis Diez-Picazo e Gustavo Tepedino. (p. 182)
que a atividade de hospedar alguém, de alimentá-lo fora da empresa
e de cuidar para uma estadia tranqüila está muito afastada da atividade
de produção da empresa. O serviço prestado pelo hotel se concentrará
no beneficiário do contrato, isto é, na pessoa do empregado ou do
cliente. Estes são os destinatários finais fáticos do serviço; assim,
pela
natureza do serviço prestado, a eventual destinação econômica deste,
mesmo que presente para a empresa o fim último de lucro ao hospedar
seus clientes, pode ser desconsiderada pela jurisprudência.{102}
Quanto ao contrato de depósito, cabe mencionar nesta edição, o
novo e surpreendente destaque dessa figura contratual nos últimos anos.
Este novo destaque deve-se a atuação da jurisprudência, utilizando a
figura do contrato de depósito tácito{103} entre o visitante do shopping
center ou supermercado, que guarda seu automóvel na garagem ou
estacionamento daquele centro de compras, e o administrador do
complexo ou proprietário do supermercado, que oferece essa comodi-
dade como "facilities" para o consumidor em potencial.{104}
* (102) Problema que tem preocupado a rede hoteleira é o da
abusividade ou não
da cláusula penal em caso de cancelamento de reservas pelos consumidores,
sobre o tema veja decisão impondo o critério da razoabilidade da cobrança
face ao contrato preliminar de hospedagem, in: Revista de Jurisprudência
do
TJRGS, 157/298-299; mais difícil de ser solucionado é o problema da
descaracterização da venda casada ao obrigar-se os hóspedes de uma Con-
venção, que se realiza nos salões do hotel, a ali hospedar-se ou
alimentar-se.
(103) Veja o leading case do STJ, reproduzido na íntegra, in:
Direito do
Consumidor, v. 6, p. 286 e ss. cuja ementa afirma: "Contrato de
depósito
para guarda de veículo - Estacionamento - Furto - Indenização.
1. Comprovada a existência de depósito, ainda que não exigido por
escrito, o depositário é responsável por eventuais danos à coisa.
2. Depositado o bem móvel (veículo), ainda que gratuito o
estaciona-
mento, se este se danifica ou é furtado, responde o depositário pelos
prejuízos causados ao depositante, por ter aquele agido com culpa in
vigilando, eis que é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa
depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence
(art.
1.266, 1.ª parte, do CC).
3. Inexistentes os pressupostos previstos nas alíneas a e c, do
permissivo
constitucional, não se conhece do recurso especial. (STJ - REsp. 4.582 -
SP - 3.ª T. - j. 16.10.90 - Rel. Waldemar Zveiter."
(104) Veja as decisões a favor, reproduzidas no Repertório IOB de
Jurisprudência
ementas 3/7.074 (1ª C. Civ. TJRJ), 3/6.256 (3.ª Turma do STJ), 3/5.530
(4.ª
Turma do STJ) e contra, 3/7.317 (2.ª C. Civ. TJPE). (p. 183)
A utilização de uma figura contratual, seja a da guarda ou do
depósito, para basear a responsabilidade por danos ou furtos ocorridos
nos parques de estacionamento não é tese pacífica,{105} mas traz como
pontos positivos o fato de exonerar o consumidor de provar a culpa
(aquiliana) do estabelecimento, necessitando apenas provar o fato
mesmo ter efetivamente estacionado seu carro na garagem ou estacio-
namento do réu.{106} Igualmente, é verdade que este "estilo" atual de
compras ou centro de Compras, em que o consumidor é convidado a
dirigir-se a um local fechado, previamente preparado e organizado
(mix) para "facilitar" ou "induzir" ao consumo está intimamente ligado
ao transporte através de veículos privados. O consumidor desloca-se
com seu carro para o centro de compras, onde o organizador (ou grupo)
oferece uma série de comodidades: segurança especial, lazer para as
crianças, lazer para adolescentes e adultos, possibilidade de alimenta-
ção e, é claro, de estacionamento (teoricamente) gratuito.
Trata-se, neste sentido, de um fenômeno novo com características
pós-modernas: uma múltipla escolha, cativa e pré-ordenada por méto-
* (105) Veja contra a tese da existência de contrato de depósito a
decisão do
TJRGS, que traz igualmente as demais posições defendidas no Tribunal,
in: Revista de Jurisprudência TJRGS, 156/383-390, com a seguinte
ementa: Ação de indenização. Responsabilidade pelo furto em estacio-
namentos abertos ao público, adjacentes a shoppings ou supermercados.
O proprietário de tais espaços não assume a guarda. nem responde por
furtos verificados nesses locais, salvo se for comprovada sua manifesta
culpa, que não existe por si só. Inexistência do depósito. Inviabilidade
de controlar-se o acesso e saída, com a identificação do condutor.
Apelação desprovida. (Ap. Cív. 592000145 - 3.ª Câm. Cív. - Porto Alegre,
j. 26.2.92, Rel. Des. Décio Antônio Erpen).
(106) Este ponto também é bastante controverso nos julgamentos e
a simples
ocorrência policial, que é comunicação unilateral do lesado feita a
posteriore,
não tem sido aceita como bastante (neste sentido a anteriormente citada
decisão da 3.ª C. Civ. TJRGS, p. 385). Da leitura dos julgados observa-se
que a prova da veracidade da alegação do consumidor em potencial e sua
boa-fé subjetiva são dois pontos importantes para o convencimento do
julgador, que, em caso de dúvida, tende a decidir contra a pretensão
ressarcitória do consumidor ou estaria a exigir uma "prova negativa" do
fornecedor (isto é, que o consumidor não estacionou o carro no estabele-
cimento ou que seu carro não foi roubado), quando a idéia mestra é a de
justiça contratual e de adimplemento pelo fornecedor de seus deveres de
cuidado e de proteção do patrimônio do consumidor. (p. 184)
dos especiais de marketing,{107} onde o indivíduo escolhe a comodidade,
mesmo sabendo que talvez pague mais pelo produto e perca mais
tempo que nas tradicionais compras nas ruas das cidades, entre o
almoço e a volta ao trabalho.
Em uma leitura jurídica do fenômeno, um risco de vida (os
alemães denominam Lcbensriskio), risco de ter seu automóvel furtado,
transforma-se em um risco profissional, risco da própria organização
com fins lucrativos, porque o fato passa a estar inserido em um novo
contexto de incitação ao consumo, onde o deslocamento com automó-
veis faz parte da própria oferta, do próprio marketing do comerciante
ou grupo de comerciantes.{108}
Da leitura da jurisprudência brasileira observava-se, contudo,
ainda uma forte recusa em impor ao comerciante a responsabilidade
contratual por este risco da vida, preferindo-se, seja as soluções extra-
contratuais, seja as tradicionais, como a da culpa in contrahendo. A
solução da responsabilidade pré-contratual tem como ponto positivo o
fato de frisar a existência de deveres anexos de cuidado e de segurança
com o patrimônio do consumidor em potencial, pelo simples fato do
consumidor e do fornecedor entrarem em contato, quando o consumi-
dor aceita a oferta de utilizar o estacionamento (teoricamente gratuito)
do fornecedor. A existência destes deveres de conduta segundo a boa-
fé no mercado, deveres cuja importância é aumentada pelo fato do
lucro, do consumo ser a finalidade última da oferta de comodidade,
parece-me, particularmente, a fonte última desta nova forma de
responsabilidade, que efetivamente tende a estabelecer-se na sociedade
de consumo.
Por fim, interessa-nos ainda um último aspecto desta posição
jurisprudencial, que é a teórica gratuidade deste contrato de consumo,
tácito ou não. Para a aplicação das novas normas do CDC, é necessário
* (107) A organização como finalidade de consumo nos shoppings
center é tanta
que inclusive a localização das lojas, das escadas, das entradas e saídas
dos
estacionamentos é preparada para facilitar tanto a visualização dos
produ-
tos, quanto a compra, daí dependendo a valorização dos espaços
comerciais.
(108) Vale aqui lembrar que a solução contratual do caso
pressupõe que o julgador
desconsidere a - normal - cláusula de exoneração de responsabilidade
contratual, geralmente colocada em cartazes localizados nas garagens. Tal
cláusula de não indenizar já era considerada abusiva antes da entrada em
vigor do CDC e foi expressamente mencionada no art. 51, I. (p. 185)
verificar a presença de um consumidor na relação contratual. Se o
depositante é destinatário final econômico do serviço prestado pelo
depositário, pode este ser caracterizado como um consumidor. Esta
será, quer nos parecer, a regra. Note-se que as regras do CDC destinam-
se a regular, se for o caso de contrato de consumo, os depósitos
voluntários e os previstos nos arts. 1.282 a 1.287 (depósito necessário).
Entre os depósitos necessários está o do hospedeiro em relação às
bagagens que os hóspedes trazem consigo (art. 1.284 do CC e Dec.
7.358/73), contrato este anexo ao contrato de hospedagem, consideran-
do-se que a remuneração do hospedeiro está incluída no preço da
hospedagem (art. 1.286 do CC).
Como já afirmei, no caso de estacionamentos, garagens e afins a
jurisprudência brasileira tem considerado que há um contrato de
depósito do veículo, ainda que gratuito o estacionamento. No caso das
garagens fecha-se um contrato de depósito para guarda do veículo,
contrato este remunerado e que pode facilmente ser considerado como
contrato de consumo. Semelhante ao que acontece na hospedagem, o
serviço prestado concentra-se no objeto, no veículo, logo o proprietário
do veículo é o destinatário final não só fático como econômico do
serviço. O contrato será submetido às novas regras do CDC.
O Superior Tribunal de Justiça já considerou que mesmo sendo
gratuito o estacionamento, se o serviço é "prestado no interesse do
próprio incremento do comércio", por shopping center ou por super-
mercado, há um dever de vigilância e de guarda.{109} De regra, os
contratos gratuitos estão excluídos do campo de aplicação do CDC,
mas, tendo em vista estas últimas manifestações da jurisprudência, a
* (109) Veja decisão STJ, 3.ª Turma, no RE 5886/SP, 1991,
reproduzidas in:
Direito do Consumidor, v. 6, p. 281 e ss., com a seguinte ementa: "De
acordo com a orientação da 3.ª Turma, por maioria, existe, em casos dessa
espécie, contrato de depósito, ainda que gratuito o estacionamento,
respondendo o depositário em conseqüência, pelos prejuízos causados ao
depositante (REsp. 4.582). "Serviço prestado no interesse do próprio
incremento do comércio", daí "o dever de vigilância e guarda". 2.
Embargos de declaração. Imposição da multa. Caso em que a Turma, por
maioria de votos, entendeu ofendido o art. 538, parágrafo único, do CPC.
3. Recurso especial, quanto à primeira questão, conhecida pela alínea c,
por unanimidade, mas improvido, por maioria de votos, e quanto à segunda
questão, conhecido pela alínea a e provido, por maioria de VOtOS. (STJ -
REsp. 5.886-SP - 3.ª T - J. 19.2.91, Rel. Nilson Naves). (p. 186)
sua inclusão como contrato de consumo sui generis" ou pré-contrato
de consumo parece de todo possível. A polêmica foi agora pacificada
pelo STJ com a edição da Súmula 130: "A empresa responde, perante
o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu
estacionamento".

d) Contratos de seguro e previdência privada - Os contratos de


seguro foram responsáveis por uma grande evolução jurisprudencial no
sentido de conscientizar-se da necessidade de um direito dos contratos
mais social, mais comprometido com a eqüidade e menos influenciado
pelo dogma da autonomia da vontade.{110}
As linhas de interpretação asseguradas pela jurisprudência brasi-
leira aos consumidores matéria de seguros são um bom exemplo da
implementação de uma tutela especial para aquele contratante em
posição mais vulnerável na relação contratual.{111}
Assim a Súmula 61 do STJ pacifica interpretação pró-consumidor
de que existem dois tipos de suicídio, o premeditado e o não-
* (110) Veja resumo deste desenvolvimento em Araken de Assis,
"Controle da
Eficácia do Foro de eleição em Contratos de Adesão", in Rev. AJURIS
48/219.
(111) Veja as recentes decisões, que seguem as linhas já
consolidadas nos
Tribunais mesmo no Juizado Especial e de Pequenas Causas:
"Seguro. Obrigação de pagar. Compete à seguradora arcar com o
risco
de sua própria atividade, obrigando-se pelo pagamento do seguro, na
hipótese de não ter tomado as prévias diligências para a sua contratação.
Se foi omissa em tomar tais cautelas não pode vir alegar que a doença era
preexistente à data da feitura do seguro, ainda mais quando não fez tal
prova
durante a instrução. (Unânime)". (Ap. Cív. 4/92, da Capital, Rel. Dr.
Hildebrando Coelho Neto, 1.ª Turma Recursal/RS, 27.2.92).
"Contrato de Seguro. Pagamento integral, à vista, do prêmio.
Prazo de
carência para a aceitação previsto em circular da SUSEP. Inteligência dos
arts. 1.432 e 1.433 do CC. Captada a vontade do seguro através de
corretora
de seguro, que recebe e repassa o valor integral do prêmio à seguradora,
obrigasse esta a indenizar o risco coberto. A aceitação do pagamento, sem
expressa estipulação, no ato, de condição suspensiva, torna perfeito e
acabado o contrato de seguro, prevalecendo o prazo de carência previsto
em circular da SUSEP, norma que deve ser interpretada restritivamente."
(Rec. 233, Rel. Dr. Domingos dos Santos Bitencourt, 3.ª Câmara Recursal,
P. Alegre, 25.3.93). (p. 187)
premeditado, afirmando: "O seguro de vida cobre o suicídio não
premeditado". Da mesma forma a jurisprudência não desconhece que
muitos destes contratos de seguro são conexos com outros negócios e
praticamente irrecusáveis para o consumidor que necessita do negócio
principal. Veja-se, neste sentido, confirmando a sensibilidade da juris-
prudência no tema, a Súmula 31 do STJ, segundo a qual a "aquisição,
pelo segurado, de mais de um imóvel financiado pelo SFH, situados
na mesma localidade, não exime a seguradora da obrigação de
pagamento dos seguros".
Hoje, além dos tradicionais seguros de vida{112} e de
responsabili-
dade civil, existem os planos de aposentadoria privada e os seguros-
saúde, todos contratados geralmente através de métodos de contratação
de massa, contratos de adesão e condições gerais dos contratos.
Pareceu-nos necessário, na segunda edição, relembrar alguns
aspectos importantes do contrato de seguro-saúde no direito brasileiro,
uma vez que este contrato atinge mais de 30 milhões de consumidores
em nosso mercado e tende a expandir-se.{113} É um bom exemplo de um
contrato cativo de longa duração a envolver por muitos anos um
fornecedor e um consumidor, sua família ou beneficiários. Se a
identificação do segurado e dos beneficiários como destinatários finais
(consumidores) do serviço prestado pela seguradora, empresa ou
cooperativa não oferece maiores dificuldades, dois aspectos devem ser
destacados: a inclusão legal destes contratos na lei referente aos
seguros
e a sua característica como serviços, envolvendo obrigações de meio,
mas também, de resultado.
Tanto os contratos de seguro-saúde como os, também comuns,
contratos de assistência médica possuem características e sobretudo
uma finalidade em comum. O tratamento e a segurança contra os
riscos envolvendo a saúde do consumidor e de sua família ou
dependentes.{114}
* (112) Sobre o tema, veja a Súmula 101 do STJ: "A ação de
indenização do
segurado em grupo contra a seguradora prescreve em um ano".
(113) Assim os dados fornecidos pela revista Isto É, n. 1.270, de
2.2.94.
(114) Veja as discussões na doutrina sobre a natureza
(securitária ou não) destes
vários contratos, o artigo da advogada Maria Leonor Baptista Jourdan,
"Dos
Contratos de Seguro-Saúde no Brasil", in: R. Inf Legisl. n. 180,
abr./jun.
1993, p. 415 ss. (p. 188)
O contrato de seguro-saúde estava regulado e definido pela lei
específica dos seguros, Dec.-lei 73, de 21.11.66, possuindo duas
modalidadeS: a) os contratos envolvendo o reembolso de futuras
despesas médicas eventualmente realizadas (art. 129), contratos de
seguro-saúde fornecidos por companhias seguradoras, empresas ban-
cárias e outras sociedades civis autorizadas; b) os contratos envol-
vendo o pré-pagamento de futuras e eventuais despesas médicas (art.
135), mercado no qual operam as cooperativas e associações médi-
cas.{115}
A nova Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, manteve a distinção
conceitual, mas regula ambos os contratos, concentrando-se nas
"operadoras de planos privados", as fornecedoras que trabalham com
pré-pagamento (art. 1.º, § 1.º, I, da Lei 9.656/98) e nas "operadoras
de seguros privados de assistência à saúde", as fornecedoras que
trabalham com reembolso (art. 1.º, § 1.º, II, da Lei 9.656/98). A nova
lei regula também os sistemas de assistência à saúde pela modalidade
de autogestão (art. 1 .º, § 2.º, da Lei 9.656/98). Hoje a forma mais
comum continua sendo o contrato da modalidade pré-pagamento, mas
cresce o número de fornecedores que oferecem uma forma mista de
seguro-saúde (art. 2.º, parágrafo único, da Lei 9.656/98), de reem-
bolço das despesas médicas e de pré-pagamento, onde a utilização
dos serviços médicos "conveniados" é livre, não necessitando paga-
mento e conseqüente reembolso.{116}
Note-se que o contrato de planos de saúde ou medicina pré-paga
apresenta muitas semelhanças com o contrato de fornecimento de
serviços médicos-hospitalares simples, isto é, aquele fechado por
um
consumidor que procura o médico ou hospital na atualidade de sua
doença ,ou acidente e não face a um seguro ou previsão de eventual
doença futura. Seria o contrato de medicina paga e não pré-paga.
Destacamos a semelhança de ambos os tipos, pois esses poderiam ser
incluídos como sub-espécies de "contrato de assistência médica-
hospitalar". Esta inclusão facilitaria sobremaneira a aceitação da
existência de uma obrigação conjunta de qualidade (leia-se, solidarie-
* (115) Em seu citado artigo Jourdan, p. 418, defende a inclusão
de todas as
modalidades sob o nomem iuris de "Seguro-Saúde".
(116) Assim tb. Adalberto Pasqualotto, "Fontes do regulamento dos
contratos de
seguro-saúde e de assistência médica", ainda inédito, propõe um
tratamento
igualitário. (p. 189)
dade){117} entre fornecedores de serviços.{118} Haveria uma obrigação de
meio ou de resultado vinculando o consumidor, o executor direto dos
serviços (médico, enfermeiros, anestesista etc.) e o fornecedor indireto
dos serviços (hospital, consultório médico, empresa que explora economi-
camente a modalidade de medicina pré-paga), o qual contratou com o
consumidor e organizou esta cadeia solidária de fornecedores do
serviço médico.{119}
A Lei 9.656/98 expressamente menciona a aplicabilidade do CDC
(art. 3.º da referida lei) e a necessidade de que a aplicação conjunta do
* (117) Assim manifesta-se também Aguiar Jr., RT 718, p. 47,
citando como base
jurisprudencial decisões do TJRJ no AI 1.475/92, TJMG Ap. Civ. 164.656-
2, j. 14.12.93, e do TJSP, Rel. Des. Walter Moraes, EI 106.119-1. No
mesmo
sentido, pela solidariedade com base no CDC e não no art. 929, manifesta-
se Lopez, p. 225. Veja sobre responsabilidade do médico e hospital, TJRS,
Ap. Civ. 595.160.250, j. 7.12.95.
(118) A solidariedade entre médicos e hospitais é mais facilmente
aceita pela
jurisprudência, veja como exemplo a decisão do TAMG, reproduzida na
íntegra in: Direito do Consumidor, v. 9, p. 151 e ss., veja igualmente
histórica decisão do TJSP in: RT653, que mesmo antes da entrada em vigor
do CDC aceitou a solidariedade entre famosa empresa de Assistência
médica e seguro-saúde e o médico credenciado, por erro médico (EInf.
106.119-1, 2.ª C. Civ., j. 6.3.90, rel. Des. Walter Moraes). Mais
recentemente
e com base no CDC, veja decisão do Tribunal de Justiça/RS, 3.ª C., Ap.
Civ. 595.160.250, j. 7.12.95, Des. Araken de Assis, cuja ementa é:
"Civil.
Responsabilidade civil. Divulgação de resultado de exame para identificar
o vírus da sida. Culpa do médico e do hospital, pela divulgação, e do
laboratório, que não ressalvou a possibilidade de erro. 1. O médico e o
hospital respondem, solidariamente, pelos danos materiais e morais causa-
dos à paciente pela divulgação do resultado de exame para identificar o
vírus
da sida (síndrome da imuno-deficiência adquirida). Quebra de sigilo
inadmissível, no local e nas circunstâncias, considerando o óbvio precon-
ceito contra a doença. Também faltou o médico com o seu dever de informar
ao paciente do resultado do exame e de não exigir confirmação do
resultado.
E há responsabilidade do laboratório, porque não ressalvou, ao comunicar
o resultado, a possibilidade de o resultado se mostrar equivocado. Dano
material bem arbitrado. Dano moral majorado".
(119) Concorda Ghersi, Medicina Prepaga, p. 162. Segundo o autor:
"Existe una
expectativa por parte del paciente, acerca del controi y vigilancia que
el ente
debe ejercer sobre el comportamiento y calidad de los servicios prestados
por intermedio de todo su cuerpo asistencial, sean o no dependientes
aspecto vinculado indisolublemente con la naturaleza de la obligation."
(p. 190)
CDC e da lei especial "não implique prejuízo ao consumidor" (§ 2.º
do art. 35 da Lei 9.656/98). A jurisprudência brasileira é pacífica ao
considerar taiS Contratos, tanto os de assistência hospitalar direta,
como
os de seguro-saúde, ou de assistência médica pré-paga como subme-
tidos às novas normas do CDC.{120}
A expressão genérica contrato de assistência médica é, portanto,
dúbia, podendo englobar o contrato legalmente incluído como seguro
ou plano de saúde e os demais contratos de assistência médica. Nesse
sentido, pode-se conceituar o contrato de assistência médica-hospitalar
como contrato de obrigação de fazer prestado por terceiros, cujo
fornecedor é geralmente um hospital, grupo de médicos ou de hospitais,
os quais oferecem locação de serviços médicos e de internação
hospitalar ou planos de saúde em grupo, a particulares e empresas,
"contrato atípico misto, emergente da combinação do contrato de
assistência médica, profissional, uma locação de serviços médicos e de
internação hospitalar, com variedade de serviços médicos-auxiliares,
cirurgia, fornecimento de alimentos ao sócio ou beneficiário ou aos
seus dependentes, pela sociedade contratada".{121}
A nova lei especial prefere a expressão "assistência à saúde",
definindo como tais "todas as ações necessárias à prevenção da doença
e à recuperação, à manutenção e à reabilitação da saúde" (art. 1.º, §
3.º da Lei 9.656/98). Os planos e seguros de saúde incluem-se todos
no campo de aplicação da nova lei como atividades de assistência à
saúde, excluídos os contratos de assistência médica própriamente dita.
Quanto aos contratos de seguro-saúde, ensina Orlando Gomes
que estes contratos destinam-se "a cobrir o risco de doença, com o
pagamento de despesas hospitalares e o reembolso de honorários
médicos, quando se fizerem necessários.{122} Incluem-se, assim, ainda
* (120) Assim, a decisão do TJRGS, reproduzida in Revista de
Jurisprudência n.
156, p. 294ss, cuja ementa afirma: "Hospital. É típica entidade
prestadora
de serviços médico-hospitalares. Portanto, sujeita às normas contidas no
Código de Defesa do Consumidor. Improvimento do recurso..." (AI
592044716, 6.ª C. Civ., j. 16.6.92, Rel. Des. Oswaldo Stefanello).
(121) Assim Pedro Arruda França, em seu livro Contratos Atípicos,
Rio, Forense,
1989, p. 174.
(122) Veja detalhes em Orlando Gomes, "Seguro saúde", p. 250. O
art. 130 do
Dec.-lei 73/66, hoje revogado, dispunha: "fica instituído o Seguro-Saúde
para dar cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar." (p.
191)
que genericamente, na definição do art. 1 .432 do Código Civil
Brasileiro, como contratos de seguro{123} envolvendo a transferência
(onerosa e contratual) de riscos futuros à saúde do consumidor e de seus
dependentes, o pagamento direto ou o reembolso dos gastos e serviços
médico-hospitalares.
Note-se que a idéia dos seguros está intimamente ligada ao anseio
humano de controle dos riscos e de socialização dos riscos atuais e
futuros entre todos na sociedade. Se inicialmente os seguros, assim
como ainda descritos em nosso Código Civil de 1916 envolviam apenas
o "indenizar", o "responder" monetariamente, é esta uma visão supe-
rada, pois os serviços de seguro evoluíram para incluir também a
performance bond, isto é, o contrato de seguro envolvendo a "execu-
ção" de uma obrigação, um verdadeiro "prestar", em fazer futuro muito
mais complexo que a simples entrega de uma quantia monetária.
Além da finalidade comum de assegurar ao consumidor e seus
dependentes{124} contra os riscos relacionados com a saúde e a manuten-
ção da vida, parece-nos que a característica comum principal dos
contratos de seguro-saúde é o fato de ambas as modalidades envolve-
rem serviços (de prestação médica ou de seguro) de trato sucessivo, ou
seja, contratos de fazer de longa duração e que possuem uma grande
importância social e individual.
Tratam-se de serviços cuja prestação se protrae no tempo, de
trato
sucessivo. São serviços contínuos e não mais imediatos, serviços
complexos e geralmente prestados por terceiros, aqueles que realmente
realizam o "objetivo" do contrato.
O objeto principal destes contratos é a transferência (onerosa e
contratual) de riscos referentes a futura necessidade de assistência
médica ou hospitalar. A efetiva cobertura (reembolso, no caso dos
seguros de reembolso) dos riscos futuros à sua saúde e de seus
dependentes, a adequada prestação direta ou indireta dos serviços de
* (123) O art. 1.432 do Código Civil brasileiro define o contrato
de seguro como
aquele "pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a
paga de um prêmio, a indenizá-lo do prejuízo de riscos futuros, previstos
no contrato."
(124) Sobre dependente adotado, hoje matéria regulada na lei
especial, veja
decisão do STJ, com voto vencido do Min. Ruy Rosado de Aguiar, in RE
74.498-SP. (p. 192)
assistência médica (no caso dos seguros de pré-pagamento ou de
planos de saúde semelhantes) é o que objetivam os consumidores que
contratam com estas empresas. Para atingir este objetivo os consumi-
dores manterão relações de convivência e dependência com os forne-
cedores desses serviços de saúde por anos, pagando mensalmente suas
contribuições, seguindo as instruções (por vezes, exigentes, burocráti-
cas e mais impeditivas do que) regulamentadoras dos fornecedores,
usufruindo ou não dos serviços, a depender da ocorrência ou não do
evento danoso à saúde do consumidor e seus dependentes (consumi-
dores-equiparados).{125}
Tratam-se, igualmente, de contratos aleatórios, cuja contra-pres-
tação principal do fornecedor fica a depender da ocorrência de evento
futuro e incerto, que é a doença dos consumidores-clientes ou de seus
dependentes.
Os profissionais do direito (moderno) estão acostumados a ana-
lisar contratos comutativos. Em especial nas relações securitárias, a
presença do aleas, do risco inerente a esta relação contratual, pode
levar
a interpretações nem sempre corretas. Neste sentido, não é demais frisar
novamente que incerta nesses contratos é a "necessidade" da prestação
e não "se" e "como", com que qualidade, segurança e adequação, deve
ela ser prestada.
Em outras palavras, a prestação nos contratos de assistência
médica ou de seguro-saúde, quando necessária, deve ser fornecida com
a devida qualidade, com a devida adequação de forma que o contrato,
que o serviço objeto do contrato unindo fornecedor e consumidor, possa
atingir os fins que razoavelmente dele se espera, fim contratual muito
mais exigente do que a simples diligência.{126}
* (125) Repita-se aqui o que foi anteriormente mencionado sobre as
obrigações
"duradouras" e seu contínuo renovar de deveres, veja Parte 1, 1, n. 2.4.
(126) A prestação do serviço também deve possuir a esperada
"segurança", que
aqui conscientemente omitimos, para poder tratar mais detídamente da
noção de "vício do serviço". Quanto à segurança o art. 14 e ss. do CDC
impoem um novo patamar de qualidade-segurança dos serviços prestados.
Leading case foi a decisão da 7.ª Câmara Cível do TJRGS, Ap. Cív.
591007174, j. 10.4.91, Rel. Waldemar Freitas Filho: "Indenização. Conser-
to. Verificada, por perícia bastante e insuspeita, a falha do conserto,
feito
poucos dias antes, procede a indenização pretendida pelo dono do veículo
consertado. Responsabilidade do reparador pelo conserto feito, consoante
(p. 193)
Nesse sentido, a relação contratual básica do seguro-saúde é uma
obrigação de resultado, um serviço que deve possuir a qualidade e a
adequação imposta pela nova doutrina contratual. É obrigação de
resultado porque o que se espera do segurador ou prestador é um "fato",
um "ato" preciso, um prestar serviços médicos, um reembolsar quan-
tias, um fornecer exames, alimentação, medicamentos, um resultado
independente dos "esforços" (diligentes ou não) para obter os atos e
fatos contratualmente esperados.{127}
Se o consumidor irá curar-se (ou não) é incerto, mas que a
vinculação contratual entre consumidor e fornecedor de serviços o
obriga a interná-lo, tratá-lo e propiciar serviços de assistência médica
ou hospitalar na sua rede, ou simplesmente reembolsar a quantia
despendida, isto é certo.
Resumindo, o aleas presente nesse contrato de consumo (art. 3º,
§ 3.º c/c. art. 2.º, art. 29 do CDC) leva a conclusão que incerto é
quando
deve ser prestada e não se deve ou não ser prestada a obrigação
principal. Esta é justamente a obrigação do fornecedor desses serviços:
prestar assistência médica-hospitalar ou reembolsar os gastos com
saúde, é a expectativa legítima do consumidor, contratualmente aceita
pelo fornecedor.
A extensão, portanto, da contra-prestação contratual do fornece-
dor de serviços de seguro-saúde e de assistência médica, a obrigato-
riedade dessa contra-prestação é perfeitamente conhecida e, neste
sentido, "não aleatória", aleatória é a necessidade ou não de prestar.
Por isso, anos podem transcorrer sem que os serviços oferecidos e
contratos sejam prestados ou prestados em importância igual a da
*o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90)." in: Revista
de Jurisprudência do TJRGS, 152/541.
(127) Utilizamos aqui a distinção clássica de obrigação de meio e
obrigação de
resultado proposta por Demogue e reproduzida por Joseph Frossard. "Le
distinction des obligations de moyens et des obligations de résultat",
Paris,
LGDJ, 1965, p. 1, "Parfois, enseignait-il, le débiteur n’est tenu qu’à la
diligence du bon père de famille, et le savant auteur proposa alors
l’expression obligation de moyens pour qualifier le contenu d’un tel
devoir.
Quelquefois, ce n’est plus seulement une attitude diligente qui est
attendue
d’un contractant ou d’un tiers, mais un fait ou un acte précis, un
résultat
indépendant des efforts fournis pour l’obtenir: la terminologie
obligation
de résultat devait caractériser ce second groupe." (p. 194)
prestação paga pelo consumidor mês-a-mês. O risco, porém, está
coberto, o equilíbrio contratual especial, preservado, o contrato em
execução quanto a seus deveres secundários e realizando as expecta-
tivas legítimas dos consumidores de cobertura dos riscos envolvendo
a saúde própria e de seus dependentes.
Tratam-se, igualmente, de contratos concluídos por escrito e no
caso dos seguros, solenes, de contratos regulamentados, subordinados
às disposições das leis especiais, das leis gerais imperativas e demais
regulamentações administrativas.{128}
Observadas estas especialidades dos contratos de serviço em
questão, conclui-se que os modelos tradicionais de contrato (contratos
envolvendo obrigações de dar, imediatos e menos complexos) for-
necem poucos instrumentos para regular estas longíssimas, reiteradas
e complexas relações contratuais, necessitando seja a intervenção
regulamentadora do legislador, seja a intervenção reequilibradora e
sábia do Judiciário, agora instrumentalizado com as novas normas
do CDC.
Da mesma forma, os contratos envolvendo planos de previdência
privada deveriam merecer maior atenção por parte da doutrina jurídica,
pois são responsáveis por grande número de disputas judiciais{129} e
muitas vezes, em virtude da defasagem do valor das prestações e
pensões pagas, atentam contra a dignidade do consumidor ou bene-
ficiário. As históricas decisões do STF, permitindo a substituição do
valor do salário mínimo por outros índices de atualização monetária,{130}
* (128) Como ensinava Orlando Gomes, "Seguro-Saúde", p. 251, no
conteúdo dos
contratos de seguro-saúde "incorporam-se necessariamente disposições
legais e, até mesmo determinações de órgãos do Estado, impostas às partes
irresistivelmente". Sobre fontes heterônomas dos contratos, veja os
ensina-
mentos basilares de Enzo Roppo, p. 137 e ss.
(129) Veja: "Previdência privada. Aposentadoria. Resgate. Quem
participa de um
plano de aposentadoria de natureza privada, com previsão de resgate
proporcional às contribuições efetivadas, deve receber o valor das
parcelas
correspondentes com a devida correção oficial, pois se trata de um plano
de renda, e a quantia a ser resgatada não pode sofrer redução para
atender
alegadas reservas, sob pena de prejudicar quem investiu no plano
subscrito."
(Proc. 01191716602, Rec. 190, Rel. Dr. Silvestre Tasso Ayres Torres, 1.ª
Câmara Recursal, 7.5.92, JEPC/RS).
(130) Veja as decisões do STF, em especial o leading case (RE
1.10.930/RS, j.
10.4.87, Rel. Min. Sydney Sanches, "Previdência Privada. APLUB. Rea- (p.
195)
acabaram por frustrar as expectativas (legítimas) dos consumidores,
que contribuíram por anos para este sistema de empresas privadas e
hoje recebem menos que um terço do salário mínimo mensal e muito
menos do que se tivessem simplesmente investido tais quantias. A
jurisprudência posterior ao CDC tem reconhecido a necessidade de
a administradora garantir ao menos a atualização monetária das
prestações pagas pelos participantes consumidores e sugestões existem
para que este setor seja regulamentado com mais rigor e seja
introduzido no direito brasileiro o princípio do "administrador pru-
dente" (prudent person rule) previsto na legislação americana sobre
fundos de pensão.{131}
Com a melhoria do nível de vida na sociedade, com a tendência
crescente de privatização, como se observa na vizinha Argentina, este
contrato cativo de longa duração tende a multiplicar-se também no
mercado brasileiro, face ao desejo do consumidor de garantir-se e a sua
família contra os riscos futuros. Este importante serviço oferecido no
mercado e a relação contratual resultante da vinculação do consumidor
durante anos a determinada empresa de previdência privada estão
mencionados expressamente no art. 3.º do CDC e, como novos
contratos de consumo, devem obedecer as novas linhas de eqüidade e
boa-fé impostas pelo CDC.
Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identi-
ficar o fornecedor exigido pelo art. 3.º do CDC, e o consumidor. Note-
se que o destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa
seguradora (estipulante) ou terceira pessoa, que participará como
beneficiária do seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do
serviço prestado pela empresa seguradora. Como vimos, mesmo no
*juste do benefício previdenciário, com invocação de direito adquirido
decorrente de relação contratual. Incidência imediata de lei nova, de
ordem
pública (n. 6.435/77), regulando, a partir de sua vigência, a atualização
das
contribuições e benefícios, previstos em relação jurídica contratual de
trato
sucessivo, sem afronta a suposto direito adquirido, sobretudo por não
acarretar desequilíbrio social ou jurídico..." in: RTJ, 121/776 e ss., no
mesmo sentido, RExt na RTJ 121/705 e ss.
(131) Assim manifestou-se Ronaldo Porto Macedo Júnior, no
trabalho apresen-
tado ao 4.º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, Gramado, 8 de
março de 1998, intitulado "Os contratos previdenciários. a informação
adequada e riscos do consumidor", ainda não publicado. (p. 196)
caso do seguro-saúde, em que o serviço é prestado por especialistas
contratados pela empresa (auxiliar na execução do serviço ou preposto),
há a presença do consumidor ou alguém a ele equiparado, como dispõe
o art. 2.º e seu parágrafo único.

e) Contratos bancários e de financiamento - Podemos denomi-


nar, genericamente, contratos bancários aqueles concluídos com um
banco ou uma instituição financeira. Entre eles destacam-se o depósito
bancário, depósito em contra corrente, conta poupança, ou a prazo fixo,
o contrato de custódia e guarda de valores, o contrato de abertura de
crédito, de empréstimo e o de financiamento. Na sociedade atual os
contratos bancários popularizaram-se, não havendo classe social que
não se dirija aos bancos para levantar capital, para recolher suas
economias, para depositar seus valores ou simplesmente pagar suas
contas. E o contrato de adesão por excelência, é uma das relações
consumidor-fornecedor que mais se utiliza do método de contratação
por adesão e com "condições gerais" impostas e desconhecidas.
A possibilidade de o consumidor obter imediatamente uma pres-
tação, um bem, um serviço, seja sob a base contratual de um mútuo,
uma venda ou mesmo um leasing, enquanto o fornecedor do crédito
aceita esperar até um certo termo para só então exigir o seu pagamento,
em outras palavras, o fornecimento de crédito ao consumo considera-
se hoje um dos fatores mais importantes da atual sociedade de consumo
de massa.{132} A operação envolvendo crédito é intrínseca e acessória ao
consumo,{133} utilizada geralmente como uma técnica complementar e
necessária ao consumo,{134} seja pela população com menos possibili-
dades econômicas e sociais, que utilizam seguidamente as vendas à
prestação, seja pelo resto da população para adquirir bens de maior
valor, como automóveis ou casas próprias, ou simplesmente para
alcançar maior conforto e segurança nas suas compras, utilizando o
* (132) Calais-Auloy, 3. ed., p. 257.
(133) A interdependência do consumo como conhecemos e o crédito
são tão
grandes, que o Code de la Consommation francês destaca um livro para
tratar do "endividamento", regulando no primeiro Título o crédito (direto
e indireto ao consumidor) em todas as suas formas acessórias ao consumo,
artt. 311-1 e ss.
(134) Veja conclusões de Howells, p. 176, que traz anexo o texto
da Diretiva
européia 87/102 de 1986 sobre crédito ao consumo, com suas modificações.
(p. 197)
sistema de cartões de crédito.{135} A massificação do crédito e um pós-
moderno entusiasmo pelo consumo com pagamento postergado têm
trazido problemas de insolvência em países (pós) industrializados de
primeiro mundo,{136} mas também no Brasil.{137}
A caracterização do banco ou instituição financeira como forne-
cedor está positivada no art. 3.º, caput do CDC e especialmente no §
2.º do referido artigo, o qual menciona expressamente como serviços
as atividades de "natureza bancária, financeira, de crédito".
Esta inclusão no parágrafo referente a "serviços" pode chocar,
uma vez que o contrato de mútuo é um dar e neste sentido o dinheiro
seria um "produto", cujo pagamento seriam os "juros". Considerando,
porém, o sistema do CDC, que não utiliza as definições de bem
consumível do CC, nem a definição econômica deste "insumo", mas
inclui todos os bens materiais e imateriais como produtos lato sensu
e, especialmente, um sistema que não especifica os tipos contratuais
utilizados, mas sim a atividade em si e geral dos fornecedores, a lógica
está em que o "produto" financeiro é o "crédito", a captação, a
administração, a intermediação e a aplicação de recursos financeiros
do mercado para o consumidor e que a caracterização de fornecedor
vem da operação bancária e financeira geral oferecida no mercado{138}
e não só dos contratos concluídos. Note-se ainda que contratos
bancários típicos são os de intermediação e atípicos, envolvendo outros
fazeres acessórios que não implicam intermediação do crédito. Da
mesma forma, observando as amplas definições de instituições finan-
* (135) Calais-Auloy, desde 1975, propugna por um maior controle
desta
acessoriedade do crédito, chamando a atenção para a importância prática
e teórica de proibições legais e controle no que concerne aos contratos
de
crédito, Calais-Auloy, in Dalloz, 1975, Chron., p. 21.
(136) Veja detalhes em Ramsay, p. 192 e ss., que menciona dados
de 1997,
segundo os quais 1 em 96 famílias norte-americanas teria pedido "falência
civil", totalizando mais de um milhão de famílias. Veja também o mencio-
nado artigo de Calais-Auloy e o Code de la Consommation francês.
(137) Sobre o tema, Lopes, p. 109 e ss.
(138) O fornecedor organiza-se, operacionaliza sua atividade de
intermediação e
administração, de circulação do dinheiro na sociedade através destas
chamadas "operações" em geral, que segundo Abrão, p. 46 e 47, caracte-
rizam-se justamente por sua interdependência entre as típicas e atípicas,
"por terem conteúdo econômico e por serem praticadas em massa". Veja
também Pontes de Miranda, t. LII, p. 3 e ss. (p. 198)
ceiras da Lei 4.594/64{139} e da Lei 7.492/86,{140} conclui-se que também
é esta a técnica funcional utilizada pelo legislador do direito comercial
para caracterizar a atividade financeira e bancária em geral como um
serviço de consumo e comércio colocado à disposição no mercado.
A caracterização do banco ou instituição financeira como forne-
cedor, sob a incidência do CDC, é hoje pacífica.{141}
Resta saber se o consumidor é o co-contratante no contrato em
exame. Já observamos que a característica maior do consumidor é ser
o destinatário final do serviço, é utilizar o serviço para si próprio.
Nesse
sentido, é fácil caracterizar o consumidor como destinatário final de
todos os contratos de depósito, de poupança, e de investimento que
firmar com os bancos. A dificuldade está na caracterização do consu-
midor, nos contratos de empréstimo, onde há uma obrigação de dar, de
fornecer o dinheiro, que é bem juridicamente consumível. Nestes casos,
a pessoa é destinatária final fática, mas pode não ser a destinatária
final
econômica. Por exemplo, um advogado que contrata o empréstimo de
* (139) Segundo o art. 17, caput, da Lei 4.595/64, instituições
financeiras seriam
as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade
principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos
financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e
a custódia de valor de propriedade de terceiros.
(140) Segundo o art. 1.º da Lei 7.492/86, amplia-se instituição
financeira para
englobar qualquer "pessoa jurídica de direito público ou privado, que
tenha
como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a
captação,
intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda
nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação
de
recursos, intermediação ou administração mobiliários". Veja também art.
119 do Código Comercial.
(141) Veja as decisões do TJRS, até mesmo em ações civis públicas
propostas
pelo MP/RS contra alguns bancos: Ap. Civ. 59030717, j. 25.6.97, Des.
Arnaldo Rizzardo; Ap. Civ. 595095886, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio
Monteiro Pacheco, Ap. Civ. 595100934, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio
Monteiro Pacheco e Ap. Civ. 591167551, j. 20.8.97, Rel. Nelson Antonio
Monteiro Pacheco, em cujas ementas lê-se: "A possibilidade jurídica do
pedido é clara, porquanto as relações decorrentes da concessão de crédito
se amoldam à tutela do CDC". TARS, Ap. Civ. 196197867, j. 12.3.98,
Des. José Aquino Flores de Camargo, em cuja ementa lê-se: "Ação civil
pública. Ministério Público. Titularidade para propor ação em defesa dos
interesses difusos e coletivos. Art. 81 do CDC em combinação com o art.
129, IX, da CF. Ação que visa não só a proteção da comunidade de clientes
(p. 199)
certa quantia para reformar o seu escritório ou o agricultor, para
comprar a semente para plantar.
Nestes dois casos, o advogado e o agricultor são destinatários
fáticos. mas o produto é insumo para alguma outra atividade profis-
sional. Logo não poderiam recorrer, em princípio, à tutela do CDC.
Observamos, porém, que o sistema do CDC é um sistema aberto, que
trabalha com a técnica de equiparação de pessoas à situação de
consumidor quando se constatar o desequilíbrio contratual e a
vulnerabilidade (técnica, jurídica ou fática) da pessoa que contrata com
o fornecedor. Parte da doutrina{142} e jurisprudência{143} defende a
aplica-
ção do CDC a estes contratos interempresariais.
Nesse sentido, podemos concluir que os contratos entre o banco
e os profissionais, nos quais os serviços prestados pelos bancos estejam,
em última análise, canalizados para a atividade profissional destas
pessoas físicas (profissionais liberais, comerciantes individuais) ou
jurídicas (sociedades civis e comerciais), devem ser regidos pelo direito
comum, direito comercial e leis específicas sobre o tema. Só excep-
cionalmente, por decisão do Judiciário, tendo em vista a vulnerabilidade
do contratante e sua situação equiparável ao do consumidor stricto
sensu,{144} serão aplicadas as normas especiais do CDC a estes contratos
entre dois profissionais.
Para caracterizar estes contratos como contratos de consumo ou
não o fator decisivo não é a existência de uma lei especial (por exemplo,
Lei do Mercado de Capitais), que regule o contrato bancário, decisiva
*do Banespa, como a população em geral, dado o seu caráter declaratório,
abstrato e geral. Incidência das disposições do CDC às relações
bancárias.
Declaração de nulidade de cláusulas abusivas contidas em contratos-
padrão. Apelo provido para ampliar a declaração".
(142) Veja por todos, Marins, na Revista Direito do Consumidor,
v. 6, p. 94.
(143) Veja como exemplo caso envolvendo indústria de bebidas e
uma operação
de leasing com banco, em que houve aplicação do CDC e inversão do ônus
da prova do indébito (TARS in Ap. Civ. 196246151, j. 12.6.97, Rel. Rui
Portanova).
(144) Parece-nos que a vulnerabilidade pode ser mesmo
caracterizada pela
imposição de um contrato pré-elaborado, mas a decisão final caberá à
jurisprudência fixar, a qual pelo menos no Rio Grande do Sul tem decidido
pela necessidade da ação reequilibradora nestes contratos bancários e
financeiros, veja jurisprudência citada no item 1.1, b. (p. 200)
é a presença de um consumidor ou de um profissional-vulnerável, que
possa também ser equiparado ao consumidor, em matéria de proteção
contratual. No caso do consumidor não-profissional prevalece, em
todos os contratos bancários, a presunção de sua vulnerabilidade (art.
4º, I do CDC).
A maioria dos contratos bancarios é concluída através da utiliza-
ção de condições gerais dos contratos e de contratos de adesão. Estes
métodos de contratação de massa, como observamos na experiência
alemã, servem como indício da vulnerabilidade do co-contratante.
Mesmo sendo um advogado o co-contratante, mesmo sendo um
comerciante ou agricultor, a vulnerabilidade fática estará quase sempre
presente, dependendo da jurisprudência a aplicação extensiva ou não,
no caso concreto, das normas tutelares do CDC. Como esta aplicação
"analógica" tende a tornar-se a regra, como aconteceu na Alemanha,
a melhor solução será os Bancos adaptarem todos os seus contratos-
formulários, contratos de adesão e condições gerais de serviços, aos
patamares de equilíbrio e de boa-fé instituídos pelo CDC. Esta solução
é também a mais econômica, pois evita a preocupação em determinar
se o co-contratante é ou não um consumidor, e baseia-se na realidade
fática de superioridade econômica e técnica que possuem os bancos em
relação à maioria dos seus clientes, superioridade esta que facilmente
terá como reflexo a aceitação da vulnerabilidade e na hipossuficiência
de seu co-contratante.
Apesar das posições contrárias iniciais,{145} e com o apoio da
doutrina,{146} as operações bancárias no mercado, como um todo, foram
consideradas pela jurisprudência brasileira como submetidas às normas
e ao novo espírito do CDC de boa-fé obrigatória e equilíbrio contra-
tual.{147} Como mostra da atuação do Judiciário, não se furtando a
exercer
* (145) Em especial o Parecer para a FEBRABAN, Arnoldo Wald, "O
Direito do
Consumidor e suas repercussões em relação às instituições financeiras",
in:
R. inf. legisL, n. 11, jul./set./91, pp. 295-312, segundo o autor o CDC
encontraria aplicação somente aos contratos de aluguel de cofres e a mais
nenhum dos contratos firmados entre os consumidores e as instituições
financeiras.
(146) Veja a manifestação, decisiva de Nery, Anteprojeto, pp. 302
a 311.
(147) Veja, considerando as normas do CDC aplicáveis aos
contratos bancários
com consumidores, Ap. Civ. n. 194092862, 1.ª C. Civ., TARGS, Rel. Juiz
Juracy Vilela de Souza, j. 7.6.94 e a já citada decisão da 2.ª C. Civ.,
TARGS, (p. 201)
o controle do conteúdo destes importantes contratos de massa. Destaco
a ementa de verdadeiro leading case:
"Código de Defesa do Consumidor. Proteção contratual: Destina-
tário. Cláusulas abusivas: Alteração unilateral da remuneração de
capital posto à disposição do creditado: Imposição de representante.
Conhecimento de ofício".
O conceito de consumidor, por vezes, se amplia, no CDC, para
proteger quem "equiparado". É o caso do art. 29. Para o efeito das
práticas comerciais e da proteção contratual, "equiparam-se aos con-
sumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas
nele previstas".
O CDC rege as operações bancárias, inclusive as de mútuo ou de
abertura de crédito, pois relações de consumo.
O produto da empresa de banco é o dinheiro ou o crédito, bem
juridicamente consumível, sendo, portanto, fornecedora; e consumidor
o mutuário ou creditado.
Sendo os juros o "preço" pago pelo consumidor, nula cláusula que
preveja alteração unilateral do percentual prévia e expressamente
ajustado pelos figurantes do negócio.
Sendo a nulidade prevista no art. 51 do CDC da espécie pleno
iure,
viável o conhecimento e a decretação de ofício, a realizar-se tanto que
evidenciado o vício (art. 146, parágrafo, do Código Civil).
É nula a cláusula que impõe representante "para emitir ou
avalizar
notas promissórias" (art. 51, VIII, do CDC). (Ap. Civ. 193051216, 7.ª
C. Civ., j. 19.5.93, Rel. Juiz Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior,
TARGS)
Observa-se, no direito comparado, uma tendência cada vez maior
de incluir os contratos de financiamento, para fins privados, pessoais,
ou familiares, e os chamados contratos de crédito direto ao consumidor,
entre aqueles que devem merecer a atenção e a tutela especial do
direito, a exemplo do art. 52 do CDC.{148} Assim, a partir de 1.º de
janeiro de 1991 está em vigor na Alemanha a Lei sobre Crédito ao
*Rel. Juiz Paulo Heerdt, de 24.9.92, envolvendo pequeno comerciante e
instituição bancária e a nova força do art. 29 do CDC (Ap. Civ.
192188076).
(148) Sobre a alienação fiduciária trataremos a seguir, na letra
b sobre compra
e venda com alienação fiduciária. (p. 202)
Consumidor (Gesetz über Verbraucherkredite), a qual segundo orien-
tação da Comunidade Européia, prevê um direito de arrependimento
para o consumidor.{149}
Muitas preocupações têm surgido no Brasil quanto ao contrato de
financiamento, com garantia hipotecária,{150} e os contratos de mútuo
para a obtenção de unidades de planos habitacionais. Nestes casos o
financiadOr, o órgão estatal ou o banco responsável, caracteriza-se
como fornecedor. As pessoas físicas, as pessoas jurídicas, sem fim de
lucro, enfim todos aqueles que contratam para benefício próprio,
privado ou de seu grupo social, são consumidores. Os contratos
firmados regem-se, então, pelo novo regime imposto aos contratos de
consumo, presente no CDC. Estes são contratos típicos por adesão, mas
se fechados entre profissionais (para a construção de fábrica, de
shopping center) estarão em princípio excluídos do campo de aplicação
do CDC. Somente examinando caso a caso a eventual vulnerabilidade
do co-contratante é que o Judiciário brasileiro poderá expandir a tutela
concedida, em princípio, só ao consumidor não-profissional, usando
por exemplo a norma permissiva do art. 29 do CDC.{151}
Este tipo de delimitação será extremamente difícil no caso de
cartões
de crédito,{152} cujo titular for pessoa física, que exerce uma
profissão,
um profissional liberal, por exemplo, que utiliza o cartão ora para
adquirir bens para si ou para sua faniflia, ora para o seu escritório ou
* (149) Veja Schmelz, p. 1219(NJW; sobre as Diretivas da
Comunidade Européia,
veja Bergel e Paolantonio, in: Direito do Consumidor, vol. 7, p. 15 e ss.
(150) Veja o artigo do advogado Marcelo G. Rodrigues, "O Problema
dos
Promitentes Compradores de Imóveis construídos mediante Financiamento
com Garantia Hipotecária", in RT 588/266.
(151) Veja sobre a extensão do campo de aplicação do CDC através
da interpre-
tação jurisprudencial do art. 29, o número 1.1b desta obra; sobre os
contratos de Sistema Financeiro da Habitação e a aplicação das normas do
CDC a estes contratos, o estudo basilar de Arnaldo Rizzardo, "O Código
de Defesa do Consumidor aplicado aos contratos regidos pelo sistema
financeiro da habitação", in: Revista AJURIS, v. 60 (1994), pp. 42-61.
(152) Sobre os cartões de crédito, enquanto vínculo contratual,
veja Ghersi, p.
610, seriam, para alguns, espécies de cartas de créditos, para outros,
contratos entre comerciantes (empresa e estabelecimento que aceita o uso
do cartão) ou envolveriam duas relações contratuais (consumidor-empreSa
e entre empresa e comerciante) para simplificar o crédito e o consumo.
(p. 203)
para a sua atividade profissional. Nestes casos, a interpretação será
pró-
consumidor. e o contrato de crédito para a pessoa física deverá supor
que se trata de um consumidor, adaptando-se ao regime do CDC.
Da mesma forma, a poupança privada apresenta dificuldades em
sua caracterização como contrato de consumo, pois se a sociedade de
consumo está intimamente ligada à poupança popular, o contrato em
si pode ser visto como um contrato visando simples investimento. A
importância prática deste contrato e a sua caracterização como contrato
de adesão, onde várias cláusulas apresentam alto grau de abusividade
e onde a mudança das linhas governamentais geralmente afeta as
expectativas dos poupadores, devem impor a este contrato um regime
equiparado ao contrato típico de consumo, visando proteger a parte
vulnerável, o consumidor (pouco importando a sua fortuna) e impor
certos riscos profissionais indisponíveis às instituições que captam a
poupança popular no mercado. Nesse sentido, concluiu o III Congresso
Brasileiro de Direito do Consumidor que a poupança popular e o crédito
ao consumo constituem relação de consumo.{153} No mesmo sentido a
Conclusão n. 2 do Congresso Internacional de Responsabilidade Civil,
realizado em Blumenau em 1995: "As instituições financeiras estão
sujeitas ao CDC também em relação às operações creditícias ao
consumidor".
Cabe aqui mencionar também os contratos de capitalização,
regulados pelo Decreto-Lei n. 261/67: por este contrato o aderente
(geralmente um consumidor pessoa física) pagará ao outro contratante
(companhia capitalizadora) contribuições periódicas para receber, em
certo prazo, certo capital acumulado, acrescido de juros, cujo pagamen-
to poderá ser antecipado mediante sorteios. Trata-se de uma espécie
de formação de recursos financeiros, poupança, que cria expectativas
específicas e legítimas nos consumidores, merecendo um controle
específico do direito para evitar abusos nestes contratos, principalmente
em virtude da vulnerabilidade técnica e jurídica do consumidor médio.
É um contrato de adesão, onde nada impulsiona o consumidor a fechar
o contrato, a não ser o desejo de formar uma poupança para melhorar
* (153) III Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor - O
contrato no ano
2000, realizado no Banco Central, em Brasília, abril de 1994. Quanto ao
crédito ao consumo, mencione-se a existência da Diretiva da Comunidade
Européia n. 88, 22.2.90 (J.O.C.E., n. L 61/14, Diretiva 90/88/CEE), a
qual
modificou a anterior Diretiva 87/102/CEE. (p. 204)
sua vida, mesmo assim, se fechado o contrato entre uma companhia
capitalizadora e um consumidor, deverão ser aplicadas as regras
saneadOraS do CDC.
O grande problema na sociedade de consumo são as relações
triangulares, que diluem as garantias de bom desempenho dos serviços
e aumentam os riscos para o consumidor. Assim, se um consumidor
quer adquirir um bem móvel a prazo, a loja assegura para ele um
financiamento através de uma empresa de crédito já localizada dentro
da própria loja, o consumidor não se dá conta, mas passa a ser devedor
da empresa financeira e não mais do comerciante.{154} As vezes as
relações contratuais são entre dois fornecedores, e o consumidor é
apenas o terceiro-vítima. Como no caso, comum nos anos 80, em que
o consumidor prometia comprar imóvel a ser construído por uma
empresa imobiliária, a qual fechava um financiamento com um banco,
dando o imóvel (terreno e acessões) em garantia hipotecária, para poder
construir o edifício. O consumidor pagava integralmente o seu imóvel,
mas não era feito o registro da escritura definitiva de Compra e Venda,
sendo que uma cláusula responsabilizava o consumidor pela liberação
da dívida (do financiamento) feita pelo construtor, uma vez que a
hipoteca (ônus) se transferia junto com a propriedade. Assim também
alguns contratos são fechados entre dois bancos, ou entre o Estado ou
empresário e o banco, podendo, porém, pela demora do depósito efetivo
em conta prejudicar o consumidor-cliente.
Conclui-se esta exposição, reiterando a importância alcançada no
mundo de hoje pelos contratos bancários e contratos de crédito. A
jurisprudência dominante é pela aplicação das normas do CDC a estes
contratos, pois, em regra, estão presentes consumidores como outro
pólo da relação contratual, atuando como destinatários finais dos
serviços, utilizando os serviços para proveito próprio, de seu grupo
social ou familiar. As regras do CDC encontrarão aplicação, também,
em caso de vulnerabilidade comprovada do contratante, quando o
contrato bancário inserir-se em sua atividade profissional,{155} seguindo
* (154) Sobre alienação fiduciária veja letra b a seguir.
(155) Aplicando o art. 29 do CDC para estender sua proteção aos
contratos
comerciais em contrato bancário, veja interessante decisão de 13.4.94,
Ap.
Civ. 194041851, rel. Juiz Antônio Janyr Dall’Agnol Jr.. com a seguinte
ementa:
"Código de Defesa do Consumidor - Contrato bancário - Interpretação
- Art. 47 do CDC. Havendo divergência de índice de atualização monetária,
(p. 205)
assim a orientação da jurisprudência brasileira, que já dedicava atenção
especial aos contratos bancários e às cláusulas abusivas nele
inseridas.{156}

f) Contratos de administração de consórcios e afins - Nos


contratos do sistema de consórcio, como os denomina o art. 53, § 2º
do CDC, a administradora do consórcio caracteriza-se como fornece-
dor, prestadora de serviços: o contrato é geralmente concluído com
consumidores, destinatários finais fáticos e econômicos dos bens
duráveis (automóveis, geladeiras, televisores e mesmo imóveis), que se
pretende adquirir através dos consórcios. Aos contratos do sistema de
consórcio aplicam-se as normas do CDC, a exceção do contrato
fechado com alguma empresa, que utilizará os automóveis para a sua
atividade profissional, caso em que, mesmo assim, comportaria a
aplicação analógica das normas do CDC em virtude da vulnerabilidade
do co-contratante, pois os contratos são de adesão e de conteúdo
tipicamente ditado, até mesmo por Portarias Ministeriais.
Trata-se de um contrato de prestação de serviços,{157} em que a
Administradora ou Lançadora arrecada uma contribuição mensal de
cada pessoa do grupo de consorciados para a formação de um fundo
comum destinado a aquisição, para cada consumidor, de um bem.{158}
A Administradora arrecada e gere o fundo, administra o grupo,{159}
*porque datilografado espécie que não a constante de impresso, em
contrato
de adesão. prevalece o que mais favorável ao aderente, nos termos do art.
47 do CDC.
Sobre mais favorável, dúvida não pode persistir quanto ao que
ordina-
riamente ocorre - e que é a assinatura em branco dos formulários pelo
financiado.
Ao predisponente das cláusulas cumpre evidenciar,
satisfatoriamente, a
anuência do aderente à modificação, pois, aqui, o formulário impresso
ostenta-se segurança também desse.
Apelo desprovido."
(156) Veja o desenvolvimento da jurisprudência brasileira quanto
às cláusulas de
eleição do foro em contratos bancários, no capítulo IV, 1.2, b.
(157) Mas note-se que o próprio STJ (RE 7.742/MG, 1991) afirmou
aplicar-se
aos consórcios para venda de bens duráveis as normas referentes à
alienação
fiduciária em garantia.
(158) Para parte da jurisprudência trata-se de contrato de
"captação antecipada
de poupança popular", veja RT 661/141.
(159) A jurisprudência visualiza com clareza as relações de
consumo entre a
Administradora e cada um dos consorciados. Assim, como exemplo: (p. 206)
promove os sorteios, organiza os lances e fornece àquele de direito,
ao fim, uma carta de crédito para que possa adquirir o bem na
revendedora do produto (a qual teoricamente não tem relação
contratual com o consumidor, pois é pessoa jurídica diferente). Para
a garantia da Administradora (ou se preferirem do grupo), exige esta,
como garantia do pagamento das parcelas eventualmente vincendas,
a alienação fiduciária do bem ou a reserva de domínio. O conteúdo
do contrato é regulado pelo Dec. 70.951/72 e pela Portaria 330, de
23 de setembro de 1987, do Ministério da Fazenda e previamente
aprovado pela Secretaria da Receita Federal,{160} sendo praxe que, além
do longo contrato impresso no formulário, integre a relação contratual
o "Regulamento do Consórcio" aprovado pela Receita Federal,
registrado em algum Cartório de Títulos e Documentos, sem que cópia
destas condições gerais seja entregue ao consumidor.
Em virtude da presença constante de consumidores como pólo
contratual, podemos concluir que os contratos de sistema de consórcios
são típicos contratos de consumo, cuja finalidade justamente é permitir
e incentivar o consumo de bens duráveis, que de outra forma não
estariam ao alcance do consumidor. Mas pelos abusos que já ocorreram
neste setor, muito salutar que se estabeleça uma eqüidade, um equilíbrio
obrigatório nestes contratos de adesão através das normas do CDC. O
* Apelação Cível n. 192199982 - 7.ª Câmara Cível - TARGS, j.
21.10.92,
Rel. Antônio Janyr Dall’Agnol Júnior.
Consórcio. Restituição de parcelas. "Ilegitimidade passiva da
adminis-
tradora". Tese que não merece acolhimento, em vista do inequívoco fato
de que as relações, rigorosamente, se estabelecem entre cada consorciado
e a administradora, e não entre consorciados. "Mérito". Restituição que
se
realiza, com correção, após o encerramento do grupo. Súmula de n. 35 do
STJ. Apelo desprovido (in Julgados TARGS, n. 86, p. 303).
Veja do TJMT: "Consórcio - Desistência do consorciado - Cobrança
das
parcelas pagas - Ação proposta contra a Administradora - Legitimidade
passiva "ad causam" - Quantia reclamada por ela recebida e administrada.
Ementa Oficial: É parte legítima ad causam a administradora de
consórcio de veículos para figurar no pólo passivo da demanda em que o
consorciado pleiteia restituição das parcelas que lhe foram pagas. (in RT
693/155).
(160) A atribuição para tanto foi conferida pelo Dec. 70.951, de
9.8.72. Há que
se considerar igualmente a Portaria 190/89 do Ministério da Fazenda. (p.
207)
Código imporá uma maior boa-fé e lealdade também quando da forma-
ção destes contratos e da informação do consumidor.
Mesmo antes da entrada em vigor do CDC, a jurisprudência
brasileira já se preocupava em afastar os efeitos mais unilaterais dos
contratos do sistema de consórcios. Assim, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, ensinava nos julgados 1.ª Câmara Cível, 27.9.88, rel.
Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento: "Consórcio - Desistên-
cia do Plano - Correção Monetária - no consórcio para aquisição de
bens duráveis, havendo desistência do plano por um participante e
prevista a devolução das quantias pagas - Tal devolução deverá ser
realizada com a incidência de correção monetária - Cláusula em
sentido contrário - Por ofensiva ao princípio geral de direito do não
locupletamento sem causa, inaplicável" e 6.ª Câmara Cível, 10.6.86,
rel. Des. Luiz Fernando Koch: "Consórcio - Exclusão de consorciado
por mora no pagamento das prestações - se o regulamento do consórcio
estabelecia que a purgacão da mora devesse ser feita em moeda
corrigida, o mesmo critério deverá ser adotado em relação à devolução
das prestações ao consorciado excluído, embora em contrário dispuses-
se o regulamento - Princípio da boa-fé a nortear a interpretação
integrativa dos contratOS.{161} O CDC cuida expressamente dos contratos
do sistema de consórcios na norma do art. 53, indiscutível, portanto,
sua inclusão no campo de aplicação do CDC. Neste sentido, pacifica
a jurisprudência a Súmula de n. 35 do STJ: "Incide correção monetária
sobre as prestações pagas, quando da sua restituição, em virtude da
retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio".
Discutível, por sua vez, a inclusão do contrato de leasing, no
campo de aplicação do CDC. Se nas edições anteriores, por uma visão
finalista do campo de aplicação do CDC, tendíamos a considerar este
sempre um contrato de natureza mercantil pura, hoje a sua multi-
plicação no mercado brasileiro de consumo não mais nos permite
esta clara exclusão. O contrato de leasing, regulado como arrenda-
mento mercantil,{162} está sendo utilizado como contrato de consumo
simples de pessoas físicas, especialmente no caso do leasing de
computadores, leasing de eletrodomésticos e, especialmente, leasing
* (161) Decisões citadas in RT 661/142.
(162) Veja em leasing interempresarial, negando a aplicação do
CDC, TAPR, in
RT678, p. 180. (p. 208)
de automóveis.{163} Nestes casos, se a empresa de leasing, que é
fornecedora, estiver frente a um consumidor stricto sensu, em especial
uma pessoa física, o contrato estará incluído no campo de aplicação
do CDC. O leasing realmente mercantil, entre dois comerciantes e
para fins comerciais, está excluído, podendo apenas ser incluído por
ação do art. 29 do CDC ou de tratamento analógico.

g) Contratos de fornecimento de serviços públicos - Uma das


grandes novidades do sistema do CDC é incluir as pessoas jurídicas
de direito público entre os fornecedores, no caso dos serviços públicos
que a elas competem (art. 175, CF), prevendo expressamente, no art.
22 do CDC, um dever dos órgãos públicos, de suas empresas,
concessionárias ou permissionárias de fornecer "serviços adequados,
eficientes, seguros e quanto aos essenciais, contínuos".{164} O Direito
administrativo já conhecia a faute de service,{165} baseada, porém, na
culpa, também o dever de continuidade; o CDC inova ao impor-lhes
um dever legal de adequação,{166} como a todos os outros fornecedores
veja Cap. IV, 2.1).
Como conseqüência do art. 3.º do CDC os contratos firmados entre
os consumidores (destinatários finais) e os órgãos públicos e suas
* (163) Sobre o tema do leasing de automóveis, veja a análise de
Ghersi/Muzio,
p. 145 e ss.
(164) Veja-se decisão do TJBA, in RT 729/261.
(165) Assim ensina Adalberto Pasqualotto em seu trabalho,
Serviços Públicos, em
que examina detidamente o tema e que seguiremos nesta exposição. Veja
tb. sobre a relação entre as normas do Direito Civil e o Direito Adminis-
trativo, o mestre Cirne Lima.
(166) Nesta nova linha de adequação dos serviços prestados pelas
empresas
estatais, veja a interessante decisão do JECP/RS, com a seguinte ementa:
"Telefone. Instalação. Companhia Riograndense de
Telecomunicações.
Retardo na instalação de ramal telefônico. Firmado o contrato de partici-
pação financeira, a CRT resta obrigada a instalar o ramal telefônico no
prazo
estabelecido, desde que o promitente-assinante tenha cumprido a sua
prestação pecuniária. A alegada falta de condições técnicas para fazê-lo,
não
Configura motivo de força maior aos efeitos de justificar o
inadimplemento,
em especial quando mais de um ano se decorreu entre a data do ajuste e
instalação prometida. Sentença confirmada por seus próprios fundamen-
tos.( Recurso n. 1.050/366/92, Erexim, Rel. Dr. Roberto Laux, 1.ª Câmara
Recursal, 24.9.92). (p. 209)
empresas também podem, em princípio, ser considerados de consumo.
O regime, porém, dos contratos concluídos com a Administração é
especial, mesmo se regidos por leis civis, não perde a relação seu
caráter
dito de "verticalidade", reservando-se a Administração faculdades que
quebram o equilíbrio do contrato. Se poderão as normas do CDC
reequilibrar, na prática, esta relação é uma pergunta difícil. Certo é
que
cabe à Administração cumprir as leis, e em realidade, o CDC impõe a
ela e a seus concessionários enquanto fornecedores de serviços e
eventualmente de produtos, deveres específicos, muitos deles relaciona-
dos ao equilíbrio do contrato, como veremos a seguir (Capítulos III e
IV). A nova disciplina dos contratos de fornecimento de serviços
públicos deverá conciliar as imposições do Direito Constitucional, com
a proteção do consumidor e as prerrogativas administrativas.
A jurisprudência tem demonstrado alguma dificuldade em con-
ciliar estes ideais. As decisões, especialmente sobre o não cumprimen-
to dos prazos contratuais na entrega de linhas e telefones, variam de
Estado, para Estado da Federação,{167} alguns impondo (com função
satisfatória e preventiva) efetivas multas diárias pelo descumprimento
contratual (art. 84, CDC).{168} Polêmica igualmente a penhorabilidade
(Lei 8.009/90) da única linha telefônica.{169}
* (167) Em sentido contrário ao decidido no Rio Grande do Sul,
veja a interessante
construção da justiça paulista de forma a exonerar a TELESP de respon-
sabilidade, in RT695/103 e o leading case, in RT 672/1117, (Ap. 177.152-
2/8 - 12.ª C. TJSP, j. 6.8.91, Rel. Des. Luiz Tâmbara):
"Linha telefônica - Instalação e funcionamento - Condicionamento
à
inocorrência de motivos impeditivos de ordem técnica - Cláusula simples-
mente potestativa, suspensiva do contrato, pois dependente de
circunstârl-
cias externas à vontade da parte - Cumprimento da prestação esperada
exigível somente após verificação do evento condicional suspensivo -
Inteligência e aplicação do art. 118 do CC e da Portaria 663/79 do
Ministério das Comunicações.
A subordinação da instalação e funcionamento de linha telefônica
à
existência de condições técnicas, por depender de circunstâncias externas
à vontade da parte, caracteriza cláusula simplesmente potestativa,
suspensivl
do contrato. Assim, antes de se verificar o evento condicional
suspensivo,
o titular do direito eventual não pode exigir o cumprimento da prestação
esperada, nos termos do art. 118 do CC;" em sentido contrário j. 9.5.91,
6.ª C. Civ. TJSP, in IOB, n. 13/91, p. 276.
(168) Assim sobre o leading case da Magistrada de Guaíba, Juíza
Rosane Wanner
da Silva, no Juizado de Pequenas Causas: (p. 210)
Relembre-se que, pela definição de serviços do art. 3.º do CDC,
somente àqueles Serviços pagos, isto é, como afirma o § 2.º, "mediante
remuneração", serão aplicadas as normas do CDC. Em uma interpre-
tação literal da norma, os serviços públicos uti universi, isto é,
aqueles
prestados a todos os cidadãos, com os recursos arrecadados em
impostos, ficariam excluídos da obrigação de adequação e eficiência
previsto pelo CDC. De qualquer maneira, interessa ao nosso estudo
somente aqueles serviços prestados em virtude de um vínculo contra-
tual, e não meramente cívico, entre o consumidor e o órgão público
ou seu concessionário.{170} Assim, aqueles referentes ao fornecimento de
água, energia elétrica, gás, telefonia{171}, transportes públicos,
financia-
mento, construção de moradias populares etc.{172}
Pelo exemplo argentino, observa-se que a privatização de alguns
destes serviços não dilui a posição monopolista do fornecedor e nem
ajuda na proteção e realização dos direitos dos consumidores.{173}
* "CRT. Contrato de instalação de telefone. Prazo. Mesmo conside-
rando-se que a instalação dos terminais se daria "a partir de" um mês
certo, o cumprimento dessa obrigação não pode ficar ao inteiro dispor
do vendedor. Razoável o critério da sentença que utilizou o prazo de
noventa dias contados do mês fixado, mesmo prazo válido para a rescisão
do contrato por inadimplência dos compradores. Redução do valor da
multa ao teto da alçada do juizado" (Recurso n. 39/93, Rel. Wilson
Carlos Rodycz, 3. Câmara Recursal/RS, Guaíba, negaram provimento,
unânime, 25.3.93).
(169) Recurso Especial 0098661/SC, 4.ª T., j. 16.12.1996, Rel.
Min. Ruy Rosado
de Aguiar: "Execução. Penhora. Lei 8.009/1990. Linha telefônica. A
impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/1990 não se estende ao direito de
uso de linha telefônica. Código de Defesa do Consumidor. Vigência. O CDC
não se aplica aos contratos celebrados anteriormente a sua vigência".
(170) Como explico na apresentação da obra de Bonatto/Moraes, p.
15 , não
visualizo base ou motivo legal para diferenciar entre diversos tipos de
taxas
e outros serviços prestados uti singuli, que considero todos incluídos no
âmbito de aplicação do CDC.
(171) Veja sobre telefonia a Súmula 193 do STJ: "O direito de uso
de linha
telefônica pode ser adquirido por usucapião".
(172) Paula, p. 407, prefere denominar estes de "serviços
públicos comerciais e
industriais".
(173) Assim Ghersi, Contratos Telefónicos, p. 7. (p. 211)
No Brasil, criadas agencias que visam também a proteção dos
consumidores,{174} os novos contratos envolvendo a prestação de servi-
ços telefônicos têm apresentado problemas. entre eles os condomínios
de linhas telefônicas, geralmente gerenciados por pessoa privada, cujos
pré-contratos ou contratos denominados de "contratos onerosos de
cessão temporária de uso de linha telefônica" incluem uma série de
cláusulas abusivas e garantias não compatíveis com esta "locação
múltipla disfarçada".{175} lgualmente problemáticos são os novos "servi-
ços-passatempo" ou serviços de caráter "informativo" ou "erótico"
oferecidos pelas companhias telefônicas oficiais aos seus assinantes e
com altas taxas de utilização.{176}
Nas relações entre o consumidor e o prestador de serviços
tipicamente públicos de primeira necessidade dois pontos de discórdia
podem ser identificados: a tendência, hoje amenizada pela ação da
jurisprudência, de impor mudanças unilaterais, inclusive por
Portaria,{177}
prejudicando a posição já vulnerável do consumidor{178} e, em segundo
* (174) Assim o art. 3º da Lei 9472/97 que cria a Anatel - Agência
Nacional de
Telecomunicações menciona especialmente os direitos do "usuário" de
serviços de telecomunicações.
(175) Contra estes novos contratos, que muitos danos têm causado
aos consumI-
dores, o Ministério Público de Minas Gerais moveu ação civil pública para
declarar em abstrato a abusividade das cláusulas (Proc. 024940672280, de
13.9.94).
(176) O Ministério Público de São Paulo moveu ação civil pública
contra a TELESP
por seu serviço "Tele 900", que inclui serviços que consistem na
reprodução
de mensagens eróticas (Tele Andrógeno, Disque erótico, Tele Fantasia
etc.)
e mensagens destinadas ao público infantil (Disque Criança, Tele Mônica,
Tele
Angélica etc.), acompanhados de intensa campanha publicitária, os quais
não
constituem serviço típico público e levam ao superendividamento do consU-
-
midor/assinante, especialmente pela ação das crianças.
(177) Assim a Portaria 508/97 em seu art. 1, tenta impedir que a
titularidade de
Assinatura do Serviço Telefônico, a partir de 1 de novembro de 1997, seja
transferida por mais de uma vez. O caso está sub judice, por ação civil
pública
do Ministério Público Federal, justamente alegando ofensa ao CDC e a
direitos adquiridos (ver Súmula 473 do STF), onde foi concedida a tutela
antecipada, in Proc. 97.004171-3. Juízo Federal da 18ª Vara. São Paulo,
27.10.97.
(178) Exemplo destas mudanças unilaterais não comunicadas ou
decididas em
conjunto são as chamadas "linhas compartilhadas", hoje comuns nas (p.
212)
lugar, a forma de cobrança dos créditos, com cortes imediatos ou
sistemáticos do fornecimento destes serviços.{179}
No âmbito dos contratos envolvendo serviços normalmente pú-
blicos, efetivamente, a aplicação do CDC tem encontrado dificuldades
mais fáticas do que jurídicas. há que pensar em uma melhor utilização
do direito de efetiva reparação dos danos morais coletivos, assegurado
pelo art. 6.º, VI, do CDC, como resposta pedagógica e satisfativa a estas
reiteradas agressões a cultura geral.{180} A jurisprudência reagiu
afirman-
do que não gozam de presunção de verdade os débitos imputados aos
consumidores pelos concessionários de serviço público;{181} há que
destacar a importante contribuição que o Ministério Público e as
Associações de Defesa do Consumidor têm prestado, procurando
solucionar os problemas no nível metaindividual, através de ações civis
públicas.{182}
*grandes cidades. Sobre a simples substituição do sistema telefônico,
veja
a seguinte decisão:
"Telefone. Substituição do sistema. A substituição do sistema
telefô-
nico não automático pelo automático decorre do progresso da ciência e
das necessidades sociais e não se transfere como encargo, mas como
benefício ao usuário que esteja em dia com os serviços contratados. Apelo
improvido" (Rec. 238/92, Rel. Dr. João Abílio de Carvalho Rosa, 3.ª
Câmara Recursal/RS, Porto Alegre, 25.3.93).
(179) Veja o leading case do TJPR, Rel. Des. Neli Calixto,
reproduzido in RT696/
171, onde na ementa oficial se lê: "Tratando-se de serviço de utilidade
pública e devendo a administração direta ou indireta obedecer, entre
outros,
os princípios da legalidade e moralidade (cf. CF, arts. 5.º, II, e 37,
caput),
afigura-se inadmissível o seu cancelamento em prejuízo do usuário, por
temporária falta de pagamento da tarifa, mesmo porque, em face do elevado
valor comercial do direito de uso de linha telefônica, aquele ato em tais
circunstâncias importaria em autêntica expropriação sem a correspondente
indenização, além de violar o Código de Defesa do Consumidor (cf, arts.
3.º,
51, II, IV, XI, XV, e seu § 1º, I, II e III)"; veja na Parte II, o número
2.5 sobre
os novos paradigmas em caso de cobrança de dívida dos consumidores.
(180) Sobre o tema do dano moral coletivo, veja Bittar, Revista
de Direito do
Consumidor, v. 12, p. 60.
(181) Assim veja JECP/RS Proc. 01598512240, j. 15.4.98, J.
Guinther Spode,
em processo envolvendo contas de luz, na mesma linha, decisões no Proc.
01598512984 da mesma data e mesmo relator, envolvendo contas astronô-
micas de telefone.
(182) Destaque-se aqui a decisão do TJRS, Ap. Civ. 591016738, 1.ª
C. Civ., j.
19.11.91, Rel. Des. Elias Mansour: "Ação civil pública - Conceito de (p.
213)
Por fim, cabe mencionar que em nossa opinião os serviços
públicos gratuitos relacionados como o ensino, como os fornecidos por
escolas e universidades públicas, não se inserem como relações de
consumo. A contrario sensu, porém, quanto à relação Escola/Univer-
sidade Privada - estudante e seus representantes legais, caso menores,
a sua caracterização como relação de consumo{183} visando a prestação
de serviços de ensino não apresenta maior problema.{184} Note-se, porém,
que a legislação específica impõe regras igualmente de ordem pública
e pode impor uma determinada porcentagem (10%) para a legitimação
de ações discutindo modificações curriculares ou valores das mensa-
lidades. Segundo a jurisprudência majoritária trata-se de interesses
individuais homogêneos,{185} o que tem dificultado a justa atuação do MP,
amparado no art. 81, parágrafo único, III do CDC e art. 82, com
legitimação extraordinária.
Nota-se, igualmente, na jurisprudência uma clara distinção entre
os prestadores públicos de ensino e as empresas particulares de ensino,
distinção que tem sua origem na gratuidade da prestação de serviço
público de ensino nas escolas e nas Universidades Federais (art. 3.º,
§ 2.º do CDC),{186} tendendo a exigir das escolas e universidades
privadas
*consumidor - Presença de interesse público e/ou difuso - Legitimidade
do Ministério Público - Aplicação do Código de Defesa e Proteção ao
Consumidor. Ação contra a C.R.T. envolvendo a mudança de sistema de
telefonia pela adoção de novas centrais, que teriam resultado em prejuízo
ao uso do serviço telefônico. Recurso provido." Mencione-se igualmente a
ação pioneira do Ministério Público de Pernambuco contra o corte de
energia elétrica como forma de cobrança de dívidas e contra as altas
multas
moratórias praticadas pelo serviço público, inicial reproduzida in
Direito
do Consumidor, v. 6, pp. 289 e ss.
(183) Assim, considerando relação de consumo submetida ao CDC,
veja Recurso
Especial 103301-MG, j. 27.11.96, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.
(184) Assim LEX-RJTJSP, 136, p. 42, onde o Des. Lobo Júnior
esclarece:
"Parece não haver dúvida de que os alunos se enquadram no elenco dos
consumidores quando se considera a prestação de serviços das escolas
privadas e o correspondente pagamento das mensalidades".
(185) Exemplo desta linha jurisprudencial são as decisões do TJSP
reproduzidas
na integra in RT 697/64 e LEX-RJTJSP 136/38.
(186) Correto, neste sentido, o posicionamento do TRF da 4ª
Região, quando
referindo-se à Universidade Federal preleciona a inexistência de direito
adquirido ao "currículo escolar" à época da entrada na Universidade (p.
214)
uma atuação conforme a boa-fé com Os seus consumidores,{ especial-
mente no que tange aos instrumentos de pressão em caso de não
pagamento{187} e nas revisões e aditamentos contratuais.{188}

h) Compra e venda e suas cláusulas - A compra e venda é o


contrato por excelencía da sociedade de consumo, pois permite a
movimentação das riquezas, dos bens, dos produtos, A compra e venda
está presente vinculando os fornecedores da cadeia de produção
(fabricante, montador, distribuidor comerciante) e está presente vincu-
lando consumidor e seu parceiro contratual, o qual denominamos aqui
de fornecedor-direto. No direito brasileiro, a compra e venda é um
contrato sinalagmatico, em que uma pessoa (no caso, o fornecedor)
obriga-se a transferir a outra o domínio de um determinado produto,
mediante o pagamento de determinado preço (art. 1.122 do CCB). A
inclusão do contrato no campo de aplicação do CDC dependerá da
caracterização ou não das partes como consumidor e fornecedor.
Na sociedade de consumo atual, a compra e venda pura e
simples reduziu-se aos chamados contratos "do dia-a-dia", contratos
*Pública. Da ementa do Relator, Juiz Sílvio Dobrowolski (LEX-STJ-TRF, 44/
461): "A Universidade pode alterar os currículos de seus cursos, porque
sua
relação com os estudantes não é contratual, mas estatutária Ao
implementar
as modificações terá, no entanto, de respeitar os créditos obtidos e os
efeitos
das disciplinas cursadas. Hipótese em que a submissão à mudança
curricular
resultou de atraso nos estudos, atribuível ao aluno, Denegação da
segurança
impetrada para afastar a exigência da alteração curricular".
(187) Nesse sentido a decisão do JECP/RS, que passamos a
reproduzir. Note-se
que a generalização de práticas contrárias à boa-fé levou o executivo a
incluir
no art. 5.º da MP 524, de 7.6.94, regra proibindo a "suspensão de provas
escolares, a retenção de documentos de transferência, o indeferimento de
renovação das matrículas dos alunos ou a aplicação de quaisquer
penalidades
pedagógicas ou administrativas, por motivo de inadimplência".
A ementa da decisão: "Universidade. Cancelamentos de matrícula e
devolução da parcela paga a título de mensalidade. Havendo cancelamento
total da matrícula, assiste ao estudante o direito à devolução do
pagamento
feito por conta da semestralidade, desimportando aviso em contrário
Constante de "Agenda Acadêmica", para evitar o enriquecimento indevido
do estabelecimento pois nenhum serviço foi nem será prestado. Recurso
improvido" (Rec. 142/93, Rel. Dr. Domingos dos Santos, 3.ª Câmara
Recursal, j. 23.6.93).
(188) Exceção feita ao crédito educativo, veja LEX-STJ/TRF
52/442. (p. 215)
referentes à transferência de propriedade dos bens necessários à
sobrevivência e aos chamados contratos de bagatela. Hoje, utiliza-
se para a aquisição de bens de consumo duráveis e produtos de
grande valor a compra e venda condicionada (geralmente, venda sob
reserva de domínio) e a compra e venda com alienação fiduciária.
Estes dois modelos para a alienação de produtos merecem a nossa
atenção, uma vez que já analisamos anteriormente a utilização do
sistema de consórcios e os contratos bancários e de financiamento
em geral.
A cláusula de reserva de domínio estipulada em contrato de
compra e venda de bens de consumo é ainda comum no Brasil, como
forma de garantia nas vendas a prazo. Através deste pacto o fornecedor
reserva para si o domínio (propriedade) do produto vendido até o
momento em que o consumidor realize o pagamento total do preço. A
transferência definitiva da propriedade fica suspensa, através desta
condição, restando o consumidor somente com a posse do bem. A ratio
do instituto é facilitar ao fornecedor reaver o bem, em caso de
inadimplemento (art. 1 .070 do CPC), mas na prática o instituto não tem
se mostrado tão eficaz, enquanto garantia de vendas a prazo, eis porque
o recurso à alienação fiduciária.

i) Compra e venda com alienação fiduciária - A alienação


fiduciária em garantia foi instituída na lei que disciplinou o mercado
de capitais.{189}} A alienação fiduciária em garantia tem como função
principal garantir as operações realizadas pelas empresas de financia-
mento e investimento, popularmente conhecidas como "financeiras",
interessando-nos em especial o chamado "crédito direto ao consumi-
dor". Deixamos para analisar o tema da alienação fiduciária conjun-
tamente com o contrato de compra e venda e não com os antes
estudados contratos de financiamento, justamente, para frisar que o
consumidor comum, ao realizar uma compra e venda em prestações
não tem presente o fato de estar fechando também um contrato de
financiamento. A sociedade atual caracteriza-se por estas relações
complexas, triangulares, envolvendo não só o fornecedor-direto e o
consumidor, mas outros fornecedores-auxiliares, como no caso da
comum compra e venda de bens de consumo com alienação fiduciária.
* (189) Veja Lei 4.728, de 14.7.65 e as complementações trazidas
ao seu art. 66
pelo Dec.-lei 911, de 1.10.69. (p. 216)
O tema é de tamanha importância no mercado brasileiro que de 1991
até hoje o STJ já elaborou três súmulas sobre o assunto.{190}
A financeira presta um serviço ao consumidor, ao conceder-lhe
um crédito que permitirá a aquisição de um bem durável; sua carac-
terização como fornecedor não oferece, portanto, maior dificuldade, A
caracterização do consumidor como o destinatário final fático do
serviço prestado pela financiadora também é pacífica. O contratante
pode, porém, não ser o destinatário final econômico do crédito,
dependendo este fato da destinação a ser dada ao bem durável adquirido
no contrato de compra e venda com alienação fiduciária. A alienação
seria assim um pacto acessório ao da compra e venda para a caracte-
rização como contrato de consumo. Note-se que a lei específica sobre
a alienação fiduciária possui uma definição mais ampla de quem seja
o consumidor, isto é, daquele que pode se beneficiar do chamado
"crédito direto ao consumidor", sendo provável que a
jurisprudência,
tendo em vista o caráter de adesão do contrato e o que dispõem os arts.
7º e 52 do CDC, amplie a definição de consumidor para considerar
todos os contratos de compra e venda com alienação fiduciária
como
contratos de consumo por natureza, logo submetidos ao CDC.
As operações da financiadora, no chamado crédito direto ao
consumidor, e que impõe uma relação contratual entre o consumidor e
a financiadora-fornecedora, são duas: a) financiamento direto ao consu-
midor; e b) financiamento com interveniência do fornecedor-vendedor.
No crédito direto, há negócio jurídico entre a financeira e o
consumidor, para que este possa pagar ao fornecedor-vendedor, exigin-
do o financiador como garantia obrigatória a alienação fiduciária, a
favor da financeira, do bem que este adquiriu. A operação de crédito
direto ao consumidor desdobra-se em dois negócios jurídicos, um
contrato de abertura de crédito e um negócio cambial (letras de câmbio
sacadas pelo consumidor para aceite pela financiadora).{191}
* (190) Segundo a Súmula 28 do STJ, o "contrato de alienação
fiduciária em
garantia pode ter por objeto bem que já integrava o patrimônio do
devedor".
Já a Súmula 72 do STJ assevera: "A comprovação da mora é imprescindível
a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente" E complementa a
Súmula 92 do STJ: "A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação
fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor".
(190) Veja detalhes em Orlando Gomes, Alienação Fiduciária em
Garantia, S.
Paulo, RT, 1982. (p. 217)
No financiamento com interveniência do vendedor, muito comum
no mercado, a financeira exige não só a alienação fiduciária do bem
durável em seu favor, mas também que o vendedor se coobrigue pelos
títulos emitidos pelo consumidor, como reforço da garantia.
Repitam-se aqui as observações feitas anteriormente sobre a Lei
9.514 de 20 de novembro de 1997, que ao instituir o Sistema
Financeiro Imobiliário passou a permitir no país a alienação fiduciária
de imóveis, já comentada na letra a deste número.

2. Contratos de consumo e conflito de leis no tempo

Parece-nos importante, nesta terceira edição, aprofundar o estudo


dos casos de conflitos de leis no tempo, ou conflito de normas
legislativas
aplicáveis aos contratos de consumo. A prática destes mais de três anos
de vigência do Código de Defesa do Consumidor demonstrou que
muitas discussões judiciais tem como ponto central a aplicação ou não
da lei protetiva do consumidor a determinado contrato de consumo sub
judice. Da aplicação ou não das normas protetivas do Código pode
depender, portanto, a decisão de tais controvérsias envolvendo contratos
entre fornecedores e consumidores.
Se na primeira edição já tecíamos algumas considerações sobre
os conflitos criados pela entrega em vigor do CDC, seja em relação
às leis anteriores, especialmente o Código Civil de 1916 e as leis
especiais, assim como sobre os reflexos subjetivos desta escolha da lei
aplicável, isto é, os efeitos da lei nova sobre os contratos já
existentes
antes da entrada em vigor do CDC; pedimos vênia, para analisar agora
mais detidamente a matéria, apesar de tema típico da Teoria Geral do
Direito, tendo em vista a sua grande importância prática.
Em verdade, sempre que ocorre uma renovação no sistema do
direito reacendem-se uma série de dúvidas na mente do aplicador da
lei.{192} Qual das leis, por exemplo, deve ele aplicar a determinada
relação
jurídica, a determinado contrato? Qual o verdadeiro campo de aplicação
(192) Como ensina Roberto de Rugiero, p. 164, "A pergunta: dada
uma relação
jurídica, qual a norma que se deve aplicar? corresponde à outra e
inversa:
dada uma norma jurídica, quais as relações que por ela são reguladas?
"...que assumem importância quando se deve escolher "entre duas
normas diferentes pertencentes ao mesmo sistema, mas emanadas
sucessivamente". (p. 218)
destas leis, que relações jurídicas pretendem regular? Há coincidência
entre o campo de aplicação da lei nova e da lei anterior? E se há, serão
estas normas incompatíveis? Estaria a lei mais antiga revogada pela
mais nova? Não havendo revogação de nenhuma das normas, como
interpretá-las de forma integradora ou, se isto não é possível, como
preterir uma em relação a outra? Estando revogada ou superada pela
mais nova, deverá o intérprete da lei aplicá-la mesmo a relações
jurídicas
já iniciadas antes da entrada em vigor da lei nova ou somente as novas
relações assinadas após a mudança no ordenamento jurídico?
Estas dúvidas são quase cotidianas para o aplicador da lei, face
ao grande número de leis especiais e gerais existentes no Brasil. As
dúvidas mais comuns podem ser divididas em dois blocos, as primeiras
referem-se a determinação da vigência (ab-rogação, derrogação ou
continuidade das normas) das leis no sistema do direito atual e as
segundas referem-se a um aspecto de sua eficácia no sistema (campo
de aplicação, efeito imediato e retroatividade da lei).
Tendo analisado o campo de aplicação material e pessoal do CDC,
no número anterior, passamos agora a examinar os outros aspectos,
relembrando, sem nenhuma pretensão de exaustão, quais os critérios
e linhas fornecidos pela doutrina e jurisprudência para a solução dos
conflitos no sistema de direito brasileiro.
Os critérios para determinar a revogação ou a modificação das
normas, tema de nossa primeira parte, encontram-se positivados na Lei
de Introdução ao Código Civil (LICC), assim como são fornecidos pela
Teoria Geral do Direito; enquanto os reflexos subjetivos da entrada em
vigor de uma nova lei estão regulados tanto na LICC, como na
Constituição Federal, as quais protegem o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada.

2.1 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e conflitos de leis

Segundo alguns o conflito de leis no tempo é, em última análise,


um conflito de competências,{193} um conflito material entre as normas,
o qual só será solucionado através do conhecimento da natureza e das
características das leis em contradição aparente. Neste sentido, gosta-
* (193) A expressão é de Vicente Ráo, citada por Wilson de Souza
Batalha, Direito
Intertemporal, Rio, Forense, 1980, p. 187. (p. 219)
ríamos de iniciar nosso estudo abordando as características básicas do
CDC, enquanto norma jurídica inserida no sistema de direito brasileiro
e os reflexos que estas características podem ter no que se refere a sua
aplicação pelo intérprete. Em um segundo momento, gostaríamos de
analisar o papel da Constituição Federal na interpretação e na origem
do Código, tendo em vista os inúmeros reflexos hierárquicos que a
origem constitucional de um mandamento ou lei pode ter no direito
atual. Por fim, devemos analisar os critérios clássicos e modernos
colocados à disposição do aplicador da lei para solucionar as antinomias,
contradições ou conflitos no sistema.

a) Características do Código de Defesa do Consumidor e


reflexos
na sua aplicação - Como pudemos observar no primeiro capítulo deste
livro, constitui o Código de Defesa do Consumidor verdadeiramente
uma lei de função social,{194} lei de ordem pública econômica, de origem
claramente constitucional. A entrada em vigor de uma lei de função
social traz como conseqüência modificações profundas - e por vezes
inesperadas - nas relações juridicamente relevantes na sociedade.
Visando tutelar um grupo específico de indivíduos, considerados
vulneráveis às práticas abusivas do livre mercado, esta nova lei de
função social intervém de maneira imperativa em relações jurídicas de
direito privado, antes dominadas pelo dogma da autonomia da vonta-
de.{195} O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1.º ao
dispor que suas normas dirigem-se à proteção prioritária de um grupo
social, os consumidores, e que constituem-se em normas de ordem
pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de
interesse social, pois, como ensinava Portalis, as leis de ordem pública
* (194) Utilizamos a expressão "lei de função social" pela
primeira vez em nosso
artigo, "A Responsabilidade do Transportador Aéreo pelo Fato do Serviço
e o Código de Defesa do Consumidor - Antinomia entre norma do CDC
e de leis especiais", in Direito do Consumidor, v. 3, p. 154 e ss., fonte
que será utilizada para muitas das observações aqui reproduzidas.
Relembre-
se, porém, que todo Direito tem função social: o direito é um dos
sistemas
parciais, logo a expressão aqui utilizada deve ser entendida, não como
uma
repetição da própria essência da norma, mas como destaque de uma
característica ímpar de determinadas leis, que cumprem com a função
social do direito privado (veja Larenz/Metodologia, p. 47).
(195) Sobre a crise do dogma da autonomia da vontade, veja o
primeiro capítulo
desta obra, em especial, pp. 70 e ss. (p. 220)
são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos
particulares.{196}
As leis de função social caracterizam-se por impor as novas
noções valorativas que devem orientar a sociedade{197} e por isso optam,
geralmente, em positivar uma série de direitos assegurados ao grupo
tutelado e impõem uma série de novos deveres imputados a Outros
agentes da sociedade, os quais, por sua profissão ou pelas benesses que
recebem, considera o legislador, que possam e devam suportar estes
riscos.{198} São leis, pOrtanto, que nascem com a árdua tarefa de
transformar uma realidade social, de conduzir a sociedade a um novo
patamar de harmonia e respeito nas relações jurídicas. Para que possam
cumprir sua função, o legislador costuma conceder a essas novas leis
um abrangente e interdisciplinar campo de aplicação.
Consequência direta deste amplo campo de aplicação é o choque
entre estas novas leis de função social, como o Código de Defesa do
Consumidor, e as normas e dogmas da legislação anterior. Este
confronto não pode ser evitado pelo aplicador do direito, não pode ser
desconhecido pelo agente econômico, cuja conduta a nova lei regula.
O confronto integra a própria finalidade da nova lei, que vem impor
uma nova conduta, transformar a própria realidade social.
A opção brasileira foi de elaborar, na "idade da
descodificação",{199}
um novo Código. Ora, o Código significa um conjunto sistemático e
* (196) Apud Georges Ripert, "L’ordre économique et la liberté
contractuelle", in
Mélanges Offert à Genv, Paris, 1959, p. 347.
(197) Como ensina Niklas Luhman, Sociologia do Direito II, p.
121, nem sempre
as "noções valorativas orientadoras de uma sociedade costumam ser
codificadas juridicamente no sentido positivo e técnico", basta lembrar,
no
caso brasileiro, a não inclusão do princípio da boa-fé (objetiva) no
Código
Civil Brasileiro e sua atual inclusão no Código de Defesa do Consumidor
(arts. 4º, III, e 51, IV).
(198) Veja nesse sentido os artigos iniciais do CDC, arts. 4.º a
6.º.
(199) A expressão constitui o título da famosa obra de 1979 do
italiano Natalino
Irti (L’età della decodificazione), na qual previa o fim das codificações
que marcaram os sécs. XVIII e XIX. Os códigos superados pelas leis
esparsas passariam a fonte residual do direito privado. Apesar de
realista
a observação, contra ela levantaram-se autorizadas vozes, no XI Con-
gresso da "Académie de Droit Comparé, em 1982, em Caracas,
alertando que legislar em forma de Código trazia em si muitas vantagens,
veja Sacco, pp. 117-135. (p. 221)
logicamente ordenado de normas jurídicas,{200} guiadas por uma idéia
básica,{201} no caso do CDC, a defesa de um grupo específico de pessoas,
os consumidores. É esta a linha básica que une matérias tão diversas,
cuja necessidade de regulamentação nasceu da prática da sociedade de
massas, normas pensadas topicamente, mas legisladas sob a égide de
uma finalidade comum, sob o manto de princípios comuns. O CDC
enquanto codificação, se bem que parcial, é sistematicamente organi-
zada, destacando-se os três capítulos iniciais como os mais importantes
de seu sistema, a definir seu campo de aplicação, os objetivos e
princípios básicos da lei e os direitos básicos do consumidor.
Se ser Código significa ser um sistema, um todo construído e
lógico,{202} um conjunto de normas ordenado segundo princípios,{203}
sendo assim, não deve surpreender o fato da própria lei indicar em seu
texto os objetivos por ela perseguidos, facilitando em muito a inter-
pretação de suas normas e esclarecendo os princípios fundamentais
que a conduzem.{204}
Neste sentido, destacamos aqui novamente a importância do art.
4º do Código de Defesa do Consumidor, o qual constitui norma-guia
da interpretação de todo o Código, ou como ensina o mestre paulista
* (200) Assim a definição de Nolde: "La Codification pourrait être
définie comme
la création de "système" de régles de droit logiquement unifiées", citado
por Erik Jayme, "Considerations historiques et actuelles sur la
codification
du Droit International Privé", in Recueil des Cours de LA Académie de la
Haye, n. 177 (1982, IV), p. 23.
(201) Veja Wieacker, p. 39 e ss., sobre as tendências mais
atuais: "Questions of
Civil Law Codification", Institute for Legal and Administrative Sciences/
Hungarian Academy of Sciences (ed.), Budapeste, 1990.
(202) Esta idéia de totalidade construída, organizada
logicamente, ganhou em
importância no direito com o jusnaturalismo dos sécs. XVII e XVIII e em
especial, com o positivismo científico do séc. XIX, veja a interessante
obra
de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Conceito de Sistema no Direito, de 1976.
(203) Esta é a definição de sistema retirada por Canaris dos
ensinamentos de Kant,
veja Canaris, p. 10.
(204) Como ensina Amaral, p. 96, a noção de sistema nos pode ser
útil, pois
"permite que o fenômeno jurídico, à semelhança do que vem sendo feito
no âmbito das demais ciências sociais, seja apreciado como um conjunto
harmônico, unitário, coerente de normas jurídicas, constituído em função
de valores e princípios emergentes da realidade social...". (p. 222)
"norma objetivo",{205} a determinar a visão teleológica, finalista das
outras normas presentes no CDC, impregnando o Código com sua
ratio, com a finalidade protetiva do consumidor que o legislador
desejou alcançar ao editar a lei nova.{206}
Da mesma maneira, o método escolhido pelo legislador do CDC
para alcançar as suas finalidades protetivas foi ousado, optando, como
mencionamos anteriormente pela imposição de novos e rigorosos
deveres.
Destacamos a especialidade do método escolhido pelo CDC, pois,
se a lista do art. 6º do CDC traz os "direitos" que podem se subjetivar
no consumidor, o desenvolvimento de todos estes direitos no corpo do
CDC será de forma a impor "deveres" ao fornecedor, assegurando
assim ao consumidor (e aos órgãos auxiliares, públicos e privados) a
possibilidade de compelir aquele fornecedor que está contrariando a
norma objetiva a cumpri-la, através de ações coletivas e ações indivi-
duais.
Ao mesmo tempo, o método de imposição de deveres legais retira
do consumidor o poder de (através de contrato) liberar o fornecedor
de seu dever.{207} O dever é legal, uma vez que imposto por norma
jurídica, norma de ordem pública, logo, indisponível por vontade das
partes. Superada a idéia de Código do séc. XIX, de conjunto de normas
completo e final ("endgültiges und lückenlöses Werk"),{208} o CDC
* (205) Veja os ensinamentos de Grau, "Direito", p. 153, veja
também, do mesmo
autor a conferência, "Interpretando o Código de Defesa do Consumidor:
Algumas Notas", in Revista de Direito do Consumidor 5/185.
(206) Assim concorda o mestre paulista Alcides Tomasetti Júnior,
que também as
considera normas de interpretação, in "O Objetivo de Transparência", p.
12.
(207) A origem, em última análise, do dever do fornecedor não é o
direito
subjetivo do consumidor, mas a lei imperativa. É uma obrigação imposta
pelo poder público a um ou mais agentes econômicos. Sobre a possibilidade
de a posteriori o consumidor ou as instituições legitimadas em caso de
ações coletivas transigirem quanto ao montante a ser pago (quantum da
reparação), veja com opinião afirmativa, Tupinambá Miguel Castro do
Nascimento, Responsabilidade Civil no Código do Consumidor, Rio, Aide,
1991, p. 57.
(208) As expressões são de Wieacker, p. 475, veja o nosso artigo,
"Rezeption",
p. 114. (p. 223)
representa uma codificação subjetivamente específica, uma codificação
parcial, uma codificação funcional e aberta.{209} Impondo ela novos
parâmetros de boa-fé e harmonia nas relações pode efetivamente
repercutir, através de suas cláusulas gerais e princípios, em todo o
sistema do direito brasileiro,{210} assim como, segundo o seu art. 7.º
deixa-se permear por qualquer outra lei protetiva do consumidor.
Como codificação aberta, afirma o citado artigo os direitos
previstos no CDC "não excluem outros" decorrentes "da legislação
interna ordinária". Outras leis especiais para a defesa do consumidor
existem, relembre-se aqui a Lei 8.002, de 14.3.90, que dispõe sobre
as sanções administrativas para a repressão de infrações atentatórias
contra os direitos do consumidor; ou a Lei 8.137, de 27.12.90, a qual
dispõe sobre "crimes contra as relações de consumo" e outras normas
todas de caráter penal ou o recente decreto regulamentador do próprio
CDC, o Dec. 861, de 9.7.93, estabelecendo normas gerais de caráter
exclusivamente administrativo. No sistema do CDC serão recebidas
também (e especialmente) as normas de proteção dos direitos do
consumidor constantes de leis civis especiais, tais como algumas da
nova lei de locações e outras. O CDC representa, portanto, o centro
de um novo sistema de tutela especial do consumidor, pois disciplina
de maneira mais clara e objetiva os princípios da nova proteção do
grupo social considerado vulnerável, mas ao mesmo tempo o CDC
não exclui as demais normas protetoras dos interesses do consumidor,
ao contrário, recebe-as como normas importantes à consecução de seus
objetivos.
O texto do art. 7.º, caput, é claro, não reivindicando para o CDC
a exclusividade dos "direitos" concedidos ao consumidor. Outra será
* (209) Esta parece ser a fase do direito atual, superado o
ceticismo quanto ao
declínio do pensamento sistemático, a infalível descodificação, evoluímOS
para considerar a realidade e positiva função do pensamento tópico e da
re-
etização do direito, a determinar necessariamente um sistema mais aberto,
com um maior número de "interfaces" de comunicação com os outros
sistemas parciais, veja Adriano De Cupis, II Diritto civile nella sua
fase
attualle: in Riv. Dir. Comm., LXVIII, pp. 421 a 440.
(210) Neste sentido já se manifestaram Ruy Rosado de Aguiar Jr.,
Antônio Janyr
Dall’Agnol e Judith Martins Costa, veja desta última interessante artigo
sobre o tema das cláusulas gerais, publicado na Rev. Inf. Legislativa, n.
112, out.-dez./91, pp. 13 a 32. (p. 224)
a posição se o Tratado, Lei ou Regulamento retira, limita ou impõe a
renúncia aos direitos, que o sistema do CDC assegura ao consumidor.
Neste caso, a aplicação do CDC será determinada por constituir-se no
corpo de normas que assegura, segundo os novos parâmetros e valores
orientadores, eficácia ao mandamento constitucional de proteção do
consumidor. Assegura-se, em última análise, através da norma do art.
7º, CDC, a aplicação da norma que mais favorece o consumidor.
Podemos, portanto, concluir, quanto às características básicas do
CDC que, apesar de formalmente uma lei (Lei 8.078/90), traz o CDC
em si uma organização codificada marcada nitidamente por uma idéia
centralizadora; o CDC já foi muito bem definido como um novo
microssistema{211} introduzido no direito brasileiro.

b) O Papel da Constituição Federal na interpretação e aplicação


do Código de Defesa do Consumidor - A Constituição Federal de 1988,
pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros,
dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identifican-
do-os como grupo a ser especialmente tutelado através da ação do
Estado (Direitos Fundamentais, art. 5.º, XXXII).{212}
Tendo em vista a nova importância prática e dogmática do texto
constitucional de 1988, é esta uma inovação surpreendente no ordena-
mento jurídico brasileiro e que traz profundos reflexos. Para determinar
a abrangência e a importância desta inovação devemos examinar, ainda
que rapidamente, a nova função da Constituição no Direito Privado.
A lei máxima, o ápice do sistema jurídico dos países democráticos
é, atualmente, a Constituição.{213} Nos sécs. XVIII e XIX, como vimos,
face a "fraqueza jurídica" da Constituição frente ao Liberalismo
dominante a às relações de força na Sociedade, possuía esta uma função
meramente negativa (a limitar o Estado). O centro do sistema do direito
era representado pelas codificações, em especial pelo Código Civil,
Com sua força científica, sistemática e completa, representando a
* (211) A expressão é usada por Nery/Anteprojeto, p. 272, citando
Orlando Gomes
e Natalino Irti.
(212) Assim tb. Toshio Mukai, p. 3 e ss. in "Comentários ao
Código de
Proteção do Consumidor", Art. 1.º, Juarez de Oliveira (Coord.), S. Paulo,
Saraiva, 1991.
(213) Veja os ensinamentos de Clavero, pp. 79-145 e Hesse, A
Força Normativa
da Constituição. (p. 225)
própria evolução da ciência do Direito. O intervencionismo Estatal, a
publicização do Direito Privado no séc. XX e idéia de Estado Social
resultarão no reconhecimento de uma função positiva da Constituição,
a determinar não só a abstenção do Estado, mas sua ação, a transfigurar
e impregnar como medida normativa todo o sistema do Direito.{214}
Atualmente não há mais dúvidas de que a Constituição representa
a norma máxima, o centro do próprio sistema do direito brasileiro.{215}
Sendo assim, é lógico que a Constituição, norma hierarquicamente
superior, sirva de guardiã e de centro irradiador das novas linhas
mestras do ordenamento jurídico. Estas linhas mestras constituem a
ordem pública de um país, a influenciar todas as leis daquele sistema
de direito.
O dinamismo e os interesses contraditórios presentes na atual
sociedade de massas desencadearam o aparecimento de um grande
número de leis esparsas, leis especiais, em um fenômeno que os
alemães denominaram de "EstiLhaçamento" do direito (Zersplitterung).{216}
Frente aos interesses contraditórios defendidos pelas leis especiais,
face
a generalização excessiva dos Códigos dos sécs. XVIII e XIX, a ciência
do direito teve que buscar a segurança da lei máxima, da lei hierarqui-
camente superior, para ali resguardar os valores que considerava mais
importantes para aquela sociedade. A Constituição toma assim o lugar
da Codificação maior. É o fenômeno denominado por Hesse da "Força
normativa da Constituição" que leva a Constituição a guiar, com suas
novas linhas mestras tanto o direito público quanto o direito
privado.{217}
O Direito Privado passa a sofrer uma influência direta da Cons-
tituição, da nova ordem pública por ela imposta e muitas relações
* (214) Nesse sentido as conclusões da citada Tese de Lobo e os
ensinamentoS
de Hesse, Raizer e Sacco.
(215) Considerando que o critério da hierarquia das normas em
conflito é um dos
critérios clássicos para a solução das antinomias, frisar a idéia do
direito
brasileiro enquanto sistema organizado, conjunto necessariamente coerente
de normas, com uma hierarquia própria, renova a importância da Consti-
tuição Federal como centro do sistema, a determinar que seus valores e
conceitos estivessem presentes e eficazes não em um só ramo do direito,
mas em todo o ordenamento jurídico.
(216) Veja a obra de Natalino Irti, p. 3.
(217) Veja a aula pioneira de Konrad Hesse, agora traduzida para
o português,
Hesse/Força, p. 5, assim como o instigante artigo de Clavero, p. 79 e SS.
(p. 226)
particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, obtém
uma relevância jurídica nova e um conseqüente controle estatal, que
já foi chamado de "publicização do direito privado".{218} Ao nosso estudo
interessa constatar que, a partir de 1988, a defesa do consumidor inclui-
se, assim, na chamada ordem pública econômica, cada vez mais
importante na atualidade, pois legitima e instrumentaliza a crescente
intervenção do Estado na atividade econômica dos particulares.
Tendo em vista a evolução do direito, como um instrumento de
mudança social, os direitos previstos no texto constitucional, tanto os
direitos políticos (os chamados direitos fundamentais de 1.ª geração),
quanto os direitos econômicos e sociais (direitos fundamentais de 2.ª’
e 3.ª gerações), passam a ter também uma eficácia "positiva". Se
tradicionalmente estas previsões constitucionais possuíam um efeito
meramente "negativo", no sentido de proibir o Estado de certas atitudes
frente aos cidadãos, agora tais previsões ganham uma nova força
"positiva", no sentido de obrigar o Estado a tomar certas atitudes,
inclusive a intervenção na atividade privada para proteger determinado
grupo difuso de indivíduos, como os consumidores.{219} Daí a tendência
do legislador moderno, que procura garantir a eficácia prática dos novos
direitos fundamentais do indivíduo, dentre eles os direitos econômicos,
através da inclusão destes "objetivos constitucionais" em normas
ordinárias de direito privado, como é o caso do próprio Código de
Defesa do Consumidor.{220}
No Estado Liberal do séc. XIX tal eficácia impositiva dos
direitos
assegurados no texto constitucional seria impensável, pois ao Estado
cabia Justamente o "não fazer", a função negativa antes mencionada,
e estas previsões nada mais seriam do que belas linhas programáticas
a depender da livre decisão, por conveniência e oportunidade, do Poder
Executivo. Hoje a intervenção determinada pela própria Constituição
diminui o espaço reservado para os particulares auto-regularem livre-
mente as suas relações negociais, isto é, limita a própria autonomia
* (218) Assim ensinou o mestre alemão Raizer, p. 11 e ss.
(219) Note-se que o art. 48 das Disposições Transitórias da
Constituição de 1988
determinava ao próprio legislador (poder independente do Estado) a
elabora-
ção de um "Código de Defesa do Consumidor", num prazo de 120 dias.
(220) Sobre a influencia do modelo intervencionista do direito
público no direito
privado em nosso século XX, veja o profundo estudo de Hans-Peter
Westermann, in AcP 178 (1978), pp. 151-226. (p. 227)
privada; diminuindo também o espaço de decisão do próprio Estado
e de seus tres Poderes, levados a legislar, executar e interpretar leis
conforme as linhas ordenadas pela Constituição.{221}
Ao nosso estudo interessa principalmente o fato da defesa deste
grupo difuso de indivíduos ter sido erigida a princípio limitador da
atividade eConômica (art. 170, V).{222} Efetivamente, prevê o art. 170 da
Constituição Federal de 1988, em seu caput, que a ordem econômica
tem como fundamento a livre iniciativa e como um de seus limites
constitucionais justamente a defesa do consumidor (inc. V), assim
como a livre concorrência (inc. IV). Concluindo, face a nova força da
Constituição, a determinar a ordem pública e a interpretação de todas
as normas do sistema, a coerência deste mesmo sistema exige que o
aplicador da lei harmonize os princípios constitucionais aparentemente
contraditórios como a defesa do consumidor e liberdade de iniciativa
econômica. A antinomia aqui é aparente e desejada pelo próprio
Constituinte, da tese e antítese nascerá a síntese: a interpretação do
ordenamento jurídico conforme a Constituição, a conseqüente
relativização de dogmas e postulados considerados absolutos, como a
própria autonomia da vontade nos contratos e a liberdade de contratar.
Relembre-se que a Constituição não se submete aos critérios normais
que determinam a vigência e a eficácia das leis no tempo. A ordem
constitucional, portanto, é o primeiro dos fatores e o hierarquicamente
mais forte a ser considerado pelo aplicador da lei.
A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como princípio e
direito fundamental a proteção do consumidor e indicou a elaboração
de um Código de Defesa do Consumidor, demonstrando a sua vontade
(e a necessidade) de renovar o sistema.
* (221) Autores alemães mais ousados chegam a denominar de Estado
"Pós-
Moderno", a organização estatal posterior a esta intervenção obrigatória,
caracterizada por uma nova consciência da necessidade de divisão de
riscoS
na sociedade e um ceticismo científico e político crescente, veja artigo
de
Norbert Reich, "Intervenção do Estado na Economia - Reflexões sobre a
pós-modernidade na teoria jurídica", in RDP 94, pp. 265 a 282.
(222) Concorda Fábio Konder Comparato, "Ordem Econômica na
Constituição
Brasileira de 1988", in RDP 98 (1990), p. 271, ensinando: "ordem
econômica privada é toda dominada pelo princípio da livre iniciativa e da
proteção à propriedade privada. A Constituição estabelece, no entanto,
algumas disposições limitativas dessa liberdade empresarial privada..."
(p. 228)

c) Os critérios de solução de conflitos de leis e suas


dificuldades
- Sempre que há a inclusão no sistema legal de um país um fato novo,
um novo corpo de normas ou de novos princípios cria-se para o
aplicador da lei a necessidade de analisar as contradições entre textos
legislativos novos e antigos ou entre os princípios orientadores da lei
atual e da lei anterior, resguardando assim a lógica do sistema e sua
atualização.
Como ensina Oscar Tenório, a vida das normas jurídicas não é
eterna; elaboradas para as relações dos homens em sociedade, têm o
seu destino condicionado ao subtractum social que elas disciplinam e
ordenam.{223} As mudanças na sociedade mais cedo ou mais tarde
refletem em mudanças na legislação em vigor ou em uma nova
interpretação dada a normas anteriores;{224} a própria sobrevivência de
normas "antigas" é um sinal de seu valor e da sabedoria das novas
linhas de interpretação impostas pelo Judiciário e pela doutrina.{225}
Na análise que agora se inicia duas expressões serão usadas
constantemente: conflitos de leis e antmnomias. Quanto à primeira, a
melhor expressão técnica e normalmente usada no Brasil é a de
conflitos de leis no tempo, contrapondo-se aos conflitos de leis no
espaço, matéria tratada pelo Direito internacional Privado. Neste
estudo, porém, gostaríamos de nos permitir usar também a expressão
menos técnica "conflitos de normas", com o intuito de melhor escla-
recer a natureza destes conflitos temporais. Esta redução pode ser
esclarecedora pois se duas "leis" estão em "conflito" para determinar
qual será aplicada a um caso, por exemplo, quanto a validade de uma
determinada cláusula contratual, se o intérprete conclui pela aplicação
de uma das leis (lei prevalente), tal conclusão parece determinar
"logicamente" a total exclusão de aplicação da outra lei, mesmo no que
se refere a outros temas, como o da interpretação do referido contrato
ou a existência ou não de um dever anexo, dever contratual de
informação etc. Na maioria dos casos, porém, a contradição existente
* (223) O. Tenório, p. 64.
(224) Sobre a tendência de introduzir cada vez mais no
ordenamento jurídico
de países de influência continental européia normas abertas ou cláusulas
gerais para facilitar esta evolução na interpretação e facilitar o
exercício
de concretude do juiz, veja Scarpelli, pp. 3 a 15.
(225) Assim concorda Georges Ripert, "les forces", p. 21,
referindo-se ao Code
Civil francês de 1804. (p. 229)
é apenas entre algumas disposições (normas) destas leis, continuando-
se a aplicar ambas as leis (a exceção das normas conflitantes) a um
mesmo caso concreto. A regra geral é, justamente, da continuidade das
leis no sistema.
Note-se que, de certa forma, a expressão técnica "conflitos de
lei
no tempo", pode confundir o aplicador da lei, pois ao frisar o elemento
temporal, pode levar a conclusão de que o conflito entre normas é
fenômeno sempre passageiro, momentâneo, que o legislador resolverá
ao esclarecer na lei nova, que normas das leis antigas estão revogadas,
bastando ao aplicador da lei verificar qual foi a solução encontrada para
manter a coerência do sistema legal. Se, porém, os poucos critérios
legais presentes na Lei de Introdução ao Código Civil foram pensados
como suficientes para que o aplicador das leis encontre a natural e
definitiva solução para os conflitos entre leis novas e antigas, sabe-se
que é raro o caso claro de revogação. Em geral, as leis e mesmo as
normas conflitantes continuam a ser reproduzidas, a ser aplicadas em
diferentes casos, muitas vezes o conflito (até por razões ideológicas)
não é suscitado e, quando suscitado, a solução é casuística, sendo rara
a solução definitiva no assunto.{226}
A solução definitiva, a que aqui nos referimos, seria a revogaçãO
de uma das leis, revogação total (ab-rogação) da lei ou revogação
somente de algumas das suas disposições (derrogação).{227} A revogação
é a morte da norma jurídica; significa tirar a força obrigatória, a
* (226) Dois outros aspectos podem aqui ser relembrados, que a
contradição entre
leis pode ser oriunda do "espírito" ou ratio contraditória e não da
contradição clara entre textos legais, e que a contradição pode
apresentar
se entre normas presentes até mesmo no mesmo corpo de normas, como
o Código Civil. No Direito Constitucional discute-se até hoje se é
possível
a contradição entre normas presentes na mesma Constituição, o que
levantaria o problema de constitucionalidade da Constituição. Certo é,
que
certas emendas constitucionais ou mesmo disposições transitórias já foram
consideradas inconstitucionais, frente aos princípios norteadores da
Cons-
tituição como um todo.
(227) Assim E. Espínola e E. Filho Espínola, A Lei de Introdução
ao Código Civil
Brasileiro comentada, v. 1, Rio, Freitas Bastos, 1943, pp. 74 e 75. A
LICC
de 1942 menciona ainda a possibilidade de "modificação" das normas, sem
que a doutrina esclareça exatamente o que significa esta modificação, se
uma derrogação ou se um terceiro gênero, diferente da ab-rogação e da
derrogação. (p. 230)
vigência de uma norma, por incompatível com as novas normas
impostas pelo legislador.{228}
Segundo dispõe o § 1.º do art. 2.º da Lei de Introdução ao Código
Civil, o conflito de leis no tempo pode resolver-se pela revogação
(parcial ou total) de uma das leis em conflito, se incompatíveis entre
si,
se uma regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior ou
pela
revogação expressa. A revogação expressa ocorre somente em casos
específicos e claros.{229} Nos demais casos, resta a revogação tácita, a
qual
exige para a sua determinação um exame muito atento do intérprete, em
virtude do disposto no § 2.º do referido art. 2.º da LICC, segundo o qual
"a lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já
existentes, não revoga nem modifica a lei anterior".
A regra no direito brasileiro é, como desejamos frisar, a da
continuidade das leis, forçando o intérprete, sempre e novamente, a
decidir-se pela aplicação de uma das normas. Iludem-se os que
consideram que a solução do conflito de leis viria somente do próprio
legislador,{230} sem a necessidade de uma maior atuação do intérprete.
Ao contrário, no mais das vezes, é o aplicador da lei que soluciona as
aparentes contradições no sistema do direito e casuisticamente.
O segundo termo técnico destacado é, pois, o de antinomia,
vocábulo que, no seu sentido original da teologia e da ciência do
Direito, indica a contradição, aparente ou real, entre duas leis ou dois
princípios no momento da aplicação prática a um caso concreto.{231}
* (228) Tenório, ob. cit., pp. 64 e 65.
(229) No caso do CDC, observa-se que a Lei 8.078/90 revogou
expressamente
somente algumas normas da Lei 7.347/85, que dispõe sobre a ação civil
pública, e substituída por novas normas introduzidas pelo CDC.
(230) Malgaud, na obra coordenada por Ch. Perelman, "Les
Antinomies en Droit",
(Travaux du Centre National de Recherches de Logique), 1965, p. 8, afirma
que se a lei prevê que um texto (por exemplo, o texto hierarquicamente
superior) prevaleça sobre o outro e se a lei afirma isto expressamente,
através
de um princípio ou norma na Lei de Introdução, por exemplo, não haveria
contradição ou antinomia entre os textos, porque somente um dos dois é
aplicável ao caso, a lei seria inequívoca, só haveria antinomia ou
contradição
no sistema quando a lei "est en defaut", isto é, quando a lei (no caso
brasileiro, a LICC ou as normas transitórias da lei nova) é incompleta.
(231) Assim Paul Foriers, "Les Antinomies en Droit", na obra
coordenada por
Ch. Perelman, Les Antinomies, pp. 21 e 22. (p. 231)
Definir as antinomias no direito como contradições aparentes ou
reais entre duas normas de existência simultânea no mesmo ordena-
mento jurídico, no momento de sua aplicação a um caso concreto, será
útil à análise que desejamos empreender, pois frisa justamente os
aspectos tratados da matéria: o casuísmo das soluções das contradições
entre leis novas e anteriores e a noção da necessidade da manutenção
da lógica do sistema. A antinomia, enquanto contradição, nega a
coerência interna do sistema, forçando o intérprete a compatibilizar os
dispositivos legais (possível em caso de antinomias meramente aparen-
tes){232} ou, não sendo isto possível, leva o aplicador da lei, face ao
impasse, a escolher uma, afastando a aplicação da outra (em caso de
antinomias reais).{233}
Se fosse possível traçar um paralelo entre os três planos do
negócio jurídico (existência, validade e eficácia), poderíamos
exemplificar que a revogação é a solução mais profunda, pois atinge
a "existência" da norma jurídica ou da lei em conflito, retirando-lhe
a vigência,{234} fazendo-a desaparecer do sistema do direito atual. Já a
solução das antinomias é um exercício de aplicação das normas em
conflito mais brando, pois face a contradição real entre normas, o
* (232) Veja neste sentido a interessante solução do STF para
conciliar a aplicação
das ultrapassadas convenções limitadoras da responsabilidade e o espírito
da CF/88 de ressarcimento efetivo de danos ao consumidor (danos materiais
e morais): "Indenização. Dano moral. Extravio de mala em viagem aérea.
Convenção de Varsóvia. Observação mitigada. Constituição Federal. Supre-
macia. O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indeni-
zação tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos
morais.
Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento,
aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre
observar a Carta Política da República, incisos V e X do art .5.º, o que
se sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil" (DJ 21.2.97,
R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min. Marco Aurélio).
(233) Veja-se a obra coordenada por Perelman, trazendo as
definições de
Malgaud, p. 7, Vander Elst, p. 138, Salmon, p. 285, Szabó, p. 350, e
Buch,
p. 373; ou, em português, a obra de Norberto Bobbio, Teoria..., p. 81 e
ss.
(234) Oscar Tenório, pp. 71, 64 e 65, ensina: "revogar uma lei
significa tirar-lhe
a força obrigatória", revogar "é fazer outro direito, fulminando o que
vigorava", se a vigência é "a vida das normas jurídicas", a revogação é O
processo técnico para tirar a vida das leis anteriores. Revogada a norma
não há que se discutir de sua validade ou de qualquer efeito mais no
mundo
jurídico. (p. 232)
aplicador preferirá uma (por sua especialidade, hierarquia ou anteri-
oridade) dando-lhe "eficácia", enquanto afasta a outra, não consideran-
do-a aplicável ao caso em exame, mas sem decretar-lhe a "morte" ou
"inexistência" para casos posteriores.{235} O ponto de toque aqui, em
geral, é o diferente campo de aplicação das normas em contradição.
No exame da compatibilidade e da continuidade das normas no
sistema deve o aplicador, porém, verificar não só os textos e as
finalidades específicas das normas, mas também examinar com cuidado
o campo de aplicação de cada norma. Se os campos de aplicação
ratione materiae e ratione personnae são ora coincidentes ora diver-
gentes, não há interesse do sistema na decretação da perda de vigência
de uma das normas, ao contrário, a sobrevivência de ambas é essencial
ou estaremos criando uma lacuna não querida no ordenamento jurídi-
co.{236} Necessário analisar, portanto, se da contradição detectada
nascerá
uma incompatibilidade que decretará a "morte" de uma das normas
(revogação) ou se a contradição pode ser resolvida pela interpretação
(antinomia aparente), pelo estudo do campo de aplicação (subsunção
específica) ou pela utilização dos critérios de solução das antinomias
fornecidos desde a escolástica (solução da antinomia real).
O aplicador da lei, portanto, face ao aparecimento de uma
contradição entre normas do CDC e leis anteriores, leis gerais ou
especiais, ou leis posteriores, gerais ou especiais, verificará
inicialmen-
te se é possível compatibilizar as duas normas pretensamente em
contradição. Se uma interpretação compatibilizadora, integrativa, que
permita a aplicação das duas normas ao mesmo tempo, é possível, será
esta a escolhida e desaparecerá a antinomia meramente aparente.
Se a contradição entre os textos legais, suas normas e suas
finalidades é tal que não permite a aplicação conjunta, integradora das
normas, uma norma, por exemplo, permite, enquanto a outra expres-
samente proibe determinado tipo de cláusula contratual, uma impõe a
* (235) Omitimos, conscientemente, a analogia ao plano da
validade, tendo em
vista os ensinamentos de Kelsen, segundo os quais a validade da norma
repousa na norma fundamental, isto é, "as normas jurídicas encontram nas
normas superiores o fundamento de sua validade e, a seu turno, constituem
o fundamento de validade das normas inferiores", assim W. de S. C.
Batalha, Direito Intertemporal, p. 29.
(236) Esta foi nossa conclusão no referido artigo, "A
Responsabilidade do
Transportador Aéreo", p. 161. (p. 233)
renúncia de um direito e a outra proibe a renúncia do mesmo direito,
estamos frente a uma antinomia real, não solucionável através de
simples interpretação das normas. Note-se que a fonte desta incompa-
tibilidade entre as normas pode estar no valor ou princípio que inspirou
as leis, umas querendo privilegiar determinados grupos sociais, outras
querendo proteger outros grupos sociais, umas querendo atingir a
igualdade entre todos na sociedade (leis gerais), outras querendo
justamente assegurar um tratamento privilegiado, em determinadas
matérias, em determinados contratos, visando um tratamento legal
desigual, a beneficiar determinado grupo na sociedade (leis especiais).
Se em um mesmo ordenamento jurídico temos leis inspiradas em
valores contrapostos, denomina-se essas antinomias de valores em
"antinomias de princípio".{237} Em verdade estas antinomias são as mais
comuns, muitas vezes solucionadas pelo exame mais acurado do campo
de aplicação de cada lei, muitas vezes, porém, a escolha para subsunção
não é óbvia e essas antinomias de princípios transformam-se em
antinomias reais a exigir o uso dos critérios de solução já clássicos.
Em caso de antinomias reais, três são os critérios destacados
pela
doutrina e utilizados pela jurisprudência para solucioná-las: o crono-
lógico, o hierárquico, o da especialidade. Note-se que os doutrinadores
esforçam-se por deduzir tais critérios das normas positivas sobre a
solução de conflitos no tempo, no caso a LICC de 1942, ainda em vigor,
mas em verdade a origem de tais critérios é jurisprudencial e doutri-
nária, anterior às próprias codificações e sua idéia de sistema exaustivo
e perfeito.{238}
O critério cronológico é o mais simples para ser determinado; a
própria LICC contém regras sobre a entrada em vigor das leis no tempo
e sua "ordem cronológica". O critério resume-se a presumir que a lei
posterior seja prevalente em relação à lei cronologicamente anterior,
pois estaria a representar o pensamento e a orientação atual que O
legislador quer impor ao sistema. Se o critério cronológico é o de mais
fácil determinação, é um critério de pouca utilização independente. Ele
só resolverá a contradição entre a lei nova e a lei anterior se houver
coincidência de grau hierárquico entre elas e ambas forem leis especiais
ou leis gerais. Na maioria dos casos o critério cronológico serve apenas
* (237) Veja a obra traduzida de Norberto Bobbio, Teoria..., p.
90.
(238) Veja Bobbio, Teoria..., p. 92. (p. 234)
como o "detonador" do conflito, sua utilização conjunta com os outros
critériOS é que solucionará o impasse para o aplicador da lei.
Já o critério hierárquico tem sua origem na idéia de hierarquia
entre as leis presentes no mesmo sistema, fixando-se hoje, especialmen-
te, no caráter constitucional, complementar ou derivado de uma das
normas em contradição.{139} Segundo este critério a norma hierarquica-
mente superior deve prevalecer sobre a outra, mesmo sendo esta última
posterior, pois também o legislador ordinário deve seguir a hierarquia
do sistema legal, quando da sua atividade legislativa, elaborando
normas novas da mesma hierarquia se deseja renovar totalmente o
espírito do ordenamento.
No texto acima, letra "b" desta análise, fizemos questão de
frisar
a origem constitucional do CDC e do mandamento de proteção ao
consumidor, que assegura-lhe uma nova superioridade hierárquica e
pode ser de grande utilidade na solução dos conflitos envolvendo outras
normas do sistema legal e o CDC. Da mesma maneira, renovamos as
observações traçadas na letra "a" deste número, as quais concluem pela
determinação da natureza de normas do CDC como normas de ordem
pública econômica. No campo do direito privado, há reconhecida
superioridade hierárquica para as normas de ordem pública, uma vez
que tais normas positivam os valores básicos da sociedade e tendem
a prevalecer sob as outras normas de direito privado, na sua maioria
disponíveis e de interesse prevalentemente individual.{240}
Ainda quanto à hierarquia das normas, discute-se as normas
oriundas de Tratado internacional, recebidas no ordenamento jurídico
interno devem prevalecer sobre as normas internas mesmo que poste-
riores, em virtude de sua origem internacional. Em se tratando de
normas oriundas de um Tratado internacional recebidas no ordenamen-
to jurídico interno, utiliza-se com freqüência o argumento da univer-
* (239) A própria Constituição de 1988 fornece uma "ordenação" das
fontes
legislativas no seu art. 59, note-se que, tomada a lista do art. 59 como
determinante da superioridade hierárquica entre as normas brasileiras,
aquelas presentes em medidas provisórias teriam menos valor hierárquico
do que as presentes em leis ordinárias e leis delegadas, cuja eficácia,
porém,
suspendem e substituem, se bem que por tempo limitado.
(240) Veja sobre o critério hierárquico o excelente estudo de
Bobbio, "Des
critéres pour résoudre les antinomies", na obra coordenada por Perelman,
p. 255 e ss. (p. 235)
salidade das normas e da obrigação internacional do Estado Brasileiro
de cumprir estas normas até a denúncia do Tratado, para corroborar a
tese da imutabilidade no tempo destas normas "internacionais". Neces-
sários, se fazem, portanto alguns esclarecimentos.
O ponto mais importante é o reconhecimento hoje pela doutrina
dualista brasileira da não-superioridade dos Tratados e Atos Internacio-
nais frente à Constituição Federal, em verdade fonte de aplicação e de
validade do próprio Tratado.{241} O Supremo Tribunal Federal, ainda sob
a égide da norma constitucional de 1969, afirmou no RE 0109173/87,
ser "Inadmissível a prevalência de Tratados e Convenções Internacio-
nais contra o texto expresso da Lei Magna".
A tendência atual é justamente de aproximação do Direito
Internacional Público e das Constituições nacionais.{242} Ao invés do
conflito procura-se regular no próprio texto constitucional as eventuais
superioridades hierárquicas, como a assegurada às normas oriundas da
Comunidade Econômica Européia, nas Constituições da Espanha e
Portugal. Assim como os próprios valores protegidos pelas Constitui-,
ções nacionais, como a lista de direitos fundamentais, passam a ser
reconhecidos como "fonte de inspiração" supranacional, como por
exemplo nos históricos acórdãos da Corte de Justiça das Comunidades
Européias.{243} Como já afirmamos anteriormente, o Direito Internacio-1
nal Público evoluiu de sua fase jusnaturalista para um "realismo não
conformista", reconhecendo sua falta de coercitividade frente as
constituições nacionais, e buscando linhas de contato e valores éticos
comuns.{244}
* (241) Veja a obra de Tenório, p. 86, que já em 1955 reconhecia a
superioridade
da Constituição, assim tb. nossa conclusão, no citado artigo "Responsabi-
lidade do Transportador Aéreo", p. 165.
(242) Veja a excelente e realista exposição de Paul de Visscher,
"Les Tendances
Internationales des Constituitions Modernes", in Recueil des Cours, 1952,
Paris, Sirey, pp. 515 a 576.
(243) Veja detalhes na obra coletiva, Conséquences
institutionneles de l'appartance
aux Communautés européennes, Coord. Bertil Cottier, Institut Suisse de
Droit Comparé, Zurique, 1991.
(244) Na verdade, sempre que o ordenamento jurídico passa a ser
instrumento de
dominação de um regime de Estado autoritário ou ditatorial, a injuStiça
conseqüente das leis internas adotadas traz como reação a volta a Um
jusnaturalismo, clamando pela aplicação de princípios e normas do
direito natural ou do direito internacional público mundial, como (p.
236)
Quanto, porém, ao conflito entre a lei interna (lei ordinária) e
o
Tratado (ou o Decreto que o promulga) a discussão permanece. A
beleza destes argumentos de superioridade hierárquica dos Tratados
está nos sonhos monistas, que negam a existência de dois ordenamentos
jurídicos autônomos e independentes, um interno e o outro internacio-
nal, preferindo ver o mundo como um só sistema, com o recebimento
automático dos Tratados assinados pelo país.{245} Mesmo sendo o Brasil
por tradição um Estado dualista,{246} não se pode esquecer que o
monismo tem como base última a doutrina jusnaturalista, que confunde
o Direito Internacional Público com o próprio Direito Natural, nesse
sentido as normas oriundas deste direito supranacional trariam em si
uma justiça intrínseca, a ratio naturalis universal.
Sobre o tema vale repetirmos a lição de De Visscher, o qual
identificou três tipos de sistemas constitucionais: os que recebem ao
Tratado, depois de inserido na ordem interna, a mesma autoridade que
a lei, sem superioridade (no superior efficacv), como no sistema norte-
americano; os sistemas que reconhecem a superioridade do Tratado
frente à lei, mas submetem o conflito a um controle constitucional,
como o sistema alemão e de outros países hoje pertencentes à União
Européia, antiga Comunidade Econômica Européia; e por fim, os que
eventualmente estabelecem a superioridade do Tratado sobre a lei, sem
controle de constitucionalidade, sistema que seria baseado em monismo
radical, de superioridade do Tratado sobre a própria Constituição
nacional, previsto, segundo o autor, nos Países-Baixos.{247}
*aconteceu após o regime nazista na Alemanha. Tratando-se, porém, de um
Estado Democrático de Direito, onde os princípios orientadores da justiça
são os mesmos (se bem que não idênticos) ao da ordem jurídica mundial
cessam tais clamores, não mais necessários.
(245) Interessante observação monista é feita por Celso Ribeiro
Bastos, in
Comentários à Constituição Federal de 1988, Saraiva, 1988, v. 2, comen-
tário ao § 2.º do art. 5.º da CF. A tese monista ajudaria também a
aceitar
as normas elaboradas por um órgão supranacional que controlasse a
integração econômica dos países do MERCOSUL, nos moldes da Comu-
nidade Econômica Européia. Na realidade atual, porém, tal órgão com
competências autônomas e com força de decisão ainda não existe (talvez
existirá no Tratado definitivo do MERCOSUL em 1995, o que poderia
pressupor uma mudança na Constituição de 1988).
(246) Veja-se os arts. 49e 84 da Constituição Federal de 1988,
assim tb. a
manifestação de Moraes, Código, p. 52.
(247) De Visscher, pp. 563 a 569. (p. 237)
Como ensina Rezek,{248} a Constituição Brasileira de 1988 não
prestou maiores homenagens ao Direito Internacional Público a não ser
àquelas que ele realmente merece, isto porque as regras do cenário
internacional não estão totalmente fixadas e dependem ainda muito do
poder econômico e da importância política de cada país. Assim, não é
pelo simples fato de ter sido uma norma inserida em um ato internacio-
nal que assegura a ela o fato de ser uma norma justa ou de aplicação
conveniente no Brasil.{249} Ainda é necessário diferenciar entre as
normas
oriundas da ordem internacional e recebidas no ordenamento jurídico
brasileiro, há aquelas que positivam valores internacionais como as que
dispõem sobre os direitos humanos e garantias fundamentais, mencio-
nados no § 2.º do art. 5.º da Constituição e há aquelas que tratam de
interesses econômicos internacionais (Tratados sobre a dívida externa,
sobre o direito do mar, direito aeronáutico, direito espacial etc.).
Com base no dualismo brasileiro e na superioridade assegurada
tradicionalmente à Constituição, a doutrina{250} e a jurisprudência atual
têm negado a existência de uma superioridade hierárquica ante o
Tratado recebido no ordenamento jurídico interno e a legislação outra
interna, principalmente em matéria tributária e comercial.{251}
Já o critério da especialização baseia-se na idéia de leis
especiais
para reger determinados assuntos ou determinados indivíduos ou
grupos, pressupondo a maior força a leis específicas face a leis gerais.
Note-se que também o critério da especialização evoluiu no tempo e
relativizou-se. Hoje, reconhece-se que a especialização é uma carac-
terística tanto material como subjetiva, pois cada vez mais se introduz
* (248) Francisco Rezek, in Interpretações da Constituição Federal
de 1988,
Coord. Ives Gandra Martins, FuB. Brasília, 1988, p. 7.
(249) Veja interessante estudo de Fillipi, pp. 226 a 235, no qual
conclui,
examinando principalmente o GATT-OUC, que não é difícil de acontecer
que os países economicamente mais poderosos utilizem tais acordos como
instrumento para aperfeiçoar a sujeição econômica dos, sob a aparência de
igualdade, mais fracos...".
(250) Veja Filippi, p. 226 e ss.
(251) Veja Decisão do TRF, 1.ª Reg., REO 113919/BA, de 4.3.90,
citando O
leading case do STF (RE 80.004/SE) e afirmando: "A tradição constitucio-
nal brasileira, diferentemente de outras ordens jurídicas (Lei
Fundamental
de Bonn, art. 25), não dá prevalência ao ato internacional, mesmo após
incorporado à legislação interna, em relação a legislação comum". (p.
238)
no sistema do direito leis destinadas à proteção de grupos sociais.{252}
Nesse sentido a determinação de uma lei como especial ou geral
apresenta hoje aspectos mais casuísticos.
Observe-se, por exemplo, que o CDC é lei especial na sua face
subjetiva, pois só impõe regras para relações contratuais e
extracontratuais
envolvendo pessoas, que define como consumidores e fornecedores. De
outro lado, é lei geral, em grande parte de sua face material, pois trata
de várias relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores,
não tratando exaustivamente ou especificamente de nenhuma espécie
de contrato em especial, mas impondo novos patamares gerais de
equilíbrio e de boa-fé a todas as relações de consumo.
O CDC é, por exemplo, lei especial em relação ao Código Civil
de 1917, pois só trata das relações envolvendo os que define (ou
equipara) como consumidores. O CDC, porém, só trata de alguns
aspectos dos contratos de consumo (dever de informação, garantias,
vícios da prestação contratual, cláusulas abusivas, dever de redação dos
contratos de adesão etc.), deixando a maioria das regras sobre existên-
cia, validade e eficácia da relação para o Código Civil, logo, se o CDC
revoga-se uma norma que fosse do Código Civil criaria uma grande
lacuna para todos os outros tipos de contratos e para o seu próprio
sistema, que não é exaustivo.
Cada norma será preservada para atuar em seu campo de aplica-
ção, mas em um caso concreto encontram-se, ambas são teoricamente
aplicáveis ao caso. O intérprete frente a esta antinomia real terá de
escolher a norma "competente" para regular aquele caso submetido a
ele, afastando a aplicação da outra norma. A antinomia é, para o
aplicador da lei, ao mesmo tempo um desafio e um momento de
subjetividade-criativa, pois deve recorrer não só a lógica, mas aos
valores e finalidades do próprio sistema e escolher a norma, como diria
Bobbio, "mais justa para o caso".
Com as modificações sofridas pela ciência do direito neste
século,
há um crescente ceticismo quanto à possibilidade dos critérios tradi-
Cionais propostos desde a escolástica fornecerem soluções absolutas.
No campo do Direito Intertemporal, reconheceu-se, na França,{253} que
as soluções propostas para o problema da retroatividade da lei e do
* (252) Veja Irti, sobre as novas técnicas do legislador, p. 43 e
ss.
(253) Assim a tese laureada de Françoise Dekeuwer-Défossez de
1977. (p. 239)
respeito ao direito adquirido não resultam de uma análise meramente
jurídica, são conjunturais, como veremos a seguir, dependendo de
fatores filosóficos, sociológicos e ideológicos, o que impede o caráter
absoluto das soluções encontradas.
Assim, por exemplo, a concepção filosófica que o aplicador da lei
possua sobre o direito pode influenciar a sua decisão, pois os efeitos
retroativos da lei social nova serão visualizados de forma diferente por
aqueles de filosofia mais individualista e por aqueles que concedem
maior importância ao bem-comum da sociedade como um todo. Da
mesma maneira, a sucessão de leis no tempo possui uma inseparável
dimensão sociológica, bastando lembrar que algumas leis são modifi-
cadas pelo legislador para que a previsão legal harmonize-se com a
moral e os costumes atuais (um exemplo seria a figura introduzida pela
Constituição de 1988, da união estável), e sua aplicação imediata não
refletirá em nenhum excesso ou novo na sociedade. Já outras leis estão
"à frente" da prática social, pois o legislador deseja justamente
transformar, orientar a nova conduta que a sociedade terá de assumir,
aqui a vacatio legis será maior e a aplicação será imediata, mas para
o futuro, quase pedagógica para modificar a conduta social. Por fim,
a ideologia do legislador pode influenciar a solução. O legislador de
inspiração conservadora adota sistemas que permitam preservar a
estabilidade dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos já
perfectibilizados, enquanto o legislador manifestamente reformista é
mais sensível à necessidade de colocar imediatamente em prática as
novas normas que considera mais eqüitativas que as anteriores.{254}
Os juristas costumam repetir os brocardos: a "lei não pode
revogar a lei especial" ou a "lei especial não revoga a lei geral",
afirmações corretas e simples, que somente escondem uma realidade:
a antinomia entre as normas continua e não foi solucionada pelo
caminho geral e definitivo da revogação, em virtude do campo de
aplicação ora coincidente ora divergente da lei geral e da lei especial
em conflito. O antigo art. 4.º, da Lei de Introdução de 1916, assim
dispunha: "... a disposição especial não revoga a geral, nem a geral
revoga a especial, senão quando a ela ou a seu assunto se referir,
alterando-a explícita ou implicitamente". Hoje preferimos afirmar que
as normas de campo de aplicação diferente continuam em vigor "lado-
* (254) Dekeuwer-Défossez, pp. 4 a 6. (p. 240)
a-lado", desde que compatíveis. Se ambas as leis permanecem no
sistema haveria prevalência da lei especial. A situação, porém, com-
plica-se quando há conflito entre os critérios de solução das antinomias,
isto é, a lei especial nova é hierarquicamente inferior à lei geral
antiga.
Neste caso como deverá o aplicador da lei solucionar o conflito?
Para Bobbio, se o aplicador da lei tem de escolher entre
priorizar
o critério cronológico ou o critério hierárquico, deverá considerar como
claramente prevalente o critério hierárquico. Se, porém, a decisão é
entre o critério cronológico e o da especialização, a resposta já não é
tão simples. A jurisprudência costuma presumir que prevalecerá o
critério da especialização (lex posterior generalis non derrogat priori
speciali). Assim, o conflito entre uma lei geral-posterior e uma lei
especial-anterior seria resolvido pela presunção que o legislador sabia
do regime especial e não quis afastá-lo pela nova lei geral, pois o
regime
especial propiciaria maior justiça dos que os gerais. Trata-se, porém,
de uma presunção, arraigada, sem dúvida, ao espírito dos juristas, mas
que, segundo o mestre italiano, não é absoluta, pois a nova lei geral
pode muito bem querer modificar o sistema, passar do privilégio à
abolição do privilégio para maior justiça social, prevalecendo sua
aplicação quase por uma questão teleológica.{255}
Em caso de conflito entre as soluções propostas pelo critério
hierárquico e o da especialização, prevalece o critério hierárquico sobre
o da especialização, mas também certas relativizações são necessárias.
A jurisprudência tende a conceder prevalência às normas especiais,
sempre que não em conflito com a Constituição, e sempre que o regime
particular realmente se justifique, não constituindo mero privilégio de
um grupo político, econômico ou socialmente forte.{256}
Como podemos observar a hierarquia entre os próprios critérios
de Solução dos conflitos e antinomias não é muito clara, baseando-
se em presunções, presunções não absolutas que não dispensam o
esforço casuístico do intérprete. Não havendo solução clara sugere-
se a utilização de uma terceira fonte, a Constituição, que como guia
máximo do sistema poderá fornecer valores e Linhas de razoabilidade
para a escolha a ser efetuada pelo aplicador da lei. Procura-se, em
verdade, alcançar uma interpretação "conforme a Constituição" das
* (255) Assim a surpreendente conclusão de Bobbio, Des Critéres,
pp. 253 a 255.
(256) Assim Bobbio, Des Critéres, pp. 255 a 257. (p. 241)
normas em conflito para desta extrair a norma prevalente e solucionar
a antinomia.

d) Conflitos entre normas do Código Civil, de leis especiais e de


leis anteriores com o Código de Defesa do Consumidor - Ao aplicador
da lei interessa saber em qual diploma legal encontrará o regime
jurídico básico e o regime jurídico especial para o contrato que se
apresenta frente a ele. Em outras palavras, se as questões, oriundas de
um contrato de compra e venda, de locação ou de abertura de conta
corrente, ainda são regidas pelas normas anteriores de Direito Civil ou
Comercial, ou se vão encontrar sua regulamentação no novo Código
de Defesa do Consumidor.
Dispõe o art. 118 do CDC que suas normas entrarão em vigor
dentro de 180 dias a contar de sua publicação, revogando as disposições
em contrário (art. 119).
Se queremos saber se o Código de Defesa do Consumidor,
matéria contratual, revoga ou não algumas das normas do Código Civil
de 1917 referente aos contratos e sua interpretação, teremos de
examinar as regras brasileiras sobre os chamados conflitos de leis no
tempo ou Direito Intertemporal. Regras estas contidas na Lei de
Introdução ao Código Civil (LICC).
Segundo o § 1.º do art. 2.º da LICC, a lei posterior revogará a
anterior quando: 1) expressamente o declare; 2) regule inteiramente
matéria de que tratava a anterior; 3) seja com ela incompatível. Os
primeiros casos não parecem ocorrer na prática; nem o Código revogou
expressamente alguns artigos do Código Civil, nem tratou inteiramente
de toda a matéria referente a contratos.
Mas serão as normas do Código Civil de 1917 incompatíveis com
as do novo Código do Consumidor? Não é fácil estabelecer esta
incompatibilidade, que emanaria mais do espírito das disposições do
que sua literalidade.{257} Assim, por exemplo, seria incompatível a regra
do art. 964 do Código Civil, que prevê o ressarcimento da quantia paga
indevidamente, com a do parágrafo único do art. 42 do Código, que
impõe o reembolso em dobro, a critério do juiz?
* (257) Veja sobre o assunto a lição insuperável de Oscar Tenório,
p. 81, onde o
autor defende a revogação também quando a incompatibilidade "emana
do espírito das disposições". (p. 242)
Não. Parece-nos que aqui o legislador está criando uma exceção,
uma regra especial de proteção para algumas pessoas, a par da regra
geral já existente.
Sendo assim, o conflito entre as normas do Código de Defesa do
Consumidor com as normas anteriores dos Códigos Civil e Comercial
serria resolvido pela aplicação da regra do § 2.º do art. 2.º da LICC,
segundo a qual a lei nova especial não revogará a antiga lei geral,
quando instituir normas especiais "a par das já existentes". Assim,
também, a noção de vício dos arts. 18 e 25 do CDC é totalmente
diferente da de vício redibitório do art. 1.101 do Código Civil, os
prazos
de decadência do direito de reclamá-los também são novos, assim como
a impossibilidade de se exonerar contratualmente da responsabilidade;
mas, nem por isso, os arts. 1.101 e ss. do Código Civil estão revogados,
somente não serão mais utilizados quando se tratar de um contrato de
consumo. Na prática, os efeitos se aproximam, mas a sobrevivência das
regras gerais é importante porque nem todos os contratos serão regidos
pela nova lei, nem todos podem ser sempre caracterizados como
consumidores e nem o CDC regulou toda matéria referente à existência,
à validade e à eficácia dos contratos.
Por fim, devemos mencionar a nossa opinião que mesmo contra-
tos regulados por leis especiais submetem-se às normas gerais do
CDC, isto em virtude do caráter de normas de ordem pública interna
que estas normas assumem (art. 1.º). O espírito protetor do CDC exige
que suas normas sobre cláusulas abusivas, por exemplo, sejam apli-
cadas para anular cláusula presente em contrato de transporte aéreo,
que exclui o direito de indenização do consumidor por vícios ou fato
do serviço, mesmo que tal cláusula fosse permitida pela Lei específica,
lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986.{258} O caso é basilar, pois a
autonomia de vontade antes assegurada e protegida em lei, foi afastada
por norma de ordem pública, posterior e com fins sociais. Assim tem
decidido parte da jurisprudência brasileira, que supera a indenização
tarifada do transportador, mesmo em contratos de transporte aéreo
internacional, e aplicam o CDC, com sua responsabilidade contratual
ampla e ilimitada por danos materiais e morais.{259} Da mesma forma,
* (258) Veja nosso estudo detalhado sobre o caso in
"Responsabilidade do
transportador Aéreo".
(259) Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Ap. Civ. 968/97, 2.
Câm.
Civ., unânime, Des. Luis Odilon Bandeira, j. 20.5.97, cuja ementa é: (p.
243)
aplicam quanto à responsabilidade por vício do serviço dos advogados
a legislação especial em conjunto e sob a luz das novas regras do
CDC.{260)
As normas presentes nas leis especiais continuam válidas para
regular todos os contratos civis ou coiciais a que se destinam;
tratando-se de contrato de consumo, sua aplicação será afastada
naquilo que incompatíveis com o espírito protetor do CDC.
Como ensina Oscar Tenório,{261} pode haver a coexistência da nova
lei geral em face da anterior lei, desde que compatíveis. A lei especial
anterior continua em vigor, ao lado da lei geral nova,{262} no que não
for
incompatível, sendo necessário examinar a finalidade das duas leis. É
a regra da incompatibilidade das leis. Mas de regra "leis que tratam de
determinadas matérias se revogam com o advento de um código que
veio dispor sobre aquelas matérias". Ocorre que o CDC não trata de
nenhum contrato em especial, mas se aplica a todos, a todos os tipos
* "Transporte aéreo internacional. Inadimplemento contratual.
Ressarcimen-
to dos danos. Dano material. Dano moral. Revisão do valor. Ordinária
indenização. Transporte de livros "Rio-Paris" por via aérea. Extravio de
uma
das europalettes, onde acondicionada a maior parte dos livros transporta-
dos, encontrados finalmente em Ufa, nos Montes Urais, e posteriormente
reencaminhados à França. Patente o descumprimento da avença, que é
obrigação de resultado. Tal fato engendra o dever de ressarcir.
Quanto aos danos materiais, seria admissível, em princípio, a
indeniza-
ção tarifada do transportador, nos termos da Convenção de Varsóvia e do
Código Brasileiro de Aeronáutica. Ocorre que novas disposições legais
compendiadas no Código de Defesa do Consumidor, além de atribuirem
responsabilidade objetiva ao prestador de serviços, excluiram a limitação
de sua responsabilidade, prevista naqueles diplomas normativos, revogan-
do-os. Constituindo tais diplomas direito interno, podem ser ab-rogadoS,
ou
derrogados, por lei superveniente, sem necessidade de prévia denúncia
formal. Dano moral ocorrente, a ensejar a pertinente indenização. Aplica-
ção, ao caso, do princípio da compensatio lucri cum damno, eis que
preSente
seu requisito fundamental. Provimento parcial da apelação e dos recursos
adesivos".
(260) Veja neste sentido decisão do TJRS, Ap. Civ. 596181057, J.
9.10.96, Des.
José Aymoré Barros Costa, in Revista de Jurisprudência do TJRGS 184, p.
242 e ss.
(261) Tenório, Comentários, art. 2.º, § 2.º, p. 90.
(262) Veja o art. 7.º, caput, CDC. (p. 244)
de contratos, se contratos de consumo. Neste caso não revogará as
normas especiais referentes a estes contratos, que, relembre-se, nem
sempre serão de consumo, dependendo da possibilidade de caracteri-
zação das parteS como consumidor e fornecedor mas, afastará simples-
mente a aplicação das normas previstas nas leis especiais que forem
incomPatíveis com o novo espírito tutelar e de eqüidade do CDC.{263}
Como ensinam os mestres Espínolas,{264} quando a lei nova não é
diretamente contrária ao próprio espírito da outra norma, "cumpre
examinar, cuidadosamente, quais as disposições da lei antiga, que se
mostram absolutamente incompatíveis com a nova; quando seja
duvidável a incompatibilidade, será o caso de interpretar as duas leis,
de modo que se faça desaparecer a antinomia...". Este parece ser o
espírito do CDC, que em seu art. 7.º, considera aplicáveis todos os
outros "direitos" (direitos do consumidor como afirma o capítulo) que
estejam previstos na legislação ordinária. Já as limitações aos novos
direitos dos consumidores são consideradas nulas se previstas nos
contratos, art. 51, I, e afastadas pela nova lei de ordem pública, se
previstas em leis especiais e incompatíveis com o espírito do CDC.
A exposição até agora executada permite-nos considerar o CDC
como verdadeira lei de função social, como um microssistema orientador
introduzido pelo legislador para alcançar um objetivo: uma nova
harmonia, lealdade e transparência nas relações de consumo. O CDC
apresenta, assim, uma grande força renovadora. Mais do que determi-
nar a revogação, a perda de vigência, de outras normas anteriores
(gerais ou especiais), parece-nos que o CDC ocasionará uma nova
interpretação das antigas normas, quando a relação for de consumo e
ambas as normas encontrarem aplicação. Não sendo possível esta
compatibilização entre as normas do CDC e as normas anteriores,
deverá o intérprete optar por um dos sistemas, solucionando a antinomia.
A posição do CDC como lei especial-subjetiva, lei posterior e
hierarquicamente superior, como lei de ordem pública e complementar
ao mandamento constitucional, assegurarão a força necessária para que
esta lei de função social possa cumprir sua finalidade renovadora. A
solução das antinomias é, porém, uma atividade casuística e porque não
dizer, subjetiva. Somente uma análise caso-a-caso nos permitirá ao
* (263) Veja Tenório, pp. 89 e 81.
(264) Espínola/Espínola, p. 78. (p. 245)
profissional do direito concluir pela escolha das normas do CDC, como
prevalentes, se presente na relação um consumidor vulnerável.
Relembre-se que sempre que o intérprete considerar que a
utilização dos critérios clássicos (cronológico, hierárquico e da espe-
cialização) não resulta em uma clara determinação da norma que
deverá prevalecer, poderá igualmente utilizar uma terceira fonte, no
caso, a lei máxima do sistema, a Constituição, examinando, no caso
concreto, se as leis em contradição cumprem com a determinação de
proteção do consumidor "segundo a lei" e protegem suficientemente
os outros interesses valorados pela Constituição, como o direito à vida,
à inviolabilidade pessoal, à propriedade, à livre iniciativa etc.

e) Conflitos entre normas do Código de Defesa do Consumidor


e de leis especiais e gerais posteriores - Nesta terceira edição, é
necessário examinar também os eventuais conflitos existentes entre a
legislação especial, posterior à entrada em vigor do CDC, e esta Lei
de 1990, visualizada como lei "geral" de tutela dos consumidores em
todos os contratos e relações de consumo. Assim, por exemplo, temos
no país uma nova lei de locações,{265} um novo Sistema Financeiro
Imobiliário,{266} uma nova lei de arbitragem{267} e, especialmente, uma
lei
específica para seguros e planos de saúde,{268} para citar algumas. A
tendência tópica e de especialização do direito atual propicia a
multiplicação de leis especiais posteriores ao CDC, nos ramos ou
contratos mais problemáticos do mercado.
Frisem-se as observações anteriores que a lei especial nova não
revoga tacitamente a lei geral anterior, uma vez que o campo de
aplicação da lei geral é naturalmente mais amplo e não coincidente com
o da lei especial nova. Revogá-la significaria inaplicar a lei geral em
outras matérias importantes. A lei especial nova, porém, pode afastar,
em caso de antinomia verdadeira, a aplicação da lei geral anterior. Note-
* (265) Lei 8.245/91, veja detalhes da compatibilização desta lei
no ponto anterior
sobre contratos imobiliários, 1.2, letra a.
(266) Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, veja detalhes da
compatibilização
desta lei no ponto anterior sobre contratos imobiliários, 1.2, letra a.
(267) Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, que será comentada na
Parte ii, sobre
cláusulas influenciando o acesso à justiça, (4)1.2, letra c.
(268) Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, veja detalhes da
compatibilização deSta
lei no ponto anterior sobre contratos de seguro, 1.2, letra d. (p. 246)
se que a antinomia é um conflito limitado e típico e que ambas as leis
aplicam-se ao caso concreto, prevalecendo a especial posterior no que
regula e o regime geral (não incompatível) da lei geral ou especial
anterior, se hierarquicamente iguais.
Em outras palavras, uma lei especial nova não tem o condão de
afastar a incidência do CDC sobre estes determinados contratos de
consumo. A lei especial nova regula a relação de consumo especial no
que positiva e o CDC continua a regulá-la de forma genérica e em todos
os pontos que a lei especial nova não dispuser.
Repita-se, pois, que no mais das vezes a lei especial posterior
integra-se no espírito da lei geral anterior, ainda mais no caso em
estudo, de o CDC atuar como "lei geral de proteção dos consumidores",
uma vez que representa a ordem pública e constitucional nacional. A
lei especial nova geralmente traz normas a par das já existentes (art.
2º da LICC), normas diferentes, novas, mais específicas do que as
anteriores, mas compatíveis e conciliáveis com estas. Como o CDC não
regula contratos específicos, mas sim elabora normas de conduta gerais
e estabelece princípios, raros serão os casos de incompatibilidade.{269}
Se, porém, os casos de incompatibilidade são poucos, nestes há
clara prevalência da lei especial nova pelos critérios da especialidade
e cronologia. Somente o critério hierárquico pode "proteger" o texto
"geral" anterior incompatível. Assim, o CDC como lei geral de
proteção dos consumidores poderia ser afastado para a aplicação de
uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual, como
no caso da lei sobre seguro-saúde, se houver incompatibilidade de
preceitos.
O exame da incompatibilidade deve ser, portanto, o ponto central
da análise. Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC
e mais específica for a norma "contrária" da lei nova, maior a
probabilidade de incompatibilidade e de ser afastada a aplicação do
CDC para aplicar-se a lei nova. No caso da mencionada lei de seguro-
saúde, Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, é interessante observar que
não há nenhuma incompatibilidade expressa entre elas, ao contrário,
frisa a nova lei um espírito comum e o interesse na proteção do
consumidor. A própria Lei 9.656/98 expressamente menciona a apli-
* (269) Assim, no caso da ampla lei nova sobre locação, o eventual
conflito foi
identificado em apenas uma norma de cada lei. (p. 247)
cabilidade do CDC (art. 3.º da referida lei especial) e a necessidade de
que a aplicação conjunta do CDC e da lei especial "não implique
prejuízo ao consumidor" (§ 2.º do art. 35 da Lei 9.656/98).
Inegável, porém, que a lei nova ao expressamente autorizar
algumas cláusulas, as quais a jurisprudência brasileira, ao aplicar, ao
interpretar e ao concretizar as normas do CDC, considerava como
cláusulas abusivas, com base na cláusula geral do art. 51, IV, do CDC
acaba ameaçando o nível anterior de proteção do consumidor. Assim
se a lei nova autoriza o aumento das mensalidades por faixa etária,
proibindo-o somente após 60 anos, e a jurisprudência considerava tal
aumento abusivo, retrocede o direito pátrio, pois há prevalência da lei
especial. São estes, porém, casos cinza, onde nem todas as decisões
mantinham esta linha de interpretação e aplicação do CDC.
Se o exemplo não é perfeito, o problema principal continua a ser
outro, isto é, o da legalização ou positivação do abuso. Justamente
criticando as primeiras versões do que é hoje a Lei 9656/98, observei
ceticamente: "É possível revogar um princípio legal, intrínseco a um
sistema jurídico, como o da boa-fé nas relações privadas, através de
simples norma ordinária? Podem normas legais, elaboradas sob o
interesse de determinados grupos econômicos e agentes no mercado,
realmente autorizar a atuação conforme a má-fé objetiva, na esperança
de prejudicar o co-contratante que, por exemplo, esquecerá de inscrever
seu filho exatamente um mês antes do nascimento ou simplesmente não
poderá fazê-lo por acaso da natureza? Basta estipular por lei um caso
de abuso do direito e este potencial abusivo desaparece, tornando-se
jurídica a atuação objetivamente abusiva? Será possível submeter o
Judiciário e os aplicadores da lei a dar aplicação e eficácia a estas
novas
normas legais, mesmo se contrárias aos princípios de nosso sistema,
aos próprios princípios constitucionais da atividade econômica (art.
170 CF/88) e aos direitos básicos do cidadão (art. 5º, XXXII CF/88)?".
Neste momento a dúvida continua. É possível, válido e eficaz
autorizar em lei, portarias e medidas provisórias práticas abusivaS e
cláusulas abusivas segundo o CDC? Efetivamente passariam, então,
estas a poder integrar o regime legal dos contratos, mesmo que de
consumo, pois regulados por leis especiais? Ficaria o Judiciário atrelado
e estaria seu trabalho de definir o abuso prejudicado, mesmo se ja
decidia pacificamente em sentido contrário? Aqui, sem dúvida, o crité-
rio hierárquico deve ser observado, assim como nossas observações (p.
248)
anteriores sobre a origem constitucional do CDC e da ordem econômica
que ele positiva. Também o critério hierárquico entre as próprias leis,
pois portarias e mesmo - de certa forma - medidas provisórias devem
ser consideradas legislação de hierarquia inferior ou provisória, não
podendo revogar leis de ordem pública, como o CDC (perenemente). Se
a antinomia é verdadeira, valem as observações anteriores para a
decisão, necessariamente, casuística do aplicador da lei.
São perguntas difíceis, que tenho certeza serão respondidas a
contento pelo Judiciário, em especial pelo Supremo Tribunal Federal.
Renovo somente a importância de um retorno ao estudo do sistema, à
filosofia do direito e à procura da justiça para o caso concreto. É
necessário dar destaque aos valores e princípios mestres como linhas
básicas do direito, sob pena de, nestes tempos pós-modernos, desmora-
lizar a ciência do direito, que não saberá dar respostas justas para os
casos
mais simples, tão grande é o número de leis casuísticas e os interesses
em
conflito no caso concreto. Os princípios positivados no Código de
Defesa do Consumidor podem ajudar neste caminho, oxigenando nosso
direito civil e garantindo efetividade aos princípios constitucionais. Em
resumo, o direito e as leis devem servir à justiça e à harmonia social e
não
somente à economia ou aos interesses momentâneos.
O CDC como lei especial de defesa dos consumidores em relação
às leis gerais de regulação das relações civis e comerciais pode também
vir a ter conflitos eventuais com uma legislação geral posterior. Há bons
motivos para crer que o Projeto de Código Civil, Projeto de Lei da
Câmara 118/84 (na Casa de origem, PL do Senado 634/75){270} aprovado
em dezembro de 1997 no Senado, seja votado definitivamente em 1998
ou em 1999. Se aprovado, teremos uma situação única: um novo
Código unificado de direito privado ao fim de um século, ao fim de
uma era em que justamente não se acredita mais em soluções
generalizantes, em metanarrativas de igualdade e liberdade, típicas do
direito moderno e codificador.
É nestes tempos já chamados de pós-modernos que devemos
examinar, ainda que rapidamente, o projeto em questão. Um novo
código ao mesmo tempo ousado e retrógrado, atualizado e conserva-
dOr, que conhece todas as novas doutrinas, mas que definitivamente
* (270) Veja versão consolidada do referido Projeto publicada no
Diário do
Senado Federal - Suplemento B ao n. 226, de 11 de dezembro de 1997. (p.
249)
não incorpora os avanços conseguidos no Brasil pelo Código de Defesa
do Consumidor e outras leis da década de 90. Compreende-se tal
distanciamento do projeto, uma vez que foi elaborado em 1975,
revisado em 1984, e foi o seu texto original, na parte de obrigações,
praticamente mantido intacto em 1996 e 1997, em sua última revisão
e aprovação. Trata-se, porém, de uma respeitável obra codificadora,
esforço herculano de seus autores originais,{271} os festejados
professores
da comissão elaboradora e revisora Miguel Reale, José Carlos Moreira
Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Vianna
Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro.{272}
A pergunta básica que este esforço legislador pôs à doutrina
nacional em 1998 é se preferimos manter o atual, realmente superado
e envelhecido Código Civil de 1916, modificando-o pontualmente,
especialmente na parte de direito de família ou através da já numerosa
legislação especial obrigacional, e confiar na linha atual da jurispru-
dência brasileira, ou se preferimos estabelecer um novo sistema geral
de direito civil. Um novo sistema geral de direito civil com belas
cláusulas gerais, mas com forte espírito intervencionista e conservador,
que poderá ter reflexos paralisadores ou pelo menos consolidadores do
direito privado brasileiro neste final de século. Festejar os cem anos
da obra de Beviláqua, sem dúvida um Código do século XIX, e optar
por um sistema multifacetado e plúrimo ou preferir positivar a doutrina
sociológica e moral da década de 70, unificando parte do direito
privado, e correr o risco de novamente fechar as portas do século XX,
sem abrir as portas do século XXI?! Um difícil dilema.
Uma nova lei é sempre um desafio, uma perturbação no sistema.
Os juristas, conservadores por excelência, geralmente revoltam-se
contra a mudança, protestam e depois, se direito posto, adaptam-se.
Não quero aqui ser negativa; ao contrário, desejo honrar os mestres
mais experientes que, ao elaborarem o Projeto 118/84, optaram sempre
* (271) Sobre as dificuldades de redigir e colocar em vigor um
novo Código Civil,
veja a descrição das dificuldades na França, que até hoje mantêm seu
texto de 1804, com modificações pontuais e leis especiais, em Guimezanes,
Nicole, Introduction au droit français, Nomos, Baden-Baden, 1995, p.
26 e 27.
(272) Sobre o trabalho da comissão elaboradora e revisora, veja
Senado Federal,
Código Civil - Anteprojetos, v. 5, Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, Brasília, 1989, p. 7 e ss. (p. 250)
por teorias mais conservadoras (e mesmo algumas superadas em seus
países de origem), sem dúvida, por boas razões. Apenas lamento que,
no momento de se elaborar algo novo, no fim de um século tão criativo
e tão contestador{273} tenha se perdido a chance de evoluir, e mais,
tenha
se perdido a chance de pelo menos positivar alguns dos avanços na
proteção dos mais fracos consolidados na década de 90 e já com prática
jurisprudencial pacificada no país.{274}
Não se trata de reeditar a discussão Thibaut/Savigny sobre a
codificação. O projetado Código é uma nova codificação, mais aberta,
com maior número de cláusulas gerais, menos exaustiva ao reconhecer
e citar as leis especiais existentes, uma codificação muito mais
influenciada pelo direito constitucional do que as anteriores, neste
sentido, aberta à evolução e à recepção do discurso atual.{275} Trata-se,
sim, de ousar analisar criticamente a projetada Codificação, discuti-la
e identificá-la como algo em parte positivo, mas também pode ser, em
parte, negativo para a evolução atual da ciência jurídica
brasileira.{276}
O Brasil é um país de tradição formalista, clara herança portuguesa,
* (273) Veja, por todos, Linhares, Célia Frazão e Garcia, Regina
Leite, Dilemas
de um final de século: o que pensam os intelectuais, Cortez, São Paulo,
1996, p. 16 e ss.
(274) Sobre o direito dos juízes como fonte (Rechtsquelle), como
realização
(Rechtsverwirklichung) e como fator de desenvolvimento (Rechtsentwickli-
chung) do direito, veja Flume, Richter und Recht, in: Werner Flume-
Gesammelte Schriften - Band. 1, Verlag Otto Schmidt, Köln, 1988, p. 3 e
ss.
(275) Sobre a importância desta abertura ao novo (mesmo que
discursivo e
político), veja as instigantes (e discutíveis) observações de Jürgen
Habermas,
Direito e democracia entre facticidade e validade, v. 1, Tempo Universi-
tário, Rio de janeiro, 1997, p. 297 e ss.
(276) Neste sentido, recorro às dúvidas e às palavras insuspeitas
de Savigny, ao
responder à Thibaut: "Quanto ao objetivo, estamos de acordo: queremos o
fundamento de um direito não dúbio, seguro quanto às usurpações da
arbitrariedade e dos assaltos da injustiça, este direito igualmente comum
a toda a nação, e a concentração de seus esforços científicos. Para esta
finalidade desejam um código, que, contudo, a uma metade somente da
Alemanha traria a ansiada unidade, enquanto a outra metade ficaria ainda
mais aviltada. Quanto a mim, vejo o ponto de equilíbrio numa ciência do
direito organizada, progressiva, que pode ser comum à nação toda" (Da
vocação, apud Norberto Bobbio, O positivismo jurídico - Lições de
Filosofia do Direito, Cone, São Paulo, 1995, p. 62). (p. 251)
e, de um direito, extremamente posItivista,{277} o que assegurará um
forte
impacto do projetado novo Códico na prática e na interpretação do
direito privado brasileiro, se aprovado este projeto.
Sendo assim, quero, em virtude dos limites deste estudo, analisar
rapidamente o projeto e o seu eventual impacto no direito atual
brasileiro. Penso útil retratar, ainda que sucintamente, as matérias
reguladas pelo projeto, suas cláusulas gerais e princípios que segue e
o conteúdo das normas específicas de direito dos contratos, de forma
a poder identificar as inovações por ele incorporadas e positivadas em
relação ao Código de 1916 e o Código de Defesa do Consumidor.
Somente assim poderemos imaginar como se dará a possivel coexis-
tência, conexão e a mútua influência entre o projetado Código e o
Código de Defesa do Consumidor como lei especial e anterior.
Em matéria de obrigações e contratos, assimilou o projeto da
dogmática dos anos 70 e 80, um forte espírito de intervenção do
Estado na conduta moral e autonomia da vontade das partes, introdu-
zindo os paradigmas da função social dos contratos (art. 420), o da
boa-fé objetiva na interpretação (art. 112) e na formação e execução
do contrato (art. 421), o do controle dos contratos de adesão (art. 422
e ss.) e o da redução das cláusulas penais (art. 412), mas reintroduz
o recusado e subjetivo requisito "moral" da causa na forma do motivo
determinante (bewegliche Grund) para a validade do ato (art. 165, III),
perde a oportunidade de inovar em relação a 1916 quanto ao regime
da oferta (art. 426 e ss.), quanto ao regime da promessa (art. 438), ao
dos vícios redibitórios (art. 440 e ss.) e ao das perdas e danos (art.
401
e ss.), revalorizando o silêncio como aceitação (art. 110), o caso
fortuito interno e externo como causa de liberação da responsabilidade
mesmo de profissionais (art. 392) e apresentando uma limitada visão
da lesão enorme. Lesão é no projeto somente vício da vontade e não
o desequilíbrio da perturbação do sinalagma da obrigação. Como vício
da vontade está sujeita, assim, ao regime da anulabilidade (art. 156 c/c
170, II), isto é, à própria autonomia da vontade. Por fim, mencione-Se
que enquanto a tendência do CDC e da jurisprudência é de expandir
os prazos prescricionais e decadenciais, através da flexibilidade no seu
início ou em interpretações sistemáticas positivas aos mais vulneráveis
* (277) Sobre o positivismo jurídico e como aceitá-lo, de forma
moderada e ética,
como método científico atual, veja Bobbio, Positivismo, em especial, pp.
237 e 238. (p. 252)
no mercado, o projetado futuro CC, que visa regular as relações civis
e comerciais, reduz drasticamente os prazos prescricionais, prejudican-
do os litigantes eventuais (art. 204 e ss.).
O projeto apresenta algumas normas progressistas como as
referentes ao direito da personalidade (art. 11 e ss.), ao abuso da
fpersonalidade jurídica (art. 50), às novas provas aceitas (art. 222 e
ss.).
Seu grande trunfo são as suas cláusulas gerais que podem levar a uma
evolução positiva do direito, como, por exemplo, a já existente cláusula
geral de proibição de atos ilícitos culposos (art. 185), uma nova e
avançada cláusula geral sobre o abuso do direito (art. 186), sobre
estipulação em favor de terceiros (art. 435), sobre resolução por
onerosidade excessiva e imprevisão (art. 477), sobre enriquecimento
sem causa (art. 883 e ss.) e sobre responsabilidade por risco (art. 926).
Se o Projeto menciona mais de 18 vezes a boa-fé, deixou
inexplicavelmente, porém, de regular os simples deveres de conduta ou
anexos oriundos da boa-fé e da proteção da confiança, como o dever
de informar, de cooperar, de cuidado e de segurança nas relações
contratuais e mesmo extracontratuais.
É um Código preocupado com o relacionamento entre iguais
(civis entre si e comerciantes entre si). É um Código que faz expressa
reserva das leis especiais, dentre as quais se inclui o CDC, logo,
não pretendendo revogá-lo como afirmaram inicialmente alguns. O
Art. 2.041 do projeto menciona a revogação de toda a legislação "civil
ou mercantil" incompatível com o novo Código, mas o artigo
subseqüente expressamente menciona as remissões antes realizadas.
Parece-me, pois, que este projeto de Código Civil nasce com um
pequeno campo de aplicação, quase residual em face de tantas leis
especiais que ele mesmo excepciona e, com isto, recepciona expres-
samente. Frente ao CDC, as incompatibilidades praticamente não
existem, pois que nos capítulos referentes ao regime dos vícios
redibitórios, às garantias contratuais como a evicção, aos contratos
de adesão e aos contratos de serviços em geral faz menção expressa
às leis especiais, ressalvando-as. Incompatibilidades seriam apenas de
grau, uma vez que o princípio norteador de ambos os estatutos é
o mesmo, o da boa-fé objetiva.
Da Constituição Federal de 1988, o projeto assimilou as linhas
de direito de família e de direitos reais, não, porém, o que de mais
interessante havia, a valorização dos direitos fundamentais de nova (p.
253)
geração no dia-a-dia das relações privadas,{278} a Drittwirkung alemã,
o efeito horinzontal do direito constitucional para assegurar a
harmonia nas relações privadas. Ficaram de fora deste Código que
unifica as obrigações civis e comerciais (Livro I da Parte Especial)
e que regula em detalhes o direito da empresa (Livro II da Parte
Especial) as sociedades e pessoas jurídicas (art. 980 e art. 40 e ss.)
os títulos de crédito, as linhas de proteção dos mais fracos na
sociedade presentes na Constituição Federal, de proteção do consu-
midor, das crianças, índios e do meio ambiente em geral, todos
relegados, a exemplo do que dispõe o parágrafo único do art. 4.º
do Projeto, à legislação especial.

2.2 Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos anteriores

Outra importante questão é se as normas do CDC, por tratarem-


se de normas de ordem pública, como esclarece o art. 1 .º da nova lei,
aplicam-se automaticamente a todos os contratos existentes no merca-
do, tenham sido eles concluídos antes ou depois da entrada em vigor
da lei. Ou se a proteção do consumidor terá como marco inicial a
entrada do Código em vigor.
O tema a ser analisado é um dos mais polêmicos e interessantes
do novo direito do consumidor e, mesmo, da teoria geral do direito
brasileiro: a aplicação ou não das normas do CDC a contratos assinados
antes da entrada em vigor da nova lei.
Vivemos em uma sociedade de contínuas mudanças, de um
pluralismo social, político e étnico, onde as mudanças sociais e O
próprio desenvolvimento do mercado e do país levam a uma constante
atividade legislativa. As mudanças na legislação, tanto federal como
estadual, afetam diretamente a vida dos consumidores, modificam o
mercado e suas regras, asseguram novos direitos ou impõem novos
deveres. Neste somar e renovar de leis, na maioria leis como objetivos
econômicos e políticos, o grande questionamento é a influência dessas
modificações nas relações privadas dos consumidores.
* (278) Exceção seja feita às normas sobre direitos da
personalidade (art. 11 e ss)
e o dano moral resultante da violação destes direitos, como foi Já
mencionado no texto. (p. 254)
Inicialmente, é necessário frisar que as generalizações nesta
matéria são perigosas, pois nem todas as leis novas são benéficas aos
consumidores, nem todas são prejudiciais. A mudança legislativa pode
vir ao encontro dos interesses dos consumidores ou não, e na maioria
das vezes, nem mesmo o legislativo ou o executivo podem julgar
exatamente quais os efeitos práticos a mudança legislativa trará; afirma-
se costumeiramente que a mudança legislativa é necessária e favorecerá
(direta ou indiretamente) os consumidores, o que nem sempre se
confirma na prática.
Igualmente, nem todas as leis introduzem preceitos imperativos
em relações privadas, matéria que aqui mais nos interessa. As leis com
finalidade econômica e as leis com finalidade social, que desejam
influenciar o mercado, são normalmente imperativas ou seriam afas-
tadas por disposições contratuais.
Se realmente no Brasil a experiência demonstrou, com diversos
planos e mudanças econômicas, que a maioria da leis novas com cunho
econômico vêm em prejuízo do consumidor, sua eventual aplicação
imediata à relações privadas em curso seria em prejuízo imediato ao
consumidor e aos direitos por ele assegurados pelo próprio CDC.
Ocorre que, como em matéria contratual alguns anos de vigência é
um
curto tempo, muitas relações contratuais em curso são anteriores a
entrada em vigor do CDC e o próprio CDC inclui-se, portanto, para
estas relações, como uma lei nova e de ordem pública. O CDC é ótimo
exemplo de uma lei com função social que objetiva justamente
influenciar o mercado brasileiro, impor um novo paradigma de boa-
fé nas relações de consumo privadas como forma de abrandar o
desequilíbrio causado pelo princípio da autonomia da vontade na
sociedade de massas. O CDC como lei nova, com um forte e amplo
campo de aplicação, procura com seus novos direitos e princípios
beneficiar o próprio consumidor e as pessoas legalmente a ele equipa-
radas.
Note-se que a possível influência da mudança legislativa, da
entrada em vigor de lei nova, na vida dos indivíduos possui três graus:
a influência nas relações futuras é certa e geralmente impossível de ser
afastada, mesmo por disposição contratual; a influência nas relações
contratuais que já surtiram efeitos e consumaram-se é nenhuma, por
motivos práticos e também em virtude da aplicação da garantia do ato
jurídico perfeito; a grande pergunta é sua influência sobre as relações
(p. 255)
atuais à época da entrada em vigor da nova lei, ou melhor sobre os
efeitos atuais de relações já existentes antes da entrada em vigor da
nova lei.
Trata-se, portanto, de um problema diário (a aplicação ou não das
normas do CDC às relações contratuais anteriores a sua entrada em
vigor), cuja resposta pela jurisprudência brasileira ainda é diferenciada
e sobre o qual a doutrina poucas vezes se manifesta.
Na primeira edição tivemos a ocasião de afirmar que: "A segunda
hipótese é a menos polêmica, pois coaduna com o princípio constitu-
cional do respeito ao ato jurídico perfeito e aos direitos adquiridos
(art.
6.º da LICC e art. 5.º, XXXVI da CF), mas relembre-se que tradicio-
nalmente as normas de ordem pública têm aplicação geral e imediata
e que a defesa do consumidor também recebeu garantia constitucional
(art. 5.º, XXXII da CF). O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso
Especial 7.904-ES, referente ao Plano Bresser de estabilização econô-
mica, parece ter aceito a tese francesa da existência de normas de
ordem pública econômica, normas estas, "que implicam na derrogação
de cláusulas de contratos em curso". Completando, no RE 1850-RS,
com a afirmação que as normas de ordem pública têm incidência
imediata, não prevalecendo sobre elas o direito adquirido e concluindo
que os pactos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda), mas não
têm o condão de derrogar leis imperativas, cogentes.
Igualmente, a experiência em direito comparado{279} demonstrou
que as novas leis de defesa do consumidor foram aplicadas a todas as
relações contratuais em curso quando de sua entrada em vigor. O tema
é ainda mais interessante quando se observa que a proteção concedida
pela nova lei ao consumidor pode ser dividida em dois momentos. O
momento pré-contratual terá de continuar a ser regido pela lei vigente
à época; mas, no momento contratual, toda a vez que o efeito do
cumprimento do contrato já firmado ofender o espírito da nova lei,
ofender os direitos agora assegurados ao consumidor, quebrar o agora
obrigatório equilíbrio contratual, este efeito será contrário a esta nova
noção basilar do nosso sistema jurídico, à norma de ordem pública, e
o juiz poderá aplicar as normas do CDC para afastar este efeito agora
proibido. O tema, porém, é complexo em virtude da hierarquia
constitucional dos dois valores envolvidos - proteção do consumidor
* (279) Veja a experiência em Lancin, p. 379. (p. 256)
e respeito ao ato jurídico perfeito - ambos dispostos no art. 5.º da
Constituição Federal de 1988."
De forma sucinta, portanto, aparecem aqui os três pontos princi-
pais que alimentam a polêmica sobre a matéria: a) o Sistema brasileiro
de garantias constitucionais quanto ao respeito ao ato jurídico e aos
direitos adquiridos; b) a importância renovada da teoria, de origem no
direito comparado, da aplicação imediata das normas de ordem pública
econômica; c) o fato de na Constituição de 1988 as garantias consti-
tucionais também incluírem a proteção dos interesses dos consumidores
pelo Estado. Considerando a complexidade do tema e a divisão ocorrida
na jurisprudência brasileira nestes primeiros anos de vigência do
Código de Defesa do Consumidor devemos, nesta edição, aprofundar
necessariamente a análise, apresentando as principais teses aceitas pela
jurisprudência brasileira e algumas opiniões pessoais.

a) As garantias constitucionais do direito adquirido e do ato


jurídico perfeito - Em matéria de aplicação da lei nova a relações
contratuais privadas, os valores em conflito são de grande importância:
a segurança jurídica e a nova noção de justo ou desejável introduzida
pela nova lei.
A segurança jurídica é um valor tão importante que alcançou,
melhor conquistou, no Brasil, hierarquia constitucional, justamente
face a nossa tradição de relativa facilidade na modificação das leis e
certa tendência de generalizar, através de leis, a proteção de determi-
nados interesses pessoais ou de determinados grupos ou regiões
influentes. Efetivamente a regra do art. 5.º, XXXVI da Constituição
Federal de 1988 reproduz a já tradicional garantia constitucional de
proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa
julgada.
Se as garantias constitucionais vinculam os três poderes, inclusive o
legislativo, é geralmente o judiciário o garante efetivo (e último) desta
valoração constitucional, afastando abusos ou arbítrios na atuação do
legislativO ou executivo.
Se não há dúvida sobre a importância da finalidade (ratio) e dos
valores que orientam esta garantia constitucional, o mesmo não se pode
afirmar quanto a sua interpretação e subsunção. O que realmente
significa o Begriff "ato jurídico perfeito"? Quando e como um direito
pode ser considerado como "direito adquirido"? São estes termos
técnicos verdadeiros sinônimos de "irretroatividade das leis"? (p. 257)
"Bem pouco satisfatória" é a expressão usada por Teixeira de
Freitas para caracterizar o estado da ciência do direito no que se refere
a irretroatividade das leis no tempo e a proteção do direito
adquirido.{280}
No artigo primeiro de seu Esboço, consciente da importância do tema,
afirma ele, porém, que as leis daquele Código não deveriam ser
aplicadas "com efeito retroativo".
Passado um século da lição do mestre, o estado da ciência
evoluiu,
chegou mesmo a consolidar alguns princípios e exceções, atingiu um
razoável grau de uniformização na jurisprudência brasileira; nas
últimas décadas, porém, voltou a entrar em crise, multiplicando as
discussões judiciais sobre esses temas centrais: a aquisição de direitos
e a aplicação ou não das leis novas aos contratos constituídos antes de
sua vigência.
Os atuais aplicadores da lei, especialmente do CDC, encontram-
se na mesma situação incômoda de Teixeira de Freitas: conscientes da
importância do tema, mas com um instrumentário insuficiente ou pouco
convincente para solucionar de maneira justa todas as possíveis
variantes que se apresentam no dia-a-dia.{281}
Neste contexto rarefeito em convicções ganhou em importância
a interpretação dada pelo sempre brilhante Min. Moreira Alves do que
seja o ato jurídico perfeito (ADin. 493-0-DF-TP){282} Esta interpretação,
* (280) Freitas, Esboço, p. 2, veja tb. Vélez Sarsfield, "Código
Civil de la
Argentina - con notas de Vélez Sarsfield y Legislación complementaria",
AZ Editora, Buenos Aires, 1991, p. 6, notas ao art. 3.
(281) Assim o TRF da 2.ª Região, para proteger o mutuário do
sistema do SFH,
afirma que "as leis e regulamentos vigentes no momento da celebração do
contrato a ele se incorporam", citando o art. 4.º do CDC, para garantir a
equivalência com os salários do mutuário atingido pela mudança
legislativa.
(AC 02.09750/90-ES, 2.ª T., j. 15.10.90); de outro lado, o STJ em
decisões
sobre o Plano Cruzado, determinou a sua aplicação imediata aos contratos
em curso (RSTJ, 3 (19, p. 496, j. 30.10.91, 4.ª T.); o STF de um lado
permitiu a substituição do critério contratual (valor do salário mínimo)
pelo
novo critério legal (ORTN), reduzindo sensivelmente os planos de pensão
ou de previdência privada (RTJ 122/1076); de outro, decidiu pela inapli-
cabilidade da lei nova sobre a correção monetária nos créditos rurais
(RTJ
125/1143); as mesmas dissidências podem ser encontradas nas decisões dos
Tribunais estaduais, veja Jurisprudência do TJRGS, v. 1990 (4), 205; 1993
(1), 178, 1993 (1), 273.
(282) Reproduzida na íntegra in RT 690/176-266. (p. 258)
baseada na originalidade do sistema brasileiro, onde as garantias são
constitucionais, como forma de combater as teses do direito compa-
rado sobre a possibilidade de aplicação imediata da lei de ordem
pública (letra b, a seguir), é um dos pontos altos da discussão
científica
sobre a matéria.{283}
Note-se, porém, que o fato da discussão científica e jurispruden-
cial da atualidade concentrar-se na figura do ato jurídico perfeito
denota
já uma subsunção altamente valorativa. Em verdade, os temas do
respeitO ao direito adquirido e do ato jurídico perfeito encontram-se
intimamente ligados, especialmente em sua função, pois ambos de-
monstram a força (e a legitimação), em nosso sistema do direito, da
vontade dos indivíduos ( Wille) para criar e manter direitos e
obrigações,
especialmente frente a leis supervenientes, ou melhor, a força e a
legitimação para manter tais direitos e obrigações mesmo que contra-
riamente ao disposto em leis posteriores.{284}
Quanto a sua função, inserem-se ambos no sistema do direito
como institutos, ao lado do da coisa julgada, que objetivam assegurar
a chamada "segurança e estabilidade da vida social",{285} quanto a sua
estrutura, trazem ambos como característica básica o respeito a vontade
pactuada, a superação da vontade individual frente a vontade geral,
teoricamente representada pela lei nova.
Mencionamos, porém, que concentrar a discussão na figura do
ato jurídico perfeito significa já uma opção desvalorativa, uma
aproximação à visão pura do direito, porque em sua estrutura de
funcionamento, em seu conceito e conteúdo, as duas figuras efeti-
vamente se diferenciam.
* (283) Seguirei aqui minhas observações apresentadas no Simpósio
"Contratos
de Incorporação Imobiliária e a Lei 8.078/90", organizado pelo Centro de
Estudos do 1.º Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo e pela Escola
Nacional da Magistratura, dia 27.8.93, em São Paulo, sob o título "Ato
jurídico perfeito e Código de Defesa do Consumidor - Uma teoria
brasileira
do ato jurídico perfeito?"
(284) Com clareza afirma Celso Ribeiro Bastos, p. 192, "O direito
adquirido
consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato
contrário
ao previsto pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar a
gozar dos efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido
revogada" (Comentários à Constituição Federal de 1988, v. 2, 1989).
(285) A expressão é de Oscar Tenório, p. 207. (p. 259)
O conceito de direito adquirido traz em si um potencial
valorativo
muito maior. Só tem direito adquirido aquele que respeita, não somente
uma lei, uma norma, aquele que conclui um ato criador no mundo dos
fatos (Tat=Ato), mas aquele que respeita todo um ordenamento jurídi-
co, de normas positivas e princípios (Recht=Direito).
O direito adquirido é direito e não ato, sua fonte é abstrata, é
a
legitimação vinda do próprio sistema jurídico que o reconhece. logo
não há direito adquirido ao abuso. Em outras palavras, não há como
legitimar por esta figura o ato abusivo, pois se é abuso do direito, se
é contrário ao sistema, será contrário ao direito antes ou depois da lei
nova positivar alguns dos valores de ordem pública, antes ou depois
da lei nova procurar esclarecer as aplicações práticas de algum
princípio, como o da boa-fé, que sempre esteve no ordenamento
brasileiro, antes ou depois da entrada em vigor do CDC.{286}
Evita-se assim a discussão do eventual direito adquirido do
fornecedor a ver cumprido o contrato com suas cláusulas hoje consi-
deradas abusivas e nulas por força do CDC, pois a garantia constitu-
cional do art. 5.º, XXXVI dirige-se ao legislador, mas tem um conteúdo
aberto valorativo.
O direito adquirido nada mais é, portanto, que uma situação
jurídica subjetiva que deve ser respeitada pelo legislador. Mas deverá o
legislador respeitar o exercício abusivo atual de direito próprio? Em
outras palavras pode a outra parte alegar contra a incidência de norma
imperativa e de ordem pública, direito adquirido a uma vantagem
excessiva, a uma cláusula leonina ou abusiva, prevista anteriormente
mas cuja eficácia prática ocorreria agora, ferindo a nova ordem imposta.
Como exporemos a seguir (letras b e c), em nossa opinião a
resposta deve ser negativa, mas a argumentação é complexa e difícil
de ser generalizada para todas as leis novas, pois se trata de verdadeira
antinomia de princípios, de exercício de compatibilização de princípios
constitucionais, de importantes valores que estão em jogo. O ceticismo
dos mestres nesta matéria parece confirmar este posicionamento
valorativo e necessariamente tópico. Pontes de Miranda,{287} citando
* (286) Nesse sentido a manifestação do Min. Ruy Rosado de Aguiar
Jr., pela
aplicação do CDC contra a cláusula de perda total das prestações pagas,
REsp. 45666-5-SP.
(287) Comentários à Constituição, ob. cit., p. 75. (p. 260)
Franz Hoffmann, ensína que a afirmação: "direitos adquiridos devem
ser respeitados pelo legislador" é palavra "oca", vazia, pois segundo
ele "dos direitos adquiridos, em sentido particular, chama-se justamente
àqueles direitos que devem ser respeitados pelo legislador; assim temos
um idem per idem. Precisamos indagar quais os direitos que devem
receber especial respeito, e então saberemos o que é que se entende,
propriamente, por direitos adquiridos".
Já a figura do ato jurídico perfeito é menos "valorativa" do que
a do direito adquirido, pois tem em sua base inicial uma atividade do
mundo dos fatos, que recebe do ordenamento jurídico somente uma
legitimação, um status especial, ao ser subsumida no conceito norma-
tivo (Tatbestand). Sua base inicial é mais concreta, pura, visualizável
e mais fácil de ser mantida, pois não é somente uma mudança no mundo
do direito, como o é o nascimento de um direito adquirido ou mesmo
direito eventual ou expectativa de direito.
Contra esta tendência purista, preferem alguns autores
concentrar-
se na teoria dos direitos adquiridos, considerando o ato jurídico
perfeito
uma simples exteriorização, uma fonte visualizável do direito já
adquirido.{288} O direito adquirido seria a faculdade/ação subjetivada
para
aquele titular, segundo o direito, de continuar a extrair efeitos de um
ato contrário ao previsto pela lei atualmente em vigor. Já o ato
"perfeito" seria a fonte, que por ser juridicamente considerado consu-
mado, não pode ser atingido por lei posterior, mantendo a sua força
e legitimando os direitos através dele adquiridos.{289}
Concorde-se ou não com esta visão instrumental do ato jurídico
perfeito, como simples materialização e fonte dos direitos verdadeira-
mente adquiridos, não há como negar a intrínseca diferença valorativa
entre as duas figuras, apesar de idêntica função.
Uma vez que a discussão científica sobre a possibilidade de
aplicação do CDC a contratos assinados antes de sua vigência,
contendo eventualmente cláusulas consideradas abusivas face a nova
lei, concentrou-se não na pergunta da aquisição pelo fornecedor deste
direito contratualmente assegurado pela cLáusula hoje abusiva, mas sim
* (288) Refiro-me aqui aos ensinamentos e expressões do Professor
da matéria,
Rubens Limongi França, Direito Intertemporal Brasileiro - Doutrina da
rretroatividade das Leis e do Direito Adquirido, RT, S. Paulo, 1968, p.
15.
(289) Assim o citado Celso Ribeiro Bastos, p. 192. (p. 261)
na figura do ato jurídico perfeito cabe tentar uma definição desta
figura.
Em uma definição provisória, poderíamos dizer que o ato jurídico
que se diz perfeito é aquele que já se consumou segundo a égide da
lei anterior, agora revogada, modificada ou afastada por lei nova.
Segundo o art. 6.º, § 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro, reputa-se "ato jurídico perfeito o já consumado segundo a
lei vigente ao tempo em que se efetuou". Justamente porque já se
consumou é considerado positivo à segurança jurídica preservar-lhe a
validade, mesmo que segundo a lei nova fosse este ato de vontade
contrário ao direito.
Caracterizado como ato jurídico perfeito está protegido o ato na
sua forma original, porque acompanhado pela lei antiga, a qual lhe
empresta ou emprestou validade. A grande pergunta é o que significa
ser ato "consumado", se é ter surtido seus efeitos, ter se exaurido ou
se é simplesmente ter nascido como causa de futuros efeitos, ato
assinado pelas partes.
No primeiro caso, os efeitos já produzidos estariam incluídos na
garantia constitucional, não os efeitos atuais do ato, por não consuma-
dos, estes efeitos pendentes ou futuros dos atos já assinados regeriam-
se pela lei nova.{290} Na segunda visão, da consumação do ato com sua
simples assinatura (perfeição do ato), tanto a sua formação, quanto os
seus efeitos consumados ou futuros serão regidos pela lei antiga,
mesmo que revogada, mas vigente à época da assinatura.
Em verdadeiro leading case, referente a mudança por lei
do critério de reajuste das prestações da casa própria, o Supremo
Tribunal Federal solucionou o caso de forma extremamente positiva
para os consumidores envolvidos, mas fixou uma interpretação pura de
ato jurídico perfeito que está na prática determinando a não-aplicação
do CDC a uma série de contratos hoje litigiosos. Na ementa oficial,
ensina o Rel. Min. Moreira Alves:
"... Ação direta de inconstitucionalidade. Se a lei alcançar os
efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa
lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa,
que
é um ato ou fato ocorrido no passado.
* (290) Assim ensina Orlando Gomes, Questões, p. 356. (p. 262)
O disposto no art. 5.º, XXXVI, da CF, se aplica a toda e qualquer
lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito
públicO e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei
dispositiva. Precedente do STF.
Ocorrência, no caso, de violação de direito adquirido. A taxa
referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo
as variações de custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo,
não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda.
Por isso, não há necessidade de se examinar a questão de saber se as
normas que alteram índice de correção monetária se aplicam imedia-
tamente, alcançando, pois, as prestações futuras de contratos celebrados
no passado, sem violarem o disposto no art. 5.º, XXXVI, da Carta
Magna.
Também ofendem o ato jurídico perfeito os dispositivos impug-
nados que alteram o critério de reajuste das prestações nos contratos
já celebrados pelo sistema do Plano de Equivalência Salarial por
categoria Profissional (PES/CP).
Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, para
declarar a inconstitucionalidade dos arts. 18, caput e §§ 1.º e 4.º; 20;
21 e parágrafo único; 23 e §§ e 24 e §§, todos da Lei 8.177, de 1.3.91."
(ADInconst 493-0 (Medida liminar) - DF - TP - j. 8.5.91 - rel. Min.
Moreira Alves - DJU 4.9.92.
ADinconst 493-0 - DF - TP - j. 25.6.92 - rel. Min. Moreira Alves
- DJU 4.9.92).{291}
A tese defendida pelo Rel. Min. Moreira Alves, aplicada com um
resultado de justiça inatacável neste julgamento, é hoje majoritária no
Supremo Tribunal Federal e tem influenciado, em muito, outros
Tribunais e Instâncias inferiores. A tese apresenta três elementos
dogmáticos: 1) uma interpretação estrita da perfeição do ato jurídico;
2) uma visão lógica da retroatividade; 3) uma interpretação hierárquica
das garantias constitucionais. Por seu interesse e repercussão devemos
analisar criticamente cada um destes elementos.
O ponto de partida da tese é uma definição estrita do que devemos
considerar ato jurídico perfeito. O contrato analisado é o contrato de
trato sucessivo, já assinado e que ainda está surtindo efeitos (novos).
* (291) Reprodução da íntegra da ementa e do acórdão in RT
690/176. (p. 263)
Nesse sentido manifestou-se o Min. Moreira Alves, com costumeira
clareza em julgamento anterior, afirmando: "Com efeito ninguém nega
que o contrato de locação é um contrato de trato sucessivo. Mas nem
por isso, obviamente deixa de ser um contrato consensual, que é ato
jurídico perfeito no momento em que ocorre o acordo de vontades entre
o locador e o locatário, ou seja, no instante em que se constituiu".{292}
A identificação que precedentes do STF{293} faziam entre a "situ-
ação definitivamente constituída" e o ato jurídico perfeito, é levada
aqui
até as últimas conseqüências através da identificação da "perfeição" do
ato no momento de sua "constituição". Como conseqüência "os efeitos
do contrato em curso no dia da mudança da Legislação regulam-se pela
lei da época da constituição do mesmo".{294}
Esta definição de ato jurídico perfeito supera, em sua
concretização no momento do acordo de vontades, a definição
presente na Lei de Introdução que prioriza a "consumação" do ato,
não a identificando necessariamente com sua simples "constituição
consensual". Concorde-se ou não com esta identificação generalizadora
possui ela um fator positivo que é a identificação da importância
do equilíbrio inicial do contrato. em outras palavras das expectativas
legítimas das partes integrantes do acordo e da aplicação integrativa
da lei então vigente.{295}
Nesse sentido, emanou seu voto o Min. Nery da Silveira no
mesmo caso, afirmando: "Não é possível desconsiderar que a idéia de
contrato implica, de certo modo, a de equilíbrio entre interesses
opostos, manifestado pelas vontades das partes contratantes, colimando
um objetivo, e que por ele se obrigam a cumprir uma determinada
conduta satisfativa." Assim, cumpre ter presente "... na sua execução,
a necessidade de se resguardar o equilíbrio que presidiu os interesses
dos contratantes, ao consentirem".{296}
* (292) In Ag. Inst. 99.655-9-SP, j. 14.9.84, Rel. Min. Moreira
Alves, reproduzido
in Revista Forense 292/221, grifo nosso.
(293) No voto analisado são citados os precedentes in RTJ 55/35 e
106/317.
(294) Assim o Ministro Relator, p. 251, citando precedentes neste
sentido (RTJ
89/634, 90/296, 112/759, 107/394).
(295) Sobre a integração da lei vigente à época da constituição,
veja passagem
do voto do Ministro Relator in RT 690/219.
(296) In RT 690/216. (p. 264)
Note-se, porém, que mesmo esta visão do ato jurídico perfeito
como ato Simplesmente assinado, constituído, não deve impedir a
análise do julgador quanto a licitude do ato, sua consumação nas
prestações e efeitos surtidos, e a entrada ou não desta eficácia no
patrimônio do credor (direito adquirido). Nesse sentido o voto do Min.
Ilmar Galvão{297} dissende ao concentrar seus argumentOs na noção
basilar de direito adquirido.
Na tese vitoriosa, o exame do direito adquirido dá lugar ao exame
da retroatividade ou não existente em caso de aplicação da lei aos
efeitos atuais do contrato assinado anteriormente a entrada em vigor
da lei nova. Nesse sentido, ensina o Ministro Relator, citando Roubier:
"se a lei nova infirmar cláusula estipulada no contrato, ela terá efeito
retroativo, porquanto ainda que os efeitos produzidos anteriormente à
lei nova não fossem atingidos, a retroatividade seria temperada no seu
efeito, não deixando, porém, de ser verdadeira retroatividade", deno-
minada de retroatividade mínima, mitigada ou temperada.{298}
No que se refere a visão da retroatividade (2), incluindo a
retroatividade mínima sobre os facta pendentia, correta em princípio
a tese do STF, pois aqui reside uma das fontes do tratamento por vezes
diferenciado do consumidor e mesmo prejudicial a estes. Efetivamente,
a irretroatividade das leis é a regra no direito brasileiro e a
retroatividade
(mesmo que mínima) é uma exceção, e como esta deve ser tratada, logo
sua interpretação e aplicação deve ser estrita.{299}
Esta posição é muito mais segura para o aplicador da lei, em uma
matéria tão controversa e - para os indivíduos - perigosa como os
efeitos da lei nova sobre as relações privadas em curso. Assim nas
famosas decisões sobre a eliminação do reajuste pelo salário mínimo
nos contratos de previdência privada, se o Supremo Tribunal Federal{300}
* (297) Na referida ADin, in RT 690/247.
(298) In RT 690/213 e quanto a denominação, p. 212.
(299) Nesse sentido o voto do Min. Celso de Mello, in RT 690/195,
que conclui
pela excepcionalidade da eficácia retroativa das leis no sistema de
direito
constituciOnal POsitivo brasileiro e a nega no caso, face as prescrições
"nitidamente mais gravosas" para os mutuários (p. 194). Assim, Ana Paula
Borges, p. 25, Citando os ensinamentos de Carlos Maximiliano.
(300) Refiro-me a decisão de 30.6.87, Rel. Min. Sydney Sanches,
RExt.
107.763-RS, reproduzida in RTJ 122/1.076, onde foi considerada válida
- contrariamente ao que dispunha o contrato assinado vários anos antes
(p. 265)
e posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça{301} tivessem recusado
a eficácia imediata, ou retroatividade mínima da lei nova, através de
uma interpretação estrita e do decisivo argumento complementar da
existência de direitos adquiridos (a futura prestação conforme as
expectativas despertadas no mercado pelos fornecedores destes servi-
ços), os pensionistas e aposentados vinculados a empresas de previdên-
cia privada não estariam recebendo valores tão ínfimos como os atuais
e teriam efetivamente assegurado um melhor futuro.
Se a interpretação e a aplicação do efeito imediato das leis deve
ser estreita, parece-nos que a visão lógica e concreta imposta pela tese
é excessivamente kelsiana e por sua teórica pureza e abstração pode
ser usada para impedir a atuação corretiva do juiz. A visão abstrata da
tese cria uma quase impossibilidade de mudar um efeito do contrato,
pois estaríamos mudando o próprio contrato, a causa. Este argumento
lógico "causa/efeito" falha ao extinguir a possibilidade de exame da
"causa", melhor dizendo da validade da "causa", por exemplo, da
cláusula contratual ilícita ou abusiva presente neste contrato que agora
se examinam os "efeitos".
Se não posso modificar nenhum efeito do contrato assinado, sob
pena de mudar sua causa-concreta, não posso examinar nenhum aspecto
do contrato, ato jurídico "já perfeito", pois qualquer atuação
nulificante,
modificadora ou mesmo interpretadora de forma teleológica do julgador
modificará a "causa histórica", o contrato como formado (lícita ou
ilicitamente) no dia da assinatura.
Destaco o perigo desta argumentação e sua lógica, pois considero
que o princípio da boa-fé nas relações contratuais e o ideal de combate
ao abuso do direito e uso indevido das posições dominantes no mercado
*- "a substituição do valor do salário mínimo como fator contratual de
reajustamento, pelo índice de variação da ORTN", nesta mesma
linha RE
1.779-RS (RTJ 122/1.146), RE 105.285-RS (RTJ 124/636) e o RE
105.137-0, Rel. Min. Cordeiro Guerra (DJ 27.9.87).
(301) Refiro-me a decisão do REsp. 29-RS (R. Sup. Trib. Justiça,
1 (3) 1.032,
nov./89), pela incidência imediata da lei nova de ordem pública, "a
regular
a atualização das contribuições e dos benefícios da previdência privadas
sem violação de direito adquirido." Contra considerando a existência de
direito adquirido, face a expectativa de segurança dos consumidores e das
pessoas que queriam beneficiar, voto basilar do Des. Adroaldo Fabrício
do Tribunal de Justiça/RS, no caso. (p. 266)
já existiam antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988
(e sua garantia de proteção dos consumidores), assim como antes da
entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor. Levado às
últimas conseqüências de sua lógica arrebatadora o argumento signi-
ficaria a impossibilidade do juiz considerar uma cláusula do contrato
assinado como abusiva, frente ao sistema jurídico existente então, pois
não poderia lhe negar efeito no momento, ou estaria ferindo o ato
jurídico perfeito.{302}
É importante frisar que o ato jurídico pode ser assinado e não
ser
juridicamente perfeito. Como ensinava Clóvis Bevilacqua: "Já ficou
dito que o direito adquirido pressupõe um fato capaz de produzi-lo,
segundo as determinações da lei" (então vigente). "A segurança do ato
jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido, pela
proteção concedida ao seu elemento gerador."{303} Um ato assinado pode
não ser gerador de direitos adquiridos, mas pode ser gerador de efeitos
já consumados, agora intocáveis, por isso mesmo a definição do art.
6.º, § 1.º da LICC prioriza a expressão "consumado", para frisar sua
diferente função em relação ao direito adquirido.{304}
Parece-nos importante frisar igualmente que o ato jurídico pode
ser assinado (perfeito, segundo a tese) e não ser totalmente lícito ou
válido. Ou chegaremos à conclusão que era melhor para os consumi-
dores-contratantes não ter o legislador promulgado o CDC, o qual em
verdade somente positiva as linhas ético-jurisprudenciais e concretiza
princípios já existentes no ordenamento jurídico.{305} Face a nova lei,
estaria o julgador impedido de examinar os "atos jurídicos assinados"
* (302) Veja decisão do TJDF que considerou aplicável o CDC a
contrato assinado
anteriormente a sua vigência, mas cujo distrato foi posterior. Tal
decisão
foi mantida pelo STJ, RE 108236-DF, j. 1.4.97, rel. Min. Barros Monteiro,
a contrato anterior para declarar abusiva a cláusula-mandato de um Banco.
(303) Comentários ao art. 3º, LICC, p. 98.
(304) Abstraindo e generalizando em demasia a noção de ato
jurídico perfeito há
o perigo desta retirar toda importância da garantia do direito adquirido,
pois
só haveria necessidade de garantir direitos adquiridos de fonte não
contra-
tual, estes sim na maioria inexistentes face a modificação legal.
(305) Nesse sentido a lição de Antônio H. V. Benjamin, no
Seminário Paraibano
de Direito do Consumidor, 26.8.94: "A lei nova vem cristalizar o posicio-
namento da jurisprudência e acaba prejudicando o consumidor, porque se
usa o argumento da não-retroatividade." (p. 267)
(causa) e teria que tolerar todos os efeitos, mesmo os antes não
tolerados - abusivos - dos atos assinados (efeito).
Nesse sentido, destaque a manifestação dissidente do Min. Rui
Rosado de Aguiar do STJ, em ação versando sobre cláusula de
perdimento: "Diz-se que a sua aplicação a contrato assinado antes
de sua vigência significaria violação ao princípio da irretroatividade
da lei, assim como expresso na Constituição da República. Ocorre
que, tanto agora como antes, não há como admitir um direito
subjetivo fundado em cláusula iníqua, nem validade de ato negocial
onde se manifesta o arbítrio de uma das partes, com exercício abusivo
de direito".{306}
Por fim, a tese destaca a originalidade do sistema brasileiro de
conflitos de leis no tempo e suas repercussões nas relações privadas,
uma vez que - contrariamente à França, Alemanha e Itália, países de
origem de muitos dos doutrinadores mais citados na matéria - no Brasil
a garantia do ato jurídico perfeito possui hierarquia
constitucional.{307}
Logo, tal hierarquia subjuga o próprio legislador, que mesmo querendo,
não poderá promulgar lei que viole os atos jurídicos perfeitos, cabendo
ao Judiciário a garantia deste princípio constitucional.{308} Esta
hierarquia
constitucional impediria a retroatividade (mesmo que mínima) de
qualquer lei infraconstitucional, seja de direito público ou privado, e
* (306) Voto vista in REsp. 45666-5-SP, j. 17.5.94, 4.ª T., STJ.
p. 3 do original, ainda
não publicado.
(307) A p. 208 (RT 690) foi transcrito o voto do Min. Moreira
onde desenvolve
este pensamento (REsp. 1.451-7-DF): "Aliás, no Brasil, sendo o princípio
do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa
julgada
de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de
legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao
direito de países em que o preceito é de origem meramente legal - de que
as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos
futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se
se
alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na
causa,
o que é vedado constitucionalmente".
(308) Sobre o tema veja artigo de Raul Machado Horta,
"Constituição e Direito
Adquirido", in Revista Trimestral de Direito Público, 1 (1993), p. 50 e
SS.
Segundo o autor, a exceção da Constituição autoritária de 1937, as outras
Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1988 instituíram o princípio do
direito
adquirido, absorvendo nele a irretroatividade da lei, que deixou de
figurar
no texto da Constituição, p. 56. (p. 268)
dentre estas últimas, as normas de ordem pública normais e as que
estabelecem novos "estatutos".
Sobre o poder do legislador e a hierarquia constitucional ensinou
o Min. Aliomar Baleeiro (RExt. 62.731-GB): "Já se disse que o
Parlamento britânico pode tudo... Mas num país de Constituição
escrita e rígida não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode
transformar o quadrado no redondo, sempre que o redondo e o
quadrado tenham sido desiCnados como tais na Constituição, expressa
ou implicitamente".{309}
Interessante notar, que apesar do ceticismo exposto no voto, o
Min. Baleeiro concluiu pela eficácia imediata da nova lei e pôs a salvo
somente os efeitos já consumados, exemplificando de maneira bastante
figurativa: "... Eu contesto é que se possa negar efeitos já produzidos,
decorrentes de situação definitivamente constituída. Suponhamos que
neste momento a lei marque o teto de 6% à usura. Será feita uma lei
ou Decreto-lei baseado na segurança nacional, e dirão no Brasil, no
empréstimo, não poderá mais cobrar juros, juro é pecado. Assim, com
tais fundamentos morais, ficam proibidos os juros. Tendo validade essa
lei, daqui para o futuro ninguém mais pagaria juros, mas quem recebeu
juros até hoje não é obrigado a devolvê-los. Ninguém pode pedir de
volta o juro que estava vencido até ontem; ninguém deixa de ser credor
de juro que estava vencido até ontem. É uma situação definitiva. O
credor não pode ser prejudicado".
Estes ensinamentos bem refletem a realidade brasileira, de uma
mudança constante de leis e da dificuldade conseqüente do julgador.
Sendo assim destaque-se a importante identificação que fez o referido
Ministro da fonte máxima de nosso sistema: a própria constituição. Este
argumento é especialmente importante no caso do CDC, pois a defesa
do consumidor não é só princípio da ordem econômica (art. 170, V da
CF/88), mas é principalmente direito e garantia fundamental de todos
frente ao Estado, inclusive frente ao Legislativo e ao Judiciário (art.
5.º,
XXXII da CF/88); na figurativa linguagem de Baleeiro: um "quadrado"
tão constitucional quanto o ato jurídico perfeito e que não deve ser
ignorado pelo julgador.
* (309) Nesse sentido reproduzo histórica frase do Min. Aliomar
Baleeiro (RExt.
n. 62.731-GB, j. 23.8.67, in RTJ 45/564). (p. 269)
De outro lado, o Min. Baleeiro frisa com grande sabedoria o
"status" de credor, relembrando assim - indiretamente - a aquisição de
um direito. Quem é credor, segundo a lei antiga, não deixará de sê-lo,
apesar da lei nova. Retornamos assim ao tema central do direito
adquirido, daquele direito que já está incorporado ao patrimônio do
credor, não pelas simples assinatura do contrato, mas por sua "qualifi-
cação especial", como direito legalmente adquirido segundo a lei antiga.
Certo é que a concentração operada na figura do ato jurídico perfeito tem
finalidade fugir da insegurança da noção de direito adquirido.
Na jurisprudência atual brasileira, a tese continua a ser
utilizada,
especialmente para proteger os consumidores dos reiterados planos
econômicos, o que é positivo, pois estas intervenções legislativas
rompem o sinalagma contratual inicial, consolidam ainda mais o
desequilíbrio de forças ao concentrar riquezas e excedem os limites do
razoável na vida contratual.{310} De outro lado, a supremacia desta tese
deixou tantos outros consumidores, especialmente os ligados a contra-
tos cativos de longa duração, sem a proteção do novo sistema e a
depender de uma interpretação atualizadora de um sistema contratual
superado. Irrazoável é sem dúvida o caso de ruptura do sinalagma
contratual funcional, de quebra da base do negócio, de frustração da
finalidade do negócio e de frustração absoluta das expectativas legí-
timas de um dos contratantes. Todos os outros casos merecem uma
ponderação tópica e cautelosa.{311}
* (310) Exemplo de utilização atual desta linha de pensamento é a
decisão do
STF no Recurso Extraordinário 201-176-2/RS, 1.ª T., j. 10.12.1996, Rel.
Min. Celso de Mello, reproduzida na íntegra na RT 741/202-206, cujo
final da ementa é o seguinte: "O contrato de depósito em caderneta de
poupança, enquanto ajuste negocial validamente celebrado pelas partes,
qualifica-se como típico ato jurídico perfeito. à semelhança dos negócios
contratuais em geral, submetendo-se, quanto ao seu estatuto de regência,
ao ordenamento normativo vigente à época de sua estipulação. Assim
sendo, caso a sua contratação ou renovação tenha ocorrido antes da
entrada em vigor da Lei 7.730/89, não se aplicam as normas dessa
legislação infraconstitucional, em virtude do exposto no art. 5.º, XXXVI,
da CF, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data
posterior".
(311) Veja, como exemplo, decisão do TJ/GO, na Revista Forense
338, p. 334,
em que o CDC foi aplicado a contrato anterior para declarar abusiva a
cláusula-mandato de um Banco. (p. 270)
Concluindo, se a tese apresentada é erudita e correta, resta uma
grande dúvida quanto à sua possibilidade de aplicação a todos os casos.
Encontrou-se verdadeiramente o elemento abstrato, objetivo e neutro
capaz de solucionar com justiça todos os casos, através desta estrita
interpretação de ato jurídico perfeito? Se a tese ora vitoriosa pode ser
usada na maioria dos casos, parece-me que com relação a aplicação do
CDC a contratos anteriores a março de 1991, esta visão abstrata ignora
um elemento importante: a hierarquia constitucional da garantia à
defesa dos interesses dos consumidores. Por vontade do legislador
constitucional estamos aqui frente a uma antinomia de princípios, a uma
teórica contradição de valores. De um lado, o respeito à vontade
individual consubstanciada no ato alegadamente "perfeito", de outro, o
valor social da obrigação do Estado (inclusive do judiciário) de proteger
os mais fracos na relação, os consumidores. Trata-se justamente de uma
antinomia necessária de valores, um conflito de princípios basilares
constitucionais, que deve necessariamente ser decidido pelo julgador.

b) A garantia constitucional da defesa do consumidor - A


Constituição Federal de 1988 ao regular os direitos e garantias
fundamentais no Brasil estabelece em seu art. 5.º, inc. XXXII a
obrigatoriedade da promoção pelo Estado (Legislativo, Executivo e
Judiciário) da defesa do consumidor. Igualmente, consciente da função
limitadora desta garantia frente ao regime liberal-capitalista da econo-
mia, estabeleceu o legislador constitucional a defesa do consumidor
como um dos princípios da ordem econômica brasileira, a limitar a livre
iniciativa e seu reflexo jurídico, a autonomia de vontade (art. 170, V).
Ao garantir aos consumidores a sua defesa pelo Estado criou a
constituição uma antinomia necessária em relação a muitas de suas
próprias normas, flexibilizando-as, impondo em última análise uma
interpretação relativada dos princípios em conflito, que não mais
podem ser interpretados de forma absoluta ou estaríamos ignorando o
texto constitucional.{312}
A procura deste caminho "de meio" é a nova linha de interpretação
conforme a Constituição imposta pelo próprio Supremo Tribunal Fede-
ral. Em caso envolvendo os estabelecimentos de ensino e a noção de
* (312) Assim a manifestação de Miguel Reale, em 27.8.93, no
Simpósio orga-
nizado pelo 1.º TACivSP, "Os contratos de incorporação imobiliária e a
Lei 8.078/90", em São Paulo. (p. 271)
livre iniciativa e defesa do consumidor (ADin 319-4-DF), o Min.
Moreira Alves ensina: "... havendo a possibilidade de incompatibilidade
entre alguns dos princípios constantes dos incisos desse artigo 170, se
tomados em sentido absoluto, mister se faz, evidentemente, que se lhes
dê sentido relativo para que se possibilite a sua conciliação a fim de
que,
em conformidade com os ditames da justiça distributiva, se assegure a
todos - e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens
e serviços e aos elementos de consumo deles - existência digna"... "Para
se alcançar o equilíbrio da relatividade desses princípios - que, se
tomados em sentido absoluto, como já salientei, são inconciliáveis - e,
portanto, para se atender aos ditames da justiça social que se pressupõe
esse equilíbrio, é mister que se admita que a intervenção indireta do
Estado na ordem econômica não se faça apenas a posreriori, com o
estabelecimento de sanções às transgressões já ocorridas, mas também
a priori, até porque a eficácia da defesa do consumidor ficará sensivel-
mente reduzida pela intervenção somente a posreriori que, às mais das
vezes, impossibilita ou dificulta a recomposição do dano sofrido".{313}
Esta nova linha de interpretação relativa necessariamente a men-
cionada noção de ato jurídico perfeito, ou haverá violação de outro
princípio constitucional, que é a defesa do consumidor, ao negar-se o
juiz a examinar a licitude da imposição contratual face ao novo
mandamento de maior lealdade no mercado e relativização do dogma
absoluto da autonomia da vontade.
A jurisprudência brasileira nem sempre tem sido conseqüente
com estes princípios, aceitando por vezes a aplicação imediata de
normas de ordem pública, por vezes considerando a existência de ato
jurídico perfeito, face ao contrato simplesmente constituído antes da
entrada em vigor da nova lei. Na utilização de ambas as teorias poderá
haver prejuízo para os consumidores, daí a importância deste terceiro
elemento: a necessária ponderação da garantia constitucional da defesa
dos interesses dos consumidores.

c) A aplicação imediata das normas de ordem publica - Por fim,


gostaríamos de tecer algumas considerações sobre a combatida tese da
aplicação imediata das normas de ordem pública. O direito comparado
demonstrou que as leis protetoras dos direitos dos consumidores
encontraram aplicação imediata (benéfica) logo após sua entrada em
* (313) Pp. 51 e 52 do acórdão original, j. 3.3.93, ainda inédito.
(p. 272)
vigor, influenciando assim os efeitos atuais de contratos anteriores.
Também no Brasil tal teoria encontra apoio em substancial parte da
doutrina e da jurisprudência.{314}
A justiça de sua aplicação tem seu fundamento na idéia que no
Estado de Direito com finalidade social deve ser permitido ao legislador
intervir nas relações privadas para impor uma nova ordem pública
econômica, mais benéfica à sociedade e, em última análise, aos
contratantes. O Estado impõe uma nova ordem pública, limitando assim
a autonomia privada, tendo em vista a realização de finalidades que
ultrapassam a órbita individualista dos contratantes.{315}
Tratando-se de ordem pública econômica, os autores costumam
dividi-la em ordem pública de direção (que imprime determinado rumo
à economia do país) e de proteção (cria normas para a realização de
novas finalidades jurídico-protetivas, como a igualdade real entre
filhos, entre contratantes, a eqüidade contratual nos contratos de
adesão ou a reparação integral das vítimas etc.).{316}
Como pudemos observar, a originalidade do sistema constitucio-
nal brasileiro deve ser levada verdadeiramente em conta, não só para
proteger as garantias do ato jurídico perfeito, mas também para proteger
os interesses dos consumidores. Neste sistema dialético, resta a definir
o limite da existência ou não de direito adquirido do fornecedor a ver
cumpridas as cláusulas do contrato como foram estabelecidas (contra
a aplicação do CDC como lei nova) ou de direito adquirido do
consumidor a ver mantidas as cláusulas contratuais protetoras de suas
expectativas legítimas (contra a lei nova).
Dois aspectos devem aqui serem destacados: a noção positivista
de ato jurídico perfeito e a mudança da imagem da retroatividade.
Com efeito, a aceitação da aplicação imediata da lei nova de
ordem pública (como o CDC. ex vi seu art. 1º) pressupõe uma
(314) Muitas das aqui citadas decisões referem-se a contratos
anteriores a março
de 1991; veja, porém, para exame dos argumentos decisão do TJSP (Rel.
Des. Pinheiro Franco), in RT 690/85 e ss., e do TJDF (Rel. Desª. Nancy
Arrighi), in Direito do Consumidor, 10/260 e ss.
(315) Assim o ainda inédito artigo de A. H. Benjamin, "Autonomia
privada e
intervenção do Estado no Contrato. O paradigma contratual da sociedade
de massas", p. 60 do original.
(316) Veja, por todos, a obra de João Bosco L. da Fonseca,
Cláusulas abusivas
nOS contratos, Rio, Forense, 1993, p. 123 e ss. (p. 273)
interpretação de ato jurídico perfeito conforme o disposto no art. 6.º,
§ 1.º, da LICC, onde o elemento caracterizador não é a "constituição",
mas a "consumação" do ato. Sendo assim, é possível considerar que
o ato constituído que ainda não surtiu todos os seus efeitos não está
"perfeito", o que não impede, porém, de identificar este ato como fonte
de direitos adquiridos.{317}
Por trás desta evolução, como bem demonstra Dekeuwer-Défoussez,
está uma evolução conceitual criada pela teoria de Roubier.{318} A
doutrina da irretroatividade tem fundamento nos ideais da revolução
francesa e na primeira geração de direitos fundamentais: os direitos do
cidadão contra o Estado. O combate à irretroatividade consistia em uma
proteção do individualismo, do indivíduo contra a eventual intervenção
do Estado. Com o aparecimento dos direitos fundamentais de segunda
e terceira geração, onde o Estado deve deixar sua posição passiva
(laissezfaire) e passa ser obrigado a intervir na sociedade, assegurando
a constituição direitos contra a omissão do Estado em setores sociais
e econômicos, a visão da irretroatividade teve de mudar, não mais
considerada atentatória à segurança jurídica.{319}
A teoria de Roubier propôs a troca da idéia de direito adquirido
(direito do indivíduo a ser protegido contra o Estado) pela noção de
situação jurídica, status individual. Para compor esta "situação jurídi-
ca" não bastaria somente a manifestação individual, a vontade contra-
tual, mas dependeria ela também da autorização e proteção estatal,
através do sistema de direito. O indivíduo não é mais considerado como
o titular de um direito que ele defende contra o Estado, ele é colocado
em uma situação jurídica dependente das regras e da ordem pública
imposta pelo Estado e suas mudanças.{320} Mesmo que a noção de
situação jurídica tenha sido abandonada no Brasil, preferindo-se hoje
a idéia de aplicação imediata da lei nova aos efeitos atuais do contrato
anterior e de direito adquirido, a noção de situação jurídica contribuiu
para uma melhor aceitação da retroatividade excepcional das leis com
função social, como o próprio CDC.
* (317) Assim ensina Oscar Tenório, p. 207.
(318) Dekeuwer-Défoussez, n. 11, pp. 11 e 12.
(319) Veja Dekeuwer-Défoussez, ns. 202 e 230.
(320) Assim Dekeuwer-Défoussez, p. 12. (p. 274)
A teoria original distinguia entre as normas de ordem pública
normais e aquelas que impunham um novo "estatuto", como por
exemplo, o de filho legítimo, hierarquizando as normas de ordem
pública no sentido de evitar a aplicação de todas elas as relações
contratuais em curso. Por este critério, igualmente, constituiria o CDC
e sua ordem pública de proteção um novo "estatuto", uma mudança
radical no regime jurídico ao qual estão submetidos os indivíduos.{321}
A elaboração de normas de ordem pública e sua entrada em vigor
implicariam assim em uma desejada derrogação de cláusulas contra-
tuais contrárias a estes novos mandamentos. A aceitação desta tese,
quanto ao que se refere a aplicação do CDC como lei mais benéfica
ao consumidor, mesmo aos contratos anteriores, significa a aceitação
da mudança dos princípios orientadores do direito civil - talvez por
influência mesmo constitucional - e da possibilidade de intervenção
e dirigismo contratual estatal. Esta nova visão desloca a importância
do corolário da autonomia da vontade e da obrigatoriedade do pactu-
ado, para o problema da função social do direito privado, para
considerar que a eficácia dos atos decorre da lei, a qual os sanciona
porque são úteis, com a condição de serem justos tanto no momento
de sua formação, quanto de sua execução.
Na jurisprudência, a referida aplicação imediata da lei nova de
ordem pública tem sido acolhida com maior regularidade no Superior
Tribunal de Justiça,{322} enquanto a aplicação do CDC, seja diretamente,
seja de seu espírito, para evitar o pré-questionamento constitucional,
tem tido maior aceitação nas instâncias inferiores.
Desde o final de 1996{323} e em especial em abundante jurispru-
dência de 1997, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça
* (321) Em seu voto dissidente ensina o Min. Ruy Rosado de Aguiar
Jr., sobre o
CDC (REsp. 45666-5-SP): "Define-se legalmente (art. 1.º) como uma regra
de ordem pública de proteção, não tão forte quanto as de direção, através
das quais o Estado mais agudamente intervém na economia, mas igualmente
indispensável para a obtenção de fins que não seriam atingidos se pudesse
ser derrogada pela vontade dos contratantes".
(322) Veja REsp. 5.015-SP, j. 30.10.91, sobre plano econômico.
(323) Veja, como exemplo, Recurso Especial 41 .493/RS, 4.ª T., j.
29.10.1996, Rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira: "Compromisso de compra e venda de
imóvel. Perda das prestações pagas. Contrato anterior ao CDC. Aplicação
do art. 924, CC. Orientação da corte. Precedentes. Recurso parcialmente
(p. 275)
praticamente pacificou uma linha intermediária de entendimento, a
qual, evitando o pré-questionamento constitucional, afirma expres-
samente a inaplicabilidade do CDC "aos contratos celebrados antes
da vigência do mencionado diploma legal",{324} ao mesmo tempo em
que utiliza os princípios do CDC e o seu espírito tutelador do mais
fraco,{325} visualizando-os já no Código Civil, em especial na auto-
rização do art. 924 CC,{326} para assim diminuir a "patamares justos"
as cláusulas penais e as de decaimento, utilizando o patamar de 10%
previsto no próprio CDC.{327} Os Tribunais estaduais tendem hoje a
*acolhido. Mesmo celebrado o contrato antes da vigência do CDC, o que
impunha considerar eficaz previsão contratual de perda das quantias pagas
pelo compromissário adquirente, pode o juiz, autorizado pelo disposto no
art. 924, CC, reduzi-la a patamar justo, com o fito de evitar
enriquecimento
sem causa, que de sua imposição integral adviria à promitente vendedora.
Circunstâncias especiais do caso impõem a perda de 10% (dez por cento)
do que foi pago pelos compradores. Decisão por unanimidade". No mesmo
sentido, Recurso Especial 43.544-SP, 4.ª T., j. 9.12.1996, Rel. Min.
Sálvio
de Figueiredo Teixeira.
(324) Expressão da ementa do Recurso Especial 72.431/DF, 4.ª T.,
j. 9.6.1997,
Rel. Min. Barros Monteiro. Veja sobre penhorabilidade da linha telefônica
a mesma orientação, STJ, Recurso Especial 98.661 -SC, 4.ª T., j.
12.11.1996,
Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.
(325) Veja o interessante acórdão, a procura desta utilização
compatível de
princípios, do Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., cuja ementa assevera:
"Promessa de compra e venda. Cláusula de decaimento. Restituição de parte
das prestações pagas. Inaplicável o Codecon aos contratos celebrados
antes
de sua vigência, de acordo com orientação predominante, e mantida a
validade da cláusula que permite a retenção das prestações pagas, é
possível
a redução judicial para um percentual adequado às circunstâncias do
contrato (Recurso Especial 111092/AM, 4.ª T., j. 4.3.97, Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar).
(326) Assim Recurso Especial 42226/SP, 4.ª T., j. 17.12.1996,
Rel. Min. Bueno de
Souza, Recurso Especial 43544/SP, 4.ª T., j. 24.2.1997, Rel. Min. Sálvio
de
Figueiredo Teixeira, Recurso Especial 110006/RS, 4.ª T., j. 18.3.1997,
Rel.
Min. Barros Monteiro, Recurso Especial 111091/AM, 4.ª T., j. 7.4.1997,
Rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar e Recurso Especial 03981/SP, 4.ª T., j.
20.5.1997,
Rel. Min. César Asfor Rocha. Lê-se na ementa do Recurso Especial 110006/
RS, 4.ª T., j. 18.3.1997, Rel. Min. Barros Monteiro: "InocorrênCia de
contrariedade ao art. 6.º da LICC, uma vez que o acórdão recorrido
admitiu
a inaplicabilidade ao caso do Código de Defesa do Consumidor...".
(327) Veja na outra corrente Recurso Especial 0094271/SP, 4.ª T.,
j. 14.10.1996,
Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, cuja ementa é a seguinte: "Promessa de
(p. 276)
seguir este exemplo.{328} A importância desta linha intermediária hoje,
sete anos após a entrada em vigor do CDC, está mais na confirmação
do efeito rejuvenescedor do CDC, do que na sua aplicação em grande
número de casos.
Concluindo, o tema da aplicação do CDC aos contratos anteriores
à sua entrada em vigor é um dos mais polêmicos e difíceis do direito
do consumidor. Tanto a doutrina, quanto a jurisprudência dividem-se
entre o apoio a várias teses e interpretações. Particularmente continuo
a considerar que, na solução dos casos concretos, deve o CDC receber
aplicação imediata ao exame da validade e eficácia atual dos contratos
assinados antes de sua entrada em vigor, seja porque norma de ordem
pública, seja porque concretiza também uma garantia constitucional, ou
simplesmente porque positiva princípios e patamares éticos de combate
a abusos existentes no direito brasileiro antes mesmo de sua entrada
em vigor.{329}
Repita-se, pois, a conclusão do II Congresso Brasileiro de
Direito
do Consumidor: "O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação
imediata aos contratos com eficácia duradoura, conforme o art. 170 da
Constituição Federal e art. 6.º da Lei de Introdução ao Código Civil".
*compra e venda. Cláusula de decaimento. Código de Defesa do Consumidor.
Modificação. A regra do art. 53 do Codecon permite a modificação da
cláusula de decaimento, para autorizar a retenção, pela promitente
vendedora,
de apenas 10% das prestações pagas. Recurso conhecido e
provido".
(328) Veja decisão TJSP, não aplicando o CDC para evitar
discussão constitu-
cional, cuja ementa é: "Contrato. Não se admite a aplicação retroativa da
Lei 8.078/90, para abranger atos jurídicos já aperfeiçoados antes de sua
entrada em vigor. Tanto não admite a Constituição Federal, ao assegurar
como parte dos direitos e garantias fundamentais, em cláusula de impos-
sível desconsideração, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o
ato
jurídico perfeito e a coisa julgada. Não se trata, apenas, de garantia
contida
em texto de lei ordinária, que se pudesse dizer incompatível com os
elevados propósitos do Código do Consumidor, mas de texto Constituci-
onal, contra qual nenhuma lei ou ordenamento inferior pode prevalecer"
(TJSP, Ap. 236.925-2/5 - 13.ª C. - j. 21 .6.94 - Rel. Des. Marrey Neto,
publicada na RT 711, p. 114). Veja decisão, neste sentido do TJRS, nos
EI 596 057 216, j. 2.8.96, Des. Araken de Assis e, em caso envolvendo
Aids, Ap. Civ. 597115039, j. 07.08.97, Des. Araken de Assis, publicado
na Revista de Jurisprudência, v. 184, p. 361 e ss.
(329) Neste sentido, decisão do TJSP (AI. 266 805-2-2, j.
25.9.95, Des. Albano
Nogueira, que, em caso envolvendo seguro-saúde, garantiu a estadia do
consumidor na UTI por prazo necessário, na RT 723, p. 346. (p. 277)

(p. 278, em branco)

CONCLUSÃO DA PARTE 1

Na nova concepção social do direito dos contratos, a sua função


principal é procurar o reequilíbrio da relação contratual, a chamada
justiça ou eqüidade contratual, a qual só poderá ser atingida com uma
mudança na ação do direito, evoluindo de uma posição passiva e
supletiva para uma ação cogente e determinadora de condutas também
na área contratual.
Ao direito coube, portanto, a tarefa de procurar o reequilíbrio
da
relação contratual, a chamada justiça ou eqüidade do contrato
(Vertragsgerechtigkeit),{1} criando uma concepção mais social do direito
do contrato, voltado menos para a vontade do indivíduo e mais para
os reflexos e expectativas que estes contratos de consumo criam na
sociedade atual.
A posição desigual dos parceiros contratuais na sociedade de
hoje,
o incremento dos métodos de contratação em massa multiplicou a
presença de cláusulas abusivas nos contratos de consumo, que afastam
os eventuais direitos e expectativas legítimos dos consumidores em
relação ao vínculo contratual, e demonstrou que os métodos tradicio-
nais de controle formal oferecidos pelo direito não conduziam mais a
resultados satisfatórios, pois a teórica liberdade de um, era a prisão do
Outro.
Fazia-se mister evoluir, conjugar o chamado direito-obstáculo
com os anseios de uma maior eqüidade contratual, criando um sistema
de disciplina que assegurasse o reequilíbrio das relações contratuais,
resolvendo os problemas existentes, negando eficácia às cláusulas
abusivas, instituindo deveres cogentes, como o de informação e de
redação clara dos contratos pré-elaborados, e criando novas garantias
* (1) A expressão é de Ludwig Raizer, que já na década de 30(1935)
visualizava
a nova função do direito dos contratos como garante da justiça
contratual,
assim Zweigert/Koetz, ob. cit., p. 8. (p. 279)
legais para proteger algumas expectativas básicas dos consumidores,
como a de adequação do produto adquirido e a de proteção da saúde
e da incolumidade física do consumidor e dos seus familiares expostos
à ação do produto comercializado.
Se o regime dos contratos entre fornecedores e consumidores
mereceu a atenção da doutrina, mereceu também a atenção dos
legisladores de vários países,{2} cada um editando leis específicas, as
quais procuravam dar melhor solução para o problema, limitando o
espaço para a autonomia de vontade, ditando ou não o conteúdo
mínimo dos contratos, controlando de maneira prévia ou não os
contratos do mercado. Esta procura do regime legal ideal para evitar
a frustração da confiança e da boa-fé do consumidor nos contratos de
consumo representa uma evolução muito rica no direito comparado,
que agora repercute no direito brasileiro, tendo em vista a entrada em
vigor do CDC.
No Brasil, a intervenção estatal nas relações de consumo deu-se
justamente através da imposição pelo novo Código de Defesa do
Consumidor, de normas imperativas. Estas normas cogentes (art. 1.º do
CDC), em matéria contratual, limitam o espaço antes reservado para
a autonomia da vontade, impondo deveres aos elaboradores dos
contratos, criando novos direitos para os consumidores e tutelando
determinadas expectativas dos contratantes, oriundas da sua confiança
no vínculo contratual.
Note-se que o contrato, negócio jurídico por excelência, continua
a ser um ato de auto-regulamentação dos interesses das partes,{3} e,
portanto, um ato de autonomia privada, mas, este ato só pode ser
realizado nas condições agora permitidas pela lei.
O Código de Defesa do Consumidor é um reflexo de uma nova
concepção mais social do contrato, onde a vontade das partes não é a
única fonte das obrigações contratuais, onde a posição dominante passa
* (2) Leis específicas de proteção do consumidor foram criadas na
Suécia
(1971), Dinamarca, Venezuela (1974), Alemanha, México (1976),
Inglaterra
(1977), França (1978), Áustria (1979), Irlanda (1980), Colômbia,
Noruega
(1981), Luxemburgo (1983), Espanha (1984), Portugal (1985), veja
detalhes
em Bourgoignie, Élements, p. 21.
(3) Assim Gomes, Contratos, p. 42, referindo-se às doutrinas
italianas moder-
nas sobre negócio jurídico. (p. 380)
a ser a da lei, que dota ou não de eficácia jurídica aquele contrato de
consumo.
O princípio clássico da autonomia da vontade vai ser relativizado
por preocupações de ordem social. Tentando harmonizar os interesses
envolvidos em uma relação de consumo, as novas normas de tutela
valorizam tanto a vontade, como a boa-fé, a segurança e o equilíbrio
das relações contratuais. O Direito passa a ser o orientador do conteúdo
dos contratos, o realizador da eqüitativa distribuição de obrigações e
direitos nas relações contratuais{4} e não só o garante da livre manifes-
tação da vontade.
Em princípio, estão submetidos às regras do Código os contratos
firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional, compor-
tando a regra, exceções previstas nas próprias normas do CDC e em
seus princípios gerais, como a da vulnerabilidade. Em face da expe-
riência no direito comparado, a escolha do legislador brasileiro do
critério da destinação final, permitindo exceções com base em uma
interpretação teleológica, parece ser uma escolha sensata.
Nestes primeiros anos de vigência do CDC ficou demonstrada
uma certa tendência de expansão do campo de aplicação - já amplo
- da lei protetiva, assim como algumas manifestações pela autonomia
dogmática do direito do consumidor. Parece-me que o primeiro
fenômeno expansionista nasce da necessidade dos práticos de
adaptar os instrumentos existentes no direito civil tradicional às
exigências de nossa complexa sociedade atual, massificada e para
alguns, já apresentando fenômenos pós-modernos. Se, efetivamente,
o CDC tem um enorme potencial rejuvenescedor do direito civil,
não nos parece conveniente a sua autonomia em relação a outros
ramos do direito, nem a sua aplicação prática a todos os casos no
mercado, pois a força e efetividade demonstrada pelo novo Código
reside justamente na correção ética de proteger os mais vulneráveis
do mercado e, dogmaticamente, em seu papel oxigenador de
ordenamento jurídico individualista em excesso. O mandamento de
boa-fé objetiva positivado no CDC, os novos princípios
reequilibradores das relações jurídicas, suas cláusulas gerais, estes
Sim podem repercutir - como já ocorre - no ordenamento jurídico
brasileiro como um todo.
(4) Assim conclui tb. Koendgen, p. 132. (p. 381)
Conclui-se, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor, Lei
n. 8.078/90, em vigor no Brasil desde 11.3.91, representa uma consi-
derável modificação no ordenamento jurídico brasileiro, modificação
esta que terá profundos reflexos nas relações entre os profissionais,
fornecedores de bens e serviços, e o seu público consumidor.
Dedicaremos os capítulos 3 e 4 desta obra ao estudo destes
reflexos, que denominaremos aqui de novo regime legal do contrato de
consumo. (p. 282)

Parte II - REFLEXOS CONTRATUAIS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

3. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA FORMAÇÃO DO CONTRATO

SUMARIO: 1. Princípio básico de transparência - 1.1 Nova noção


de oferta (art. 30): a) Vinculação própria através da atuação negocial;
b) Publicidade como oferta; c) Informações e pré-contratos; d)
Cláusulas contratuais gerais; e) Sanção - 1.2 Dever de informar sobre
o produto ou serviço (art. 31): a) Amplitude do dever de informar
do art. 31; b) A publicidade como meio de informação; c) Sanção:
As regras sobre o vício do produto - 1.3 Dever de oportunizar a
informação sobre o conteúdo do contrato (art. 46): a) Amplitude do
dever de informar do art. 46, § 1º; b) Sanção - 1.4 Dever de redação
clara dos contratos: a) Redação clara e precisa (art. 46); b) Cuidados
na utilização de contratos de adesão; c) Sanção - 2. Princípio básico
de boa-fé - 2.1 Publicidade abusiva e enganosa: a) Conceito de
publicidade; b) Publicidade como ilícito civil - a publicidade enga-
nosa: c) Publicidade como ilícito civil - a publicidade abusiva - 2.2
Práticas comerciais abusivas: a) Práticas comerciais expressamente
vedadas; b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado; c)
Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços - 2.3 Direito
de arrependimento do consumidor (art. 49): a) A venda de porta-em-
porta (door-to-door); b) Regime legal da venda de porta-em-porta; c)
Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distância.

O incremento da vida contratual, a massificação dos contratos,


que
passaram a ser pré-elaborados unilateralmente pelas empresas e pelo
Estado, a concentração de capitais e de força econômica e os mono- (p.
283)
pólios na nova sociedade de consumo, levaram a um desequilíbrio
marcante nas relações contratuais entre consumidores e fornecedores,
exigindo uma ação protetora do Estado para com os parceiros contratuais
hipossuficientes.
O Código de Defesa do Consumidor tem como fim justamente
reequilibrar as relações de consumo, harmonizando e dando maior
transparência às relações contratuais no mercado brasileiro (art. 4º do
CPC).
Para alcançar este equilíbrio de forças nas relações contratuais
atuais, o CDC opta por regular também alguns aspectos da formação do
contrato, impondo novos deveres para o elaborador do texto (fornecedor)
e assegurando novos direitos para o consumidor (aderente) quando da
formação das relações contratuais de consumo (art. 6.º, III e IV).
No direito comparado, observa-se que as técnicas legislativas de
proteção aos consumidores em matéria de contratos de consumo visam
também garantir uma nova proteção da vontade dos consumidores na
formação dos contratos, isto é, garantir uma autonomia real da vontade
do contratante mais fraco.{1} Uma vontade protegida pelo direito,
vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade
e por outros métodos agressivos de venda, em suma, uma vontade
racional (volonté rationnelle).{2} Não há como negar que o consumo
massificado de hoje, pós-industrial, está ligado faticamente a uma série
de perigos para o consumidor, vale lembrar os fenômenos atuais de
superendividamento, de práticas comerciais abusivas, de abusos
contratuais, da existência de monopólios naturais dos serviços públicos
concedidos ou privatizados, de falhas na concorrência, no mercado, na
informação e na liberdade material do contratante mais fraco na
elaboração e conclusão dos contratos.
Como mencionamos anteriormente (1. 3.2), a expressão de Nicole
Charbin "autonomia racional" é feliz, pois indica a importância dos
novos direitos dos consumidores e dos novos deveres dos fornecedores,
em especial dos deveres anexos de informar, de cooperar, de tratar com
lealdade e com cuidado o consumidor no momento de formação dos
contratos, pois somente se assegurarmos este novo patamar de conduta
* (1) Veja detalhes sobre estas técnicas legislativas em nosso
artigo sobre
contratos de crédito.
(2) Charbin, p. 216. (p. 284)
no mercado poderemos alcançar uma vontade realmente refletida,
autônoma e "racional" dos consumidores. Visualizamos aqui um
reflexo da função positiva, da força criativa de deveres do princípio da
boa-fé objetiva, princípio que interpretando as normas positivas impos-
tas impõe uma atuação refletida do contratante mais forte em relação
aos interesses do contratante mais fraco.{3} A boa-fé assim concretizada
significa transparência obrigatória em relação ao parceiro contratual,
um respeito obrigatório aos normais interesses do outro contratante,
uma ação positiva do parceiro contratual mais forte para permitir ao
parceiro contratual mais fraco as condições necessárias para a formação
de uma vontade liberta e racional.{4} Assegurar informação, proteção
contra as pressões (Zwang) dos métodos de venda hoje usuais na
sociedade de consumo e tempo para reflexão são objetivos legais nesta
procura de uma decisão racional do consumidor.
A ratio legis do Código de Defesa do Consumidor é justamente
valorizar este momento de formação do contrato de consumo, que
passamos a analisar. A tendência atual é de examinar a "qualidade" da
vontade manifestada pelo contratante mais fraco, mais do que a sua
simples manifestação: somente a vontade racional, a vontade realmente
livre (autônoma) e informada legitima, isto é, tem o poder de ditar a
formação e, por conseqüência, os efeitos dos contratos entre consumi-
dor e fornecedor.{5}
O CDC introduz, efetivamente, no ordenamento jurídico brasileiro
dois novos princípios basilares: o Princípio da Transparência e o
Princípio da Boa-Fé quando da formação dos contratos de consumo.
Os reflexos que estes novos princípios cogentes terão na fase de
aproximação entre consumidor e fornecedor, na fase de elaboração do
* (3) Veja por todos Aguiar/Cláusulas, p. 18 e ss.
(4) Segundo Tomasetti/Transparência, p. 53: "A transparência é um
resultado
prático, que a lei substancialmente persegue mediante o que se pode
denominar princípio da informação" ("a informação tem o sentido
funcional de racionalizar as opções do consumidor".
(5) Veja Charbin, p. 172 e 177. A autora chega a afirmar que
passamos de um
momento em que presumíamos "racional" qualquer vontade manifestada
pelo consumidor, ao momento atual onde ou exigimos, através de técnicas
legislativas dirigidas de intervenção jurídica, que o consumidor mantenha
sua razão e autonomia de decisão (autonomia de vontade criada, p. 205)
ou educamos o consumidor para decidir de forma racional e informada
(autonomia de vontade educada, p. 206). (p. 285)
instrumento contratual e na de nascimento do vinculo contratual entre
eles, são o tema deste capítulo.

1. Princípio básico de transparência

Na formação dos contratos entre consumidores e fornecedores o


novo princípio básico norteador é aquele instituído pelo art. 4.º, caput,
do CDC, o da Transparência.{6} A idéia central é possibilitar uma
aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa
entre consumidor e fornecedor. Transparência significa informação
clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser
firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e
consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos
contratos de consumo.
O CDC regulará, assim, inicialmente aquelas manifestações do
fornecedor tentando atrair o consumidor para a relação contratual,
tentando motivá-lo a adquirir seus produtos e usar os serviços que
oferece. Regula, portanto, o Código a oferta feita pelo fornecedor,
incluindo aqui também a publicidade veiculada por ele. O fim destas
normas protetoras é assegurar a seriedade e a veracidade destas
manifestações, criando uma nova noção de "oferta contratual", a qual
analisaremos em detalhes a seguir.
Como afirmamos anteriormente, transparência é clareza, é infor-
mação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis
porque institui o CDC um novo e amplo dever para o fornecedor, o
dever de informar ao consumidor não só sobre as características do
produto ou serviço, como também sobre o conteúdo do contrato.
Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consu-
midor, pois sem ter conhecimento do conteúdo do contrato, das
obrigações que estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que
não pode suportar ou que simplesmente não deseja. Assim também
adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas sobre suas
qualidades e características pode adquirir um produto que não é
adequado ao que pretende ou que não possui as qualidades que O
* (6) A expressão Transparenzgebot já existe no direito alemão,
mas com um
sentido estrito. Aqui gostaríamos de utilizá-la, segundo o caput do art.
4.º
do CDC, como um gênero. Veja neste sentido, com base nas
Diretivas
européias, Reich, in NJW 1995, p. 1.857 e ss., e Cian, p. 421.
(p. 286)
fornecedor afirma ter, ensejando mais facilmente o desfazimento do
vínculo contratual.
A jurisprudência brasileira tem utilizado com sabedoria este novo
princípio das relações contratuais no mercado.{7} Em verdade, este novo
mandamento de transparência, introduzido pelo CDC, possui efeitos
concretos de grande importância no dia a dia das relações de consumo.
De um lado, o ideal de transparência no mercado acaba por
inverter os papéis tradicionais, aquele que encontrava-se na posição
ativa e menos confortável (Caveat emptor), aquele que necessitava
atuar, informar-se, perguntar, conseguir conhecimentos técnicos ou
informações suficientes para realizar um bom negócio, o consumidor,
passou para a confortável posição de detentor de um direito subjetivo
de informação (art. 6.º, III), enquanto aquele que encontrava-se na
segura
posição passiva, o fornecedor, passou a ser sujeito de um novo dever
de informação (caveat vendictor).
Se esta inversão de papéis ocasionada pelo ideal de transparência
e lealdade no mercado imposto pelo CDC pode ser considerada
renovadora, o sentido e o fim (Sinn und Zweck) do mandamento, como
denominam os alemães a ratio legis, pode ser reduzida à tradicional
procura da "verdadeira e livre vontade do consumidor". Visto deste
ângulo, o ideal de transparência seria apenas uma nova (e sem dúvida
importante) pré-condição para que o consumidor possa manifestar sem
medo e livremente sua vontade, e realizar (ao fim) as suas expectativas
legítimas, aquelas que o levaram a - informado devidamente sobre o
produto ou serviço, ciente de seus futuros direitos e deveres contratuais
- escolher aquele fornecedor como seu parceiro contratual.
Como nem todos contatos entre o fornecedor e o consumidor
levam ao estabelecimento de relações contratuais, a transparência deve
ser uma nova e necessária característica de toda manifestação pré-
contratual do fornecedor no mercado, desde a sua publicidade, vitrines,
* (7) Assim, por exemplo, a decisão "Cartão de Crédito. Informação
equivocada
a consumidor sobre incidência de encargos e juros acrescidos sobre o
valor
da compra, pela utilização do sistema de cartão. Cobrança indevida.
Restituição, ao comprador, dos valores pagos a maior, corrigidos pelos
índices do BTN, desde o desembolso até o efetivo pagamento (Decisão
unânime)" (Proc. n. 01189709122, Rec. 115/89, Rela. Dra. Maria Isabel
Broggini, 2.ª Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas/
RS, 21.12.89). (p. 287)
o seu marketing em geral, suas práticas comerciais, aos contratos ou
as condições gerais contratuais que pré-redige, as informações que seus
prepostos e representantes prestam etc.; o que bem demonstra a
abrangência do novo mandamento.
O princípio da transparência rege o momento pré-contratual, rege
a eventual conclusão do contrato. E mais do que um simples elemento
formal,{8} afeta a essência do negócio, pois a informação repassada ou
requerida integra o conteúdo do contrato ou, se falha, representa a falha
na qualidade do produto ou serviço oferecido. Tal princípio concretiza
a idéia de reequilíbrio de forças nas relações de consumo, em especial
na conclusão de contratos de consumo, imposto pelo CDC como forma
de alcançar a almejada justiça contratual.
Resumindo, como reflexos do princípio da Transparência temos
o novo dever de informar o consumidor, seja através da oferta, clara
e correta (leia-se aqui publicidade ou qualquer outra informação
suficiente, art. 30) sobre as qualidades do produto e as condições do
contrato, sob pena do fornecedor responder pela falha da informação
(art. 20), ou ser forçado a cumprir a oferta nos termos em que foi feita
(art. 35), seja através do próprio texto do contrato, pois, pelo art. 46,
o contrato deve ser redigido de maneira clara, em especial os contratos
pré-elaborados unilateralmente (art. 54, § 3.º), devendo o fornecedor
"dar oportunidade ao consumidor" conhecer o conteúdo das obrigações
que assume, sob pena do contrato por decisão judicial não obrigar o
consumidor, mesmo se devidamente formalizado.

1.1 Nova noção de oferta (art. 30)

No direito brasileiro, a oferta ou proposta é a declaração


inicial
de vontade direcionada à realização de um contrato.{9} Como o contrato
é o acordo de duas ou mais vontades, é necessário que um dos futuros
contraentes tome a iniciativa de propor o negócio, dando o início à
formação do contrato; ele como que solicita a manifestação de vontade,
a concordância do outro contraente (aceitação) ao negócio que está
propondo. A oferta é o elemento inicial do contrato.
* (8) Assim tb. Reich, Transparence, p. 80.
(9) Assim Beviláqua/Código Civil, p. 244. (p. 288)
Na visão tradicional, a oferta traduziria uma vontade definitiva
de
contratar naquelas bases oferecidas, traria em si os elementos essenciais
do futuro contrato, eis porque o direito sempre reconheceu efeitos
jurídicos próprios à oferta.{10} A oferta ou proposta é obrigatória, tem
força vinculante em relação a quem a formula, devendo ser mantida
por certo tempo.{11} Basta, pois, o consentimentu (aceitação) do outro
parceiro contratual e estará concluído o contrato (art. 1.080 e ss. do
Código Civil Brasileiro).
A oferta nada mais é, portanto, do que um negócio jurídico.{12}
Acostumados a examinar negócios jurídicos bilaterais (especialmente,
os contratos), demonstramos dificuldade em separar os efeitos autôno-
mos da oferta e aqueles oriundos da união entre oferta e aceitação para
a formação de um novo ser, o contrato. Não podemos, porém, esquecer
da existência dos negócios jurídicos unilaterais, aqueles que criam
obrigações para um indivíduo.
Esta visão autônoma da oferta nos permite, todavia, fixarmos com
clareza os seus efeitos. Na teoria contratual clássica, já afirmamos que
oferta vincula àquele que a formulou e que deve ser mantida por certo
tempo. O que significaria exatamente esta vinculação, seria este
sinonimo de obrigação contratual principal? Não, apesar do art. 1.080
de nosso Código Civil utilizar a expressão obrigação, não podemos
confundir os efeitos da proposta clássica, com os efeitos do contrato.
O proponente não fica obrigado a efetuar a prestação principal. Esta
obrigação contratual principal só nascerá após a aceitação, quando da
formação do contrato. O proponente fica "obrigado" pela própria
proposta, obrigado porque sujeito passivo de um dever jurídico (vin-
culado a observar certa conduta - manter a oferta - no interesse de outra
pessoa, o titular do direito subjetivo);{13} obrigado porque, no caso da
oferta, reduzido a um estado de sujeição, isto é, terá de se submeter aos
efeitos jurídicos da aceitação do outro, não podendo querer com
eficácia em sentido contrário.{14} Submete-se, em última análise, à
* (10) Nesse sentido Larenz/AT, p. 455.
(11) Nesse sentido a lição de Bevilaqua, Código Civil, p. 244.
(12) Concorda Tomasetti, Transparência, que a considera um
negócio jurídico
Unilateral, seguindo Pontes de Miranda.
(13) Assim Andrade, p. 1.
(14) Assim ensina Grau, Conceitos, p. 115, citando Carnelutti.
(p. 289)
iniciativa de atuação do outro, que recebeu a proposta, e detêm assim
um direito potestativo a aceitá-la naqueles termos.
O proponente não pode retirar a sua voz por certo espaço de tempo
e se, neste espaço de tempo, ocorrer a aceitação, o contrato estará
formado, mesmo que sua vontade de contratar já tenha sido alterada.
A oferta é, portanto, uma declaração de vontade lançada no mundo, a
qual o direito anexa um efeito jurídico, o da sua vinculabilidade,{15} da
sua condicional irrevogabilidade, para proteger a segurança dos negó-
cios, Esta irrevogabilidade principal só pode ser afastada, segundo
dispõe o art. 1.080 do CCBr, por declaração em contrário na própria
oferta ou devido a "natureza do contrato" ou as "circunstâncias do
caso".
Ser irrevogável significa aqui que o ato criado não desaparecerá
do
mundo jurídico por vontade unilateral, uma vez criado e válido, terá
efeitos, pelo menos o da vinculação. Assim como aquele que prometeu
e não cumpriu, aquele que ofertou e voltou atrás sem usar a forma
prevista em lei, não faz desaparecer a sua declaração de vontade, ao
contrário, sofrerá os efeitos do estado de sujeição, o qual criou através
de sua declaração de vontade inicial. Sofrerá os efeitos do contrato, se
a aceitação já ocorreu, ou os de seu ato "ilícito" de ter prejudicado,
quebrado a confiança, da outra pessoa que acreditou na sua oferta
inicial.
Se na visão tradicional a oferta já é um fator criador de
vínculos,
na visão do CDC este poder de vinculação (Bindung), desta declaração
negocial, destinada ao consumo, é multiplicado.
Note-se que nos contratos de massa, a oferta não é dirigida a
pessoas determinadas, mas a todos os indivíduos, enquanto integrantes
da coletividade.{16} Esta oferta genérica, mas, principalmente, a
publici-
dade e outras informações prestadas não vinculavam a empresa, sendo
* (15) Na lição sábia de Pontes de Miranda, Tratado, XXXVIII, p.
48, 1962: "Sem
que as manifestações de vontade entrem no mundo jurídico não há
vinculação, porque a vinculação já é eficácia do negócio jurídico.
Acontece,
porém, que a primeira manifestação de vontade já pode vincular. Tal
vinculação resulta de negócio jurídico unilateral, a oferta, com que se

de concluir, com a aceitação, o negócio jurídico bilateral ou
plurilateral. O
oferente vincula-se por sua oferta e à sua oferta, até que cesse a
possibi-
lidade da aceitação, ou à conclusão com os pressupostos necessários".
(16) Oferta ad incerta persona, veja Couto e Silva, A Obrigação
como Processo,
p. 26. (p. 290)
consideradas apenas uma invitatio ou um convite para a oferta por parte
do consumidor (invitatio ad offerendunm).{17}
Assim, na visão tradicional, o consumidor motivado a adquirir um
determinado bem, em virtude de uma oferta transmitida pelos meios
de comunicação, entrava no estabelecimento comercial e fazia uma
oferta ao fornecedor para adquirir aquele determinado bem pelo preço
e nas condições anunciadas (três vezes sem juros, por exemplo). O
fornecedor ou seu preposto verificando ainda existir tal bem em seu
estoque, conduzia o consumidor ao local onde seria fechado o negócio,
mas os instrumentos assinados pelo consumidor deixavam claro que se
tratava de uma "proposta de contrato", isto é, juridicamente, de uma
oferta vinda do consumidor. O fornecedor não estaria vinculado por
suas informações iniciais, ao contrário a posição mais gravosa, que é
a do ofertante, era reservada para o consumidor.
O art. 30 do CDC, porém, modifica e amplia consideravelmente
a noção de oferta no direito brasileiro, dispondo o seguinte:
"Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente preci-
sa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação
a produtos e serviços ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer
veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser
celebrado".
Segundo esta norma, portanto, toda a informação, mesmo a
publicidade, suficientemente precisa constitui uma oferta (uma propos-
ta contratual), vinculando o fornecedor.
O art. 30, ao ampliar a noção de oferta e ao afirmar que as
informações dadas integram o futuro contrato, revoluciona a idéia de
invitatio ad offerendum. Agora qualquer informação ou publicidade
veiculada que precisar, por exemplo, os elementos essenciais da compra
e venda: res (objeto) e pretium (preço), será considerada como uma
oferta vinculante, faltando apenas a aceitação (consensus) do consumi-
dor ou consumidores em número indeterminado.
As conseqüências práticas desta modificação no conceito de oferta
parecem claras, uma vez que com os novos veículos de comunicação
de massa é impossível ao fornecedor calcular quantos consumidores
estarão recebendo a sua "oferta" e poderão após exigir o seu cumpri-
mento (art. 35 do CDC).
* (17) Sobre os fundamentos dessa teoria veja em Koendgen, p. 291
e ss, toda
evolução histórica e doutrinária sobre o assunto. (p. 291)
Tal insegurança é propOSital, pois antes de tudo o CDC visa
modificar as práticas comerciais no mercado brasileiro, aumentando o
respeito devido ao consumidor como parceiro contratual, que não
deverá ser tirado de casa para aproveitar uma "falsa" oferta a preços
reduzidos. É o caso da chamada "publicidade-chamariz", em que o
fornecedor anuncia um determinado produto a preço vantajoso.{18} Mas
ao chegar na loja o consumidor é surpreendido com a informação que
o fornecedor só possuía 6 exemplares (já vendidos) por este preço, mas
que ainda haveriam outros exemplares de outra marca, porém, pelo
preço normal da concorrência.
É o princípio da transparência nas relações de consumo, mesmo
nessa fase anterior ao fechamento do negócio, exigindo veracidade nas
informações que são transmitidas aos consumidores.
A nova noção de oferta instituída pelo CDC nada mais é,
portanto, que um instrumento para assegurar uma maior lealdade, uma
maior veracidade das informações fornecidas ao consumidor. Se
alcançado o intento do legislador, terá sido válido este recurso às
noções tradicionais da teoria contratual clássica, de oferta e aceita-
ção.{19} O interpretador mais atento reconhece, porém, o perigo do CDC
revigorar elementos (como a oferta) deste esquema tradicional de
contrato, pois nos contratos de massa é difícil estabelecer se houve
uma oferta, qual o seu conteúdo e de quem partiu, se a oferta foi
aceita ou foi modificada pelo consumidor, o que caracterizaria uma
nova proposta, pelo art. 1.083 do Código Civil. O art. 30 do CDC
tenta resolver o impasse, criando um novo regime legal para a oferta,
generalizando como proposta contratual, quase todas as manifesta-
ções, mesmo a publicidade, oriundas do fornecedor. Estas manifes-
taçõeS, uma vez vinculativas e obrigatórias para o profissional, passam
a integrar o conteúdo do futuro contrato. O CDC como que presume
que a "nova" oferta partirá sempre do fornecedor. Esta mistura de
esquemas contratuais, da teoria clássica e da nova teoria social, foi
combatida por mestres, como Díez Picazo.{20}
* (18) Assim tb. Pasqualotto/Daños, p. 3, em trabalho enviado ao
II Congresso de
Daños, da Faculdade de Direito de Buenos Aires, ainda inédito.
(19) Lobo, p. 126, considerava que tais categorias simplesmente
não mais se
adaptavam à nova concepção de contrato.
(20) Veja Picazo, p. 11. (p. 292)
A razão parece estar realmente em uma determinação definitiva
e imperativa dos papéis: o fornecedor é sempre o presumido ofertante,
o consumidor é aquele que aceita a oferta colocada no mercado.{21}
Dogmaticamente este princípio de transparência, este novo man-
damento de informação verídica, clara e identificável, enquanto mani-
festação do fornecedor destinada à conclusão de um negócio ou
destinada, genericamente, ao incitamento do consumo em geral, propõe
um novo problema, qual seja, a da relevância jurídica destas práticas
pré-contratuais.
A grande pergunta é qual a força vinculativa destas práticas; em
outras palavras, se tais práticas passam a obrigar efetivamente o
fornecedor, se esta obrigação cria um liame, representa um novo
vínculo juridicamente relevante entre o consumidor (exposto a estas
práticas) e o fornecedor que as ordena ou executa.
A publicidade,{22} por exemplo, prática comercial de marketing,
por
muito tempo despertou pouco interesse nos juristas. Fácil, porém,
caracterizá-la como uma atividade "consciente e finalística" do forne-
cedor. É através da publicidade que o fornecedor oferece bens ou
serviços ao consumidor, que informa o consumidor sobre determinadas
qualidades ou propriedades do produto ou serviço, que desperta
interesses, vontades, desejos, que propaga marcas e nomes, que usa a
fantasia para ligar determinados sentimentos, status ou atitudes a
determinados produtos, em verdade, o fornecedor incita ao consumo,
direta ou indiretamente, com sua atividade.
* (21) Assim tb. Georges Rouhete, "Droit de la consommation et
Théorie générale
du contrat", in Mélanges René Rodière, LGDJ, Paris, 1981.
(22) Sobre publicidade, veja a excelente análise de Benjamin,
Anteprojeto, que
traz uma série de definições de publicidade, entre as quais destaco a de
Carlos Ferreira de Almeida (apud, p. 170) e de Dorothy Cohen (apud, p.
171): "Publicidade... é toda a informação dirigida ao público com o
objetivo
de promover, direta ou indiretamente, uma atividade econômica" e o de
Dorothy Cohen: "publicidade é uma atividade comercial controlada, que
utiliza técnicas criativas para desenhar comunicações identificáveis e
persuasivas nos meios de comunicação de massa, a fim de desenvolver a
demanda de um produto e criar uma imagem da empresa em harmonia com
a realização de seus objetivos, a satisfação dos gostos dos consumidores
e
O desenvolvimento do bem-estar social e econômico". (p. 293)
Face à relevância jurídica que a publicidade experimenta após
a entrada em vigor do CDC e aos já atuais casos jurisprudenciais{23}
envolvendo o uso da publicidade no mercado brasileiro, gostaríamos
de, nesta segunda edição, aprofundar um pouco mais o seu estudo.
Como a publicidade é uma atividade em si criativa e livre, que tanto
pode informar, como nada dizer, simplesmente divertir, atiçar a
atenção para uma marca ou criar curiosidade sobre um produto,{24}
gostaríamos aqui de concentrar nossa análise inicialmente no efeito
desta atividade dos fornecedores no mercado, que chamaremos aqui
em geral de vinculação própria, seguindo os ensinamentos dos
mestres alemães, para só após analisar a causa, isto é, a publicidade
em si e sua natureza.

a) Vinculação própria através da atuação negocial - Se observa-


mos na ciência do direito uma crise das fontes das obrigações, com o
conseqüente aparecimento de novas e inesperadas fontes obrigacionais,
parece-nos interessante reproduzir aqui o caminho traçado com êxito
por Johannes Köndgen, na Alemanha. Em sua renomada Tese de
Habilitação na Universidade de Tübingen, Köndgen surpreendeu a
doutrina alemã ao concentrar seu estudo nas novas espécies de vínculos
que se formavam na sociedade de massa como forma de identificar as
novas fontes de obrigação, analisando com especial atenção a publi-
cidade.{25}
A contribuição maior de Köndgen é esta simples inversão, não
mais definir relação obrigacional como vínculo jurídico, mas identificar
que se há vínculo jurídico há (ou haverá) obrigação. E Köndgen vai
mais longe, propõe identificar vínculos juridicamente relevantes outros
que os contratos, vinculações entre indivíduos nascidas fora da cate-
goria dos contratos, em virtude dos riscos profissionais de cada um, da
confiança criada por determinada atividade na sociedade que necessite
* (23) Quanto à relevância jurídica do uso da publicidade, veja
Acordo Judicial
sobre o slogan "Bom para a boquinha, bom para a barriguinha" levado a
efeito pelo PROCON/SP, in Direito do Consumidor, 4, ps. 269 e ss.
(24) Segundo ensina Benjamin, Anteprojeto, p. 172, o elemento
material da
publicidade é a difusão, seu meio de expressão, e seu elemento
finalístico
é a informação, no sentido que é informando que o anunciante atinge o
consumidor, mesmo quando se está diante de técnicas como o non sense.
(25) Veja Köndgen, em especial pp. 284 e ss. (p. 294)
de aproximação negocial, de um contato social mais especializado com
fim (direto ou indireto) de lucro.{26}
O tema da tese de Köndgen foi, portanto, a vinculação sem
contrato; e para bem identificar o tema, restringiu-o à vinculação
dinâmica, vinculação por atuação (de vontade) na sociedade. Traçando
um paralelo com a "determinação" (Bestimmung) - que seria a alma,
a essencia, da atuação com vontade (livre arbítrio) -, afirma que a
determinação juridicamente relevante é a "determinação própria"
(Selbstbestimmung, em alemão), assim, propõe estudar a "vinculação
própria" (Selbstbindunng), que seria a "alma", a essência das obriga-
ções no mundo individualista, capitalista e liberal, pós-revolução
francesa.
A legitimação na sociedade atual da vinculação própria estaria
também na atuação própria, como na teoria tradicional, mas agora por
risco próprio profissional, por interesse negocial próprio.{27} A linha
temática escolhida para defender a tese, que agrupa todos estes
fenômenos sob a denominação (combatida) de quase-contratos, foi a
da responsabilidade por atos com finalidade (direta ou indireta)
negocial (geschäftsbezogene Handeln), responsabilidade, em alemão
"Haftung", como projeção necessária da obrigação ou vinculação
própria.{28}
Enquanto muito se escreveu e teorias foram criadas (as teorias da
vontade, da declaração, teorias objetivas) para identificar a vontade
juridicamente relevante e o poder de "determinação" que possui o
homem quando se obriga (por exemplo, o dogma da liberdade contratual),
o tema da "vinculação" por atuação dirigida (direta ou indiretamente)
* (26) Interessante notar que Köndgen constrói sua tese procurando
analogias com
figuras do direito anglo-americano, tais como a categoria das ações
"assumpsit" (de origem extra-contratual e delitual), com as antigas
obriga-
ções de contratar, as "commom callings", os deveres das "confidential
relations", as garantias implícitas, "warranty", motivos de imputação de
responsabilidade, "promissory estoppel" etc., para ao fim chegar a teoria
de Jhering da culpa in contrahendo, ob. cit, pp. 17 e 96; já no Brasil,
foi
com a crescente influência das idéias norte-americanas que o próprio CDC
tornou-se uma realidade.
(27) Köndgen, p. 2.
(28) Köndgen, p. 7, na expressão original alemã "Haftung aus
geschätsbezogene
Handeln". (p. 295)
a negócios de interesse próprio, quanto mais se não há posterior
contrato, permaneceu um tema lateral.
Quando se discute hoje a contribuição do Código de Defesa do
Consumidor no Direito Civil brasileiro e as mudanças que impôs ao
tornar juridicamente relevante a mensagem publicitária, impondo novos
deveres ao fornecedor que dela se utilizar, peço vênia para trazer aqui
a discussão que dominou a visão sociológica do direito na década de
80 na doutrina alemã: vinculação própria sem contrato?
Köndgen concluiu que há vinculação própria por uso (ato lícito)
da publicidade na sociedade de massas. Uma das bases para tal
vinculação encontra ele na responsabilidade pela confiança ("Ver-
trauenshaftung"){29} despertada pela atividade dirigida e profissional do
fornecedor; confiança que representa o efeito provável daquele tipo
de declaração na sociedade (trata-se também de um standard
objetivo). A proteção da confiança, mencionada por referido autor
alemão, estaria presente também no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, o princípio geral de boa-fé, positivado no CDC, em seu art.
4.º, inc. III, o qual estipula um mandamento de boa-fé (objetiva) a
guiar todas as condutas, em especial aquelas que exigem contato com
os consumidores, presumidos legalmente como parte vulnerável da
relação.{30}
Trata-se de mais um mandamento de proteção da Segurança e da
harmonia social ("Vertrauensgebot"), o qual imporia àqueles que
utilizarem da publicidade suportar riscos profissionais mais elevados,
uma vez que visando lucro (direta ou indiretamente), uma vez que
* (29) Idem, p. 7: impressionante é sua exposição (p. 98 e ss.) da
doutrina de
Canaris, sobre a responsabilidade pela confiança despertada ("Vertrau-
enshaftung"), único autor alemão que une as idéias de imputação da
responsabilidade pela atuação (determinação própria), atuação de risco
profissional (mesmo que risco menor) com fim de lucro (direto ou
indireto),
e afirma: "a responsabilidade pela confiança não é responsabilidade/
obrigação "por força" do negócio jurídico, mas responsabilidade "por
participação" no meio jurídico negocial ("Teilnahme am
rcchtsgeschäftlichen
Verkehr") ob. cit., p. 101 e ss.
(30) Sobre o princípio da Boa-fé no CDC, veja o recente estudo de
Antônio
Junqueira de Azevedo, in Direito do Consumidor, v. 3, p. 78 e ss, e sobre
o princípio da boa-fé no Brasil, veja o artigo do mestre de Porto Alegre,
Clóvis do Couto e Silva, "O Princípio da boa-fé", p. 43 e ss. (p. 296)
participando de sua atividade negocial (esfera de necessário controle
do empresário) e atingindo um número indeterminado, em grau não
controlável, de pessoas (grupo a tutelar).
Como afirmamos anteriormente, tanto o princípio da transparên-
cia, que agora analisamos, como o princípio da confiança, escolhido
por Köndgen para basear sua Tese, são derivações do princípio maior,
que é o mencionado princípio da boa-fé (veja Cap. 1. 4.1.b). Boa-fé
objetiva, em matéria de publicidade, significa a exigência que esta seja
uma atividade leal (atividade refletida, pensando também naquele que
recebe a mensagem, o consumidor), que prometa só o que pode
cumprir, que se trouxer informações, seja sobre a qualidade, quantidade
ou qualquer característica do produto ou serviço, seja sobre as condi-
ções do contrato, que esta constitua uma informação correta, verídica,
que o próprio intuito de incitar ao consumo seja identificável e a
publicidade identificada como tal pelo público.
Certo está Köndgen ao frisar que a nova relevância jurídica da
publicidade encontra sua fonte nos efeitos desta atividade na sociedade,
no caso, para Köndgen, na confiança despertada nos inúmeros consumi-
dores expostos à publicidade. Considerando, porém, que a publicidade
nem sempre é tão precisa, informativa ou clara, de forma a despertar
expectativas legítimas (contratuais) nos consumidores, não deixando por
isso de atingir os consumidores, preferimos frisar aqui a existência de
um
dever de conduta genérico imposto ao fornecedor que utiliza-se da
publicidade: dever de cuidado, de veracidade na informação. Em outras
palavras, o mandamento de transparência, presente no caput do art. 4.º
do CDC e desenvolvido nos arts. 29 e ss. da lei.
Os estudos de Köndgen nos permitem, porém, visualizar que a
atividade de comunicar-se por publicidade é uma opção do fornecedor
(livre determinação), e que, por suas características de atividade
profissional (risco próprio) e por seus importantes e irreversíveis
efeitos
na sociedade, faz nascer vínculos obrigacionais, tornando-se hoje de
relevância jurídica indiscutível.
A existência de um vínculo juridicamente relevante unindo dois
sujeitos na sociedade traz em si, portanto, o binômio dever/comando,
direito/poder; traz em si a idéia de obrigação lato sensu entre estes
sujeitos. Esta "obrigação" é a individualização do dever jurídico,
abstrato e geral, é a concretização reflexa do direito do outro, que me
coloca em uma situação nova, de subordinação não só a uma conduta (p.
297)
própria imposta pelo comando legal, mas também no caso dos direitos
potestativos, na dependência da conduta do outro.
Seria a simples "atuação negocial" do fornecedor no mercado,
entrando em comunicação com o consumidor, seja através da publici-
dade, seja através de prepostos ou vendedores, seja através de prospec-
tos ou da simples oferta de produtos em sua loja, uma nova fonte de
obrigações para este? Estaria o fornecedor submetido a algum tipo de
comando legal ou novo dever legal somente porque atua com fim
negocial (direto ou indireto) frente a consumidores?
Normalmente definimos obrigação (stricto sensu) como um vín-
culo jurídico em virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com a
outra à realização de uma prestação.{31} Afirmamos assim que alguém
está "obrigado" somente quando a prestação é (ou passa a ser) exigível.
Haveria assim uma dependência intrínseca entre a exigibilidade da
obrigação principal e o termo técnico "obrigação", que segundo alguns
deveria ser utilizado somente neste sentido estrito. Peço vênia, para
utilizar aqui a expressão "obrigação" também em sentido lato, de forma
a demonstrar que antes mesmo que a prestação principal (dar, fazer,
não-fazer) seja exigível, na visão dinâmica imposta pelo CDC para a
relação de consumo, existem outras "prestações", prestações acessó-
rias, Nebenleistungen como as chamam os doutrinadores alemães, já
exigíveis em forma de condutas determinadas impostas por lei àquele
tipo de aproximação negocial.
Segundo Galvão Telles, o termo técnico "obrigação" designa, em
sentido amplo, o lado passivo de qualquer relação social, que passe a
ser juridicamente relevante. "Obrigação" significa, assim, tanto o dever
jurídico pelo qual uma pessoa se encontra vinculada a observar certa
conduta no interesse da outra (titular do direito subjetivo), quanto ao
estado de sujeição, que se traduz na submissão aos efeitos jurídicos
produzidos por iniciativa alheia (no exercício de um direito
potestativo).{32}
Dever jurídico é uma ordem ou comando dirigido pelo ordenamento
jurídico ao indivíduo, a qual ele tem de observar como um imperativo,
visando orientar seu procedimento. Ao dever jurídico imposto a um
indivíduo (devedor: lado passivo) corresponde um direito subjetivo
assegurado a outro indivíduo ou ente (credor: lado ativo).
* (31) Assim o Código Civil Português, em seu art. 397.
(32) Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra,
1986, p. 9. (p. 298)
O estado de sujeição é o correlativo passivo dos direitos
potestativos,
assim como o dever jurídico o é dos direitos subjetivos propriamente
ditos.{33} A sujeição traduz-se na impossibilidade de querer com eficácia
em sentido contrário ao que já foi determinado pelo ordenamento
jurídico.{34} É uma subordinação irresistível que consiste na necessidade
de suportar as conseqüências jurídicas da atuação do Outro que titula
um poder potestativo; enquanto o dever jurídico consiste na necessi-
dade subjetiva de obedecer ao comando jurídico, sob pena de sanção
do ordenamento jurídico. Ambos são vínculos impostos pelo
ordenamento jurídico a determinados sujeitos para a tutela de interesses
alheios,{35} o que os diferencia do "ônus", vínculo imposto, mas para a
tutela de interesse próprio, para alcançar ou manter determinada
vantagem ou posição preponderante.{36}
Pontes de Miranda, em certa passagem, prefere denominar esta
"obrigação" lato sensu de "relação jurídica pessoal",{37} de forma a
diferenciar claramente da obrigação stricto sensu (vínculo que adstringe
alguém à realização da prestação, a um dar, a um fazer, a um não fazer),
onde a figura da prestação é dominante, onde a exigibilidade da prestação
* (33) Assim ensina Andrade, pp. 1 e 2.
(34) Assim ensina Eros Roberto Grau, "Direito", p. 115, citando
os ensinamen-
tos de Carnelutti.
(35) Concordam os citados autores, Andrade, p. 3, e Grau, p. 118.
(36) Segundo Galvão Telles, catedrático da Universidade de
Lisboa, ob. cit., p.
9, obrigação, em sentido amplo, pode significar o ônus de adotar determi-
nado comportamento para alcançar ou conservar uma vantagem própria.
Parece-nos, porém, que a razão está com Eros Grau, ob. cit., pp. 117 e
118,
quando afirma que a noção de õnus não se pode amoldar às relações de
natureza obrigacional, não cabendo qualquer alusão a "dever livre" ou
"ônus", uma vez que "o sujeito que cumpre a prestação obrigacional não
o faz para evitar as conseqüências do inadimplemento, mas age em
conformidade de uma imposição normativa". Eros Grau, citando Carnelutti,
ensina: "dever e õnus têm em comum o elemento formal, consistente no
vínculo à vontade, mas diverso o elemento substancial, porque o vínculo
é imposto, quando se trata de um dever, no interesse alheio e, tratando-
se
de ônus, para a tutela de um interesse próprio".
(37) Assim o mestre Pontes de Miranda, "Tratado", v. 22, § 2.679,
p. 13, que
ensina: "Inicia-se a relação jurídica pessoal, porque a prestação pode
ainda
não ser exigível (= não ter nascido a obrigação)". (p. 299)
é o marco.{38} Somente deveríamos, segundo este autor, utilizar a expres-
são "obrigação" em seu sentido estrito, como a relação jurídica entre
duas (ou mais pessoas), de que decorre a uma delas (devedor) poder ser
exigida, pela outra (credor), prestação; do lado do devedor, haveria a
obrigação (verdadeiramente, a dívida) e do credor, a pretensão.{39}
Considerar tal relação jurídica apenas como pessoal, sem afirmar
que se trata de relação jurídica pessoal e já de natureza obrigacional,
parece-me uma redução perigosa, da mesma forma como é perigoso
afirmar que não há obrigação sem a exigibilidade da prestação, como
se fosse somente a exigibilidade da prestação principal. Mesmo Clóvis
Bevilacqua, autor de nosso Código Civil, aceitava uma definição mais
ampla de "prestação", englobando qualquer dar, fazer ou não fazer que
fosse "economicamente apreciável", e, portanto, não somente a pres-
tação principal.
Parece-nos, neste sentido, possível afirmar que há relação
jurídica
obrigacional, antes do vencimento da prestação principal, porque já há
vínculo jurídico, já há dever. Talvez esta "obrigação" (dever de prestar
ou dever contratual de conduta) seja outra ou de outro grau; apenas
"obrigação" de cooperar, de informar, de se conduzir conforme, e na
direção, da prestação principal, não inviabilizando a prestação, não
causando dano ao patrimônio ou à pessoa do parceiro contratual.
Também estes, porém, são comandos jurídicos, impostos para defesa
de interesse alheio e pela necessidade de conduta segundo a boa-fé no
contrato e fora dele. Trata-se de um comando jurídico e não somente
ético,{40} mas por esta diferença de grau, os doutrinadores alemães
denominaram estes comandos jurídicos de "deveres" (Pflichten) de
cuidado, de cooperação, de informação, diferenciando-os do dever
* (38) Telles, ob. cit., p. 9, citando o art. 397 do Código Civil
português, ensina
ainda que "obrigação", em sentido estrito, é o "vínculo jurídico por
virtude
do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma
prestação" (grifo nosso).
(39) Assim a definição de Pontes de Miranda presente no v. 22 do
Tratado, ob.
cit., p. 12 (n. 6).
(40) Beviláqua, ob. cit., p. 8, ainda com uma visão mais
tradicional ensinava:
"É certo que algumas vezes basta um interesse moral, ou de afeição para
dar conteúdo a uma obrigação. Mas desde que a obrigação se torna
exigível,
há de ter, no conceito e definição, um valor patrimonial... ou pertencerá
ao
domínio da ética". (p. 300)
principal (Leistungpflicht) e evitando o apoio na expressão já tão usada
"obrigação" (Schuld ou Verpflichtung).
Decisiva foi a contribuição dos doutrinadores alemães das
décadas de 50-60 que introduziram uma visão dinâmica e total de
obrigação, de um processo complexo, verdadeiro feixe ou conjunto
de deveres que vinculam as partes desde a sua aproximação negocial
(momento pré-contratual) e continuarão vinculando-as mesmo depois
de cumprido o dever principal (pós-eficácia dos contratos).{41} Foram
estes estudos que identificando a natureza dupla da obrigação, que
faz nascer sempre a prestação primária: débito (Schuld=Obrigação)
e a prestação secundária: garantias (Haftung=Responsabilidade),{42}
identificando, assim, no vínculo obrigacional a presença de deveres
principais (Hauptpflichte) e de deveres outros, que chamaram de
anexos ou laterais (Nebenpflichte), todos deveres ligados à prestação
ou à conduta na sociedade.{43} Os primeiros ligados à prestação
principal do contrato, um dar, um fazer, um não fazer, objeto básico
daquele tipo contratual; os outros, deveres de prestações menores,
instrumentais ou protetores da prestação principal, verdadeiros deveres
de conduta, deveres consistentes também em um fazer (p. ex.:
informar), um não fazer (p. ex.: guardar segredo, não causar dano
ao patrimônio do co-contratante durante a execução do contrato), em
um dar (p. ex.: enviar os manuais com instruções de uso).
O próprio Código Civil alemão de 1900, em seu livro 2, já
privilegia a expressão "relação obrigacional" (Schuldverhältnis), tra-
zendo como aspecto positivo a lembrança de uma visão dinâmica
temporal de obrigação, não como algo (ou apenas um ato) isolado, mas
um processo, algo que inicia, se desenvolve e termina. Um processo
que chega ao seu ápice justamente quando a prestação principal passa
a ser exigível, mas que vincula desde o momento de aproximação
negocial e que faz nascer uma série de deveres outros instrumentais que
* (41) Veja, por todos, o mestre alemão Karl Larenz, "Sch", em §
2.º, V. em
especial pp. 26 a 28.
(42) Veja, no Brasil, a obra de Clóvis do Couto e Silva,
Obrigação como
Processo, p. 100 e sobre deveres anexos, p. 111 e ss.
(43) Veja a tradução para o português da obra de Harm Peter
Westerman, p. 15,
o qual define relação obrigacional como "uma vinculação jurídica
especial,
consistente em direitos de crédito e em deveres de conduta, em que
participam pelo menos duas pessoas". (p. 301)
já são exigíveis desde logo, porque exigíveis, em princípio, da conduta
de todos, quanto mais daqueles que se aproximam para negociar.{44}
Importa-nos aqui frisar, portanto, que a obrigação é na sua
essência um "vínculo", um liame ou laço, como está na origem do
próprio termo. Desta afirmação simples e básica podemos retirar
conseqüências importantes. A simples identificação da existência de um
"vínculo" ligando (por atuação própria ou por determinação legal) dois
sujeitos na sociedade, pode assim indiciar, se este vínculo é juridica-
mente relevante, a existência de obrigações (deveres na sua essência)
para estes sujeitos.
Certo é que o Código de Defesa do Consumidor introduziu no
ordenamento jurídico brasileiro uma série de novos deveres para o
fornecedor que se utiliza (patrocina) da publicidade no mercado, como
método comercial e de incitação ao consumo. O principal destes deveres
é o de "veracidade especial". A publicidade comunica, logo é forma de
informação, mas também é livre para não trazer nenhuma informação
precisa ou mesmo nenhum sentido, pura ilusão publicitária; mas se
trouxer alguma informação, seja sobre o preço, sobre qualidade ou
quantidade, sobre os riscos e segurança ou sobre caraterísticas e
utilida-
des do produto e do serviço, esta informação deve ser verdadeira (arts.
36, parágrafo único, 37, § 1.º e 38 do CDC).{45} Introduziu, igualmente,
* (44) A "aproximação negocial" (geschäftliche kontakt) como
elemento de
imputação de deveres já estava presente na teoria de Jhering da culpa
in contrahendo, mas foi Dölle, em 1943, que valorizou este elemento
ao usar a expressão "soziale kontakt" (contato social), especificando que
o contato negocial é um grau mais forte (e por isso, daí onde derivam
outros deveres) do que o simples casuístico contato delitual; veja
detalhes
em Köndgen, p. 98.
(45) Assim concorda Benjamin, Anteprojeto, p. 183, denominando-o
como
"princípio da veracidade". Mais importante que sua denominação, como
dever anexo ao princípio, é o seu abrangente efeito prático, já
compreendido
pela jurisprudência brasileira, pois praticamente acaba com a figura do
dolus bonus em relações de consumo, uma vez que a indução ao erro pela
publicidade ou informação significa ao mesmo tempo uma violação de um
mandamento impositivo do CDC; neste sentido, a exemplar decisão: "Autor
induzido em erro pelos anúncios jornalísticos da revendedora, apregoando
veículos revisados. Irrelevante que o automóvel em questão não constasse
expressamente do anúncio. A responsabilidade não pode ser debitada ao
proprietário, que não teve participação na divulgação realizada pela
empresa (p. 302)
o dever de identificação da publicidade como tal, de forma a garantir ao
consumidor a ciência de que não se trata de informação imparcial, mas
de informação finalística para o consumo de determinado produto ou
serviço e o dever de conduta leal publicitária, proibindo o que
considerou
conduta abusiva (art. 37) ou enganosa (art. 37) e assegurando direitos
conexos a estes deveres (art. 6º, V), também do CDC.
A eventual relação obrigacional, vínculo jurídico, nascido do uso
da publicidade na sociedade pelo fornecedor seria, pois, uma modali-
dade mais individualizada e concreta de dever jurídico, reflexo de uma
atuação voluntária ou delituosa do indivíduo na sociedade.{46}
Teria o Código de Defesa do Consumidor, pois, introduzido no
ordenamento jurídico brasileiro uma nova fonte de obrigações: a publi-
cidade? Seria a simples atuação promovendo seus produtos através de
publicidade veiculada por meios de comunicação, ato juridicamente
suficiente para criar obrigações? Da publicidade veiculada adviria para
o fornecedor responsável algum dever jurídico? Dever de prestar -
manter preço e qualidade - conforme o anunciado (típica obrigação
contratual)? Dever de cuidado com o patrimônio e a segurança daqueles
que recebem a publicidade e se dirigem ao estabelecimento comercial
(típica obrigação pré-contratual)? Dever de cooperação com aqueles que
aceitaram a oferta publicitária, fecharam negócio e agora querem receber
a prestação principal (típica obrigação contratual)? Dever de indenizar
os
danos patrimoniais e morais ocasionados pela publicidade não verdadei-
ra, falha, enganosa ou abusiva (típica obrigação extra-contratual)? Dever
de ressarcir a perda econômica ocasionada pela diferença entre o
prometido na publicidade e a realidade do produto ou serviço fornecido
(típica garantia contratual de vício da coisa)?
Efetivamente, o CDC menciona a publicidade como atividade
juridicamente relevante em três momentos: 1) quando suficientemente
precisa, integra a oferta contratual (art. 30), o futuro contrato (arts.
18
e 20), vincula-o como a proposta (arts. 30 e 35); 2) quando abusiva ou
*comercial. Só desta, pois, a responsabilidade. (Decisão unânime)".
(Proc.
01190723237, Rec. 66/90, Rel. Dr. Antonio Guilherme Tanger Jardim, 8.ª
Câmara Recursal do Juizado de Pequenas Causas/RS, 23.8.90).
(46) As obrigações ou relações jurídicas obrigacionais seriam
assim de duas
espécies, contratuais e extra-contratuais, divisão esta que já se mostra
insuficiente para classificar todas as novas fontes de obrigação na
sociedade
atual. (p. 303)
enganosa, é proibida e sancionada (art. 37); 3) nos demais casos, como
prática comercial deve ser correta nas informações que presta (arts. 36,
parágrafo único e 38), identificável enquanto publicidade (art. 36,
caput) e sobretudo, leal (art. 6.º, IV).
No CDC, portanto, a prática comercial "publicidade" é verdadeira
atividade social, ato juridicamente relevante que se classifica ora (no
caso
1) como parte da oferta, negócio jurídico unilateral, ora (no caso 2)
como ato ilícito violador de direitos, ora (no caso 3), se despida de
poder
determinador dos efeitos jurídicos e de uma valoração negativa pela
eventual ilicitude. apresenta-se em sua própria essência: ato humano
unilateral com fim negocial indireto, onde a determinação de seu conteú-
do (as informações trazidas) pode ser livre, mas cujo regime deriva agora
da lei que impôs um novo patamar de conduta nas relações sociais
conforme a boa-fé objetiva. A publicidade foi, portanto, valorizada como
ato de vontade idôneo para criar vínculos obrigacionais (com ou sem
contrato) entre fornecedores e consumidores na sociedade brasileira.

b) Publicidade como oferta - Queremos destacar aqui a


relevância que a publicidade passa a ter no Direito Civil. Pelo art.
30 do CDC, a publicidade passa a ser fonte de obrigação para o
fornecedor. Como antevia Konder Comparato, em 1976,{47} "os pro-
cessos de publicidade comercial, pela sua importância comercial, pela
sua importância decisiva no escoamento da produção por um consumo
em massa, integram o próprio mecanismo do contrato e devem, por
conseguinte, merecer uma disciplina de ordem pública análoga à das
estipulações contratuais".
No Brasil, com as mudanças introduzidas pelo CDC, a publici-
dade, quando suficientemente precisa, passa a ter efeitos jurídicos de
uma oferta, integrando o futuro contrato. Isto significa que o fornecedor
brasileiro deverá prestar mais atenção nas informações que veicula, seja
através de impressos, propaganda em rádio, jornais e televisão, porque
estas já criam para ele um vínculo, que no sistema do CDC será o de
uma obrigação pré-contratual, obrigação de manter a sua oferta nos
termos em que foi veiculada e cumprir com seus deveres anexos de
lealdade, informação e cuidado;{48} no caso de aceitação por parte do
* (47) Comparato/Forense, p. 24.
(48) Veja interessante caso sobre oferta de prêmios julgado pelo
TJRS, in Ap.
Civ. 596088997, j. 29.8.96, Des. Araken de Assis. (p. 304)
consumidor, de prestar contratualmente o que prometeu ou sofrer as
conseqüências previstas no art. 35.{49}
Note-se que, historicamente, a publicidade era considerada mera
prática comercial, juridicamente relevante somente quando utilizada
como forma de concorrência desleal (art. 196, § 1.º, inc. VIII do Código
Penal). A publicidade era relevante, portanto, mais no direito adminis-
trativo, comercial e penal, do que no direito civil stricto sensu.{50}
A mudança introduzida pelo CDC é, pois, verdadeiramente
importante e exige dos juristas uma adaptação. Assim, aceita a proposta
feita através de publicidade, o conteúdo da publicidade passará a
integrar o contrato firmado com o consumidor, como se fosse uma
cláusula extra, não escrita, mas cujo cumprimento poderá ser exigido,
mesmo de maneira litigiosa frente ao Judiciário. Trata-se de conteúdo
publicitário do contrato, que, na figurativa expressão de
Pasqualotto,{51}
forma o "contrato invisível", cláusula oral, não escrita, ou se escrita
que
não integra o corpo de contrato, promessa de qualidade, de preço, de
prestabilidade etc., que passa a ser vinculativa para quem o fizer
veicular ou "dela se utilizar" (art. 30, in fine).
A nova norma não chega a ser, porém, revolucionária, pois, no
Brasil, o Projeto de Código Civil n. 634/75{52} já previa em seu art. 429
que: "A oferta ao público equivale a proposta quando encerra os
requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das
* (49) Veja exemplo jurisprudencial deste vínculo de origem
publicitária na
decisão do JEPC/SP, Proc. 840/95-6, j. 13.7.95, J. José Ernesto de Matos
Lourenço, em que se anunciava cruzeiro mencionando o nome de navio
português, roteiro e preço que não correspondiam a realidade: "Obrigação
de fazer. Erro na oferta publicitária. Presunção de boa-fé do consumidor.
Vinculação da fornecedora ao roteiro de viagem e ao preço veiculado", in
Revista de Direito do Consumidor, v. 17, p. 262-265. No mesmo sentido,
Processo 359/96, JECP/SP, j. 2.4.96, J. José Ernesto de Matos Lourenço,
em caso envolvendo anúncio de desconto de 30% de transportadora aérea:
"Oferta publicitária. Passagem aérea com desconto. Não-concessão ao
consumidor. Violação do dever de boa-fé. Restituição devida".
(50) Veja o clássico artigo de Malinvaud, pp. 52 e ss.
(51) Assim manifestou-se Adalberto Pasqualotto, citando os
ensinamentos de
Roppo, no "VI Curso Nacional de Direito do Consumidor", em 24.8.94,
organizado pela Seção Pernambuco do Brasilcon, em Recife.
(52) Sobre o Projeto de Lei n. 634/75 veja os Comentários de
Bulgarelli, pp.
46 e ss. (p. 305)
circunstâncias ou dos usos". O CDC simplesmente assegura a inclusão
da publicidade, desde que suficientemente precisa, como oferta.
A jurisprudência brasileira não exitou em absorver o espírito do
art. 30 do CDC{53} e chegou mesmo a estabelecer uma prevalência da
informação, do prometido ou transmitido por via publicitária em
relação ao estabelecido ou predisposto no contrato.{54} Esta prevalência
está de acordo com a natureza de normas de ordem pública das normas
do CDC, ou se poderia através de simples cláusula contratual retirar
todo o efeito vinculativo da publicidade, efeito imposto e desejado
justamente pelo art. 30 e demais normas do CDC.{55}
Observando hoje o disposto no art. 30 do CDC, parece-me sábia
a expressão utilizada "suficientemente precisa", porque destaca que a
publicidade informativa, assim como as outras informações, não
necessita ser "total", isto é, precisa absolutamente todos os elementos
do futuro contrato ou elementos que compõem a oferta: alguns
elementos podem ser definidos quando do futuro contato negocial entre
* (53) Assim concorda J. Martins Costa, Princípio, p. 50: segundo
a autora,
mesmo antes do advento do CDC esta incorporação das informações
prestadas através da publicidade aos contratos já teria sido reconhecida
pela
jurisprudência brasileira no leading case do Supremo Tribunal Federal, AI
88.416 (Ag. Rg)-RJ, 1.ª T., j. 3.5.83, Rel. Min. Néri da Silveira,
reproduzido
in RTJ 107/1.013.
(54) Sobre a prevalência da informação ou promessa feita através
da publicidade
a citada autora, idem, nota 12, p. 57, menciona decisão não publicada no
TJRGS, segundo a qual: "a promessa, constante de propaganda, de que o
prédio teria telefone em todos os apartamentos significou que a
incorporadora
assumia a obrigação de instalar as respectivas linhas e de transferi-las
aos
condôminos, com todos os equipamentos necessários". (Ap. Civ. 591016530,
Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., j. 6.6.91).
(55) Concorda Rodycz, p. 63, que com a visão do julgador
identifica neste
elemento o campo para a valoração e interpretação do juiz. O autor,
relembrando o caso da Loteria-Instantânea do Esporte Club Internacional,
onde se discutiu sem sucesso a identificação dos carros Gol-Gl e Gol-SI,
para efeito de premiação, afirma que: "essa suficiência deve ser
analisada
do ponto de vista dos destinatários da oferta. Tratando-se de crianças,
haverá
de ser mais exigente, se endereçada a um universo de apostadores em
jogOS,
sorteios ou loterias, o nível de precisão será outro. Nenhum apostador
poderá exigir o cumprimento de uma tentadora publicidade lotérica somente
por isso, pois todo o mundo sabe que a sorte faz parte desse negócio"
(pp.
63 e 64). (p. 306)
fornecedor direto e consumidor. Os elementos, porém, que a publici-
dade informativa trouxer, estes sim, obrigam e vinculam desde sua
veiculação. Trata-se assim de uma diferença com a oferta clássica. A
oferta de consumo pode referir-se a apenas uma qualidade do produto
ou serviço e já vincula, já integra o contrato que vier a ser celebrado,
regulando aquele aspecto se mais favorável ao consumidor, mesmo que
a oferta-publicitária não seja total, de um ponto de vista clássico,
quanto a presença de todos os elementos contratuais.{56}
Como expressão do auto-regramento das relações entre particulares
através da declaração de vontade (negócio jurídico), a publicidade pode
trazer os elementos que desejar o fornecedor: características, qualidade,
segurança, preço, medidas, quantidade, condições de pagamento, condi-
ções de crédito, condições da própria oferta, regras para o uso etc. As
informações que trouxer, suficientemente precisas, estas, porém, são
vinculantes, obrigam desde já o fornecedor e integram o futuro contrato.
Face a nova disposição legal, não há mais como negar que da
atividade publicitária suficientemente precisa nascem obrigações (de-
veres especiais) para o fornecedor que a fizer veicular ou que dela se
utilizar. Nasce uma relação jurídica obrigacional, um vínculo jurídico,
mas qual é a natureza e as características desta relação?
Esta vinculação obrigacional possui natureza, inicialmente, pré-
contratual, pois é somente uma declaração unilateral de vontade da qual
decorrem deveres jurídicos para o fornecedor e a qual Correspondem
direitos para os consumidores expostos à publicidade.
Destaque-se que se trata aqui de um vínculo jurídico
obrigacional,
obrigação no sentido lato.{57} Significa que o fornecedor se encontra
* (56) Chaise, p. 11, baseando-se em Picazo, p. 18, cita
jurisprudência pioneira
espanhola, a qual estabeleceu que se a publicidade estabelecesse a
qualidade
dos materiais de construção (pretensamente) utilizados na obra passava
esta
a Integrar o contrato, devendo prevalecer frente a cláusulas escritas em
contrário no contrato de adesão.
(57) Em sentido contrário, como antes afirmamos, está o mestre
Pontes de
Miranda, Tratado, v. 22, § 2.679, p. 13, que defendendo uma visão
estática
e tradicional de obrigação preleciona: "Ao se lançar, de público, a
decla-
ração unilateral de vontade, com o ato de alguém, a que nasça direito, ou
ao se concluir o contrato, não se pode dizer que a relação jurídica de
obrigação se inicia. Inicia-se a relação jurídica pessoal, porque a
prestação
pode ainda não ser exigível (= não ter nascido a obrigação)". (p. 307)
vinculado a observar certa conduta no interesse de outro, o consumidor
(titular de um direito subjetivo), deverá cumprir seus deveres de
lealdade, veracidade na informação, deveres de conduta segundo a boa-
fé, deveres anexos de cuidado, de informação, de conselho, de coope-
ração etc.{58} Significa, igualmente, que o fornecedor se encontra (por
ação própria) em um estado de sujeição, face a possível aceitação dos
consumidores de sua oferta publicitária; se tal aceitação ocorrer
sujeita-
se o fornecedor às conseqüências irresistíveis da atuação do direito
formativo do outro: vincula-se ao contrato e terá de prestar conforme
informou na oferta publicitária.
Tais observações têm importante reflexo prático. Se observamos,
por exemplo, como caso de estudo, o ocorrido em 1991, em Goiânia,
onde loja de eletrodomésticos{59} publicou em jornal de grande circula-
ção oferta publicitária de fornos microondas, especificando inclusive
o tipo do produto, o preço convidativo, as condições de pagamento e
suas características positivas, mas quando grande número de consumi-
dores afluíram à loja, alegou ter fechado os contratos por "coação", três
observações podem ser feitas.
Se a oferta publicitária foi efetivamente feita, já havia vínculo
obrigacional para a loja, logo estado de sujeição à aceitação dos
consumidores (mesmo em grande número), pois nada mencionava a
oferta sobre o número de fornos que seriam vendidos naquelas
condições e o tempo razoável de manutenção daquela oferta. Trata-se
de um novo risco profissional daquele que utiliza este método de
incitação ao consumo, a publicidade juridicamente relevante; risco que
os deveres de conduta impostos ao fornecedor ex vi lege não permite
transferir de volta ao universo difuso ou identificável de consumidores.
O CDC impôs estes novos deveres legais e assegurou os conexos
direitos ex lege aos consumidores, justamente porque se não o fizesse
* (58) Sobre deveres anexos na fase pré-contratual veja a obra de
António Menezes
Cordeiro, Da Boa-fé, em especial pp. 603 e ss., e, comparando o sistema
francês de obrigações acessórias e os deveres anexos, veja a tese de
doutorado de Hans-Jochem Mayer.
(59) Sobre o caso Mesbla/Goiânia, veja o artigo de Tomassetti,
Transparência,
p. 65 e duas análises do caso publicadas no v. 4 da Revista de Direito do
Consumidor, pp. 140-172 e 241-254. Segundo consta o caso continua sub
judice, mesmo assim consideramos úteis tecer alguns comentários e
opiniões pessoais. (p. 308)
estaria permitindo que se chamassem às lojas através da publicidade
de massa consumidores, mesmo se estas lojas não possuíssem tais
produtos ou não trabalhassem neste ramo, simplesmente para "brincar"
com os consumidores ou atraí-los de forma maliciosa para o interior
da loja ou shopping center, na esperança que outra coisa consumissem.
Ao igualar a publicidade suficientemente precisa, como o foi a do
caso em estudo, à oferta colocou o CDC o fornecedor que veiculou a
publicidade no mesmo estado de sujeição à aceitação que já era
conhecido pelo próprio Código Civil, no caso da proposta contratual
aceita. Se a proposta foi aceita sem modificações e imediatamente não
há como querer com eficácia em sentido contrário, o contrato está
fechado e só o inadimplemento é possível (dano positivo), mas também
sancionado.
Após a aceitação, a natureza do vínculo obrigacional ligando o
fornecedor e o consumidor (da publicidade) transforma-se em vínculo
de natureza contratual, se bem que suas características continuem as
mesmas e apenas acrescente-se a possível exigibilidade da prestação
principal. O art. 35 do CDC é claro, ao dispor que "se o fornecedor
de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou
publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua escolha: I
- exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta,
apresentação ou publicidade; II - aceitar outro produto ou prestação de
serviço equivalente; III - rescindir o contrato, com direito à
restituição
de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a
perdas e danos" (grifo nosso).
No caso em estudo, tentou-se posteriormente anular judicialmente
os contratos firmados naquele dia, sendo que dos consumidores foi
exigido que prestassem, pagando o produto nas condições da oferta
publicitária e foi-lhes entregue em troca um "documento de crédito",
porque não havia na loja "nenhum exemplar do bem ofertado". O
argumento principal utilizado foi o de coação psicológica ao gerente
que fechou os contratos; mas, como examinamos acima, a proposta
aceita tinha sido feita anteriormente (na publicidade), logo, nada
caberia ao fornecedor do que cumprir seus deveres de cooperação (não
inviabilizar a prestação ou o contrato) e de cuidado (não causar danos
Outros ao patrimônio dos consumidores) e reconhecer seu estado de
Sujeição à possível aceitação de sua oferta publicitária. O argumento
mais interessante ficou secundário: o de eventual equívoco sem culpa (p.
309)
do fornecedor na mensagem publicitária. Perguntam-se os estudiosos
do assunto: É efetivamente relevante o erro na oferta publicitária? Um
erro substancial pode anular a declaração e vontade unilateral da
publicidade já veiculada e que já atingiu seus efeitos?
Este sim é um tema atual e que extrapola a nova natureza
contratual da publicidade, para se concentrar em sua essência como ato
unilateral de vontade; ato, portanto, teoricamente revogável e subme-
tido à teoria dos defeitos da vontade.{60} As regras presentes no CDC
proibindo a veiculação de publicidade enganosa e publicidade abusiva,
como verdadeiros atos ilícitos, parecem reforçar o já mencionado
regime ético da publicidade, estabelecidos pelos arts. 30, 35, 36 e 38
do CDC. Para que tais publicidades sejam consideradas abusivas ou
enganosas não é necessária a vontade específica dolosa ou que a
aproximação entre fornecedor e consumidor tenha sido com o intuito
direto de vender, de comerciar, de concluir contratos, basta a atividade.
Basta a atividade de publicidade, como determinação soberana e
profissional do fornecedor e sob o risco profissional deste, em caso de
falha, erro, ou culpa de terceiro da cadeia organizada ou contratada por
ele próprio de fornecedores-auxiliares.{61}
Tratando-se de risco profissional (responsabilidade própria do
profissional),{62} tratando-se de atuação a qual a lei impõe deveres
espe-
* (60) Pode-se afirmar hoje que a doutrina brasileira,
majoritariamente, não aceita
a possibilidade de alegar "erro" na mensagem publicitária, considerando-
o risco profissional, veja por todos Benjamin, Anteprojeto.
(61) Considero que, neste caso, o fornecedor responsável pela
publicidade
"falha" possui direito de regresso contra o outro fornecedor (seu
auxiliar)
que efetivamente cometeu o erro (jornal, agência de publicidade etc.).
Tal
regresso obedece, porém, as regras de direito comercial e não do direito
do
consumidor, porque não envolve "destinatário final econômico" ou sujeito
vulnerável equiparável a consumidor.
(62) Köngen desejava justamente partir da vinculação própria por
ato com
finalidade negocial (atuação) para chegar à responsabilidade própria
(efei-
to), ob. cit., p. 7, e não simplesmente defender mais um "motivo de
imputação da responsabilidade" (Zurechnungsgrund), a confiança, caminho
já percorrido por Canaris, em 1971; por isso sua análise e a opção por
englobar todos os casos na categoria (hoje em desuso) dos quase-
contratos.
Concorde-se ou não com sua opção, a tese teve o mérito de repassar todas
as tentativas dogmáticas de estabelecer tal vínculo
(obrigação/responsabi-
lidade), desde o venire contra factum proprium, a estoppel da "equity"
(p. 310)
ciais (através de norma de ordem pública) não transferíveis aos consu-
midores, nem mesmo através de previsão contratual (ex vi arts. 1.º, 51,
I, e 25 do CDC), terá o fornecedor de suportar a sua falha, responder
pela
informação mal transmitida, pelo inadimplemento contratual ou pelo ato
ilícito eventualmente resultante da publicidade falha.{63}
Da mesma maneira, se a oferta publicitária já foi aceita,
concluiu-
se o contrato a que se destinava e não há mais como revogá-la.{64}
Reconhece-se um estado de sujeição à atuação do outro, de aceitar ou
não a oferta, no prazo razoável e nas condições que foi feita. Aqui vale
lembrar a contribuição do Código Civil italiano de 1942 à teoria dos
defeitos da vontade, a chamada teoria da confiança. Segundo esta nova
espécie da teoria da declaração, havendo divergência (provada) entre
a vontade interna e a vontade declarada, prevalece em Princípio a
vontade declarada, se (e na medida) em que despertou a confiança. Em
outras palavras, na medida em que criou expectativas legítimas no outro
contratante, na população atingida pela declaração (standard objetivo),
a vontade declarada prevalecerá, porém, se o outro contratante sabia
ou podia saber razoavelmente no mesmo momento da declaração que
aquela não era a vontade interna de seu parceiro, poderá a declaração
ser anulada. Procura-se assim um equilíbrio entre os valores envolvidos
e as dificuldades de prova, preservando prioritariamente a segurança
das relações, mas também combatendo a (eventual) má-fé subjetiva.{65}
No caso mencionado anteriormente, a publicidade veiculada pela
loja de eletrodoméstico tanto despertou (objetivamente) a confiança na
população, que grande foi o número de consumidores que afluíram para
aceitar a oferta. A aparência de seriedade da oferta foi tanta porque o
preço à vista e o preço a prazo veiculados coincidiam razoavelmente,
sendo despiciendo mencionar que as lojas costumam anunciar suas
*inglesa, a culpa in contrahendo de Jhering, a warranty norte-americana
até
nós e a responsabilidade por atos profissionais, por informações, por
prospectos, por publicidade.
(63) Assim conclui, após amplo levantamento da doutrina nacional,
também
Pasqualotto, p. 113.
(64) Veja sobre o caso das Lojas Arapuã de Porto Alegre os
comentários de
Rodycz, in Estudos, p. 63, e Chaise, p. 127, comentando oito decisões
favoráveis aos consumidores no JECP/RS.
(65) Sobre a teoria da confiança, veja a excelente obra de
Orlando Gomes,
Transformações... p. 15 e Nelson Nery, Vícios, p. 14 e ss. (p. 311)
melhores ofertas, preços mais baixos pela qualidade do produto que
oferecem. Da mesma maneira contribuiu o fato de, no Brasil, com
inflação à época de 50% ao mês, ninguém ter plena consciência do que
é caro ou barato, dependendo justamente da oferta do mercado, da
atuação estipuladora do fornecedor-profissional em vendas. Despertada
a confiança no homem médio, que foi atingido pela publicidade
veiculada em jornal de grande circulação sem os cuidados devidos,
deveria a loja manter sua declaração, só podendo anular o contrato, com
base em erro, se houvesse (e fosse provada) má-fé subjetiva de algum
dos consumidores.
A confiança serve assim a esta teoria como um parâmetro, um
dado objetivo, que uma vez atingido traz a impossibilidade de anular-
se por erro a declaração já veiculada; enquanto que a possibilidade de
anulação da declaração serve de exceção justa, a ser permitida somente
quando a declaração foi tal que (objetivamente) não despertou a
confiança no homem médio ou quando, individualmente, aquele con-
sumidor tiver consciência, no momento da declaração, que ela não era
a vontade do fornecedor (logo, a declaração nunca pode despertar a
confiança subjetiva daquele indivíduo).
Por fim, cabe mencionar que mesmo havendo anulação dos
contratos (o caso ainda está sub judice), parece-nos que permanece a
responsabilidade pela confiança. Jhering, já no século passado, notara
que, estabelecida a aproximação negocial, mesmo que o contrato dela
resultante fosse nulo, havia responsabilidade pelo dano negativo.{66} A
famosa teoria de Jhering da culpa in contrahendo nasceu justamente
de observações sobre casos de contratos nulos, onde mesmo assim o
mestre identificou a existência de deveres especiais de conduta (os
deveres anexos), cuja violação resultava em dever de indenizar, de
reparar o dano ocasionado por esta aproximação negocial, chamada
então de responsabilidade pré-contratual, para atrair o regime contratual
mais benéfico no direito alemão da época.
A lógica do grande doutrinador alemão é atual, pois se o
descumprimento do princípio da transparência, dos deveres anexos por
ele impostos, assim como se a frustração da confiança despertada, não
for acompanhada de uma reação negativa do ordenamento jurídico,
* (66) Sobre a importância da teoria de Jhering, da culpa in
contrahendo, no
regime atual da publicidade na Alemanha, veja Köndgen, p. 304 e ss. (p.
312)
algum tipo de sanção ou inadimplemento, tais normas não terão efeito
prático, serão palavras ao vento, dispositivas, programáticas e
inefetivas.{67}
O CDC e seu regime de ética nas relações entre fornecedores e
consumidores almeja justamente um efeito prático. Este será consegui-
do se tivermos bem claro que o direito de danos (Schadensrecht) tem
mais de uma função, não só ressarcimento dos danos efetivamente
sofridos (patrimoniais e não patrimoniais, art. 6.º, VI, do CDC), mas
também prevenção de futuros casos semelhantes e satisfação minima{68}
para aqueles atingidos ou expostos ao ato do fornecedor, que recebe-
riam ao menos seus danos negativos.{69}
Feitas estas observações, gostaríamos de frisar, por fim, as
diferentes funções da publicidade, que atua não somente como oferta
contratual, mas também como informação (assegurando determinada
qualidade do produto ou da característica do contrato) e eventualmente
como ato ilícito.{70}
A publicidade, por exigir um certo poder econômico daquele que a
faz veicular, é na maioria das vezes veiculada pelo fabricante do produto
e não pelo pequeno comerciante que fechará o contrato com o consumi-
dor. A primeira impressão é que, nestes casos, a publicidade perderia a
* (67) Assim, citando o princípio da boa-fé, Amaral Jr., in
Revista de Direito do
Consumidor, v. 14, p. 50.
(68) Os doutrinadores alemães atuais, influenciados pela doutrina
norte-ameri-
cana dos pwlitive damages, destacam a importância desta função
"satisfativa"
para a futura harmonia no mercado, veja Kern, p. 247 e ss.
(69) Concorda Rodycz, p. 65, ponderando que algumas vezes o erro
do fornecedor
que utiliza-se da publicidade é escusável, mas mesmo assim os danos (ou
interesses) negativos do consumidor (deslocamento, tempo, perda de uma
chance etc.) devem ser ressarcidos. No mesmo sentido, Grisi, p. 337,
considera que face ao descumprimento de um dever anexo pré-contratual que
leve de alguma forma a não conclusão do negócio ou a nulidade do
contrato,
os interesses negativos da parte frustrada devem ser ressarcidos,
inclusive as
"oportunidades perdidas" (que o autor caracteriza como "lucros
cessantes"),
tema ainda controverso e pouco tratado no direito brasileiro, face a
nossa
visão de dano concreto e "calculável" pelo outro co-contratante.
(70) Veja 1.2, letra b (informação) e 2.1, letras b e c (ato
ilícito) a seguir;
veja também a decisão em ação civil pública movida pelo Ministério
Público Federal/SP contra publicidade de ar condicionado que afirmava
ser este "silencioso", considerada enganosa, in Direito do Consumidor,
n. 10, p. 281 e ss. (p. 313)
relevância jurídica, pelo menos no que se refere ao futuro contrato entre
o pequeno comerciante e o consumidor-adquirente do produto.
Inicialmente, é necessário destacar o espírito novo do CDC’ e do
direito do consumidor, isto porque as normas do Código muitas vezes
sobrepujam a clássica barreira do contrato, como que menosprezando
a diferença entre uma relação contratual e uma relação meramente
extracontratual. Realmente, a publicidade só terá os efeitos do art. 30,
como oferta, se for veiculada por aquele que fechará efetivamente o
contrato. Portanto se o fabricante, através de campanha nacional faz
veicular uma publicidade afirmando que seu produto tem determinadas
qualidades, não se trata de uma oferta do comerciante, segundo o art.
30 do CDC, apta a iniciar a formação do futuro contrato, mesmo porque
não menciona o preço, elemento essencial da compra e venda. O
comerciante que vender aquele produto, que fechar efetivamente o
contrato de compra e venda com o consumidor, fará sua própria oferta
ao consumidor, que poderá ser diferente daquela do fabricante. Mas
ninguém duvida que a publicidade feita pelo fabricante estará sendo,
indiretamente, "usada" pelo comerciante para motivar a compra pelo
consumidor daquele produto que ele tem em estoque. O art. 30 do CDC,
in fine, menciona que a informação "obriga o fornecedor que a fizer
veicular ou dela se utilizar...". Resta saber se esta utilização,
indireta,
praticamente inconsciente pelo comerciante das campanhas publicitá-
rias dos fabricantes e produtores será aceita pela jurisprudência brasi-
leira como subsumida na hipótese do art. 30. Particularmente, consi-
dero que, na hipótese, não será necessária a proteção do consumidor
através da nova noção de oferta contratual, pois o consumidor encon-
trará sua tutela no novo e amplo regime de vícios de informação e de
vício de adequação dos arts. 18 e ss. do CDC.
Assim, no direito do consumidor, a publicidade, enquanto infor-
mação prestada ao consumidor, pode ter outros efeitos jurídicos. OS
efeitos nasceriam não da nova noção de oferta, mas do novo dever de
informar corretamente sobre as qualidades do produto (art. 18 do CDC
- publicidade enquanto informação sobre a qualidade). Nesse sentido,
acreditamos que também a publicidade veiculada pelo fabricante pode
atingir, indiretamente, o comerciante-vendedor e o contrato firmado.{71}
* (71) Mesmo não analisando a hipótese formulada, parece concordar
com nossa
conclusão Benjamin/Forense, p. 87 (sobre solidariedade) e p. 92 (sobre
rescisão do contrato de consumo). (p. 314)
Uma vez que o art. 18 do CDC responsabiliza todos os fornece-
dores pelo vício de qualidade do produto, responsabilizando-os também
pela disparidade entre as informações prestadas em mensagem publi-
citária e a realidade, também o comerciante pode ser obrigado a
rescindir o contrato em virtude da nova noção de vício do produto, vício
este no direito tradicional chamado de "redibitório", por permitir a
redibição do vínculo contratual (art. 1.110 do Código Civil Brasileiro).
A responsabilidade prevista pelo art. 18 é solidária, incluindo tanto o
fabricante, como o vendedor final, assegurado a este somente, pelo
direito tradicional, um eventual direito de regresso para rever o
prejuízo. A responsabilidade prevista no art. 18, como bem ensina o
mestre de São Paulo, Antônio Herman Benjamin,{72} e oriunda de uma
teoria típica do direito do consumidor, por ele denominada teoria da
qualidade, logo não se subsume perfeitamente nas categorias de
responsabilidade contratual ou extracontratual.
Devemos concluir, portanto, que a publicidade veiculada passa a
interessar ao Direito Civil, ou mais especificamente o Direito do
Consumidor, seja como oferta, se veiculada pelo futuro fornecedor-
contratante (art. 30 do CDC), seja como informação obrigatoriamente
correta, a ensejar, segundo o § 1.º do art. 18 do CDC, a substituição
do produto por outro, a rescisão do contrato e a restituição da quantia
paga, ou o abatimento proporcional do preço, à escolha do consumidor.
No que concerne a importância da publicidade no direito
contratual,
vale examinar a evolução neste sentido apresentada no direito compa-
rado. Quatro institutos do direito podem ser utilizados para reconhecer
efeitos civis à publicidade, e proteger aqueles que nela confiaram: o
erro, o pacto contrahendo, o quasi-contrato e o ato ilícito.
Na França, uma lei de 1905 sobre fraudes, manifestava preocu-
pações em garantir a lealdade das informações prestadas aos consumi-
dores, E a lei de 2 de julho de 1963 já proibia a publicidade enganosa.
Mas ao nosso estudo interessa o art. 44 da lei de 27 de dezembro de
1973 (Lei sobre a orientação do comércio){73} que proibe a publicidade,
feita de tal maneira a poder induzir os consumidores em erro.
Efetivamente o erro, como vício da vontade, nada mais é do que a falsa
* (72) CDC-Comentários/Saraiva, p. 38.
(73) Todas as informações sobre o ordenamento jurídico francês
foram retiradas
do artigo de Malinvaud, p. 52. (p. 315)
noção da realidade;{74} logo se através de uma publicidade dirigida a um
contrato, o consumidor passa a ter uma falsa noção da realidade do
contrato ou das qualidades essenciais do produto, está agindo em erro,
manifestando a sua aceitação ao contrato em erro, e se a este foi
induzido, ocorre o dolo por parte do fornecedor. Ambos são vícios da
vontade, que ensejam em nosso sistema atual a anulabilidade do ato
(art. 147, II c/c arts. 84 e 96 do Código Civil Brasileiro). A crítica
que
se pode fazer à utilização do erro para anular um contrato de consumo
influenciado por uma publicidade enganosa (art. 37, § 1º do CDC) é
ser o erro de difícil prova e somente relevante se "substancial", isto é,
de tal relevo, de tal força, que, sem ele, o ato não se realizaria{75}
(art.
87 do Código Civil Brasileiro). A idéia de erro, de falsa informação,
será usada com mais sucesso para definir a publicidade enganosa,
proibindo a sua prática, até mesmo por liminar para evitar danos à
coletividade, e impondo sanções civis (perdas e danos), sanções
administrativas e penais.
É possível, também imaginar a publicidade como fonte de
obrigações civis tendo como base a teoria da culpa in contrahendo{76} de
Jhering.{77} Esta reconhecida teoria alemã, afirma que com o início das
negociações preliminares (Aufnahme von Vertragsverhandlungen), com
o início da aproximação entre cliente e comerciante, e já em seus
primeiros contados com vistas a um futuro contrato (vorbereitender
geschäftlicher Kontakt), nasceria para ambos uma obrigação legal de
cuidado, de esclarecimento e de evitar qualquer dano ao interesse da
outra parte.{78} Em caso de descumprimento destes deveres pré-
contratuais,
o comerciante ficaria obrigado a ressarcir os danos, segundo o princípio
do ressarcimento contratual, isto é, através de perdas e danos. Aquele
que veiculasse publicidade enganosa ficaria, portanto, obrigado a
reparar os danos causados por sua "culpa quando da celebração do
contrato", pois desobedeceu seus deveres de cuidado e de informação
* (74) Assim Nery, p. 29.
(75) Assim Nery, p. 30, inspirado em Washington de Barros
Monteiro.
(76) Nesse sentido, no Brasil, manifestou-se Pasqualotto/Daños,
p. 1.
(77) Sobre a evolução das idéias de Jhering até chegar a esta
teoria da "culpa
na celebração dos contratos", de 1861, veja, excelente,
Larenz/Metodologia,
pp. 485 e ss.
(78) Assim ensina o mestre alemão Larenz/AT, p. 533, sobre os
efeitos civis do
contato social. (p. 316)
clara para com o consumidor, ao enganá-lo, ao induzi-lo em espécie
de erro através da publicidade (ex.: publicidade-chamariz). O sistema
parece em muito semelhante àquele criado pelo Código, o qual poderia
ter efetivamente evoluído da idéia de culpa in contrahendo, como
afirmou Adalberto Pasqualotto.{79}
Da mesma maneira, Ferreira de Almeida{80} ao tentar definir as
características do Direito do Consumidor, ao tentar criar uma teoria
jurídica própria para o negócio jurídico de consumo, conclui que as
características seriam justamente a criação de novos e amplos deveres
pré-contratuais e também maior controle do contrato, criando igual-
mente novos deveres pós-contratuais.
Já o citado mestre alemão Koendgen preferiu destacar os efeitos
jurídicos da publicidade como quasi-contrato ou como ato ilícito.
Segundo este doutrinador a publicidade tem uma dupla função: é a
promessa negocial de qualidade do produto ou do serviço (geschäftliches
Qualitätsverprechen), mas é também "incitação" ao contrato (Verleitung
zum Vertrage).{81}
Esta função ambivalente teria dificultado a elaboração de uma
doutrina civilista sobre seus efeitos. A informação sobre a qualidade
do produto{82} foi sempre tratada como mero problema de concorrência
desleal, uma vez que a jurisprudência alemã era relutante em incluir
a hipótese como equivalente a uma "qualidade assegurada", tratando
a publicidade como simples "declaração" não vinculativa. Koendgen
discorda, porém, e considera que a informação veiculada cria uma
expectativa de qualidade, que será incluída pelo consumidor no
contrato, quando o fizer; logo, trata-se de um problema contratual, mais
especificamente a publicidade seria um elemento quasi-contratual.{83} No
sistema do CDC, como já observamos, a promessa de qualidade pela
publicidade pode dar origem a um vício de informação (descumprimento
de dever anexo contratual ou mesmo extracontratual, através da
solidariedade do art. 18) ou, se considerada parte da oferta, dar origem
a um descumprimento contratual (descumprimento de dever principal).
* (79) Pasqualotto/Daños, p. 1.
(80) Ferreira de Almeida, pp. 29 e 30.
(81) Koendgen, pp. 295 e ss.
(82) Problema tratado no ponto 1.2 (a publicidade como oferta).
(83) Assim conclui Koendgen, p. 298 (tese de Habilitação em
Tübingen). (p. 317)
Como "incitação" ao contrato,{84} a publicidade serviria para
per-
suadir o consumidor a fechar o contrato com determinado fornecedor.
Sem menosprezar o seu caráter eventual de concorrência desleal, este
autor alemão vê na publicidade uma força capaz de manipular a ação
do consumidor, criando a persuasão que aquele produto preencherá
determinada necessidade social, econômica (real, fictícia) ou psicoló-
gica. Nesse sentido considera que devam existir limites bem claros para
a publicidade (proibição da publicidade subliminar, da publicidade
chamada sugestiva), ou esta incitação à conclusão do contrato poderá
representar um elemento delitual da publicidade, poderá causar danos
ao consumidor. Nesse sentido, o consumidor enganado poderia exigir
o ressarcimento dos prejuízos ("Interesses Negativos") que sofreu ao
fechar aquele contrato, induzido pela publicidade, e não outro.{85}
No sistema do CDC, o art. 45, vetado pelo Presidente da
República, previa, como sanção para a prática da publicidade enganosa
ou abusiva, a imposição de perdas e danos, a indenização por danos
morais, e também a imposição de uma "multa civil", multa esta
semelhante aos punitives dammages do direito norte-americano. Estas
perdas e danos com caráter punitivo foram objeto de veto, mas nada
impede que, com base no direito tradicional, no art. 159 do Código
Civil, requeira o consumidor ou suas entidades de defesa a condenação
do fornecedor em perdas e danos reparatórios pelos prejuízos causados
pela publicidade ilícita (publicidade enganosa e abusiva, segundo
definições do art. 37 do CDC).{86}

c) Informações e pré-contratos - Como observamos, o CDC


utiliza somente a noção de oferta, equiparando-a sempre a uma
proposta contratual, mas além disso a nova lei tem o condão de diluir,
ainda mais, a diferença existente entre as manifestações das partes
quando da chamada fase de negociações preliminares e as manifesta-
ções das partes dirigidas à formação do contrato definitivo, ou oferta
e aceitação.
* (84) A expressão é utilizada tb. por Diez Picazo, p. 8.
(85) Koendgen, p. 299.
(86) Nesse caso, o art. 159 do CCB estaria sendo usado em função
análoga
àquela do § 823, 2.º, do BGB alemão, que prevê o ato ilícito por ofensa a
um interesse protegido (um dever instituído) por outra lei, no caso o
Código
de Defesa do Consumidor. (p. 318)
Na visão tradicional, o empresário ou seu preposto prestaria
várias
informações para o consumidor sobre o produto a ser adquirido, sobre
as formas de pagamentos, os eventuais acréscimos, juros, frete etc., mas
estariam as partes agindo na fase pré-contratual, preliminar de nego-
ciações, e, portanto, não vinculativa. Agora o CDC amplia a noção de
oferta no art. 30, inclui todas as informações suficientemente precisas,
mas, principalmente, regula a fase pré-negocial no art. 48 do Código,
afirmando o seguinte:
"Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos parti-
culares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo
vinculam o fornecedor ensejando inclusive execução específica, nos
termos do art. 84 e parágrafos".
O art. 48 do CDC reforça a nova noção de conteúdo do contrato
disposta no art. 30. Afirma que as declarações de vontade constantes
de escritos particulares, recibos e pré-contratos vincularão o fornece-
dor. Em outras palavras, estas informações farão parte do contrato, uma
vez que seu descumprimento ensejará inclusive a execução específica
prevista no art. 84. O próprio texto do art. 84 reforça este
entendimento,
pois dispõe sobre o descumprimento de obrigação de fazer, visando
criar meios de obter, no Judiciário, "resultado prático equivalente ao
do adimplemento" da obrigação.
A repercussão prática da norma do art. 48 não pode ser
menosprezada, pois trata-se do sensível problema dos pré-contratos,
que no Brasil ganhou vulto com a massificação das promessas de
compra e venda de imóvel loteado e não loteado. Na doutrina
tradicional, este pré-contrato era considerado mera obrigação de fazer,
dando origem apenas a um direito de crédito à conclusão do contrato,
a uma ação estritamente pessoal, logo o descumprimento levaria à
indenização em perdas e danos e não aos efeitos que teria produzido
o contrato. Com a evolução social, o legislador brasileiro foi obrigado
a criar, em hipóteses específicas (Decreto-lei 58, de 10 de dezembro
de 1937 e Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979) e dependentes
de formalização,{87} um efeito real para tais promessas, a fim de que
o promitente-comprador pudesse ter regularizada a propriedade do
* (87) Veja nesse sentido as Súmulas ns. 167 e 168 do STF,
exigindo o registro
imobiliário do compromisso de compra e venda. Segundo informa
Roberto
Rosas, Direito Sumular, p. 80, tais Súmulas não têm sido aplicadas pelo
agora competente Superior Tribunal de Justiça. (p. 319)
imóvel. Segundo dispõe o art. 22 do Decreto-Lei n. 58 de 1937, os
contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de
compra e venda de imóveis não loteados, desde que inscritos no
registro imobiliário, atribuem aos compromissários direito real oponível
contra terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória.
A jurisprudência brasileira evoluiu no sentido de considerar inadmis-
sível o arrependimento nesses compromissos, mesmo que permitido
pelo art. 1.088 do Código Civil (Súmula 166 do STF), e mesmo
existindo cláusula expressa no contrato, quando o fornecedor descumpre
o contrato (RTJ 41/355). Por fim, a Súmula 413 do STF pacificou
a jurisprudência no sentido de estender aos compromissos de venda
de imóveis não loteados a execução compulsória, quando reunidos
os requisitos legais.
O art. 48 introduzido pelo CDC parece representar mais um passo
adiante nesta evolução.{88} Em uma interpretação literal, o artigo parece
permitir, sem o formalismo antes exigido, ao consumidor exigir a
execução específica, isto é, que por sentença o juiz substitua-se ao
devedor da obrigação fazer e, por exemplo, elabore ou inscreva no
registro de imóveis a escritura definitiva de compra e venda do imóvel.
A Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já estava firme no
sentido de um abrandamento da Súmula 621 do STF, a fim de que o
promitente comprador pudesse opor embargos de terceiros, embora não
tivesse sido a promessa registrada;{89} resta, portanto, esperar a
interpre-
tação que se dará ao art. 48 do CDC.
Da mesma maneira os escritos particulares, por exemplo, peque-
nas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC),
passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A medida
amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre
consumidor e fornecedor.
Quanto aos recibos, já valiam, segundo a égide do direito
tradicional, como meio normal de quitação, uma vez que o art. 1.093
do Código Civil dispunha que a quitação valerá, qualquer que seja a
* (88) Nesse sentido a lição do Min. Fontes de Alencar (REsp.
2.972-0-GO, 4.ª
T., STF, j. 23.3.93), o qual identifica um pré-contrato de incorporação
imobiliária (não registrado) com base no art. 48 do CDC, afirmando: "O
espírito da lei é no sentido de que essas declarações, ou esses pré-
contratos,
vinculam aquele que assume o compromisso". (In LEX-STF, 53/106).
(89) Veja decisão do REsp. 1.480/SP, 21.11.89, in RT 658/197. (p.
320)
sua forma desde que cumpra os requisitos do art. 940 (designação do
valor e da espécie de dívida quitada, do nome do devedor ou de quem
por este pagou, do tempo e do lugar do pagamento, com a assinatura
do credor ou de seu representante).
A norma do CDC inova ao dispor que as eventuais declarações
de vontade presentes nos recibos vinculam o fornecedor. O recibo,
enquanto quitação já fazia prova do pagamento, agora se refere o CDC
ao hábito, mais ou menos comum, de aproveitar o verso do recibo para
fazer declarações e imprimir condições gerais.
Quer nos parecer uma norma que deve ser bem interpretada ou
nem sempre virá ao encontro dos interesses tutelados pelo CDC,
interesses dos consumidores, tendo em vista, principalmente o hábito
dos fornecedores de aproveitarem o verso dos recibos para imprimir
algumas cláusulas limitativas de direitos contratuais do consumidor.
Nesse sentido, mister esclarecer que a norma refere-se somente à
vinculação do fornecedor às declarações prestadas, não menciona a
eventual vinculação do consumidor com relação a estas CONDGs
impressas no recibo. Isto porque, no sistema de informação montado
pelo CDC, o consumidor deve ter oportunidade de conhecimento prévio
do conteúdo do contrato. Se as condições gerais são entregues ao
consumidor, após o fechamento do contrato, no verso do recibo, só
podem ser consideradas incluídas no contrato, se o consumidor teve
oportunidade de conhecê-las de maneira prévia. É o novo direito de
informação que trataremos a seguir.
Ao lado desta proteção formal (da declaração de vontade do
consumidor), o sistema do CDC assegura uma proteção quanto ao
conteúdo destas cláusulas limitativas de direitos. No sistema do CDC,
estas cláusulas, se abusivas (art. 51) podem ser declaradas nulas pelo
Judiciário, Mesmo assim, melhor andaria o legislador brasileiro se
tivesse previsto normas específicas no CDC sobre a inclusão de
Cláusulas extras ou condições gerais no contrato, razão porque anali-
saremos o problema em seção separada. Vejamos.

d) Cláusulas contratuais gerais - No caso específico das condi-


ções gerais dos contratos, o CDC brasileiro não possui norma especial
para discipliná-las, especialmente para reger o grave problema dos
requisitos para a sua inclusão nos contratos de consumo. A falta de
Previsão legal explica-se em face da existência do § 3º do art. 51, que
(p. 321)
previa um controle abstrato e prévio de todas as condições gerais ou
cláusulas gerais a serem oferecidas no mercado. Este controle seria
exercido pelo Ministério Público e evitaria abusos.
Ocorre que o § 3.º do art. 51 foi vetado pelo Presidente da
República. Sendo assim, resta apenas sobre o assunto a regra muito
ampla do art. 30, a qual inclui as condições gerais na oferta do
comerciante, o que pode vir a prejudicar os consumidores. Em
princípio, pois, as condições gerais dos contratos, mesmo que somente
afixadas em lugar visível nos estabelecimentos comerciais vão fazer
parte da oferta. Assim, o consumidor aceitando a oferta, aceitará
também as suas condições gerais, as quais passam a integrar o contrato
de consumo.
Como, no caso das condições gerais dos contratos, o consumidor
brasileiro vai aceitá-las, inseridas na oferta, sem se dar conta dos
riscos
a que está se expondo, é necessário recorrer ao novo e amplo direito
de informação instituído no CDC, o qual não diz respeito somente as
informações sobre os produtos e sobre as garantias oferecidas, mas o
qual inclui igualmente o direito de tomar conhecimento prévio do
conteúdo do contrato (art. 46). Observamos, na experiência do direito
comparado, que estas cláusulas impressas nos versos dos recibos são
consideradas não integrantes do contrato, mesmo porque de regra o
consumidor as recebe após a conclusão do contrato.{90}
No sistema do CDC brasileiro, em caso de abuso deste método,
sem informação para o consumidor das obrigações que está assumindo,
dos direitos que está renunciando, será possível ao consumidor
desvincular-se das condições gerais impostas, desvinculando-se do
contrato como um todo, através do art. 46, que estudaremos a seguir.
Outra possibilidade é manter o vínculo contratual e a inclusão das
condições gerais, restando aos consumidores o recurso ao controle a
posteriori dessas cláusulas pelo judiciário.
Mesmo assim, melhor teria andado o legislador brasileiro, se
tivesse previsto normas especiais sobre a inclusão das "condições
gerais dos contratos", pois com uma regra específica poderia o sistema
do CDC permitir que se mantivesse o contrato, o vínculo, a obrigaçãO
principal, e somente se afastasse a lista de cláusulas impressas no
recibo, isto é, negar a inclusão das CONDGs como conteúdo contratual.
* (90) Veja capítulo 1, título 2, n. 2.3. (p. 322)
No sistema atual do CDC ou todo o contrato não vincula (art. 46),
ou somente uma cláusula é declarada nula (art. 51), faltando a solução
intermediária observada no direito comparado, a qual, no Brasil, só
poderá ser alcançada por um esforço de interpretação sistemática
da jurisprudência, baseado mais no Princípio da Transparência das
relações de consumo do que no texto legal instituído pelo CDC.

e) Sanção - A nova noção de oferta, instituída pelo art. 30 do


CDC, terá importantes reflexos na prática. Como oferta, as informações
e a publicidade, mandada veicular pelo fornecedor, já vinculam o
comerciante e o obrigam a manter, por lapso razoável de tempo em
termos da oferta. Desta maneira, se a oferta é genérica (por exemplo
feita em campanha publicitária regional ou mesmo nacional), deve
passar a especificar sua amplitude e os seus limites (estoque, prazo de
validade, etc.), pois não será possível ao fornecedor discriminar entre
os consumidores. O sistema do CDC não apóia a recusa em contratar,
se o consumidor preenche as condições exigidas.{91}
No sistema do CDC, a sanção pelo descumprimento da oferta
encontra-se positivada no art. 35, que escapou aos vetos do Presidente
da República, e traz o seguinte grave enunciado:
"Art. 35. Se o fornecedor de produtos e serviços recusar cumpri-
mento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá,
alternativamente e à sua livre escolha:
"I - exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da
oferta, apresentação ou publicidade;
"II - aceitar outro produto ou prestação equivalente;
"III - rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia
e eventualmente antecipada, monetariamente atualizada e perdas e
danos".
Para alguns, através deste dispositivo, o fornecedor fica como
que,
praticamente, obrigado a Contratar, a cumprir a sua oferta feita a um
público indeterminado (veja também o art. 39, inciso II do CDC). O
art. 35 é bem claro ao especificar que, se o empresário recusar dar
Cumprimento à sua oferta, o consumidor poderá exigir o cumprimento
forçado da obrigação. Nota-se aqui que o CDC pressupõe o fechamento
* (91) Veja detalhes em Lobo, p. 97, sobre os limites à liberdade
de conclusão dos
Contratos. (p. 323)
do contrato, em virtude da simples manifestação do consumidor
aceitando a oferta.{92}
Na segunda hipótese, igualmente, assegura o CDC o direito do
consumidor alcançar a prestação contratual, se não do produto que
escolheu e sobre o qual concluiu o contrato, então a prestação de outro
produto equivalente, se isto interessar ao consumidor.
No terceiro inciso do art. 35 fica ainda mais clara a
suposição, no
sistema do CDC, da conclusão do contrato entre fornecedor-ofertante
e consumidor. Este inciso terceiro refere-se ao direito de "rescindir o
contrato". Logo, se a rescisão tiver por motivo a recusa do fornecedor
de dar cumprimento à sua oferta, oferta esta que representa agora o
conteúdo do contrato firmado, o CDC assegura ao consumidor o direito
de ver ressarcidas as suas eventuais perdas (restituição da quantia paga,
monetariamente atualizada, qualquer outro dano emergente e lucros
cessantes).
Só resta, portanto, ao fornecedor brasileiro limitar a sua oferta
ao
estoque, ao que ele pode efetivamente cumprir, ao preço que pretende,
cuidando para veicular somente informações corretas e que possa
adimplir.{93}
Igualmente, a informação falsa ou insuficiente será considerada
pelo art. 18 do CDC como um vício do produto, ficando o fornecedor
obrigado a sanar o vício em 30 dias, cumprindo o que prometeu e
informou, ou poderá o consumidor exigir, à sua escolha: a substituição,
a complementação do bem, a restituição da quantia paga, ou ainda o
abatimento proporcional do preço.

1.2 Dever de informar sobre o produto ou serviço (art. 31)

Como frisamos anteriormente, transparência é maior clareza, é


veracidade e respeito, através de maior troca de informações entre o
fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual.
* (92) Nesse sentido decisão do Juiz Carlos Eduardo Fonseca
Passos, 21.ª Vara
Cível, RJ, reproduzida in Direito do Consumidor, 4/256 e ss.
(93) No caso da publicidade o direito à informação assegurado
pelo CDC inclui
a possibilidade de requerer sanções administrativas para a publicidade
enganosa ou abusiva (art. 37) entre as quais a contrapropaganda (art. 60)
e a obrigação do fornecedor de manter em seu poder os dados que dão
sustentação à mensagem (art. 36, parágrafo único), como veremos a seguir.
(p. 324)
Como segundo reflexo do Princípio da Transparência temos o
novo dever de informar,{94} imposto ao fornecedor pelo CDC. Este dever
de informar concentra-se, inicialmente, nas informações sobre as
características do produto ou do serviço oferecido no mercado.
O dever de informar foi sendo desenvolvido na teoria contratual
através da doutrina alemã do Nebenpflicht, isto é, da existência de
deveres acessórios, deveres secundários ao da prestação contratual
principal, deveres instrumentais ao bom desempenho da obrigação,
deveres oriundos do princípio da boa-fé na relação contratual, deveres
chamados anexos.{95} O dever de informar passa a representar, no sistema
do CDC, um verdadeiro dever essencial, dever básico (art. 6.º, inciso
III) para a harmonia e transparência das relações de consumo, o dever
de informar passa a ser natural na atividade de fomento ao consumo,
na atividade de toda a cadeia de fornecedores, é verdadeiro ônus
atribuído aos fornecedores, parceiros contratuais ou não do consumidor.
No Sistema do CDC, o instrumento usado para informar o consu-
midor sobre determinadas características ou qualidades do bem pode ser
tanto a embalagem e apresentação do produto, como aqueles que hoje
fazem parte da oferta, os impressos e mesmo a publicidade, veiculada
pelo fornecedor-comerciante ou pelo fabricante do produto. É mais uma
inovação do CDC, que passa a considerar vinculativas para o fornecedor
uma série de informações que, no sistema tradicional, não passavam de
meios de promoção de vendas oo, no máximo, um convite à oferta.
A novidade mereceu uma análise mais apurada com o fim de
delimitar a amplitude do novo dever de informar sobre o produto e
serviço e as conseqüências contratuais, ou extracontratuais, que advirão
do descumprimento deste dever.

a) Amplitude do dever de informar do art. 31 - Enquanto tratado


Como simples dever secundário pela doutrina contratual, o dever de
indicação e esclarecimento{96} tinha sua origem somente no princípio
* (94) Sobre o dever de informar veja Vera M. J. de Fradera, "O
dever de informar",
in RT 656/53 a p. 63, assim como Carlos Ferreira de Almeida, "Negócio
Jurídico de Consumo", in Boletim do Ministério da Justiça 347 (1985), p.
22 e o clássico Malinvaud, p. 53.
(95) No Brasil, veja detalhes na obra de Couto e Silva,
Obrigação, pp. 111 a 121.
(96) A expressão é de Couto e Silva, p. 112, grande defensor no
Brasil dos
reflexos do princípio da boa-fé nas obrigações, em sua visão da obrigação
Como processo de colaboração. (p. 325)
jurisprudencial de boa-fé e só atingia determinadas circunstâncias
consideradas pelo Judiciário como relevantes contratualmente. Era um
dever de cooperação entre contratantes, portanto, restrito pelos interes-
ses individuais (e comerciais) de cada um. No sistema do CDC este
dever assume proporções de dever básico, verdadeiro ônus imposto aos
fornecedores, obrigação agora legal, cabendo ao art. 31 do CDC
determinar quais os aspectos relevantes a serem obrigatoriamente
informados.
O art. 31 do CDC ao regular o dever de informar o consumidor,
dispõe o seguinte:
"Art. 31. A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem
assegurar informações corretas, claras e precisas, ostensivas e em
língua portuguesa, preço, garantia, prazos de validade e origem do
produto, bem como informar sobre os riscos que o produto apresenta
à saúde e à segurança do consumidor".
Inicialmente devemos constatar que o art. 31 inclui no dever de
informar, instituído pelo CDC, as informações constantes da embala-
gem do produto. Em 1976, Konder Comparato{97} já destacava a
importância destas informações para possibilitar que o consumidor
compare o produto com outros de outras marcas, verificando qual deles
preenche as condições que deseja. No Brasil, a disciplina legal das
embalagens e rotulagens estava restrita aos produtos alimentícios e
farmacêuticos. O Código de Defesa do Consumidor revigora essa
obrigação do fornecedor e inclui a recusa em dar cumprimento ao que
prometia na apresentação ou embalagem na regra do art. 35, para
benefício do consumidor brasileiro. Note-se, por fim, que o CDC
parece não incluir, em princípio, a apresentação do produto (embala-
gem) na nova noção de oferta do art. 30, pois, tanto no art. 31, como
no art. 35, repete as duas expressões. Esta conclusão não nos parece
a melhor frente ao espírito tutelar do Código, mas como a apresentação
está mencionada expressamente no art. 35, mesmo que alguns não a
considerem como parte da oferta, possuirá no sistema do CDC as
mesmas conseqüências, obrigando da mesma maneira o fornecedor, por
integrar o seu dever de informar.
Segundo o art. 31 do CDC o fornecedor deve cuidar para que sua
oferta, assim como a apresentação de seu produto, assegure ao
* (97) Comparato, p. 24. (p. 326)
consumidor informações claras, precisas e ostensivas sobre as carac-
terísticas principais do produto. O rol de características destacado pelo
art. 31 é meramente exemplificativo, preocupando-se com as caracte-
rísticas físicas do produto (quantidade, qualidade, composição), com a
sua repercussão econômica (preço e garantia), com a saúde do consu-
midor (prazo de validade e origem do produto) e com a segurança do
consumidor (informação sobre os riscos que podem advir do produto).
No caso de produtos perigosos ou que possam trazer algum risco
à saúde e à segurança do consumidor, o dever geral de informar
sobre as características do produto, instituído pelo art. 31, é
complementado pelo dever de informar ostensiva e adequadamente
a respeito da nocividade ou periculosidade do produto, como dispõe
o art. 9º do CDC.
O art. 10 do CDC impõe também ao fornecedor um típico dever
de vigilância,{98} qual seja, o dever do fornecedor do produto, cuja
periculosidade foi afora descoberta, de informar à população e às
autoridades competentes.
Todas as informações impostas pelo art. 31 devem ser fornecidas
em língua portuguesa, mesmo que o produto seja importado de outros
países. Tal regra é de ordem pública e pode obter considerável
importância, se a economia brasileira realmente integrar-se às econo-
mias da Argentina, Uruguai e Paraguai, no que está sendo chamado de
"Mercosul". Mesmo que não se forme um mercado comum, como
desejam os políticos, a realização de uma "zona de comércio livre", ou
mesmo a simples abertura do mercado brasileiro às importações deverá
seguir o disposto no art. 31, para proteção do consumidor brasileiro.
Quanto às expressões estrangeiras utilizadas para descrever algu-
ma qualidade do produto ou mesmo a sua espécie (por exemplo:
compact disc, spray, apart hotel, flat) não estão proibidas pelo CDC,
simplesmente deve a embalagem ou a oferta esclarecer igualmente em
língua portuguesa do que se trata, isto caso a expressão estrangeira já
não estiver incorporada a nossa língua.

b) A publicidade como meio de informação - Com a entrada em


Vigor do CDC vários aspectos da publicidade comercial passaram a ser
juridicamente importantes. Verificamos anteriormente que a publicida-
* (98) Veja sobre a teoria dos deveres anexos, Couto e Silva,
Obrigação, p. 113. (p. 327)
de possui, na sociedade de massas, uma dupla função: informa e
estimula o consumo de bens e serviços.
No momento queremos analisar a publicidade, enquanto meio de
informação do consumidor, uma vez que os seus aspectos de "incita-
ção" ao contrato, a consumo, já foram analisados anteriormente no
título 1.1, letra "a", Publicidade como oferta.
O Princípio da Transparência, instituído pelo CDC para a fase
pré-contratual, terá reflexos claros na publicidade, pois esta, enquanto
informação ao consumidor, deverá também respeitar os novos parâmetros
de veracidade.{99}
A jurisprudência brasileira mostrou grande sensibilidade ao tema
e tem decidido pelo cumprimento (forçado) da oferta conforme o
veiculado{100} e pela "garantia" da informação prestada, quando pos-
sível.{101}
A mensagem publicitária tem, porém, características próprias
(exigüidade do tempo, incitação à fantasia, apelo visual etc.) que
deverão ser levados em conta. Mas hoje ninguém duvida da forte
influência que a publicidade exerce sobre a população e sobre sua
conduta na sociedade de consumo. Nesse sentido, o CDC regula a
publicidade, enquanto meio de informação ao consumidor, para lhe
vincular alguns efeitos nos arts. 30, 31, 35, 36, 37 e 38.
Koendgen{102} destaca a publicidade como promessa negocial de
qualidade do produto (geschäftliches Qualitätsverprechen). Como in-
* (99) Segundo o comentador Benjamin-Forense, p. 183, o CDC
institui mesmo
um princípio da veracidade da publicidade, ao proibir a publicidade
enganosa (veja nosso comentário no título 2.1 a seguir).
(100) Assim a decisão do TJSP, em caso envolvendo publicidade de
um aparelho
de som, o qual aparecia completo na publicidade, mas cujo preço de venda
referia-se apenas a uma das peças, segundo alegava o fornecedor; a
decisão
confirmou a importância da publicidade como informação afirmando na
ementa: "Propaganda enganosa - A propaganda tem como objetivo chamar
a atenção do comprador, lhes mostrando as vantagens de comprar o produto.
Sendo assim ela deve apresentar as condições reais do produto, para não
lesar o consumidor" (TJSP - 4.ª Câm. Civ., Ap. 142.976.1/3-SP, rel. DeS.
Alves Braga, j. 17.10.91, v. u.).
(101) Veja interessante argumentação do Juiz Federal Sérgio
Lazzarini, reproduzida
in Direito do Consumidor, 10/277 e ss.
(102) Koendgen, pp. 295 e ss. (p. 328)
formação sobre a qualidade do produto,{103} poderia ser considerada
como hipótese equivalente a uma "qualidade assegurada", logo contra-
tualmente vinculativa. Segundo este autor, a informação veiculada cria
uma expectativa de qualidade, que será decisiva para estimular o
consumidor a concluir o contrato. Seria, assim, um problema contratual,
criando para o fornecedor-contratante a obrigação de fornecer o
produto OU O Serviço com as qualidades asseguradas através da
publicidade, sob pena de recair em inadimplemento contratual.
Mas, na prática, como o contrato entre consumidor e o anunciante
nem sempre acontece e como a publicidade afeta um número indistinto
de pessoas, conclui este autor alemão que a publicidade pode ser tratada
juridicamente com um quasi-contrato.{104} Podemos, igualmente, imagi-
nar seus reflexos como espécie de promessa unilateral de qualidade.
Efetivamente, na nova concepção social de contrato, a lei deve
proteger as expectativas legítimas dos consumidores criadas pela
atividade do fornecedor, protegendo àqueles que confiaram na infor-
mação veiculada. É o que ocorrerá no sistema do CDC. Aqui também
os limites entre a responsabilidade contratual e extracontratual oriunda
da veiculação de informações através de publicidade serão tênues.{105}
A eventual promessa de qualidade do produto ou do serviço,
veiculada através de mensagem publicitária, se não cumprida pelo
fornecedor, pode dar origem à reclamação do consumidor com base no
art. 35, que menciona expressamente a recusa à: "oferta, apresentação
ou publicidade".{106}
* (103) Problema que tratamos anteriormente quando nos referimos à
publicidade
veiculada pelo fabricante e sua inclusão no contrato (tít. 1.1).
(104) Assim conclui Koendgen, em sua tese de Habilitação em
Tübingen, p. 298.
(105) Veja excelente exposição sobre a impossibilidade de manter
a rigidez de
tais diferenciações no direito do consumo, em Benjamin/Comentáríos, p.
84, sobre vícios.
(106) O doutrinador italiano Di Majo, p. 114 e ss., tenta
construir uma diferença
entre as duas figuras baseadas na "forma de aceitação", i. é., a oferta
tendendo a uma aceitação (manifestação de vontade) e a promessa tendendo
a um "fazer", um atuar que conseguirá o resultado almejado e constituirá
a base para o cumprimento da promessa. Parece-nos, porém, que as duas
figuras aproximam-se, quanto mais na sociedade moderna, pela sua natu-
reza de declarações de vontade, de negócios jurídicos unilaterais, sendo
certo que a publicidade e a oferta publicitária almeja também um
"Erfolg", (p. 329)
Inicialmente, analisamos o art. 35 em seus aspectos contratuais
(1.1), no caso, se a publicidade for veiculada pelo fornecedor-direto.
Mas, a inclusão dos termos "apresentação" e "publicidade", ao lado do
termo que já englobaria o efeito contratual da publicidade, isto é,
enquanto oferta, poderia ser interpretado como criando uma obrigação
legal, unilateral, e fazer, de cumprir o prometido a toda uma massa de
consumidores.
O art. 35 do CDC efetivamente dispõe: "o consumidor poderá,
alternativamente, e à sua livre escolha: I - exigir o cumprimento
forçado da obrigação, nos termos da ... (oferta, apresentação ou)
publicidade". Uma interpretação semelhante, se aceita pela jurispru-
dência, possibilitaria que ações coletivas viessem a exigir o cumpri-
mento do prometido na publicidade, resolvendo-se em perdas e danos
pelo art. 84, no caso de impossibilidade prática de obter resultado. A
utilização do art. 35 em ações coletivas (não necessariamente de origem
contratual), visando o cumprimento da promessa feita através da
publicidade, teria efeitos verdadeiramente saneadores do mercado,
evitando publicidades falsas, pois o consumidor, ou sua entidade de
defesa, não necessitaria recorrer a norma do art. 37, sobre publicidade
enganosa, cuja sanção foi vetada pelo Presidente da República (§ 4.º
do art. 37 do CDC).
A informação falsa caracterizaria tanto um ato ilícito (art. 37),
quanto uma promessa unilateral, uma obrigação de fazer exigível
legalmente (art. 35). Resta esperar a ação da jurisprudência brasileira
em optar por esta interpretação sistemática do CDC, que teria efeitos
realmente saneadores.
Indiscutível, porém, é o fato da publicidade poder dar origem a
um vício de informação, nos termos do art. 18, que será analisado a
seguir (letra c), e pode ser considerada parte da oferta, ensejando a
aplicação do art. 35 e todo o Sistema para a inexecução contratual.
Quanto ao princípio geral de veracidade das informações veicu-
ladas através da publicidade, cabe destacar o que dispõem as normas
do art. 38 e o parágrafo único do art. 36:
"Art. 36...
"Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos
ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos
*como afirmam os alemães, isto é, um resultado especial, que é justamente
o consumir (resultado). (p. 330)
interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustenta-
ção à mensagem.
"Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação
ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina".
Ambas as disposições encontram-se na seção III, dedicada à
publicidade, no capítulo das práticas comerciais, e reforçam a noção
de dever de veracidade da publicidade, enquanto informação do
consumidor, exista ou não vínculo contratual entre o fornecedor do
produto ou do serviço e o consumidor que recebeu a informação
publicitária.{107}
A doutrina estrangeira destaca a responsabilidade que deve haver
na mensagem publicitária sobre produtos, que podem trazer algum tipo
de risco à saúde do consumidor.{108} Também a publicidade chamada
"comparativa" de produtos ou serviços deve assegurar informações
verídicas, se possível baseada em pesquisas executada por terceiros,
isentas e corretas.
A propaganda comparativa foi considerada pela jurisprudência de
alguns países como prática de concorrência desleal, tratando-se de
comparação de preço ou de qualidade, mas a doutrina considera a
propaganda comparativa baseada em dados corretos, como positiva
para o consumidor.{109} A Corte Suprema Alemã (BGH), em decisão de
1986, considerou que a publicidade comparativa só é ilícita quando
tenta tirar proveito da reputação do outro produto (chamada publicidade
parasitária) ou quando se refere ao produto concorrente de maneira a
denegri-lo (publicidade "dénigrante").{110}
A jurisprudência brasileira tem enfrentado vários casos de publi-
cidade comparativa, onde exatamente a tentativa de denegrir o concor-
rente tem sido apontada como fonte do caráter abusivo, ao deturpar a
* (107) Concorda com esta posição Benjamin-Forense, p. 183, para o
qual há no
sistema do CDC um princípio de veracidade da publicidade e de inversão
do ônus da prova, em se tratando de publicidade.
(108) Assim Schumacher, p. 25, comentando o § 5.º da lei
austríaca de 1983 sobre
práticas comerciais.
(109) Assim ensinam Fontaine, 218 e Schumacher, pp. 25 e 26.
(110) BGH-, 22 de maio de 1986, Pepsi-Cola v. Coca-Cola, in Revue
Européenne
de Droit de la Consommation, 212, 1987. (p. 331)
informação ao consumidor.{111} Por fim, é necessário frisar que o
princípio da transparência obriga que a publicidade seja claramente
identificada como tal, como já sugeria o art. 9.º, do Código de Auto-
regulamentação Publicitária. Nesse sentido, positiva o CDC, no caput
do art. 36:
"Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o
consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal".
A idéia básica do art. 36 é proteger o consumidor, assegurando-
lhe o direito de saber que aqueles dados e informações transmitidos não
o são gratuitamente e, sim, têm uma finalidade específica que é
promover a venda de um produto ou a utilização de um serviço.
O princípio da identificação obrigatória da mensagem como
publicitária é comum no direito comparado,{112} e tem como fim tornar
consciente ao consumidor - comprador potencial - que ele é o
destinatário de uma mensagem publicitária, patrocinada por um forne-
cedor com o intuito de promover a compra de seu produto.
Este princípio serve, de um lado, para proibir a chamada publi-
cidade subliminar, a qual atingiria somente o inconsciente do indivíduo
e que, por seu grande perigoso potencial de sugestão, está proibida no
mundo desde os anos setenta; de outro lado, o princípio afeta também
a prática de merchandising.
Pela técnica do merchandising, hoje comum em novelas de
televisão, nos filmes e mesmo nas peças teatrais, um produto aparece
na tela e é utilizado ou consumido pelos atores em meio a ação teatral,
de forma a sugerir ao consumidor uma identificação do produto com
aquele personagem, história, classe social ou determinada conduta
social. O aparecimento do produto não é gratuito, nem fortuito, ao
contrário existe um vínculo contratual entre o fornecedor e o respon-
sável pelo evento cultural, sendo que o fornecedor oferece uma
contraprestação pelo espaço de divulgação para o seu produto.
Parece-nos que a norma do art. 36 do CDC não deve ser
interpretada de forma a proibir a utilização do merchandising no Brasil.
* (111) Veja o caso do "Banho Quente Jacto", que denominava o
outro chuveirO de
"pinga-pinga", in TJRS, Ap. Civ. 59105160, j. 22.8.91, e também o caso
das desentupidoras, TJRS, Ap. Civ. 591048079.
(112) Veja Schumacher, p. 24. (p. 332)
A solução estaria, como sugeriu Antônio Herman Benjamin,{113} em
esclarecer o consumidor-espectador, no início do espetáculo, nos
créditos de apresentação do filme ou da novela que os produtos não
aparecerão por simples acaso, mas que se trata de uma forma de
mensagem publicitária, se possível até citando as marcas dos produtos,
o que seria uma "dupla publicidade".

c) Sanção: As regras sobre o vício do produto - Para assegurar


o cumprimento do novo dever de informação sobre as qualidades e
características do produto, o sistema do CDC inclui a falta ou falha na
informação como vício do produto ou serviço, dispondo no art. 18:
"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou
não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de..., assim como
por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes
do recipiente, da embalagem, da rotulagem ou mensagem publicitá-
ria..."
Regra semelhante, quanto aos serviços, está presente no art. 20
do CDC, que inova o sistema brasileiro, ao introduzir uma noção de
vício do serviço semelhante àquela do vício da coisa, ou vício
redibitório, segundo a definição do art. 1.101 do Código Civil de 1917.
Quanto ao novo regime legal dos vícios segundo o CDC, algumas
observações são necessárias. O Código disciplina nos arts. 18 e ss. os
chamados vícios por inadequação,{114} os antigos vícios redibitórios do
Código Civil, que agora ganham nova amplitude e redobrada impor-
tância para assegurar o cumprimento das regras de proteção ao
Consumidor.
Os vícios por inadequação exigem a existência de um vínculo
contratual original entre o consumidor e o seu fornecedor-direto,{115}
portanto, intecxram a proteção contratual do consumidor, interessando
ao nosso estudo, mesmo que o art. 18 imponha uma responsabilidade
Solidária para todos os fornecedores da cadeia de produção.
* (113) Este autor manifestou dúvidas sobre a compatibilização do
merchandising
com o sistema do CDC, mas sugeriu como solução possível a "veiculação
antecipada de uma informação comunicando que naquele programa ocor-
rerá um merchandising", veja Benjamin, Forense, pp. 182 e 183.
(114) A expressão é de Benjamin/comentários, p. 84.
(115) Assim concorda também Benjamin/Comentários, p. 83. (p. 333)
O regime legal dos vícios por inadequação concentra-se na relação
econômica equilibrada entre o objeto do contrato e a contraprestação
feita pelo consumidor. Nesse sentido, assegura o art. 18 que o
consumidor terá direito, alternativamente, ao conserto do bem, à
substituição do produto, ao abatimento do preço, ou mesmo à rescisão
do contrato, com restituição da quantia paga.{116}
Mister, portanto, diferenciar a disciplina do vício por
inadequação
do novo regime da responsabilidade civil pelo fato do produto ou
serviço, que está regulado nos arts. 12 e ss. do CDC e pode ser chamado
de regime dos vícios por insegurança. Este último é um regime
extracontratual com fundamento na responsabilidade objetiva, visando
reparar aos danos extracontratuais ou à saúde sofridos pelo consumidor,
enquanto nos vícios por inadequação a responsabilidade, no que se
refere a reparação,{117} concentra-se no objeto da relação contratual
(produto ou serviço).
Quanto ao vício de informação, inclui este tanto as informações
fornecidas pela embalagem quanto as veiculadas em mensagem publi-
citária. Presume-se que o consumidor exigirá, na maioria dos casos, a
rescisão contratual, pois a informação falha levou-o a adquirir um
produto sem as qualidades ou características que necessitava ou
desejava, mas não é impossível que prefira o abatimento do preço, ou
a troca por um produto com embalagem já adaptada às normas do CDC.
Quanto à falha na informação sobre produtos perigosos ou
nocivos, pode ela ensejar a combinação dos dois regimes de respon-
sabilidade. O consumidor pode exigir qualquer das hipóteses do art. 18,
em relação ao produto adquirido, e, caso tenha sofrido alguma espécie
de dano (mesmo moral) em virtude do defeito de informação, poderá
pedir o ressarcimento com base no regime extracontratual do art. 12
e seg. do CDC.
Por fim, cabe mencionar que, se o novo regime dos vícios por
inadequação pode ser considerado um meio eficaz de pressão, ou como
* (116) Trataremos do novo regime legal dos vícios por inadequação
mais
detalhadamente no Capítulo IV, títulos 2.1 e 2.2.
(117) Quanto à origem da responsabilidade por vício de
inadequação pode ser ela
procurada no dever de qualidade, segundo a Teoria da Qualidade, exposta
por Benjamin/Comentários, pp. 82 e 84; é o princípio da proteção da
confiança (das expectativas legítimas) do consumidor, que analisaremos no
Capítulo IV, 2.1. (p. 334)
denominamos aqui "sanção", para evitar o descumprimento do dever
legal de informar ao consumidor sobre as características dos produtos,
é ele complementado pelas normas dos artigos 24 e 25, referente a
obrigatória garantia legal da adequação do produto e do serviço.

1.3 Dever de oportunizar a informação sobre o conteúdo do contrato


(art. 46)

O CDC é claro ao dispor:


"Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não
obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de
tomar conhecimento prévio de seu conteúdo..."
Artigo de nítida inspiração no Código Civil Italiano de 1942, o
art. 46 introduz no Brasil o dever de informar sobre o conteúdo do
contrato a ser assinado. A melhor expressão é "dever de oportunizar"
o conhecimento sobre o conteúdo do contrato, mas, por uma questão
sistemática, chamaremos aqui também de dever de informar, o que em
última análise não deixa de ser o dever instituído pelo art. 46.
O art. 46 do CDC surpreende pelo alcance de sua disposição,
Assim, se o fornecedor descumprir este seu novo dever de "dar
oportunidade" ao consumidor "de tomar conhecimento" do conteúdo
do contrato, sua sanção será ver desconsiderada a manifestação de
vontade do consumidor, a aceitação, mesmo que o contrato já esteja
assinado e o consenso formalizado. Em outras palavras, o contrato não
tem seu efeito mínimo, seu efeito principal e nuclear que é obrigar,
vincular as partes. Se não vincula, não há contrato, o contrato de
consumo como que não existe, é mais do que ineficaz, é como que
inexistente, por força do art. 46, enquanto a oferta, por força do art.
30, continua a obrigar o fornecedor!
Mais uma vez o CDC tem forte finalidade educativa, pois a ratio
do art. 46 é evitar que o consumidor, vítima de práticas de vendas
agressivas, seja levado a não tomar ciência das obrigações que está
assumindo através daquele contrato. É o caso do consumidor que assina
proposta de plano de saúde, de contrato de seguro, sob as promessas
do vendedor, que receberá após, em casa pelo Correio, o texto do
Contrato, ou o carnet de pagamento com o valor da prestação atual. É
O caso do consumidor que estaciona o carro em garagem, ou que deixa
roupas na lavanderia e quando retorna e paga o serviço, recebe no verso
(p. 335)
do recibo, a lista de cláusulas que regulava a relação contratual,
incluindo uma de não responsabilização pelos eventuais danos aos seus
bens.
Podemos pensar se o art. 46, a desconstituição do contrato, não
é uma arma forte demais. No primeiro caso relatado, o art. 46 permite
ao consumidor, quando toma conhecimento do conteúdo do contrato,
mesmo após ter a ele se vinculado por meio de assinatura anterior,
livrar-se do vínculo, procurando outro fornecedor para contratar que
ofereça melhores condições contratuais. No segundo grupo de casos,
o vínculo contratual representa, ao contrário, a segurança do consumi-
dor, e a melhor solução para ele é considerar não incluída a lista de
cláusulas em seu contrato específico ou anular as cláusulas unilaterais
e abusivas (arts. 30 e 51 do CDC).

a) Amplitude do dever de informar do art. 46, 1.º - O art. 46


terá
maior utilização nos chamados contratos de massa, onde a manifesta-
ção de vontade do consumidor na maioria das vezes se dá sem que este
tenha conhecimento exato das obrigações contratuais que está assumin-
do. Nesse sentido a norma brasileira pode ter se inspirado no art. 1.341
do Código Civil Italiano, o qual prevê a ineficácia das cláusulas
contratuais gerais, se o consumidor não foi informado de seu conteúdo
no momento da conclusão do contrato. Este dever de informar, de modo
a conseguir a inclusão válida das normas no contrato, pode ter inspirado
o legislador brasileiro. Em caso de cláusulas limitativas dos direitos do
consumidor ou de qualquer maneira prejudiciais a ele, o art. 1.341 do
Códice Civile prevê a necessidade do consumidor assinar ao lado de
cada cláusula, para provar que tomou ciência da obrigação que está
assumindo.
Segundo doutrinadores italianos, a norma do art. 1.341 não trouxe
muitas benesses para o consumidor, em virtude da dificuldade de prova
e do fato do consumidor assinar as cláusulas sem lê-las efetivamente,
mas tornando-as através de sua assinatura, na prática, imutáveis. No
Brasil, esta crítica fica esvaziada, pois, no sistema do CDC, estas
cláusulas limitativas poderiam ser declaradas nulas pelo art. 51, se
abusivas e, portanto, não onerariam o consumidor.
A comparação, porém, deixa clara uma das falhas do sistema do
CDC, que é a falta de previsão normativa sobre as maneiras e os
requisitos para a inclusão das condições gerais dos contratos, ou (p.
336)
cláusulas Contratuais gerais nos contratos de consumo. A lei alemã de
1976, preocupou-se especialmente com o tema, no seu § 2.º, muito
usado pela jurisprudência.{118} Com o veto presidencial ao controle
preventivo das condições gerais dos contratos previsto inicialmente no
§ 3.º do art. 51 do CDC, ficamos apenas com a norma do art. 30,
comentada anteriormente, que incluirá na oferta estas listas de cláusu-
las. O fornecedor fica, porém, pelo art. 46 obrigado a assegurar que
o consumidor possa ter conhecimento do conteúdo das condições gerais
antes de assinar o contrato, ou porque encontram-se afixadas em lugar
visível no estabelecimento comercial, ou porque integram o texto do
contrato colocado à disposição do consumidor para ler.
Ressalte-se, por fim, que o intuito do art. 46 é trazer maior
transparência às relações contratuais de consumo na sua fase pré-
contratual, impor maior lealdade e boa-fé nas práticas comerciais, mas
não pode ser interpretado como obrigando o consumidor a ler o
contrato. Certo é que o fornecedor, para evitar o jugo do art. 46, pode
até oralmente destacar para o consumidor quais são as principais
obrigações que ele está assumindo, pode colocar cartazes em sua
garagem seu banco, nas máquinas que serão usadas pelo consu-
midor, contendo as cláusulas contratuais gerais ou algumas obrigações
especiais. Todas estas práticas são válidas, pois aumentam a transpa-
rência e o bom relacionamento entre consumidor e fornecedor, são
positivas, pois dão efetivamente oportunidade ao consumidor para
conhecer parte do conteúdo do contrato. O art. 46, em sua primeira
parte, dispõe apenas sobre uma possibilidade ou oportunidade de dar-
se ciência do conteúdo do contrato ao consumidor, a isso fica obrigado
o fornecedor; caberá ao consumidor a decisão de efetivamente ler ou
não, de tomar ciência ou não do texto do contrato. Certo é que a
insegurança causada pela existência de uma regra como a do art. 46,
primeira parte, modificará as práticas comerciais dos fornecedores,
nestas negociações preliminares com os consumidores brasileiros, de
nível cultural e econômico tão diferenciado.

b) Sanção - A sanção instituída pelo art. 46 do CDC para o


descumprimento deste novo dever de informar, de oportunizar o
conhecimento do conteúdo do contrato, encontra-se na própria norma
* (118) Veja sobre o tema a exposição no capítulo 1 sobre nova
realidade contratual-
condições gerais dos contratos 2.3. (p. 337)
do art. 46 o fato de tais contratos não obrigarem o consumidor.
"Contratos" não-obrigatórios não existem, logo é a inexistência do
vínculo contratual, como o entendemos.
Pelas próprias características da sanção do art. 46 podemos
concluir que será necessária a intervenção do Poder Judiciário, mesmo
que por meio do Juizado de Pequenas Causas, para tornar clara a
inexistência do vínculo contratual e, portanto, das obrigações que dele
resultariam.
Para concluir, cabe mencionar que a sanção mais grave instituída
pelo art. 46 é a insegurança que trouxe aos fornecedores, pois agora
mesmo estando o contrato formalizado e, em princípio, juridicamente
perfeito, pode vir a ser declarado inexistente em face de um defeito de
informação na fase pré-contratual!
Este art. 46 tem sido amplamente usado pela jurisprudência
brasileira, mesmo no Juizado Especial de Pequenas Causas.{119} Em
outras palavras, a possibilidade de conhecimento prévio do texto do
contrato e das obrigações nele contidas, em português, é considerada
condição essencial para a formação de uma vontade realmente livre,
consciente, "racional", única legitimadora do reconhecimento jurídico
do vínculo aceito pelo consumidor.{120} O objetivo da norma do CDC
é o de assegurar ao consumidor uma decisão fundada no conheci-
mento de todos os elementos do contrato, em particular do preço,
das taxas extras, das condições e as garantias exigidas, das cláusulas
limitativas e penais inseridas, dos verdadeiros direitos assegurados
* (119) Veja por todas a decisão da 1.ª Turma Recursal dos
Juizados/RS: "Time-
sharing. Tempo compartilhado. Nulidade das cláusulas abusivas. Valor da
causa e competência dos juizados/JEC: 1. O valor da causa, nesse tipo de
pedido, corresponde ao bem da vida reivindicado - no caso o valor das
prestações pagas e objeto do pedido de restituição. 2. Nulidade das
cláusulas
que colocam o consumidor em desvantagem exagerada (CDC 51, IV);
possibilidade de denúncia do contrato a qualquer tempo em razão do vício
de manifestação da vontade, captada em circunstâncias em que o descortino
crítico estava prejudicado pela atmosfera criada pela vendedora (CDC,46).
Recurso desprovido" (Recurso 01196885485, Proc. 01196611964 de Porto
Alegre, Rel. Juiz de Direito Wilson Carlos Rodycz).
(120) Com razão critica Amaral Jr. a expressão "obrigação"
contida no art. 46
do CDC, que seria melhor substituída pela expressão vínculo, Amaral Jr.,
p. 251. (p. 338)
pelo contrato.{121} É nesta ótica que o art. 46 do CDC prevê a
possibilidade de requerer ao juiz, em detrimento do fornecedor, a
liberação do consumidor do vínculo contratual, isto é, a inoperabilidade
do contrato ao consumidor in concreto por falha dos deveres de
informação impostos ao fornecedor.

1.4 Dever de redação clara dos contratos

O art. 46 do CDC, em sua segunda parte, dispõe:


"Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não
obrigarão os consumidores ou se os respectivos instrumentos forem
redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance".
Na norma do art. 46, 2.º, estipula o CDC um novo dever específico
do fornecedor, que, na sociedade de massa, é normalmente o elaborador
dos contratos oferecidos no mercado. A finalidade da norma é assegurar
a informação ao consumidor, ou, como estamos querendo frisar, a
transparência necessária nas relações de consumo.{122} Tenta, desta
maneira, evitar que o fornecedor utilize a sua superioridade econômica
e mesmo técnica{123} (Departamentos Jurídicos ou Consultorias
especializadas) para confundir o consumidor e impor a ele obrigações
que se tivesse compreendido o sentido do texto, não teria assumido.
Este dever de relação clara será ainda maior se o fornecedor
desejar utilizar-se de métodos de contratação de massa, como esclarece
o art. 54, § 3º do CDC.

a) Redação clara e precisa (art. 46) - A grande maioria dos


contratos hoje firmados no Brasil são redigidos unilateralmente pela
* (121) Veja neste sentido decisão comentada por Nunes, p. 82,
apud JACSP, Lex
70:150, cuja ementa é a seguinte: "Direito do consumidor. Compra e venda
de linha telefônica. Comprador surpreendido com preço final, depois de
pagar o sinal e firmar a promessa de cessão. Pretensão à restituição do
sinal
pago. Contrato. Equívoco quanto ao preço e condições de financiamento.
Incidência do CDC, Lei 8.078, de 1990, arts. 46 e 47. Contrato que não
obrigou. Oportunamente desfeito por notificação extrajudicial. Ação
proce-
dente. Decisão mantida" (j. 26.7.94, Des. Lobo Júnior).
(122) Conclusão semelhante está presente em Pasqualotto, p. 54
que prefere
referir-se ao tradicional princípio da boa-fé.
(123) Assim concorda Roppo, p. 316. (p. 339)
parte economicamente mais forte, seja um contrato aqui chamado de
paritário ou um contrato de adesão. Segundo instituiu o CDC, em seu
art. 46, in fine, este fornecedor tem um dever especial quando da
elaboração desses contratos, podendo vir a ser punido se descumprir
este dever tentando tirar vantagem da vulnerabilidade do consumidor.
Efetivamente, segundo dispõe o art. 46, os contratos não
obrigarão
os consumidores "se os respectivos instrumentos forem redigidos de
modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance". Este artigo
encontra-se na seção de Disposições Gerais do capítulo referente à
proteção contratual, logo refere-se tanto aos contratos de adesão e
àqueles
submetidos a condições gerais dos contratos quanto aos contratos
paritários.
O importante na interpretação da norma é identificar como será
apreciada "a dificuldade de compreensão" do instrumento contratual.
É notório que a terminologia jurídica apresenta dificuldades específicas
para os não-profissionais do ramo, de outro lado, a utilização de termos
atécnicos pode trazer ambigüidades e incertezas ao contrato. Possivel-
mente, os tribunais brasileiros interpretarão a norma em função do nível
de conhecimento jurídico do consumidor médio, isto é, do homem
atento, mas sem formação jurídica específica.
O art. 46, 2.º, do CDC indica através da utilização das
expressões
"sentido e alcance do contrato" o ponto mais sensível da futura análise
da transparência do instrumento contratual, isto é, a compreensão pelo
consumidor das obrigações que está assumindo, especialmente quanto
ao valor do pagamento, ao número de prestações, à espécie de correção
e acréscimo possível da dívida, ao tempo de duração do vínculo
contratual e o envolvimento em futuras contratações. Uma interpre-
tação sistemática da norma também chegaria a idêntica conclusão,
utilizando as normas do art. 51 e do art. 52 para verificar que pontos
do contrato foram considerados relevantes na proteção do consumidor.

b) Cuidados na utilização de contratos de adesão - Os contratos


de
consumo que utilizam-se de métodos de contratação em massa sempre
despertaram o especial interesse da doutrina e da jurisprudência
brasilei-
ra. O sistema do CDC destaca uma seção especial para a disciplina dos
contratos de adesão. O art. 54 do CDC define contrato de adesão como
aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competen-
te ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor, sem que o consumi-
dor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo, sendo (p.
140)
que, pelo § 1.º da norma, a inserção de cláusula individual no formulário
não desfigura a natureza de adesão do contrato.
Os fornecedores que os utilizarem deverão cuidar para que os
contratos sejam redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos
e legíveis de modo a facilitar a sua compreensão pelo consumidor (art.
54, § 3.º), sob pena de ser aplicado o art. 46, não obrigando o
consumidor o contrato firmado.
Seguindo o modelo do Código Civil Italiano de 1942 (art. 1.341),
o § 4.º do art. 54 do CDC prevê que as cláusulas que implicarem
limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque,
permitindo sua imediata e fácil compreensão.
Note-se que o mestre italiano Alpa{124} considera esta uma norma
inócua, pois, se a cláusula é ineqüitativa ou abusiva, mesmo estando
em destaque, com o método da adesão (take it or leave it), ela será
aceita de qualquer maneira. E uma vez cumprido o dever de destacá-
la, para a jurisprudência italiana ela se tornava, na prática,
"intocável".
Mas no sistema do CDC este dever de destaque não exime o fornecedor
do controle judicial do conteúdo do contrato.
Cabe destacar, por fim, que no sistema original do CDC as
cláusulas contratuais gerais, ou condições gerais dos contratos, encon-
travam-se regidas na seção das cláusulas abusivas, no art. 51, § 3º
vetado pelo Presidente da República. A noção de contrato de adesão,
do art. 54, é exclusiva dos contratos escritos, contratos concluídos
através de "formulários-padrão", como informava o também, vetado §
5.º do art. 54. Com os vetos, e tendo em vista a falta de previsão
legislativa expressa, parece-nos que seria conveniente incluir as con-
dições gerais dos contratos, que forem impressas em recibos, propostas
ou prospectos, como sujeitas ao regime dos contratos de adesão, como
pretendia o vetado § 5.º do art. 54. Quanto às cláusulas gerais afixadas
em cartazes nos estabelecimentos comerciais ou transmitidas oralmen-
te, ficaram submetidas às regras gerais da seção I e II (arts. 46 a 53).

c) Sanção - A sanção para o descumprimento por parte do


fornecedor de seu novo dever de redação clara dos contratos de
consumo encontra-se, igualmente, na norma do art. 46. Esta norma
prevê a desconsideração do vínculo contratual que teria nascido em
virtude deste contrato "mal" redigido. O art. 46 dispõe que os contratos
* (124) Alpa/Diritto, p. 186. (p. 141)

não obrigarão o consumidor, seja eles de adesão, contratos paritários


ou contratos utilizando condições gerais dos contratos, "se os respec-
tivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão
de seu sentido e alcance". Em última análise, a sanção tem sua origem
na presunção de má-fé do fornecedor-elaborador do contrato.
Quanto à aplicação da sanção do art. 46, 2.º também aos contratos
discutidos cláusula a cláusula, aqui chamados de contratos paritários,
será esta certamente polêmica, pois trata-se de hipótese que revolta os
espíritos mais acostumados com o dogma da autonomia da vontade. A
solução está na exigência da manifestação do Judiciário para declarar
se o contrato juridicamente existe ou não, obriga ou não o consumidor.
Imaginemos o caso de um advogado, dono de vários imóveis e que os
aluga, através de contratos individuais com cada inquilino, mas que
inclui no contrato várias remissões e artigos de leis e medidas
provisórias, que lhe são favoráveis, pois, como ninguém pode desco-
nhecer a lei, mesmo a lei supletiva, está certo que alcançará seu
intento.
Os inquilinos assinam os contratos paritários, mas nenhum consumidor
médio, nem os inquilinos, conseguiria entender que obrigações estava
assumindo, qual o alcance do contrato que assinava.
Mais uma vez, a sanção é a insegurança criada pela existência da
norma do art. 46, que possibilita ao consumidor livrar-se de um contrato
perfeitamente formalizado, assinado e eficaz, por uma falha de trans-
parência (no caso boa-fé) quando da sua formação.

2. Princípio básico de boa-fé

O caput do art. 4.º do CDC menciona além da transparência, a


necessária harmonia das relações de consumo. Esta harmonia será
buscada através da exigência de boa-fé nas relações entre consumidor
e fornecedor. Segundo dispõe o art. 4.º do CDC, inciso terceiro, todo
o esforço do Estado ao regular os contratos de consumo deve ser no
sentido de harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a
viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170,
da Constituição Federal) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores.
Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio
máximo orientador do CDC; neste trabalho, porém, estamos desta- (p. 342)
cando igualmente o princípio da transparência (art. 4.º, caput), o qual
não deixa de ser um reflexo da boa-fé exigida aos agentes
contratuais.{125}
Como o CDC preocupa-se tanto com os aspectos pré-contratuais,
como os de formação e execução dos contratos de consumo, destaca-
remos os reflexos do princípio básico da boa-fé, tanto agora, como no
capítulo reservado à execução do contrato.
Destacaremos, agora, dois aspectos pré-contratuais: a publicidade
e as práticas comerciais abusivas. Ambos estão tratados no CDC no
capítulo referente às práticas comerciais, que podem ou não dar origem
a um contrato e logo não estão incluídas na proteção contratual stricto
sensu. Ao contrário, o terceiro reflexo do princípio de boa-fé, a ser
destacado aqui, é um aspecto contratual, qual seja o direito de
arrependimento instituído pelo art. 49 para os contratos fechados fora
do estabelecimento comercial. O art. 49 insere-se no capítulo do CDC
referente à proteção contratual stricto sensu, mas por estar ligado
estritamente ao processo de formação do contrato, através de manifes-
tação de vontade do consumidor, deve ser examinado neste capítulo
dedicado ao novo regime legal quando da formação dos contratos de
consumo.

2.1 Publicidade abusiva e enganosa

Os arts. 36 a 38 do CDC constituem umas das inovações mais


comentadas da lei de proteção ao consumidor. O interesse despertado
explica-se, pois, até então, o direito brasileiro regulava a publicidade
comercial{126} somente em seus efeitos como forma de concorrência
desleal ou como criação autoral.{127}
* (125) Sobre o princípio da boa-fé como orientador de toda a
atividade dos
parceiros de uma obrigação, veja a obra do mestre de Porto Alegre, Couto
e Silva, Obrigação como Processo.
(126) As diretrizes da publicidade eram dadas pela Lei n. 4.680,
de 18 de junho
de 1965, que oficializou o Código de Ética dos Profissionais de
Propaganda,
pelo Decreto n. 57.690, de 1.º de fevereiro de 1966 e no art. 220 da
Constituição Federal, sendo que algumas leis esparsas também continham
normas sobre publicidade, como por ex., a Lei da Economia Popular.
(127) O direito penal preocupava-se com a publicidade, de forma a
resguardar a
imagem da pessoa e a evitar a concorrência desleal; veja detalhes em
Bittar,
Direitos, p. 90 e Benjamin, Forense, p. 179. (p. 343)
Com a entrada em vigor do CDC vários aspectos da publicidade
comercial passaram a ser juridicamente importantes. Examinamos
anteriormente, nos pontos 1.1 e 1.2, o efeito vinculativo{128} que a
publicidade passa a ter, seja contratualmente, como oferta (art. 30),
seja
como informação obrigatoriamente clara e correta, a responsabilizar
quem a veicula (art. 35) e a responsabilizar solidariamente toda a cadeia
de fornecedores (art. 18). Esses efeitos vinculativos têm como fim
assegurar uma maior transparência nas relações de consumo, pois hoje
ninguém duvida da forte influência que a publicidade exerce sobre a
população brasileira.
No sistema do CDC, porém, a transparência, a informação correta,
está diretamente ligada à lealdade, ao respeito no tratamento entre
parceiros. É a exigência de boa-fé quando da aproximação (mesmo que
extra ou pré-contratual) entre fornecedor e consumidor. Nesse sentido
disciplina o CDC, em seus arts. 36 a 38, a informação publicitária para
obrigar o fornecedor que dela se utilizar a respeitar os princípios
básicos de transparência e boa-fé nas relações de consumo.{129} O CDC
prevê ainda efeitos e sanções administrativas e penais correlacionadas
à publicidade: sobre estas últimas não teceremos comentários, tendo em
vista o caráter civilista que pretendemos impor a este estudo.
a) Conceito de publicidade - Em virtude dos novos efeitos
jurídicos reconhecidos pelo CDC à publicidade é necessário determinar
o que se deve entender por "publicidade" segundo o sistema do CDC.
O Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária, define
a publicidade comercial como "toda atividade destinada a estimular o
consumo de bens e serviços, bem como promover, instituições, con-
ceitos ou idéias", incluindo nessa definição a publicidade governamen-
tal e o merchandising.
* (128) Benjamin, Forense, p. 150, considera a existência no CDC
de um "Princípio
da Vinculação da Publicidade"; destaca igualmente como princípios da
publicidade no regime do CDC, o da "veracidade", da "não abusividade",
da "inversão do ônus da prova" e da "transparência da fundamentação da
publicidade", veja detalhes pp. 182 a 184.
(129) Segundo dispõe o art. 6.º, inciso VI do CDC, é direito
básico do consumidor
"a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva"; em direito
comparado
veja as experiências normativas do Conselho da Europa (1972) e da
Comunidade Econômica Européia (1978) relatadas por Stiglitz, p. 15. (p.
144)
Preferimos, porém, entender como publicidade, no sistema do
CDC, toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto
ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um
produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio
de comunicação utilizado.{130} Logo fica excluída a propaganda política,
já regulada em lei eleitoral, e também a chamada publicidade gover-
namental, que não tenha como fim promover atos de consumo,
separando assim claramente o que é propaganda (difusão de idéias) e
o que é publicidade (promoção, incitação ao consumo). Este parece ter
sido o caminho adotado pelo CDC;{131} sendo assim, o elemento
caracterizador da publicidade é a sua finalidade consumista.{132}
Como relembram os autores, o vocábulo publicidade deriva do
latim publicus, tornar público, publicar de forma geral, vulgarizar,
divulgar, e teria sua utilização com o atual aspecto comercial genera-
lizada no início do século XIX, também como forma de distinção para
então existente propaganda nazi-facista, política ou governamental.{133}
Captando a atenção do público consumidor, informando ou persuadin-
do, divulgando, promovendo o produto ou serviço e estimulando ao
consumo, certo é que a publicidade tem clara feição e finalidade
comercial: é ato negocial de um profissional consciente no mercado de
consumo massificado.{134}
O princípio da identificação obrigatória da mensagem como
publicitária, instituído no art. 36, antes mencionado (1.2) tem sua
origem justamente no pensamento de que é necessário tornar o
consumidor consciente de que ele é o destinatário de uma mensagem
patrocinada por um fornecedor, no intuito de vender-lhe algum produto
ou serviço. Este princípio serve de um lado para proibir a chamada
* (130) A definição foi inspirada naquela da lei belga, de 14 de
julho de 1971 sobre
práticas comerciais, art. 19, e no art. 37 do CDC; sobre a lei belga,
veja
Fontaine, p. 15.
(131) Assim ensina Benjamin, Forense, p. 173, em estudo detalhado
sobre o tema
da publicidade.
(132) Para Almeida, Publicidade, p. 133, a publicidade tem como
fim promover
uma "atividade econômica"; já para Benjamin, Forense, p. 171, "a publi-
cidade tem um objetivo comercial".
(133) Assim Chaise, p. 17 citando Sant’ana e Furlan.
(134) Concordam Benjamin, Anteprojeto, p. 30, Villaça Lopes, p.
151, Pasqualotto,
p. 19 e Chaise, p. 18. (p. 345)
publicidade subliminar, que no sistema do CDC seria considerada
pratica de ato ilícito, civil e mesmo penal.
Antes de passar para a análise da publicidade como ilícito,
gostaria de frisar que observando estes sete anos de prática com o CDC,
efetivamente, o Código de Defesa do Consumidor trouxe mudanças
significativas no relacionamento empresa/consumidor, anunciante/con-
sumidor em potencial e empresa/anunciante. Os princípios que regem
o CDC no que se refere à vinculação através da oferta publicitária, à
proibição da publicidade enganosa e abusiva transformaram o merca-
do.{135} Podemos hoje afirmar que os princípios da boa-fé, transparência
e proteção da confiança despertada dominam o regime da publicidade
no Brasil. As novas exigências deste paradigma objetivo de boa-fé,
deste pensar refletido no outro que recebe a informação, neste cujos
desejos e impulsos de consumo são despertados, teve conseqüências
importantes também no relacionamento entre empresas (fornecedores
diretos) e anunciantes, que viram aumentada sua responsabilidade de
bem orientar e servir seus clientes, como já previa o Código Brasileiro
de Auto-regulamentação Publicitária.
O próprio Código de Auto-regulamentação Publicitária reconhece
que "a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre
grandes massas da população" (art. 7.º) e deve ser preparado com o
devido senso de responsabilidade social (art. 2.º). Constate-se também
que foi em matéria de publicidade enganosa e abusiva que a definição
de consumidor equiparado do art. 29 e do parágrafo único do art. 2.º
do CDC parece ter calado mais fundo na jurisprudência brasileira. Em
um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais, a juris-
prudência brasileira foi exemplar ao estabelecer que a publicidade
abusiva e enganosa atinge a todos, mesmo aqueles excluídos do
consumo, àqueles aos quais a publicidade não se dirige, pois não
possuem as condições para consumir, mas que através das televisões,
placares e outdoors deste imenso país são atingidos, expostos a estas
práticas comerciais abusivas.{136} Em uma belíssima visão de plenitude
* (135) Veja a obra de Pasqualotto, sobre os efeitos obrigacionais
da publicidade
no Código de Defesa do Consumidor, em especial sobre a definição
de
publicidade, pg. 19 e ss.
(136) Veja liminar concedida no caso Benetton/aids (SP, j.
8.7.92, rel. Lineu
Bonora Peinado), in Revista de Direito do Consumidor, v. 4, p. 261, e
decisão no caso Nestlè (RS, Proc. 01191756947, j. 22.2.92, rel.
Wilson
Carlos Rodycz), in Revista de Direito do Consumidor, v. 1, p. 222. (p.
346)
do consumidor equiparado como sujeito de direitos (em potencial),
como pessoa, mais do que como homo economicus ou ser razoável,
estabeleceu uma visão de consumidor digno.{137}

b) Publicidade como ilícito civil - A publicidade enganosa - A


publicidade é um meio lícito de promover, de estimular o consumo de
bens e serviços, mas deve pautar-se pelos princípios básicos que guiam
as relações entre fornecedores e consumidores, especialmente o da boa-
fé. As relações de consumo, mesmo em suas fases pré-contratual ou
como preferem alguns, extracontratual, devem guiar-se pela lealdade
e pelo respeito entre fornecedor e consumidor.
Nesse sentido, o Código proíbe a publicidade enganosa dispondo
em seu art. 37, caput e § 1.º:
"Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa...
"§ 1.º. É enganosa qualquer modalidade de informação ou comu-
nicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por
qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro
o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quan-
tidade, propriedade, origem, preço e quaisquer outros dados sobre
produtos e serviços.
"§ 3º. Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por
omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto
ou serviço".
A característica principal da publicidade enganosa, segundo o
CDC, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor,{138} mesmo
através de suas "omissões". A interpretação dessa norma deve ser
necessariamente ampla, uma vez que o "erro" é a falsa noção da
realidade, falsa noção esta potencial formada na mente do consumidor
por ação da publicidade.{139} Parâmetro para determinar se a publicidade
* (137) Assim manifesta-se também Jayme, em seu artigo sobre o
direito compa-
rado pós-moderno, in Rivista di Diritto Civile, p. 823.
(138) Nesse sentido também a lei francesa de 1973 (Loi Royer), em
seu art. 14,
define a publicidade de maneira muito semelhante à nossa; veja Calais-
Auloy, p. 104; e a lei austríaca sobre concorrência desleal, § 2.º; veja
Schumacher, p. 24.
(139) Assim concorda Schumacher, p. 24, comentando a
jurisprudência austríaca
e excelente Benjamin, Forense, p. 197. (p. 347)
é ou não enganosa deveria ser o observador menos atento, pois este
representa uma parte não negligenciável dos consumidores e, princi-
palmente, telespectadores.{140}
Aquele fornecedor, que fizer veicular uma publicidade enganosa,
estará a descumprir a proibição legal do art. 37; logo, juridicamente,
estará cometendo um ato ilícito,{141} pois o dano em caso de publicidade
é difuso, mas facilmente presumível.{142}
Note-se que o art. 37 do CDC não se preocupa com a vontade
daquele que fez veicular a mensagem publicitária. Não perquire da sua
culpa ou dolo, proíbe apenas o resultado: que a publicidade induza o
consumidor a formar esta falsa noção da realidade.{143} Basta que a
informação publicitária, por ser falsa, inteira ou parcialmente, ou por
omitir dados importantes, leve o consumidor ao erro, para ser carac-
terizada como publicidade proibida, publicidade enganosa. Os efeitos
civis desta publicidade, isto é, a sua caracterização como ato ilícito do
fornecedor é que poderá fazer nascer a discussão sobre a culpa (ou
dolo) deste. Mesmo assim, é necessário ter em vista que o CDC institui
uma presunção de culpa do fornecedor, por ter feito veicular uma
publicidade enganosa. Estava ele proibido de fazer uma publicidade
enganosa, e o fez. Logo, só se exonerará se provar o caso fortuito , isto
é, que uma situação externa à sua vontade, aos seus auxiliares (agência,
publicitário contratado etc.), imprevisível e irresistível, tornou a
publi-
cidade enganosa. Trata-se, portanto, de uma presunção quase absoluta
de culpa, que inverte o ônus da prova, como bem dispõe o art. 38 do
* (140) Assim conclui também Schumacher, p. 24, comentando a
jurisprudência
alemã e austríaca.
(141) Segundo Stiglitz, p. 15, a falsa informação através de
anúncio publicitário
transgride ao princípio neminem laedere.
(142) Interessante observar que este ilícito civil tem sido
utilizado também como
causa para rescisão de um eventual contrato baseado em publicidade
enganosa e no art. 30 do CDC, veja decisão do TJSP, cuja ementa é a
seguinte: "Contrato de adesão. Plano de saúde. Rescisão. Propaganda
enganosa. Aproveitamento de períodos de carência de outros planos. Recusa
no cumprimento do avençado. Indução em erro dos contratantes. Rescisão
do contrato. Ação procedente", in JTJSP 156/41.
(143) Opinião contrária parece ser a de Ulhoa Coelho, p. 161, que
considera, para
caracterizar a publicidade enganosa, necessário o "dolo intencionalmente
voltado a despertar um erro no espírito do consumidor", sem explicitar se
refere ao dolo (defeito da vontade) ou dolo (grau de culpa). (p. 348)
CDC. Efetivamente, o ônus de provar que a publicidade não é
enganosa, que as informações estão corretas (ou que houve caso
fortuito) cabe àquele que patrocinou a mensagem publicitária suspeita
de ter induzido em erro os consumidores. O assunto realmente é
fascinante, e esperamos que em breve monografias específicas estudem
os reflexos civis que a publicidade passa a conhecer no direito
brasileiro.

c) Publicidade como ilícito civil - A publicidade abusiva -


Mencionamos anteriormente que a publicidade conhecia, nas socieda-
des de massa, duas funções: informar os consumidores e estimular o
consumo. São funções econômicas e que podem causar danos patrimo-
niais ao consumidor. Mas e os danos morais causados pela publicidade?
É inegável seu poder condicionante do comportamento dos consumi-
dores. O próprio art. 7.º do Código de Auto-regulamentação Publicitária
reconhecia que "a publicidade exerce forte influência de ordem cultural
sobre grandes massas da população" e completava, sugerindo, em seu
art. 2.º, que: "todo anúncio deve ser preparado com o devido senso de
responsabilidade social, evitando acentuar, de forma depreciativa,
diferenciações sociais decorrentes do maior ou menor poder aquisitivo
dos grupos a que se destina ou que possa eventualmente atingir". O art.
20 do Código de Auto-regulamentação Publicitária esclarece que
"nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de
ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacio-
nalidade".
Se o CDC pretendia disciplinar a publicidade de forma a coibir
futuros danos aos consumidores brasileiros, não poderia restringir a sua
tutela, protegendo, como ensina Benjamin,{144} a incolumidade econômi-
ca do consumidor e deixando de proteger a sua incolumidade física e
moral. Portanto, optou o CDC por proibir também a chamada publi-
cidade abusiva, pois ofensiva aos parâmetros obrigatórios de boa-fé e
de respeito que devem guiar as relações de consumo.
Dispõe o art. 37 do CDC:
"Art. 37. É proibida toda publicidade... abusiva.
"§ 2.º. É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória
de
qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a
* (144) Veja Benjamin/Comentários, pp. 27 e ss. (p. 349)
superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da
criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir
o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua
saúde ou segurança".
A publicidade abusiva é, em resumo, a publicidade anti-
ética,{145}
que fere a vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais
básicos, que fere a própria sociedade como um todo.{146} A defesa do
consumidor contra a publicidade abusiva será, portanto, também
coletiva. O Ministério Público Estadual e Federal e as Associações de
Defesa{147} dos Consumidores estão fazendo uso constante de ações civis
públicas para evitar este tipo de publicidade no mercado brasileiro.{148}
O § 2.º do art. 37 menciona a influência da publicidade em
comportamentos do consumidor prejudiciais à sua saúde. Vale lembrar
que desde 1988, a Constituição Federal dispõe em seu art. 220, o
seguinte:
"Art. 220...
"§ 4.º. A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições
legais...
e conterá sempre que necessário, advertência sobre os malefícios
decorrentes de seu uso".{149}
* (145) Veja nesse sentido a sentença proibindo publicidade
ofensiva à dignidade
dos portadores do vírus da AIDS, com fortes contornos
constitucionais, in
Direito do Consumidor, 4, ps. 261 e ss.
(146) Veja as observações precisas de Pasqualotto sobre a
publicidade
discriminatória, p. 128 e ss.
(147) A pioneira Associação de Proteção ao Consumidor-APC, de
Porto Alegre,
já está movendo uma ação civil pública contra publicidade veiculada pela
televisão, que incitava crianças à prática de delitos (invasão de
supermer-
cados etc.) para poder consumir produtos alimentícios do fornecedor. A
ação é verdadeiro Leading case no direito brasileiro, pelo menos no campo
civil, veja Direito do Consumidor, v. 1.
(148) Veja a série de exemplos jurisprudenciais trazidos por
Rodycz, "Abusiva",
p. 69 e ss.; mencione-se, igualmente, a atuação dos Procons, por exemplo
a ação do PROCON-PGE/SP contra a publicidade do "Tênis da Xuxa", que
incentivava a destruição de sapatos velhos pelas crianças de forma a
receber
os novos tênis... (ainda sub judice).
(149) Veja detalhes e opinião pela proibição deste tipo de
publicidade no Brasil,
o artigo de Maria Elizabeth Vilaça Lopes, in Direito do Consumidor,
1/175, (p. 350)
Por fim, cabe frisar que fazer veicular uma publicidade carac-
terizada como abusiva constitui um ilícito civil{150} e o responsável
civilmente é aquele fornecedor que se "utiliza" da publicidade abusiva
(ou enganosa) para promover os seus produtos ou os seus serviços,
como esclarecia o vetado § 4.º do art. 37 e como esclarece o art.
38, em interpretação analógica para a disciplina da publicidade
abusiva. O CDC não preocupa-se com a culpa e eventual respon-
sabilidade civil da agência publicitária, que criou a mensagem abusiva
responsabiliza apenas o fornecedor que se beneficia com a publici-
dade. Esta solução advém do próprio sistema do CDC que desconsidera
os problemas da cadeia de produção e concentra-se no consumo e
nos consumidores. Aos fornecedores presentes na cadeia de produção
resta o direito de regresso que lhe assegurem o direito civil e o direito
comercial.
Concluindo, cabe mencionar que, além da sanção normalmente
cominada ao ato ilícito, e a imposição da abstenção do ato danoso, o
art. 37 continha, em seu § 4.º, vetado pelo Presidente da República, uma
importante inovação, a possibilidade do Poder judiciário condenar o
fornecedor a fazer veicular uma contrapropaganda, a suas expensas.
Com veto, a contrapropaganda permanece prevista como sanção admi-
nistrativa, no art. 56, XII do CDC.{151} A questão não está, porém,
resolvida totalmente, pois parte da doutrina defende a possibilidade do
Judiciário, em interpretação sistemática do CDC, impor a sanção de
contrapropaganda judicialmente.{152} Os efeitos civis da publicidade,
como frisamos, são totalmente novos e as reflexões sobre o tema estão
apenas começando no Brasil. A importância do tema e o interesse dos
profissionais do ramo prometem uma evolução rápida.
*com opinião contrária, Benjamin, Autores, p. 214, pleiteando uma melhor
regulamentação a exemplo do que ocorre na Comunidade Européia, Rodycz,
Abusiva, p. 71.
(150) Sobre os ilícitos penais relacionados com a publicidade
veja os arts. 67, 68
e 69 CDC.
(151) A doutrina majoritária admite hoje a contrapropaganda como
sanção
judicial, apesar dos vetos, veja neste sentido o levantamento realizado
por
Chaise, p. 167.
(152) Assim Benjamin, Forense, p. 216, contra Ulhoa Coelho, p.
162. Veja
sentença condenando à contrapropaganda, in Direito do Consumidor 10/277
e ss. (p. 351)
2.2 Práticas comerciais abusivas

Como afirmamos anteriormente o Código de Defesa do Consu-


midor representa uma mudança importante no espírito das relações de
consumo. Suas normas sobre contratos impõem ao fornecedor a
adaptação de suas práticas comerciais (publicidade, oferta, técnicas
agressivas de vendas) e do texto de seus contratos aos novos princípios
defendidos pelo Código, de transparência, boa-fé e equilíbrio contratual.
São normas de prudência e boa-fé impostas aos empresários na
promoção de suas vendas.{153}
As práticas comerciais{154} dos fornecedores de produtos e
serviços
encontravam disciplina somente nas normas de direito comercial e nos
princípios éticos de cada profissão e de cada comerciante. A formação
de poderosos conglomerados econômicos deu origem às regras sobre
concorrência desleal. Todas estas normas, porém, tinham como ponto
de partida, a preservação da liberdade de mercado ou a manutenção de
um nível mínimo de ética nas atividades da profissão: nenhuma delas
preocupava-se com o destinatário destas práticas, o consumidor. Certo
é que o consumidor era beneficiado com o afastamento de determinado
profissional do ramo por práticas desleais, mas o prejuízo sofrido pelo
consumidor só era juridicamente importante, se pudesse ser reclamado
com base na responsabilidade extracontratual prevista no art. 159 do
Código Civil de 1917.
O CDC mais uma vez inova o ordenamento jurídico brasileiro e
estabelece nos arts. 39, 40 e 41 uma série de práticas comerciais que
o legislador considera abusivas e, portanto, vedadas. O impacto desta
novidade só não será maior em virtude do veto presidencial ao art. 45,
o qual previa uma severa sanção (perdas e danos punitivos) para o
descumprimento das normas do capítulo.
Mesmo assim, permanece a proibição legal de praticar o ato, logo,
uma vez praticado o ato antijurídico e causado um dano ao consumidor,
poderá ele requerer as perdas e danos compensatórios normais do art.
* (153) Assim concorda o mestre argentino Stiglitz, p. 15.
(154) Práticas comerciais seriam, segundo ensina Benjamin,
Forense, p. 137, "os
procedimentos, mecanismos, métodos e técnicas utilizados pelos fornece-
dores para, mesmo indiretamente, fomentar, manter, desenvolver e garantir
a circulação de seus produtos e serviços até o seu destinatário final".
(p. 352)
159 do CC, beneficiando-se, conforme decisão do juiz, com a inversão
do ônus da prova permitida no art. 6.º do CDC.{155} Mais interessante
é a hipótese de ocorrência de dano moral pela prática comercial abusiva
(por exemplo divulgação de informação depreciativa sobre o consumi-
dor, art. 39, VII). Segundo o sistema do CDC, art. 6.º, inciso VI, o
consumidor tem direito a efetiva reparação tanto do dano patrimonial,
como do dano moral. Relembre-se igualmente, que, assim como na
propaganda, também nas outras práticas comerciais abusivas o dano
pode ser difuso ou coletivo, cabendo, por exemplo, uma ação civil
pública.{156}
Note-se que os efeitos civis da prática comercial abusiva não
inibem a aplicação de outras sanções cabíveis, como as sanções
administrativas, as sanções oriundas da prática de concorrência desleal
e mesmo, as sanções penais previstas no próprio CDC; não analisare-
mos estas outras sanções tendo em vista o nosso propósito de reduzir
este estudo aos aspectos civilistas e contratuais do CDC.

a) Práticas comerciais expressamente vedadas - O CDC, além de


proibir a publicidade enganosa e a publicidade abusiva, estabelece no
art. 39 uma lista de práticas comerciais proibidas. A lista apresenta 9
hipóteses. O antigo inciso X do art. 39, o qual indicava ser a lista
apenas
exemplificativa, foi vetado pelo Presidente da República, sob alegação
de que este inciso tornava a norma "imprecisa" e era inconstitucional,
tendo em vista a "natureza penal" do dispositivo. Mesmo discordando
dos argumentos usados para impor o veto, devemos concluir, em uma
interpretação a contrario, que a lista de práticas abusivas do art. 39
com
* (155) Veja neste sentido decisão do JECP/RS, p. 01597542776, 2.ª
T., j. 11.11.97,
rel. Paulo Antônio Kretzmann, cuja ementa é: "Consumidor. Cartão de
crédito. A remessa de cartão de crédito a consumidor, sem solicitação
prévia, constitui ilícito, pois é conduta defesa perante o CDC. Se o
banco,
malgrado a tentativa não aderida de assinatura do pacto creditício, leva
a
cobrança e anota perante o Serasa o nome do pseudocliente, pelo não
pagamento das parcelas relativas à anuidade, e desse fato advêm danos de
ordem moral ao cliente não-aderente, cabe ao banco o
ressarcimento".
(156) Nesse sentido relembre-se inúmeras reclamações sobre
métodos de
contratação de time-sharing no JECP, que levaram ao MP/RS
controlar com
sucesso estas práticas. Veja a linha agora majoritária no JECP/RS, permi-
tindo o uso do art. 49 do CDC, ou a rescisão com devolução das quantias,
Proc. 01597513239, 1.ª T., R., j. 15.4.98, J. Guinther Spode. (p. 353)
o veto tornou-se uma lista exaustiva, podendo ser apenas complementada
por outras normas, do CDC ou de leis especiais.
A lista do art. 39 é suficientemente clara sobre seus propósitos
e
pode ser dividida em 4 grupos. No primeiro grupo proíbe o CDC que
o fornecedor prevaleça-se de sua superioridade econômica ou técnica
para determinar condições negociais desfavoráveis ao consumidor.
Assim, proíbe o art. 39, em seu inciso I, a prática da chamada venda
"casada", em seu inciso V,{157} a exigência de vantagem manifestamente
excessiva do consumidor e, por fim, no inciso IX, que o fornecedor
deixe de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixe
a fixação do termo inicial a seu exclusivo critério.
No segundo grupo de práticas abusivas e, portanto, proibidas pelo
art. 39, encontram-se aquelas que prevalecem-Se da vulnerabilidade
social ou cultural do consumidor. Segundo o inciso IV, é vedado ao
fornecedor "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor,
tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para
impingir-lhe seus produtos ou serviços". Muitas das chamadas técnicas
de venda sob impulso confiam em seu sucesso devido, justamente, a
vulnerabilidade a que reduzem o consumidor. Trataremos a seguir de
algumas delas, a venda de porta-em-porta, a venda por reembolso postal
e a venda por telefone, que foram expressamente disciplinadas pelo
CDC, instituindo este, inclusive, um novo direito de arrependimento do
contrato. Neste grupo podemos incluir também a prática abusiva
destacada no inciso VII. Segundo o art. 39, inciso VII, é vedado ao
fornecedor repassar informação depreciativa referente a ato praticado
pelo consumidor no exercício de seus direitos. Grifamos esta última
parte para frisar que não estão proibidas as informações sobre os
consumidores (Bancos de Dados e Cadastros de consumidores, regu-
lados nos arts. 43 e ss. do CDC), mas, sim, as chamadas "listas negras"
de consumidores que reclamam e exigem seus direitos, agora assegu-
rados pelo CDC, ou de consumidores envolvidos em Associações de
Proteção de Consumidores etc.
No terceiro grupo, encontram-se as práticas de vendas sem
manifestação prévia do consumidor, em que este recebe o produto OU
o serviço não requisitado e não tem como devolver o objeto ou não
* (157) Note-se que não fica proibida a chamada "oferta combinada"
mas sim seu
desvio, a venda casada, veja detalhes em CDC, Forense, Benjamin,
p. 140. (p. 154)
aceitar o serviço e se vê literalmente forçado a contratar. Estas táticas
agressivas de vendas ficam proibidas, de maneira muito inteligente,
pelo inciso III combinado com o parágrafo único do art. 39.
Efetivamente dispõem o inciso III e o parágrafo único do art. 39:
"Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:
"III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia,
qualquer produto ou fornecer qualquer serviço.
"Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos
ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III,
equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento".
A equiparação dos produtos enviados e dos serviços prestados sem
nenhuma solicitação do consumidor a "amostras grátis" é uma solução
inventiva, cujo fim é realmente acabar com este tipo de prática no
mercado brasileiro. Vale lembrar aqui a noção de que as novas normas
do Código assumem por vezes uma natureza mais operacional, do que
conceitual, como estávamos acostumados nas lições do grande Bevilaqua.
Quanto à eficácia prática da norma do art. 39, III não resta a menor
dúvida, pode-se apenas discutir se outra solução não seria mais
apropriada ao novo princípio geral de eqüidade e equilíbrio das relações
entre fornecedor e consumidor.
Mas o último grupo de práticas abusivas proibido pelo art. 39 é
ainda mais polêmico, trata-se do inciso II, que possui a seguinte
redação:
"Art. 39. É vedado ao fornecedor:
"II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na
exata proporção de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de
conformidade com os usos e costumes".
Pela primeira vez, o CDC menciona na fase pré-contratual a
aplicação de "usos e costumes", menção que acalma o espírito dos
comercialistas e contratualistas tradicionais, pois os usos e costumes,
no Brasil, são os comerciais desde 1917 (art. 1.807 do CC){158} e
geralmente são estabelecidos tendo em vista a superioridade econômica
* (158) O art. 1.807 do Código Civil dispõe: "Ficam revogadas as
Ordenações,
Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às
matérias de direito civil reguladas neste Código", apesar do art. 4.º da
LICC
de 1942, permitir o uso dos costumes "quando a lei for omissa". (p. 355)
do fornecedor.{159} Mas, a segurança dos tradicionalistas acaba no inciso
II do art. 39, pois, se interpretado sistematicamente com os arts. 30 e
35 do mesmo capítulo (Das Práticas Comerciais), pode levar à conclu-
são que o CDC institui uma verdadeira obrigação de contratar para
o fornecedor.
Efetivamente, se "toda informação ou publicidade, suficientemen-
te precisa", segundo o art. 30, é oferta e vincula e se o fornecedor não
pode recusar dar cumprimento à oferta, sem sofrer as conseqüências
contratuais do art. 35, então, pelo art. 39, II, ele também não pode
recusar-se a contratar, se ainda tem estoques, isto é, "na medida de suas
disponibilidades de estoque". A conclusão pela existência de uma
obrigação de contratar é um pouco forçada, mas é necessário esclarecer
que o sistema do CDC não está muito longe desta obrigação, pois
disciplina enormemente a fase pré-contratual da relação de consumo.
Mas, em verdade, a norma do art. 39, II, deve ser interpretada
conjuntamente com aquela do art. 41, referente ao tabelamento de
preços. O tabelamento ou o controle de preços já é fato comum no país,
tão comum que até o legislador já verificou que os produtos tabelados
tendem a desaparecer do mercado e a permanecerem retidos nos
estoques dos fornecedores até o fim do congelamento.
Ao comentar os reflexos do princípio da boa-fé como paradigma
das práticas comerciais no mercado brasileiro, mister, nesta terceira
edição, incluir dentre as práticas comerciais "controladas" pelo CDC
o art. 43 e seguintes sobre bancos de dados. Como se observou
anteriormente, a lista de práticas comerciais consideradas abusivas é
tanto de práticas pré-contratuais quanto contratuais. A elaboração,
organização, consulta e manutenção de bancos de dados sobre consu-
midores e sobre consumo não é proibida pelo CDC, ao contrário, é
regulada por este; logo, permitida. A lei fornece, porém, parâmetros de
lealdade, transparência e cooperação e controla esta prática de forma
a prevenir e diminuir os danos causados por estes bancos de dados e/
ou pelos fornecedores que os utilizam no mercado.{160}
* (159) Veja, sobre a subjetividade da expressão "usos e costumes"
e sua adaptação
unicamente ao sistema contratual tradicional, a exposição de Lobo, pp.
99-
101.
(160) Veja interessante caso sobre homônimo, em que se assegurou
perdas e danos
exemplares ao consumidor: "O banco credor é responsável pelo dano moral
provocado contra homônimo, executado em lugar do verdadeiro obrigado, (p.
356)
A prática recente brasileira demonstrou, porém, que estes bancos
e a utilização, por vezes, maliciosa, outras vezes, negligente destes
bancos por fornecedores estão a causar grandes e reiterados danos aos
consumidores.{161} Reclama-se do nascimento de uma "indústria do dano
moral" no Brasil,{162} mas não se pondera e almeja sinceramente
modificar as práticas comerciais dos fornecedores, que alimentam estes
bancos e que são solidariamente responsáveis,{163} ou em modificar as
práticas comerciais dos próprios organizadores destes bancos públicos
e privados, também solidariamente responsáveis frente aos consumido-
res.{164} Trata-se de solidariedade resultante da cadeia de casualidade,
ou
como explicita a doutrina argentina, de dano resultado de uma atividade
ou intervenção plural.{165}
Nosso alerta é no sentido de tratar-se, em essência, de uma
prática
comercial abusiva regulada a contrário pelo CDC. Se esta prática causar
dano aos consumidores, material ou moral, deverão estes ser ressarci-
dos e, mais ainda, deverá a aplicação da lei consumerista ser de tal
ordem que pedagogicamente modifique as práticas hoje existentes no
mercado.{166} De nada vale a lei (law in the books), se não tem efeitos
*pois a execução se realiza no seu interesse, devendo o valor da
indenização
atender ao exemplary damages" (TJRS, Ap. Civ. 596.210.849, j. 21.11.96,
Des. Araken de Assis).
(161) Veja neste sentido, frisando que trata-se de risco
profissional dos estabe-
lecimentos bancários e dos outros fornecedores indiretos, cadastros,
antiga
decisão do STF, j. 15.5.70, Rel. Min. Amaral Santos, R. Ext. 68.968.
(162) Veja crítica do Des. Décio Erpen, TJRS, in Ap. Civ.
596185181, j. 5.11.96,
distinguindo os "dissabores" contratuais e o dano moral.
(163) Sobre solidariedade da entidade financeira ou bancária e do
Serviço de
Proteção ao Crédito ou outros bancos e cadastros na indenização dos danos
morais e materiais sofridos por inscrição nestes bancos, veja decisão do
TJRS, in Rev. de Jurisprudência TJRGS 174, p. 394.
(164) Posição majoritária é que o protesto de título sem causa
gera abalo de
crédito e o dever de indenizar danos materiais e morais, veja RT 124/139,
RT 675/100, JTJ-Lex 145/106, JTJ-Lex 146/118, Julgados TARS, ano 88,
p. 363. Veja também RT 707/150, RT 726/369, RT 728/355, RT 730/207
e RT 681/163 (levantamento jurisprudencial do TARS, in RRR 1961189047)
(165) Sobre o dano como resultado de uma "intervención plural",
veja Alterini/
Lopez Cabana, Responsabilidad, p. 321 e ss.
(166) Veja, neste sentido, votos, em decisões do TJRS: "O dano
moral, por si
mesmo, se caracteriza no só fato da existência da informação disponível
(p. 357)
práticos na vida dos consumidores (law in action) e no reequilíbrio de
situações de poder (Machtpositionen) e relações desequilibradas e
mesmo ilícitas.{167} A função satisfativa das perdas e danos civis, mesmo
que não punitivas ou exemplares, é uma realidade no sistema do CDC
(art. 6.º, VI); é claro, com razoabilidade e proporcionalidade ao ganho
auferido pelo fornecedor, com a passividade dos outros consumidores
potencialmente lesados pela reiterada prática comercial abusiva do
fornecedor. Para evitar o enriquecimento de um consumidor em
especial, melhor neste caso seria a atuação do Ministério Público e das
Associações de Defesa do Consumidor de forma a forçar a modificação
das práticas destes bancos de dados.{168} Os danos materiais e morais
sofridos pelo consumidor individual, porém, devem ser todos ressar-
cidos, pois indenizar pela metade seria afirmar que o consumidor deve
suportar parte do dano e autorizar a prática danosa dos fornecedores
frente aos demais consumidores.{169} Como ensina Ghersi, em matéria
de danos à pessoa humana e sua dignidade, acentua-se o princípio geral
da "obligación de no danar" (nemini laedere) e a prevenção deve ser
privilegiada pelo direito justamente pela impossibilidade ou grande
dificuldade de ressarcir realmente a vítima.{170}
*para uma parcela considerável do público" (Ap. Civ. 584.023.592-3, Des.
Adroaldo Furtado Fabrício). "Indenização. Abalo de crédito. Dano moral.
O envio injustificado de nome de pessoa para inclusão no Serasa
constitui,
por si só, dano moral por abalo de crédito" (Ap. Civ. 197.003.817 -
Pelotas,
j. 20.8.97, Des. Roberto Expedito da Cunha Madrid). "Abalo de crédito.
Protesto de título já pago. Responsabilidade da instituição financeira
mandatária" (EI 597.028.620, j. 4.4.97).
(167) Veja neste sentido concessão do dobro do consignado na
cártula pelo TAMG
como sanção em caso de protesto indevido, in RT 716/270.
(168) Neste sentido parecem concordar Bonatto e Moraes, p. 160,
que expressa-
mente citam o art. 29 combinado com os arts. 6.º, VI, e 81 do CDC como
base para atuações preventivas semelhantes do Ministério Público.
(169) Veja, por todos, TARS, Ap. Civ. 196 189 047, j. 13.11.96,
rel. Ricardo
Raupp Ruschel, onde lê-se: "Não há necessidade de provar eventual
prejuízo patrimonial para obter indenização do dano moral. O protesto
indevido de título, porque público e notório, causa inúmeros e
inesperados
constrangimentos à pessoa atingida, impondo-se a responsabilização pela
indenização ao apresentante do documento no Ofício".
(170) Ghersi/Rossello/Hise, p. 143 e ss. (p. 358)
As técnicas de comunicação estão a construir o mundo do futuro,
e aqui analisada pós-modernidade, e neste sentido são instrumentos
válidos e seu desenvolvimento não pode ser suspenso, sendo dificil-
mente controlável. De outro lado, a construção jurídica da identidade
individual, de uma dignidade social e econômica intangível, é a
resposta do direito a este desafio atual. Efetivamente, hoje, o direito
privado europeu e as Constituições, assim como a Constituição brasi-
leira de 1988, permitem concluir que dentro desta proteção à pessoa
há um direito à privacidade, à reserva (diritto alla riservatezza), um
direito à identidade pessoal, um direito de dispor de seus próprios dados
pessoais (diritto di disporre dei propri dati personali).{171}
Este último direito foi positivado pelo CDC e transparece no art.
43, §§ 2.º e 3.º. O consumidor brasileiro tem direito de dispor de seus
dados pessoais, de acessá-los e de saber que estes existem em algum
banco de dados público e privado, logo, não deveria ser necessária a
lide, a pretensão resistida, o recurso a ação de habeas data, da mesma
forma não deveria o fornecedor impor exigências exorbitantes e pouco
razoaveis, obstáculos desproporcionais, para que o consumidor pudesse
chegar a seus dados e a sua modificação, em caso de eventual erro ou
de superação da dívida. Esta reiterada prática comercial é abusiva, pois
fere o princípio legal de boa-fé, logo, dever de cooperação, de cuidado
e de lealdade, fere a boa-fé necessária e obrigatória entre os parceiros
contratuais e nas relações do consumidor com toda a cadeia de
fornecedores indiretos, que o fornecedor inicial utiliza para cobrar sua
dívida. Modificar estas práticas comerciais abusivas seria um grande
avanço no país, pois não são estes abusos que melhorarão a situação
de insolvência no país, mas sim maior respeito e cooperação entre os
agentes no mercado.
Neste sentido, ressalte-se a jurisprudência do Tribunal de
Justiça do
Rio Grande do Sul, em cuja ementa lê-se: "Serviço de proteção ao
crédito. O Ministério Público é parte legítima e a ação civil pública é
processo adequado à defesa coletiva do consumidor, universo
indeterminado de pessoas unidas pela circunstância fática do consumo.
A regularidade dos cadastros e informações relativas ao consumidor
interessa não apenas aos cadastrados, mas ao universo dos consumidores
(TJRS, Ap. Civ. 591097050, j. 27.11.91, Des. Ivo Gabriel da Cunha).
* (171) Assim Alpa, Banche di Dati, p. 54. (p. 359)
Neste mesmo sentido decisão do TARS, cuja ementa é: "Respon-
sabilidade civil. Inscrição no serviço de proteção ao crédito. Dano
material e moral. 1. Ao fornecer informações a partir dos dados
existentes no cadastro dos emitentes de cheque sem fundo do Banco
Central do Brasil, ao qual tem acesso mediante convênio oneroso, o
Serviço de Proteção ao Crédito torna-se responsável pelos danos
causados àquele que é confundido com emitente de cheque cadastrado,
em razão da coincidência quanto ao número do CPF e da semelhança
no nome. Responsabilidade decorrente do exercício da própria ativida-
de. 2. Na fixação do valor da condenação devem ser levadas em
consideração as circunstâncias em que ocorreram o fornecimento da
informação incorreta. 3. Não tendo a informação negativa sido divulgada
na imprensa, mas apenas em consulta a usuários, incabível a conde-
nação à publicação do fato em periódico diário. Recurso provido em
parte (Ap. Civ. 595091364 , 5ª Câmara Cível, Rela. Dra. Maria Isabel
de Azevedo Souza, j. 14.09.95).{172}
O art. 39 possui ainda dois incisos, o inciso V, que será
comentado
conjuntamente com a obrigação de fornecer orçamento (letra b) e o
inciso VIII, sobre normas técnicas, comentado a seguir, conjuntamente
com o art. 41 (letra c).

b) Obrigação de fornecer orçamento prévio discriminado - A


determinação do preço de um serviço é muito mais subjetiva e
complexa do que a determinação do preço de um produto industrial.
Muitas vezes, o preço pode variar conforme a rapidez em que o serviço
deva ser realizado, conforme as circunstâncias de local (no domicílio,
na oficina, necessitando remoção do bem), conforme o material a ser
utilizado (madeira mogno, madeira de cedro, compensado etc.) e
mesmo, dependendo do fornecedor, conforme a situação econômica
daquele que deverá arcar com o pagamento do serviço (os serviços
prestados a órgãos públicos e a pessoas jurídicas costumam ter seus
preços majorados).
Nesse sentido, inova o CDC ao impor, em seu art. 40, a obrigação
do fornecedor de entregar ao consumidor orçamento prévio discrimi-
nado; obrigação que alguns consideram impossível de ser cumprida,{173}
* (172) Publicado no ementário, na Rev de Jurisprudência TJRGS
174, p. 394.
(173) A preocupação foi levantada em Campo Grande no I Encontro
Estadual de
Defesa do Consumidor, promovido pelo PROCON/MS. (p. 360)
dependendo do serviço, como no de consertos de automóveis e
máquinas, em que para elaborar o orçamento é necessário remover o
bem e abri-lo, o que já oneraria o consumidor.
Dispõem o art. 40 e o art. 39, inciso VI:
"Art. 39. É vedado ao fornecedor:
"VI - executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e
autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de
práticas anteriores entre partes".
"Art. 40. O fornecedor de serviço será obrigado a entregar ao
consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão-de-obra,
dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de
pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços.
"§ 1.º. Salvo estipulação em contrário, o valor orçado terá
validade
pelo prazo de 10 (dez) dias, contados de seu recebimento pelo
consumidor.
"§ 2.º. Uma vez aprovado pelo consumidor o orçamento obriga os
contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das
partes.
"§ 3.º. O consumidor não responde por quaisquer ônus ou
acréscimos decorrentes da contratação de serviços de terceiros, não
previstos no orçamento prévio".
Resumindo, o fornecedor do serviço não pode executá-lo antes da
expressa autorização do consumidor, sendo obrigado também a entre-
gar um orçamento prévio bastante discriminado. O orçamento prévio
poderia ser feito facilmente em determinados serviços de porte, como
construções, pinturas; mas apresenta algumas dificuldades nos serviços
de pequeno porte e nos consertos. Quanto aos consertos, se para
elaborar o orçamento é necessário transportar o objeto, abri-lo ou
executar qualquer serviço que já onere o fornecedor, a solução está em
informar ao consumidor que estes pré-serviços já serão cobrados e
estipular um valor para eles, de modo a cumprir as exigências de
transparência nas relações de consumo.

c) Respeito às normas técnicas e ao tabelamento de preços - O


princípio básico de boa-fé nas relações de consumo deverá refletir nas
práticas de vendas dos fornecedores, e principalmente, deve estimular
O fornecedor a cumprir voluntariamente as normas legais. Assim, se (p.
361)
existem normas expedidas por órgãos oficiais, ou pela Associação
Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo
CONMETRO devem elas ser cumpridas, mesmo não sendo obrigatórias
para o fornecedor específico. Nesse sentido o CDC inclui no art. 39,
em seu inciso VIII, como prática comercial abusiva "colocar, no
mercado, qualquer produto ou serviço em desacordo" com estas
normas. A finalidade da norma é melhorar a qualidade de vida do
brasileiro, melhorando a qualidade dos produtos que consome e dos
serviços que são colocados à sua disposição.
Trata, igualmente, o CDC da postura que deve tomar o fornecedor
em relação ao consumidor quando os seus produtos ou serviços estejam
sujeitos ao regime de controle de preços ou de tabelamento.
Dispõe o art. 41 do CDC:
"Art. 41. No caso de fornecimento de produtos ou de serviços
sujeitos ao regime de controle ou de tabelamento de preços, os
fornecedores deverão respeitar os limites oficiais sob pena de, não o
fazendo, responderem pela restituição da quantia recebida em excesso,
monetariamente atualizada, podendo o consumidor exigir, à sua esco-
lha, o desfazimento do negócio, sem prejuízo de outras sanções
cabíveis".
A norma advém, sem dúvida, das recentes experiências brasi-
leiras com planos de estabilização econômica, congelamentos e a
cobrança de ágio nas relações de consumo, com danos para o
consumidor. A dificuldade prática da norma são os chamados
"negócios de bagatela", onde o consumidor lesado geralmente não
reclama, mas como o dano é coletivo, podemos pensar, no sistema
atual do CDC, que as entidades de defesa do consumidor ou o
Ministério Público entrem com ações para evitar a prática comercial
proibida da cobrança de ágio. Destaque-se que a presença de uma
norma específica para o caso de congelamentos de preços e salários
no CDC brasileiro é mais do que salutar, tendo em vista a reiterada
freqüência com que estes planos ocorrem no país.

2.3 Direito de arrependimento do consumidor (art. 49)

Para proteger a declaração de vontade do consumidor, para que


essa possa ser decidida e refletida com calma, protegida das técnicas
agressivas de vendas a domicílio,{174} o art. 49 do CDC inova o
ordenamento jurídico nacional e institui um prazo de reflexão obriga-
tório e um direito de arrependimento.
Dispõe o art. 49 do CDC:
"Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7
(sete) dias a contar da sua assinatura ou do ato do recebimento do
produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de
produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, espe-
cialmente por telefone ou a domicílio".
Qualquer fornecedor que pratique a chamada técnica de "venda
a domicílio", na residência dos consumidores, no seu local de trabalho
(repartições, colégios etc.), mesmo que por telefone, ou por malote
postal, para propor aos consumidores a conclusão de contratos de
compra e venda, de assinatura de periódicos, de consórcios etc., ou para
oferecer a prestação de seus serviços, passa a estar submetido ao regime
especial instituído pelo art. 49 do CDC, visando assegurar a boa-fé, a
lealdade nas relações contratuais entre consumidor e fornecedor,
regime este que passamos a analisar.

a) A venda de porta-em-porta (door-to-door) - A venda de porta-


em-porta (door-to-door) ou venda a domicílio (vente à domicile) é uma
técnica comercial de vendas fora do estabelecimento comercial, ampla-
mente difundida nas sociedades de consumo,{175} pelas benesses que traz
o fornecedor (investimento reduzido, ausência de vínculo empregatício
com os vendedores, baixos riscos de reclamação ou devolução do
produto), mas que coloca o consumidor em situação de evidente
vulnerabilidade (pouco tempo para decidir, impossibilidade de compa-
rar o produto com outros, dependência total das informações prestadas
pelo vendedor ou pelo catálogo etc.).
Na década de 70, calculava-se que 35% das vendas ao consumidor
nos Estados Unidos tratavam-se de vendas door-to-door. Na Europa,
igualmente, o volume de contratos originados por esta técnica, chamada
agressiva, de vendas era grande, o que levou a doutrina a defender a
* (174) Segundo Lamberterie, p. 717, a venda a domicílio apresenta
um caráter
particularmente agressivo, porque o consumidor sozinho com o vendedor
é extremamente vulnerável e não tem meios de prova das eventuais
manobras fraudulentas do vendedor.
(175) Veja sobre o tema Bourgoignie, "Clauses", p. 548, sobre
técnicas de
promoção de vendas na sociedade moderna. (p. 363)
necessidade de uma disciplina específica para este tipo de vendas, tendo
em conta as suas peculiaridades.{176}
A venda a domicílio, segundo Oriana,{177} apresentaria os
inconve-
nientes de duas ordens, quanto à concorrência desleal e quanto ao
respeito ao consumidor. A venda de porta-em-porta prejudicaria a
concorrência leal pois, sem suportar os ônus fiscais e econômicos para
manter um estabelecimento comercial, o fornecedor que utiliza esta
técnica vai ao encontro do cliente, que sem poder comparar os preços
e a qualidade do produto apresentado e, por vezes, tendo tentado livrar-
se de importuno vendedor, decide-se pelo produto oferecido. Igualmen-
te, dos vendedores a domicílio não é exigido um nível profissional
maior, pois não existe vínculo empregatÍcio entre ele e o fornecedor
do produto. sua remuneração se dará por prêmios ou porcentagens.
Tudo acaba por incentivar que o vendedor utilize de qualquer artifício,
inclusive o de mascarar ou omitir informações importantes para o
consumidor sobre o preço, a qualidade e os riscos do produto, para
vender mais e alcançar uma retribuição adequada.
De outro lado, o consumidor perturbado em sua casa ou no local de
trabalho não tem o necessário tempo para refletir se deseja realmente
obrigar-se, se as condições oferecidas lhe são realmente favoráveis; não
tem o consumidor a chance de comparar o produto e a oferta com outras
do mercado, nem de examinar com cuidado o bem que está adquirindo.
O consumidor recebe do vendedor, ou da correspondência circular
enviada, no mais das vezes, informações incompletas, principalmente
sobre o preço da mercadoria (por exemplo: curso de computação grátis
e em 3 vezes, sem juros - mas com correção monetária; desconto de 20%
à vista: assinando a proposta receberá uma Bíblia de graça, não ficando
obrigado a contratar, etc.). Por fim se o produto adquirido apresenta
algum defeito ou vício de qualidade, não possui o consumidor a possi-
bilidade de reclamar, pois o vendedor não retornará e a fábrica localiza-
se em outro Estado da Federação, o que desistimula a reclamação.
Os abusos nas vendas a domicílio levaram alguns doutrinadores a
defender a proibição desta prática,{178} solução radical incompatível com
* (176) Veja detalhe em Oriana, p. 1573.
(177) Oriana, pp. 1574 e 1575.
(178) Veja detalhes em Oriana, p. 1573; já Lamberterie, p. 717,
destaca a pressão
exercida pelas organizações de defesa dos consumidores para que a venda
a domicílio fosse regulada por lei especial. (p. 364)
o estágio de desenvolvimento do comércio em muitas partes do Brasil e
cujo controle seria praticamente impossível. Melhor solução é a de
disciplinar a venda de porta-em-porta, reconhecendo novos direitos ao
consumidor, como o de reflexão e arrependimento, como forma de
desistimular a prática e ao mesmo tempo proteger o consumidor.
No Brasil, preocupações com estas práticas agressivas de vendas,
também chamadas de "vendas sob impulso"{179} (vendas a domicílio, por
telefone, por meio de reembolso postal), as quais deixam clara a
vulnerabilidade do consumidor (aposentados, donas-de-casa, adoles-
centes, etc.), levaram o legislador do CDC a editar norma específica
para assegurar um mínimo de boa-fé nestas relações entre fornecedores
e consumidores, pois os instrumentos tradicionais que o direito colo-
cava à disposição dos consumidores (o erro, dolo e a conseqüente
anulação do contrato) esbarravam em evidentes dificuldades práticas e
de prova.{180}

b) Regime legal da venda de porta-em-porta - Segundo o art. 49


do Código, nos contratos concluídos no domicílio ou no local de
trabalho do consumidor, as chamadas vendas de "porta-em-porta", o
consumidor terá um prazo legal de reflexão de 7 dias, podendo neste
prazo manifestar a sua vontade no sentido de desistir, sem ônus, do
contrato já concluído,{181} Direito de reflexão semelhante existe na
legislação da França, da Alemanha e dos Estados Unidos.{182}
A grande indagação prática é como se deve juridicamente consi-
derar o vínculo contratual durante este prazo de 7 dias. No direito
comparado, as soluções são várias, como veremos.
A lei alemã de 1986{183} considera que a aceitação do consumidor,
a sua manifestação de vontade, fica suspensa e só será eficaz, segundo
o § 1.º, "se o cliente no prazo de uma semana não a revogar por
* (179) Assim as denomina Bittar, Direitos do Consumidor.
(180) Assim tb. Oriana, p. 1574.
(181) Destaca Stiglitz, p. 193, que o consumidor pode arrepender-
se do contrato
sem necessidade de fazer constar o motivo desta decisão; veja Assis, p.
69,
sobre resolução como desconstituição.
(182) Veja detalhes em Calais-Auloy, p. 170, também existem
normas semelhantes
na Bélgica e Dinamarca (veja Bourgoignie, p. 548).
(183) "Gesetz über den Widerruf von Haustürgeschöften und
ähnlichen Geschäften"
(HaustürWG), de 16 de janeiro de 1986. (p. 365)
escrito".{184} Logo, nas vendas a domicílio, a oferta e a aceitação
inicial
do consumidor não formam um contrato, o que caracterizaria a eficácia
normal da aceitação. A aceitação fica como que submetida por lei a uma
condição suspensiva, não é eficaz até a passagem do prazo, sem nova
manifestação. Se o cliente revoga (Widerruft) sua aceitação, no prazo
e nas condições legais, a aceitação nunca terá tido eficácia, o contrato
nunca terá sido formado, pois o evento futuro e incerto (a passagem
do prazo, sem a revogação), a que estava submetida a manifestação de
vontade do consumidor, não ocorreu.
A lei alemã disciplina igualmente como se dará a devolução das
prestações eventualmente já executadas, o que parece ser um contrasenso,
pois, por lei, a aceitação do consumidor ainda não é eficaz, logo não
há o seu efeito normal, que seria formar um contrato. Mas no sistema
germânico, acostumado à abstração, a eventual entrega do bem, e
transferência da propriedade é desvinculada de qualquer maneira do
eventual liame contratual. Assim, o legislador alemão resolverá o
problema usando o princípio geral do enriquecimento sem causa
(presente no § 812 BGB), de forma a regular as conseqüências da
revogação (§ 3º da lei de 1986) e evitar o enriquecimento de qualquer
das partes.
A lei francesa de 1972,{185} Lei 72-1137, de 22 de dezembro de
1972, prevê em seu art. 3º, hoje consolidado no art. 121-25 do Code
de la Consommation (Loi 93.949/93), que "nos 7 dias a contar da
proposta de compra assinada pelo cliente ou da sua aceitação contratual,
o cliente tem a faculdade de renunciar a estas através de carta
recomandée".{186} Na interpretação de Calais-Auloy,{187} o retardo de 7
dias significaria que o contrato não se conclui instantaneamente, até
* (184) No original "... cine entgeltliche Leistung gerichtete
Willenserklaerung, ...,
wird erwst wirksam, wenn der Kunde sie nicht binnen einer Frist von einer
Woche schriftlich widerruft" (§ 1.º HaustürWG).
(185) "Loi relative à la protection des consommateurs em matiére
de démarche
et de vente à domicile" (Code Civil Dalloz, art. 1593), comentada por
Calais-Auloy/Domicile, p. 266.
(186) No original: "Dans les sept jours à compter de la
commande ou de
l’engagement d'achat, le client a la faculté d'y renoncer par lettre
recomandée
avec accusé de réception..." (art. 3º Loi 72-1137).
(187) Calais-Auloy, Domicile, p. 267, veja também tradução do
artigo de Calais-
Auloy, in Direito do Consumidor 1. (p. 366)
porque o art. 4.º, hoje art. 121-26, da lei francesa proíbe que se exija
do cliente qualquer tipo de contraprestação durante este prazo. Segundo
a lei francesa não haverá qualquer tipo de execução do contrato durante
o prazo de "reflexão". Oriana{188} conclui, então, que se o produto foi
entregue ao consumidor atuará ele como depositário do bem.
Desta exposição do direito comparado, podemos concluir que a
solução francesa de não existência do contrato coloca o consumidor na
situação, pouco confortável, de depositário de um bem, que não deseja
e que lhe foi "imposto" por uma prática comercial agressiva, que se
está a combater. A solução alemã, por sua vez, suspende a eficácia da
aceitação, logo o próprio nascimento do contrato, usando uma figura
conhecida do direito tradicional, a manifestação de vontade sob
condição suspensiva, mas para regular a eventual "eficácia" do ainda
inexistente contrato, recorre ao princípio da abstração, instituto desco-
nhecido no Brasil, que considera os negócios reais (tradição do
produto) desvinculados do negócio obrigacional (contrato que dá
origem à obrigação de entregar o produto e pagar o preço).{189} A solução
alemã é válida, porém, quando propõe o princípio do não enriqueci-
mento sem causa para regular a devolução das prestações já executadas,
se houve revogação da aceitação inicial.
Mas qual terá sido a solução adotada pelo CDC brasileiro?
Enquanto outros países possuem leis específicas com vários
artigos para disciplinar a venda a domicílio, no Brasil o CDC, como
Código geral, só dedicou ao tema o art. 49, que é porém, complementado
por seu parágrafo único, nos seguintes termos:
"Art. 49.
"Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrepen-
dimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a
qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de
imediato, monetariamente atualizados".
Tanto no caput do art. 49, como em seu parágrafo, o CDC refere-
se à desistência do contrato, no prazo de 7 dias, a contar da assinatura
* (188) Oriana, p. 1.576.
(189) Segundo Vassili, esta é a solução da Diretiva européia;
sendo assim, o prazo
de reflexão seria um fator de eficácia do negócio e somente após este
teria
sua eficácia plena, Vassili, p. 20 e ss. (p. 367)
do contrato ou do ato de recebimento do produto ou serviço (execução
da prestação principal). Parece claro, portanto, que o sistema brasileiro
pressupõe a existência do contrato, restando apenas a discussão sobre
sua eficácia ou validade.
Quanto à eficácia podemos imaginar três hipóteses. Na primeira,
o contrato tem sua eficácia suspensa durante o prazo de reflexão, só
podendo o fornecedor exigir o pagamento findo o prazo e não ocorrido
o evento futuro e incerto da desistência do consumidor. Seria algo
análogo a uma condição suspensiva tácita, em virtude da natureza da
venda (venda door-to-door). Examinando-se o parágrafo único do art.
49, que dispõe sobre um dos efeitos do contrato, que é a prestação do
consumidor, isto é, o pagamento, verificamos que no sistema brasileiro
a venda a domicílio já está surtindo efeitos mesmo antes de findo o
prazo de reflexão e que estes fatos não devem inibir o consumidor de
exercitar o seu novo direito de arrependimento.
Mas também é possível imaginar que o contrato concluído é
imediatamente eficaz, surtindo efeitos (prestação e contraprestação) até
a ocorrência do evento futuro e incerto que resolve o vínculo contratual:
a desistência durante o prazo de reflexão de 7 dias. Seria algo análogo
a uma condição resolutiva tácita ou legal, em virtude da natureza
especial da venda. O contrato estaria perfeito e terminado, não
necessitando nova declaração de vontade para que surta todos os seus
efeitos. Se acontecer o evento previsto na condição resolutiva (a
desistência do art. 49 do CDC), se extingue o direito estabelecido no
contrato, as partes tem que devolver as prestações eventualmente
recebidas e ficam liberadas do vínculo contratual. Na redação do art.
49, porém, nada indica a existência de uma condição, de uma cláusula
que subordina os efeitos do contrato a evento futuro e incerto, apesar
das semelhanças encontradas.
Por último, podemos interpretar o art. 49 do CDC como simples-
mente instituindo, no direito brasileiro, uma nova causa de resolução
do contrato. Seria uma faculdade unilateral do consumidor de resolver
o contrato no prazo legal de reflexão, sem ter que arcar com os ônus
contratuais normais da resolução por inadimplemento (perdas e danos
etc.). O contrato firmado a domicílio seria um contrato, por lei,
resolúvel. Como se a antiga figura do direito romano, a cláusula
resolutiva tácita, incorporada ao direito alemão (§ 326 BGB), passasse
a existir no direito brasileiro. A resolução opera, então, de pleno
direito, (p. 368)
não necessitando a manifestação do Judiciário, bastando a simples
manifestação de vontade do consumidor em desistir do contrato.
Resolver-Se-ia o contrato por atuação desta cláusula resolutiva
tácita,
presente em todas as vendas a domicílio, liberando os contraentes, sem
apagar todos os efeitos produzidos com o contrato, mas operando
retroativamente para restabelecer o statu quo ante. Esta última hipótese
parece aproximar-se mais do sistema criado pelo CDC.
Certo é, que se trata de uma norma complexa, a do art. 49,
misturando várias figuras, como o arrependimento, que até então era
pré-contratual, a desistência unilateral, enquanto o direito tradicional
conhecia somente o distrato, e o prazo de reflexão, que até agora era
considerado um simples dever acessório ao contrato. Definir o âmbito,
a natureza e os reflexos deste novo direito instituído pelo CDC exigirá
da doutrina um longo caminho de discussão e aprofundamento, tarefa
para a qual pretendemos dar somente uma pequena e inicial contribui-
ção. Muitos, porém, são os aspectos a ser estudados.
Segundo dispõe o parágrafo único do art. 49, exercitado o direito
de arrependimento não deverá haver enriquecimento ilícito do forne-
cedor, em virtude de sua prática agressiva de venda. Desconstituído o
vínculo pela manifestação do consumidor, retornaram ambos os
contraentes ao status anterior, devendo o fornecedor devolver os valores
recebidos, monetariamente atualizados.
A regra do art. 49 e seu parágrafo único é, porém, omissa sobre
o que ocorrerá com o produto eventualmente entregue ao consumidor.
Certamente, pelo princípio da interdependência das prestações, será
devolvido ao fornecedor. Mas e se o produto foi danificado? E se
desapareceu, sem culpa do consumidor? Ou simplesmente, se já foi
usado pelo consumidor, pode este ainda exercitar o seu direito e
devolvê-lo?
Se o contrato nasceu, o consumidor brasileiro que receber
o
produto do vendedor de porta-em-porta é mais do que mero possuidor
do bem, ou depositário como no sistema francês, ele é possivelmente
o novo proprietário do produto, pois a tradição transferiu o domínio.
Se ele pretende fazer uso do seu novo direito de arrependimento,
no Prazo de 7 dias, deverá cuidar para que o bem não pereça e não sofra
qualquer tipo de desvalorização, devendo evitar usá-lo ou danificá-lo
(abrir o pacote, experimentar o shampoo, manusear e sujar a enciclo-
pédia etc.). Se o fizer, segundo nos parece, poderá até desistir do (p.
369)
vínculo obrigacional, liberando-se das obrigações assumidas, (por ex.:
pagamento da segunda prestação, recebimento mensal dos fascículos
da enciclopédia etc.), mas como não pode mais devolver o produto nas
condições que recebeu (volta ao status quo), terá que ressarcir o
fornecedor pela perda do produto ou pela desvalorização que o uso
causou, tudo com base no princípio do enriquecimento ilícito. Nestes
termos, é a solução do direito alemão que parece-nos adequada ao
espírito do CDC, pois pode ser de interesse do consumidor livrar-se do
vínculo contratual, mas não é justo que enriqueça sem causa. Assim,
com boa-fé resolve-se o vínculo e regula-se a volta à situação anterior,
sem que ninguém ganhe com isso. A insegurança causada pelo direito
de arrependimento instituído no art. 49 do CDC já é motivação
suficiente para que o fornecedor prefira outros métodos de contratação
do que a venda de porta-em-porta, alcançando a lei assim seu intento,
sem que se permita o enriquecimento sem causa do consumidor. A
única hipótese permitida de enriquecimento sem causa no CDC é o art.
39, III, c/c parágrafo único, o qual equipara a amostras grátis os
produtos e serviços enviados ao consumidor sem prévia solicitação. No
caso da venda a domicílio, tal hipótese está afastada se houve
manifestação de vontade do consumidor aceitando a proposta do
fornecedor, como prevê o art. 49, norma específica para o caso.
Examinando a experiência no direito comparado, verificamos que
ainda existem outras questões que devem ser solucionadas.
O primeiro problema, destacado pelo art. 2.º da lei francesa, Lei
72-1137, de 22 de dezembro de 1972, hoje consolidado nos art. 121-
18 e 125-23 do Code de la Consommation, é o da identificação do
fornecedor. A lei francesa obriga o fornecedor que utiliza o método de
vendas a domicílio a fechar o contrato por escrito, mesmo que seja no
recibo, sob pena de nulidade do vínculo. A idéia é que sem identificar
o fornecedor não é possível exercer o direito de arrependimento.
A lei alemã de 1986 vai mais longe e institui o dever, no § 2.º,
do fornecedor entregar ou enviar um formulário padrão, no qual
informa o consumidor que ele possui este direito de arrependimento e
que basta preencher o formulário e enviar pelo correio, nos 30 dias
subseqüentes à venda.{190}
* (190) Semelhante norma encontra-se hoje no art. 121-24 do Code
de la
Consommation francês. (p. 370)
No sistema do CDC, há o dever geral de informação, inclusive a
embalagem do produto deve informar a sua origem. A regra específica
é, porém, o art. 33 do CDC:
"Art. 33. Em caso de oferta ou venda por telefone ou reembolso
postal deve constar o nome do fabricante e endereço na embalagem,
publicidade e em todos os impressos utilizados na transação comercial".
Institui o art. 33, portanto, um novo dever para o fornecedor que
quer utilizar-se destas técnicas agressivas de venda. Se o fornecedor
descumprir seu novo dever os órgãos públicos, encarregados do
controle da atuação do fornecedor no mercado, podem puni-lo ad-
ministrativamente. Mesmo entidades de defesa do consumidor podem
requerer ao Poder Judiciário que estipule prazo, e mesmo multa diária,
para a adaptação do fornecedor às normas do Código. Se, porém, a
venda ao consumidor já ocorreu, não prevê expressamente o art. 33 o
caso de não haver identificação do vendedor, se o exercício do direito
de arrependimento fica ou não obstado.
Note-se que a falha na informação é um vício, segundo o art. 18
do CDC, logo toda a cadeia de fornecedores seria responsável. Se o
consumidor não pode identificar quem era o vendedor ou quem era o
seu patrão,{191} poderá reclamar mesmo do fabricante, o direito que lhe
reserva o art. 18, § 1º, II do CDC. Mas, como o direito do art. 49
localiza-se na parte contratual do Código, fica, em princípio, por uma
interpretação sistemática, restrito ao fornecedor efetivo. Se este não é
identificável, torna-se inócuo o art. 49, restando ao consumidor apenas
reclamar por vício do produto ou serviço.
Seria salutar, portanto, que se acrescentasse um parágrafo ao
art.
49 obrigando o fornecedor a identificar-se por escrito,{192} para poder
praticar este tipo de venda a domicílio, uma vez que a jurisprudência
pode considerar temerário o uso da analogia ao art. 33 para impor mais
um dever legal ao fornecedor.
* (191) Segundo dispõe o art. 34 do CDC: "O fornecedor do produto
ou serviço
é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou
representantes
autônomos".
(192) Norma semelhante encontra-se na Diretiva da Comunidade
Econômica
Européia sobre contratos negociados fora dos locais comerciais, de 1977,
segundo noticia Stiglitz, p. 33; este autor considera normas semelhantes
como uma acentuação da rigidez formal dos contratos, o que seria
necessário
para a proteção do consumidor destas práticas agressivas de vendas. (p.
371)
No sistema do CDC, o art. 39, referente às práticas comerciais
abusivas, pode acarretar para o fornecedor, além de uma sanção
administrativa, a perda dos produtos enviados ao consumidor, sem
solicitação prévia (inciso III c/c § 1.º). Esta norma, porém, não resolve
nossa hipótese, em que o consumidor já pagou e não identifica quem
foi o vendedor do produto.
O segundo problema identificado pela lei francesa é o do método
a ser utilizado pelo consumidor para validamente exercitar o seu direito
de arrependimento. A lei francesa, em seu art. 3º, hoje art. 121-25 do
Code, exige que a "carta de renúncia" seja recomendée" já a lei alemã;
considera que o formulário-padrão de "desistência" pode ser enviado
por carta normal, valendo o dia em que a carta foi postada, se dentro
do prazo de um mês (§ 2.º da HaustürWG).
No sistema do CDC, poderíamos sugerir que o consumidor
também utilizasse o correio, enviando uma carta registrada, uma "AR",
durante este prazo de 7 dias. Mas se o contrato foi firmado por telefone
ou pessoalmente, seria possível usar a mesma forma do contrato para
o distrato, restando apenas o problema de prova. A carta registrada
parece ser a melhor solução, se bem que não possa ser generalizada
para todos os casos, até porque o nível de alfabetização do brasileiro
é muito diferenciado, e exigir a forma escrita pode ser um obstáculo
para o exercício do direito.
O terceiro aspecto a ser destacado é o campo de aplicação das
leis
estrangeiras. Tanto a lei alemã, como a lei francesa aplicam-se somente
aos contratos concluídos fora do estabelecimento comercial, em virtude
de vendas de porta-em-porta, mas, mesmo assim, limitam a sua
aplicação a determinadas circunstâncias. A lei alemã, segundo dispõe
o seu § 6.º não se considera aplicável: 1) quando o cliente fecha o
contrato na condição de profissional liberal ou comerciante; 2) para
contratos de securo.{193} A lei alemã especifica ainda que o direito de
revogação da aceitação, segundo o § 1.º, alínea 2, não existe: 1) quando
o consumidor requereu a visita do fornecedor ou o início das tratativas
contratuais; 2) quando o contrato versar sobre objeto ou prestação
equivalente a até 80 marcos alemães (40 dólares americanos); 3)
* (193) Quanto à exclusão dos contratos de seguro, a doutrina
alemã já se manifesta
contrariamente, e segundo informava Teske, em fins de 1990, iniciaram-se
os estudos para uma modificação legislativa, pp. 412 e 413 e von Hippel/
Fortschritte", p. 730. (p. 372)
quando a manifestação de vontade do consumidor for feita em cartório,
frente ao Tabelião, com fé pública.
A lei francesa de 1972 excluía de seu campo de aplicação, pelo
art. 8.º os contratos que já são objeto de lei específica, assim como
as vendas de produtos de fabricação caseira, e aqueles vendidos
regularmente em feiras semanais ou através de veículos nas pequenas
cidades e a venda de automóveis novos.
No sistema brasileiro, não se mencionam exceções, mas se
realmente o cliente é um consumidor, parece-nos que a aplicação do
art. 49 ficaria afastado no caso do contrato ser daqueles de conclusão
obrigatoriamente fora do estabelecimento comercial, como os feitos por
escritura pública, pois a própria solenidade da forma já é a segurança
necessária para o consumidor; assim também, por aplicação do prin-
cípio da boa-fé, se o consumidor solicitou a visita do fornecedor em
seu domicílio ou local de trabalho. Quanto à exclusão dos chamados
contratos de bagatela, não nos parece aceitável no caso e na realidade
brasileira.
O último aspecto que queremos destacar é a dificuldade no
tratamento dos contratos de serviços. Poderá o consumidor exercer o
seu direito de arrependimento do art. 49, no caso de serviços já
executados, como poderão estes ser "devolvidos"? Ou a regra do art.
49, que menciona expressamente os "serviços", só se aplica aos
serviços ainda não executados?
Na interpretação que propomos acima, o direito de arrependimen-
to é independente da possibilidade física da volta ao status quo, o
direito é assegurado para liberar o consumidor do vínculo contratuaL
sem ônus, devendo porém, restabelecer o seu parceiro contratual, o
fornecedor, na situação que se encontrava antes da contratação. Neste
sentido, seria possível ao consumidor exercer seu direito de arrepen-
dimento, mas teria que ressarcir o fornecedor pelo serviço já prestado.
A pergunta que fica, portanto, é qual seria o interesse do consumidor
em exercer este direito nos casos de contratação de serviços prestados
a domicílio, daqueles de execução imediata. Se o consumidor não se
obrigou a mais nada do que ao pagamento do serviço, manter o vínculo
contratual lhe será de maior interesse, porque facilita a reclamação do
serviço eventualmente defeituoso ou incompleto. O caso dos serviços,
porém, deverá merecer um exame mais acurado da jurisprudência, pois
historicamente muitos dos serviços devem ser prestados a domicilio, (p.
373)
por sua própria natureza. A lei alemã{194} propõe a solução de se afastar
o direito de arrependimento, se foi o consumidor que solicitou ao
fornecedor vir até sua residência para, por exemplo, consertar o fogão,
a geladeira, pintar a casa, ou reformar o banheiro. Solução semelhante
não ofende os princípios do CDC, bem ao contrário se adapta
perfeitamente à idéia de boa-fé obrigatória de ambas as partes tanto na
fase pré-contratual como contratual.
Concluindo esta análise do novo direito de arrependimento,
instituído pelo art. 49 do CDC, é necessário reconhecer a dificuldade
de classificar esta nova faculdade entre aquelas estruturas antigas e
tradicionais, sistematizadas à época do domínio do dogma da autono-
mia da vontade. Cabe reconhecer que o art. 49 traz importante inovação
prática no direito brasileiro, e se fundamenta em razões de justiça ao
dificultar e regular a venda de porta-em-porta, com o fim de proteger
o consumidor mais vulnerável. Como diziam os autores do Projeto de
Código Civil de 1975,{195} um Código deve ser algo dinâmico, mais
operacional do que conceitual, "de modo a possibilitar a sua adaptação
às esperadas mudanças sociais, graças ao trabalho criador da
Hermenêutica, que nenhum jurista bem informado há de considerar
tarefa passiva e subordinada".

c) Vendas emocionais de time-sharing e vendas a distância - Nesta


terceira edição, é necessário aprofundar a análise do art. 49 do CDC,
incluindo dois novos tipos de venda agressiva, nos quais o direito de
arrependimento sem causa do consumidor pode e deve ser assegurado:
1) nas vendas chamadas "emocionais", como as ocorridas no Brasil nos
contratos de time-sharing ou multipropriedade; e 2) nas vendas a
distância por meios instrumentais, tão antigos como a correspondência
e o catálogo, e meios eletrônicos, novos como o teleshopping, as
compras pela internet e por e-mail.
Quanto ao primeiro tipo, parece-me efetivamente que o direito de
arrependimento do art. 49 do CDC deve ser assegurado também em
caso de vendas emocionais de time-sharing ou multipropriedade,
interpretando-se, como tem reconhecido a jurisprudência brasileira, que
tais vendas ocorrem "fora" do estabelecimento comercial normal, uma
vez que o consumidor é convidado (por telefonemas, com sorteios e
* (194) Haustür-WG, § 1.º (2).
(195) Exposição de Motivos, pp. 14 e 15. (p. 374)
premiações) a comparecer no estabelecimento comercial do vendedor
ou representante, especialmente organizado para tal, onde então, em
uma festa, coquetel ou recepção, onde se servem mesmo bebidas
alcoólicas e onde um clima de sucesso, realização e prazer é oferecido
através de vídeos, aplausos, brincadeiras e jogos, onde o consumidor
é (des)Informado sobre o contrato e o assina, assim como o seu
pagamento, garantido com a assinatura de vários boletos de cartão de
crédito, tudo em um clima "emocional" de consumo e prazer que
costuma arrefecer até mesmo advogados e juízes.
No direito comparado observa-se que as técnicas legislativas de
proteção aos consumidores em matéria de contratos de time-sharing
visam Inicialmente garantir uma nova proteção da vontade dos consu-
midores, isto é, garantir uma autonomia real da vontade do contratante
mais fraco.{196} Uma vontade protegida pelo direito, vontade liberta das
pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por outros métodos
agressivos de venda, como os convites para festas e reuniões onde
distribuem-se bebidas alcoólicas, visitas organizadas e gratuitas aos
locais de lazer, oferecimento de prêmios e jogos, visitas, telefonemas
e Contatos reiterados para fazer pressão.{197} A decisão irrefletida, não
preparada, emocional do consumidor está ligada faticamente a uma
série de perigos, vale lembrar os fenômenos atuais de superendivida-
mento, insolvência, abusos contratuais, frustração das expectativas
legítimas etc. As vendas de time-sharíng geralmente ocorrem através
de métodos agressivos de marketing e contam com a decisão irrefletida,
desinformada e emocional do consumidor.{198}
* (196) Veja por todos, Tepedino, p. 7 e ss.
(197) Veja Charbin, p. 216.
(198) Veja decisão da 1ª Turma Recursal dos Juizados, Recurso
01196885485,
Proc. 01196611964 de Porto Alegre, Rel. Juiz de Direito Wilson Carlos
Rodicz: "Time-sharing. Tempo compartilhado. Nulidade das cláusulas
abusivas. Valor da causa e competência dos juizados/JEC. 1. O valor da
causa, nesse tipo de pedido, corresponde ao bem da vida reivindicado - no
caso o valor das prestações pagas e objeto do pedido de restituição. 2.
Nulidade das cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem
exagerada (CDC 51, IV); possibilidade de denuncia do contrato a qualquer
tempo em razão do vício de manifestação da vontade, captada em circuns-
tâncias em que o descortino crítico estava prejudicado pela atmosfera
criada
pela vendedora (CDC, 46). Recurso desprovido". (p. 375)
A Diretiva européia 94/47/CE de 26 de outubro de 1994 procura
assegurar a vontade racional e refletida do consumidor através de três
instrumentos: a) em seu anexo traz uma lista detalhada das informações
e esclarecimentos que o contrato ou pré-contrato deve conter e em uma
língua conhecida pelo consumidor; b) em seu art. 5, 1, prevê um direito
de arrependimento imotivado de 10 dias a partir da assinatura do
contrato ou do pré-contrato; c) em seu art. 5, 1, prevê igualmente um
direito de arrependimento por 3 meses, caso algumas das informações
previstas no anexo não constem do contrato ou pré-contrato ou não
tenham sido convenientemente informadas ao consumidor. Caso o
fornecedor informe ao consumidor o que faltava em seu pré-contrato
ou contrato, a entrega destas informações reabrem o prazo de arrepen-
dimento de 10 dias, antes mencionado. O art. 5 da Diretiva também
proibe o pagamento antes de 10 dias e exige a tradução do instrumento
contratual em alguma língua conhecida do consumidor.{199}
O Código de Defesa do Consumidor não prevê expressamente
uma norma sobre o prazo de reflexão em caso de contratos de
multipropriedade, apenas o artigo geral do direito de reflexão de 7 dias
assegurados pelo art. 49 CDC. Na venda emocional do time-sharing,
o consumidor não reflete sua decisão, obriga-se contratualmente de
forma imediata e preenche boletos de cartões de crédito, que mais tarde
comprometem o consumidor para o futuro e o obrigam a direcionar seu
lazer de forma às vezes indesejável e por períodos que podem ser de
até 30 ou mesmo 80 anos!
A experiência demonstrou que em matéria de contratos de time-
sharing, pelo próprio poder de sedução da idéia de assegurar lazer e
descanso nos dias de hoje, mesmo em caso de contratos formalizados
e concluídos dentro dos estabelecimentos comerciais, o consumidor
tem necessidade de um prazo extra para a reflexão. Como assevera
Alberto do Amaral Júnior, assegurar somente informação correta "é
insuficiente para garantir a proteção do consumidor se não lhe é
deixado tempo necessário à formação livre e esclarecida da vontade".{200}
O tempo, aliado à informação é eficiente, não a informação em
estratégias diretas e agressivas de venda que só aumentam o desequilíbrio
e a pressão nas tratativas contratuais. Esta reflexão pode evitar o
* {199} Amtsblatt der EG, L 280/85.
(200) Amaral Jr., Comentários, p. 188. (p. 376)
superendividamento, evitar assumir obrigações indesejadas, assim como
a insolvência em vínculos não refletidos e não desejados. O tempo e
a informação são os novos instrumentos em tempos pós-modernos para
combater a agora relevante "pressão" nos métodos agressivos e emo-
cionais de venda.{201}
A lei brasileira prevê um direito de reflexão e de arrependimento
somente em caso de contratos concluídos fora do estabelecimento
comercial (art. 49 do CDC), por exemplo, como no caso de venda a
domicílio ou por telefone etc. No Brasil, se podemos de um lado
concluir pela intenção do legislador do CDC de proteger a "vontade
racional" nos contratos fora do estabelecimento comercial, é necessário
interpretar esta norma do art. 49 do CDC de forma aberta, para poder
incluir os mais variados métodos de contratação emocional em matéria
de time-sharing e o marketing direto.{202} Muitos destes métodos agres-
sivos de convencimento e estratégias de venda são executados dentro
do "pretenso" ou aparente estabelecimento comercial do organizador
de vendas ou do projeto de lazer, em festas, em reuniões e com
distribuições de pretensos prêmios gratuitos. Assim tem decidido
sabiamente a jurisprudência brasileira:
"Contrato particular de promessa de compra e venda de fração
ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utilização por
períodos anuais. Tempo compartilhado. Cláusulas abusivas. Decretação
de nulidade de ofício. Direito de arrependimento. Código de Defesa do
Consumidor. Art. 49. Desconhecimento das cláusulas relativas ao uso
do imóvel.
1. O juiz pode decretar de ofício a nulidade de cláusulas
abusivas
estipuladas em contratos abrangidos pelo Código de Defesa do Consumi-
dor. Hipótese em que houve pedido expresso dos autores.
* (201) Assim ensina a decisão da 1.ª Turma Recursal dos Juizados,
Recurso
01196885485, Proc. 01196611964 de Porto Alegre, Rel. Juiz de Direito
Wilson Carlos Rodicz: "No mérito, não há dúvida de que a captação da
vontade do adquirente encontra-se viciada. O método de venda excessiva-
mente agressivo praticado pela ré comporta as acusações feitas na inicial
de que foi vítima de pressão psicológica para aderir a um empreendimento
sem possibilidade de reflexão" (p. 1).
(202) Neste sentido Nery, anteprojeto, p. 330 e ss., frisa que o
art. 49 do CDC
é exemplificativo e deve ser interpretado extensivamente conforme seu
espírito protetor. (p. 377)
2. Para o efeito do exercício do direito de arrependimento
previsto
no art. 49 do CDC, equipara-se a contratação realizada fora do
estabelecimento comercial aquela em que o consumidor, comparecendo
em local indicado pelo fornecedor, em razão da estratégia adotada, e
submetido a forte pressão psicológica que o coloca em situação
desvantajosa, que o impede de refletir e manifestar livremente sua
vontade. Hipótese em que o consumidor, atendendo convite por
telefone, assiste à apresentação do empreendimento mediante explana-
ções e exibição de vídeo durante aproximadamente três horas, sendo
obsequiado com coquetel, assina contrato que somente lá pode ser
examinado.
3. Não obriga o consumidor o contrato celebrado, em que as
cláusulas relativas ao uso do imóvel adquirido pelo sistema de tempo
compartilhado constam de Regulamento que somente lhe foi entregue
depois da assinatura do contrato. Recurso desprovido".{203}
As novas normas de proteção ao consumidor, se querem ser
efetivas em matéria de contratos de time-sharing, devem assegurar o
direito de arrependimento em determinado lapso de tempo aos consu-
midores, pois só assim combateremos de forma eficaz a venda
emocional e os métodos agressivos de marketing usados pelos forne-
cedores de time-sharing e poderemos alcançar uma vontade realmente
refletida, vontade "racional" e legitimadora do consumidor destes
serviços. A boa-fé assim concretizada significa transparência obriga-
tória em relação ao parceiro contratual, um respeito obrigatório aos
normais interesses do outro contratante, uma ação positiva do parceiro
contratual mais forte para permitir ao parceiro contratual mais fraco as
condições necessárias para a formação de uma "vontade racional".
Assim compreendeu a jurisprudência brasileira:
"Contrato de multipropriedade. Promessa de compra e venda de
fração ideal 1/52 de unidade a ser construída em condomínio. Utiliza-
ção por períodos anuais. Direito de arrependimento. Código de Defesa
do Consumidor. Art. 49. Prática comercial agressiva.
* (203) Acórdão de 10 de setembro de 1996, 9.ª Câmara Tribunal de
Alçada do
Rio Grande do Sul/TARGS, Rela. Maria Isabel de Azevedo Souza, n.
196115299, publicado na íntegra na Revista de Direito do
Consumidor, v.
22, p. 239-243. (p. 378)
1. O direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC tem
por escopo proteger o consumidor da prática comercial agressiva que
o impede de refletir e manifestar livremente sua vontade.
2. Conquanto celebrado na sede do fornecedor, é de se assegurar
ao consumidor o direito de arrependimento também aos contratos, cuja
formulação foi antecedida de prática comercial agressiva que o coloca
em situação de desequilíbrio que não lhe permite refletir. Hipótese em
que a oferta é feita em ambiente que mais aparenta uma reunião social
durante a qual o consumidor é submetido a forte pressão psicológica
que enfraquece seu poder de avaliação das condições e conveniência
do negócio. Recurso improvido".{204}
Na Diretiva européia este direito de arrependimento é de dez dias
(art. 5, 1, primeira hipótese) e pode alcançar até mesmo três meses em
caso de falha na informação ao consumidor ou na redação dos contratos
de adesão (artigo 5, 1, segunda hipótese).{205} O prazo de dez dias
parece
um melhor prazo do que os sete dias assegurados pelo Art. 49 do CDC.
Certo é que a atuação do Ministério Público no controle abstrato dos
contratos de adesão tem assegurado que este prazo de sete dias seja
informado ao consumidor e o arrependimento imotivado do consumi-
dor dos contratos de time-sharing seja permitido. O resultado foi
excelente, pois somente a imposição deste prazo de reflexão e o
exercício reiterado do direito de arrependimento (imotivado) do con-
sumidor podem tornar o uso dos métodos de venda emocional de
contratos de time-sharing obsoleto. Isto é, mesmo levado pela emoção,
pode o consumidor refletir melhor em sua casa, informar-se melhor e
decidir com calma, se deseja manter ou não a obrigação assumida no
impulso e na pressão das reuniões de venda, tornando sem utilidade
a venda agressiva ou emocional.
Necessária para a efetividade do novo direito de reflexão e
arrependimento é a vinculação entre o contrato principal de time-
* (204) Acórdão de 17 de dezembro de 1996, 9.ª Câmara TARGS, Rela.
Maria
Isabel de Azevedo Souza, n. 196233506. Veja também decisão na Ap.
Civ.
196.182.760 de 19 de novembro de 1996 da mesma relatora, publicada na
íntegra na Revista de Direito do Consumidor, 21, p. 185-188. Veja ainda
sobre time-sharing acórdãos do TARS in Revista de Direito do Consumidor,
v. 22, p. 234 e ss., p. 237 e ss., p. 239 e ss. e p. 243 e ss.
(205) Amtsblatt der Eg L 280/85, 29.10.94. (p. 379)
sharing, que se termina sem causa, e as cobranças já assinadas de débito
na empresa de cartão de crédito do consumidor. A vinculação causal
entre estes dois negócios principal e acessório deve ser reconhecida
pelo Judiciário brasileiro e determinado o bloqueio também da cobran-
ça nos cartões de crédito. O CDC estabelece nos arts. 18 e 20 uma
responsabilidade solidária da cadeia de fornecedores pelo bom cumpri-
mento da obrigação contratual. Esta solidariedade presumida de toda
a cadeia de fornecedores poderá ser usada para requerer a suspensão
do pagamento dos boletos de cartões de crédito usados para garantir
o pagamento futuro do time-sharing, caso o consumidor queira rescin-
dir ou o inadimplemento por parte dos fornecedores esteja sendo
discutido em juízo.
Quanto ao segundo tema, trata-se das vendas ou contratações a
distância, conhecidas como vendas por catálogo ou por correspondên-
cia, que hoje se servem da ajuda de meios de telecomunicação, como
o teleshopping, com contratação por televisão, por telefone e mesmo
por internet, por e-mail etc. O art. 49 do CDC menciona expressamente
estas vendas, todas direta ou indiretamente realizadas através de
telefones, como incluídas em seu campo de aplicação.
Sobre este último método de venda é necessário frisar que, em 20
de maio de 1997, foi aprovada uma norma européia justamente sobre
o assunto. A Diretiva 97/7/CE sobre vendas a distância com marketing
direto{206} pretende harmonizar internamente as condições e garantias da
compra ou fornecimento de serviços e produtos a distância através de
técnicas de comunicação para os consumidores no mercado europeu.{207}
Trata-se de uma Diretiva mínima e esPecífica, isto é, normas
obrigatórias para os governos dos 15 países-membros da União
Européia, que deve transformá-la em lei ou em norma interna, realizar
seu objetivo material, incorporando este novo patamar mínimo de
proteção e garantia ao direito interno, sempre que os negócios envolvam
consumidores. A Diretiva 97/7, ao contrário das históricas Diretivas
sobre fato do produto e vendas fora do estabelecimento comercial e
* (206) Richtlinie 97/7/EG über den Verbraucherschutz bei
Vertragsabschlüssen im
Fernabsatz, 20.5.1997, in Amtsblatt der EG, 4.6.97, Nr. L 144/19-28.
(207) Sobre a referida Diretiva veja nossos comentários na
Revista de Direito do
Consumidor, v. 24 e o texto de Marco Antonio Schmitt, na Revista de
Direito do Consumidor, v. 25, com texto da Diretiva em português. (p.
380)
publicidade enganosa, possui um reduzido campo de aplicação (art. 1,
Diretiva 97/7). Suas normas são aplicáveis somente nos negócios entre
um profissional, fornecedor, e um consumidor, definido como tal na
Diretiva (art. 2, alínea 2), como qualquer pessoa física, que conclua os
contratos objeto da Diretiva sem objetivo profissional ou fora de sua
atividade profissional.{208}
A elaboração de Diretivas específicas para proteção dos con-
sumidores, excluindo-se os negócios concluídos entre profissionais e
os negócios concluídos por pessoas jurídicas, deve-se, em parte, ao
Tratado de Maastricht, que transferiu para a União Européia expressa
competência para legislar em matéria de defesa do consumidor,
mesmo que subsidiariamente.{209} A Comissão da Comunidade tem
utilizado esta autorização com sabedoria e, como no caso da Diretiva
sobre cláusulas abusivas, legislado de forma mínima, permitindo que
os países mantenham legislações mais protetivas,{210} harmonizando e
não unificando as legislações, ao mesmo tempo em que impede as
distorções na concorrência e os danos aos consumidores no mercado
europeu.{211}
A Diretiva 97/7/CE foi precedida pela Recomendação da Comis-
são 92/295/CEE, de 7 de abril de 1992, sobre um código de conduta
para a proteção dos consumidores em caso de vendas a distância entre
ausentes por telefone, televisão ou através de computadores.{212} Estas
novas tecnologias de comunicação, aliadas ao chamado marketing
direto ou agressivo, acrescentaram à vulnerabilidade técnica e jurídica
do consumidor novos problemas, como a crescente internacionalidade
* (208) No original: "2. "Verbraucher" jede natürliche Person, die
beim AbschluB von
Verträgen in Sinne dieser Richtlinie zu Zwecken handelt, die nicht ihrer
gewerblichen oder beruflichen Tätigkeit zugerechnet werden können;" (in
Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21).
(209) Veja como base legal: art. 100ª c/c art. 129a e art. 3,
letras B e S, todos
do Tratado de Roma CEE, modificado pelo Tratado de Maastricht.
(210) Veja art. 14 da Diretiva 97/7, in Amtsblatt der EG, Nr. L
144/24.
(211) Veja os nossos comentários: União Européia legisla sobre
cláusulas abusivas:
Um exemplo para o Mercosul, acompanhados do Texto na íntegra da
Diretiva 93/13/CEE do Conselho das Comunidades Européias de 5 de abril
de 1993, in Revista de Direito do Consumidor, v. 21, p. 300 a 310.
(212) Considerando Nr. 18 da Richtlinie 97/7/EG, in Amtsblatt der
EG, Nr. L
144/20. (p. 381)
de relações, antes simples e nacionais, como a compra de livros ou de
utilidades domésticas.
Efetivamente, e também no Brasil, parte da oferta de produtos e
serviços é dirigida aos consumidores passivos, assim entendido aqueles
consumidores que se encontram em seu mercado nacional e, sem
necessitar deslocar-se fisicamente de seu país, que recebem a oferta ou
publicidade, oriunda de empresas e fornecedores de outros países, nem
sempre com filiais no mercado de comercialização, através de novos
meios de comunicação. É o chamado marketing direto, com telefone-
mas, oferecimento de produtos através da televisão (teleshopping), de
computadores (home pages, e-mail, catálogos informatizados etc.).
Estas novas técnicas permitem que o consumidor sem sair de sua casa
contrate internacionalmente, ainda mais na Europa atual, com plena
liberdade de circulação de produtos e de crescente liberdade de
estabelecimento e de prestação de serviços. Na América Latina, com
a abertura da economia, Liberalização das importações e massificação
dos computadores, o mercado informatizado tende a aumentar, sem
falar nas vendas antigas por catálogo e correspondência, além do novo
teleshopping, já comuns entre nós.{213}
A União Européia concluiu que a introdução de tais técnicas de
venda e de comunicação (Fernkommunikationstechnik) não deveria
diminuir as garantias e a informação fornecida ao consumidor passivo,
motivo pelo qual intervém harmonizando as legislações de forma a
assegurar um patamar mínimo de respeito a todos os consumidores que
utilizarem destas facilidades no mercado europeu.{214} Este é um exemplo
a ser seguido, inclusive pelo Mercosul. O Anexo 1 da Diretiva traz uma
lista de treze métodos de comercialização a distância englobados pela
Diretiva, entre os quais se encontram os tradicionais métodos do envio
de prospectos, com cartão-resposta, o envio de catálogos para compraS,
assim como os novos métodos, como a venda por telefone, com ou sem
pessoa de contato, por videotexto, televisão, computadores, e-mail,
telefax, e teleshopping.{215}
No texto da Diretiva destacam-se os arts. 2 e 3 dedicados a
estabelecer o campo de aplicação da diretiva, trazendo o art. 2 as
* (213) Veja sobre estes métodos mais tradicionais, Amaral Jr., p.
208 e ss.
(214) Veja Considerandos Nr. 9 a 14, in Amtsblatt der EG, Nr. L
144/19 e 20.
(215) Anhang I, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/26. (p. 382)
definições de contráto concluído com utilização de métodos de
comunicação a distância (alínea 1), de consumidor (alínea 2), de
fornecedor de produtos e serviços (alínea 3), de técnica de comu-
nicação a distância, definida como aquela que permite a contratação
sem a presença física simultânea de ambos os contratantes ou seus
representantes{216} (alínea 4) e de organizador de técnicas de comu-
nicação a distância, assim considerado o terceiro profissional, pessoa
física ou jurídica, de direito público ou privado, cuja atividade
profissional consiste em colocar à disposição dos fornecedores uma
ou várias técnicas de comunicação (e/ou contratação) a distância
(alínea 5).{217} Excluídos do campo de aplicação desta Diretiva estão
alguns contratos e serviços mencionados no Anexo II, que envolvem
serviços bancários, seguros e papéis de crédito, regulados por
Diretivas específicas.{218}
No mérito, assegura o art. 4 da Diretiva 97/7/CE um extenso
direito de informação do consumidor, exigindo que o consumidor seja
informado da identidade e do endereço do fornecedor, das caracte-
rísticas básicas do serviço ou produto oferecido, do seu preço e dos
impostos , assim como dos custos de envio e de custos do pagamento
ou taxas extras necessárias à prestação (por exemplo, taxa de
embalagem, empacotamento especial, postagem etc.).{219} O consumidor
deverá ser também informado sobre o custo da comunicação ou da
utilização do método de comunicação a distância, se diferente da tarifa
básica, sobre o seu direito de arrependimento, sobre o prazo de
validade da oferta ou do preço especial, assim como sobre o prazo
de duração mínimo do contrato e a forma de sua renovação, o prazo
de entrega do bem ou execução do serviço, os detalhes da forma
* (216) A Diretiva evita a utilização da expressão "contrato entre
ausentes" e prefere
mencionar expressamente que "não simultânea presença física corpórea dos
contratantes" ("ohne gleichzeitige körperliche Anwensenheit der
Vertragsparteien") e traz em seu Anexo 1 uma lista exemplificativa destas
atividades, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21, e Anexo 1, in Amtsblatt
der
EG, Nr. L 144/26.
(217) Veja art. 2, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/21.
(218) São mencionadas especificamente as Diretivas 93/22/CEE,
89/646/CEE,
73/239/CEE, 79/267/CEE, 64/225/CEE, 92/49/CEE, 92/96/CEE, in Amtsblatt
der EG, Nr. L 144/27.
(219) Veja art. 4, alínea 1, letras a a d, in Amtsblatt der EG,
Nr. L 144/22. (p. 383)
da prestação e a regularidade com que estes serviços serão presta-
dos.{220} O art. 4 exige ainda que a intenção comercial do contato e
das informações prestadas seja expressa, assim como que os países
apliquem as normas nacionais de proteção dos incapazes, procurando
adaptar este tipo de oferta "eletrônica" às exigências da segurança
do tráfico e da boa-fé.{221} Segundo o art. 5 estas informações devem
ainda ser confirmadas por escrito ou, se acessível ao consumidor, por
e-mail durante o período em que se realizarem as prestações. Caso
a prestação seja única e imediata, deverá o consumidor mesmo assim
ser informado do endereço do fornecedor, prevalecendo o direito de
arrependimento.
A importância deste novo dever de informar imposto ao
fornecedor de produtos e serviços a distância será dada pela norma
do art. 6, pois se o prazo normal e geral para que o consumidor
arrependa-se sem causa é de sete dias úteis a contar da contratação
dos serviços ou entrega da coisa, em caso de descumprimento de
qualquer dos novos deveres de informação do art. 5, o prazo dilata-
se para três meses, podendo o prazo de sete dias recomeçar no
momento em que a informação da identidade do fornecedor chegou
ao consumidor. Em caso de exercício do direito de arrependimento
deve o fornecedor devolver (sem cobrança de qualquer valor ou taxa)
todos os valores recebidos e o consumidor suportar somente os custos
da devolução física do produto ou serviço ao fornecedor. A regra
do art. 6 da Diretiva é, naturalmente, bastante complexa, pois
contempla os vários tipos de contratação a distância. os vários tipos
de serviços, mesmo os de prestação única, excluindo apenas a
possibilidade de arrependimento sem causa somente nos contratos
envolvendo bolsa de valores, fornecimento de software e gravações
de vídeo e áudio (se o selo de fechamento for retirado pelo
consumidor), assinaturas de jornais e revistas e contratos envolvendo
jogos, loterias e sorteios (art. 6, alínea 3). A ratio desta norma
merece,
porém, um destaque especial, pois exige uma autonomia de vontade
qualificada, diríamos, "racional" para vincular o consumidor de forma
definitiva, aumentando o risco profissional sempre que o fornecedor
não informar corretamente. Em uma visão pós-moderna, a comuni-
cação legitima o consenso e materializa-se, criando uma espécie de
* (220) Veja art. 4, alínea 1, letras e a i, in Amtsblatt der EG,
Nr. L 144/22.
(221) Veja art. 4, alíneas 2 e 3, in Amtsblatt der EG.Nr. L
144/22. (p. 384)
formalidade informativa que, se não cumprida, acaba por aumentar
os riscos do fornecedor de ver seu esforço de marketing frustrado
com o arrependimento (mesmo após meses...) do Consumidor. Ainda
mencione-se que o art. 9 da Diretiva proibe o envio, sem prévia
solicitação, de produtos ou fornecimento de serviço, se um pagamento
é solicitado ou cobrado, considerando que o silêncio ou omissão do
consumidor não deve ser considerado como aceitação tácita.
Outra importante novidade da Diretiva é a expressa menção, no
art. 6, alínea 4, da Diretiva, que o financiamento (por cartão de crédito
ou através de compra a prestações) conexo ou concluído em virtude
de uma contratação a distância também dissolve-se, sem custos para
o consumidor, quando este exerce regularmente seu direito de arrepen-
dimento. A norma deixa para os Estados a forma de realizar esta
"dissolução" (Auflössung) do contrato secundário (financiamento) em
virtude da extinção do contrato principal (contrato a distância). Esta
norma deve ser saudada por todos da família continental européia,
como mais do que salutar, uma vez que nos contratos concluídos
através da Internet e por e-mail a forma de pagamento mais usada é
o cartão de crédito. A norma do art. 6, alínea 4, da Diretiva conecta
expressamente esta relação triangular de consumo e obriga a empresa
de cartão de crédito a desconsiderar a primeira ordem de cobrança ou
desconto, em virtude do exercício do direito de arrependimento por
parte do consumidor, seu cliente.
A preocupação com esta forma de pagamento por cartão é tanta,
que o art. 8 da Diretiva prevê as sanções em caso de má ou errônea
utilização do cartão de crédito, cobrança errada, falsificação ou falsi-
dade e a devolução para o consumidor da quantia paga, descontada ou
cobrada.{222} Na jurisprudência brasileira, identifica-se ainda alguma
dificuldade de conectar estes negócios acessórios de consumo com os
negócios principais. Este formalismo de pensamento, em épocas de
Pós-modernidade, pode resultar em injustiças materiais sérias.
Certo de que o CDC brasileiro também foi tímido neste aspecto,
Poderia existir uma norma explícita sobre o tema, vinculando os
contratos, mas aqui o recurso a tradicional visão causal de nossos
negócios e a regra de que o acessório segue o principal poderiam evitar
que dívidas (monstruosas, como no caso do time-sharing) fossem
* (222) Veja art. 8, in Amtsblatt der EG, Nr. L 144/23. (p. 385)
cobradas apesar de rescindido o contrato principal de consumo ou de
qualquer maneira frustrado o vínculo. A pluralidade aqui é de contratos,
mas também de sujeitos. Relembre-se que o CDC estabelece nos seus
arts. 18 e 20 uma responsabilidade solidária da cadeia de fornecedores
pelo bom cumprimento da obrigação contratual. Esta solidariedade
presumida de toda a cadeia de fornecedores poderá ser usada para
requerer a suspensão do pagamento dos boletos de cartões de crédito
usados para garantir o pagamento futuro do contrato, caso o consumi-
dor queira rescindi-lo, ou no caso do inadimplemento por parte dos
fornecedores esteja sendo discutido em juízo.
Tendo em vista nova garantia legal de prestação de serviços
adequados e da qualidade, que o CDC introduz, por norma de ordem
pública, em seus arts. 24 e 25, garantia esta mínima e que não poderá
ser excluída por cláusulas contratuais, as normas do CDC acabam por
atingir toda a cadeia de fornecedores envolvida, direta ou indiretamente
na satisfação das expectativas legítimas contratuais dos consumidores.
Como mencionamos anteriormente, o CDC impõe uma nova proteção
da confiança despertada no grupo de consumidores pela atuação dos
fornecedores, ao forçar os que estejam envolvidos direta ou indireta-
mente com contratos a distância (que necessitam do pagamento por
cartões) que cumpram com as informações prestadas e as promessas
feitas por seus vendedores, mesmo que autônomos, e representantes.
O art. 34 do CDC brasileiro chega a estabelecer uma solidariedade entre
o fornecedor, que contratou com o consumidor, e seus vendedores,
mesmo que autônomos, quanto mais em contratos vinculados ou
acessórios como estes.
Mencione-se ainda também que, se os pagamentos são feitos por
cartão de crédito, dispõe o fornecedor do número do cartão do consumi-
dor e pode - pelas técnicas atuais das empresas administradoras de
cartões - usá-lo, seja para renovações contratuais forçadas, seja para
outras cobranças sem causa, como ameaçam alguns fornecedores infe-
lizmente no Brasil. Este é um novo perigo para o consumidor, ainda mais
nas compras por Internet, que pode se tornar cativo daquele que uma vez
lhe forneceu algo, de forma que uma vez assinada uma revista, uma
televisão a cabo etc., não mais consiga se desvincular contratualmente,
como temos observado. A técnica do pagamento por cartões facilita a
vida dos consumidores, mas deve interessar ao direito, que necessaria-
mente deve adaptar-se a este fenômeno econômico e regulá-lo. (p. 386)
Neste caso, é importantíssima a atuação da jurisprudência brasi-
leira, primeiro aceitando que tais causas sejam decididas no Juizado
Especial de Pequenas Causas, pois, mesmo se causas de consumo
envolvem elementos de estraneidade e normas de direito internacional
privado, encontram ali sua melhor solução, se não há complexidade de
prova.{223} Se a prova é simples e o valor da causa reduzido, parece-me
que os Juizados encontram base em sua própria legislação para atuar
e resolver de forma rápida e eficiente o problema do consumidor. Em
segundo lugar, a atuação da jurisprudência brasileira é importante ao
estabelecer a vinculação dos boletos assinados (em branco) ou pré-
assinados (no início da relação de consumo) com o desenrolar da
relação principal de consumo, ou se estará permitindo aos fornecedores
cobrar sem prestar. O recurso ao direito tradicional, como à exceção
de contrato não cumprido, e acessoriedade dos negócios deveria evitar
que estas cobranças sem causa ocorressem ainda com tanta freqüência
no mercado brasileiro.
Por fim, mencione-se uma falha na norma do art. 49 do CDC.{224}
A referida norma do CDC não engloba um prazo de reflexão em caso
de contratos envolvendo crédito. De acordo com o mestre françês Jean
Calais-Auloy, o crédito faz nascer dois perigos para o consumidor que
não reflete sua decisão: leva a compras desnecessárias e compromete
o consumidor para o futuro.{225} A experiência demonstrou que mesmo
em caso de contratos formalizados e concluídos dentro dos estabele-
cimentos comerciais, como normalmente o são os contratos de crédito,
o consumidor tem necessidade de um prazo extra para a reflexão.{226}
Esta reflexão pode evitar o superendividamento, as compras inúteis, a
insolvência e inúmeras violações contratuais, em vínculos não refleti-
dos e não desejados. O direito alemão conhece desde 1974 um
* (223) Veja decisões citadas anteriormente e Processo 0159709616-
2 JEC/RS,
publicado na íntegra na Revista de Direito do Consumidor, v. 25.
(224) Concorda com a crítica Lopes, in R. Inf. Legisl. 129, p.
113.
(225) Calais-Auloy, Les cinq réformes, p. 20. No original, "Le
crédit fait peser un
double danger sur le consommateur qui ne réfléchit pas: il pousse à des
achats mutiles et il engage pour l’avenir".
(226) Note-se que as recentes Diretivas européias (87/102/CEE e
90/88/CEE)
sobre o tema não mais generalizaram o direito de reflexão, veja ABI. Nr.
L 42,S.48 e ABI. Nr. L 61.S.14 EWG, reproduzido in: Hommelhof, P./
Jayme, E., p. 134 e ss. (p. 387)
semelhante prazo de reflexão de sete dias em caso de contratos de
crédito ao consumo (antigo § 6 da Abzahlungsgesetz introduzido em
15.05.74 e atual § 7 da Verbraucherkreditgesetz, de 17.12.90). Este
prazo de reflexão é considerado como o instrumento principal de
proteção do consumidor,{227} com seu caráter preventivo e pedagógico,
mesmo se as estatísticas demonstram que a utilização deste direito não
é tão freqüente quanto se imagina.{228}
* (227) Assim Bülow, p. 127 a tendência em direito comparado é
garantir estes
direitos de reflexão não somente em caso de venda a domícilio, mas também
em casO de contratos "estacionários", como os contratos de crédito e de
seguros. Veja também Teske, in NJW 91, p. 2.793.
(228) De acordO com as estatísticas alemãs o arrependimento
depende do tipo de
contrato e pode variar entre 0,5% a 5% dos contratos, veja Scholz, p.
128. (p. 388)

4. PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR QUANDO DA EXECUÇÃO DO CONTRATO

SUMARIO: 1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual


-
1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral - 1.2 Proibição de
cláusulas abusivas: a) Características gerais das cláusulas abusivas; b)
Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas; b.1 Lista única de
cláusulas abusivas; b.2 Autorização excepcional de modificação de
cláusulas; c) As cláusulas consideradas abusivas; c.1 A lista do art. 51;
c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51; c.3 As cláusulas identificadas
pela jurisprudência - 1.3 Controle judicial dos contratos de consumo:
a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos; b) Controle
concreto e em abstrato; c) Papel do Ministério Público e das entidades
de proteção ao consumidor - 1.4 Novas linhas jurisprudenciais de
controle do sinalagma contratual e de recurso à ineficácia de cláusulas:
a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou destacadas
corretamente; b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo
e correção monetária; c) A tendência de controle da novação contratual
e do equilíbrio - 2. Princípio da confiança - 2.1 Novo regime para os
vícios do produto: a) Vícios de qualidade e vícios por inadequação; b)
Vícios de qualidade por falha na informação; c) Vícios de quantidade
- 2.2 Novo regime para os vícios do serviço: a) vícios de qualidade dos
serviços; b) Vícios nos serviços de reparação; c) Vícios de informação
- 2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço: a) Noções
gerais; b) Garantia legal e novo prazo decadencíal; c) Relação da
garantia contratual com a garantia legal - 2.4 Garantia legal de
segurança do produto ou do serviço (Responsabilidade extracontratual
do fornecedor): a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos; b)
Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço - (A
responsabilidade do comerciante); c) Direito de regresso - 2.5 Inexe-
cução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas - 2.6 Inexe-
cução contratual pelo fornecedor e desconsideração da personalidade
da pessoa jurídica: a) Noções gerais; b) A desconsideração da perso-
nalidade da pessoa jurídica. (p. 389)
Como afirmamos anteriormente, a proteção dos interesses e
expectativas dos consumidores acompanhará o transcorrer das presta-
ções contratuais, a execução do contrato, o cumprimento dos deveres
principais e dos deveres acessórios,{1} instituindo inclusive uma
proteção
pós-contratual, como a obrigação de continuar a produzir peças de
reposição, de manutenção técnica dos produtos, de prestar informações
sobre as novas descobertas em relação à periculosidade do produto.{2}
Para proteger a confiança do consumidor, instituíram-se novas garantias
legais de adequação do produto, de segurança e fala-se mesmo em
garantia da durabilidade.{3} Para proteger o equilíbrio contratual, a
eqüidade de distribuição de direitos e deveres contratuais, serão as
cláusulas abusivas afastadas por normas imperativas.
Sistematizaremos a nossa análise com a ajuda de dois novos
princípios básicos introduzidos pelo CDC em nosso ordenamento
jurídico, que denominaremos aqui de Princípio da Eqüidade (Equilí-
brio) Contratual e Princípio da Proteção da Confiança, das legítimas
expectativas criadas pelo vínculo.
Neste ponto da análise queremos frisar que, apesar dos vetos
presidenciais, o CDC não instituiu somente um novo controle formal dos
contratos de consumo, controle da manifestação da vontade livre e
refletida, mas institui também um controle do conteúdo dos contratos de
consumo, controle da eqüidade de suas cláusulas de suas prestações e
contraprestaçÕes, dos direitos e deveres dele resultantes, controle que
será exercido pelo Poder Judiciário, com a ajuda do Ministério Público
e das Entidades de Proteção ao Consumidor, e que tem se mostrado
eficaz.

1. Princípio básico da eqüidade (equilíbrio) contratual

Note-se que, concluído o contrato entre o fornecedor e o consu-


midor, quando o pacto deve surtir seus efeitos, deve ser executado pelas
* (1) Segundo Bourgoignie/"Clauses", p. 512, a proteção dos
consumidores deve
ser a garantia contra todas as manifestações abusivas do desequilíbrio
econômico, técnico e fático que caracteriza as relações entre estes e os
fornecedores.
(2) Veja, sobre a necessidade de proteção pós-contratual do
consumidor,
Ferreira de Almeida, pp. 28 e ss.
(3) Assim Benjamin/Comentários, p. 33. (p. 390)
partes, impõe a nova Lei o respeito a um novo princípio norteador da
ação das partes, é o Princípio da Eqüidade Contratual, do equilíbrio
de direitos e deveres nos contratos, para alcançar a justiça contratual.
Assim, institui o CDC normas imperativas, as quais proibem a
utilização de qualquer cláusula abusiva, definidas como as que asse-
gurem vantagens unilaterais ou exageradas para o fornecedor de bens
e serviços, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade (veja
o art. 51, IV do CDC). O Poder Judiciário declarará a nulidade absoluta
destas cláusulas, a pedido do consumidor, de suas entidades de
proteção, do Ministério Público e mesmo, incidentalmente, ex officio.
A vontade das partes manifestada livremente no contrato não é mais
o fator decisivo para o Direito, pois as normas do Código instituem
novos valores superiores como o equilíbrio e a boa-fé nas relações de
consumo. Formado o vínculo contratual de consumo, o novo direito dos
contratos opta por proteger não só a vontade das partes, mas também
os legítimos interesses e expectativas dos consumidores. O princípio
da eqüidade, do equilíbrio contratual é cogente; a lei brasileira, como
veremos, não exige que a cláusula abusiva tenha sido incluída no
contrato por "abuso do poderio econômico" do fornecedor, como exige
a lei francesa,{4} ao contrário, o CDC sanciona e afasta apenas o
resultado, o desequilíbrio, não exige um ato reprovável do fornecedor;
a cláusula pode ter sido aceita conscientemente pelo consumidor, mas
se traz vantagem excessiva para o fornecedor, se é abusiva, o resultado
é contrário à ordem pública, contrária às novas normas de ordem
pública de proteção do CDC e a autonomia de vontade não prevalecerá.

1.1 Interpretação pró-consumidor. Visão geral

O primeiro instrumento para assegurar a eqüidade, a justiça


contratual, mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em
massa, é a interpretação judicial do contrato em seu favor. Inspirado
no art. 1.370 do Código Civil Italiano de 1942, o CDC, em seu art. 47,
institui como princípio geral a interpretação pró-consumidor das
cláusulas contratuais.
* (4) A lei francesa, segundo ensina Carmet, p. 16, para
caracterizar uma cláusula
como abusiva exige a cumulação de três circunstâncias: 1) presente em um
contrato entre profissional e consumidor, 2) imposta por abuso do poder
econômico, 3) que assegure vantagem excessiva. (p. 391)
Segundo a regra tradicional do art. 85 do Código Civil, nas
declarações de vontade dever-se-ia "atender mais à sua intenção que
ao sentido literal de sua linguagem". portanto, sob o pretexto de
"procurar" a vontade "real",{5} interna do aderente ao contrato, a
jurisprudência brasileira foi evoluindo no sentido de interpretar cada
vez mais positivamente para o consumidor as cláusulas dos contratos
de adesão, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato.{6}
A evolução se deu principalmente quanto aos contratos de
seguro. Nesse sentido, basilar a decisão do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, Quinta Câmara, que afirmou ser possível
interpretar cláusula geral de negócio, presente em contrato de seguro,
quando omisso o contrato sobre hipótese ocorrida (no caso de
suicídio), a favor da beneficiária de seguro.{7} Em verdade, tratando-
se de contratos de seguro a jurisprudência brasileira, por vezes, chegou
mesmo a desconsiderar algumas cláusulas do contrato, sem base legal,
mas recorrendo a ficção de que não teria havido consenso sobre
aquelas. Exemplo desta postura, pode ser encontrada na decisão, de
1976, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que ao discutir a
previsão de exclusão do prêmio, asseverou: "O seguro de vida em
grupo é contrato de adesão, em que o aderente não toma conhecimento
dos dizeres impressos, mais ou menos inúteis; é de qualquer modo
fraca a prova de que a parte tomara ciência do seu conteúdo. A falar-
se em presunção, mais curial é que milite ela a favor de quem mais
perde que ganha e não quem mais ganha que perde".{8} Esta tendência
de exigir o consentimento expresso do consumidor para algumas
cláusulas, como veremos, tem origem na doutrina italiana e em seu
Código Civil de 1942, mas permitiu que a doutrina brasileira
desenvolvesse a regra de que a cláusula escrita à mão ou adicionada
a pedido pelo consumidor teria prevalência em relação àquela
impressa.{9}
* (5) Veja RT370/310.
(6) Veja RT612/163.
(7) Apelação Cível 588018648, julgamento em 3 de abril de 1988,
TJRGS, 5.ª
CC, publicado na Revista de Jurisprudência do TJRS 129, p. 410, veja
igualmente a Súmula 105 do STF.
(8) Apelação cível 89.077, TJRJ, publicado na RT 487/181.
(9) Sobre interpretação dos contratos, no sistema tradicional,
veja Miranda, pp.
169 e ss. (p. 392)
O Projeto de Código Civil{10} prevê, em seu art. 423, o recurso a
interpretação mais favorável ao aderente (interpretação contra
proferentem). O art. 47 do CDC representa, porém, uma evolução em
relação a essa norma e à do art. 85 do CCB, pois beneficiará a todos
os consumidores, sendo que agora a vontade interna, a intenção não
declarada, nem sempre prevalecerá. O direito opta por proteger o
consumidor como parte contratual mais débil, a proteger suas expec-
tativas legítimas, nascidas da confiança no vínculo contratual e na
proteção do direito. Assim, a vontade declarada ganha em importância
(nova noção de oferta), assim como a boa-fé das partes.
Se a interpretação contra proferentem já era conhecida e
utilizada
no direito brasileiro, é necessário frisar que, após o advento do CDC,
a interpretação dos contratos de consumo apresenta um outro elemento
diferenciador. O intérprete do contrato de consumo deve necessaria-
mente observar não só a regra do art. 47 do CDC, mas todas as normas
do Código que dispõem (e incluem) novos direitos e deveres para o
consumidor e para o fornecedor. Em outras palavras, o conteúdo do
contrato a interpretar não é somente aquele "posto" em cláusulas pré-
redigidas unilateralmente pelo fornecedor, mas também todo o contexto
anterior que constitui a oferta, isto é, a publicidade veiculada, os
prospectos distribuídos, as informações prestadas ao consumidor, as
práticas comerciais exercidas, tais como a venda casada, a oferta de
prêmios ou brindes especiais para incitar a manifestação de vontade
positiva do consumidor etc.{11}
* (10) Projeto de Lei 634-B de 1975, art. 423.
(11) Neste sentido abundante jurisprudência. Veja sobre
prevalência da veiculação
pela imprensa de plano de saúde "para aidéticos", TJSP Ap. Civ. 240.793-
2 , Rel. Des. Marrei Neto, j. 25.11.94; também a decisão do Juiz Roberto
de Abreu e Silva, 10.ª Vara Cível , Rio de Janeiro, que incluiu o
tratamento
a portadores do vírus da Aids, mesmo havendo cláusula excluindo o
tratamento de "epidemias", tendo em vista as informações prestadas pelos
vendedores e promotores de vendas, assim como pela publicidade veicu-
lada, que modificaram o conteúdo contratual, in Direito do Consumidor,
vol. 16, p. 202 e ss. Veja também decisões sobre o inadimplemento da
empresa OMINT no tratamento de paciente de Aids, in RT 721/113 e RT
719/123. No acórdão de 26.6.95 da 10.ª Câmara do TJSP (Ap. 248.120-2/
4) esclarece o Relator "...a testemunha ouvida, às fls., esclareceu que a
representante da apelante foi cientificada de fato de ser o apelado
soropositivo
HIV+ e que, mesmo assim, informou não haver restrição à sua admissão, (p.
393)
Quanto as informações prestadas, por disposição legal imperativa
(arts. 30 e 48 do CDC), estas manifestações anteriores a conclusão do
contrato escrito tornam-se fontes contratuais,{12} fontes contratuais
heterônomas.{13} Em caso de conflito entre alguma cláusula contratual
e a publicidade veiculada ou alguma outra informação prestada (e
provada), a interpretação do conteúdo contratual efetivo deve ser
sempre a mais favorável ao consumidor e levar em conta a imperatividade
e indisponibilidade das normas do CDC, cuja ratio é justamente
assegurar uma melhor posição contratual ao consumidor que não redige
(ou influencia) o contrato escrito. Citando os ensinamentos de Aliomar
Baleeiro e Prado Kelly, o Min. Sálvio de Figueiredo ressalva o
necessário efeito útil (e renovador) das normas, afirmando: "denega-
se a vigência da lei não só quando se diz que não está em vigor, mas
também quando se decide em sentido diametralmente oposto ao que
nela está expresso e claro".{14}
Quanto às práticas comerciais, sua importância na nova interpre-
tação do contrato de consumo e descoberta de seu verdadeiro conteúdo
vinculante não deve ser menosprezada. A jurisprudência brasileira
aceitou mesmo a presunção de que muitos contratos de crédito são
*exceção feita à carência, tendo sido a representante quem fez a anotação
na proposta... Assim , na forma do art. 47 (do CDC), as cláusulas
contratuais
serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. Dessa
maneira, ao aceitar a apelante a proposta de admissão do apelado ao
plano,
pactuou-se que o apelado, por ser portador do HIV+ deveria respeitar a
carência contida no manual. Esta a única ressalva ao atendimento ao
apelado" (RT 721/114).
(12) Exemplo da força vinculatória da publicidade e prospectos
entregues pode
ser observado no Acórdão da 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, Ap. Civ. 592022826, j. 15.4.92: "Plano de Saúde. Não
pode a seguradora negar-se à modificação da cobertura médico-hospitalar
ainda que para diminuí-la, bem como as prestações mensais devidas pelo
segurado, desta prevista a faculdade no manual por ela fornecido. Devolu-
ção das diferenças em dobro (Código do Consumidor, art. 42, parágrafo
único) e devidamente corrigidas desde a data da alteração pretendida". E
esclarece o Des. Ivo Gabriel da Cunha, p. 04: "O autor viu-se na
contigência
de pagar o exigido ou perder o seguro avençado (...). Ora, depois do
Código
do Consumidor, esse tipo de posição não é mais sustentável; o que está na
publicidade obriga o contratante".
(13) A terminologia é de Enzo Roppo, em seu basilar estudo, pp.
137 e ss.
(14) LEX 56, p. 201, j. 26.10.93, STJ. (p. 394)
assinados em brancco e preenchidos após pelas instituições de crédito.
Presumindo esta "a prática corrente no país", os juízes consideraram
não escrita uma cláusula datilografada contrária a uma cláusula
impressa no contrato, mais favorável ao consumidor, invertendo assim
as linhas tradicionais de prevalência das cláusulas "individuais".{15}
Neste mesmo sentido, a jurisprudência brasileira observando ser prática
corrente no mercado que, para conseguir um financiamento em bancos
federais para aquisição da casa própria, um seguro habitacional deva
ser feito concomitantemente com os contratos principais, considerou
este fato relevante para determinar uma interpretação diferenciada do
contrato de seguro habitacional.{16}
Face a finalidade de proteção especial das normas do CDC, a
interpretação dos contratos envolvendo consumidores e fornecedores
deve guiar-se por seus princípios, em especial o princípio da boa-fé,
da transparência, da proteção da confiança e das expectativas legítimas
dos consumidores. Trata-se, igualmente, de uma interpretação contextual,
que procura o sentido e o alcance da vontade expressa no contrato
* (15) Acórdão do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, in Ap.
Civ.
194041851, 13.4.1994, Rel. Antônio Janyr Dall’Agnoll Júnior, cuja ementa
é: "Código de Defesa do Consumidor. Contrato Bancário. Interpretação.
Art. 47 do CDC. Havendo divergência de índice de atualização monetária,
porque datilografado espécie que não a constante de impresso, em contrato
de adesão, prevalece o que mais favorável ao aderente, nos termos do art.
47 do CDC. Sobre mais favorável, dúvida não pode persistir quanto ao que
diariamente ocorre - e que é a assinatura em branco dos formulários pelo
financiado. Ao predisponente das cláusulas cumpre evidenciar,
satisfatoria-
mente, a anuência do aderente à modificação, pois, aqui, o formulário
impresso ostenta-se segurança também desse. Apelo desprovido".
(16) Veja a decisão da 3.ª Turma do TRF da 1.ª Região, j.
14.6.93, Rel. Juiz
Vicente Leal, cuja ementa assevera: "Ocorrendo dúvidas sobre a existência
da invalidez permanente à data da celebração do contrato de seguro, a
cláusula contratual que exclui o seguro na hipótese deve ser interpretada
a favor do aderente, por se tratar de contrato padronizado, tipicamente
de
adesão, onde a vontade do segurado é praticamente nula, ou faz o seguro
ou não obtém o financiamento" (LEX 55, p. 356). E no corpo da decisão
menciona: "Na dúvida, deve prevalecer a versão do segurado, como parte
aderente e hipossuficiente de um contrato de adesão, pois não restou
provado que o risco assumido pela seguradora decorreu de atos ilícitos do
segurado e a hipótese de má-fé foi afastada ex vi do disposto nos arts.
1436
e 1446 do CC" (LEX 55/360). (p. 395)
também em seu contexto negocial, na finalidade normal (standard
objetivo) deste tipo de contrato, nas expectativas normais para os
consumidores neste tipo de negócio (standard objetivo), considerando
igualmente os atos e informações anteriores a conclusão do negócio
como juridicamente relevante, formando o "todo" a interpretar, a
relação contratual a considerar.{16A}
Segundo o art. 50 do CDC a garantia contratual deverá ser
interpretada como complementar à garantia legal (veja o Cap. IV, 2.3,
letra "c").
Em uma visão comparativa, podemos, portanto, dividir os esforços
atuais dos intérpretes de contratos de consumo em dois blocos: esforços
visando a interpretação de algumas cláusulas obscuras, contraditórias
ou ambígüas, e outros visando a interpretação do contrato como um
todo, de forma a descobrir as obrigações contratuais válidas, as
essenciais e as implícitas.{17}
Para descobrir o sentido e o alcance das cláusulas da relação
contratual de consumo, o intérprete utilizará as conhecidas técnicas
da interpretação estrita das exceções,{18} da interpretação contra
* (16A) Da jurisprudência podemos citar como exemplo desta
interpretação contextual
pró-consumidor, pela finalidade normal e lógica do contrato: "Direito de
sepultamento de familiar em jazigo perpétuo. Adquirente de plano de
aquisição de jazigo perpétuo pretendeu sepultar sua mãe, o que não foi
permitido pela empresa vendedora do plano, alegando que o jazigo, à nível
familiar, somente poderia ser utilizado pelo autor após a morte deste, e
não
enquanto vivesse. Aguardar a morte de quem contratou o plano, para daí
então
poder usar o jazigo familiar, é inverter a ordem natural da expectativa
de
existência da própria família. O contrato assinado prevê especificamente:
"Se
o plano escolhido incluir utilização perpétua do jazigo e ocorrem dois ou
mais
óbitos simultaneamente, um sepultamento será feito em jazigo perpétuo e o
outro, sem livre escolha e sem ônus para o contratante, em jazigo
indicado pelo
contratado. Após 3 anos, os restos mortais serão transladados para o
jazigo
perpétuo". Negado provimento" (decisão unânime). (Proc. 01189725956,
Rec. 139/90, relator Dr. Cézar Tasso Gomes, 1ª Câmara Recursal do Juizado
Especial de Pequenas Causas/RS, j. 16.7.90). Veja na doutrina sobre
"Direito
e mudança social, interpretação e desenvolvimento", a obra de Andrade, p.
136 e ss., escrita antes do CDC, mas de grande atualidade.
(17) Assim, excelente, Ghestin, Clauses, pp. 85 e ss.
(18) Veja decisão do TJRS sobre prevalência do valor da apólice
sobre aquele
(menos favorável) presente nas condições gerais e especiais, Ap. Civ. (p.
396)
proferentem,{19} do efeito útil do contratado,{20} da superioridade das
cláusulas individuais mais benéficas ao consumidor, mesmo que orais
ou presentes na oferta publicitária e as demais técnicas de interpre-
tação dos negócios jurídicos, guiadas sempre pelo princípio do art.
47 do CDC. Assim, em matéria de seguro-saúde a redação dúbia do
instrumento contratual deve beneficiar o consumidor{21} e em matéria
de contrato de seguro automobilístico tem entendido a jurisprudência
que os danos extrapatrimoniais incluem-se no item "danos pessoais"
*594132052, Des. Celeste Vicente Rovani, j. 1.11.94, in Revista de
Jurisprudência do TJRGS, n. 170, p. 385. Veja também sobre a definição
de suicídio (premeditado e não) para interpretar a favor do consumidor (e
restritivamente) a cláusula de exclusão, Súmula 61 do STJ e 1.º TASP, Ap.
Civ. 610.637-2, j. 22.8.96, rel. Kioitsi Chicuta, in RT 735/290.
(19) Veja sobre a regra in dubio contra stipulatorem, Noronha, p.
156 e ss.
(20) Veja interessante decisão do TARS sobre a prevalência de
princípios e
cláusulas mais favoráveis ao consumidor, que não podem ser sem efeito,
letra morta (inútil), cuja ementa é a seguinte: "Contrato que,
contraditori-
amente, insere cláusulas firmando a equivalência salarial e ao mesmo
tempo
exigindo a correção das prestações por índices diferentes da variação
salarial. Ofensa aos princípios do CDC, e ao Dec.-lei 2.349/87, sendo que
este último, ao permitir a satisfação do saldo devedor até o resíduo
final,
mesmo que através da prorrogação do contrato, não afastou o direito a
equivalência da prestação à renda salarial. Recurso provido, para dar
procedência da ação" (Ap. 194012076, Rel. Arnaldo Rizzardo, j. 16.3.94,
in RT 711/192-194.
(21) Bom exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TARS
em caso
de limitação a 30 dias de internação, cuja ementa é a seguinte: "Contrato
de Adesão. Redação dúbia. Vontade real das partes indeterminável.
Interpretação favorável ao aderente. Tratando-se de contrato de adesão,
que, em face de redação falha, gera dúvidas sobre como se interpretar
uma de suas cláusulas, a solução deve ser a mais favorável ao aderente,
se impossível determinar a vontade das partes ao contratar" (Ap. Civ.
193 184 132, 5ª Câm, rel. João Carlos Branco Cardoso, j. 17.3.94). No
corpo do acórdão lê-se, p. 5: "O que pode se apreender da experiência
do dia a dia, é que a pessoa, (...) ao procurar um plano de saúde, deseja
a maior cobertura possível. (...) Não se pode admitir que a apelante,
juridicamente amparada, redija um texto que, embora o considerando
redundante, possa germinar a dúvida ante uma simples interpretação
literal
a qual, geralmente, é posta à disposição das pessoas, nos contratos de
adesão". (p. 397)
até o montante do seguro e não só os danos materiais como defendiam
as seguradoras.{22}
Quanto ao segundo bloco (talvez o primeiro temporalmente), o
intérprete concentrará suas forças em "descobrir" o sentido e alcance
* (22) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão nos EI
196032114 do
Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, 4.º, Grupo C., j. 17.3.97, in
Julgados TARGS, n. 103, p. 183, cuja ementa é: "Dano moral. Seguro
automobilísticO. Inclusão de danos extrapatrimoniais no item danos
pessoais.
Responsabilidade da Seguradora. Não pode ser apartada a indenização da
dor
causada pelo dano corporal ou pessoal da do dano moral ou psicológico,
forte
na bioestrutura do ser humano, corporal e psicologicamente indissolúvel.
A
divisão existente - corpo e psique -, por evidente, tem o fim apenas
pedagógico, para poder melhor estudar a pessoa humana e, não como
pretende a seguradora. - Princípio da boa-fé objetiva. Função
interpretativa.
Havendo dúvida quanto ao significado de cláusula predisposta por uma das
partes, a interpretação deve ser no sentido menos favorável a quem a
redigiu,
é o princípio da interpretatio contra proferentem , ou ainda, e regra in
dubio
contra stipulatorem. Esta regra é especialmente importante hoje em dia,
devido à difusão dos contratos padronizados e de adesão. - Função Econô-
mica do contrato. O contrato nada mais é do que o revestimento jurídico
de
uma operação econômica. Dessarte deve-se sopesar, na análise do contrato,
a satisfação da necessidade, a obtenção do bem que levou as partes a
contratarem e a função econômica que o pacto exerce na vida de relação. E
a escolha deverá ser feita de modo a assegurar prevaleça o interesse que
se
apresenta mais vantajoso em termos de custo social. E o custo social, no
contrato de seguro, aponta a divisão dos prejuízos. Precedentes...". No
corpo
do acórdão - citado o art. 47 do CDC e os seguintes precedentes, todos no
sentido de que "dano moral tem natureza de dano pessoal": TARGS. Ap. Civ.
196023121, rel. Armirio José Abreu Lima da Rosa; TARGS. Ap. Civ.
193169638, fel. Juracy Vilela de Sousa; TARGS, TARGS, Ap. Civ. 194047502,
rel. Moacir Adiers. No mesmo sentido, outros precedentes: TARGS, Ap. Civ.
196087092, rel. Armirio José Abreu Lima da Rosa; TARGS, Ap. Civ. 295
000799, rel. Armo Werlang, TARGS Ap. Civ. 196 118 012. rel. Léo Lima;
TARGS, Ap. Civ. 197 042 062, rel. Luciano Ademir José D’Ávila; TARGS,
Ap. Civ. 197 085 962, rel. Ulderico Cecatto; TARGS, Ap. Civ. 197 174 899,
rel. Carlos Alberto Alves Marques (DJ 13.3.98); EI da Ap. Civ. 196 032
114,
rel. Roberto Expedito da Cunha Madrid (Julgados, n. 103, p. 176); TARGS,
Ap. Civ. 191 061 217, rel. Flávio Pâncaro da Silva. Veja também, no mesmo
sentido, Prinleiro Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, TACSP, Ap. Civ.
698.188-0,j. 15.1.97, rel. Alberto Tedesco, 2.ª Cam. Especial, in RT 740,
e
Ap. Civ. 711.588-0, rel. Antônio de Pádua Ferraz Nogueira, 10ª Cam.
Especial, in RT 749. (p. 398)
da relação contratual como um todo, o verdadeiro regulamento contratual,
em outras palavras, quais são ou eram os deveres e direitos de cada
parte, suas pretensões, suas obrigações. Observa-se aqui uma tendência
jurisprudencial de valorar a informação in concreto do consumidor para
legitimar sua manifestação de vontade quantô a algumas cláusulas
"limitadoras" de seus direitos incluídas em contratos de adesão (veja
ponto 1.4), utilizando em conjunto aos arts. 46, 47 e 54 do CDC.{23} A
descoberta de obrigações implícitas nos variados tipos contratuais, dos
deveres anexos de cada um dos contratantes, dos deveres principais ou
dos deveres essenciais naquele tipo contratual, da eventual influência
das normas imperativas naquela relação concreta será a tarefa do
intérprete da relação de consumo in casu.{24}
* (23) Exemplo desta linha da jurisprudência é a decisão do
Tribunal de Justiça
de São Paulo, cuja ementa é: "A cláusula que exclui o direito à
internação
hospitalar, em letras bem pequenas, evidencia que a contratada não
cumpriu
com a obrigação legal de dar destaque às limitações do direito do
consumidor (art. 46 do CDC). De se concluir, portanto que o caso sub
judice
não pode ser solucionado pura e simplesmente com a invocação do vetusto
princípio do pacta sunt servanda, já que, tratando de relacionamento
contratual de adesão, formado entre consumidor hipossuficiente e iletrado
e empresa de assistência médico-hospitalar dirigida por médico, incide
com
toda sua plenitude o Código de Defesa do Consumidor, sendo de rigor a
aplicação dos arts. 46 e 47 do Codex. A conclusão, portanto, é a da
procedência da ação para o fim de reconhecer a responsabilidade da
contratada pelo pagamento das despesas médico-hospitalares decorrentes da
internação do contratante" (Ap. 240.429-2/6, 16.ª C., j. 25.10.94, Rel.
Des.
Pereira Calças, in RT 719/129). Veja também utilização semelhante do art.
46 e art. 47 do CDC para retirar do vínculo obrigacional cláusula não
informada convenientemente antes da assinatura do contrato, na decisão do
1 .º Tribunal de Alçada de São Paulo, Rel. Juiz Lobo Júnior, de 26.7.94,
in
Revista Direito do Consumidor, vol. 14, p. 172 e ss.
(24) Veja a insuperável lição de Roppo, pp. 137 e ss. Sobre as
fontes "heterônomas
do regulamento contratual"; nesse sentido interessante decisão do
JECP/RS:
"Compra e Venda - Condições de Venda obscuras. Documento denominado
Comprovante de Débito pouco claro, pois as condições do negócio são
expressas em números ao invés de palavras, que o comprador não tem
obrigação de saber o significado. Falta de clareza está longe de
caracterizar
bons costumes e práticas comerciais. Os arts. 47 e 52 da Lei 8.078 - CDC
são claras a respeito da obrigação de o vendedor ser preciso nas
informações
de preço e demais condições de venda do bem" (decisão unânime). (Proc.
01190731628, Rec. 163/90, relator Dr. Luiz Felipe Brasil Santos, 1.ª
Câmara Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas/RS, 18.12.90). (p.
399)
Este esforço para "descoberta" de obrigações implícitas ou não
escritas é um misto de interpretação e subsunção, cotidiano inafastável
dos profissionais do direito; pode ocorrer tanto quando o contrato nada
menciona (ausência de previsão), quanto o contrato prevê justamente o
contrário, tentando exonerar o fornecedor destas obrigações através de
previsões contratuais expressas. Neste último caso, a tendência atual da
jurisprudência consiste em proibir a exclusão de tais "obrigações implí-
citas" através de previsão contratual, que será então considerada
nula.{25}
A nova proteção contratual assegurada através da norma de
interpretação do art. 47 do CDC traz como grande contribuição o fato
de não distinguir, como até então fazia a jurisprudência, entre cláusulas
claras e cláusulas ambíguas.{26} Nestes casos, a jurisprudência
brasileira
geralmente recorre não só ao recurso de interpretação mais favorável
ao consumidor, com base no art. 47 do CDC, mas também à idéia de
interpretação do contrato (teoricamente com cláusulas claras) conforme
sua função econômica.{27} Logo, as cláusulas claras serão interpretadas
conforme as expectativas que aquele tipo contratual e aquele tipo de
cláusula desperta nos consumidores.{28}
* (25) Assim conclui tb. Ghestin, Clauses, p. 92.
(26) A observação é da lavra do renomado magistrado gaúcho,
Antônio Dall’Agnol
Jr., in Cláusulas abusivas, p. 34.
(27) Exemplo desta linha da jurisprudência é a belíssima decisão
de 24.10.96
na interpretação de cláusulas de limitação de cobertura de doenças
crônicas
em contratos de seguro-saúde, cuja ementa é: "Civil. Seguro-saúde. Exclu-
são de casos crônicos. Inteligência da cláusula contratual. 1. Não
infrine
os arts. 1.432 e 1.460 do CC a interpretação de que a cláusula, excluindo
casos crônicos, dentre os quais se situa a Diabetes Mellitius, não se
aplica
ao segurado em idade avançada. Interpreta-se o contrato de acordo com sua
finalidade econômica e ninguém contrata tal seguro senão para ver
cobertos,
oportunamente, os achaques da idade. Apelação desprovida" (Ap. Civ.
596094482, 5.ª Câm. C., Rel. Des. Araken de Assis, in Revista de
Jurisprudência do TJRS 180, p. 394).
(28) Nesse sentido, a mencionada decisão do TJRJ, in RT 612/164,
onde o relator,
Des. Ribeiro Filho, já em 3.12.85, ensinava, quanto a interpretação dos
contratos de adesão: "Na interpretação dessa cláusula, além de observar
as
normas comuns de interpretação dos contratos, devem ser observadas as
normas próprias de interpretação de contratos de adesão ou quase-adesão,
em que um dos contratantes formula a declaração de vontade sem a
participação da outra e que estão expostas de modo magistral pelo Prof.
Orlando Gomes, em seu parecer de fls., nos seguintes termos: "O
intérprete (p. 400)

1.2 Proibição de cláusulas abusivas

O Código de Defesa do Consumidor inova consideravelmente o


espírito do direito das obrigações, e relativa à máxima pacta sunt
servanda.
A nova lei vai reduzir o espaço antes reservado para a autonomia
da vontade, proibindo que se pactuem determinadas cláusulas, vai
impor normas imperativas, que visam proteger o consumidor,
reequilibrando o contrato, garantindo as legítimas expectativas que
depositou no vínculo contratual.
A proteção do consumidor, o reequilíbrio contratual vem a
posteriori, quando o contrato já está perfeito formalmente, quando o
consumidor já manifestou a sua vontade, livre e refletida, mas o
resultado contratual ainda está ineqüitativo. As normas proibitórias de
cláusulas abusivas são normas de ordem pública, normas imperativas,
inafastáveis pela vontade das partes. Estas normas do CDC aparecem
como instrumentos do direito para restabelecer o equilíbrio, para
restabelecer a força da "vontade", das expectativas legítimas, do
consumidor, compensando, assim, sua vulnerabilidade fática. Se no
direito tradicional, representado pelo Código Civil de 1917 e pelo
Código Comercial de 1850, já conhecíamos normas de proteção da
vontade, considerada a fonte criadora e, principalmente, limitadora da
força vinculativa dos contratos, passamos a aceitar no Brasil, com o
advento do Código de Defesa do Consumidor, a existência de valores
jurídicos superiores ao dogma da vontade, tais como a eqüidade
contratual, os quais permitem ao Poder Judiciário um novo e efetivo
controle do conteúdo dos contratos de consumo.
Como afirmamos na introdução a este estudo, o CDC representa
uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão
clássica, liberal e individualista, do Direito Civil, evoluímos para uma
visão social, que valoriza a função do Direito como ativo garante do
equilíbrio contratual.
*tem de averiguar como foi que cada qual dos declarantes entendeu ou
podia
entender a declaração recebida do outro, ou o comportamento deste. Há que
proteger a legítima expectativa dos contratantes, ou, como diz Mosco, o
emitente de uma declaração de vontade deve enunciá-la por forma que o
destinatário não possa, com a diligência ordinária, lhe atribuir outro
sentido,
sendo irrelevante que o declarante tivesse realmente querido emprestá-
lo"." (p. 401)
O método escolhido pelo CDC para harmonizar e dar maior
transparência às relações de consumo tem dois momentos. No primeiro,
cria o Código novos direitos para os consumidores e novos deveres para
os fornecedores de bens, visando assegurar a sua proteção na fase pré-
contratual e no momento da formação do vínculo. No segundo
momento, cria o Código normas proibindo expressamente as cláusulas
abusivas nestes contratos, assegurando, assim, uma proteção a posteriori
do consumidor, através de um efetivo controle judicial do conteúdo do
contrato de consumo. Nosso objetivo é analisar, nesta segunda edição
de modo mais detido, este novo e imperativo controle das cláusulas
abusivas.

a) Características gerais das cláusulas abusivas - Se efetivamen-


te a massificação dos contratos na sociedade atual e a complexidade
técnica da elaboração dos novos tipos contratuais permitiram, e mesmo
incentivaram, a prática da inclusão de cláusulas abusivas nos contratos,
cabe refletir agora, nesta segunda edição, sobre as características
principais de ditas cláusulas abusivas.
Expressão muito utilizada na doutrina e na jurisprudência atual,
é ela poucas vezes definida e o próprio CDC absteve-se de uma
definição legal, preferindo indiciar a abusividade em casos expressos
(art. 53, por exemplo), deixar sua determinação para a jurisprudência
(através de cláusulas gerais, como a do art. 51, IV) ou presumir a
abusividade em alguns casos e práticas (lista dos arts. 39 e 51).{29}
Para definir a abusividade dois caminhos podem ser seguidos: uma
aproximação subjetiva, que conecta a abusividade mais com a figura
do abuso do direito, como se sua característica principal fosse o uso
(subjetivo) malicioso ou desviado de suas finalidades sociais de um
poder (direito) concedido a um agente,{30} ou uma aproximação objetiva,
que conecta a abusividade mais com paradigmas modernos, como a
boa-fé objetiva ou a antiga figura da lesão enorme, como se seu
elemento principal fosse o resultado objetivo que causa a conduta do
indivíduo, o prejuízo grave sofrido objetivamente pelo consumidor, O
* (29) Assim tb. Aguiar, Cláusulas, p. 13.
(30) Segundo Bourgoignie, Clauses, p. 256, este é o caminho
seguido pela
jurisprudência belga, especialmente no caso dos contratos de
serviços
públicos e serviços em geral, mas revela este caminho o perigo da própria
teoria do abuso do direito, nem sempre reconhecida ou seguida. (p. 402)
desequilíbrio resultante da cláusula imposta, a falta razoabilidade ou
comutatividade do exigido no contrato.{31}
Quanto ao primeiro caminho está ele muito ligado a própria
expressão "cláusula abusiva". Apesar de criticado,{32} este caminho pode
ser útil. Trata-se, na verdade, de uma expressão valorativa, moderna,
de certa maneira paradoxal. Só pode ser abusivo, o que excedeu os
limites e, na visão tradicional de plena liberdade contratual, os limites
na fixação das cláusulas contratuais praticamente inexistem. Denomi-
nar, portanto, uma cláusula do contrato como abusiva é pressupor a
reação do direito contratual, é aceitar a imposição de novos limites ao
exercício de um direito subjetivo, no caso, o da livre determinação do
conteúdo do contrato. A intervenção do Estado nos negócios privados
e a imposição de limites ao dogma da autonomia da vontade vão
caracterizar, a atual concepção de contrato. Sendo assim, a identifica-
ção de algumas cláusulas presentes nas relações contratuais massificadas
como abusivas é fenômeno moderno, oriundo da mudança de valores
e de interesses protegidos pelo direito.
Se a expressão contém em si inseparável juízo de valor, ao
identificar a conduta do elaborador da cláusula como abusiva, seria
necessário, portanto, traçar um paralelo entre a abusividade detectada
em algumas cláusulas contratuais e a figura do abuso de direito.
A causa desta recusa pode ser a insegurança dogmática que
envolve toda a categoria de abuso de direito.{33} Na verdade, ainda hoje
discutem os doutrinadores se o abuso de direito inclui-se dogmaticamente
como um simples ato ilícito ou trata-se de uma categoria jurídica à
parte.{34} Note-se que, no Brasil, o Projeto de Código Civil de 1975
incluiu o abuso de direito na categoria dos atos ilícitos, sem
especificar,
* (31) Nesse sentido Calais-Auloy, p. 134, "é abusiva a cláusula
que, pré-redigida
pela parte mais forte, assegura a esta uma vantagem excessiva sobre a
outra
parte". No Brasil, Nery, Anteprojeto, p. 334, sugere como sinônimo de
cláusula abusiva, cláusulas opressivas, onerosas, excessivas,
concentrando-
se nos efeitos objetivos da cláusula.
(32) Assim Nery, Anteprojeto, p. 334, separa veementemente os
institutos do
abuso de direito e as cláusulas abusivas.
(33) Héléne Brick, por exemplo, em sua famosa obra faz um
inventário das
cláusulas abusivas existentes, e retira daí os traços essenciais que as
caracterizam, pp. 8 e ss. Mas não enfrenta a figura do abuso.
(34) Assim tb. Bourgoignie, Clauses, p. 256. (p. 403)
porém, se a sanção seria a mesma dos outros atos ilícitos.{35} O Projeto,
todavia, contribui em nosso estudo ao trazer a noção de fim social e
econômico de um direito, em última análise do dever de boa-fé na
conduta social.
Serão as cláusulas abusivas simplesmente novos tipos de cláusulas
ilícitas? O ato ilícito é aquele desconforme ao direito, que provoca uma
reação negativa do ordenamento jurídico, que viola direito ou causa
prejuízo a terceiro (dano), fazendo nascer a correspondente obrigação
de reparar (responsabilidade).
Já o abuso pressupõe a existência do direito, logo, a atividade
inicial é lícita, pois aquele que usa seu direito não prejudica (em
princípio) outros (neminen laedit qui suo jure utitur).{36}
O abuso do direito seria a falta praticada pelo titular de um
direito,
que ultrapassa os limites ou que deturpa a finalidade do direito que lhe
foi concedido. Assim, apesar de presentes o prejuízo (dano) causado
a outrem pela atividade (ato antijurídico) do titular do direito (nexo
causal), a sua hipótese de incidência é diferenciada. O que ofende o
ordenamento é o modo (excessivo, irregular, lesionante) com que foi
exercido um direito, acarretando um resultado, este sim, ilícito.
Qual será, porém, a reação do direito frente ao abuso de direito?
A reação do direito é negar efeitos àquela vontade declarada através
do exercício abusivo de um direito. A desconsideração prática do direito
assim exercido, a invalidade e ineficácia da cláusula e a sanção do
abuso; não vê o ordenamento jurídico, em princípio necessidade de
sancionar (punir) aquele que abusou a perdas e danos, preferindo
reequilibrar a situação e assegurar a volta ao status quo. Repara-se e
reequilibra-se a situação concreta, o contrato, ao retirar, por exemplo,
a cláusula abusiva, mas não se pune "a mais" aquele que abusou de
seu poder (direito). A função punitiva que os doutrinadores alemães
atuais{37} estão chamando de "satisfatória" do direito civil, ainda não
foi
bem aceita na prática e doutrina brasileira. Concorde-se ou não com
* (35) "Art. 186. Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-
lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico OU
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".
(36) Veja os ensinamentos clássicos de Josserand, p. 1, contra
PlaniOl e
Mazeaud.
(37) Assim Kern, p. 248. (p. 404)
a posição de nosso sistema esta diferença de grau na reação do direito,
entre o ilícito e o abusivo, serve para demonstrar uma certa diferença
do fenômeno.
A diferença, porém, é mais de grau do que de natureza. Neste
sentido, correta a conclusão que as cláusulas abusivas são também
contrárias ao direito, ilícitas, se compreendermos o direito não só como
o conjunto de leis e de normas, mas como seus princípios gerais, entre
os quais, claramente, inclui-se hoje o da boa-fé objetiva.{38}
Observa-se, no direito comparado, que as sanções para evitar a
prática da inclusão de cláusulas abusivas são sua ineficácia
(Unwirksamkeit), como na lei alemã de 1976 (§§ 9, 10, 11 AGBGB),
sua declaração como "não escritas" ou sua não inclusão no contrato
(art. 35 da lei francesa de 1978, § 3 da lei alemã), expressão
tradicional
que uns consideram semelhante a inexistência{39} e outros aproximam da
nulidade{40} e, por fim, sua nulidade (lei portuguesa, luxemburguesa,
brasileira), o que também leva a sua ineficácia. A pretensão a perdas
e danos ou a compensação pecuniária, se presente, tem outra origem
que a abusividade da cláusula (dano moral, pagamento indevido, quebra
da base do negócio etc).
A doutrina brasileira prefere, recorrer a comparações com as
tradicionalmente conhecidas e combatidas cláusulas ou condições
ilícitas, potestativas e leoninas, para explicar o atual combate às
cláusulas abusivas.{41} Trata-se de uma aproximação histórica do fenô-
meno, que pode ser extremamente útil para a sua compreensão seja
como um fenômeno geral, seja como um fenômeno moderno e
particular, em um esforço de identificação especial destas cláusulas.
No sentido amplo é possível afirmar que as proibições legais
referentes às cláusulas leoninas e às condições meramente potestativas
representam uma primeira tentativa de combate a cláusulas considera-
das "abusivas". Estas cláusulas eram e são combatidas, por ferirem a
* (38) Assim conclui Aguiar, Cláusulas, p. 22, citando Almeida
Costa. O mestre
gaúcho analisa a própria lista do art. 51, a qual traz em seus incs. XIV
e
XV como abusivas, cláusulas que seriam contrárias à lei, logo ilícitas).
(39) Assim Kullmann, p. 59.
(40) Assim Calais-Auloy, p. 135, 3.ª ed.
(41) Destaque-se aqui os trabalhos de Tomasetti Jr., Rejeição
cláusulas abusivas
e Caio Mário Pereira, Lesão. (p. 405)
ordem pública, os bons costumes, por privarem de todo efeito o ato ou
por o sujeitarem no arbítrio de uma das partes.
Em uma visão particular, podemos afirmar que o arbítrio e a
unilateralidade excessiva na fixação de elementos essenciais do con-
trato (sujeitos, objeto, preço e consenso) detectados nas cláusulas
leoninas e meramente potestativas são características comuns com as
cláusulas hoje consideradas abusivas.{42} A diferença estaria no grau de
unilateralidade e de arbítrio antes exigido, muito maior do que o atual,
e na matéria regulada pelas cláusulas consideradas abusivas, que hoje
pode englobar (e geralmente o faz) os elementos não essenciais do
negócio, como as garantias referentes ao vício do objeto, a evicção, ao
pagamento, ao não atraso do pagamento.{43}
De outro lado, mister notar que quanto ao preço, elemento
essencial do contrato, e origem máxima da idéia de lesão enorme, a
doutrina brasileira reluta em incluir as cláusulas que desequilibram o
contrato, prevendo preços leoninos entre aquelas submetidas ao regime
jurídico das cláusulas abusivas. Como veremos adiante, mesmo o novo
Código de Defesa do Consumidor indicia sanções diferenciadas para
estes dois casos: a de nulidade para as cláusulas abusivas stricto sensu
e a possibilidade do juiz modificar a cláusula que estabeleça prestações
desproporcionais (art. 6.º, incisos IV e V do CDC). Tal tratamento
* (42) Em sua obra sobre o direito canadense, L’Hereux, p. 37 cita
os três tipos
de cláusulas "proibidas": as abusivas, as arbitrárias e as leoninas,
caracte-
rizando as primeiras como aquelas que permitem a transferência de
responsabilidade; as segundas, as que permitem uma decisão unilateral do
fornecedor sobre elementos do contrato; as terceiras, as que impõem
custos,
taxas e um preço excessivo ou impreciso ao consumidor. Tal denominação
diferenciada tem origem na jurisprudência canadense e do Quebec. Nesta
obra não seguiremos a nomenclatura sugerida pela autora, mas tais
observações servem para destacar a semelhança e a proximidade dos
institutos.
(43) Hoje são consideradas abusivas as cláusulas que procuram
exonerar o
fornecedor da responsabilidade pelo vício do produto ou serviço, pela sua
não prestabilidade, pela eventual evicção, transferindo a terceiros a
respon-
sabilidade, cláusulas impondo garantias excessivas quanto ao pagamento,
como as de perda total das prestações pagas em pró do fornecedor ou do
grupo de consorciados, as cláusulas penais excessivas, os juros de mora
além do limite legal etc., veja exemplos de cláusulas consideradas
abusivas
na lista do art. 51 do CDC e na letra "c.3" a seguir. (p. 406)
diferenciado merecerá um estudo mais aprofundado a seguir, deve,
porém, ser mencionado no momento, pois serve para caracterizar a
dificuldade do próprio direito em intervir na fixação deste elemento
essencial, que é o preço.{44}
As caraterísticas básicas da lesão ou da cláusula leonina
identificada,
nos contratos comutativos, senam, em uma análise, a desproporciona-
lidade das prestações daí resultante, no que diz respeito aos valores das
prestações previstas, e o dolo de aproveitamento ocorrido, representado
pelo abuso da inexperiência e da necessidade premente sentida pelo
outro contraente em concluir aquele negócio.{45}
A identificação da lesão como fonte da abusividade da cláusula
levanta duas questões importantes, que ajudarão a caracterizar as
cláusulas abusivas em sua visão atual. Em primeiro lugar é necessário
esclarecer se a determinação de uma cláusula contratual como abusiva
é concomitante à formação do contrato ou se são fatos supervenientes
que as tornam abusivas? Em segundo lugar é necessário estabelecer se
a abusividade das cláusulas contratuais depende da malícia, do dolo ou
da má-fé subjetiva daquele que as elaborou ou dos resultados práticos
que prevêem e que darão causa, se eficazes? Efetivamente, o caráter
de abusividade da cláusula é concomitante com a formação do contrato,
logo nenhuma ligação tem com as chamadas causas de revisão dos
contratos por atuação de fatores supervenientes (regime diferenciado
no CDC, por força do art. 6.º, V). A identificação dessa abusividade,
exercício de aplicação/subsunção da lei e de interpretação do contrato
como um todo e das práticas comerciais, é que pode ser posterior à
formação do contrato, como a fotografia atual de um fato já
existente.{46}
* (44) Roppo, pp. 144 e ss., relembra que o elemento preço é
normalmente deixado
à autonomia das partes, tanto que raras são as normas (mesmo supletivas)
que tratam do assunto. Ou as partes regulam este elemento essencial ou o
contrato não sobreviverá, pois o direito civil não considera sua função
suprir
esta manifestação de vontade, exceção feita aos contratos ditados,
contratos
obrigatórios e aos referentes a bens e serviços com preços tabelados.
(45) Assim ensina Caio Mário, Lesão, pp. 196 e ss.
(46) Neste sentido a lição da jurisprudência, na ementa:
"Contrato. Plano de
Saúde. Aids. Cláusula abusiva. A presença da cláusula abusiva no contrato
celebrado ou na relação individual é que a torna atual; é a execução do
contrato que vai esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual, é
a
atividade do intérprete do contrato, do aplicador da lei, que vai
identificar (p. 407)
E, em segundo lugar, a abusividade da cláusula não depende da boa
ou má-fé subjetiva do fornecedor que a impôs ao consumidor. Talvez
o fornecedor nem soubesse que tal cláusula é contrária ao espírito do
CDC ou mesmo expressamente proibida na lista do art. 51, talvez nem
tenha ele redigido o contrato, cujo conteúdo pode até ser determinado
por outra norma de hierarquia inferior (Portaria,{47} Medida Provisória
etc.), mesmo assim permanece o caráter abusivo da cláusula.
Segundo Bricks,{48} todas as cláusulas abusivas apresentam como
características ou pontos em comum justamente o seu fim, que seria
melhorar a situação contratual daquele que redige o contrato ou detêm
posição preponderante, o fornecedor, transferindo riscos ao consumi-
dor, e seu efeito, que é o desequilíbrio do contrato em razão da falta
de reciprocidade e unilateralidade dos direitos assegurados ao forne-
cedor.
A tendência hoje no direito comparado e na exegese do CDC é
conectar a abusividade das cláusulas a um paradigma objetivo,{49} em
especial, ao princípio da boa-fé objetiva; observar mais, seu efeito, seu
resultado e não tanto repreender uma atuação maliciosa ou não
subjetiva. Tal é a melhor solução em uma sociedade de massas, onde
não podemos conceber que uma cláusula seja abusiva porque utilizada
pelo fornecedor "A", forte cadeia de lojas, e não, se utilizada pelo
comerciante "B", microempresa, em contratos com um mesmo consu-
midor. Nesse sentido correta a Diretiva 93/13 da Comunidade Européia,
de 5.4.93, sobre cláusulas abusivas, que em seu art. 3.º dispõe: "as
cláusulas contratuais que não se tenham negociado individualmente
*abusividade atual da cláusula. Esta se tornou evidente, com recomendação
do próprio Conselho Regional de Medicina. Em face da abusividade não
é de se considerar a exclusão pretendida pela Empresa ré. Recurso
desprovido" (TJSP, Ap. Civ. 9.096-4, 4.ª Câm. de Dir. Privado, j.
13.6.96,
Des. Barbosa Pereira).
(47) Veja a nova linha jurisprudencial do STJ, in RT 698/223, com
a seguinte
ementa oficial: "Na expressão "lei federal" estão compreendidos apenas a
lei, o decreto, o regulamento e o direito estrangeiro, não se incluem a
portaria, a resolução, a instrução normativa, a circular, o ato
normativo, o
regimento interno dos tribunais e o provimento da OAB". (AI 21.337-1-
DF - 1.’ T. - j. 10.6.92 - rel. Min. Garcia Vieira - DJU 3.8.92).
(48) Bricks, p. 8.
(49) Assim ensina Aguiar, Cláusulas, p. 18. (p. 408)
considerar-se-ão abusivas se, frente as exigências da boa-fé, causam em
detrimento do consumidor um desequilíbrio importante entre os direitos
e obrigações das partes que derivam do contrato".{50} A atuação subjetiva
deve ser desconsiderada e dar lugar a um exame do contexto do
contrato, de seu equilíbrio, da conduta conforme a boa-fé que dele
objetivamente emana.{51}

b) Da nulidade absoluta das cláusulas abusivas - Tanto na lista


exemplificativa de cláusulas consideradas abusivas constante do art. 51
do CDC, quanto em seu art. 53, referente aos contratos de compra e
venda a prazo, a sanção escolhida para coibir os abusos foi a de
nulidade absoluta.
Como veremos, o legislador brasileiro não se inspirou na técnica
alemã de instituir duas listas de cláusulas abusivas e uma norma geral;
preferiu instituir uma só lista, no art. 51, sancionado a todas as
cláusulas
ali descritas com a nulidade absoluta, praticamente escondendo a
norma ou cláusula geral no inciso IV da lista do art. 51 complementado
pelo disposto no § 1.º do referido artigo. Passados mais de 3 anos de
vigência do CDC, podemos concluir que a técnica utilizada pelo
legislador brasileiro não prejudicou a aplicação de sua nova ratio aos
contratos de consumo. Se a situação ainda não é perfeita no mercado
brasileiro e se parte da jurisprudência apega-se ainda ao velho paradigma
da autonomia absoluta da vontade, a tendência é claramente no sentido
da diminuição das cláusulas abusivas nos contratos de adesão ofereci-
dos no mercado brasileiro. A resposta da jurisprudência brasileira,
como um todo, face aos desafios e ações propostas pelo Ministério
Público e pelos advogados, pode ser considerada muito boa, como
comprova a já abundante jurisprudência.
Nesse sentido, gostaríamos de analisar, com a ajuda das decisões
jurisprudenciais, a técnica utilizada pelo legislador de sancionar com
a nulidade absoluta todas as cláusulas abusivas mencionadas na lista
do art. 51 do CDC (b.1) e a exceção feita no art. 6.º, V do CDC,
autorizando o juiz a modificar determinadas cláusulas referentes ao
preço (b.2), para só após passar a análise das cláusulas consideradas
abusivas em espécie (c).
* (50) Publicada no JOCE L 95/31, de 21.4.93.
(51) Assim dispõe o art. 4.º da referida Diretiva 93/13/CEE. (p.
409)

b.1 Lista única de cláusulas abusivas - A lei alemã de 1976 sobre


as cláusulas contratuais inaugurou uma nova técnica legislativa{52} em
matéria de combate às cláusulas abusivas. Esta lei prevê duas listas de
cláusulas, uma de cláusulas sempre consideradas ineficazes (a chamada
lista negra do § 11) e a outra, com cláusulas que podem, a critério do
juiz, ser consideradas ineficazes (lista cinza do § 10). Para englobar
os casos não previstos expressamente nas listas, traz o § 9.º da lei
alemã
uma cláusula geral de proibição de cláusulas contrárias à boa-fé e que
criem uma desvantagem exagerada.
O legislador brasileiro preferiu instituir a proteção contra
cláusu-
las abusivas no CDC em apenas uma lista de cláusulas, sempre nulas,
prevendo, ou praticamente escondendo, a norma geral de proibição de
cláusulas contra a boa-fé no inciso IV dessa lista única.{53}
A lista do art. 51 aplica-se tanto para contratos de adesão, como
para contratos negociados{54} e prevê sempre a nulidade absoluta{55} das
cláusulas que nele se subsumirem.
A lista de cláusulas abusivas, prevista no art. 51 do CDC, é
apenas
exemplificativa.{56} Note-se que, pelo art. 51, § 2.º, a nulidade de uma
cláusula não invalida o contrato, exceto "quando de sua ausência,
apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer
das partes".
* (52) Assim Peter Ulmer, Zehn Jahre, p. 5.
(53) No direito comparado vários doutrinadores destacam a
importância das
normas gerais, cláusulas abertas e interpretação e ao desenvolvimento
pela
jurisprudência; veja o estudo comparatista de Hondius, pp. 188 e ss., e
no
direito alemão, Ulmer, Zehn Jahre, pp. 10 e ss.
(54) Concordam Aguiar, Cláusulas, p. 20 e Hapner, p. 171. O
mestre gaúcho
Aguiar, p. 21, traz interessante distinção, afirmando que a lista do art.
51
deveria funcionar como lista negra, em caso de contratos de adesão e
CONDGs, mas poderia funcionar como lista cinza, em caso de contratos
paritários. Contra Hapner, p. 170, advogando a possibilidade de valoração
do juiz.
(55) Assim concordam Aguiar, p. 27, Dall’Agnoll, p. 38. Este
último, concen-
trando-se sobre o tema, conclui que a mencionada "nulidade de pleno
direito" do art. 51 do CDC é a nulidade cominada, nulidade absoluta do
Código Civil (art. 145, V), já Néry, Anteprojeto, p. 298, reclama às
nulidades
do CDC um tratamento "microssistêmico" autônomo.
(56) Assim concordam os comentaristas brasileiros, Amaral,
Comentários; Nery,
Anteprojeto, p. 295 e Hapner, p. 171. (p. 410)
A integração aqui é a dos efeitos do negócio, agora não mais
previstos expressamente em virtude da invalidade da cláusula, recor-
rendo o juiz a normas supletivas ou dispositivas do ordenamento
jurídico brasileiro. As nulidades absolutas, como as do art. 51 do CDC,
caracterizam-se por não serem sanáveis pelo juiz, passando a relação
contratual, naquele aspecto, a ser regida pela lei.
Cabe frisar, igualmente, que o art. 6.º, inciso V, do CDC
institui,
como direito do consumidor, a modificação das cláusulas contratuais,
fazendo pensar que não só a nulidade absoluta serviria como sanção,
mas também que seria possível ao juiz modificar o conteúdo negocial.
Como o CDC não fornece maiores detalhes sobre este novo direito,
poderíamos imaginar duas hipóteses, que o juiz modifique a cláusula
reduzindo-a ao que permite a lei,{57} a chamada "redução de eficácia" da
doutrina alemã, cuja lei, porém, prevê a ineficácia de uma cláusula
abusiva e não a sua nulidade absoluta, invalidez não sanável que leva a
se desconsiderar por completo a previsão contratual nula, como no
sistema brasileiro. Logo a modificação, ou redução da cláusula
contratual,
só seria possível quando ela não se enquadrasse no art. 51, como cláusula
abusiva. A segunda hipótese seria a de, no caso de nulidade da cláusula,
o juiz recorrer não só à lei supletiva, mas ao próprio contrato,
interpre-
tando a vontade das partes para praticamente criar uma nova cláusula
válida. Note-se que pelo art. 47 do CDC, uma interpretação
integrativa,{58}
em que o juiz procura retirar das outras cláusulas e do contexto do
contrato disposição que falta, poderia ser considerada como pró-
consumidor, e portanto adaptada ao sistema do CDC. Na verdade as
hipóteses previstas no art. 6.º são diferenciadas. De um lado é direito
do
consumidor a "proteção contra práticas e cláusulas abusivas" (art. 6.º,
inciso IV), proteção esta que será assegurada pelas regras dos arts. 30 a
54, incluindo as regras específicas sobre a nulidade absoluta das cláusu-
las abusivas. De outro, institui o art. 6.º, em seu inciso V, uma exceção
no sistema, reconhecendo o direito do consumidor de requerer ao
Judiciário a modificação de um tipo de cláusula contratual específica, a
do preço ou de outra prestação a cargo do consumidor, sempre que se
consubstanciarem circunstâncias especiais, não previstas.
* (57) Por exemplo uma cláusula que preveja 20% do valor da
prestação como
multa de mora seria "reduzida" para prever somente os 10% obrigatórios
do art. 52, § 1.º CDC.
(58) Veja sobre o tema a obra de Custódio da Piedade/Ubaldino
Miranda, p. 209. (p. 411)

b.2 Autorização excepcional de modificação de cláusulas - O art.


6.º, inciso V, CDC abre uma exceção no sistema da nulidade absoluta
das cláusulas, permitindo que o juiz revise ou "modifique", a pedido
do consumidor, as "cláusulas que estabeleçam prestações desproporcio-
nais ou que sejam excessivamente onerosas" para ele em razão de fatos
supervenientes.
O art. 6.º do CDC traz uma novidade na proteção contratual do
consumidor. Em seu inciso V, referido artigo permite que o Poder
Judiciário modifique as cláusulas referentes ao preço, ou qualquer outra
prestação a cargo do consumidor, se "desproporcionais", isto é, se
acarretarem o desequilíbrio do contrato, o desequilíbrio de direitos e
obrigações entre as partes contratantes, a lesão. O Poder Judiciário, o
Estado, em última análise, intervém na relação contratual de consumo,
para sobrepor-se à vontade das partes, para modificar uma manifestação
livre de vontade, para impor um equilíbrio contratual. Mais do que
nunca este novo direito contratual do consumidor, caracteriza as normas
do CDC como intervenção estatal no espaço antes reservado para a
autonomia da vontade, de acordo com os postulados sociais da nova
teoria contratual do Estado de direito.{59}
Não desconhecemos o fato de que, ao retirar-se de um contrato
a cláusula considerada abusiva e substituir seu conteúdo pelo regramento
legal na matéria, já estamos "modificando" o texto contratual, colmatando
a lacuna, integrando o contrato de forma a que se possa dar execução
a este, segundo os novos princípios de boa-fé e equilíbrio
contratual.{60}
Queremos aqui chamar a atenção para o fato do CDC autorizar uma
modificação nas cláusulas de preço, onde geralmente não há regra
supletiva apta a preencher a lacuna. Neste sentido, a sanção de nulidade
absoluta não seria apta a preencher sua função, era necessário autorizar
o juiz a agir de forma excepcional, revisando as cláusulas do contrato
referente ao preço para reencontrar o equilíbrio perdido com a atual
excessiva onerosidade.
* (59) No sistema tradicional de contrato foi justamente nos casos
de lesão de uma
das partes, pelo simples cumprimento contratual, que as primeiras
exceções
a regra pacta sunt servanda foram criadas. Veja os ensinamentos
de Couto
e Silva, RT, sobre a queda da base do negócio.
(60) Neste sentido manifesta-se tb. Luís Renato Ferreira da
Silva, em sua Tese
de Mestrado sobre a Revisão dos Contratos, Teses/UFRGS, 1993, ainda
inédita. (p. 412)
Prevê ainda o inciso V do art. 6.º do CDC a possibilidade da
revisão judicial da cláusula de preço, que era eqüitativa quando do
fechamento do contrato, mas que em razão de fatos supervenientes
tornou-se excessivamente onerosa para o consumidor. A onerosidade
excessiva e superveniente que permite o recurso a esta revisão judicial
é unilateral, pois o art. 6.º do CDC institui direitos básicos apenas
para
o consumidor.
A norma do art. 6.º do CDC avança ao não exigir que o fato
superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra
da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a
destruição da relação de equivalência entre prestações, ao desapareci-
mento do fim essencial do contrato.{61} Em outras palavras, o elemento
autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo
da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade
excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente,
fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia
ser
previsto e não foi.
Nesse sentido a conclusão n. 3 do II Congresso Brasileiro de
Direito do Consumidor - Contratos no ano 2000, com o seguinte texto:
"Para fins de aplicação do art. 6.º, V CDC não são exigíveis os
requisitos da imprevisibilidade e excepcionalidade, bastando a mera
verificação da onerosidade excessiva".
A jurisprudência tem desenvolvido um outro requisito, qual seja
o da não imputabilidade do fato causador da onerosidade excessiva ao
consumidor.{62} Nesse sentido, a jurisprudência tem aceito, como motivo
* (61) Em sua obra clássica, onde expõe a Teoria da base objetiva
do negócio,
desenvolvida da Teoria da base subjetiva de Oertmann, Larenz concentra-
se na destruição (objetiva) da relação de equivalência e na frustração da
finalidade do contrato, não mais nas pressuposições, vontades ou motivos
individuais e subjetivos. Veja Larenz, Base, pp. 130 e ss.
(62) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TJDF (DJ
10.12.92, II,
p. 41.927), que apesar de utilizar a Teoria da Imprevisão para a rescisão
do contrato, ordena a devolução das parcelas pagas. Na ementa baseia-se
o relator Des. Vasquez Cruxen na: "impossibilidade do cumprimento das
obrigações por parte dos contratantes, por motivos alheios à vontade dos
mesmos, como é o caso dos aumentos baseados no índice editado pelo
SINDUSCON, que supera a inflação e os reajustes salariais, estabelecendo
o desequilíbrio". (p. 413)
suficiente para a revisão contratual e para a ação corretora do
equilíbrio
contratual pelo judiciário, situações em princípios individuais, como
por exemplo a perda do emprego.{63}
A tendência, portanto, é do crescimento em importância deste
permissivo legal de revisão judicial dos contratos. Dois aspectos devem
ser ressaltados: o limite imposto pelo próprio CDC, ao mencionar
apenas as cláusulas referentes à prestação do consumidor, geralmente
uma prestação monetária, envolvendo o preço e demais acréscimos,
despesas e taxas, logo não englobando todos os tipos de cláusulas
abusivas; o consumidor, é livre para requerer ou a modificação da
cláusula e a manutenção do vínculo, ou a rescisão do contrato, com o
fim do vínculo e concomitante decretação seja da nulidade, se abusiva,
ou da modificabilidade, se excessivamente onerosa, da cláusula.
Parece-me, efetivamente, que a expressão onerosidade excessiva
do art. 6.º, V do CDC não encontra sua fonte no Código Civil Italiano
de 1942, que, em seu art. 1.467, exige a ocorrência de evento
extraordinário e imprevisível, nem no Projeto de Código Civil brasileiro
de 1975, art. 478, que além da onerosidade excessiva exigia a "extrema
vantagem da outra", mas sim nas teorias mais modernas e objetivas,
especialmente a Teoria da Base do Negócio Jurídico, conhecidas pela
doutrina,{64} mas até então não positivada no ordenamento pátrio.
Os argumentos decisivos que me movem a evoluir frente a opinião
defendida na primeira edição desta obra{65} e que mencionar simplesmen-
* (63) O leading case neste sentido é do TARS, Ap. Civ. 193230547,
j. 24.2.94,
6.ª C., Rel. Juiz Moacir Adiers, com a seguinte ementa: "Consórcio - Ação
de cobrança - Devolução das parcelas pagas devidamente corrigidas -
Cabimento - Da legitimidade passiva. Possui legitimidade passiva para a
ação de rescisão contratual e devolução das quantias pagas a
administradora
que recolheu as prestações. Em contrato de adesão, porque as cláusulas
são
predispostas pelo poder público, admite-se sua revisão, na medida em que
não derivam do auto-regramento de vontade das partes. Em contrato de
consórcio, tipicamente de adesão, que prevê a devolução das parcelas
pagas
pelo consorciado desistente sem a devida correção monetária, flagra-se
nítido desequilíbrio no tratamento entre contratantes, que merece ser
corrigido
pelo judiciário".
(64) Veja Couto e Silva, Obrigação como Processo, p. 134 e sua
crítica a teoria
da base subjetiva.
(65) Refiro-me a menção à Teoria da imprevisão, p. 168 da 1.ª ed.
(p. 414)
te que a Teoria de imprevisão{66} teria sido aceita pelo CDC pode ser
uma interpretação do art. 6.º, inciso V, prejudicial ao próprio consu-
midor, pois dele pode ser exigida a referida imprevisão e
extrinsibilidade
do ocorrido, fatos não mencionados em referido artigo. De Outro lado,
enquanto gênero, as teorias sobre a imprevisão sempre visaram
prioritariamente a liberação do contratante supervenientemente debili-
tado, sua desobrigação, retirando assim do consumidor - ou pelo menos
diminuindo a intensidade de - seu novo direito a manter o vínculo e
ver recriado o equilíbrio contratual original por atuação modificadora
do juiz. Esta possibilidade de revisão contratual por fatores objetivos
e supervenientes parece-me efetivamente a maior contribuição do art.
6.º, V do CDC e sua exceção ao sistema de nulidades absolutas.

c) As cláusulas consideradas abusivas - De forma a manter a


estrutura da análise apresentada na primeira edição, gostaríamos de
apresentar inicialmente uma exegese direta dos incs. do art. 51 do CDC
(c.1) e de sua cláusula geral, presente no inc. IV do mesmo art. 51,
cláusula geral de nítida inspiração no § 9.º da lei alemã de 1976 (c.2);
para somente em um terceiro momento (c.3) analisar mais detidamente
as cláusulas identificadas pela jurisprudência brasileira como abusivas
nestes primeiros anos de vigência do CDC. Esperamos que esta
estrutura possa permitir uma análise mais independente da fonte
legislativa e uma subsunção mais realista quanto a abusividade detec-
tada nos casos in concreto.
O capítulo da Proteção Contratual stricto sensu do CDC, apresenta
uma seção especial (seção II) sobre as cláusulas abusivas. Três artigos
encontram-se previstos nesta seção, mas a rigor somente dois, a lista
exemplificativa de cláusulas abusivas prevista no art. 51 e o art. 53,
proibindo cláusulas de perda total das prestações em contratos de
compra e venda de móveis ou imóveis e nas alienações fiduciárias,
prevêem cláusulas consideradas legalmente abusivas.
O art. 52, ao contrário, institui deveres de informação para o
fornecedor e assegura direitos específicos para o consumidor nos
Contratos de consumo que envolvam o nascimento de uma segunda
* (66) Assim Klang, p. 18 citando o mestre Orlando Gomes; já
definição do
próprio Klang da Teoria da Imprevisão visualiza-a como possibilidade de
"Revisão judicial das cláusulas contratuais, com o fim de ajustá-la à
nova
realidade, e restabelecer o equilíbrio contratual", p. 17. (p. 415)
relação contratual, relação de crédito ou de financiamento concedido
ao consumidor para que possa adquirir o bem de consumo.{67} O art. 52
prevê, igualmente, um valor máximo para as multas de mora (10%),
pelo que se deduz que cláusulas conflitantes com esta disposição legal
cogente não poderão ser cumpridas.
Segundo nos artigos 51 e 53 do CDC, ficam proibidas, sob pena
de nulidade da previsão, três espécies de cláusulas: a) aquelas que
impossibilitem, exonerem, atenuem ou impliquem em renúncia dos
novos direitos do consumidor instituídos pelo CDC; b) as chamadas
cláusulas "surpresa" (apesar do veto presidencial ao inciso V do art.
51); c) aquelas que criem determinadas vantagens unilaterais ao
fornecedor. Na lista do art. 51 encontra-se igualmente a cláusula geral
do inciso IV.

c.1 A lista do art. 51 - A Lista de cláusulas consideradas


abusivas
pelo CDC apesar de exemplificativa é bem específica e pode ser
dividida em três grupos, à exclusão da cláusula geral do inciso IV. Estes
três grupos dispõem:
Ficam proibidas as cláusulas que limitam os novos direitos do
consumidor.
O inciso I do art. 51 do CDC considera nulas as cláusulas que
afastem ou atenuem o direito à garantia por vício do produto criado
pelos arts. 18 e ss. Somente no caso do consumidor ser pessoa jurídica
poderá ser limitado o quantum da indenização. Nos contratos
elaborados unilateralmente, as cláusulas limitando ou atenuando os
direitos do outro parceiro contratual, o consumidor, eram as mais
comuns.{68}
Note-se que as normas do CDC se intitulam, no art. 1.º, normas
de ordem pública, logo inafastáveis pela vontade das partes. Mesmo
assim, em várias passagens o CDC menciona a ineficácia, ou a
invalidade de previsões contratuais neste sentido. Assim, por exemplo,
o art. 24 dispõe que a garantia legal de adequação dos produtos ou
* (67) O assunto tem destacada importância e mereceu em vários
países leis
especiais, veja a lei belga (Bourgoignie, "Clauses", p. 554), a lei
francesa,
de 1978, (Lamberterie, p. 701) e a lei inglesa, de 1974 (Salvat, p. 52).
(68) Assim concorda Pasqualotto, RT, p. 56 e o mestre italiano
Bessone, p. 831. (p. 416)
serviços{69} (antiga garantia pelos vícios redibitórios){70} independe de
sua inclusão no contrato e não pode mais ser exonerada através de
estipulação contratual, como permitia o art. 1.101 do CC. Assim,
também, o art. 25 proíbe a estipulação de cláusulas que impossibilitem
ou exonerem o fornecedor da obrigação de indenizar os danos
causados pelo fato do produto defeituoso, enquanto no direito
tradicional, a cláusula de exclusão de responsabilidade civil era, em
princípio, permitida.{71}
Estas repetições podem ter como finalidade acostumar, ou
lembrar os juristas mais tradicionais do novo regime cogente instituído
pelo CDC. Discutíveis, porém, são as últimas expressões do inciso
I, primeira parte, do art. 51. Em uma interpretação literal, a norma
afirma que são (nulas de pleno direito as cláusulas... que) "...impli-
quem renúncia ou disposição de direitos". A fórmula parece-nos
ampla em demasia, logicamente existem direitos disponíveis e direitos
indisponíveis, a ratio parece ser, que aqueles destacados no CDC
são indisponíveis, logo não podem ser objeto de renúncia. Seria assim,
mais uma repetição dos efeitos do art. 1.º, que já estabelece serem
de ordem pública as normas do CDC.{72} Serve também de alerta para
o fornecedor, no sentido de quando o contrato é de consumo, não
deve prever cláusulas que estabeleçam renúncia ou disposição de
direitos do consumidor. A lista do art. 51 é uma lista-guia, lista
exemplificativa de cláusulas abusivas, e será concretizada pela
jurisprudência brasileira.
Neste sentido a jurisprudência já tinha se manifestado no sentido
de desconsiderar as cláusulas de eleição do foro, sempre que o
contrato fosse de adesão, recorrendo à ficção da não manifestação
expressa de vontade ou mesmo às regras gerais de direito processual
* (69) No direito alemão desenvolveu-se ampla jurisprudência sobre
os contratos
de viagem e as cláusulas que exoneravam o fornecedor do serviço, por um
serviço inadequado durante a viagem no exterior, veja Ulmer/Brandner/
Hensen, pp. 737 a 749.
(70) Hoje a denominação correta, em se tratando de relações de
consumo é
simplesmente "vício", pois a nova noção de vício é bem mais ampla
que
a anterior, veja neste capítulo, 2.2.
(71) Também a lei francesa, em seu art. 2.º, proíbe tais
cláusulas, veja Berlioz,
p. 7 (2.954).
(72) Sobre a indisponibilidade veja Benjamin/Comentários, p. 34.
(p. 417)
sobre o foro.{73} Uma das bases da proteção do consumidor é o seu
acesso à justiça.{74} este acesso não pode ser dificultado pelo contrato,
que é expressão da superioridade técnica, fática e econômica do
fornecedor, pois é redigido unilateralmente por um e imposto à
aceitação pelo outro.
Os incisos II e III do art. 51, por sua vez, proíbem as cláusulas
que retiram do consumidor a opção de reembolso criada pelos arts. 53
e 42, parágrafo único, assim como as cláusulas que transfiram a
responsabilidade a terceiros.
O inciso VI do art. 51 refere-se ao novo direito criado pelo art.
6.º, inciso X, de inversão do ônus da prova em benefício do consumidor,
considerando nula a cláusula que estabeleça a inversão em prejuízo do
consumidor.
o inciso XVI do art. 51 impede a renúncia ao direito de
indenização por benfeitorias necessárias, considerando nula de pleno
direito esta cláusula, das mais comuns nos contratos de locação.
Segundo o direito tradicional, e a lei específica sobre locações era
possível ao locador, ou sua administradora, incluir no contrato unila-
teralmente redigido cláusulas que afastavam o direito de indenização
pelas benfeitorias úteis e necessárias. O CDC não menciona a nulidade
de cláusula que disponha sobre a renúncia ao direito de retenção do
art. 516 do Código Civil, assim até manifestação da jurisprudência no
sentido de uma aplicação analógica do inciso XIV, a interpretação a
contrario faz pressupor que tal cláusula não seria por si só abusiva,
dependendo das circunstâncias do contrato ser ela excessivamente
vantajosa ou contrária à boa-fé (art. 51, IV).
Por fim, dispõe o inciso XV que "serão consideradas nulas todas
as outras cláusulas não previstas na lista do art. 51, mas que estejam
em desacordo com o sistema de proteção do consumidor". Demons-
trando bem o espírito exemplificativo da lista, a ser completada pela
ação da doutrina e da jurisprudência.
* (73) Assim decisão do TJRGS, de 30.5.85, Rel. Des. Galeno
Lacerda, comentada
por Araken de Assis, in Rev. AJURIS 48/219: "Ineficácia do foro impOStO
em contrato de adesão a benefício da seguradora onipotente ... a parte
fraca
pode valer-se das regras gerais de competência...".
(74) Assim concorda Bourgoignie/"ClauseS", p. 515, que destaca a
coincidência
entre as preocupações com os consumidores e o chamado "acess-to-juStice
movement". (p. 418)
Ficam proibidaç as cláusulas criadoras de vantagens unilaterais
para o fornecedor.
Os incisos IX, X, XI, XII e XIII do art. 51 consideram também
nulas as cláusulas que prevêem: a opção de concluir ou não contrato,
a variação do preço, a possibilidade de cancelar o contrato, e a
possibilidade de receber de volta os custos da cobrança da dívida,
sempre que igual direito não seja conferido ao consumidor.
Nestes casos as cláusulas não são consideradas nulas por seu
conteúdo, mas pela unilateralidade da vantagem concedida, o que as
torna abusivas.
Assim, o inciso IX prevê a nulidade da cláusula que permite ao
fornecedor uma opção "de concluir ou não o contrato" embora
obrigando o consumidor, assim quando atendendo a oferta vai a
revendedora de veículos e assina proposta de contrato, que será enviada
à matriz para verificar se há estoque ou se o consumidor preenche os
requisitos necessários. Enquanto isso o consumidor não pode contratar
com outro fornecedor e se o fizer, terá que arcar com os ônus de sua
quebra contratual. A unilateralidade é patente. A nova noção de oferta
instituída pelo CDC talvez venha a diminuir esta prática. O inciso X
prevê a nulidade da cláusula que permita ao fornecedor a variação do
preço, isto é, da contra-prestação a cargo do consumidor.{75} Em um país
acostumado a indexar os débitos futuros, em virtude da inflação, a
norma do art. 51, X, tem o mérito de afastar as cláusulas contratuais
que permitiam ao fornecedor escolher entre os índices de correção (por
ex.: "BTN, IPC, CUB ou outro índice oficial"), pois era impossível ao
consumidor prever o quantum de sua dívida e a escolha era unilateral,
desequilibrando as prestações pois sempre o índice maior era o
escolhido.
Dos restantes incisos deste grupo, o XIII merece maior atenção.
Segundo este inciso do art. 51 do CDC "são nulas as cláusulas que
autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo e a
qualidade do contrato, após sua celebração" (grifo nosso). Parece-me
* (75) Segundo a reiterada jurisprudência alemã, o consumidor tem
o direito de
prever qual será a amplitude do aumento dos preços, principalmente em
contratos de prestação sucessiva, como os de assinatura de periódicos,
veja
NJW 1980, 2.518, NJW 1982, 331 e NJW 1986, 3134 e Revue Européenne
de Droit de la Consommation, 1987, p. 124. (p. 419)
que neste caso foi infeliz o legislador no uso da terminologia, pois,
enquanto a modificação do conteúdo do contrato é uma expressão vasta,
mas adequada, modificar a "qualidade" de um contrato não é tão fácil.
Talvez aqui o legislador queira afirmar, a exemplo do § 10, n. 4 da lei
alemã de 1976, que são nulas as cláusulas que prevêem a modificação
do conteúdo e da qualidade da prestação contratual. Neste grupo de
cláusulas abusivas incluem-se as previstas no art. 53 do CDC, isto é,
aquelas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em
contratos de compra e venda de móveis e imóveis mediante pagamento
em prestações, assim como nas alienações fiduciárias. A cláusula está
expressamente prevista no art. 53 como proibida, em virtude da
importância hoje alcançada pelas vendas através do sistema de consór-
cios, os quais previam cláusulas semelhantes, com o beneplácito do
Estado, mas pelo caráter abusivo e ineqüitativo de tais previsões
contratuais, poderia ter sido objeto de aplicação da cláusula geral do
inciso IV do art. 51:
"Ficam proibidas as cláusulas "surpresa"."
O inciso V do art. 51, vetado pelo Presidente da República,
sancionava com nulidade as cláusulas que, segundo as circunstâncias, e,
em particular, segundo a aparência global do contrato viessem a surpre-
ender o consumidor, após a celebração do contrato. Este inciso inspirado
no § 3.º da lei alemã foi vetado sob o argumento de estar incluído no
inciso IV do art. 51, o qual como veremos é no CDC brasileiro a cláusula
geral. Efetivamente parte da doutrina alemã{76} criticava a norma do §
3º,
por considerar que todas as cláusulas surpresa poderiam ser incluídas
entre as proibidas pela regra geral do § 9.º da lei alemã. Note-se,
porém,
que o inciso IV do art. 51 CDC não possui o mesmo status do § 9.º da lei
alemã, que é expressamente a cláusula geral proibitória daquela lei e
que,
com sua amplitude, foi a grande responsável pela atualização a evolução
da proteção contra cláusulas gerais abusivas na Alemanha,{77} logo, a
repetição poderia ser positiva.
No CDC, porém, outras cláusulas surpresa foram consideradas
nulas. Assim, os incisos VII e VIII do art. 51 consideram nulas as
* (76) Assim Hein Koetz, in Muenchener Kommentar zum BuergerliChen
Gesetzbuch, v. 1, Parte Geral, Munique: Beck, 1984, p. 1.650 (§ 3.º
AGBG).
(77) Assim conclui Ulmer, Zehn Jahre, ob. cit., pp. 10 e 11. (p.
420)
cláusulas que determinem a utilização compulsória da arbitragem e que
imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurí-
dico pelo consumidor. Nesta terceira edição, em virtude da nova Lei
sobre arbitragem, Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, reexaminaremos
este tema quando da análise das cláusulas identificadas como abusivas
pela jurisprudência (1.2, c.3 desta Parte).

c.2 A norma geral do inciso IV do art. 51 - O inciso IV do


art. 51 combinado com o § 1 .º deste mesmo artigo constitui, no
sistema do CDC, a cláusula geral proibitória da utilização de
cláusulas abusivas nos contratos de consumo. O inciso IV, de nítida
inspiração no § 9.º da lei alemã,{78} proíbe de maneira geral todas as
disposições que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja,
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade". As expressões utilizadas,
boa-fé e eqüidade, são amplas e subjetivas por natureza, deixando
larga margem de ação ao juiz; caberá, portanto, ao Poder Judiciário
brasileiro concretizar através desta norma geral, escondida no inciso
IV do art. 51, a almejada justiça e eqüidade contratual. Segundo
renomados autores, o CDC ao coibir a quebra da equivalência
contratual e considerar abusivas as cláusulas que coloquem o
consumidor em "desvantagem exagerada" está a resgatar a figura de
lesão enorme e a exigir um dado objetivo de equilíbrio entre as
prestações.{79} Parece-nos que a norma do inciso IV do art. 51, do
CDC, com a abrangência que possui e que é completada pelo disposto
no § 1.º do mesmo art. 51, é verdadeira norma geral proibitória de
todos os tipos de abusos contratuais, mesmo aqueles já previstos
exemplificativamente nos outros incisos do art. 51.
A boa técnica legislativa ordenaria que norma tão importante e
ampla estivesse contida em artigo próprio e não escondida, talvez por
medo do veto, em uma lista de quinze incisos. Mas, seja como for, a
cláusula geral da boa-fé da eqüidade e do equilíbrio nas relações
contratuais está presente no sistema do CDC representando uma das
importantes inovações introduzidas por esta lei no direito contratual
* (78) Veja Rieg, p. 926, a tradução é praticamente literal.
(79) Aguiar, Cláusulas, p. 15 menciona inclusive uma cláusula
geral da lesão
enorme na parte 2 do inciso IV do art. 51, na mesma linha, Pereira,
Lesão,
p. 212. (p. 421)
brasileiro.{80} Segundo o inciso IV do art. 51, são nulas as cláusulas
que
estabeleçam obrigações consideradas iníquas, "que coloquem o consu-
midor em desvantagem exagerada, ou seja incompatíveis com a boa-
fé ou a eqüidade". Três são, portanto, os parâmetros: 1) o conhecido
princípio da boa-fé, de inspiração alemã (§ 242 BGB), grande ausente
no Código Civil Brasileiro de 1917, que, agora, após os esforços da
jurisprudência e da doutrina, encontra-se positivado no sistema jurídico
brasileiro; 2) a eqüidade, significando, aqui, mais a necessidade do
chamado equilíbrio contratual (na expressão de Raiser, Vertragsgere-
chtigkeit), do que a inspiração inglesa da decisão caso a caso na falta
de previsão legal anterior, uma vez que as normas do próprio CDC, nos
seus artigos iniciais, básicos, já instituem linhas mestras para este
equilíbrio; 3) a noção de vantagem exagerada, que vem complementada
no § 1.º do art. 51, o qual institui alguns casos de presunção de
vantagem exagerada, nitidamente inspirados na alínea 2 do § 9.º da Lei
alemã de 1976.
Destaque-se que para a doutrina alemã o ponto nuclear da cláusula
geral do § 9.º AGBG e, portanto, analogicamente, do nosso inciso IV,
seria a vantagem exagerada. Consideram que este seja o critério mais
concreto, devendo recorrer-se a noções mais amplas de boa-fé para
reforçar a idéia de equilíbrio e para não romper com o princípio geral
de boa-fé, presente no direito alemão tradicional (§ 242 BGB).{80.A}
Quando da elaboração da lei a expressão inicial usada foi "desequilíbrio
de interesses", que após foi substituída pela expressão "desvantagem
exagerada" do cliente. A fonte da expressão continuaria a ser, porém,
a falta de equilíbrio no contrato.
No caso da lei brasileira, devido à inexistência de uma previsão
legal de boa-fé nas relações obrigacionais,{81} parece-nos razoável que
se interprete o inciso IV como prevendo critérios complementares, maS
distintos, podendo ora a jurisprudência identificar uma vantagem
exagerada, ora uma outra espécie de afronta à boa-fé.
O § 1.º do art. 51 estabelece a presunção de ser exagerada a
vantagem que "ofende os princípios fundamentais do sistema jurídiCo
* (80) Sobre a importância desta cláusula geral de boa-fé para a
evolução do direito
obrigacional, veja Pasqualotto, RT, p. 54.
(80.A) Assim ensina Rieg, pp. 927 e ss.
(81) O Projeto 634/75 pretendia introduzi-la no Brasil. (p. 422)
a que pertence", o que "restringe direitos ou obrigações fundamentais
inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto
ou o equilíbrio contratual", que "se mostra excessivamente onerosa
para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato,
o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso". São
critérios mais uma vez amplos, mais uma vez inspirados na lei alemã
de 1976, na alínea 2.º do § 9.º.{82} Estes critérios serviram na prática
alemã para a proteção das legítimas expectativas criadas pelos diversos
tipos de contratos. Protegendo estas expectativas, oriundas da lei civil,
que era porém dispositiva, a jurisprudência foi reduzindo o grau de
disponibilidade dos direitos oriundos dos contratos, para determinar
que um núcleo mínimo deveria ser mantido (Leitbild).{83} Assim, se
um contrato de locação dispõe que o inquilino se responsabilizará
pela reparação do imóvel, esta responsabilidade não está incluída na
natureza normal do contrato de locação que não transfere a proprie-
dade, mas, tal cláusula seria permitida pela lei específica, uma vez
que supletiva e dispositiva. No sistema atual tal cláusula pode ser
inserida na previsão do inciso III, do § 1.º do art. 51, que proibe
cláusulas excessivamente onerosas para o consumidor, considerando
a natureza do contrato. O mesmo se poderia dizer de cláusula que
responsabiliza o inquilino pelo ressarcimento dos danos causados por
incêndio, mesmo que este tenha sua origem em caso fortuito. Neste
caso a cláusula ofenderia princípios fundamentais do sistema jurídico,
qual seja o da exoneração por caso fortuito e força maior, e poderia
ser considerada abusiva com base no inciso I do § 1.º do art. 51.
Nesse sentido as hipóteses do § 1.º servem para possibilitar que o
Consumidor atinja o esperado com o contrato que firmou, protegendo
as suas expectativas legítimas, os seus interesses básicos, quando
aceitou obrigar-se.
Esta norma geral positivada no CDC, conduz a jurisprudência
brasileira a examinar, a partir da entrada em vigor da nova lei, o
conteúdo
* (82) Mencione-se aqui a contribuição de Barbosa Moreira, Carlos
Roberto, "Um
caso de má tradução no Código de Defesa do Consumidor", in Direito do
Consumidor, v. 9/62 a 68, que critica a tradução do § 9.º da lei alemã
(AGBG) feita no § 1.º, inciso I do art. 51 e que sugere como melhor
tradução,
p. 67: "Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que ofende
os princípios básicos do sistema jurídico a que pertence a norma legal
cuja
incidência foi afastada".
(83) Assim Rieg, p. 929. (p. 423)
de todos os contratos de consumo a ela apresentados, para decretar a
nulidade absoluta das cláusulas, conflitantes com os novos critérios de
boa-fé e equilíbrio nos contratos entre fornecedores e consumidores.
Cabe-nos, portanto, examinar agora as cláusulas que na prática
destes primeiros anos de vigência do CDC, de sua cláusula geral e da
lista do art. 51, foram consideradas abusivas pela jurisprudência
brasileira. A contribuição da jurisprudência brasileira a exegese do CDC
merece nossa especial atenção nesta segunda edição, motivo porque
incluímos uma análise específica dos problemas mais constantes.

c.3 As cláusulas identificadas pela jurisprudência - Ao incluir


uma seção especial analisando a atividade da jurisprudência brasileira
na subsunção de casos práticos à lista do art. 51 e aos demais artigos
do CDC e da sua atividade de concreção da cláusula geral de boa-fé
do art. 51, inciso IV do CDC, desejamos chamar a atenção para a
importância renovadora do direito civil (ou oxigenadora, na feliz
expressão de Dall’Agnol Jr.), que o CDC tem exercido no dia a dia de
nossos Tribunais e Juizados Especiais de Pequenas Causas.
Incluímos também decisões que, mesmo não mencionando o
CDC, decidiram casos e contratos envolvendo relações de consumo.
Note-se que, face a opção de parte do Judiciário de não utilizar
diretamente normas do CDC em lides envolvendo contratos assinados
antes da entrada em vigor do CDC (março de 1991), como forma de
evitar a discussão constitucional da garantia a o ato jurídico perfeito,
muitas decisões baseiam-se seja no princípio da boa-fé, do enriqueci-
mento sem causa, do equilíbrio contratual, da transparência, da prote-
ção da confiança despertada, seja no próprio Código Civil de 1916 e
sua noção de combate ao abuso, enquanto outras preferem utilizar o
CDC como mera fonte de inspiração, de argumentação ou de interpre-
tação dos contratos.
Consideramos que contribuição maior do CDC é a renovação que
trouxe ao direito civil, à teoria aqui chamada de clássica dos contratos,
são os seus novos princípios e direitos. Sendo assim, estas decisões em
matéria de relações contratuais de consumo mesmo não utilizando O
CDC merecem nossa atenção, pois, o impressionante reequilíbrio e a
justiça contratual alcançada em algumas das decisões possuiu igual-
mente um efeito multiplicador e podem ser criadoras de um estado de
segurança jurídica no mercado brasileiro igual ou maior do que a (p. 424)
simples citação ou subsunção em uma determinada lei ou norma. Como
o próprio Supremo Tribunal Federal afirmou, em sua basilar decisão
sobre a inconstitucionalidade do IPMF, os princípios têm prevalência
sobre as normas positivas; os princípios são em última análise a fonte
das normas, eles as determinam, as derrogam ou as subjugam a uma
nova e atualizada interpretação.
Mencione-se igualmente que a presente análise não teve a preten-
são de englobar toda a atividade jurisprudencial neste setor, tarefa
herculana em um Brasil de tantos Estados, Tribunais e Foros, mas
apenas apresentar algumas linhas jurisprudenciais mais constantes. Em
matéria de relações contratuais de consumo, nem todas as linhas
jurisprudenciais encontram-se pacificadas, ao contrário, muitas vivem
um processo de franca modificação, o que se de um lado limita a
abrangência deste painel, de outro, permite que se visualize os passos
já consubstanciados pela jurisprudência brasileira e, talvez, permita se
retire uma certa projeção ou tendência de futuro.
Especificamente, quanto às cláusulas identificadas pela jurispru-
dência brasileira como abusivas ou presumivelmente abusivas, podería-
mos dividi-las em dois grupos, em muito coincidentes com os anterior-
mente mencionados quanto a lista do art. 51 do CDC: as cláusulas
limitativas dos direitos do consumidor e as cláusulas desequilibradoras
da relação contratual específica. Tratando-se, porém, de matéria ainda
não suficientemente sedimentada, vamos preferir uma análise cláusula
a cláusula, com a seguinte ordem: 1) cláusulas de exclusão e limitação
da responsabilidade contratual (entre elas: as exoneratórias de respon-
sabilidade contratual e extracontratual, as cláusulas de indenização
tarifada ou limitada, as cláusulas de limitação da obrigação em
contratos envolvendo saúde, a chamada cláusula de decaimento e as
cláusulas penais clássicas); 2) as cláusulas influenciando o acesso à
justiça (entre elas: a cláusula de eleição do foro, de arbitragem e sobre
O ônus da prova); 3) as cláusulas-mandato; 4) as cláusulas de decla-
rações fictas, de informação, de consenso ou de entrega ficta; 5) as
cláusulas atípicas de remuneração (entre elas: a de remuneração
Variável ou repetida, cláusulas de imposição de índices unilaterais de
reajuste ou de imposição de juros acima do limite constitucional); 6)
Cláusulas de deliberação do vínculo (entre elas: cláusulas de resolução,
rescisão, denúncia, renovação em curto prazo, distrato forçado em
Contratos de longa duração); 7) as cláusulas-barreira. (p. 425)
Cabe-nos, portanto, examinar agora as cláusulas que na prática
destes primeiros anos de vigência do CDC, de sua cláusula geral e da
lista
do art. 51, foram consideradas abusivas pela jurisprudência brasileira. A
contribuição da jurisprudência brasileira à exegese do CDC merece
nossa especial atenção nesta segunda edição, motivo porque incluímos
uma análise específica dos problemas mais constantes.

1. Cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade


contratual:
Cláusulas de não-indenizar, cláusulas de indenização tarifada ou
limitada, cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo
saúde, cláusulas punitivas e cláusulas penais "stricto sensu"

Face a conscientização mundial da necessidade de proteção dos


consumidores no mercado e das pessoas a ele equiparadas por lei, é
hoje bastante controversa a validade das cláusulas de exclusão e de
limitação da responsabilidade contratual.{84} Superada a visão absoluta
do dogma da autonomia da vontade e da liberdade de estabelecer o
conteúdo contratual, começaram os juristas a repensar esta espécie de
cláusula que toca o âmago do contrato: as obrigações de cada uma das
partes e seus reflexos em caso de descumprimento.
Em verdade, apesar de seus vários nomes e espécies, estas
cláusulas regulam (e limitam) ora a realização, ora a frustração da
finalidade do contrato, regulam (limitam ou influenciam) ora o cum-
primento, ora o efeito do descumprimento das obrigações contratuais
assumidas. Devido a sua extrema importância prática para a harmonia
do mercado e a realização das expectativas legítimas dos consumidores,
trataremos aqui de 5 de suas espécies de maior importância no mercado
brasileiro, sem, porém, desconhecer que poderão haver outros tipos de
cláusulas de limitação, de exoneração ou que atenuam a responsabi-
lidade do fornecedor e, conseqüentemente, limitam ou levam a renúncia
dos direitos dos consumidores que possuem um caráter igualmente
abusivo.{85} Iniciaremos com a análise das cláusulas de exoneração da
* (84) Estamos utilizando aqui a expressão genérica presente na
obra, precisa e
exaustiva, de Ana Prata.
(85) Em sua exaustiva obra, Ana Prata analisa mais de 25 espécies
de cláusulas
de exoneração ou de limitação da responsabilidade contratual. Viney,
II/248,
também as trata conjuntamente, afirmando que todas caracterizam-se pela
"paralisia do direito à reparação". (p. 426)
responsabilidade em geral, para após analisar as cláusulas de limitação
da responsabilidade com indenização tarifada ou limitada, as cláusulas
de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde, a chamada
cláusula de decaimento ou de perda das prestações pagas e a cláusula
penal clássica.

1.1 Cláusulas da exclusão da responsabilidade contratual e


extracontratual

Para melhor compreender a importância destas "cláusulas de


exclusão e limitação da responsabilidade contratual", podemos partir
da figura criada por Larenz para explicar a íntima relação entre o
binômio obrigação/responsabilidade. Segundo Larenz, obrigação e
responsabilidade são dois lados de um mesmo fenômeno, como um
edifício (obrigação) e sua sombra (responsabilidade), que para o
parceiro contratual vai significar o nascimento de uma pretensão inicial
e primária (realização do fazer, do não fazer ou do obrigacional) e a
conseqüente pretensão posterior e secundária para o caso de
descumprimento ou frustração (perdas e danos).{86}
Esta dualidade entre obrigação e responsabilidade (em alemão
Schuld e Haftung) é uma união tão forte, uma interdependência, que não
se adapta a idéia de simples causa e efeito, ao contrário só se explica
com
a visão unitária e ao mesmo tempo dualista de um mesmo fenômeno:
quem está obrigado, responde, quem responde é porque está obrigado.
Neste sentido, se excluo a responsabilidade contratual de um
parceiro, retiro de sua obrigação contratual uma força, uma parte
intrínseca, sua sombra, como diria Larenz. Crio uma obrigação pela
* (86) Veja Larenz, pp. 23 e 24; note-se que a tradução portuguesa
da obra de
Larenz geralmente privilegia as expressões: débito e responsabilidade,
para
bem frisar o caráter de obrigação stricto sensu da expressão Schuld.
Mesmo
reconhecendo os méritos desta tradução mais estrita, utilizarei nesta
obra
a expressão de múltiplos significados "obrigação", seja porque estes já
foram especificados e discutidos em passagens anteriores, seja porque
nossa
tradução pode ser útil na compreensão das semelhanças estruturais entre a
responsabilidade contratual e extracontratual, hoje defendidas pela
teoria
unitária. A figura básica de Larenz é a seguinte: da imposição de um
dever
(de prestar, anexo ou de conduta) nasce uma obrigação para um indivíduo
(contratual ou extracontratual) e sua sombra (responsabilidade contratual
ou
extracontratual conforme a fonte). (p. 427)
metade, um leão sem dentes, um objeto sem sombra possível. No outro
lado da relação, conseqüentemente, faço nascer uma pretensão inicial
positiva, de cumprimento voluntário e primário, mas impossibilito o
nascimento da pretensão secundária, da conseqüência do não cumpri-
mento espontâneo e pontual da obrigação.{87} A cláusula de exclusão total
da responsabilidade contratual (cláusula de não-indenizar ou de
irresponsabilidade) é hoje rara no mercado brasileiro, face a resposta
da jurisprudência e da doutrina, que consideram esta cláusula fonte de
forte desequilíbrio contratual, vantagem excessiva para uma das partes
que redige e impõe o conteúdo contratual, verdadeiro enriquecimento
sem causa e, portanto, contrária a boa-fé e abusiva, mesmo face ao
direito tradicional.{88}
Entre as cláusulas de exclusão da responsabilidade, a doutrina
identificou mais de 15 tipos: a conhecida cláusula de não-indenizar (a
que prevê a renúncia a todas as conseqüências do descumprimento), a
cláusula de irresponsabilidade do fornecedor por atos próprios ou de
terceiros, a cláusula extintiva do dever de prestar, a convenção
impositiva
de seguro a cargo do consumidor, a cláusula de substituição do dever
de indenizar pecuniariamente pelo dever de indenizar em espécie,
cláusulas que atestam a qualidade da prestação, e as cláusulas
afastadoras
de alguns fundamentos da responsabilidade do fornecedor, como a
cláusula exoneratória da responsabilidade por atos de terceiros, a
negligence clause, a cláusula exoneratória da responsabilidade por
culpa ou culpa leve, as cláusulas estabelecendo os "casos de força maior
assimilados" e as presunções de "casos fortuitos" para aquele tipo de
relação, as cláusulas sobre outras circunstâncias liberatórias,{89} a
exo-
neração da responsabilidade por mora, exoneração por cumprimento
defeituoso, exoneração da responsabilidade por referência aos danos,
a insurance Clause.{90}
* (87) Como afirma Hugh Beale, in Ghestin, Limitatives, p. 161, o
contrato de
consumo não pode ser redigido pelo fornecedor de forma a ser uma simples
"declaração de intenções" de sua parte, de modo que nem cumprir as suas
obrigações necessite.
(88) Assim Aguiar Dias, II/216.
(89) Veja interessante caso do STJ de não exoneração da
responsabilidade do
construtor por chuvas "excessivas", in RT 676/195. Sobre responsabilidade
solidária por desabamento do prédio, veja TJSP, in RT 686, p. 119.
(90) A lista foi elaborada por Ana Prata, pp. 56 a 85, na qual
expõe uma série
de diferenciações, que extrapolam os estreitos limites desta análise. (p.
428)
Muitas destas cláusulas são contrárias expressamente a normas do
CDC e, portanto, abusivas (ilícitas, se preferirem) e devem ter sua
nulidade absoluta declarada pelo Judiciário ex officio. Neste sentido é
claro o art. 25 do CDC, segundo o qual fica "vedada a estipulação
contratual que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de inde-
nizar" prevista seja na seção sobre vícios do produto ou serviço (Seção
III do Cap. IV do CDC, que impõe a responsabilidade pelo vício ao
fabricante e ao comerciante, solidariamente, sem importar-se com o
seguro, sem possibilidade de exoneração da mora ou da alegação de
caso fortuito ou força maior, face a idéia de qualidade-adequação), seja
nas seções sobre fato do produto ou serviço (Seção II do mesmo
capítulo, que ao impor a noção de defeito e inverter o ônus da prova
cria a idéia de caso fortuito "interno" e inescusável, superando a noção
de culpa e impondo uma qualidade-segurança mínima) e sobre a
qualidade dos produtos e serviços, prevenção e reparação dos danos
(Seção 1 do Cap. IV do CDC, que superando a idéia de culpa ou de
fortuito impõe deveres de informação sobre a periculosidade e mesmo
o dever de reparar ou substituir os produtos).
O dever de indenizar, ou melhor, a obrigação de indenizar
imputada pelo CDC ao fornecedor nestas seções do CDC não pode,
portanto, ser afastada por cláusula contratual. Trata-se de uma conse-
qüência lógica da força e hierarquia das normas do CDC, que são de
ordem pública (art. 1.º do CDC), logo, indisponíveis. Dogmaticamente
este dever de indenizar imposto, sem possibilidade de exclusão
contratual,
e regulado detalhadamente em lei surge como decorrência da neces-
sidade de repartir os riscos da vida social.{91}
Tendo em vista a posição sistemática do art. 25 do CDC, no
terceiro capítulo do CDC e com um renvoi às seções anteriores, e de
forma a também englobar todos os outros deveres e obrigações do
fornecedor não mencionados expressamente neste capítulo, o legislador
do CDC sentiu a necessidade de complementar a proibição do art. 25
com a norma do art. 51, I do CDC. O art. 51, I, norma geral sobre
cláusulas abusivas presentes em contratos de adesão ou paritários de
consumo, combate estas cláusulas ao considerar abusivas àquelas que
exonerem a responsabilidade por vícios de qualquer natureza ou
* (91) Assim ensinava o mestre de Porto Alegre, Clóvis do Couto e
Silva em seu
artigo de 1967, O Dever de Indenizar. (p. 429)
impliquem renúncia ou disposição de direitos. Assim, por exemplo a
cláusula que exonerar o fornecedor do dever de informar o art. 33 do
CDC (vendas a distância), ou exonerá-lo da responsabilidade pelos atos
dos prepostos ou representantes autônomos, imposta de forma expressa
como responsabilidade solidária no art. 34 do CDC, é cláusula abusiva,
no sentido do art. 51, I e deve ser declarada sua nulidade.
A doutrina brasileira e a jurisprudência anterior ao CDC já
combatiam este tipo de cláusula, ora porque tentavam regular aspectos
da responsabilidade extracontratual em sede de contrato, ora porque
contrariavam normas de ordem pública (critério de Pontes de
Miranda), violando deveres legais impostos a estes agentes econô-
micos, ora porque transferiam obrigações essenciais do contratante
(critério de Aguiar Dias), exonerando a responsabilidade por dolo ou
culpa,{92} exonerando de deveres de cuidado que interessam a saúde,
à proteção da vida, da integridade física ou econômica do outro
contratante.
A caracterização das mencionadas cláusulas de exoneração da
responsabilidade contratual como em princípio abusivas (e ilícitas)
reserva, portanto, poucas dificuldades. O mesmo não se pode afirmar
em relação às cláusulas de limitação da responsabilidade contratual,
que apesar de previstas nos arts. 25 e 51, I vão encontrar um tratamento
diferenciado também no CDC. O próprio art. 51, I, em sua segunda
frase prevê uma exceção, de validade da cláusula, mas somente a
cláusula de limitação (não a de exclusão) da responsabilidade entre
pessoas jurídicas igualmente o art. 54, § 4.º do CDC menciona deveres
de destaque na redação de contratos de adesão contendo cláusulas que
limitem direitos dos consumidores.
Interessante notar que algumas destas cláusulas procuram mesmo
exonerar o fornecedor de uma futura e, eventual, responsabilidade
extracontratual. Isto viola frontalmente os dispostos nos arts. 12 e ss.
do CDC sobre a responsabilidade dos fornecedores ali expressamente
mencionados por fato do produto ou serviço defeituoso. O art. 17 do
CDC expande o campo de aplicação destas normas, abrangendo todas
* (92) Veja, por todos, Aguiar Dias, p. 128; quanto à
impossibilidade de exone-
ração através do contrato da responsabilidade extracontratual, uma vez
que
fereria as normas de ordem pública que a impõe, veja os ensinamentos de
Viney, II, pp. 251 e ss. (p. 430)
as vítimas destes eventos atentatórios à segurança e saúde dos consu-
midores e dos consumidores equiparados. A doutrina brasileira mesmo
antes da entrada em vigor do CDC já considerava tais cláusulas
inválidas ou mesmo ineficazes, face aos limites estritos da força
obrigatória do contrato.
O tema mantém seu interesse face a posição jurisprudencial de
aceitar a cumulação de danos materiais e danos imateriais (Súmula 37
do STJ). O ressarcimento do dano moral foi assegurado ao consumidor
pelo art. 6.º, VI do CDC, mas não se limita, como no sistema alemão
ao ressarcimento de danos morais em relações extracontratuais. No
novo sistema de direito brasileiro a jurisprudência está aceitando a
cumulação de pretensões de indenização de danos materiais (entrega
de produto falho) e de danos morais (envio do nome do cliente para
o SPC durante as conversações para o conserto do produto).{93} Reco-
nhece-se, assim, que a origem de ambos os danos podem ser violações
de deveres principais (prestação adequada) e deveres anexos (por
exemplo, do dever de cuidado).
Conforme mencionamos na parte referente a nova interpretação
dos contratos de consumo, a tendência atual é de considerar estes
deveres anexos incluídos entre as obrigações contratuais pactuadas,
* (93) Assim caso decidido pelo TARS, que traz a seguinte ementa:
"Indenização
por danos materiais e morais - Cliente especial - Reclamação por defeito
de mercadoria aceita após vários meses - Prescrição inexistente - Letra
de
câmbio sem aceite não pode ser protestada - Nulidade do título -
Cancelamento de registro do SPC. Aquele que é tido como cliente especial
por loja comercial deve ter tido analisadas as suas qualidades pessoais,
as
possibilidades econômico-financeiras e, particularmente, sua posição
social
e funcional. Esse conjunto constitui o patrimônio moral do indivíduo que,
se se ferido, precisa ser indenizado. Apontada a letra de câmbio no
Cartório
de Protesto, sem aceite e irregularmente criada, e o envio injustificado
do
nome de cliente especial ao SPC, para registro, constituem circunstâncias
que devem ser sopesadas para a fixação dos danos morais pelo julgador,
eis que originam abalo de crédito. Admitindo a loja comercial uma
reclamação por defeito do produto mais de 3 meses após a compra, não
poderá argüir em seu favor o instituto da prescrição, uma vez que
reconheceu o direito do consumidor ao ficar com a mercadoria a fim de
exigir providências junto ao fabricante. Indenização cumulativa de danos
materiais e morais. Posição da doutrina e da jurisprudência. Dado provi-
mento (unânime)". (Ap. Cív. 190118463, rel. Dr. Flávio Pâncaro da Silva,
2.ª Câm. Cív., TARS, j. 11.4.91). (p. 431)
constituindo assim uma garantia de segurança e adequação mínima,{94}
de uma boa-fé standard na prestação do serviço ou no fornecimento
do produto, isto é, na relação de consumo. Se violado este novo
conteúdo contratual não pode o fornecedor desresponsabilizar-se por
previsão contratual expressa a respeito. Também no direito comparado
tais cláusulas de exoneração dos novos deveres anexos contratuais são
consideradas abusivas.{95}
Neste caso a base para a declaração da abusividade e da ilicitude
da
cláusula de irresponsabilidade eventualmente presente na relação
contratual básica pode ser tanto a fonte constitucional e o art. 6.º, VI
do
CDC, quanto seu art. 51, I ou IV, a cláusula geral de boa-fé do Código.

1.2 Cláusulas de limitação da responsabilidade do fornecedor (de


indenização tarifada ou limitada)

O mercado brasileiro apresenta uma série de cláusulas, que


poderíamos classificar como "cláusulas de limitação da responsabili-
dade" do fornecedor. Assim a cláusula que impõe uma forma especial
para o exercício dos direitos do consumidor, forma não prevista em lei,
é limitativa da responsabilidade do fornecedor, pois este só responderá
se o consumidor seguir exatamente a forma prevista no texto contratual.
Cláusulas alterando o critério de causalidade entre o não-cumprimento
e os danos ressarcíveis ou cláusulas encurtando os prazos para reclamar
* (94) Veja nesse sentido a decisão do JEPC/RS: Cláusula de
exoneração de
garantia. Venda de veículo usado, que funde o motor cerca de 20 dias após
o negócio. Ineficácia da cláusula em face do dever legal de garantia,
imposto
pelo art. 24 da Lei 8.078/90 (CDC). Ação julgada procedente. Recurso
improvido por unanimidade (Rec. 149/93, rel. Dr. Roberto Lessa Franz, 3.ª
Câm. Recursal, Porto Alegre, 24.6.93).
(95) Refiro-me aqui, em especial, ao direito inglês, o qual cria
a presunção de
que tais deveres anexos, por exemplo de informação e cuidado, estariam
incluídos no contrato, enquanto verdadeiras novas obrigações implícitas
quanto à qualidade, conformidade do bem, condições de venda e título de
propriedade do bem (Sale of Goods, Sections 14, 13, 12 e 55). As
cláusulas
exoneratórias ou limitativas foram proibidas em contratos de compra e
venda pelo UCTA. (Unfair Contract Terms Act 1977). s. 6(2); veja Beale,
in Ghestin, Limitatives, pp. 169 e ss. O autor destaca a utilização do
critériO
de reasonableness como instrumento do juiz para verificar a eventual
validade das cláusulas. (p. 432)
ou invertendo o ônus da prova são todas cláusulas limitativas dos
direitos dos consumidores e limitativas a contrario da responsabilidade
do
fornecedor. Na falta de previsão expressa, a jurisprudência brasileira
tem analisado e considerado essas cláusulas ofensivas aos ditames da
boa-fé sempre sob a ótica do inciso IV do art. 51, recorrendo geralmente
à noção de desvantagem excessiva para o consumidor positivada no §
1.º do art. 51 do CDC.{96}
Trataremos destas cláusulas nas próximas subdivisões especiais ou
agrupadas sob a denominação de "cláusulas-barreira"; inicialmente,
porém, queremos analisar com especial atenção um tipo de cláusula de
limitação da responsabilidade: as cláusulas de fixação de um máximo
indenizatório e suas variantes, cláusulas de indenização tarifada ou
limitada.{97}
No direito comparado, quando se analisam as cláusulas de
limitação da responsabilidade e seus efeitos nos contratos de consumo,
dois temas são sempre destacados: a necessidade de equilíbrio do
contrato e o de segurança nas relações contratuais.{98}
Concordam todos que as cláusulas limitativas de responsabilidade
da parte mais forte (assim como as de exclusão) desequilibram o
contrato, ao impedir uma composição eqüitativa dos interesses privados
que o contrato regula.{99} Em outras palavras, quebrando o equilíbrio
entre direitos e obrigações (responsabilidade) de cada uma das partes,
ao retirar ou limitar as garantias normais que teria a parte mais fraca
em contratos sem este tipo de cláusula.{100}
* (96) Exemplo dessa linha jurisprudencial é a decisão do TJRS, de
21 de agosto
de 1997: "Seguro contra incêndio. Cláusula de depreciação. Nulidade. É
nula a cláusula de depreciação inserida em contrato de seguro contra
incêndio por afronta ao Código do Consumidor, art. 51, § 1.º, inc. II,
eis
que, atribuindo à própria seguradora, em caráter unilateral, a fixação do
índice de depreciação do bem, põe em cheque o próprio objetivo do
contrato
(que é a cobertura do risco) e o equilíbrio das partes contratantes.
Recurso
provido em parte" (Ap. Civ. 597095868, 5.ª Câm. C., Des. Luiz Felipe
Brasil
Santos, in Revista de Jurisprudência do TJRS, n. 185, p. 373 e ss.).
(97) A terminologia e os exemplos de cláusulas limitativas que
estamos usando
foram retirados da obra exaustiva e sempre recomendada de Ana Prata, p.
86.
(98) Assim Viney, "Rapport de Synthése", in Ghestin, Limitatives,
p. 331.
(99) Veja a Súmula do STF n. 161: "Em contrato de transporte é
inoperante a
cláusula de não indenizar".
(100) Assim, excelente, Viney, p. 331. (p. 433)
Há, porém, uma histórica resistência dos juristas à possibilidade
de apreciação judicial da equivalência patrimonial ou social das
prestações contratualmente acordado;{101} o que os leva muitas vezes por
comodismo a privilegiar o dogma da autonomia da vontade, mesmo
visualizando que neste tipo de contrato com cláusulas de limitação da
responsabilidade, uma das partes está fadada a uma posição de
inferioridade no momento da execução (boa ou ruim) do acordado.
Visualiza-se hoje que mais do que um desequilíbrio "monetário", tais
cláusulas criam um desequilíbrio jurídico, impossível de ser afastado
por uma simples (ou prometida) redução no preço. O argumento da
admissibilidade das cláusulas de limitação da responsabilidade do
fornecedor em função da redução da contraprestação, como se fosse
possível ao reduzir o preço de um produto comprar a irresponsabilidade
ou o direito de prejudicar os outros, não resistiu a uma análise
ética.{102}
Coube ao legislador, portanto, a tarefa de estabelecer algumas
balizas quanto à possibilidade de limitar contratualmente os direitos do
contratante mais fraco, a contrario, à possibilidade de limitar a
obrigação/responsabilidade do contratante mais forte.{103} Também no
Brasil, o legislador impôs novas balizas, representadas em sua maioria
pelas normas imperativas do CDC.
A tendência hoje é contestar a validade das cláusulas limitativas
de responsabilidade, mas, para evitar generalizações perigosas, somen-
te daquelas que ameaçam o equilíbrio, a justiça do contrato, deixando
ao juiz o papel de concreção do princípio.{104} Assim também o próprio
legislador do CDC enfrentou a inclusão de algumas cláusulas limita-
tivas da responsabilidade do fornecedor em contratos de consumo e,
para tanto, criou formas especiais a serem cumpridas para a sua
validação. Assim a possibilidade de aumentar o prazo para a "sanação"
do vício do produto é exemplo de cláusula limitativa de responsabili-
* (101) Assim ensina Ana Prata, p. 378.
(102) Assim Prata, p. 381 citando Roppo e Ripert.
(103) Sobre os esforços dos legisladores no mundo, veja as
citadas obras de Prata,
pp. 380 e ss. e de Ghestin, Limitatives, p. 335 e ss., veja art. 6, 7 e
11 da
lei alemã de 1976 e a nova Diretiva da comunidade, anexo, art. 1.º,
letras
a e b).
(104) Assim, após exaustivo exame do direito comparado, conclui
tb. Viney, in
Ghestin, Limitatives, p. 340. (p. 434)
dade prevista nos § 1.º e § 2.º do art. 18 do CDC, e por força do §
3.º do mesmo artigo. Esta cláusula deverá imperativamente "ser
convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do
consumidor", segundo exige o art. 18, § 2.º do CDC. Assim, também
o art. 54, § 4.º especifica que as cláusulas que implicarem em
"limitação" de direito do consumidor deverão ser redigidas com
destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.
O legislador do CDC, porém, concentrou suas atenções e previu
uma linha de proibição genérica às cláusulas limitativas que atenuem
a responsabilidade por vícios de qualquer natureza dos produtos ou
serviços (arts. 25 e 51, I do CDC) e às que atenuem a responsabilidade
de indenizar prevista na seção sobre fato do produto ou do serviço e
sobre qualidade de produtos ou serviços (arts. 24 e 25 do CDC). Nestes
casos a regra, sem exceções, é a do direito a uma "efetiva" indenização
"de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos",
previsto no art. 6.º, inc. VI do CDC.
Apesar da clareza da previsão legislativa, a realidade brasileira
apresentou nestes primeiros anos de vigência do CDC uma série de
cláusulas limitativas suspeitas. No ramo dos transportes (marítimos,
aéreos ou rodoviários) a resposta jurisprudencial foi no sentido da
proibição,{105} declaração de nulidade{106} ou simples superação (através
de
subsunção diferenciada){107} das cláusulas limitativas da
responsabilidade
pelo extravio ou perda de bagagem e atraso ou vício na prestação de
serviços.
Quanto às cláusulas limitativas de responsabilidade em caso de
acidente, dano à saúde ou morte dos passageiros, a resposta da
* (105) Nesse sentido a decisão do STJ, sobre o transporte
marítimo e a
inoperatividade da cláusula frente ao disposto no art. 1.º do Dec.
19.473/
30 (Súmula 161 do STF), veja REsp. 9.787-0-RJ, reproduzida in Lex 43/
113.
(106) Assim a decisão do TJES, reproduzida in RT 697/140, com a
seguinte
ementa: "A empresa que transporta mercadorias se obriga necessariamente
a garantir sua segurança e, sendo assim, são nulas as cláusulas que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada". (Ap. 21.933 - 2.ª C.
- j. 23.3.93, rel. Des. Antônio José Miguel Feu Rosa).
(107) Veja a decisão do TARS, reproduzida in Julgados 85/289 e a
seguinte
decisão do mesmo TARS: Responsabilidade do transportador - Transporte
aéreo. Não se tratando de dano resultante de acidente aeronáutico,
incabível (p. 435)
jurisprudência brasileira, combatendo estas cláusulas, foi ainda mais
enérgica.{108} É a mencionada segunda questão da segurança das relações
contratuais.
Segurança significa não apenas a expectativa legítima, a
confiança
despertada quanto ao bom e seguro cumprimento das obrigações
contratuais, a informação suficiente,{109} significa igualmente a consci-
ência de saber quais são as obrigações (responsabilidade) assumidas
pelo parceiro, que não afetaram terceiros e nem podem ser diretamente
transferidas ao segurador ou excluídas, significa por fim, imposição do
dever anexo de cuidado em todas as relações de consumo, especialmen-
te as de caráter perigoso ou envolvendo a saúde e a segurança do
consumidor e de sua família.
Quanto ao dever anexo de cuidado (Schutzpflicht), como menci-
onamos anteriormente, é este uma obrigação acessória no cumprimento
do contrato que tem por fim preservar o co-contratante de danos à sua
integridade, seja pessoal (moral ou física), seja a integridade de seu
patrimônio.{110}
Neste sentido, a obrigação de segurança, anexa ao contrato,
manifesta-se quando da utilização de um meio técnico para alcançar
a realização do objetivo do contrato de serviço. Assim, no contrato de
transporte do passageiro e de sua bagagem este será feito por um meio
técnico (avião, ônibus, carro ou táxi) e deverá o transportador cuidar
que nenhum dano sobrevenha aos passageiros e à bagagem sob sua
responsabilidade,{111} assim como cuidar para que o meio utilizado
(veículo) esteja em boas e adequadas condições.{112}
*a limitação da indenização prevista no Código Brasileiro do Ar ou na
Convenção de Varsóvia. Permanece total a responsabilidade da transporta-
dora pelo pagamento do valor das mercadorias extraviadas, eis que
resultante o dano de ato ilícito (unânime). (Ap. Cív. 26.265, rel. Dr.
Elias
Manssour, 2.ª Câm. Cív., TARS, j. 15.12.81).
(108) Veja abundante jurisprudência citada na parte 1 deste
trabalho, quando
tratados os contratos de transporte, viagem e de turismo; assim como as
Súmulas 187 do STF e 37 do STJ.
(109) Em especial no direito alemão e suíço, rígido controle é
feito quanto à
informação suficiente do consumidor sobre as cláusulas limitativas, que
serão desconsideradas em caso contrário. Veja Viney, p. 344 e ss.
(110) Veja sobre o tema Mayer, p. 113 e Menezes de Cordeiro, p.
610.
(111) Nesse sentido a citada decisão do TARS, in Julgados 85/289,
(rel. Juiz
Márcio Puggina, j. 5.11.92) em sua ementa ensina: "Transporte aéreo - (p.
436)
Em contratos de transporte, algumas leis especiais prevêem a
tarifação ou a limitação da responsabilidade do transportador.{113} O
princípio do CDC, exposto no art. 6.º, VI, é exatamente o contrário:
o da indenização efetiva. Especialmente no que se refere ao transporte
aéreo, as lides estão se multiplicando e a resposta jurisprudencial tende
a beneficiar o consumidor.
Efetivamente a responsabilidade do transportador aéreo vêm
regulada, quanto ao transporte internacional, na Convenção de Varsóvia
(Dec. 20.704/31) e, quanto ao transporte nacional, no Código Brasileiro
de Aeronáutica (Lei 7.565/86).{114}
A responsabilidade do transportador aéreo prevista na Convenção
de Varsóvia é uma responsabilidade subjetiva, baseada na culpa. O
sistema básico da Convenção representa-se por duas normas: a) a da
presunção de culpa do transportador aéreo (ônus), tanto em caso de
*Transporte de passageiro acompanhado de bagagem. Desaparecimento de
volume contendo equipamento eletrônico (filmadora VC). Pretendida limi-
tação da responsabilidade indenizatória em 3 OTNs com base no art. 262
do Código Brasileiro do Ar. Se a praxe das companhias aéreas é de não
exigirem a declaração de valor relativamente à bagagem despachada pelos
passageiros, não se pode impor o ônus pela omissão. Dever de indenizar
com fulcro no art. 159 do CC. Se o passageiro comprou bilhete de uma
companhia aérea mesmo que o transporte seja efetuado por outra, mediante
acordo entre elas, este é irrelevante frente ao passageiro. mantida a
responsabilidade contratual de quem se obrigou pelo transporte".
(112) Assim Mayer, ob. cit., p. 65.
(113) A validade destas cláusulas de limitação de
responsabilidade dos transpor-
tadores está sendo discutida nos JEPCs, veja ementa exemplar: "Transporte
rodoviário. Tem responsabilidade de indenizar até 2 volumes, a empresa
transportadora, conforme Dec. 92.352, de 31.1.86. Regulamento dos servi-
ços rodoviários interestaduais de transporte de passageiro, art. 98, no
valor
de 4 vezes o maior valor de referência por volume, deparando-se com um
típico contrato de adesão, as cláusulas devem ser colocadas com clareza,
pena de se voltar interpretação, na dúvida, contra o predisponente. Não
houve seguro pessoal e o tíquete de bagagem não faz qualquer menção.
Assim, à luz da eqüidade de juízo (art. 5.º da Lei 7.244/84), não se
oferece
justa a indenização tarifária, de ínfimo valor (unânime)". (Proc.
01189713330,
Rec. 33/89, rel. Dr. Armínio José da Rosa, 3.ª Câm. Recursal do Juizado
de Pequenas Causas-RS, j. 21.5.90).
(114) As observações que passamos a reproduzir foram
desenvolvidas, com maior
detalhe, em nosso artigo, in Direito do Consumidor 3/154-197. (p. 437)
morte, de ferimento ou de outra lesão corporal sofrida pelo viajante,
como em caso de perda, destruição ou avaria das bagagens registradas
e cargas; com a inversão do ônus da prova o passageiro não precisa
provar a culpa do transportador. basta a simples existência do dano, mas
a inexistência de culpa pode levar à exoneração do transportador; e b)
a da limitação da responsabilidade do transportador.{115}
Segundo dispõe o art. 17 da Convenção de Varsóvia o transpor-
tador responde pelo dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer
outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, desde que o acidente, que
causou o dano, haja ocorrido a bordo da aeronave, ou no curso de
quaisquer operações de embarque ou desembarque. Segundo dispõem
os arts. 20 e 21, o transportador não será responsável se provar que
tomou, e tomaram os seus prepostos, todas as medidas necessárias para
que se não produzisse o dano, ou que lhes não foi possível tomá-las
ou poderá ver excluída ou atenuada a sua responsabilidade se provar
que o dano foi causado por culpa da pessoa lesada, ou que esta para
ele contribuiu. A responsabilidade fica presumida, sob prova em
contrário, mas ficaria excluída se provada a ocorrência de força maior
ou caso fortuito, bem como a culpa exclusiva da vítima.
A norma que prevê a limitação da responsabilidade é aquela do
art.
22. Segundo o texto do art. 22 da Convenção de Varsóvia, modificado
pelo Protocolo de Haia de 1955, "no transporte de pessoas, limita-se a
responsabilidade do transportador à importância de 250.000,00 francos
poincaré". "Se a indenização, de conformidade com a lei do tribunal que
conhecer a questão, puder ser arbitrada em constituição de renda, não
poderá o respectivo capital exceder aquele limite". Sendo que no limite
não se incluem as despesas para ressarcir os custos judiciais e os
honorários advocatícios. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade
limitada (begrenzte Haftung), cujo montante poderá variar conforme o
dano sofrido, não podendo, porém, superar o limite fixado.{116}
Este limite sofre duas exceções: 1) segundo dispõe o art. 22, 3.ª
parte, um limite maior de responsabilidade pode ser fixado por acordo
entre o transportador e o usuário; 2) segundo dispõe o art. 25,
modificado pelo Protocolo de Haia, o transportador não poderá se
* (115) Assim, Tito Ballarino, "Questions de droit international
privé et dommageS
catastrophiques", in Recueil des Cours de la Have, 220/330, 1990.
(116) Assim concorda Octanny Silveira da Mota, "As Disposições de
Direito
Internacional Privado no Código Brasileiro de Aeronáutica", in RDC44/47.
(p. 438)
prevalecer do limite previsto no art. 22, em caso de dolo ou culpa grave
sua, ou de seus prepostos.{117}
A última norma a ser mencionada é a do art. 23 da Convenção,
segundo a qual será nula e de nenhum efeito toda e qualquer cláusula
tendente a exonerar o transportador de sua responsabilidade, ou
estabelecer limite inferior ao que lhe fixa a Convenção, mas a nulidade
da cláusula não acarretará a do contrato.
Concluindo, trata-se, no sistema da Convenção de Varsóvia, da
imposição de uma responsabilidade subjetiva, e não objetiva, como
afirmam alguns, baseada na presunção de culpa juris tantum, que
inverte o ônus da prova a favor do consumidor, mas que limita a
responsabilidade total do transportador a patamares que, como vere-
mos, são considerados baixos.
Quanto à natureza do limite, cabe distinguir a responsabilidade
tarifada da responsabilidade limitada. Na tarifação se presume o dano
(evento morte, perda de um braço, de uma capacidade laborativa etc.)
e se quantifica estes tipos de danos, na limitação não se presume o dano,
este tem que ser provado, o limite opera somente como um quantunl
máximo, logo, se o dano comprovado for de menor valor, a indenização
poderá ser fixada abaixo do limite máximo.{118} No caso do sistema da
Convenção de Varsóvia, o limite previsto no art. 22 é um limite
máximo, que não leva à presunção do dano, logo, estamos frente a uma
responsabilidade limitada.
Por sua vez, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), Lei 7.565,
de 19.12.86, trata de diversos assuntos relacionados ao transporte aéreo
e as empresas nele envolvidas, tratando igualmente do contrato e
transporte aéreo a partir de seu art. 222. A responsabilidade contratual
do transportador mereceu especial destaque, e foi ela limitada, segundo
dispõe o art. 246, aos limites estabelecidos nos arts. 257, 260, 269 e
277 do Código.
A determinação do valor exato da indenização fixada pela Con-
venção de Varsóvia não é fácil, como bem demonstra a decisão do
* (117) Sobre a dificuldade da definição de dolo, veja Octanny
Silveira da Mota,
"O dolo do Transportador aéreo face à Lei Internacional e ao Código
Brasileiro do Ar", in RT 356/46 a 57 e Mattos, ob. cit., p. 172 e ss.
(118) Assim a conclusão da Comissão 3 do Congresso de B. Aires,
Daños, ob.
cit., p. 100. (p. 439)
Supremo Tribunal Federal no RE 113.498-4, em 1987,{119} onde conclui
que mesmo o Banco do Brasil teria enganado-se. Razão para toda esta
insegurança é que o franco-poincaré em verdade não existe mais, pois
a paridade do franco com o ouro foi extinta,{120} assim como aconteceu
com muitas outras moedas. A partir daí surgem soluções contraditórias,
umas preconizando o uso do valor em ouro previsto no Protocolo de
Haia (cada unidade monetária seria constituída de 65,5 miligramas de
ouro, ao título de 900 milésimos de metal fino),{121} calculado pelo
valor
do ouro ao dia da sentença de liquidação;{122} outras tomam por base o
valor do franco-ouro estimado pelo Banco do Brasil em cruzeiros, ou
mesmo a onça-troy fixada em dólares pelo governo dos Estados
Unidos.{123}
Sem querer participar desta discussão, considero que bastaria
afirmar que os 250.000,00 francos-poincaré previstos no Protocolo de
Haia equivaliam a 16.600 dólares americanos,{124} o que representa mais
ou menos o preço de 5 passagens aéreas para a Europa, como limite
máximo para a indenização (inclusive a devida em prestações alimen-
tícias mensais) por morte, por exemplo, do executivo, pai da família.
Como ensina Aguiar Dias sobre a cláusula limitativa de respon-
sabilidade: "Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios,
mediante o afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a
cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor.
Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação
prefixada: o mais freqüente é representar um simulacro de perdas e
danos".{125} O mestre brasileiro da Responsabilidade Civil, muito antes
de pensarmos na defesa do consumidor, sustentava a nulidade desta
* (119) In RT 633/211 e ss., rel. Min. Célio Borja, julgamento de
17.12.88.
(120) Para detalhes, veja j. D. Fairbanks Belfort de Mattos, "O
Desastre Aéreo
em Abidjan, na Costa do Marfim", in RDC 52/181 a 184.
(121) É a solução preconizada pelo Min. Francisco Rezek no
acórdão anterior-
mente citado, in RT 633/214 e ss.
(122) Esta é a conclusão de Mattos, ob. cit., p. 184 in fine.
(123) Veja RTJ 107/384, sobre decisão do Tribunal de Justiça de
São Paulo e
pretenso dissídio de jurisprudência.
(124) Veja Andreas Lowenfeld, e Allan Mendelsohn, "The United
States and the
Warsaw Convention", in Harvard Law Review, 80/507, 1967.
(125) Dias, ob. cit., p. 128. (p. 440)
cláusula, "quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira
lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo
contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão
por parte do interessado no serviço".{126}
Podemos, neste caso, concluir que se a intenção da Convenção de
Varsóvia era realmente estabelecer o equilíbrio entre as posições do
transportador e do usuário do transporte aéreo, este equilíbrio não foi
atingido com a simples inversão do ônus da prova e com a manutenção
do princípio da culpa, pois o limite da responsabilidade foi fixado em
patamar realmente tímido, a limitar a ação da justiça. Sob o ponto de
vista da responsabilidade civil a vantagem trazida pela Convenção é
maior para o transportador aéreo, que se é obrigado a fazer um seguro
pode conhecer antecipadamente a extensão dos montantes de indeni-
zação, o que diminui seus custos, ainda mais hoje quando o transporte
aéreo já provou ser um dos mais seguros estatisticamente.{127}
Quanto ao Código Brasileiro de Aeronáutica, tendo em vista a
dificuldade criada com a extinção dos índices por ele utilizados para
fixar o montante das indenizações, fica praticamente impossível, neste
rápido estudo, informar o valor exato da indenização por morte, em se
tratando de transporte aéreo nacional. Da jurisprudência consultada,
porém, duas conclusões podem ser retiradas. A primeira é que o valor
fixado pelo CBA é inferior ao fixado pela Convenção de Varsóvia,
assim como era o valor fixado pelo antigo Código Brasileiro do Ar. {128}
Em segundo lugar, que a insuficiência da indenização leva a jurispru-
dência a interpretar (assim como faziam os norte-americanos antes do
Acordo de Montreal) de maneira bastante ampla o conceito de culpa
grave e de dolo aéreo, ajudados pela Súmula 229 do STF, de forma a
afastar a limitação indenizatória e possibilitar o ressarcimento pelo
Direito Comum.{129}
* (126) Dias, ob. cit., p. 129.
(127) Em 1965 o Governo dos Estados Unidos avaliou que se o
seguro custava
US$ 0,68 "per thousand revenue passenger miles", com um limite de
indenização no valor de US$ 16.600, se o limite fosse aumentado para US$
100.000, o custo do seguro seria, mesmo assim, de somente US$ 0,96, veja
Lowenfeld/Mendelsohn, p. 566.
(128) Veja-se a ilustradora decisão do TARJ in RT 615/195-196.
(129) Veja neste sentido a Jurisprudência in RT 606/219, 623/101-
103, 626/
165-170. (p. 441)
Como noticia Gaja,{130} os limites fixados em Varsóvia e aumenta-
dos em Haia, em 1955, sempre foram motivo de muita polêmica no
mundo, em especial nos Estados Unidos, Itália e Alemanha.
Com o tempo e com a desvalorização do ouro e das moedas, o
montante no qual a responsabilidade do transportador estava limitado
tornou-se muito baixo, de maneira que os passageiros, especialmente em
caso de acidente fatal, passaram a suportar, eles, um risco muito grande,
assim, de maneira diferente, a jurisprudência de vários países tem se
esforçado para amenizar as conseqüências ineqüitativas desta alocação
de riscos. Fala-se assim em uma crise do sistema de Varsóvia.{131}
De acordo com o Arrangement de Montreal dos Estados Unidos
com as companhias aéreas filiadas à CAB e à IATA,{132} um total de 80
companhias aéreas comprometeram-se a aumentar os limites da respon-
sabilidade para vôos partindo, chegando ou com escalas nos Estados
Unidos, para 75.000 dólares americanos e note-se, uma responsabilidade
objetiva não baseada na culpa.{133} Teoricamente o acordo interino de
Montreal não anulou ou denunciou a Convenção de Varsóvia, pois que
o art. 22 permitia que os limites previstos na Convenção fossem aumen-
tados por acordo com os usuários, ora como são as companhias que
redigem os contratos, sem discussão com os consumidores, passaram
elas a incluir, para os vôos tocando o solo norte-americano, uma folha a
mais em seu bilhete de passagem, contendo as novas regras.{134}
O sistema de Varsóvia não conta, portanto, mais com sua univer-
salidade.
Desde 1978, a jurisprudência e os doutrinadores italianos mani-
festaram dúvidas sobre a constitucionalidade da lei interna, que,
* (130) Assim, Giorgio Gaja, "Recenti vicende della Convenziome di
Varsovia dei
1929 sul Transporto Aereo Imternazionale", im Rivista di Diritto
Internazionale, 1965/95.
(131) As palavras são de Tito Ballarino, ob. cit., pp. 332 e 333.
(132) CAB - Civil Aeronautics Boardeau (organização norte-
americana) e IATA
- International Air Transport Association (organização mundial de
empresas
aéreas).
(133) Assim Lowenfeld/Mendelsohn, pp. 396 a 399, já informando
que também
no caso do Canadá seriam criadas normas especiais.
(134) Texto do bilhete de passagem reproduzido pelos citados
autores norte-
americanos, p. 598, contra a quebra no sistema de Varsóvia veja as
críticas
de Gaja sobre o Arrangement, ob. cit., p. 103. (p. 442)
recebendo a norma da Convenção de Varsóvia, limitava a responsabi-
lidade do transportador aéreo em caso de morte ou de dano à saúde
ou à segurança a patamares considerados baixos.{135}
A doutrina acabou concluindo que quanto a limitação de respon-
sabilidade permitida por uma lei interna é tal de forma a, verdadeira-
mente, privar a vítima de um direito de efetivo ressarcimento, e a
contradição com as normas do direito interno posterior torna-se
intolerável. Acabando por concluir que as normas que fixaram este
limite máximo para a indenização, ainda que afastáveis em caso de dolo
e culpa grave, não eram de nenhuma maneira conciliáveis com o
princípio constitucional do direito à inviolabilidade do homem, deven-
do, pois, esta inconstitucionalidade ser declarada pelo Judiciário
mesmo se a origem da norma era uma Convenção internacional.
Tito Ballarino chega a afirmar que a decisão da Corte Constitu-
cional (Arrêt 132, de 16.5.85) ab-rogou a regra da Convenção relativa
à limitação da responsabilidade em caso de morte do passageiro, por
violação ao direito fundamental à integridade da pessoa humana. A
Corte teria examinado também o problema do tratamento ineqüitativo
entre os passageiros do avião e os passageiros de outros meios de
transporte e concluído que aqueles não deveriam sofrer restrições a seus
direitos fundamentais, em virtude da limitação permitida pela lei
ordinária que recebeu a Convenção.{136}
Se os Estados Unidos, País precursor da responsabilidade
objetiva,
interessou-se na administração Kennedy pela proteção mais efetiva de
seus cidadãos, a Alemanha, país de grande tradição no cumprimento
do princípio de boa-fé nas obrigações e no conseqüente amplo controle
judicial do conteúdo dos contratos, não poderia deixar de fornecer um
outro exemplo.
Em 1983, o Tribunal Federal Alemão (BGH) declarou seis
cláusulas presentes no contrato oferecido pela Lufthansa para vôos
internacionais como abusivas, e portanto proibidas, determinando a sua
não mais utilização, apesar de todas estas normas constarem da
* (135) A discussão nasceu em 1978 após uma decisão do Tribunal de
Roma, veja
detalhes em Canizzaro, pp. 279 a 298, Enzo Canizzaro, "Disciplina
Internazionale della Responsabilità dei Vettore Aereo e Costituzione", in
Rivista di Diritto Internazionale, LXVII/291,1984.
(136) Assim Ballarino, ob. cit., p. 333, com detalhes
reproduzidos na nota 63. (p. 443)
Sugestão-Resolução 1.013 do IATA.{137} Dois aspectos foram especial-
mente analisados pelo Tribunal superior da Alemanha: se o fato de uma
cláusula contratual encontrar aplicação em vários países ou aplicação
"internacional" impediria o controle judicial de sua abusividade ou não;
e a relação, em direito alemão, entre as normas da Convenção de
Varsóvia e as normas da famosa Lei alemã de controle das cláusulas
contratuais gerais, a AGB-Gesetz.
No Brasil, a reação contra os patamares limitados de indenização
fixados pela Convenção de Varsóvia foi, até 1988, muito reduzida, pois
a jurisprudência brasileira não era aberta a teses de inconstitucionali-
dade e mantinha-se fiel ao entendimento da superioridade dos Tratados
face às leis ordinárias posteriores.{138} A única reação foi no sentido
de
interpretar de forma aberta a noção de culpa grave ou dolo, que retira
o privilégio da limitação da responsabilidade.{139}
Em se tratando de norma anterior à nova Constituição, o Código
Brasileiro de Aeronáutica teve de ser recebido no novo ordenamento
jurídico nacional. Inicialmente chamávamos a atenção para o fato de
os doutrinadores brasileiros, ao contrário dos italianos, nada men-
cionarem sobre os eventuais aspectos de conflito das normas do CBA,
que limitam a responsabilidade do transportador a patamares consi-
derados baixos e os princípios constitucionais que asseguram o direito
à inviolabilidade do homem, direito à vida (caput do art. 5, da CF/
1988) e direito à proteção do consumidor (inc. XXXII do art. 5º
da CF/1988). Hoje, porém, parte expressiva da doutrina defende essa
tese.{140}
* (137) Acórdão BGH de 20.1.83, VII ZR 105/81, publicado na
Revista IPRax
1984/316 e os comentários de Walter Lindacher, "Zur inhaltskontrolle
"internationaler" Flugbeförderungsbedingungen", IPRax 1984/301
(Heidelberg).
(138) Veja o excelente trabalho da Procuradora do Estado do Rio
Grande do Sul,
Rejane Brasil Filipi, no sentido de defender a inexistência de tal
superio-
ridade e a equivalência entre a lei interna e o tratado recebido em nosso
ordenamento, tudo com base no Acórdão do STF no RE 80.009, veja
"Conflitos entre Tratado Internacional e Lei interna posterior no tempo",
in ReV. Ajuris 34/226-235.
(139) Veja os comentários de Octanny Mota, in Dolo..., p. 47 e J.
D. Mattos, o
Desastre Aéreo de Abidjan..., ob. cit., p. 170.
(140) Veja, por todos, o levantamento exaustivo de Alvim Jorge,
p. 114 e ss. (p. 444)
Efetivamente, a especialização do tema e o pequeno número de
acidentes fatais envolvendo o transporte aéreo nos dias de hoje fizeram
com que a tese permanecesse adormecida no cenário nacional por
algum tempo, mas a importância do transporte aéreo no mercado atual
e a reiterada demanda de aplicação do CDC para dirimir problemas
diários fizeram retomar a discussão sobre o tema.
Repetimos, pois, nossas observações anteriores: "Se no sistema
anterior de responsabilidade subjetiva baseada na culpa, a simples
inversão do ônus da prova permitida pelo sistema aeronáutico já era
considerada uma vantagem. Mas, tratando-se de norma interna, o CBA
obviamente submete-se aos novos parâmetros ditados pela Constitui-
ção de 1988 e às normas que complementam estas novas linhas do
direito nacional. Parece-nos, portanto, que se o valor da indenização
realmente é ínfimo, face às perdas efetivamente ocorridas (morte do
pai de família, morte do filho único etc.) e face à atual aceitação
do dano moral, tanto na Constituição, como no próprio Código de
Defesa do Consumidor, a tese da inconstitucionalidade ou do não-
recebimento de determinadas normas do CBA poderá vir a ser
sustentada em nosso País".
Em tema de menor importância coletiva e social, no caso o de
extravio de mala em viagem aérea, o Supremo Tribunal Federal já
decidiu, com base na prevalência da Constituição Federal, superar a
barreira da Convenção de Varsóvia e assegurar uma indenização
"efetiva", ao conceder danos morais externos à indenização tarifada da
Convenção. Logo, em caso de morte do passageiro maior razoabilidade
haveria. Veja-se o Recurso Extraordinário n. 172720-9-RJ, cuja ementa
é: "Indenização. Dano Moral. Extravio de mala em viagem aérea.
Convenção de Varsóvia. Observação mitigada. Constituição Federal.
Supremacia. O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra,
a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos
danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de
constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio
de mala. Cumpre observar a Carta Política da República, incisos V e
X do art. 5.º, no que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados
pelo Brasil" (DJ 21.02.97, R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min.
Marco Aurélio).
Nesse caso vale lembrar os ensinamentos dos doutrinadores
italianos, que propunham, ao invés da decretação da inconstitucio- (p.
445)
nalidade, uma interpretação conforme a Constituição, isto é, uma
interpretação que, utilizando outras normas do sistema, pudesse evitar
os excessos do limite de responsabilidade, que o tornariam incons-
titucionais. Em seu voto o Ministro Rezek, eminente jus-
internacionalista, frisa a aplicação das Convenções de Varsóvia e Haia,
mas ao restabelecer a autoridade da sentença de primeiro grau, ensina:
"Interpreto os textos que se põem à mesa - as Convenções e a
Constituição de 1988 - de modo a compô-los e a não ver, entre eles,
incompatibilidade".{141} Este leading case do Recurso Especial n.
172720-9-RJ parece-me indicar a procura dos Tribunais Superiores
por uma decisão conciliatória entre os compromissos dos Tratados
e o espírito da ordem jurídica atual brasileira, ao realizar uma criativa
interpretação "conforme a Constituição" em busca do justo ressarci-
mento. Trata-se de um primeiro e importante passo.
Efetivamente, observa-se nos últimos anos na jurisprudência
brasileira, especialmente no primeiro grau e nos Juizados Especiais,{142}
uma maior sensibilidade para o tema, acordando uma indenização
real do dano material com base no CDC{143} e , no mais das vezes,
se existente, uma indenização pelo dano moral, em caso de inexecução
do contrato de transporte (atrasos, cancelamento, extravio de bagagens
etc).{144}
Parece-nos que foi com a entrada em vigor do CDC que os
consumidores-vítimas de acidente de aviação conscientizaram-se de
* (141) R. Ext. 172720-9, RJ, j. 6.2.96, Rel. Min. Marco Aurélio,
voto Min.
Francisco Rezek, p. 743.
(142) Veja assim decisão do JEPC/RJ: "Bagagens desviadas durante
o vôo interna-
cional, sob a responsabilidade de três empresas. Inaplicável a Convenção
de
Varsóvia e o Código Brasileiro Aeronáutico e aplicável o Código de Defesa
do Consumidor. Bem apreciada a matéria. Sentença confirmada" (3.ª T.
Recursal, Rec. 028/96, Rel. Mário Assis Gonçalves, DOERJ 5.9.97, p. 160).
Contra, pela aplicação da Convenção de Varsóvia, veja do TJRJ, Ap. Civ.
8170/97, Des. Jayro S. Ferreira, DOERJ 25.6.98, p. 175.
(143) Veja do JEPC/RJ, 5.ª T. Recursal, Recurso 1998.700.262-0,
Rel. J. Otávio
Rodrigues, DOERJ 22.5.98, p. 191: "Responsabilidade do transportador
aéreo. Violação de bagagem. Indenização cabível. Prevalência do CDC
sobre a Convenção de Varsóvia”.
(144) Veja decisão concedendo dano material por cancelamento da
passagem
adquirida, 2ª T. Recursal/RJ, Recurso 533/95. Rela. Teresa de Andrade (p.
446)
seus novos direitos e forçaram uma tomada de posição de jurisprudência.
A aplicação do CDC para decretar a nulidade de cláusulas do contrato de
transporte aéreo nacional e internacional torna-se cada vez mais freqüen-
te.{145} Assim, mantendo nossa opinião sobre a aplicação prevalente do
CDC, cabe frisar a conclusão Nr. 1 do Congresso Internacional de
Responsabilidade Civil, realizado em Blumenau em 1995: "O CDC
aplica-se aos contratos de transporte aéreo nacional e internacional
afastando, como lei nova, especial e de ordem pública qualquer exclusão
ou Limitação de responsabilidade do transportador imposta pela Conven-
ção de Varsóvia ou pelo Código Brasileiro de Aeronáutica”.

1.3 Cláusulas de limitação da obrigação em contratos envolvendo saúde

Como frisamos na segunda edição desta obra, após a entrada em


vigor do CDC, muito se discutiu da abusividade ou não das cláusulas,
normalmente presentes nos contratos de seguro-saúde e de assistência
médico-hospitalar, que limitam a prestação destes serviços seja somen-
*Castro Neves, e sobre atraso, concedendo "indenização moderada pelos
danos materiais e morais", 3. T. Recursal/RJ, Recurso 5.889/95, Rel.
Gilberto Fernandes. Veja sobre culpa da transportadora na perda do vôo
marcado e aplicação do art. 14 do CDC, 12.ª T. Recursal, Recurso 330-2/
98, rel. Célio Geraldo de Magalhães Ribeiro, DOERJ 22.5.98, p. 192. Veja
sobre cancelamento 1.º TACivSP, in RT 727/198 e extravio, JTA-Lex 142/
144. Contra, pela não concessão da indenização por danos morais em
virtude do que denomina "transtornos, aborrecimentos ou contratempos",
veja decisão do TJSP, in RT 711/107.
(145) Veja in RT 727/209-211, decisão do 1.º TACivSP, cuja
ementaé: "O contrato
de transporte aéreo é de resultado, respondendo o fornecedor do
serviço
pelos vícios de qualidade que o tornem impróprio ao consumo ou lhes
diminua o valor. Por isso, não se trata de obrigação aleatória, cabendo
ao
transportador, além da obrigação de segurança, a de prestabilidade, sob
pena
de ter o dever de indenizar, independentemente de qualquer discussão de
culpa do contratante faltoso. A cláusula de "Condições do Contrato", que
acompanhavam o bilhete, por se tratar de cláusula unilateral, colocada em
contrato de adesão, só visando o interesse da companhia transportadora,
não
tem valor algum conforme o art. 51 da Lei 8.078/90 (CDC). Ap. Sum.
629.715/0- j. 31.10.95, rel. Antonio de Padua Ferraz Nogueira. Sobre
atrasos nos vôos, veja decisões do 1.º TACivSP favoráveis aos consumido-
res, in RT 727/198, RT 727/200. (p. 447)
te a determinadas doenças ou espécies de doenças, seja a determinados
dias de internação, número de consultas, espécies de consultas etc.{146}
A promulgação da controversa Lei 9.656, de 3 de junho de 1998,
que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à
saúde,{147}
traz nova luz ao tema. Não que a lei especial tenha o condão de afastar
a incidência do CDC sobre esses contratos, pois, como vimos, a lei
especial nova regula a relação de consumo especial no que positiva e
o CDC continua a regulá-la de forma genérica. A lei nova, porém, ao
positivar que determinadas práticas e cláusulas antes consideradas
abusivas por parte da jurisprudência são - na nova ordem - lícitas, se
elaboradas sob determinadas circunstâncias, sem dúvida criará alguma
dificuldade para a jurisprudencia.
O positivo da lei especial é trazer uniformidade na
jurisprudência,
mas no caso específico da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, ela não
é protetiva do consumidor, mas sim consolida o atual estágio de (baixa)
lealdade nas relações entre as seguradoras e consumidores e autoriza,
contrario sensu, as atuais práticas e planos incompletos das segurado-
ras. Não foi por outra razão que as entidades de defesa do consumidor
manifestaram-se de forma unida contra a aprovação da lei na versão
promulgada, justamente depois de anos de luta para que o setor fosse
regulamentado por lei. Trata-se mais de uma lei espetáculo, lei para ser
notícia de jornal e de televisão, para criar um discurso (ilusório) de
que
os direitos do consumidor seriam preocupação do governo e do
parlamento atual, do que de uma lei para proteger o consumidor
efetivamente. Ao contrário vai prejudicá-lo.
Neste sentido, urge lembrar que a lei só se aplica
obrigatoriamente
e expressamente às relações e contratos "celebrados a partir de sua
vigência" (art. 35). Fica assegurada a possibilidade de o consumidor
optar "pela adaptação" ao novo sistema. Essa opção ativa dos consu-
midores não nos parece positiva, nem necessária, pois, como o art. 35
em seus parágrafos 1.º e 2.º expressamente frisa, as operadoras devem
adaptar (dever profissional) "todos os contratos celebrados", o que
"não pode implicar prejuízo ao consumidor". Portanto, os contratos e
* (146) Veja a jurisprudência sobre o assunto, comentada por
Doralina Mariano da
Silva, in Direito do Consumidor 7/233 e ss.
(147) DO 4.6.98, Seção 1, p. I-5, com vacacio Legis de 90 dias
(art. 36 da referida
lei, DO, p. 5). (p. 448)
relações anteriores (é necessário frisar a continuidade da relação,
apesar
da sucessão de contratos, para evitar as "anuências fictas" ao novo
regime!) seguiriam regidos apenas pelo CDC, segundo posição majo-
ritária da jurisprudência. No sistema do CDC, não podemos esquecer
do art. 7.º do CDC, que é uma interface atualizadora do sistema deste
Código. Logo, "os direitos dos consumidores" assegurados pela legis-
lação externa ao CDC (como a Lei 9.656/98) o integram, não porém
os limites a esses direitos.
Parece-nos, pois, que as precisões conceituais sobre quais cláu-
sulas são abusivas e proibidas, quais cláusulas devem integrar neces-
sariamente um tipo de plano de saúde (agora oficialmente existiram 4
tipos de planos diferenciados), presentes na nova lei, integram o CDC,
a interpretação dos contratos em curso e a concreção que os juízes darão
ao princípio da boa-fé objetiva que já rege esses contratos, ex vi do
art.
7º do CDC. O que é inferior na nova lei ao regime do CDC,
interpretado até então pela jurisprudência brasileira, não estaria assim
incluído, pois não se trata de "direitos do consumidor" e sim deveres;
para modificar contrariamente ao estabelecido no contrato original e na
legislação que acompanha o contrato (o CDC), seria necessária uma
opção nova do consumidor.
Em outras palavras, parece-me que os contratos em curso podem
se beneficiar, como vinham se beneficiando, da proteção do CDC,
proteção esta complementada por algumas (poucas) precisões da lei
especial nova introduzidas pelo art. 7.º do CDC. Isto, sem prejudicar
os consumidores por uma opção obrigatória ao novo sistema por
inteiro, o que baixaria o nível de proteção até então assegurado aos
consumidores brasileiros pela jurisprudência.
A Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998,{148} que, no
momento de finalizar este livro, encontra-se em vigor, modifica o
art. 35 da Lei 9.656/98 de forma bastante duvidosa, ao mencionar
que "a adaptação aos termos desta legislação de todos os contratos
celebrados anteriormente à vigência desta Lei dar-se-á no prazo de
quinze meses a partir da data da vigência desta Lei, sem prejuízo
do disposto" no novo art. 35-H (§ 1.º) e retira a expressão "não pode
* (148) DO 5.6.98, Seção 1, p. 2-5. Medida Provisória 1.665, de 4
de junho de 1998,
que altera dispositivos da Lei 9.656, de 3 de junho de 1998 e dá outras
providências. (p. 449)
implicar prejuízo ao consumidor", substituindo-a pelo texto: "A
adaptação dos contratos não implica nova contagem dos períodos de
carência e dos prazos de aquisição dos benefícios previstos nos arts.
30 e 31 desta Lei, observados os limites de cobertura previstos no
contrato original".
Fica, portanto, a dúvida se todos os contratos, mesmo naqueles
em que a opção do art. 35 não se der, devem ser "adaptados" ao novo
sistema ou não. Se essa for a interpretação da esdrúxula norma da
Medida Provisória, repito, mantendo minha opinião anterior, que esta
"adaptação" ao novo sistema só pode significar incluir os novos
"direitos" do consumidor no regime contratual, sem impor nenhum
prejuízo a esse agente protegido de forma especial. Outra interpretação
da referidas Lei e Medida Provisória não pode ser admitida pela
jurisprudência, sob pena de ferir o ato jurídico perfeito e o direito
adquirido dos consumidores ao aplicar lei nova (ou pior Medida
Provisória passageira) que não tem a hierarquia constitucional do CDC
e nem a certeza de ser verdadeira norma de ordem pública.{149}
A Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998,{150} introduz
um
novo artigo aplicável a todos os contratos em andamento, o art. 35-H,
que dispõe:
"Art. 35-H. a partirdeS de junho de 1998, fica estabelecido para
os contratos celebrados anteriormente à data de vigência desta Lei que:
I - qualquer variação na contraprestaçãO pecuniária para 05
consumidores com mais de sessenta anos de idade estará sujeita a
autorização prévia da SUSEP;
II - a alegação de doença ou lesão pré-existente estará sujeita à
prévia regulamentação da matéria pelo CONSU;
iii - é vedada a suspensão ou denúncia unilateral do contrato por
parte da operadora, salvo o disposto no inciso II do parágrafo único
do art. 13 desta Lei;
IV - é vedada a interrupção de internação hospitalar em leito
clínico, cirurgico ou centro de terapia intensiva ou similar, salvo a
critério do médico assistente".
* (149) Note-se que o antigo Decreto de 1966 sobre seguros
continua em vigor, este
sim considerado também norma de ordem pública.
(150) DO 5.6.98, Seção 1, p. 5. (p. 450)
Da ratio desta norma "provisória" retira-se que realmente a
"adaptação" ao novo sistema é opcional para o consumidor, mas que
ele se beneficiará, pelo menos, dessas novidades da lei especial, através
de deveres impostos ao fornecedor e não através de modificações
prejudiciais de seu contrato por lei nova. Melhor seria a Lei nova e a
Medida Provisória citarem, como fazia anterior projeto de lei, o próprio
CDC ou seu art. 7.º, evitando redações atrapalhadas como as reproduzidas
anteriormente. Comprova-se assim, mais uma vez, que deve haver
maior cuidado no Brasil na redação das novas leis e que as normas (ou
as Medidas Provisórias) não devem ser redigidas com tanta pressa (e
falta de precisão jurídica) a fim de não comprometer seu sentido ou
aplicação. Se nem o Executivo, nem o Legislativo sabem exatamente
o que desejam como novo regime legal, prevalecerá o regime instituído
pelo Judiciário, que já tem opinião majoritária contra adaptações
forçadas.
Neste sentido é importante reproduzir aqui o nível de proteção
alcançado pelo consumidor brasileiro através da interpretação, apli-
cação e concreção do CDC nos contratos de seguro-saúde e
consolidar, assim, o nível de proteção existente hoje no país. Essa
fotografia da jurisprudência e dos problemas tópicos desse tipo
contratual deve ser complementada com a análise do disposto na nova
lei e na sua Medida Provisória 1.665, de 4 de junho de 1998. Note-
se que se transformada em lei, a Medida Provisória 1.665/98 tende
a reduzir ainda mais o nível de proteção ao consumidor alcançado
pela Lei 9.656/98. Daí a importância do art. 35 e art. 35-H no futuro.
Os abusos tópicos de que trataremos são de dois grupos, conforme
na seqüência detalharemos.

a) Exclusão de determinadas doenças da cobertura do seguro ou


plano

O primeiro grupo de cláusulas limitativas dos direitos


contratuais
dos consumidores identificadas como abusivas por (parte) da jurispru-
dência brasileira foi aquele que visa excluir do âmbito da relação
contratual a cobertura do tratamento de determinadas doenças, doenças
denominadas genericamente de "congênitas", "crônicas", "infecto-
contagiosas" ou especificamente, como no caso do câncer e da aids.
Especial atenção merece também a cláusula que exclui o tratamento de
doenças "preexistentes", que tem sido usada seguidamente pelos (p. 451)
fornecedores para impedir a internação ou tratamentos dos consumi-
dores, alguns até de emergência, e para negar a concessão de guias ou
autorizações, igualmente, pela lamentável visão econômica do direito
à saúde, merece menção como abusiva a cláusula que exclui da
cobertura o tratamento de doença ou moléstia "incurável" ou crônica.{151}
Como mencionamos na edição anterior, quanto à abusividade ou
não do primeiro grupo de cláusulas que limitam o uso do seguro-saúde
ou da assistência médica contratada somente à ocorrência de doenças
"menos onerosas", quatro aspectos devem ser destacados: 1) o consu-
midor é raramente informado sobre estas limitações, criando-se a
expectativa de que todas as doenças estão cobertas, com fundamento
no CDC, através de seus arts. 31, 46 e 47, há uma interpretação da
relação contratual pró-consumidor;{152} 2) as cláusulas limitativas
apare-
cem sem destaque no texto do contrato e por vezes subdivididas em
várias cláusulas, dificultando a interpretação e o conhecimento de seu
* (151) Veja bela decisão do TAPR, que em caso envolvendo a Unimed
de Curitiba,
Medipar, após conceder cautelar inominada objetivando a expedição da guia
de internamento hospitalar para cirurgia, deu ganho de causa ao
consumidor
nas várias ações. Ap. Civ. 96.403-2, rel. Renato Strapasson, j. 4.3.97.
Note-
se que tratando-se de câncer, a seguradora considerou doença crônica
incurável e negou qualquer cobertura. Veja sobre a interpretação
econômica
do direito e as suas injustiças, Mosset, p. 18 e ss.
(152) Veja decisões citadas anteriormente, TJSP, Ap.
240.429-2/6, 16.ª C., j.
25.10.94, Rel. Des. Pereira Calças, in RT 719/129. e do 1.º Tribunal de
Alçada de São Paulo, Rel. Juiz Lobo Júnior, de 26.7.94, in Revista
Direito
do Consumidor, v. 14, p. 172 e ss. Veja ainda decisão TJRS citada
anteriormente, que repito pela força de sua ementa: "Civil. Seguro-saúde.
Exclusão de casos crônicos. Inteligência da cláusula contratual. 1. Não
infringe os arts. 1.432 e 1.460 do CC a interpretação de que a cláusula,
excluindo casos crônicos, dentre os quais se situa a Diabetes mellitius,
não
se aplica ao segurado em idade avançada. Interpreta-se o contrato de
acordo
com sua finalidade econômica e ninguém contrata tal seguro senão para ver
cobertos, oportunamente, os achaques da idade. Apelação desprovida (Ap.
Civ. 596094482, 5.ª Câm. C., j. 24.10.96, Rel. Des. Araken de Assis, in
Revista de Jurisprudência do TJRS n. 180, p. 394.). Veja também TAPR,
Ap. Civ. 79.189-3,j. 27.8.95, rel. Campos Marques: "Ação de Indenização.
Contrato de Adesão. Seguro-saúde. Cláusula limitando os riscos. Interpre-
tação extensiva. Inadimissibilidade. Ação procedente. Recurso provido.
Nos
contratos de adesão, as cláusulas duvidosas devem ser interpretadas em
favor do aderente". (p. 452)
verdadeiro sentido, além de descumprir dever de clareza expresso no
CDC (arts. 46 e 54, § 4.º);{153} 3) o contrato é redigido de forma ampla
e técnica, podendo as expressões, em princípio, englobar todas, senão
a maioria, das doenças humanas, ficando para o arbítrio do fornecedor
apegar-se ou não à cláusula;{154} 4) a saúde envolve um bem
personalíssimo,
indivisivel e indisponível, no sentido da dignidade da pessoa humana,
resultando tais limitações a determinados tipos de doença espécie nova
de discriminação atentatória aos direitos fundamentais.{155}
O tema apresenta fortíssima ligação constitucional e, neste
sentido, gostaríamos de iniciar a análise (da abusividade ou não) destas
cláusulas relembrando as regras básicas sobre saúde na sociedade e no
mercado brasileiro.
Segundo dispõe o art. 196 da CF/88, a saúde é direito de todos
e dever do Estado, que a presta através de seu sistema único de saúde.
* (153) Neste sentido, pela aplicação do art. 54, § 4.º, do CDC e
contraditoriedade
destas cláusulas que excluem, por exemplo, o tratamento da meningite
meningocócica, porque esta também se define como "doença de caráter
infecto-contagioso, apresentando características epidêmicas", e outras do
contrato que asseguram tratamento de urgência e de doenças em geral, veja
decisão do TJRJ, Ap. Civ. 5176/93, Des. Ellis Figueira, j. 22.2.94, in
RDR
1/267 e ss. Assim também as citadas decisões in RT719/129, e do TARS,
Ap. Civ. 193.184.132.
(154) Exclusões genéricas foram consideradas abusivas pelo TJSP,
em linha
majoritária, segundo pesquisa do Procon/SP. Abusivas são exclusões de
"doenças infecto-contagiosas" (Ap. Civ. 264.741-1, 3.ª Câm., Toledo César
j. 13.8.96); "infecção hospitalar" (Ap. Civ. 232.502-2, Scarance
Fernandes,
j. 2.8.94), e "doença irreversível" (Ap. Civ. 269.377-1, Toledo César, j.
13.8.96): possível exclusão de "patologia ocular" (Recurso 2.103). Quanto
a doenças crônicas, jurisprudência dividida, parte considerando não
provada
que era in concreto "crônica" a doença, logo, considerando lícita a
exclusão
(Ap. Civ. 212.467-1, Santos, j. 10.3.94 e Recurso 1.615 e 1.748), parte
considerando abusiva (Ap. Civ. 269.377-1, Toledo César, j. 13.8.96);
Liminares foram mantidas em caso de exclusão de "problemas decorrentes
de ingestão de bebida alcóolica" (JTJSP 179/151), "doenças psiquiátricas"
(AI 007.223-4, Marcondes Machado, j. 9.4.96).
(155) Nesse sentido a conclusão n. 12 do III Congresso Brasileiro
de Direito do
Consumidor - Contratos no ano 2000, pleiteia a nulidade da cláusula de
limitação da cobertura nos contratos de seguro-saúde. No mesmo sentido,
manifestação de Geraldo Martins da Costa, na Revista Direito do Consu-
midor, v. 21, p. 132 e ss. (p. 453)
A própria lei máxima, porém, em seu art. 199, permite a participação
de agentes econômicos privados nesse ramo de atividades, assegurando
que: "A assistência à saúde é livre à iniciativa privada".
O ponto de encontro entre as atividades públicas e privadas
envolvendo a saúde será dada pelo art. 197 da CF, ao qual dispõe: "São
de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscaliza-
ção e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através
de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito
privado".
A única legislação específica sobre seguros-saúde até há pouco
era o Dec.-lei 73, de 21.11.66, o qual criou o Sistema Nacional de
Seguros Privados e instituiu o seguro-saúde, mencionando as suas
modalidades nos arts. 129, 130 e 135. Já a Constituição de 1988 mudou
radicalmente a ordem pública brasileira e conseqüentemente o direito
privado brasileiro, no que tange às relações no mercado (impondo uma
nova harmonia baseada na boa-fé das condutas e no respeito aos
direitos dos consumidores, art. 170), e no que tange às relações
envolvendo direitos da personalidade e direitos humanos de 2.ª e 3.ª
geração (art. 5.º, XXXII).{156}
O quadro agravava-se pelo fato do Decreto-Lei n. 73 e sua
legislação regulamentadora não dedicarem aos contratos de seguro-
saúde mais do que três ou quatro normas legais, ocorrendo, por muito
tempo, um lamentável fenômeno de "desregulamentação" no setor.{157}
Esta falta de base legal, de linhas de atuação e controle do setor
refletiu-
se na falha na fiscalização, na omissão e na luta pela continuidade da
desregulamentação total do setor por parte dos fornecedores,{158} como
* (156) A proteção do consumidor é considerada direito fundamental
de 2.ª geração,
por ser direito econômico e social; muitos dos serviços "pós-modernoS"
mencionados neste estudo (contratos cativos de longa duração), em
especial
os serviços públicos essenciais e os serviços privados autorizados, tais
como
os envolvendo a prestação de saúde, vinculam-se estreitamente ao respeito
(e à garantia constitucional de não violação) dos direitos humanos hoje
reconhecidos.
(157) Assim concorda Jourdan, op. cit., p. 417, afirmando que o
fato da
regulamentação do setor nunca ter se concretizado facilitou que empresas
"não dignas" pudessem "funcionar num mercado sem controle do poder de
polícia" face à omissão da SUSEP.
(158) Interessante notar que os atuais projetos de legislação
para o setor são
oriundos do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais de Justiça e
(p. 454)
se o mercado absolutamente livre evitasse abusos; fazendo pensar se
realmente a função controladora, autorizadora e fiscalizadora do Estado
estava sendo levada a sério ou se o Órgão diretamente controlador, a
Susep, de controlador não teria passado a ser controlado.{159}
A aplicação das linhas, paradigmas e normas do Código de
Defesa do Consumidor, Lei 8.078/90, aos contratos de seguro-saúde
apresentou-se, portanto, como importante caminho para alcançarmos
o esperado equilíbrio, respeito e lealdade no setor. A jurisprudência
originada pela aplicação do CDC ao setor foi imensa. Quanto ao
direito constitucional à saúde, o leading case foi a decisão do Recurso
Especial 8.095/SP, julgado em 22 de abril de 1996, onde apesar de
resultar em decisão de não conhecimento do recurso da seguradora,
o Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar apreciou o mérito da exclusão
de doença, in concreto, da Aids, e concluiu que tal exclusão não
pode beneficiar a empresa fornecedora dos serviços de saúde, quando
esta não tiver promovido exame de saúde prévio à contratação;
concluindo também que a Aids não constitui epidemia capaz de
desonerar a seguradora.{160}
Hoje não há mais discussão sobre a aplicação das normas do CDC
ao setor. Segundo dispõe o art. 3.º, § 2.º do CDC, as atividades
securitárias incluem-se no âmbito de aplicação da nova lei, lei também
de ordem pública a concretizar o mandamento constitucional de nova
harmonia e boa-fé no mercado brasileiro, inclusive no mercado de
serviços.{161}
*PROCONs, ou são orientações do Conselho Federal de Medicina e não da
SUSEP.
(159) Adalberto Pasqualotto, em seu inédito trabalho para o III
Congresso
Brasileiro de Direito do Consumidor, p. 6, citando os ensinamentos de
Antônio Herman Benjamin, menciona o fenômeno da "captura" ou da
submissão do órgão controlador aos interesses dos "controlados".
(160) Outro belo exemplo jurisprudencial está reproduzido na
Revista Direito do
Consumidor, v. 21, p. 158 e ss., em que a ementa expressamente menciona:
"Plano de saúde. Tutela antecipada. Pretensão da prestadora do
serviço de
rescindir contrato firmado com prazo de vigência determinado e vencido em
pleno tratamento. Pleito do associado de manter-se vinculado. Prevalência
da
guarida à vida humana, em detrimento de possível direito patrimonial da
agravante. Interpretação do inc. II do § 1.º do art. 51 do CDC. Agravo
improvido".
(161) A aplicação das novas normas impostas pelo CDC ao campo dos
seguros
é indiscutível, única manifestação contrária e ainda limitada a aplicação
de (p. 455)
Da mesma maneira, o art. 2.º, em seu caput e parágrafo único,
e o art. 29 do CDC definem aquele que contrata os serviços securitários
e aquelas pessoas beneficiadas (envolvidas) pelo serviço, assim como
as pessoas que se submetem ao método de contratação através de
contratos de adesão, como consumidoras ou pessoas equiparadas a
consumidores. De forma ainda mais ampla, o art. 17 do CDC dispõe
que em caso de defeito no serviço que venha a causar dano à saúde
da pessoa, esta será equiparada a consumidor, enquanto vítima do que
denomina "fato de serviço".
Assim, apesar da nova aplicação da Lei 9.656/98 ao setor,
continua sendo aplicável o CDC e parece-nos de grande importância
analisar essas relações contratuais sob a ótica da proteção dos
interesses
do usuario-consumidor ou consumidor equiparado. Neste sentido, dois
aspectos devem ser considerados: o respeito às expectativas
legítimas{162}
do consumidor face ao preço pago e às informações recebidas e à
importância social do sistema. O primeiro aspecto destaca a importân-
cia da informação fornecida ao consumidor, em especial sobre as
exclusões do plano escolhido. Não basta apenas destacar as cláusulas
limitativas da cobertura oferecida, é necessário cumprir com seus
deveres de informação e aconselhamento.
É necessário igualmente transparência e clareza na publicidade e
nos prospectos distribuídos.{163} No momento em que a nova lei estabe-
*uma norma processual do CDC, a qual impediria a denunciação à lide do
Instituto Brasileiro de Resseguros-IRB, é a de Voltaire Marensi, "O
Código
do Consumidor e o Seguro", in RT 671/264-265.
(162) Veja a decisão neste sentido do JEPC/RS: "Seguro-saúde. Das
seguradoras
- Obrigação de reembolsar valores pagos pelo segurado ao hospital -
Exames e honorários médicos. Segurado que é internado em hospital,
realiza exames e submete-se a anestesia geral, para que possa o médico
constatar localizadamente o quadro clínico da doença, tem direito a
receber
ressarcimento pelas despesas efetuadas. As disposições impressas em
regulamento geral, anexos, boletins de subscrição nos chamados Planos de
Saúde, devem ser interpretadas de forma mais favorável ao aderente,
principalmente se ambíguas e contraditórias as situações previstas.
Dentro
da moderna ótica de serem vistos estes contratos unilateralmente
preparados
e conhecidos como de adesão (decisão unânime)". (Proc. 01191701158,
Rec. 114, relator Dr. Silvestre Jasson Ayres Torres, 1.ª Câmara Recursal
do
Juizado Especial de Pequenas Causas, j. 6.6.91).
(163) Assim o ensinamento da jurisprudência: "Contrato de adesão.
Plano de
saúde. Rescisão. Propaganda enganosa. Aproveitamento de períodos de (p.
456)
lece um plano ou seguro-referência (art. 10 da Lei 9.656/98), mas
faculta a oferta de planos segmentados, cada um com um regime de
cobertura obrigatório (art. 12), quais sejam o plano ou seguro
ambulatorial
(art. 12, I, da Lei 9.656/98), o hospitalar (art. 12, II, da Lei
9.656/98),
o obstétrico (art. 12, III, da Lei 9.656/98) e o odontológico (art. 12,
VI, da Lei 9.656/98), o dever do fornecedor de informar e aconselhar
o consumidor para cada uma dessas escolhas fica redobrado. Note-se
que o dever de informar do art. 30 e 31 do CDC não foi revogado nem
atingido pela promulgação da lei especial sobre seguro e planos
privados de saúde.
Em outras palavras, é necessário maior transparência, informa-
ção e lealdade ao informar e oportunizar a informação do consumidor
sobre o regime (e coberturas) de seu plano ou seguro de saúde. Não
há mais como denominar um plano de saúde de "plano integral de
saúde" e excluir de sua cobertura a maioria das doenças. A própria
Lei 9.656/98 exige clareza nos contratos, regulamentos ou condições
gerais dos planos e seguros (art. 16){164} e mesmo a rubrica do
consumidor em cada um desses documentos (art. 16, § 2.º).{165} É
necessária precisão na exclusão. Exclusões genéricas desequilibram
o conteúdo do contrato de seguro-saúde e não devem ser usadas para
*carência de outros planos. Recusa no cumprimento do avençado. Indução
em erro dos contratantes. Rescisão do contrato. Ação procedente", in
JTJSP
156/41.
(164) Infelizmente a Lei 9.656/98 contenta-se, a exemplo da
Itália, em exigir uma
rubrica do consumidor nesses documentos para determinar sua "validade"
(art. 16, § 2.º). Essa norma não tem o condão de afastar as normas
complementares do CDC, que tratam de outros requisitos de validade (arts.
20, 30, 31,35,46,51 e 53 do CDC), mas essa formalidade informativa pode
ser bem utilizada pelo Judiciário quanto à integração desses documentos
(rubricados ou não) na relação contratual.
(165) A nova exigência de rubrica do consumidor deve ser
interpretada não
como uma anuência tácita (rubricando um dos documentos e cláusula,
concordariam com todas as outras), mas como uma inversão do ônus da
prova, de forma a comprovar que o consumidor recebeu todas as
informações necessárias e foi lhe chamado atenção dos pontos mais
importantes, onde rubricou, evitando decisões e lides como esta: "Con-
trato. Plano de saúde. Serviço não coberto. Previsão expressa. Desconhe-
cimento por não ter recebido o manual do beneficiário. Alegação após
cinco anos de execução do contrato. Inadimissibilidade. Hipótese, ade-
(p. 457)
acobertar erros de cálculos atuariais ou cobranças a menor de
prêmios, de forma a "baratear" serviços que os consumidores nunca
poderão usar.
A abusividade das cláusulas presentes nos contratos no mercado
brasileiro tem sua origem justamente na falta de transparência,
precisão e informação deste tipo de contrato. Insere-se assim no
previsto no § 1.º, III, do art. 51, que ao concretizar as cláusulas
abusivas especifica que são estas aquelas que desequilibram o
contrato e "se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, de tal modo a
ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual". A cláusula é abusiva
porque contrária à boa-fé, mas escolhi propositadamente o inciso III,
face as perspectivas de uma análise econômica do direito, pois afirma-
se constantemente que seria impossível um plano que englobasse
todas as doenças. Esta é uma desculpa simplificada, pois tal
impossibilidade desaparece face aos cálculos dos riscos, a idéia de
verdadeira socialização dos riscos, inclusive com a participação
estatal, e os exemplos dos outros países. Preferir ludibriar o
consumidor a informá-lo corretamente é a prova da possibilidade de
planos melhores e que a concorrência no setor é baixa, especialmente
no que se refere às condições gerais dos contratos.
Mesmo antes da regulamentação específica ter sido elaborada,
identificamos na segunda edição deste livro que "a maioria das lides
envolvendo os contratos de seguro-saúde encontraria solução justa e
igualitária através da interpretação conforme os princípios da Consti-
tuição, da aplicação equilibradora do princípio da boa-fé e de uma nova
visão da obrigação como processo. Tal atuação deve ter em mente
porém, a harmonia no mercado, a manutenção dos fornecedores
corretos e a manutenção do sistema.{166}
*mais, de pessoa consciente de seus direitos e obrigações. Embargos
rejeitados", in JTJSP 177/220.
(166) Levanto aqui o tema da destruição do sistema pela
importante tarefa do
Poder Judiciário, de dar solução às lides (individuais ou coletivas),
fazer
justiça, mas sem inviabilizar ou destruir os sistemas econômicos e
sociais
(reflexo econômico da decisão judicial); penso no caso do Sistema Finan-
ceiro da Habitação, no sistema do crédito agrícola e tantos outros, cuja
manutenção é as vezes mais importante socialmente do que a "exaustiva"
(p. 458)
Particularmente, parece-me que o melhor caminho não é impor
uma cobertura total, mas melhorar a forma como determinadas exclu-
sões poderiam ser feitas, sempre assegurando uma escolha possível e
informada do consumidor. Na situação atual, correta a jurisprudência
que simplesmente afasta as cláusulas de exclusão, por abusivas, pois
realmente contrariam os ditames da boa-fé no mercado.{167}
Três linhas jurisprudenciais podem ser identificadas. A primeira
prefere "interpretar" o contrato pró-consumidor e determinar judicial-
mente as várias concausas para a doença ou que a doença não se
enquadra nas exclusões contratualmente previstas.{168} A segunda prefere
atacar a cláusula de exclusão em si, sua redação, sua arbitrariedade, o
desequilíbrio que provoca no contrato e, face a frustração das expec-
tativas do consumidor adimplente, considerá-las nulas por abusivas.{169}
*e total satisfação do credor (ou devedor) individual. Sobre a
importância
da manutenção dos sistemas benéficos à sociedade e ao consumidor, veja
o voto do rel. Juiz Aldo Ayres Torres, na Ap. Civ. 192176071, 3.ª C. Civ.
TARS, j. 13.3.93.
(167) Assim a decisão: "Seguro-saúde. Segurado acometido de mal
súbito.
Internação para realização de exames. Diagnosticada angina peitoral e
hipertensão arterial. Afastadas cláusulas contratuais restritivas aos
direitos
do segurado. Inteligência do art. 51, § 1.º, II, da Lei 8.078/90 (CDC).
Cobertura devida pela seguradora. Recurso improvido. (Ap. Cív. 313,
relator
Dr. Gerci Giaretta, 2.ª Câm. RecursaL"/RS, JEPC).
(168) Nesse sentido as decisões do TJRS, em dois diferentes casos
de reembolso
negado por famosa empresa de seguro-saúde. Na Ap. Cív. 592018170, o
reembolso foi negado pela seguradora sob a alegação da uretroplastia ser
oriunda de doença congênita do menor, mas outra foi a interpretação da
4.ª
Câm. Cív., que considerou a ação procedente e ordenou a indenização dos
consumidores, reduzindo, porém, o valor do reembolso ao limite da apólice
(j. 9.12.92, rel. Des. João Aymoré Barros Costa, não publicado). Decisão
semelhante, em caso de hérnia, cujo caráter "plástico" alegado pela
seguradora foi negado pela 1 .ª Câm. Cív. do TJRS já anteriormente ao CDC
(Ap. Cív. 588056598, rel. Des. Elias Manssour,j. 1.11.88). Mais recente-
mente estes casos estão sendo resolvidos no JEPC, onde porém o teto da
indenização do RGS é de 40 Salários mínimos; veja neste sentido a decisão
anteriormente mencionada (Proc. 01191701158, Rec. 114, rel. Dr. Silvestre
Jasson Ayres Torres, 1.ª Câm. Recursal do JEPC, j. 6.6.91).
(169) Bom exemplo é a decisão do JEPC, de 3.5.93, Proc.
011927803000, 8.ª
JEPC/RS, com forte argumentação, que passo em parte a reproduzir: "Mas,
quantos dias, meses ou anos seriam necessários para a caracterização de
tal (p. 459)
A terceira inverte as posições contratuais, na tentativa de reequilibrar
os riscos e afirma ser do fornecedor o dever tanto de informar como
de informar-se, logo se aceitou como segurado pessoa com a suposta
"doença preexistente" ou congênita, sem fazer os testes necessários, e
do seu risco profissional cobrir o tratamento, já que aceitou o pagamen-
to durante anos dos prêmios deste consumidor".{170}
Neste primeiro momento, identificamos que a linha majoritária
após a entrada em vigor do CDC era "a primeira que, de forma ainda
bastante tradicional, interpreta a cláusula contra proferentem, mas
evolui a impor conexamente ao fornecedor o pesado ônus de provar a
doença congênita, preexistente ou mesmo valores cobrados e a
razoabilidade da limitação".{171}
*"doença crônica"? Em razão disso, várias decisões judiciais, e,
inclusive,
agora, por norma inclusive de entidade que disciplina a formação das
administradoras de Planos de Saúde, impõe-se que não sejam adotados
critérios de exclusão de benefícios com base em conceitos tão vagos como
o de "doença crônica", através do que se constitui uma cláusula
tipicamente
leonina a favor do administrador do Plano, em detrimento da maioria dos
contribuintes que, de boa-fé, aderem aos mesmos e, na hora de
necessidade,
não obtém a cobertura prometida".
(170) Veja decisão exemplar, anterior a entrada em vigor do CDC,
mas já
seguindo o princípio da boa-fé objetiva, com a seguinte ementa: "Seguro-
saúde - Doença preexistente. A seguradora que recebe os prêmios, inde-
pendentemente de examinar a saúde do seu associado, não pode depois
escusar-se ao pagamento da cobertura alegando que a causa da internação
decorreu de doença preexistente. No caso, inocorre sequer essa relação de
causalidade. Ação improcedente. Apelo Improvido". (Ap. Cív. 589041169,
5.ª CC, TJRS, j. 22.8.89, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior).
(171) Bom exemplo é a decisão do TJRJ, in RT 612/163, cuja ementa
mencionada
é a seguinte: "Contrato de adesão - Assistência internacional de saúde -
Dúvida quanto à interpretação de cláusula relativa ao custo de despesas
hospitalares - Observância de regra própria interpretativa destes acordos
em
favor do contratante que não formulou as normas do ajuste - Ônus da prova
quanto ao fato controvertido pelo outro contratante - Recurso provido -
Voto vencido.
Havendo dúvida quanto à interpretação de cláusula em contrato de adesão,
devem ser observadas normas próprias de interpretação destes ajustes
levando-se em conta o fato de que neste tipo de acordo a predeterminação
unilateral e uniforme do conteúdo da relação contratual é inalterável e,
também, que os contratantes aderentes não podem ler com atenção as (p.
460)
A Lei 9.656/98 tende a complementar esta tendência da jurispru-
dência para os contratos novos, uma vez que impõe a cobertura de todas
as doenças (art. 10, caput, e art. 12, I e II, da Lei 9.656/98), mesmo
as crônicas, congênitas e em estágio agudo. A Lei 9.656/98 tende,
porém, a reverter essa tendência ao vedar a exclusão de cobertura às
doenças e lesões preexistentes mediante uma redação bastante dúbia.
Enquanto a jurisprudência com base apenas no CDC (art. 51, IV
e § 1.º) considera, majoritariamente, inócuas, essas cláusulas de
exclusão de doenças preexistentes (sem a necessidade de exame prévio
do consumidor, pois o fornecedor tacitamente teria aceito o risco e a
cobertura), ou mesmo desequilibradoras da engenharia do contrato e
abusivas,{172} o art. 11 da nova Lei 9.656/98 dispõe: "É vedada a
exclusão
de cobertura às doenças e lesões preexistentes à data de contratação dos
planos ou seguros de que trata esta Lei após vinte e quatro meses de
vigência do aludido instrumento contratual, cabendo à respectiva
operadora o ônus da prova e demonstração do conhecimento prévio do
consumidor".
Esta esdrúxula norma da nova lei especial acaba por considerar
"lícita" (repita-se, para contratos novos...) a cláusula de exclusão de
cobertura às doenças e lesões preexistentes nos primeiros vinte e quatro
meses do contrato e nula a cláusula após (art. 145, V CCBr.). A norma
do art. 11 da Lei 9.656/98 impõe, porém, para os primeiros 24 meses
do contrato uma prova dificílima e lamentável ao fornecedor, qual seja
a de má-fé subjetiva do consumidor. A jurisprudência atual preferia,
seguindo o exemplo do STJ, exigir do fornecedor o exame prévio do
*numerosas cláusulas elaboradas. Desta forma, interpreta-se a favor do
contratante aderente, cabendo ao outro o ônus da prova do fato
controverso
(Red.). Contrato de assistência internacional de saúde. Interpretação da
cláusula relativa ao reembolso das despesas hospitalares feitas no
exterior.
Onus da prova relativa ao custo médio no exterior. Procedência da ação
proposta para obter o reembolso integral. Provimento do recurso. Voto
vencido". (Ap. 39.996 (EDecl), 6.ª C.,j. 3.12.85 e 18.3.86, rel. Des.
Basiieu
Ribeiro Filho).
(172) Veja leading case do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior e
decisões
exemplares dos Tribunais de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e São
Paulo; veja, por todas, decisões do TJRGS: Ap. Civ. 589041169, Ap. Civ.
594087447 (doença preexistente), Ap. Civ. 592018170 (doença congênita),
do TJSP: Ap. Civ. 270238-1, Ap. Civ. 254.902-1; Ap. Civ. 250.316-1, e nos
JEPC/SP: Rec. 2.377, Rec. 1.341, Rec. 1.100 e Rec. 2.531. (p. 461)
consumidor.{173} Se o fornecedor deixasse de executar esse exame,
presumia-se que aceitara o consumidor com sua doença mesmo
existente (risco da prática profissional). O art. 11 da Lei 9.656/98 pelo
menos presume a boa-fé subjetiva do consumidor e exige prova em
contrário, mas acaba por desonerar as seguradoras e administradoras
de realizar exames prévios, como estas mesmas requeriam insistente-
mente ao Parlamento.
* (173) Como resumo dessa linha jurisprudencial reproduzo a ementa
do TJSP que
consta no JTJSP 151/164: "Contrato. Plano de Saúde. Admissão de
beneficiário sem exame prévio e sem exigir declaração de estado de saúde.
Assunção do risco de dar cobertura a casos que eventualmente estariam
afastados com o referido exame. Recurso não provido", e no JTJSP 184/39:
"Contrato. Plano de Saúde. Doença preexistente. Exclusão. Inadmissibili-
dade. Empresa que recebeu a proposta sem a realização de exames prévios
no associado. Cobertura devida. Recurso provido. Voto vencido". Segundo
o relatório da Pesquisa Brasilcon no TJSP, p. 9, no mérito 81, 8% das
causas
envolvendo exclusão de tratamento teriam sido resolvidas dando ganho de
causa ao consumidor, sendo 54,5% liminares. Interessante notar que as
esparsas decisões que mantêm a validade e a eficácia das cláusulas de
exclusão de doenças preexistentes baseiam-se na má-fé subjetiva do
consumidor. Assim TJRJ, Ap. Civ. 7576/96-029 C, Des. Luiz Zveiter, j.
25.2.97, mesmo assim com voto vencido do Des. Gualberto de Miranda com
base no art. 54, § 4.º, do CDC e Ap. Civ. 3380/96, Des. Luiz Carlos
Guimarães, j. 10.12.96, com voto vencido do Des. Martinho Campos. A
prova da má-fé do consumidor é dificil em matéria de contratos de adesão,
muitas vezes mal formulados, e em contratos múltiplos, como os concluídos
com seguradoras que fazem parte de grupos bancários. Veja TAPR, Ap. Viv.
91.454-9, rel. Manassés de Albuquerque, j. 12.8.96: "quando a captação de
clientes se faz na concessão de empréstimos bancários, em reciprocidade
bancária e com preenchimento pela seguradora, inexiste má-fé na conduta
do segurado". Já o TJRS prefere não declarar a nulidade da cláusula, mas
nega que tenha sido provada a preexistência da doença ou exige o exame
prévio. Veja como exemplos Ap. Civ. 594 987 447, Des. Salvador Horácio
Vizotto, j. 28.12.94; Ap. Civ. 592 018 170, Des. João Aymoré Barros
Costa,
j. 9.12.92 e Ap. Civ. 592 070 528, Des. João Loureiro Ferreira,j.
30.9.92.
Veja também do TJRS bela sentença concedendo cobertura e mesmo danos
morais a segurado com mais de 60 anos, cujo tratamento de complicações
da diabetes resultou em cegueira e amputação de ambas as pernas, sendo
que a seguradora queria excusar-se, através de aditivo contratual que
introduzia restrição de idade, da cobertura de tal doença preexiStente
(ap.
Civ. 596 088 799, j. 18.6.96, Des. Paulo Roberto Hanke, in Revista de
Jurisprudência do Tribunal de Justiça, n. 181, p. 308 e ss. (p. 462)
Durante a elaboração da hoje Lei 9.656/98, opinamos contra o art.
11 e por sua retirada do texto a ser aprovado, pois é falacioso e
perigoso.
Isto porque o art. 11 não veda eficazmente a exclusão de doenças
preexistentes apesar de assim parecer, mas sim pode ser interpretado
de forma contrária como se estivesse a autorizar legalmente essa
exclusão. Pior, assim interpretado, o art. 11 autorizaria, ao contrario,
que
todos os contratos, inclusive o Plano-Referência, possuam cláusula de
exclusão de doenças preexistentes, sem que a seguradora tenha que
fazer o exame prévio como hoje exigido pela jurisprudência. Sim, o
art. 11 da Lei 9.656/98 autorizaria a cláusula em geral, proibindo-a se
o contrato tiver, in concreto, uma vigência maior que vinte e quatro
meses e a doença for preexistente ao contrato. Essa interpretação não
deve prosperar: a cláusula deve ser sempre vedada e só permitida
quando acompanhada de exames prévios realizados gratuitamente pelo
fornecedor.
Ora, a própria lei nova se preocupa com a prorrogação obrigatória
desses contratos e restringe as carências a menos de um ano, mas
estabelece sem razão alguma uma carência de dois anos para doenças
preexistentes. Esse artigo merece ser revogado expressamente na próxi-
ma Medida Provisória elaborada sobre o assunto, ou estabelecida judi-
cialmente, de forma rápida, uma outra interpretação pró-consumidor
dessa esdrúxula e, parece-me, por sua dubiedade, mal-intencionada
norma.
A jurisprudência brasileira considerou abusiva essa cláusula de
exclusão justamente por sua generalidade. Fora os acidentes, toda e
qualquer doença pode-se dizer - e mesmo provar - biologicamente
preexistente, ou porque congênita, ou por concausa genética, concausa
profissional ou por estar em estágio inicial e incubário há muito
tempo.{174} Como se observou, a jurisprudência considerou abusiva a
* (174) Surpreendente o grande número de decisões , no país
inteiro, que concedem
liminares ou decisões positivas para os consumidores em agravo de
instrumento, justamente nesses numerosos casos em que o fornecedor nega
autorização de internamento, de tratamento ou de exame, por unilateralmen
te considerar "preexistente" a doença, o que faz o consumidor recorrer ao
Judiciário. Exemplo dessa linha jurisprudencial sempre com resultados
favoráveis ao consumidor, mas que comprova a unilateralidade e
abusividade
da cláusula e seu constante uso na prática dos fornecedores de seguro-
saúde,
vem do TAPR. Veja AI 85.205-9, rel. Waldemir Luiz da Rocha, j. 18.12.95;
Ap. Civ. 70.131-1, rel. Renato Strapasson,j. 8.5.95; Ap. Civ. 94.531-3,
rel. (p. 463)
exclusão, baseada na idéia de que, se a seguradora ou cooperativa aceita
a informação do consumidor e o aceita em seu plano sem o submeter
a exames prévios, deve arcar com as suas doenças, mesmo que já
potenciais naquela época, interpretando, em última análise, o contexto
do contrato em favor do consumidor. Entende-se, com base no CDC,
ser risco profissional dessas empresas de saúde contratar com pessoas
potencialmente doentes e em risco de saúde. Segurar riscos de saúde
e do consumidor desenvolver doenças futuras é a finalidade do plano
ou seguro de saúde, não a de contratar apenas com pessoas absoluta-
mente e totalmente saudáveis no momento da contratação.
Melhor seria se o art. 11 da nova Lei 9.656/98 fosse revogado,
pois anda na contramão da história. De nada adianta a inversão legal
do ônus da prova se reintroduzimos a idéia de má-fé subjetiva e a
discussão sobre se o consumidor sabia da sua doença. Ao contrário, o
CDC e a jurisprudência brasileira presumem sempre a boa-fé deste e
a obrigação da seguradora ou plano de cobrir essas doenças (arts. 24,
25 e 51, IV e § 1.º, do CDC).
Registre-se, portanto, o perigo de, ao regular por lei esses
Planos
e Seguros, instituir em lei práticas abusivas e cláusulas abusivas que
passarão a integrar o regime legal dos novos planos e seguros de saúde,
prejudicando ainda mais os consumidores e renovando o trabalho do
Judiciário, que já decidia pacificamente em sentido contrário. Tais
esdrúxulas normas desequilibram as relações contratuais privadas mais
do que as cláusulas eventualmente abusivas e, portanto, violam os
interesses e direitos dos consumidores já protegidos por lei e pela
Constituição Federal (art. 5.º, XXXII) e pelo Código de Defesa do
Consumidor. Melhor andaria o Parlamento e o Executivo se esclare-
cessem o que pretendiam com o art. 11 da nova lei: vedar ou legitimar
tal cláusula? Na minha opinião essas cláusulas continuam vedadas nos
contratos de seguro-saúde em andamento e nos novos contratos
assinados após a entrada em vigor da lei especial, nos contratos em
andamento com base no art. 51, IV, do CDC e nos novos em face de
uma interpretação compatibilizadora da lei e do CDC e em uma
provável interpretação literal da norma do art. 11 da Lei 9.656/98.
*Antônio Martelozzo, j. 27.11.96; Ap. Civ. 89.838-4, rel. Lauro Laertes
de
Oliveira, j. 30.4.96; Ap. Civ. 94.274-3, rel. Sérgio Rodrigues, j.
28.8.96; Ap.
Civ. 96.403-2, rel. Renato Strapasson, j. 4.3.97 e Ap. Civ. 108.805-9,
rel.
Ruy Cunha Sobrinho, j. 24.9.97. (p. 464)
Polêmica foi também a evolução jurisprudencial que acabou por
estabelecer a cobertura do tratamento da Aids,{175} apesar das diversas
cláusulas excludentes comuns em todos os contratos de seguro-saúde
em que essa doença poderia ser enquadrada como epidêmica,{176} infecto-
contagiosa,{177} crônica e de notificação compulsória.{178}
A Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, parece querer estabelecer de
forma geral e pacífica a obrigatoriedade de cobertura da Aids e de seus
efeitos em todos os tipos de plano, pois nos planos referência,
ambulatorial e hospitalar nada mais menciona sobre exclusão da Aids,
de epidemias, doenças infecto-contagiosas etc, frisando sempre a
cobertura de todas as doenças. Sabe-se, porém, que as exclusões dos
incisos I a X do art. 10 (plano referência) poderão ser mudadas pelos
instituídos Conselhos, e a própria Medida Provisória reintroduz no §4.º
do referido art. 10 uma exceção que o parlamento havia afastado da
Lei 9.656/98, qual seja, os "procedimentos de alta complexidade" (?).
Demonstra-se assim que a insegurança legal é grande.
Neste sentido, vale a pena reproduzir aqui alguns passos dessa
evolução jurisprudencial, que começou em virtude da interpretação pró-
consumidor do art. 47 do CDC e das práticas comerciais de algumas
empresas que fizeram publicidade ou divulgaram informações que
* (175) O leading case é do STF, Recurso Extraordinário 86.095-SP,
Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 22.4.96, publicado no DJ de 27.5.96, p. 17.877:
"Seguro-saúde. Aids. Epidemia. A empresa que explora plano de seguro-
saúde e recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não
pode escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão
nas informações do segurado" (na íntegra in Revista Direito do
Consumidor,
v. 20, p. 149-152. Veja leading case do TJSP, no AI 279.785/6, Des.
Álvaro
Lazzarini, j. 13.2.96: "Não pode o plano de saúde escusar-se da obrigação
de prestar ao segurado, portador do virus HIV, o tratamento médico-
hospitalar necessário, pois a cobertura deve ser generalizada a todas as
patologias, independentemente do contrato firmado pelas partes".
(176) Veja neste sentido, negando que a Aids seja epidemia, TJSP:
"Contrato.
Plano de Saúde. Epidemia. Caracterização apenas em situações anômalas
e extraordinárias. Recurso não provido", in JTJSP 159/164.
(177) Veja decisão na Revista de Jurisprudência do TJRS, v. 23,
p. 240 e ss.
(178) Veja duas decisões do TJSP permitindo a exclusão do
tratamento de doenças
"de notificação compulsória", uma vez que assinado o contrato anterior-
mente à vigência do CDC, Ap. Civ. 247.264-2, Corrêa Vianna, j. 20.12.94,
e JTJSP 169/48. (p. 465)
cobririam os efeitos da Aids.{179} De decisões que consideravam válida
a exclusão de qualquer doença,{180} evoluímos com a Resolução 1 .401/
93 do Conselho Federal de Medicina para a análise dos valores
constitucionais envolvidos,{181} e, após ele, para considerar a
ilegalidade
da cláusula em 1994,{182} em especial em face da inexistência de exame
prévio.{183}
Em 1995, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mesmo
sem citar o CDC, considerou que, no caso de determinada seguradora,
sua prática de aceitar portadores da síndrome da Aids deveria ser
valorada como inclusão de nova cláusula na relação contratual e
* (179) Veja decisão do STJ, que, mesmo não conhecendo o recurso,
ensina: "O
quadro fático contido no acórdão, baseado no exame de provas documentais
e testemunhais e na interpretação do contrato, revela que a empresa de
saúde, na época da contratação com o recorrido, admitiu portadores de
Aids
como associados e que estes teriam recebido tratamento por, aproximada-
mente, dois anos (...). Aceitando a empresa de saúde, à época da
contratação
com o recorrido, paciente com Aids, não há falar em má-fé do associado
ante a eventual omissão sobre ser portador do virus HIV positivo" (RE
89.412-SP, j. 9.6.97, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito).
(180) Exemplo neste sentido vem do TJRJ, 1.ª Câm. Civ., Ap. Civ.
2.484/93, Des.
Martinho Campos: "Seguro saúde. É lícita a exclusão da cobertura de
qualquer doença (Código Civil, artigos 1.432, 1.434 e 1.460)" Veja do
TJSP
decisão em sentido idêntico, in JTJSP 177/45, e do TJRS, Ap. Civ.
590412130, Des. Clarindo Favretto,j. 14.4.94, cuja ementa é citada na
nota
seguinte.
(181) Assim decisão do TJSP considerando abusiva a cláusula, com
voto vencido
em contrário, in JTJSP 184/39 e decisão do TJRS, Ap. Civ. 590412130, que,
apesar da análise, conclui que: "A resolução n. 1.401/93, do Conselho
Federal de Medicina, não obriga as empresas privadas a dar cobertura
parcial. A mera exclusão de tratamento de moléstia infecto-contagiosa de
notificação compulsória não é cláusula abusiva" (MS 594012130, j.
14.4.94,
Des. Clarindo Favretto, in Revista de Jurisprudência do TJRGS 1994, v.
23,
p. 240 e ss.).
(182) Assim decisões leading case do TJSP na Ap. Civ. 237.402-2,
j. 22.8.94,
Des. Theodoro Guimarães, e do TJRJ, AI 396/94, j. 6.12.94, Des. João
Wehbi Dib, publicada na íntegra na Revista de Direito, v. 27, p. 267-268.
No mesmo sentido, ainda em 1994, TJSP, in Ap. Civ. 237.564-2, j.
18.10.94,
Des. Viana Santos; Ap. Civ. 240.793-2, j. 25.10.94, Des. Marrey
Neto; Ap.
Civ. 234.172-2, j. 20.12.94, Des. Benedicto Camargo.
(183) Assim TJSP, in Ap. Civ. 234.172-1,j. 20.12.94, Des.
Benedicto CamargO,
e AI 258.037-2, j. 24.4.95, Des. Albano Nogueira. (p. 466)
decidiu: "Aceitando-se a proposta de admissão do contratante no plano
de saúde, ciente de que era ele portador da síndrome aidética, tanto que
balizou o seu atendimento apenas na observância da carência normal
do manual, não sendo o caso de invocar-se a cláusula rebus sic
standibus" (Ap. Civ. 248.120-2/4, Des. Massani Uyeda, j. 26.6.95).{184}
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, proibiu
o tratamento discriminatório a esses consumidores doentes.{185}
Em 1996, em leading case o Superior Tribunal de Justiça
afirmaria: "Seguro-saúde. Aids. Epidemia. A empresa que explora
plano de seguro-saúde e recebe contribuições de associado sem
submetê-lo a exame, não pode escusar-se ao pagamento da sua
contraprestação, alegando omissão nas informações do segurado" (STJ,
Recurso Especial 86.095-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j.
22.4.96).{186}
Após a referida decisão, aumentaram o número de cautelares e
liminares concedidas.{187} Exclusão de tratamento e de internação é
exame do mérito.{188} Realmente, em caso de emergência , não deve o
fornecedor ficar discutindo a interpretação de cláusulas e sim concen-
* (184) Decisão no caso do Omint Ltda, na íntegra, RT 721/113-115.
Neste sentido
ainda do TJSP decisão na Ap. Civ. 237.564-2, j. 18.10.94, Des. Viana
Santos. Contra, decisão do TJRJ também de junho de 1995: "É usual a
cláusula excludente de certos riscos nos contratos de seguro, não podendo
ser consideradas nulas perante o CDC" (Ap. Civ. 1.284/95, Des. João
Carlos
Pestana de Aguiar Silva).
(185) Na ementa do TJRJ consta: "Plano de Assistência Médica e
Hospitalar -
Portador de Aids - Internação em Hospital não credenciado - Constando
da proposta contratual que os atendimentos poderiam ser efetuados na rede
credenciada de livre escolha (reembolso), não pode a ré negar-se ao
pagamento, sob alegativa de que os aidéticos devem ser internados,
exclusivamente, na rede credenciada - Procedência das Ações - Recurso
desprovido" (Ap. 2.023/95 , Des. Miguel Pachá). Veja no TJSP a decisão
no AI 042.889-4/8, Des. Reis Kuntz.
(186) Publicado no DJ de 27.5.96, p. 17.877.
(187) Exemplo é a decisão do TJRS, AI 596099150, j. 29.8.96, Des.
Luiz Gonzaga
Pilla Hofmeister, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 180, p. 242-
243. Veja também exemplo do TJSP, AI 13.186-4, Des. Jorge Tannus, j.
13.6.96; AI 11.635-4, Des. Jorge Tannus, 27.6.96 e AI 007.783-4, Des.
Roberto Bedran, j. 4.6.96.
(188) Assim TJSP, AI 274.878-2, Des. Alfredo Migliore, j. 5.3.96.
(p. 467)
trar-se nos deveres de cuidado e de cooperação oriundos do princípio
da boa-fé objetiva.{189}
A partir de 1996, a jurisprudência majoritária tende a
interpretar o
contrato de forma mais positiva para o consumidor,{190} considerando
inaplicável ao caso da Aids e dos portadores do virus HIV+ a cláusula
de exclusão na cobertura e no tratamento de epidemias.{191} A Aids não
seria uma epidemia, apesar da posterior conceituação de epidemia
realizada pela Organização Mundial de Saúde, pois persistiria a dúvida
de sua conceituação.{192} Grande parte da jurisprudência prefere conside-
rar que há um aceite tácito da seguradora para cobrir todas as doenças
(não conhecidas pelo consumidor na época da assinatura, consumidor
este que se presume de boa-fé),{193} uma vez que o fornecedor inexigiu
exames prévios ou não solicitou informações específicas.{194} Parte da
jurisprudência considera, com base no art. 51, IV, do CDC, inadmissível
a exclusão de doenças com base em cláusula contratual genérica e,
portanto, abusivas as cláusulas de exclusão de "epidemias", de doenças
"infecto-contagiosas" e outras que afetam a cobertura da Aids e seus
efeitos.{195}
* (189) Assim TJRS, AI 596099150, j. 29.8.96, in Revista de
Jurisprudência do
TJRS n. 180, p. 242-243.
(190) Veja TJSP, leading case nos Embargos de Declaração n.
238.128-2, Ruiter
Oliva, j. 20.12.94, e decisão de ineficácia, por interpretação, da
cláusula de
exclusão de responsabilidade em casos de doença infecto-contagiosa: Ap.
Civ. 212. 145-1, Gonzaga Franceschini, j. 28.11.95.
(191) Assim TJSP, Ap. Civ. 259.981-2, Paulo Franco, j. 21.3.96, e
decisões do
TJSP publicadas na RT 725/233 e JTJSP 166/69.
(192) Assim decisões do TJSP, Ap. Civ. 259.981-2, Paulo Franco,
j. 21.3.96, e
JTJSP 170/57 e RT725/233.
(193) Exemplo de decisão em que o Tribunal considerou provada a
má-fé
subjetiva do consumidor ao assinar o contrato e não informar que era
portador do virus: TJSP, AI 278.923-1, Silveira Netto, j. 1.8.96.
(194) Exemplo dessa linha jurisprudcncial é a decisão do TJSP:
"Contrato. Plano
de Saúde. Aids. Cobertura. Aceitação tácita. Contrato de adesão.
Inexigibilidade na proposta de especificação de doenças das quais o
proponente é portador. Omissão que corre contra a parte que redigiu tal
proposta. Sentença confirmada", in JTJSP 166/149. Sobre aceitação tácita
do fornecedor ao pagar várias internações, veja decisão do TJSP, Ap. Civ.
237.564-2, Viana Santos, j. 18.10.94.
(195) Veja exemplar ementa da decisão do TJSP: "Contrato. Plano
de Saúde. Aids.
Cláusula abusiva. A presença da cláusula abusiva no contrato celebrado ou
(p. 468)

b) Exclusão de determinados tratamentos, exames e limites à


internação e à carência

Um segundo grupo de cláusulas, semelhante e complementar ao


primeiro, foi identificado pela jurisprudência como abusivo, qual seja,
o referente à exclusão de determinados tratamentos e exames da
cobertura, exíguos limites para as internações, em especial em setores
de tratamento intensivo e algumas cláusulas de carência.
Os tratamentos de cobertura mais polêmica eram aqueles mais
caros, como as quimioterapias, radioterapias, tratamentos obstétricos e
odontológicos, órteses e próteses, hospitalizações e fisioterapias em
geral, inseminação artificial e determinados exames para diagnóstico.
A prática desenvolvida pelos fornecedores foi separar esses tratamentos
em planos combináveis. Assim, o consumidor poderia escolher um
plano menos custoso e cobertura menor, que excluía o tratamento
obstétrico ou o odontológico, por exemplo.
Esta prática foi agora "legalizada" pela norma especial, a Lei
9.656/98, que institui quatro diferentes planos ou seguros: o mais
completo plano-referência (não obrigatório, mas de oferecimento
obrigatório a todos os consumidores) do art. 10 da lei, os planos
reduzidos e combináveis do art. 12: ambulatorial, hospitalar, obstétrico
e o odontológico. A lei regula apenas o que cada um desses planos
obrigatoriamente cobrirá, mas se o consumidor optar (e pagar) apenas
por um desses nos futuros contratos de seguro-saúde assinados após
a entrada em vigor da referida Lei, não poderá mais reclamar outras
coberturas, ou cobertura de Outros tratamentos. O plano referência
(o mais amplo deles) não cobrirá uma série de tratamentos (art. 10,
incs. I a X, da Lei 9.656/98), mas essas exceções são modificáveis
*na relação individual é que a torna atual; é a execução do contrato que
vai
esclarecer o potencial abusivo da previsão contratual, é a atividade do
intérprete do contrato, do aplicador da lei, que vai identificar
abusividade
atual da cláusula. Esta se tornou evidente, com recomendação do próprio
Conselho Regional de Medicina. Em face da abusividade não é de se
considerar a exclusão pretendida pela Empresa ré. Recurso desprovido"
(Ap. Civ. 9.096-4, 4.ª Câm. de Dir. Privado, j. 13.6.96, Des. Barbosa
Pereira). Veja também neste sentido decisões do TJSP, Ap. Civ. 275.509-
2, Roque Mesquita, j. 13.5.97, e RT 734/342 e JTJSP 171/38. Contra, TJSP,
in RT 735/376. (p. 469)
pelo Consu (art. 12, § 1.º, da Lei na redação imposta pela Medida
Provisória 1 .665/98).{196}
A jurisprudência brasileira considerou abusiva basicamente a
recusa de exames necessários e fisioterapias necessárias, cuja exclusão
não estava clara no contrato ou constituía cláusula surpresa para o
consumidor in concreto ou naquele tipo de plano.{197} Note-se que os
fornecedores de seguro-saúde, na prática, muitas vezes estão conscien-
tes de que a negativa de concessão de tal tratamento não encontra
fundamento contratual ou é mesmo abusiva. Insistem, porém, na
esperança de que poucos reclamem judicialmente. Nos Juizados Especiais,
porém, tem aumentado o número dessas reclamações, geralmente com
conciliação e acordos, diante da falta de base legal e contratual para
essas práticas abusivas.{198}
Quanto aos limites nas internações, a jurisprudência não é pací-
fica, dividindo-se entre aquela que faz valer os limites de internação
na UTI,{199} se por tempo "razoável", como 60 dias,{200} e outra que
considera abusivo o limite, contrário às indicações médicas e à
* (196) Não cobertos estariam os tratamentos experimentais, os de
fins estéticos,
órteses, próteses, inseminação artificial, rejuvenescimento,
emagrecimento,
medicamentos importados e para tratamento domiciliar, procedimentos
odontológicos complexos, tratamentos ilícitos e antiéticos, casos de
cata-
clismos, guerras e comoções internas, segundo os incisos I a X do art. 10
da Lei 9.656/98. A Medida Provisória reintroduziu a exclusão de "trans-
plantes e procedimentos de alta complexidade" (novo § 4.º do art. 12 da
lei especial).
(197) Assim TJRS sobre exames complementares e diagnósticos
necessários, Ap.
Civ. 59207028, Des. João Loureiro Ferreira, j. 30.8.92, e também TJSP,
Ap.
Civ. 239.132-2/8, Des. Marcello Motta, j. 25.10.94, in RT 716/170-171.
Sobre fisioterapia, veja no TJSP, AI 15.605-4, Rel. Des. Pinheiro Franco.
(198) Veja exemplos do Juizado Especial Cível de Curitiba,
levantados em
pesquisa do Departamento Acadêmico do Brasilcon/PR, por exemplo os
Pedidos n. 96.007234-6, 96.0007234-6, 96.0007443-8, 96.0006024-6 e
96.0004942-5.
(199) Exemplo dessa linha encontra-se na decisão do TJRS, Ap.
Civ. 595 192 816,
j. 18.12.95, Des. Paulo Augusto Monte Lopes.
(200) Assim TJRS, AI 596174052, j. 5.11.96, Des. Décio Antônio
Erpen, em que
se lê: "A parte quando contratou sabia da limitação de tempo. A
prevalecer
a infinidade, possivelmente outra será a tarifa, porquanto os riscos são
maiores (...). Todos os planos devem ter limites, pena de um
desequilíbrar (p. 470)
confiança no vínculo,{201} especialmente se curto (10 dias).{202} Em caso
de tentativa de modificação contratual contra o consumidor{203} e cláu-
sulas dúbias,{204} a resposta jurisprudencial foi clara na utilização das
novas linhas de tratamento leal e visão contratual do CDC. Pacífica a
jurisprudência quanto ao direito à internação, em UTI e em caso de
emergência{205} e quando o limite de permanência depende unilateral-
mente da seguradora.
Quanto à carência, não é esta considerada abusiva em geral.
Trata-
se de uma cláusula de limite temporal ab initio da eficácia plena do
contrato, permitida em princípio. A jurisprudência considerou essa
cláusula, porém, suspeita, sempre que desequilibrar-se a engenharia
contratual, e sempre que a carência for utilizada pelo fornecedor para
negar acesso ao consumidor ao serviço. Isto é, o serviço de tratamento
de saúde deve ser prestado ao consumidor por uma questão de boa-fé
e de tratamento leal e cuidadoso com o parceiro contratual, pois a
eventual ineficácia da obrigação contratual de reembolsar ou de arcar
*todo o sistema, em detrimento aos demais associados" (p. 4). O TJSP
considerou razoável a cobertura de internação de 30 dias, contínuos ou
não
em 12 meses: Ap. Civ. 257.433-2, Des. Gildo dos Santos, j. 16.3.95. Veja
também Ap. Civ. 595 192 816, Des. Paulo Augusto Monte Lopes, j.
18.12.95 antes referida.
(201) Assim do mesmo TJRS, Ap. Civ. 592 192 816, Des. Araken de
Assis
e do TJSP, AI 266.805-2/2, Des. Albano Nogueira, j. 25.9.95, in RT 723/
346. Veja também, resolvendo o conflito a favor do consumidor através
da interpretação do art. 47, a antes citada decisão do TJRS, Ap. Civ.
193 184 132.
(202) Assim o TJSP considerou infringir o art. 51, IV, do CDC e
"exagerada
vantagem" a limitação da internação em UTI ao período de 10 dias na Ap.
Civ. 266.258-2, Des. Celso Bonilha, e na Ap. Civ. 267.819-2, Des. César
Lacerda, j. 13.11.96. Assim também o prazo de 5 dias, in JTJSP 162/43.
(203) Assim TJSP, in RT 725/232.
(204) Assim decidiu o TJSP pela permanência do internado, in
JTJSP 161/113.
Assim também o TAPR, citando expressamente o art. 47 do CDC, decidiu
que, em existindo uma cláusula com limite fixo de 30 dias e outra com
possibilidade de extensão deste prazo, a confiança despertada era no
sentido da extensão, criando a dubiedade. Ap. 92.337-7, rela. Regina
Afonso Portes, j. 11.8.96.
(205) Assim TJSP no AI 279.037-1, Souza José, j. 12.3.96, AI
015.320-1, Cunha
Cintra, j. 8.8.96 e AI 34.248-4, Toledo Cesar, j. 18.2.97. (p. 471)
com os custos da internação não é razão suficiente para brincar com
a vida do consumidor, para lhe negar tratamento, para fazê-lo trocar
de hospital e vir a sofrer danos morais e materiais, como infelizmente
ocorre algumas vezes neste país.
Assim, a carência é uma cláusula sob suspeita e, em exame
liminar,
a guia de internação deve ser expedida,{206} a internação deve ser conce-
dida, o tratamento deve ser realizado,{207} mesmo que depois - em
discussão de mérito ou em cobrança judicial - o consumidor tenha que
arcar com esses custos.{208} A lógica dessas decisões é simples: na
balança
entre o valor saúde e vida do consumidor e os direitos patrimoniais
(contratuais) do fornecedor, que escolheu o consumidor como seu
parceiro, deve prevalecer o primeiro, como impõe o princípio da boa-fé
objetiva e os princípios constitucionais de defesa do consumidor. Basta
lembrar o perigo de erro no diagnóstico{209} de dano irreparável à vida
do
segurado-consumidor em casos de emergência.{210} para aumentar os
deveres anexos de cuidado e de cooperação dos fornecedores.{211}
* (206) Assim TJSP, MS 239.210-2, j. 30.6.94, Des. Aldo Magalhães,
cuja ementa
é: "Mandado de Segurança. Objetivo. Efeito suspensivo a agravo de
instrumento. Decisão atacada a qual conceda ordem liminar para a expe-
dição de guia de internação pela impetrante. Alegação de que não houve
vencimento do prazo de carência do plano de saúde. Inocorrência do
periculum in mora. Impetrante que tem condições de reaver o que dispensa
se vier a ser decidido que não responde pelo débito. Segurança denegada".
(207) Assim TJSP, Ap. Civ. 265.089-2, j. 24.10.95, Des. Jacobina
Rabello.
(208) Assim TJSP, cuja ementa é a seguinte: "Seguro. Saúde.
Intervenção
cirúrgica realizada no período de carência. Reembolso das despesas
médico-hospitalares indevido. Ação improcedente. Recurso não provido"
(Ap. Civ. 242.276-1, j. 14.2.96, Des. Accioli Freire.
(209) Em caso de erro de diagnóstico que obrigou o consumidor a
procurar
serviços de profissional particular, e em que foi estabelecido o dever de
reparar danos materiais e morais, veja TJSP, Ap. Civ. 259.592-1/9-000,
Des.
Roberto Bedran, j. 24.9.96.
(210) Assim decidia o TJRS, mesmo antes da entrada em vigor do
CDC. Veja
por todos Ap. Civ. 590 082 947, j. 13.12.90, Des. Maria Berenice Dias:
"Seguro Privado. O reembolso de despesas médicas, mesmo de facultativos
não credenciados, em casos tipificados como de emergência, deve atender
aos valores do contrato".
(211) Exemplo de erro de diagnóstico encontra-se no Recurso 1340
do JEPC/SP,
cuja ementa é: "Contrato. Assistência médica. Erro no diagnóstico por (p.
472)
A carência também foi considerada abusiva, com base no disposto
no art. 51, VI em especial § 1.º, do CDC, se estabelecido por um
período muito longo, quebrar o sinalagma deste contrato aleatório.
Assim o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou: "Afigurada
abusiva a fixação do período de carência para pequenas cirurgias, e,
não tendo o convênio de assistência médico-hospitalar produzido prova
alguma que justificasse o prazo tão alargado, aplica-se o art. 51, I, do
CDC" (Ap. Civ. 263.362-2/8, 10.ª C., j. 25.5.95, Rel. Des. Borelli
Machado).{212}
Concorde-se ou não com essa linha jurisprudencial, certo é que
a extensão das carências, por vezes mais longas que a vigência dos
próprios contratos, sempre foi um dos principais problemas dos
consumidores em matéria de planos e seguros de saúde. A matéria teve
então tratamento especial na Lei 9.656/98, que estabeleceu prazo
mínimo de um ano de vigência contratual (art. 13, I, da Lei 9.656/98)
e autorizou as carências estabelecendo, porém, prazos máximos.
Segundo o art. 12, V, da referida lei na fixação dos períodos de
carência,
qualquer dos planos deve estabelecer: "a) prazo máximo de trezentos
dias para partos a termo; b) prazo máximo de cento e oitenta dias para
os demais casos". A Medida Provisória 1.665/98, atualmente em vigor,
introduziu mais uma limitação nesse artigo: "c) prazo máximo de vinte
e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência".
Neste caso específico das carências a lei especial merece
aplauso,
pois estabeleceu carências menores que os 360 dias de vigência do
contrato e, em casos de emergências, uma carência mínima, apenas o
*médica conveniada. Moléstia apontada que necessitava de internação, cujo
prazo ainda não estava coberto pela carência. Exames posteriores que
revelaram ser o mal da paciente passível de internação, pois já vencido o
prazo de carência. Direito ao reembolso das despesas pagas pela
internação
diante da recusa do fornecimento de guia. Recurso não provido". Consta
que parturiente foi enviada de hospital em hospital, pois estaria ainda
na
carência de seu plano de saúde, causando danos à mãe e ao filho que
nasceu
em trânsito. Práticas como estas implicam desrespeito básico ao dever de
cooperar e de cuidado oriundo do princípio da boa-fé.
(212) Decisão reproduzida na íntegra na RT721/127. No mesmo
sentido, citando
o art. 51, IV, § 1.º, III, do CDC, Ap. Civ. 242.065-2, j. 10.11.94, Rel.
Des.
Borelli Machado, in JTJSP 169/15; mas contra, pela validade plena da
mesma carência, TJSP, Ap. Civ. 214.090-1, j. 5.8.94, Rel. Des. Marco
César,
e decisão do TJRJ, Ap. Civ. 1.727/95, j. 6.6.95, Rel. Des. Menezes
Direito. (p. 473)
período necessário para permitir o processamento da associação do
consumidor ao plano. Poderia ter ido mais longe a nova lei especial
proibindo a imposição de determinadas carências e a sua extrema
variedade. Mas andou bem ao regulamentar o assunto, pois permitiu
maior transparência e criou segurança para o consumidor.
A reabertura da carência por atraso no pagamento, como forma
de pressão ao consumidor, foi considerada também pela jurisprudência
majoritária como abusiva{213} e será analisada em detalhes como nova
forma de cláusula-barreira. Essa carência foi proibida também pela Lei
9.656/98 no art. 13, II, a. Por fim, mencione-se que a jurisprudência
tem valorizado em muito a informação prestada ao consumidor sobre
os planos e seguros de saúde. Neste sentido, as promessas executadas
pelos vendedores e pelos fornecedores no que se refere aos tratamen-
tos{214} e às carências{215} integram o contrato que vier a ser celebrado
e
prevalecem em relação às cláusulas escritas.
Tratando-se de seguro ou planos de saúde que utilizam o sistema
de pré-pagamento ou cobertura somente de tratamentos e atendimentos
realizados por médicos e hospitais credenciados, a jurisprudência, ao
interpretar e aplicar essas cláusulas, identificou alguns tipos
específicos
de abusividade, não tanto nas cláusulas contratuais, mas sim nas
práticas desses fornecedores. Assim, se o contrato autoriza o tratamento
ou cirurgia de emergência em um hospital, considera-se abusiva a
cláusula que ainda exige que o médico seja credenciado, em face da
impossibilidade de exigir-se que o consumidor nesses casos procure
médico credenciado. Ele deve ser atendido por qualquer médico do
Hospital, sem distinção.{216} Da mesma forma, o médico do consumidor
não pode ser afastado do tratamento ou atendimento realizado em
hospital conveniado, somente porque não é credenciado ou foi
* (213) Neste sentido também TJSP, Ap. Civ. 235.957-2, j. 25.8.94,
Aldo Maga-
lhães, e JTJSP 161/43.
(214) Assim TJRS, Ap. Civ. 595 145 954, Des. Clarindo Favretto,
j. 8.2.96.
(215) Assim TJSP, in JTJSP 158/87, cuja ementa é: "Prestação de
Serviços.
Planos de Saúde. Prazo de carência. Vendedor que, mentindo dolosamente,
garantiu a sua inexigibilidade, para negociar a venda. Responsabilidade
do
fornecedor de serviços, perante o consumidor, pelo ato de seu
representante.
Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Prazo de carência
afastado. Recurso não provido".
(216) Assim decisão do TJSP, Ap. 223.242-2, j. 9.5.94, Des. Egas
Galbiatti. (p. 474)
descredenciado.{217} Os serviços prestados por hospitais não conveniados
podem considerar-se, excepcionalmente, cobertos em caso de emergên-
cia (pela prevalência da cláusula de tratamento de emergência, mais
favorável ao consumidor neste caso) ou de inexistência de vagas na rede
conveniada. {218}
A grande polêmica ocorrida com relação ao caráter abusivo ou não
dos reajustes unilaterais das mensalidades e prêmios dos seguros e
planos de saúde será tratada no item referente ao sinalagma e às novas
tendências da jurisprudência, assim como o problema da rescisão
unilateral e denúncias será tratado no exame das cláusulas de liberação
do vínculo (n. 6); os aumentos por faixa de idade serão analisados como
cláusula-barreira (n. 7).

1.4 Cláusula de decaimento ou de perda das prestações pagas

Devido a insuficiência de poupança privada no Brasil e as


dificuldades do crédito ao consumidor, submete-se o interessado em
adquirir um bem imóvel ou um bem móvel de elevado valor a contratos
elaborados unilateralmente pelo fornecedor, prevendo na maioria das
vezes a alienação fiduciária do bem adquirido, a reserva de seu
domínio, a sua hipoteca e uma série de outras cláusulas assecuratórias
da posição do credor. Tais contratos, em verdade promessas, costumam
concentrar os riscos naturais do negócio para a parte contratante mais
fraca, o aderente. O desequilíbrio contratual daí resultante e a insegura
realidade econômica do país, muitas vezes, torna insustentável a
manutenção do vínculo negocial. A conseqüência é, então, a frustração
das expectativas do comprador-poupador,{219} geralmente um consumi-
dor, e a proteção prima facie daquele que elaborou o contrato, o
* (217) Veja interessante decisão do TJSP concedendo a indenização
por danos
morais, Ap. Civ. 262.271-1, j. 27.8.96, Roberto Bedran, e JTJSP 184/97.
(218) Assim TJSP: "Internação hospitalar. Plano de saúde.
Utilização de hospital
não credenciado. Falta de vagas na rede credenciada. Ressarcimento
devido.
Recurso não provido", in JTJSP 165/90. Veja ainda do TJSP Ap. Civ.
270.116-2, Júlio Vidal, j. 13.11.96; contra, Ap. Civ. 222.589-2, Ruiter
Oliva,
j. 8.3.94. Veja também Ap. Civ. 240.429-2, Pereira Calças,j. 25.10.94,
onde
o TJSP utiliza os arts. 46, 47 e 54 para afastar exclusão expressa da
cobertura, não suficientemente informada ou destacada.
(219) Utilizamos a expressão autorizados pelos ensinamentos do
Ministro Sálvio
de Figueiredo, in REsp. 5.310/RS. (p. 475)
fornecedor, e assegurou para si uma posição contratual vantajosa, a qual
poderíamos denominar de posição dominante (Machtposition) do
fornecedor de tais produtos no mercado.
Neste contexto e em razão de inúmeras ações requerendo a
devolução das quantias pagas em virtude de contratos, em especial
promessas de compra e venda a prazo de imóveis e bens móveis de alto
valor, perguntam-se os juristas brasileiros se o nosso direito atual
considera ou não abusiva esta que está sendo chamada de "cláusula de
decaimento"{220} a qual prevê, em caso de inadimplemento do devedor,
a perda total ou substancial das prestações (quantias) já pagas. A
análise
de abusividade de tal tipo de cláusulas é feita tanto frente ao direito
tradicional{221} e suas noções de abuso de direito e enriquecimento
ilícito,
quanto frente ao direito atual, posterior a entrada em vigor do CDC,
tendo em vista a imposição de um novo paradigma de boa-fé objetiva,
eqüidade contratual e proibição da vantagem excessiva nos contratos
de consumo (art. 51, IV) e a expressa proibição de tal tipo de cláusula
no art. 53 do CDC.{222}
O primeiro e importante setor econômico onde este tipo de
cláusula de perda das prestações pagas foi constatado pela jurisprudên-
cia brasileira foi no setor de consórcios de bens duráveis ,geralmente
bens móveis de alto valor, e nos contratos que instrumentam tal tipo
de venda com alienação fiduciária. Note-se que hoje o desenvolvimento
ocorrido no mercado brasileiro dificulta a identificação de um tipo
especial de "contrato de consórcio", pois para subtrair-se ao controle
das autoridades públicas, este método de venda está sendo utilizado no
mercado sob o manto de outros tipos contratuais, variando sua
denominação desde "contrato de compra e venda a prazo como
sorteios", à "cessão de direitos futuros de linha telefônica".
A evolução jurisprudencial em matéria de consórcios merece
destaque, pois foi no controle do conteúdo deste tipo de contrato ou
contratos que a jurisprudência brasileira constatou a abusividade das
* (220) A expressão de Pontes de Miranda, que passamos a utilizar,
é usual nas
decisões dos Tribunais do Rio Grande do Sul, veja Rel. Julgados, v. 81/
363.
(221) Neste sentido a exaustiva análise de Alcides Tomasetti Jr.,
in Revista Direito
do Consumidor 2/52 e ss.
(222) Veja, por todos, a análise do Min. Ruy Rosado de Aguiar
Jr., em seu Voto
dissidente, in REsp. 45666-5-SP, j. 17.5.94. (p. 476)
cláusulas de perda das prestações pagas, da exoneração ab initio da
responsabilidade do fornecedor de devolver as quantias pagas, deduzidas
as parcelas legais. A base desta declaração foi ora o caráter leonino da
estipulação,{223} ora a proibição do enriquecimento sem causa,{224} ora
as
normas do próprio sistema contratual e a noção de boa-fé na execução
das relações contratuais.{225} Superada que foi a possibilidade de não
devolução das quantias pagas (Súmula 35 do STJ), a controvérsia
jurisprudencial neste tipo de relação de consumo concentra-se atual-
mente seja no momento em que esta devolução deve ocorrer,{226} seja no
modo desta devolução das parcelas pagas quanto ao seu devido reajuste
financeiro.{227} (Veja também o § 2.º do art. 53 do CDC.) Novas práticas
dos fornecedores para impedir a devolução da quantia devida levam a
* (223) Veja, por todos, decisão reproduzida in RT 698/110.
(224) Usando como base o argumento do enriquecimento sem causa,
veja:
Julgados TARS 81/277, 86/294.
(225) Assim o relator Juiz Araken de Assis: "Cláusula que,
tratando desigualmen-
te as partes permite a devolução das parcelas pagas pelo consorciado
excluído sem correção e juros. Ineficácia por ofensa ao princípio da boa-
fé" (in: Ap. Civ. 190053025, 3.ª Câm. Civ., j. 6.6.90, TARS).
(226) Quanto às diferentes linhas jurisprudenciais na matéria
veja as decisões pela
restituição corrigida das parcelas pagas, dentro de 30 dias após o
encerra-
mento do grupo: TJRS (2.º Gr. Câm. Civ. EI 593062904, j. 10.8.93) TARS
(4.ª Câm. Civ. Ap. Civ. 1921170249, j. 17.8.92, e in Julgados 86/294 e
342,
tb. 7.ª Câm. Cív. Ap. Cív. 192199982, j. 21.10.92 e in Julgados 83/200,
deduzida a taxa de administração e 1.ª Câm. Cív., Ap. Cív. 191181189,j.
31.2.92), TJMT, in RT695/156 e Súmula 35 do STJ (REsp. 7.326-RS, veja
voto basilar do Juiz Jauro Duarte Gehlen, transcrito em acórdão substrato
da Súmula). Já pela devolução imediata corrigida ou a partir do
ajuizamento
da ação, veja TJRS (4.ª Cív., Ap. Cív. 592044457, j. 16.6.93), TARS (4.ª
Cív., Ap. Cív. 192204691,j. 12.11.92), 1.º TACivSP, in RT698/109, com
conseqüente nulidade da cláusula que prevê a devolução 30 dias após
encerrado o grupo. Veja, igualmente, as decisões da 4.ª Câm. Cív. do
TARS,
pela restituição imediata em caso de má administração ou ato ilícito da
administradora, pub. in Julgados 83/222 e 84/348.
(227) Quanto a correção, a jurisprudência opta ora pelo preço do
bem, TARS, 3.ª
Câm. Civ., in Julgados 81/277, ora pela correção e atualização pelo valor
do bem na data do vencimento da última prestação paga pelo desistente,
TARS, 4.ª Câm. Cív., in Julgados TARS, 86/294, ora correção pelo índice
oficial de inflação, TARS, in: Julgados 83/222, citando jurisprudência da
3.ª,
5.ª, 2.ª e 1.ª Câm. Cív. do mesmo TARS. Certa, porém, é a correção e a
devolução de parte das quantias pagas, neste sentido, decisão do TARS.
(p. 477)
jurisprudência considerar hoje abusivas a cobrança de taxas de admi-
nistração e a aplicação de suspeitos "redutores".{228}
As decisões em matéria de consórcios, sem dúvida, foram faci-
litadas pela própria legislação especial para este tipo de relação
contratual, mas este fato não retira a importância desta nova visão mais
rígida do que seja um "enriquecimento com causa ", uma causa
necessariamente real (prejuízo provado, uso, tempo), mas não mais
simples previsão contratual ao estilo de uma cláusula penal pré-
compensatória de eventuais e fictícios danos. Desde 1990 o STJ vinha
decidindo pela restituição pelo valor atualizado da quantia paga pelo
consorciado retirante ou excluído do plano de consórcio, evolução que
pacificou-se com a Súmula de número 35. Esta evolução jurisprudencial
como que tende a impor ao fornecedor deste tipo de serviços de
administração e de venda a crédito, organizador do plano e executor,
um risco profissional novo: o de suportar o perigo de uma eventual
desistência ou impossibilidade subjetiva de continuar no grupo, respon-
sável pela poupança; uma vez que tende a transferir para a adminis-
tradora e não para os outros participantes do grupo, a verdadeira
responsabilidade.{229}
* (228) Sobre taxas de administração, que podem ter Vários nomes
(taxas de
administração futura etc.), considerar cobradas duplamente, pois já se
encontram na prefixação de prejuízos e na parcela, o leading case é do
TARS, Ap. Civ. 194097036, j. 9.6.94, rel. Ari Darci Wachholz; veja também
TARS, Ap. Civ. 195031513, rel. Aldo Ayres Torres.
(229) Reflexo desta linha de responsabilização podem ser sentidos
tanto nas
decisões dos Tribunais de Alçada como nas dos JECPs. São exemplos duas
decisões: "Desistência de Consorciado - Devolução das parcelas pagas -
Correção. Pelo seu caráter leonino, merece ser rechaçada cláusula que, em
contrato de adesão a plano consorcial, estabelece devolução das quantias
pagas ao consorciado desistente pelo valor histórico. Cláusula que, a
perma-
necer vigorando, importaria em manter desequilíbrio às partes
contratantes.
Correção monetária autorizada, não permitindo o locupletamento sem causa
da administradora, pois que não importa em acréscimo da importância a ser
devolvida, expressando apenas o valor atual do respectivo equivalente em
moeda circulante. Improvimento de ambos os apelos. Negado provimento a
ambos (unãnime)". (Ap. Cív. 191014166, rel. Dr. Osvaldo Stefanello, 1.ª
Câm.
Cív., TARS, j. 4.6.91); e do JEPC/RS: "Consórcio. Decisão determinando
devolução das parcelas do desembolso, é líquida e de responsabilidade das
administradoras de consórcios". (Rec. 559/93, rel. Dr. Cezar TasSO Gomes,
2.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, j. 18.8.93). (p. 478)
Outro importante setor econômico que utiliza-se das cláusulas de
decaimento é o da construção civil. As empresas incorporadoras e
construtoras em geral incluem tais cláusulas de perda total ou substan-
cial das prestações já pagas em seus contratos de venda e em suas
promessas de compra e venda de imóvel a prazo. O caráter de cláusula
penal sui generis hoje é reconhecido pelo julgador, e, por força de
reiterada jurisprudência do STJ, a conseqüente possibilidade legal de
sua redução.{230} Estas cláusulas de perdimento, verdadeiras cláusulas
punitivas nos contratos de consumo repugnam os tribunais superiores,
que mesmo não aplicando o CDC, mas o CCBr., as revisam e reduzem
a 10%, no que se pode hoje identificar como uma linha definitiva de
atuação, como em matéria de consórcios.
O CDC preocupou-se com a matéria e traz previsão específica de
abusividade das cláusulas de perda total das prestações pagas. O art.
53 dispõe: "Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis
mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias
em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que
estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor
que, em razão do inadimplemento, pleiteia a resolução do contrato e
a retomada do produto alienado".
Como se observa, a própria norma do CDC aproxima o regime
dos contratos de consórcio e das promessas de compra e venda de
imóveis, no que se refere a abusividade de referidas cláusulas.{231}
* (230) Veja do Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., a ementa: "
Promessa de
Compra e Venda. Cláusula de decaimento. Restituição de parte das
prestações pagas. Inaplicável o Codecon aos contratos celebrados antes de
sua vigência. de acordo com orientação predominante, e mantida a validade
da cláusula que permite a retenção das prestações pagas, é possível a
redução judicial para um percentual adequado às circunstâncias do contra-
to" (Recurso Especial 111092/AM, 4.ª T., j. 4.3.97, Rel. Min. Ruy Rosado
de Aguiar). No mesmo sentido, REsp. 41 .493-RS, Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira, j. 23.9.96; AI 121.553, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
25.2.97; REsp. 3.981-SP, Min. César Asfor Rocha, j. 20.5.97; REsp.
94.271-
SP, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 27.8.96; REsp. 113602, Min. Ruy
Rosado de Aguiar, j. 24.3.97; REsp. 113806-DF, Min. Ruy Rosado de
Aguiar, j. 1.4.97; REsp. 115672-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j.
28.4.97;
REsp. 119720-RS, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 5.8.97; REsp. 78.459-
RJ, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 9.4.96.
(231) Assim concorda João Baptista de Almeida, p. 109, entendendo
que o
espírito da lei é a solução amigável da pendência e se, impossível,
evitar (p. 479)
Efetivamente a experiência da jurisprudência em matéria de consórcios
é decisiva pois ambos os contratos apresentam três características
semelhantes: contratos de execução diferida no tempo, de pagamento
a prazo ou em prestações, utilização de um fundo ou poupança privada
para a execução da prestação principal do fornecedor (entrega do
automóvel ou bem móvel de elevado valor, elaboração do contrato de
compra e venda e transmissão da propriedade do imóvel construído).
Sem desconhecer o potencial pedagógico do art. 53 do CDC e da
declaração expressa da nulidade deste tipo de cláusula,{232} parece-nos
preferível iniciar o estudo da abusividade da cláusula de decaimento
não pela exegese do art. 53, mas sim pela análise da cláusula geral do
art. 51, VI, norma mais abrangente e que nos parece capaz de esclarecer
melhor a razão de dita abusividade. O art. 53, apesar de norma expressa,
restringe-se a determinação da nulidade ex lege de um determinado tipo
de cláusula e pode, pois, dar razão a interpretações restritivas, como
que limitando a abusividade, a cláusula de perda total e autorizando
todas as outras cláusulas de perda parcial das prestações já pagas. A
cláusula geral do art. 51, IV, ao contrário, ao exigir o exercício de
concreção do juiz, está a esclarecer o motivo de tal nulidade e da reação
negativa do direito, sendo mais útil a uma análise exemplificativa como
a nossa.
Relembre-se, pois, que o art. 51, IV do CDC, considera abusivas
as cláusulas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade".
A regra aqui destacada, portanto, é da boa-fé na elaboração e na
execução dos contratos. No caso em estudo, estamos frente a uma
cláusula prevendo a perda (total ou parcial) das prestações já pagas em
benefício do credor, por exemplo, a empresa incorporadora. Em se
*o enriquecimento ilícito do credor. O autor defende, igualmente, a
dedução
de parcelas em função do período de fruição do bem, assim tb. Nascimento,
Comentários, p. 70.
(232) Fixando em 10% o valor a ser devolvido e considerando nula
com base no
art. 46 e 53 do CDC a cláusula de promessa de compra e venda anterior
à vigência do CDC, decisão MM. Juiz Ricardo Cintra Torres de Carvalho,
j. 22.6.92, 26.ª Vara Cível/SP, reproduzida na íntegra, in Direito do
Consumidor 3/218-219 e a decisão do TARS, 2.ª Câm. Cív., rel. Juiz Paulo
Heerdt, comentada por Vivian Caminha, in Direito do Consumidor 1/229. (p.
480)
tratando de um contrato de promessa de compra e venda de imóvel
contendo tal cláusula de decaimento, vale concentrarmos nossa análise
na existência ou não de desvantagem exagerada para o contratante mais
fraco, consumidor ou pessoa a ele equiparado por lei.
A desvantagem exagerada é um dos novos parâmetros da abusividade
colocados para o exercício de concreção do juiz, uma vez que a própria
lista de cláusulas abusivas do art. 51 é meramente exemplificativa.
Repita-se que o § 1.º do art. 51 do CDC, fornece alguma ajuda para que
o juiz verifique, no caso concreto, o exagero da desvantagem, afirmando
que: "presume-se exagerada, entre outros, a vantagem que: I - ofende os
princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;{233} II -
restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do
contrato, de tal modo a ameaçar o seu objeto ou equilíbrio contratual;
III
- se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-
se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso".
Revista a base legal, resta analisar se a cláusula de decaimento,
em casos concretos, assegura uma vantagem exagerada e abusiva para
a incorporadora. Em contrato visando angariar poupança privada para
suportar o ônus da construção de bens imóveis, com o fito de após
revendê-los àqueles que contribuíram na construção do imóvel, prevê
esta cláusula que o consumidor deva sofrer a perda total ou de grande
parte (geralmente uma porcentagem do total) das quantias já pagas, ao
mesmo tempo em que assegura ao empreendedor a propriedade do
imóvel já construído, fim maior do contrato; imóvel este, diga-se, que
poderá ser novamente revendido.{234}
* (233) Mencione-se aqui a contribuição de Barbosa Moreira, in
Direito do
Consumidor 9/62-68, que critica a tradução do § 9º da lei alemã (AGBG)
feita no § 1.º, I, do art. 51 e que sugere como melhor tradução, p. 67:
"Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que ofende os
princípios básicos do sistema jurídico a que pertence a norma legal cuja
incidência foi afastada".
(234) No mesmo sentido decisão do TJSP, 11.ª C., j. 4.6.92, rel.
Des. Itamar
Gaino, Ap. 191.405-2/6, acórdão reproduzido na íntegra in: Direito do
Consumidor, vol. 6, pp. 262-263, com a seguinte ementa: "Rescisão -
Compromissários compradores constituídos em mora - Cláusula determinante
da perda dos valores já pagos, considerada leonina - Incorporadora que
pode vender o imóvel para outra pessoa sem prejuízo - Parcelas já pagas
devem ser devolvidas devidamente corrigidas - Exceção do sinal - (p. 481)
Certo é que a referida cláusula assegura uma dupla vantagem ao
incorporador: a propriedade do imóvel construído e a propriedade do
dinheiro que o financiou, deixando ao promitente-comprador, na
maioria das vezes, nem sequer emitido na posse do imóvel, absoluta-
mente nada. A desvantagem do consumidor em virtude desta cláusula
é dupla: nem uso, nem propriedade do imóvel construído com sua
poupança obtém, nem reembolso da quantia adiantada consegue.
Esta previsão contratual de perda total ou parcial do patrimônio
do consumidor, sem contra-prestação, atenta contra o direito de
propriedade{235} e contra a noção causal de nosso direito, que combate
o enriquecimento sem causa. Enquanto ao incorporador assegura-se a
propriedade do imóvel e a possibilidade de sua posterior revenda, tal
cláusula deixa o consumidor, seu parceiro contratual, em situação de
desvantagem total, como se o contrato fosse um contrato de absoluto
risco, um contrato aleatório e não um contrato comutativo.
Ora, impor tal peso ao consumidor, extinguir todo e qualquer
risco
profissional do empresário, que lucrou com a construção total do
imóvel e impor todos os riscos nos ombros dos poupadores-consumi-
dores parece exagerado. Tal caráter exagerado e leonino da cláusula já
foram identificados mesmo face ao direito comum tradicional,{236}
quanto mais face a um Código protetivo dos interesses dos consumi-
dores, como o CDC. Parece-nos, pois, que face a norma da cláusula
geral de boa-fé e de equilíbrio contratual prevista no art. 51, IV do
CDC, a cláusula de decaimento é tipicamente abusiva, uma vez que
imputa uma desvantagem exagerada ao consumidor e assegura uma
vantagem sem causa ao fornecedor.
Como ensina o Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., em seu voto
dissidente no REsp. 45.666-5-SP: "No contrato de promessa de compra
e venda de bem imóvel, a cláusula contratual que determina a perda,
em favor do promitente vendedor, das prestações pagas, caracteriza
nítida perda de justiça por parte do promissário comprador, que não
*Inteligência do art. 1.097, CC. Prédio por construir indica que a
incorporacdora
poderá vender a mesma unidade a outra pessoa, sem sofrer prejuízo,
podendo até fazê-lo em melhores condições. Não se justifica, portanto, a
perda pelos compromissários compradores, dos valores já pagos".
(235) Assim a decisão da 7.ª C. Civ., TARS, in Ap. Cív.
192175891, Rel. Juiz
Leonelo Pedro Paludo, j. 16.9.92.
(236) Assim ensina Tomasetti, in Direito do Consumidor 2/63. (p.
482)
apenas vê desaparecer a oportunidade de aquisição do bem, já certa-
mente mais valorizado do que qualquer moeda, nestes tempos de
inflação, como ainda deixa de receber a devolução do que desembolsou.
Além da injustiça, ainda há a ofensa aos princípios jurídicos que
regulam a resolução, cuja característica está na reposição das partes à
situação anterior. Reavendo o bem e embolsando os pagamentos
recebidos, o promitente vendedor não só recompõe o seu patrimônio
como o enriquece ilicitamente com as prestações, em troca das quais
nada despendeu.
Com isso quero dizer que a cláusula de decaimento não podia ter
reconhecida sua validade no sistema jurídico nacional, ainda antes da
vigência do Código do Consumidor, porque violadora de diversos
princípios do direito comum e do ordenamento constitucional. O art.
53 do CDC veio apenas expressar um enunciado que já estava presente
no ordenamento e era aplicado sempre que necessário para restabelecer
o equilíbrio entre as partes, afastar a vigência de cláusulas resultantes
do arbítrio de uma, em prejuízo da outra, impor o respeito ao princípio
da boa-fé e fazer cumprir o de solidariedade social (art. 3.º, I, da
CF)".
Efetivamente esta cláusula predisposta unilateralmente pelo con-
tratante economicamente mais forte assegura uma vantagem exagerada
a uma das partes. Condena o contratante que rescinde o contrato, com
causa ou sem, não a suportar os prejuízos que eventualmente causou,
mas simplesmente condená-lo a perda total, a renunciar a todas as
expectativas legítimas ligadas ao contrato, assegurando ao outro con-
tratante o direito de receber duas vezes pelo mesmo fato.
Nesse sentido, a abusividade da cláusula de decaimento nos
contratos de promessa de compra e venda de imóveis oferecidos
massivamente no mercado pelas empresas incorporadoras tem mereci-
do enérgica resposta da jurisprudência,{237} na tentativa de reequilibrar
* (237) Assim a ementa: "Contrato de promessa de compra e venda -
Contrato de
adesão - Nulidade da cláusula que prevê a perda de todas as prestações
pagas em face de rescisão decorrente de mora do promitente comprador.
Cuidando-se de contrato de adesão, não pode prevalecer a cláusula que
prevê a perda de todos os valores pagos pelo promitente comprador face
a rescisão contratual decorrente de mora do promitente comprador, espe-
cialmente quando este sequer ocupou o imóvel" (Ap. Cív. 192175891, 7.ª
Câm. Civ., TARS, rel. Juiz Leonelo Pedro Paludo, j. 16.9.92), acórdão
Publicado na íntegra in Revista de Direito do Consumidor, 6/271-274. (p.
483)
estes contratos de consumo, evitando o que foi considerado enrique-
cimento ilícito e o abuso do contratante mais forte.{238}
Da resposta jurisprudencial dois aspectos devem ser destacados.
Nota-se inicialmente uma maior compreensão dos juízes para com os
\problemas econômicos (antes considerados) individuais dos consumi-
dores, tais como demissões, redução do valor aquisitivo dos salários,
e efeitos individuais de planos econômicos. A quebra do vínculo, a
mora, por decisão unilateral do consumidor, se assim motivada, passa
a ser punida mais brandamente, como se uma nova espécie de
"impossibilidade-Subjetiva" fosse.{239} Esta destacável aproximação do
Judiciário com a realidade econômica do brasileiro leva em conta a boa-
fé subjetiva do consumidor e a divisão de riscos na sociedade entre os
agentes econômicos.{240}
O segundo aspecto a destacar é a falta de unanimidade no que
concerne a natureza deste tipo de cláusula, o que vai se refletir nos
institutos utilizados para reequilibrar os contratos onde está presente
uma cláusula de decaimento. A maioria das decisões, acompanhando
a jurisprudência de Turmas do STJ, considera a cláusula de decaimento
uma cláusula penal sui generis, de natureza de pena compensatória,
optando pela possibilidade do juiz revisar seu valor (ex vi, art. 924 do
CC), reduzindo-a.{241} Menor grupo de decisões opta pela ineficácia de
* (238) Nesse sentido, Ap. Civ. 192219376, 7.ª Câm. Cív., TARS,
rel. Juiz Antonio
Janyr Dall’Agnol Junior, j. 4.11.92, cuja ementa é a seguinte: "Promessa
de compra e venda. Cláusula de decaimento em contrato de adesão. Sua
ineficácia, precipuamente quando o promitente comprador jamais se imitiu
na posse", acórdão publicado in RT 696/209.
(239) Bom exemplo é a antes mencionada decisão da 7.ª Câm. Civ.
do TARS (Ap.
Civ. 192175891, rel. Juiz Leonelo Paludo), caso envolvendo um consumidor
que perdeu seu emprego antes mesmo de ocupar o imóvel e não mais pode
\arcar com as prestações; veja tb. TJDF in Eic 28060-DF-Reg. Ac. 63827.
(240) Bom exemplo é a decisão do JEPC/RS que traz a seguinte
ementa:
"Consumidor - Rescisão contratual. A intervenção judicial é necessária
para
recompor o equilíbrio entre os contratantes, assegurado pelo CDC, com o
que se adota parâmetro fixado no próprio contrato para permitir a
rescisão
\contratual pelo consumidor" (Rec. 1, rela. Juíza Rosane Wanner da Silva
\Bordasch, 3.ª Câm. Recursal negaram provimento, unânime, Porto Alegre,
24.6.93).
(241) No sentido da impossibilidade da pena total e da
reduzibilidade da
\"Cláusula penal", decisões basilares do STJ in REsp. 31 .954-0/RS, "Com-
(p. 484)
tal tipo de cláusula; seguindo os ensinamentos de Pontes de Miranda,{242}
ou aceitando mesmo a aplicabilidade no caso de alguma teoria sobre
a imprevisão.{243}
Superados os problemas com os contratos assinados antes da
entrada em vigor do CDC, a tendência é uma maior utilização das
normas proibitórias deste tipo de cláusula no CDC, seja o expresso art.
53, seja a cláusula geral do art. 51, IV e § 1.º’ ou mesmo o art. 51, II
do CDC.{244}
Nesta terceira edição podemos concluir que a utilização do art.
53
do CDC pelos tribunais foi exemplar, utilizando mais seu espírito e sua
ratio do que a literalidade dessa norma. Sendo assim, a maioria das
*promisso de compra e venda - Cláusula penal compensatória. No compro-
misso de compra e venda, existindo cláusula que prevê não tenha direito
o promitente comprador a devolução das importâncias pagas, tal cláusula
deve ser considerada como de natureza penal compensatória, podendo ser
reduzido o seu valor com base no art. 924 do CC"; e in REsp. 39.466-0/
RJ, "Cláusula penal - Cumprimento parcial da obrigação. A jurisprudência,
acolhendo lição doutrinária, na esteira do art. 924 do CC, delineia
entendimento no sentido de que, cumprida em parte a obrigação, em caso
de inexecução da restante, não pode receber a pena total porque isso
importaria em locupletar-se à custa alheia, recebendo ao mesmo tempo,
parte da coisa e o total da indenização na qual está incluída justamente
aquela já recebida, sendo certo que a cláusula penal corresponde aos
prejuízos pelo inadimplemento da obrigação".
(242) Assim interessante decisão do TARS, antes citada, na qual o
Juiz relator,
Janyr Dall’Agnoll Jr., in RT 696/210, afirma: "a razão está, inteira, com
Pontes de Miranda, quando, nada obstante fixado no exame da legislação
específica, conclui por sequer ser possível o aproveitamento: "A cláusula
de decaimento não possui qualquer aplicação válida, nem produz efeitos.
Não se pode nem mesmo pensar em salvá-la como pena convencional até
o limite legal" (Tratado de Direito Privado, 4.ª ed., XIII, p. 278). O
art. 53,
do CDC, em verdade, nada mais fez do que explicitar princípio que já se
espraiara no ordenamento jurídico positivo: a esse repugna, e repugnava,
o pacto de decaimento".
(243) Esta parece ser a linha do TJDF, veja decisão publicada no
DJ 20.2.91, Sec.
II, p. 2.472.
(244) Veja a decisão do TJSP (Ap. Civ. 197.165-2/3) e do
magistrado Ricardo
Cintra Torres de Carvalho, publicadas respectivamente in Revista Direito
do Consumidor 10/196 e ss. e 3/218, assim como os comentários in RDM
88/95: verdadeiro leading case do TJSP foi publicado in RT 690/85 e ss.
(p. 485)
decisões propõe a nulidade da cláusula de perda total.{245} a redução de
cláusulas semelhantes de perdas (de até 90%) do valor pago e autoriza
uma retenção mínima de valores (máximo de 10%).
Efetivamente, quanto às cláusulas que, nos contratos de consumo
em geral, permitem ao fornecedor a retenção das quantias pagas, sua
abusividade foi novamente identificada no II Congresso Brasileiro do
Direito do Consumidor. A conclusão n. 10 do Congresso pontifica: "A
cláusula que permite a retenção dos valores pagos é abusiva, nos termos
do art. 53, caput do CDC e configura fraude à lei" quanto aos contratos
de promessa de compra e venda de imóveis, a conclusão n. 11 do
referido Congresso ensina: "Nos contratos imobiliários é abusiva a
cláusula que fixa percentual de retenção dos valores pagos na hipótese
de rescisão, devendo o eventual prejuízo ser apurado caso a caso".
Nossa conclusão, portanto, com base nas lições da jurisprudência
e na vontade do legislador brasileiro positivada no novo CDC, não pode
ser outra que afirmar a abusividade da referida cláusula de decaimento,
face à unilateralidade exagerada - leonina mesmo - e frontalmente
contrária a boa-fé, princípio máximo do CDC e que este procura
assegurar tanto na formação quanto na execução dos contratos de
consumo no mercado brasileiro.

1.5 Cláusula penal clássica

A forte discussão doutrinária e jurisprudencial originada pelas


cláusulas de decaimento ou cláusulas de perda total das prestações
pagas acabou por reascender as dúvidas sobre a abusividade ou não das
cláusulas penais em geral. Cláusula penal é aquela cláusula teoricamen-
te estimuladora da prestação, do cumprimento do contrato por impor
uma pena em caso de inadimplemento parcial ou total ou em caso de
mora, é a cláusula prefixadora da indenização, teoricamente compen-
satória do inadimplemento, também chamada de pena ou multa
* (245) Neste sentido, veja por todos decisão do STJ, cuja ementa
é: "Civil.
Compromisso de compra e venda de imóvel. Perda de parte das prestações
pagas. CDC. A regra contida no art. 53 do CDC impede a aplicação de
cláusula contida em contrato de promessa de compra e venda de imóvel que
prevê a perda total das prestações já pagas, mas não desautoriza a
retenção
de um certo percentual que, pelas peculiaridades da espécie, fica
estipulado
em 10%" (RE 85.182-PE, Rel. Cesar Asfor Rocha, j. 14.4.97). (p. 486)
convencional, é pacto acessório estipulando multas ou penas para
aquele que descumprir suas obrigações contratuais.{246}
A experiência demonstrou que a aplicação pura e simples das
cláusulas penais assim como previstas nos contratos de consumo, uma
vez que frutos da liberdade contratual e da posição dominante do
fornecedor, conduzia a abusos. Abusos, principalmente, em razão do
caráter especialmente elevado das penas estipuladas,{247} da falta de
relação do valor da multa com os danos realmente causados ao
parceiro,{248} da pouca transparência destas cláusulas, as quais para
melhor garantir a posição do fornecedor transferem para o consumidor
os riscos tipicamente profissionais, como o da escolha do parceiro
contratual{249} ou do advento de novas circunstâncias impossibilitadoras
do normal cumprimento da obrigação.{250}
A grande pergunta para o aplicador da lei é se estes abusos
transformaram o instrumento, isto é, esta espécie de cláusula em
abusiva ou se é o modo de seu exercício, no caso o valor desta "pena
contratual" ou as hipóteses em que é prevista, que pode ser abusivo,
a depender de um estudo casuístico de uma cláusula penal in concreto.
Em outras palavras, seria a cláusula penal uma nova espécie de cláusula
abusiva, face ao ordenamento jurídico brasileiro atual ou não?
Tendo em vista a resposta jurisprudencial e sua numerosa presença
no mercado brasileiro, parece-nos importante analisar seriamente se as
* (246) Citando os ensinamentos de Bevilacqua, veja o artigo de
José Alves
\Ferreira, "Da cláusula penal" in RT301/14 e ss.; em sua obra sobre o
tema,
Limongi França identifica 20 espécies de cláusula penal, além de 12
subespécies, expondo as 4 teorias existentes sobre sua natureza jurídica:
a
de reforço, a de pré-avaliação, a de pena e a mista (pp. 139 e 330), veja
também acórdão do TARS, in Julgados 86/364.
\ (247) Assim conclui tb. Anne Sinay-Cytermann, em seu artigo,
"Clauses penales
\et clauses abusives: vers un rapprochement", in: Ghestin, Clauses, p.
169.
(248) Veja as decisões do TJSP, in RT 690/85 e 691/107.
(249) Segundo Reich, in Ghestin, Limitatives, p. 84, o princípio
da transparência
geralmente é violado por estas cláusulas, seja por seus textos, seja pela
falta
de informação precisa de sua existência para os consumidores.
(250) Em sua premiada obra Denis Mazeaud, p. 7, relembra que a
cláusula penal
só poderia ser aplicada em caso de incumprimento "por culpa" do devedor-
consumidor; sua redação, porém, na maioria das vezes pressupõe esta culpa
ou traz mesmo um aspecto de pena objetiva. (p. 487)
cláusulas penais a favor dos fornecedores não se revestem de um caráter
abusivo face a nova cláusula geral de boa-fé, ao princípio de eqüidade
contratual e de proibição da vantagem excessiva imposta no CDC (art.
51, IV).
No direito comparado encontramos diferentes métodos de com-
bate ou de regulação deste tipo de cláusula. Assim, o exemplo alemão
é de combate às cláusulas penais em contratos de adesão ou em
condições gerais dos contratos. A sua lei de 1976 já incluíra em sua
\lista negra (§ 11.6) as cláusulas penais ( Vertragsstrafe), proibindo
sem
possibilidade de valoração aquelas cláusulas nas quais, por mora,
atrasos em geral, não pagamento ou terminação do vínculo, e sem
necessidade de prova do dano, o fornecedor estipulava o direito de
receber uma quantia "punitiva" por tais atitudes do cliente.{251}
À primeira vista, a reação alemã contra esta cláusula punitiva
pode
parecer excessiva, face a utilidade prática que tais cláusulas possuem
como "garantia" do cumprimento dos contratos. Considerando, porém,
que o fornecedor é aquele que pré-redige os contratos e que incluiria
sempre este tipo de cláusula para sua "proteção", transferindo riscos
que são seus riscos profissionais, optou o legislador alemão por uma
clara proibição. Não se tem notícia que o mercado alemão de consumo
tenha sido paralisado ou seus fornecedores sofrido grandes perdas pela
impossibilidade de prever contratualmente, em suas CONDGs, tais
\"cláusulas de indenização fotfaitaire" ou de "perdas e danos pré-
estipuladas", como são conhecidas.{252}
A doutrina alemã tentou inicialmente interpretar de forma
restritiva
a proibição do § 11.6 AGBG, afirmando que "cláusula penal" visada
seria apenas aquela que prevê algum tipo de pena ou punição para os
casos expressamente mencionados: mora, inadimplemento, ou quando
o parceiro se libera do vínculo contratual. A resposta da jurisprudência
foi a de analisar as outras "cláusulas punitivas" segundo a cláusula
geral
do § 9 da lei alemã e determinar, com base nesta norma geral de boa-
fé, sua abusividade.{253} Note-se que a lei de 1976 também combate as
\* (251) Veja detalhes na obra de Schmidt-Salzer, AGB, p. 275
(F216).
(252) Sobre as várias denominações dadas às cláusulas penais,
veja Denis
Mazeaud, p. 4.
\ (253) Veja Locher, p. 97, exemplo de "cláusula punitiva", que
não foi subsumida
\nem no § 11.6, nem no § 9 AGBG, foi a cláusula bancária de
Vorfãlligkeit, (p. 488)
cláusulas limitativas ou tarifadoras da indenização devida pelo forne-
cedor (§ 11.5 da AGBG).
O outro importante exemplo é o francês. A França através de duas
leis, lei de 9.7.75 e lei de 11.10.85, permitiu ao juiz exercer um
controle
específico do conteúdo deste tipo de cláusula e reduzir até o
consideravel
estas "penas privadas contratuais".{254} Note-se que ao introduzir este
poder de revisão (pouvoir de révision ex office), mais geral{255} do que
o nosso art. 924 do CC, reconheceu, porém, o legislador francês a
validade (a não abusividade), em princípio, das cláusulas penais,
preferindo uma solução casuística a uma proibição genérica.
O legislador do CDC não incluiu as cláusulas penais entre as
expressamente mencionadas na lista do art. 51. Apenas elaborou uma
norma especial para o caso da cláusula de decaimento (art. 53) e previu
uma multa moratória de no máximo 10% do valor da prestação, no caso
do art. 52, § 1.º do CDC. O fato da lista do art. 51 não mencionar
expressamente a abusividade da cláusula penal pouco indica, uma vez
que se trata de lista meramente explicativa, como afirma o próprio
caput do art. 51. Sem dúvida, porém, a ausência de previsão expressa,
a contrário de leis antigas, como a própria Lei de Usura, retira das
cláusulas penais aquela "desconfiança", aquela especial atenção que
desperta nos juízes em outros ordenamentos jurídicos.
A jurisprudência brasileira acostumada ao controle de
razoabilidade
das cláusulas penais autorizado pelo art. 924 do CC e pela seção
especial dedicada ao regime desta cláusula no Código Civil, tem
preferido uma solução casuística de não declaração da abusividade de
tais cláusulas.{256} Note-se que o regime da cláusula penal no CC não é
*isto é, de vencimento antecipado de todos os débitos, em caso de 2 meses
\de atraso (BGH, j. 19.9.85, pub. in BGHZ 95/362), hoje, porém, existe
lei
especial sobre o tema, a Lei de crédito ao consumo, com normas bem mais
\rigorosas (Verbraucherkredirgeset:).
\ (254) Assim Sinav. in Ghestin, Clauses, p. 170.
(255) Em sua tese, Denis Mazeaud, p. 53, considera que tal
controle não perdeu
o caráter "excepcional" que as normas do Code Civil lhe reservavam.
(256) Assim a decisão do STJ (REsp. 39.446-0-RJ), em cuja ementa
consta:
"Cláusula penal - Cumprimento parcial da obrigação. A jurisprudência,
acolhendo lição doutrinária, na esteira do art. 924 do CC, delineia
entendimento no sentido de que, cumprida em parte a obrigação, em caso
de inexecução do restante, não pode receber a pena total, porque isso (p.
489)
um regime especialmente positivo para os consumidores, geralmente
aquele que está em mora ou inadimplente, uma vez que libera o
fornecedor de alegar ou provar seu prejuízo, impede o consumidor de
eximir-se sob alegação da excessiva onerosidade da cláusula e impõe
como único limite quantitativo a própria obrigação principal (arts. 919,
920, 922, 923, 927 do CC).
Sem dúvida, a interpretação que a jurisprudência tem dado ao
art. 924 do CC, é uma interpretação pró-consumidor, ao reduzir as
penas previstas, por vezes totais (veja parte referente a cláusula de
decaimento), por vezes tão importantes que frustram qualquer expec-
tativa do consumidor (80%, 60%, 50%, 40%, 30% do valor total ou
do valor pago).{257}
Mesmo assim, trata-se de uma reação esporádica do
Judiciário,{258}
que muitas vezes opta pela não caracterização da cláusula como
cláusula penal. Note-se que a não caracterização como cláusula penal
geralmente é negativa para o consumidor (principalmente se não
aplicado o CDC), pois o juiz pode assim autolimitar seu poder de
revisão, somente para respeitar indiretamente o dogma da autonomia
da vontade. Tal solução pode, porém, também ser positiva para os
interesses dos consumidores, ao evitar que se aplique o regime previsto
no Código Civil e que se considere, em princípio, tal cláusula como
válida (ou não abusiva), segundo a visão do direito civil tradicional,
permitindo um maior controle do conteúdo e do desequilíbrio contratual
que esta cláusula traz.{259}
*importaria em locupletar-se à custa alheia, recebendo ao mesmo tempo,
parte da coisa e o total da indenização na qual está incluída justamente
aquela já recebida, sendo certo que a cláusula penal corresponde aos
prejuízos pelo inadimplemento integral da obrigação".
(257) Tal era a tendência mesmo antes da entrada em vigor do CDC,
veja: RT
664/69, bom exemplo igualmente é a decisão de 7.4.93, pub. in Julgados
do TARS 86/364.
(258) Assim, antes da entrada em vigor do CDC, o próprio STJ
afirmaria: "É
perfeitamente válida a pena convencional compensatória ... constituindo a
regra do art. 924 do CC mera faculdade do juiz a não ensejar interposição
de recurso especial" (REsp. 506-RJ, 4.ª T., j. 25.9.89, rel. Min. Sálvio
de
Figueiredo), reproduzido na íntegra, in RT 651/173.
(259) Exemplo de utilização positiva para o consumidor da não
caracterização
como cláusula penal encontramos in RT 670/97. (p. 490)
Mencione-se, igualmente, que a sempre atual Lei de Usura, em
seu art. 9.º, já pontificava: "Não é válida cláusula penal superior à
importancia de 10% do valor da dívida". Destaque-se também a
reiterada reação do Judiciário contra as cláusulas penais (punitivas,
compensatórias ou indenizatórias) cumulativas,{260} as de caráter
leonino,{261}
e a sua tendência de tentar evitar o enriquecimento injusto daquele que
elabora o contrato,{262} considerando, porém, o uso eventual da coisa e
a norma disposta no art. 1 .097 do CC.{263}
A cláusula penal "clássica", como estamos aqui denominando-a,
possuía claramente uma dupla função. Em primeiro lugar, a função de
garantia da execução do contrato e somente secundariamente, a função
de pena, a sancionar a inexecução ilícita da obrigação de garantia.{264}
A doutrina e a jurisprudência brasileira sempre destacaram, porém, uma
terceira função, qual seja a de prefixar a indenização
compensatória.{265}
Tendo em vista a importância prática, da mencionada primeira
função garantidora (ou de reforço),{266} voltada para a execução volun-
tária do contrato, foi ela considerada uma cláusula normal e mesmo
necessária ao bom cumprimento dos contratos. Nas sociedades de
massa, porém, esta sua primeira função perdeu em realidade e em
* (260) Veja o acórdão do STJ, Rel. Sálvio de Figueiredo, REsp.
24.053-4-GO, in
Lex STJ 43/235 e ss. e decisão do 2.º TASP, in RT 687/133 e ss.; sobre as
mudanças jurisprudenciais já ocorridas em relação a não cumulatividade
entre cláusula penal e honorários de advogado (art. 8.º da Lei de Usura),
veja o artigo de Yussef Said Cahali, pub. na Rev Ajuris 20/181 e ss.
\ (261) Veja TJSC, in RT645/U8; sobre útil noção de lesão nestes
casos, veja a
\solução proposta pelo magistrado José Amir do Amaral, em seu artigo
publicado na Rev. Ajuris 46/212 e ss., considerando a necessidade da
jurisprudência utilizar-se mais do art. 9.º da Lei de Usura.
(262) Veja, declarando a abusividade da cláusula (penal) de
decaimento, decisão
do TJSP, reproduzida na íntegra in RT 690/85; sobre a irregularidade da
praxe dos intermediários de negócios preverem cláusula penal para ambas
as partes, em caso de frustração do negócio, veja acórdão do TJSP, in RT
643/92.
(263) Veja, como exemplo, a decisão do TARS publicada na íntegra
in RT 653/193.
(264) Assim a tese premiada de Denis Mazeaud, p. 7, que constrói
seu plano tendo
como fundo esta diferença de funções.
(265) A tendência tem sua origem nos ensinamentos de Clóvis
Beviláqua, veja
\REsp.
(266) A expressão é usada por Limongi França, p. 141. (p. 491)
importância. Face a dominante visão econômica do contrato como
instrumento para a transferência de riscos, passou-se a privilegiar sua
\segunda função, a qual permite em realidade um ranho real, face a
inexigibilidade da comprovação dos danos. Sendo assim, mesmo que
frustrada finalidade principal do contrato (seu cumprimento), mesmo
que liberados os parceiros do vinculo, reservava-se o fornecedor o
direito de receber esta "multa" (plus econômico), que de garantia de
execução passou a garantir apenas a inexistência de perdas, quase a
possibilidade de escolher mal ou de forma especulativa os parceiros
\contratuais. Aqui parece-me estar o ceme da abusividade identificada
pela lei alemã, na possibilidade da cláusula penal modificar as
expectativas e pretensões secundárias, criando um desequilíbrio entre
direitos e deveres contratuais, quebrando a justiça contratual inicial,
com ou sem culpa do consumidor, punindo o mais vulneráveL,
impossibilitando mesmo uma relativa volta ao status quo, mesmo
liberando do vínculo ambas as partes. Quanto a segunda função,
também ela evolui, e hoje discute-se na doutrina sua natureza, se
verdadeira pena privada ou de simples reparação preestabelecida,
tendendo a evolução a superar seu caráter indenizatório.{267} Discutível
parece-me, igualmente, se esta estipulada "pena privada" realmente é
um dos motivos para o consumidor cumprir (ou sua inexistência, para
deixar de cumprir) suas obrigações contratuais, ou se é a expectativa,
a finalidade do próprio contrato, que movimenta o consumidor. Nota-
se, de qualquer maneira, que os privilégios de caráter punitivo, assim
como aqueles dedicados a facilitar a rápida execução forçada contra
o consumidor estão desaparecendo do direito brasileiro, como demons-
tra a evolução jurisprudencial no sentido da inadmissibilidade da prisão
civil em caso de alienação fiduciária, após o advento da Constituição
Federal de 1988.{268}
Neste sentido, a nova tendência no direito comparado é aceitar o
rigor alemão, a regra de abusividade das cláusulas penais, como o mais
benéfico para as relações intrinsecamente desequilibradas, como as
relações de consumo. No Brasil, ao contrário, a tendência atual é de
manutenção das cláusulas penais estipuladas e sua redução proporci-
* (267) Assim Denis Mazeaud, pp. 301 e ss.
(268) Veja por todos, com reprodução dos votos pioneiros do Min.
Athos
Gusmão Carneiro, a decisão do TARS, rel. Antonio Janyr Dall’AgnOll Jr.,
in RT695/192. (p. 492)
onal, insistindo a jurisprudência na da ficção de que possuam um
verdadeiro caráter compensatório ou de prefixação da indenização.{269}
Particularmente, parece-me que o futuro encontra-se com as
tendências do direito comparado. A segunda função, a função punitiva
da cláusula penal, é hoje a dominante no mercado massificado.{270}
Ninguém mais se ilude que a escolha das cláusulas contratuais e seus
efeitos futuros, ainda mais as que se pode ter certeza da aceitação pelo
Judiciário ou da reiterada omissão em utilizar seu poder legal de
revisão, tenha como finalidade constituir uma equilibrada engenharia
contratual. A engenharia contratual desejada geralmente é a mais
vantajosa para o fornecedor, onde os riscos e deveres, se possível, serão
transferidos para o parceiro em posição não dominante ou mais
vulnerável. O risco da frustração do contrato não deve ser suportado
somente pelo consumidor.
A cláusula penal é, neste sentido, um poderoso instrumento para
destruir o equilíbrio contratual entre direitos e obrigações, mesmo que
seja em um momento secundário de inadimplemento ou atraso no
cumprimento das prestações por parte do consumidor, constituindo
assim uma vantagem excessiva. Este instrumento unilateral é ainda
mais vantajoso face a nossa tradição em aceitar tal tipo de cláusula sem
discutir sua validade, nem seu conteúdo intrínseco, a não ser quando
claramente leonina ou com valores extremamente exagerados.
Tema polêmico no mundo inteiro e ainda não decidido definitiva-
mente merece, ao nosso ver, ser novamente analisado pelo legislador
brasileiro e talvez, revista a prática jurisprudencial. A cláusula penal
em
contratos envolvendo consumidores e fornecedores de produtos e servi-
ços, especialmente em contratos de adesão, é uma cláusula
* (269) Veja a mencionada decisão do STJ in REsp. 39.446-0-RJ.
Note-se que a
insistência no caráter compensatório das cláusulas penais, apesar de
fictício,
pode ser positivo para o consumidor, pois pelo menos permite a aplicação
do art. 924 do CC; neste sentido veja a decisão do STJ, in REsp. 31.954-
0-RS, com a seguinte ementa: "Compromisso de compra e venda - Cláusula
penal compensatória. No compromisso de compra e venda, existindo
cláusula que prevê não tenha direito o promitente comprador a devolução
das importâncias pagas, tal cláusula deve ser considerada como de
natureza
penal compensatória, podendo ser reduzido o seu valor com base no art.
924 do CC".
(270) Veja interessantes observações de Pinto Monteiro, p. 577 e
ss. (p. 493)
desequilibradora, mesmo que só tenha atuação quanto a pretensões
secundárias: é, como afirmam os autores franceses, uma nova cláusula
"sob suspeita".

2. Cláusulas influenciando o acesso à justiça

Como afirmamos na 1 .ª edição, a jurisprudência pátria já havia


identificado a abusividade latente das cláusulas que, seja pela eleição
de um foro especial para o contrato de consumo, seja por impor uma
arbitragem privada ou de órgãos ligados aos fornecedores, acabam por
dificultar (ou mesmo inviabilizar) o acesso à Justiça, afrontando
direitos fundamentais do consumidor. Em verdade, tal prática conti-
nuou no mercado brasileiro e muitos contratos de adesão oferecidos ao
público prevêem a derrogação de foro, exigindo do Judiciário uma
resposta clara. Destaque-se que a resposta judicial nem sempre tem
como base as normas do CPC,{271} preferindo os juízes a utilização das
normas do CDC, especialmente o art. 100, IV, motivo pelo qual
insistimos na análise da abusividade da cláusula de eleição, nos
contratos de consumo.
O motivo da não utilização das normas do CDC, quanto à
abusividade da cláusula de eleição do foro, talvez encontre-se no fato
* (271) Assim decisão in Julgados do TARS 83/399, com a seguinte
ementa:
"Consórcio - Contrato de adesão - Cláusula referente a foro de eleição -
Invalidade. Aplicação da regra contida no art. 100, IV, do CPC que tem
por
competente o foro onde se acha localizada a agência ou sucursal quanto às
obrigações por ela contraídas. Agravo improvido". (AI 192113645, 9.ª Câm.
Civ., Porto Alegre, rel. Dr. Breno Moreira Mussi, j. 16.6.92); já, em
sentido
contrário, citando o CDC como base legal da decisão, o TJRS, 6.ª Câm.
Civ., j. 16.6.92, rel. Des. Oswaldo Stefanello, in RT 156/294: "Código de
defesa do consumidor - Foro competente - Denunciação da lide - Vedação.
A teor do art. 101, I, da Lei 8.078, de 11.9.90 - CDC - A ação de
responsabilidade civil do fornecedor de produtos ou serviços pode ser
proposta no foro de domicílio do autor. Hipótese em que não se aplica, na
comarca da capital do Estado do Rio Grande do Sul, a Súmula n. 3, das
colendas Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, que trata da repartição dos feitos judiciais entre o Foro
Centralizado
e os Foros Regionais. Vedado é, a teor da mesma lei, a utilização, pelo
demandado, do instituto processual da denunciação da lide (art. 88),
embora
assegurado o direito de regresso do que pagar os danos contra os demais
responsáveis (parágrafo único do art. 13)". (p. 494)
da lista do art. 51 não conter norma expressa a respeito.{272} Relembre-
se, porém, que a lista é apenas exemplificativa, contendo seu caput a
expressão "entre outras".
A cláusula de eleição do foro, geralmente da sede da empresa,
localizada em outro Estado ou mesmo "escondida" em alguma parte
do Brasil, como no caso de empresas com fins escusos, traduz-se
em vantagem exagerada para o fornecedor que contratou justamente
no local de domicílio do consumidor e agora quer litigar em outro
local. É do risco profissional do fornecedor, que comercia em
determinada praça, seja através de filial ou qualquer espécie de
representante, manter um sistema de defesa judicial nesta praça,
permanente ou eventual.{273}
Se o consumidor entrar com a ação, poderá se beneficiar da norma
do art. 101 do CDC, mas se a ação é proposta pelo fornecedor a única
saída do consumidor, de forma a evitar os gastos de um litígio fora do
foro de seu domicílio é a declaração de abusividade (e nulidade) da
cláusula de prorrogação da competência relativa. Cláusula comum e
admitida em contratos entre comerciantes (veja a Súmula 335 do STF),
* (272) Assim conclui Rosa Nery, em seu excelente estudo, p. 113,
veja neste
sentido o esforço do JEPC/RS, com a seguinte ementa: "Consórcio,
Exceção de incompetência - Carência de ação. É competente para julgar
ações que envolvam grupos de consórcio, o foro do local onde o aderente
realizou contatos com o representante da administradora do consórcio e
\onde efetivou os pagamentos (art. 100, IY b do CPC e art. 12, I e II, da
Lei 7.244, de 7.11.84, e art. 4.º, I e II da Lei estadual 9.446/91 e
Súmula
363 do STJ), e interpretação da Lei 8.078/90 (CDC) (Unânime)". (Rec.
2.163/972, Expediente 364/92, Passo Fundo, rel. Dr. Jasson Ayres Torres,
\.ª Câm. Recursal, j. 24.9.92).
(273) Veja nesta linha de pensamento, e bastante pedagógica, as
decisões do
\TAPR, Ap. Civ. 3.812, rel. Noerval de Quadros: "No contrato de adesão,
por inexistir a liberalidade de contratar, não prevalece a cláusula de
eleição
de foro, aplicando-se as regras gerais de competência, em benefício do
aderente", e, em especial, AI 96.763-3, j. 4.12.96, rel. Fernando Vidal
de Oliveira, cuja ementa é: "Possível a desconsideração do foro de
eleição
presente em cláusula contratual de contrato de prestação de serviços
(adesão), quando o cumprimento das obrigações contratuais pode se dar
em diversos locais, diante do sistema nacional adotado, aplicando-se o
disposto no art. 100, inciso IV, letra d, do Código de Processo Civil,
atrelado ao fato de que a não desconsideração pode ser obstáculo ao
acesso
a justiça". (p. 495)
a referida cláusula agora é nula em contratos entre fornecedores e
consumidores, geralmente contratos pré-redigidos unilateralmente e de
adesão, por afetar o equilíbrio intrínseco do contrato e por representar
vantagem exagerada para o fornecedor.
Nesse sentido, a jurisprudência brasileira dos Tribunais
estaduais
geralmente conecta a abusividade da cláusula de eleição do foro com
o fato dos contratos serem daqueles estabelecidos por adesão,{274} onde
o fornecedor impõe com sua pré-elaboração contratual um privilégio
para si próprio. Esta linha jurisprudencial chega mesmo a citar o CDC
e seu art. 54, § 4.º como base legal indireta para tal ineficácia ou
interpretação pró-consumidor desta cláusula limitativa dos direitos do
\consumidor (c/c o art. 6.º do CDC).{275} Igualmente, o STJ, como regra,
* (274) Assim as decisões do TARS e do 1 .º TASP publicadas in:
Julgados
83/179 e RT 697/100, cujas ementas passo a reproduzir: "Consórcio.
Tratando-se de contrato de adesão, não pode vingar cláusula impressa,
relativa ao foro de eleição, quando em flagrante prejuízo ao aderente.
\Agravo improvido". (AI 192107050 - 1.ª Câm. Civ., TARS, j. 6.6.92,
rel. Juiz Léo Lima).
"Competência - Foro de eleição - Alienação fiduciária - Busca e
apreensão - Contrato de adesão - Fixação do foro na comarca da capital
- Réu residente em comarca de estado distante - Custo elevado da defesa
e seu deslocamento, maiores que o débito em cobrança - Decisão
determinando a remessa dos autos à comarca do domicílio do requerido
- Admissibilidade - Resguardo do devido processo legal - Sentença
mantida - Recurso improvido. Embora conste do contrato de alienação
fiduciária a capital como o foro de eleição deve-se considerar,
entretanto,
circunstâncias ponderáveis a modificar tal situação. A decisão que
determinou à remessa dos autos à comarca de estado distante, domicílio
da requerida visava resguardar o devido processo legal. desde que a praxe
forense vem demonstrando que em hipóteses semelhantes o custo da
defesa e do deslocamento do réu são maiores que o débito em cobrança.
Por outro lado, no contrato de adesão predomina a vontade exclusiva
de uma das partes e, por isso, em caso de dúvida, suas cláusulas devem
ser interpretadas contra a parte que as ditou a favor da que simplesmente
aderiu" (AI 547.041-1 - 5.ª C. - j. 1.9.93 - Rel. Juiz Joaquim Garcia,
1.º TACivSP, in RT 697/100).
(275) Veja a argumentação do juiz Relator Joaquim Garcia, in RT
697/101, o qual
cita também decisão do STJ (REsp. 29.602-3/RS): "Foro de eleição -
Contrato impresso de adesão - Possibilidade de ser desconsiderado,
aplicando-se as regras processuais de competência". (p. 496)
afasta as cláusulas de eleição do foro em caso de contrato de
adesão,{276}
exigindo, porém, que esta desestabilize o contrato.{277}
\ Esta linha jurisprudencial vem reforçada por minuciosa e erudita
\decisão do STJ, cuja ementa resume:
"Contrato de adesão - Foro de eleição prevalência da regra geral
de competência (art. 100, IV, b, do CPC) - Recurso não conhecido. A
cláusula de eleição do foro inserida em contrato de adesão é, em
princípio, válida e eficaz, salvo: a) se no momento da celebração, a
parte aderente não dispunha de intelecção suficiente para compreender
o sentido e as conseqüências da estipulação contratual; b) se da
prevalência de tal estipulação resultar inviabilidade ou especial
dificul-
dade de acesso ao judiciário; c) se se tratar de contrato de obrigatória
adesão, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço
fornecido com exclusividade por determinada empresa; II - reconhe-
cida qualquer destas circunstâncias excepcionais, a definição da com-
petência se requer seja procedida segundo as regras gerais estabelecidas
pelo diploma processual (no caso, art. 100, IV, b do CPC)." (STJ, REsp.
46.544-3-RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, J. 10.5.94){278}
Em todas as circunstâncias previstas na decisão do STJ, a figura
do consumidor e dos contratos de consumo poderiam se subsumir, o
que revela a sabedoria da linha jurisprudencial. Seu perigo é, porém,
o casuísmo, o subjetivismo da decisão que não protege o consumidor
como um grupo, que não evita (ao contrário incentiva) a inclusão de
tais cláusulas nos contratos de adesão, exatamente no sentido contrário
ao espírito da lei protetiva do consumidor, a qual vem impor novos
deveres profissionais a quem comercia e impossibilita que eventuais
* (276) Assim as decisões do STJ in REsp. 37.478-2-RS, REsp.
39.638-7-RS e
REsp. 41.634-5.
(277) Seguindo esta linha do STJ, veja decisão da 2.ª Câm. Civ.
do TARS, in
Julgados 82/301, cuja ementa é a seguinte: "Competência - Consórcio -
Contrato de adesão - Foro de eleição. O foro de eleição, inserido em
contrato de adesão, somente pode prevalecer se não é capaz de afetar o
equilíbrio que deve existir entre as partes, de modo a não se constituir
em
injustificado óbice ao livre acesso ao exercício do direito de ação e de
defesa". (AI 192012870, 2.ª Câm. Civ., rel. Dr. João Pedro Freire, j.
19.3.92).
(278) Semelhante decisão (STJ - REsp. 47.081-1-SP) foi publicada
na íntegra in
Direito do Consumidor 10/258. (p. 497)
ônus ligados aos litígios sejam transferidos para os ombros dos
consumidores, desestimulando seu acesso à justiça.
Nesse sentido, sem querer discutir a correção, no mérito, dos
pontos apontados na jurisprudência, considero preferível uma posição
mais genérica, objetiva, como parece-me se retira do CDC. Em
verdade, a atual abusividade da cláusula de eleição do foro nos
contratos envolvendo consumidores, ex lege presumidos vulneráveis
(art. 4.º, I do CDC), tem como base o disposto no art. 51, IV do CDC,
em especial na sua norma interpretativa, o § 1 .º, III, do CDC. Este
presume a vantagem excessiva do fornecedor quando a cláusula "se
mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a
natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso".{279}
Note-se que ao utilizar este novo fundamento legal para a
nulidade
da cláusula, poderá o juiz decretá-la de ofício, pois as normas de
proteção do consumidor são de ordem pública e a nulidade prevista na
lista do art. 51 é uma nulidade cominada, absoluta; o que afastaria o
problema processual de se tratar de competência relativa (Súmula 33
do STJ).{280}
A mesma linha de argumentação pode ser utilizada quando se trata
das famosas cláusulas compromissórias, referentes à arbitragem. Neste
caso, porém, o CDC foi expresso e na pedagógica lista do art. 51, VII,
considerou abusivas e nulas as cláusulas que "determinem a utilização
compulsória de arbitragem". Na segunda edição, alertamos para o
perigo de projetos de leis - hoje legislação posta - sobre o tema.
Aquelas observações, por sua ainda grande atualidade, serão
reproduzidas. Em 1995, escrevíamos: "A prática é hoje, portanto, a da
não inclusão destas cláusulas nos contratos de adesão oferecidos no
mercado aos consumidores, não necessitando a jurisprudência dar
maior resposta ao problema, até mesmo pelo sucesso dos Juizados
Especiais e de Pequenas Causas, que também objetivam a conciliação
e usam método semelhante ao da arbitragem, só que de caráter público
e obrigatório. Tal cláusula, porém, merece nossa atenção, não só pelo
seu potencial de abusividade e os prejuízos que pode causar aos
* (279) Assim tb. Rosa Nery, idem, p. 113.
(280) Nesse sentido a forte defesa de Rosa Nery, idem, p. 115,
pela não incidência
da Súmula 33 do STJ e a possibilidade do juiz ex officio decretar a
nulidade
de tais cláusulas em contratos de consumo. (p. 498)
consumidores, mas porque reiteradamente projetos legislativos tentam
revigorar-lhe a validade.
Nesse sentido, a Diretiva da Comunidade Européia sobre cláusulas
abusivas identificou como abusivas ambas as espécies de cláusulas
influenciando ou dificultando o acesso à justiça pública, afirmando, em
seu Anexo 1, letra q, ser abusiva a cláusula que objetive ou tenha por
efeito: "suprimir ou obstaculizar o exercício de ações judiciais ou de
recursos por parte do consumidor, em particular obrigando-se a dirigir-
se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não coberta pelas
disposições jurídicas, limitando-lhe indevidamente os meios de prova
a sua disposição ou impondo-Lhe um ônus da prova que, conforme a
legislação aplicável, deveria corresponder a outra parte
contratante".{281}
A menção da Diretiva ao particular potencial abusivo da cláusula
compromissória de arbitragem nas relações com consumidores merece
especial destaque. Tramita em nosso parlamento projeto de lei{282}
tentando revogar o artigo específico do CDC, que visa proteger o
consumidor contra a imposição de cortes arbitrais privadas, sustentadas
pelos fornecedores ou suas federações (art. 51, VII).
Tal projeto não merece apoio, pois permite expressamente, em seu
art. 4.º, § 2.º, que se inclua uma cláusula compromissória nos contratos
de adesão, quando se sabe que o contrato é de adesão justamente porque
o fornecedor o pré-redige e impõe seus exatos termos. A ficção do
Projeto é de que o consumidor concorda expressamente com a cláusula
compromissória a assinando em particular ou mesmo a instituindo. Tal
\ficção é injusta, pois cria um falso equilíbrio (Scheingleicheít, como
afirma a doutrina alemã), uma falsa bilateralidade de chances no
contrato, a qual não ocorrerá na prática. A passividade e a
vulnerabilidade
do consumidor são a regra.
A vantagem exagerada do fornecedor advirá do privilégio de
retirar a demanda das mãos do Judiciário e, em especial, do Juizado
Especial de Pequenas Causas, que serão substituídos por árbitros pagos
pelos próprios fornecedores, em ambiente por eles determinado, sendo
quase remota a chance que um consumidor descontente com a decisão
arbitral, ainda possua o equilíbrio psicológico e econômico, assim
* (281) Tradução nossa do espanhol da referida Diretiva 93-13/CEE,
de 5.4.93.
(282) Projeto de Lei 780/92 do Senado que recebeu o n. 4.018/93
na Câmara de
Deputados. (p. 499)
como o sentimento de certeza do direito para, após, procurar o
Judiciário, com uma causa prescrita ou caduca.{283}
O legislador brasileiro deve estar atento, pois o referido
Projeto
de Lei prevê a compulsoriedade da arbitragem, em seu art. 7.º, caso
o consumidor "recuse-se a firmar o compromisso arbitral" ou a
"comparecer" frente ao árbitro, lavrando este mesmo assim a sentença
\que valerá como compromisso arbitral (art. 7.º, § 7.º). Permite-se ao
árbitro fugir inclusive do ordenamento em vigor, decidindo por eqüi-
dade, a critério do estabelecido no contrato, incluindo os "usos e
costumes" comerciais, o que, em um Brasil tão diferenciado de região,
pode ser muito prejudicial ao consumidor.
A arbitragem compulsória ou mesmo a arbitragem "fictamente"
convencional através de aceitação "expressa" ou de outra assinatura em
contrato de adesão são temas bastante polêmicos. O problema central
é ser a arbitragem executada por órgãos privados, geralmente oriundos
(e pagos) pelos fornecedores, suas federações ou grupos. Se em outros
países, de maior tradição de defesa do consumidor e boa-fé nas relações
no mercado, tal experiência tende a funcionar, no Brasil, está sendo
usada como mais uma manobra para retirar do exame da justiça estes
conflitos. É exatamente no seu caráter oficial e público{284} que reside
a força dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, órgãos da Justiça,
que contam com a ajuda dos servidores públicos, dos Juízes de Direito
e, especialmente, dos advogados que atuam como conciliadores e juízes
leigos. Se o novo Estatuto dos Advogados já abalou o sucesso dos
juizados na defesa rápida, barata e precisa dos consumidores, a
aprovação de projetos de lei,{285} que revogam o comentado artigo e
* (283) A hipótese de prescrição ou decadência não é impossível
face ao veto
presidencial do art. 26, § 2.º, II do CDC.
(284) Nesse sentido, também na Espanha, país latino, as recém-
criadas "Juntas
Arbitrales de Consumo", autorizadas pelo real Dec. 636, de 3.5.93,
possuem
caráter e estrutura oficial, submetidas à Administração pública das ComU-
nidades Autónomas (Estados), como dá notícia a Professora de Madrid,
Sílvia Diaz, p. 178.
(285) Refira-se que, tanto no Seminário "Avaliação do Código de
Defesa do
Consumidor após 3 anos de Vigência", organizado pela Comissão de
Defesa do Consumidor da Câmara, dias 7 e 8.6.94, em Brasília, quanto
no Seminário sobre a "Lei Antitruste e Direitos do Consumidor", dias
21 a 23 de setembro, em Porto Alegre, organizado pela Seção RS do (p.
500)
instituem a possibilidade de tais cláusulas compromissórias serem
inseridas em contratos de adesão e condições gerais dos contratos, seria
o golpe final no sistema do JECP, além de um grande atentado ao direito
constitucional de acesso à justiça.
Parece-me, portanto, que devemos manter o disposto no art. 51,
VI e alargar a experiência, já positiva, do Juizado Especial de Pequenas
Causas, até que a sociedade esteja madura para a utilização destes
novos meios alternativos de solução de controvérsias também nas
relações de consumo, onde o desequilíbrio de forças entre os interes-
sados é intrínseco."
A Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, em face das modificações
sofridas por sugestão das entidades de defesa do consumidor,{286} nada
menciona sobre relações de consumo. Mesmo assim, ao permitir o
recurso a arbitragem em contratos de adesão, parecia permitir também
que os conflitos de consumo, oriundos desses contratos, pudessem ser
submetidos à nova lei. Como comentamos anteriormente, é mais um
efeito da crise da pós-modernidade que procura na comunicação, no
discurso, no consenso semificto e fragmentado a legitimação da solução
e da Justiça, em vez de procurá-la nas instituições (sob suspeita)
postas,
nos valores positivados em leis, nas próprias normas gerais (antes
reflexo da vontade geral). Promove-se um tratamento diferenciado para
aqueles que podem pagar por ele ou organizar-se em câmaras arbitrais,
Solução teoricamente mais rápida e mais legítima, baseada na norma
dos comerciantes (lex mercatoria), não importando tanto sua imparcia-
lidade, que é apenas discursiva.{287} Positivo é que a opinião
inicialmente
defendida da aplicabilidade da nova lei arbitral às relações de consumo
não perseverou. Ao contrário, no país quase não foi utilizada a nova
lei pelos fornecedores para resolver seus conflitos entre os fornecedores
e os consumidores stricto sensu. Preservou-se, assim, a função do
*Brasilcon, referido Projeto foi objeto de moção contrária e de fortes
críticas pelo seu potencial neutralizador das normas materiais de defesa
do consumidor e do real acesso dos consumidores à Justiça, representando
indesejado retrocesso.
\ (286) Sobre o tema veja Porto Macedo, Histórico, p. 237.
\ (287) Veja nossas observações sobre a crise da pós-modernidade,
nesta obra.
\Neste sentido manifestação da Professora da UERJ, Rosângela Cavallazzi,
em sua palestra na Faculdade de Direito da UFRGS, em 12 de março de
1995, "Tradução da Convenção de Arbitragem nas sociedades de massas". (p.
501)
Juizado Especial Cível de Pequenas Causas e dos órgãos administra-
tivos estatais, que nada mais fazem do que uma mediação e uma
arbitragem imparcial controlada pelo Estado.
As cláusulas contratuais, que imponham a arbitragem no processo
\criado pela nova lei, devem ser consideradas abusivas, forte no art.
4.º,
I e V, e art. 51, IV e VII, do CDC, uma vez que a arbitragem não-estatal
implica privilégio intolerável que permite a indicação do julgador,
consolidando um desequilíbrio, uma unilateralidade abusiva ante um
indivíduo tutelado especialmente justamente por sua vulnerabilidade
presumida em lei.{288} No sistema da nova lei,{289} a cláusula
compromissória
prescinde do ato subseqüente do compromisso arbitral.{290} Logo, por si
só, é apta a instituir o juízo arbitral, via sentença judicial, com um só
árbitro (que pode ser da confiança do contratante mais forte, ou por este
remunerado); logo, se imposta em contrato de adesão ao consumidor,
esta cláusula transforma a arbitragem "voluntária" em compulsória, por
força da aplicação do processo arbitral previsto na nova lei.
Por fim, destaque-se ainda que a nova lei permite a arbitragem ex
\aequo et bono e o uso de processo civil especial paraestatal. Logo,
permite a nova lei, no campo de sua aplicação, o julgamento fora do
sistema jurídico legal, fora das imposições e normas do CDC, somente
com base em princípios e sentimentos subjetivos de um só árbitro pago
pelos fornecedores. O art. 7.º do CDC permite também o recurso a
eqüidade, mas somente para introduzir no sistema do CDC "direitos"
do consumidor, não limites a estes direitos, ônus ou deveres negativos
a este agente presumido vulnerável na sociedade de consumo (art. 4.º,
I, do CDC).
Certo é que a nova lei de arbitragem tem caráter processual, é
norma instrumental do direito civil e não deve ser usada para fugir, ou
fraudar à aplicação do direito material imperativo, do direito civil, em
relações per se tão desequilibradas e afeitas a abusos como as de
consumo. Sabe-se também do direito internacional que a arbitragem
normalmente exige três árbitros, tem extremas dificuldades em seu
* (288) Assim também Ferreira da Rocha, Cláusula compromissória,
p. 36, citando
Hapner, Eduardo Arruda Alvim e Alberto do Amaral Jr.
(289) Veja arts. 6.º e 7.º da Lei 9.307/96.
\ (290) Veja trabalho ainda inédito do Desembargador Melíbio
Uiraçaba Machado,
Juízo Arbitral - Comentários sobre a Lei 9.307/96, p. 2. (p. 502)
processo e execução, o que a torna também custosa e demorada. O
discurso pós-moderno de facilidade e rapidez da arbitragem deve ser
relativizado ante a experiência internacional que o compara a dificíli-
mos processos envolvendo normas de Direito Internacional Privado em
foro estrangeiro, sem litispendência e em face do atual fenômeno do
forum shopping, com contratos sobre bagatelas e consumo.{291} Igual-
mente, o seu laudo é de difícil execução, ainda mais quando ambos não
concordam verdadeiramente em submeter sua lide à opinião de tercei-
ros não-estatais. Em resumo, a arbitragem totalmente paraestatal
encontra seu campo de atuação nas lides nacionais e nas lides
internacionais entre comerciantes de grande porte, e é totalmente
desaconselhável nas outras situações.
Melhor seria a doutrina e jurisprudência concluir pela
inaplicabilidade da Lei 9.307/96 às relações de consumo reguladas em
contratos de adesão.{292} As entidades, federações, confederações e
associações de fornecedores de produtos e serviços brasileiras resisti-
ram ao entusiasmo liberal desta nova lei sobre soluções alternativas de
conflitos e, pelo menos quanto tenho conhecimento, não impuseram ou
recomendaram tais cláusulas abusivas, nem criaram câmaras arbitrais
especializadas em conflitos de consumo. O acesso à justiça estatal ainda
é direito cOnstitucional dos brasileiros e as soluções alternativas de
conflitos devem ser supervisionadas pelo Estado, a quem ainda cabe,
segundo a ordem constitucional vigente, distribuir Justiça, apesar da
crise da pós-modernidade. Estas novas-velhas técnicas foram criadas
para resolver conflitos nas relações entre iguais, particularmente entre
comerciantes que hoje muito se utilizam da técnica dos contratos de
adesão, e não para retirar a proteção estatal hoje concedida ao
consumidor. Felizmente, ainda podemos afirmar que: "A prática é hoje
a da não inclusão dessas cláusulas compromissórias nos contratos de
adesão oferecidos no mercado aos consumidores".
* (291) Assim com visão bastante realista dos limites do discurso
dos juristas e
\árbitros e da difícil realidade da arbitragem internacional,
Rechsteiner, p.
26 e s., em especial, p. 115. As minhas experiências como assessora de
árbitros em duas arbitragens internacionais correspondem às impressões do
autor. Veja, com uma visão positiva da arbitragem internacional, Araújo,
p.
108, pois, segundo a autora, esta permite a autonomia da vontade em
DIPr.,
e o uso da lex mercatoría, que seria ordem jurídica "despolitizada" pela
ausência do Estado.
(292) Assim conclui Etcheverry, p. 56, e Filomeno, p. 47. (p.
503)
Por fim, refira-se que, muitas vezes de forma velada e indireta,
alguns contratos impõem em seu texto obrigações de prova ao consu-
midor, especialmente no que se refere a atuação do fornecedor, à
qualidade do produto ou do serviço fornecido. Imagine-se um caso, em
que o consumidor perca o interesse na manutenção do vínculo contratual
em virtude da mora e da conduta inadequada e inadimplente do
fornecedor, tendo em vista a existência de deveres anexos ao dever
principal de prestação (deveres de lealdade, proteção e informação),
pode versar um aspecto da discussão de mérito sobre a conduta, de boa-
fé subjetiva ou não, do fornecedor e sobre o cumprimento perfeito ou
não da oferta realizada. A discussão atinge assim o que podemos
denominar da análise da realização ou não das expectativas legítimas
despertadas no consumidor pela atuação do fornecedor no mercado e
pela formação do vínculo contratual entre eles.
Nestes casos, ônus da prova de certos fatos (como o alegado
problema de financiamento, os valores cobrados ou a mora
desmotivada){293} torna-se um fardo, por vezes insustentável, para o
consumidor. Este não possui acesso à atividade e à técnica do
fornecedor, que é o profissional agindo na relação dentro de seu campo
de atividades, nem poderia o consumidor suportar financeiramente
complicadas perícias, levantamentos e outras provas.
O resultado desta posição processual debilitada (denominada
hipossuficiência pelo CDC) seria a conseqüente improcedência da
pretensão pretendida e que necessitasse dessas provas, provas neste
caso diabólicas. Para evitar que esta dificuldade de prova dificulte o
efetivo acesso à Justiça e a rápida e correta prestação jurisdicional, o
CDC incluiu entre os direitos básicos dos consumidores o direito de
facilitação da defesa de seus direitos, com a conseqüente possibilidade
de inversão do ônus da prova.
Reza o art. 6.º, VIII do CDC que é direito básico do consumidor:
"a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do
ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do
Juiz,
for verossímil a alegação ou quando ele for hipossuficiente, segundo
as regras ordinárias de experiência".
* (293) Relembro aqui a importância, não somente do direito de
petição que é
constitucional, mas do direito de contestação, por exemplo, dos valores
cobrados; veja, neste sentido, sobre o direito de discutir os valores
apresentados, jurisprudência anterior ao CDC, in RT 625/107. (p. 504)
Note-se, por fim, que não podem as partes, através de contrato ou
qualquer acordo, inverter o ônus da prova em prejuízo do consumidor
(art. 51, VI do CDC).
Os três tipos de cláusulas cuja abusividade foi aqui analisada, a
de eleição do foro mais conveniente para o fornecedor, a de inversão
do ônus da prova e a da arbitragem compulsória, apresentam em
comum a tentativa de influenciar o acesso do consumidor à justiça
(processual e material). O abuso visualizado nestas disposições advém
não só do fato do acesso à justiça (processual e material) ser um direito
constitucional do cidadão-consumidor, mas também do fato deste risco,
na nova sociedade de massa, dever ser suportado por aquele que fornece
os produtos, que comercializa, que utiliza os novos métodos de
marketing, que age no mercado de consumo. Sua atividade é lícita, seu
campo de atuação não é limitado geograficamente, seu lucro é consi-
derado normal e intrínseco a atividade econômica, mas deve organizar-
se para suportar as eventuais discussões no Judiciário, as eventuais
provas ex vi lege exigidas.{294}

3. Cláusulas-Mandato

Igualmente interessante é analisar a abusividade ou não das


chamadas cláusulas-mandato, as quais através de estipulação elaborada
e imposta por uma das partes colocam o credor do débito na posição
legal de mandatário do devedor, com plenos e irrevogáveis poderes para
fechar terceiros negócios (geralmente sacar títulos abstratos) ou para
modificar unilateralmente as bases do negócio em curso (por exemplo,
impor e assinar sozinho a re-ratificação da mesma promessa, combi-
* (294) Nesse sentido, a argumentação da decisão do JEPC/RS que
passamos a
reproduzir: "Consórcio - Exceção de competência de foro - Irrelevante a
eleição de foro nos contratos para ajuizamento de ação. Não prevalece o
local de eleição em contratos de consórcios, pois visam as cláusulas
criar
dificuldades ao consorciado aderente, no exercício de seus direitos.
Trata-
se de contratos de adesão em que o consorciado dispõe de condições de
alterar cláusulas preestabelecidas. A competência do foro deve ser fixada
no juízo do local da contratação, onde a administradora deve ter agência
ou sucursal (art. 100, IV, b, do CPC e item 7 da Port. 190, de
27.12.89)".
(Vencida a preliminar de carência de ação, por maioria. No mérito,
\unânime). (Proc. 95/89, Rec. 186/92, rel. Dr. Gerei Giareta, 2.ª Câm.
Recursal, 17.7.92). (p. 505)
nada com confissão de dívida). Tais cláusulas são comuns nos contratos
bancários e de locação, mas também nos contratos de promessa de
compra e venda de imóveis e de bens de grande valor, contratos de
financiamento e de cartão de crédito, sem falar nos novos tipos
contratuais, de maior utilização nos negócios comerciais, como o
leasing e outros.
Tão comuns no mercado brasileiro são estas cláusulas que a ação
dos interessados na defesa do consumidor e a resposta da jurisprudência
não tardou.{295}
A normal utilidade deste tipo de cláusula é conceder ao credor o
poder contratual de fazer líquida a dívida conforme o seu interesse e
entendimento, sem necessidade de qualquer participação do devedor-
consumidor, que somente assina o contrato e esta autorização "em
branco". Através de uma utilização deturpada{296} do instituto do man-
dato quebram-se dois importantes princípios das relações de consumo:
transparência e confiança.
O mandato e sua autorização para atuação unilateral faz desapa-
recer a necessária transparência do negócio, uma vez que sem a possível
e eficaz fiscalização do consumidor, age o credor criando uma fictícia
declaração do consumidor,{297} minimalizando os seus riscos profissio-
nais ao obrigar o consumidor, seja a um terceiro negócio, geralmente
um título extrajudicial, seja a uma modificação unilateral das bases do
negócio em curso.
* (295) Veja nesse sentido a ação civil pública proposta pelo
Ministério Público de
São Paulo, contra administradoras de cartão de crédito que utilizavam
tais
cláusulas, reproduzida na íntegra e a sentença, in Direito do Consumidor
3/198-204. semelhantes ações contra bancos foram intentadas pelo Minis-
tério Público do Rio Grande do Sul, em 1994, com decisões apenas
liminares.
(296) Assim ensina o Min. Eduardo Ribeiro, in REsp. 13.996-RS,
afirmandO:
"Traduz a hipótese, em verdade, um artifício para possibilitar a
constituição
de título executivo. É sabido que o elenco legal de títulos executivos
constitui numerus clausus, não sendo lícito que outros sejam
estabelecidOs
por convenção das partes. O sistema ora em exame passa por cima dessa
impossibilidade legal, valendo-se da já assinalada deturpação das
finalida-
des do mandato". Veja a Íntegra da manifestação do Ministro e comentários
na obra do Juiz Federal Lourival Gonçalves de Oliveira, p. 188.
(297) Veja nesta edição o item relativo à abusividade das
cláusulas de declarações
fictícias. (p. 506)
Como ensina o Ministro Athos G. Carneiro, REsp. 1.641-RJ, só
ao Poder Público foi concedido o poder (= direito) de criar título em
seu favor nos créditos tributários, motivo pelo qual independente de
qualquer exame casuístico posicionou-se pela nulidade absoluta das
cártulas emitidas com base em tais cláusulas, mesmo em contratos entre
comerciantes, afirmando: "... Ora, em casos como o dos autos, é o
credor que está, em realidade, criando o título executivo extrajudicial
em seu favor, fixando-lhe o valor e momento da exigibilidade, mercê
da outorga de poderes imposta compulsoriamente em contrato de
adesão, compulsoriamente a que as pessoas são obrigadas ao uso do
crédito bancário não têm como fugir. Ou aderem, ou estão expulsas do
mundo dos negócios, pelo menos a imensa maioria dos médios e
pequenos empresários, que não têm condição alguma de discutir com
os fornecedores de crédito, com as instituições financeiras".{298}
Note-se a importância dada ao aspecto de vulnerabilidade que é
reduzido o devedor, mesmo se profissional comerciante, face a utili-
zação do método de conclusão de contratos predispostos unilateralmen-
te ou contratos de adesão. Se a jurisprudência protege os pequenos
comerciantes, quanto mais os consumidores, destinatários finais,
presumivelmente vulneráveis no sistema do CDC.{299}
O segundo princípio atingido é o da confiança. A utilização
normal do mandato concedido eventualmente ao credor deveria se
dirigir unicamente à celebração do ato, ao estabelecimento do vínculo
ou à execução das prestações acertadas, não à execução extrajudicial
\(que seria o que os alemães denominam SekundÊtranspruch, pretensão
à perdas e danos, ao substitutivo da prestação voluntária), muito menos
à determinação do conteúdo obrigacional (seja do valor da dívida, seja
uma eventual mudança, re-ratificação ou como queiram chamar as
modificações do conteúdo contratual, sem verdadeiro consenso).{300}
* (298) RSTJ, 22/200, 1991, j. 18.12.90, com a seguinte ementa:
"Invalidade de
cláusula, em contrato de adesão, outorgando amplo mandato ao credor, ou
a empresa do mesmo grupo financeiro, para emitir título cambiário contra
o próprio devedor e mandante. Ofensa ao art. 115 do CC".
(299) Este é um dos aspectos mais destacados para basear a
nulidade do título
extrajudicial emitido com base em cláusulas-mandato impostas em contra-
tos de adesão; veja decisão da 7.ª Câm. Civ., TARS, rel. Araken de Assis,
Ap. Civ. 192023085.
(300) Assim ensina o Min. Cláudio Santos, in REsp. 1.294-RJ,
citando os
ensinamentos de Orlando Gomes. Veja Oliveira, p. 190. (p. 507)
Como ensina o Min. Cláudio Santos, o princípio da confiança
é atingido duplamente, pois ele é o elemento máximo do contrato
de mandato, e não pode haver eficaz representação quando os
\interesses são conflitantes (nemo potest esse auctor in rein suam),
mas ele está presente também no contrato principal, na relação
estabelecida entre o fornecedor e o consumidor e o fornecedor passa
a agir sem a efetiva fiscalização e a possibilidade do consumidor
discutir os valores cobrados ou as modificações contratuais impostas.
"O elemento subjetivo da confiança governa a atitude do mandante
desde a formação do contrato até sua extinção. Só a alguém em que
se confia se concedem poderes para a prática de atos jurídicos ou
administração de interesses".{301}
Note-se a importância dada ao aspecto de fiscalização dos
débitos e das modificações impostas unilateralmente através da
utilização da cláusula-mandato, frente a constatação da diferença de
interesses entre o fornecedor-mandatário e o consumidor, compulso-
riamente-mandatário.{302}
A prática é a da inexistência de controle por parte dos consumi-
dores de como são feitos os cálculos da atualização de sua dívida pelo
banco ou pelas incorporadoras. Somente após a apresentação da
cobrança poderá ele inteirar-se da sua correção ou não e talvez já lhe
pese uma ação de busca e apreensão, conforme a espécie de contrato.{303}
* (301) Veja a íntegra da manifestação do Min. Cláudio Santos e
comentários, in
Oliveira, p. 189.
(302) Nesse sentido vem decidindo a jurisprudência majoritária
dos Tribunais
inferiores. Veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal de Alçada
do Rio Grande do Sul, em que não se tratava de mandato para o próprio
credor, mas para terceiro e mesmo assim o caráter abusivo do exercício do
direito foi destacado (Ap. Cív. 1910114077, 1.ª Câm. Cív., j. 9.4.91,
rel.
Juiz Juracy Villela de Souza): "É nula a cláusula contratual que cria
mandato
para ser utilizado por pessoa jurídica, integrante do mesmo grupo econô-
mico do mutuante, contra os interesses do mandante, porque abusiva e
contrária ao que estabelece a Lei 8.078/90 (CDC)": acórdão comentado, in
Direito do Consumidor 1/230, por Vivian J. P. Caminha.
(303) Basilar neste sentido, declarando a nulidade da letra de
câmbio e
extinguindo a ação de busca e apreensão, com base em cláusula-mandato
presente em contrato de financiamento de veículo, a decisão do Juiz Lino
M. D. Batista Ribeiro, reproduzida na íntegra in Direito do Consumidor
5/294-295. (p. 508)
Face aos interesses conflitantes não cabe que um possa
representar
o outro, por exemplo, para executar o pagamento do preço ou emitir
um título cambial abstrato em nome do devedor. Discutível, igualmen-
te, é a possibilidade, através da cláusula-mandato, de se falsear um novo
consenso, prevendo a possibilidade do representante, na verdade o
credor, modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, as obrigações
e direitos de cada parte em detrimento dos interesses do "mandante".
A cláusula-mandato possui, assim, validade discutível, mesmo
frente ao direito comum, por permitir antecipadamente o exercício de
um direito para além do exigido pelo tipo de contrato assinado, sem
a devida fiscalização e, muitas vezes, para além dos parâmetros de
conduta segundo a boa-fé na execução dos contratos. No direito
tradicional o art. 115 do CC era utilizado para esclarecer o caráter
abusivo e potestativo da cláusula inserida tanto em contratos de
consumo, como entre profissionais.{304}
O direito brasileiro, porém, demorou a visualizar o abuso da
simples inclusão deste tipo de cláusula nos contratos de massa. Por
muito tempo o STF fazia distinção entre o "uso" do mandato (este
permitido) e o "abuso" do mandato (este considerado lesão de direito
e proibido),{305} posição que validava a previsão contratual de tais
cláusulas-mandato, proibindo apenas os abusos, que se tornassem
judiciais e pudessem ser provados em ações específicas. Tal posição
era insuficiente, pois obviamente contavam os fornecedores com a
passividade típica do contratante mais fraco economicamente, com
a demora das contendas judiciais, assim como com a necessidade
de prova do abuso. Mais fácil era prever a cláusula, instrumento mais
ágil para obter um título extrajudicial para a futura execução do
devedor inadimplente.
* (304) Assim, o voto do Min. Cláudio Santos, no REsp. 1.294, 3.ª
T., STJ, anterior
ao CDC, j. 12.12.89: "É certo não haver proibição explícita no direito
brasileiro. Entretanto, são condições defesas nos atos jurídicos as que
os
sujeitarem "ao arbítrio de uma das partes" (art. 115 do CC), o que
fatalmente ocorrerá se uma das partes for mandatária da outra para
reconhecer débitos e ajustar taxas de juros.
Por outro lado, não são desprezíveis as objurgações doutrinárias a essa
espécie de contrato, tanto no direito alienígena como no direito pátrio".
\ (305) Veja a lição de Cassio MC. Jr. Penteado, "Pensando sobre a
Cláusula-
Mandato: Uso e Abuso", in RT 691/260. (p. 509)
O CDC visualizou esta abusividade e sabendo da possibilidade
dos fornecedores de produtos e serviços conseguirem facilmente a
imposição deste tipo de cláusula no mercado brasileiro classificou-a,
expressamente, na lista do art. 51, como uma cláusula abusiva.
Efetivamente dispõe o art. 51, VIII do CDC que são nulas de pleno
direito as cláusulas que "imponham representante para concluir ou
realizar outro negócio jurídico pelo consumidor".{305}
Nesse sentido, consolidou-se a jurisprudência pátria com a Súmula
60 do STJ: "É nula a obrigação cambial assumida por procurador do
mutuário vinculado ao mutuante no exclusivo interesse deste".
Em verdade, as cláusulas-mandato desequilibram consideravel-
mente a relação contratual, pois asseguram uma dupla vantagem para
o credor, já em posição preponderante: este possui um direito creditício
contra o devedor e reserva-se o direito de representá-lo, mesmo no que
se refere ao comprometimento de seu patrimônio, garantindo o assen-
timento do devedor. A Súmula 60 do STJ pacificou a jurisprudência
pátria. Nesse sentido, igualmente a conclusão n. 11 do III Congresso
Brasileiro de Direito do Consumidor, em Brasília, versou sobre o tema
afirmando: "É abusiva, nos contratos relativos às relações de consumo,
cláusula que outorgue poderes ao mandatário, em conflito de interesses
com o mandante, ou que lhe seja lesivo".
A cláusula-mandato quebra a comutatividade do contrato, dese-
quilibra-o onerando em excesso um dos contraentes, sujeitando-o ao
arbítrio do outro (no que seria condição potestativa e ilícita), e
concedendo vantagem excessiva a um dos contratantes, vantagem
contrária a boa-fé na execução dos contratos, ao conceder um poder/
direito desacompanhado de qualquer reflexo obrigacional específico.
Concluímos, portanto, que a cláusula-mandato, nos contratos de
consumo, extrapola os limites do razoável e do necessário para a
cooperação entre os contratantes e é abusiva. A declaração de sua
nulidade pode ser requerida tanto com base na cláusula geral do art.
51, IV do CDC; uma vez que contrárias à boa-fé e asseguram vantagem
* (306) Como ensina a jurisprudência: "Não se diga que a emissão
da nota
promissória, vinculada que está ao contrato de abertura de crédito, não é
negócio dele diferente. Tanto se trata de outro negócio que para a sua
realização foi necessária a previsão contratual da outorga de mandato"
(Juiz
\José Roberto Lino Machado, Proc. 781/92, 23.ª Vara Cível, SRj, 18.5.92,
sentença publicada na íntegra in Direito do Consumidor 3/216 e ss.). (p.
510)
exagerada e desproporcional ao contratante que predispõe as cláusulas,
quanto com base no art. 51, VIII, do CDC, inciso específico e mais
utilizado pela jurisprudência.{307}

4. Cláusulas de declaração ficta, de informação fictícia, de consenso


ou de entrega ficta

O silêncio pode equivaler a uma declaração. O direito alemão


conhece os atos concludentes, o direito brasileiro conhece a tradição
ficta. Em matéria de proteção ao consumidor, porém, a vulnerabilidade
fática, jurídica e técnica deste sugere uma maior cautela no que se
refere a declarações fictas. Em princípio, o ficto "acordo tácito"
através
do silêncio do consumidor ou mesmo do pagamento da prestação
exigida a maior não deve prevalecer.{308}
Na prática, não só o fornecedor redige (ou pré-redige) o texto
contratual, como terá facilidade de impor uma entrega ficta, de induzir
a um silêncio tácito, a uma concordância pacífica e, por vezes,
prejudicial aos seus múltiplos consumidores. Assim as cláusulas
contratuais que prevêem que o silêncio do consumidor ou sua não
manifestação, sua inatividade, significarão a sua concordância com a
"renovação do contrato", com a "mudança da forma das prestações",
com a "mudança do dia do pagamento", com a "mudança ou sucessão
de planos de saúde", com a "rescisão contratual", com a "conclusão
do contrato", em caso de envio direto dos bens ao consumidor, com
a "informação" teoricamente prestada pelo fornecedor, com a "corre-
ção" da cobrança ou dos valores exigidos pelo fornecedor etc.
Por mais práticas e pragmáticas que tais cláusulas sejam e por
mais razoáveis os motivos econômicos dos fornecedores em utilizá-las,
tais cláusulas ligadas a declarações fictas ou presumidas dos consumi-
* (307) Veja RT 697/176.
(308) Assim decisão da 10.ª Câmara Cível do TJRJ, Ap. Civ.
1.025/97, j. 26.6.97,
Des. Walter Felipe D’Agostino, cuja ementa é: "Plano de Saúde -
Modificação do prazo do reajuste de semestral para mensal. Acordo tácito
não impede que as demais cláusulas prevaleçam. Se para o Autor se exige
a comprovação de seu alegado direito, feita esta, compete ao Réu
desconstituí-
la, não o fazendo obriga-se ao ressarcimento. A aceitação tácita
manifestada
pelo pagamento, sem objeção, não induz que se aceite pagamento indevido,
\porque a maior e fora das regras do contrato". (p. 511)
dores, impostas em contratos de consumo, colocam-se hoje sob a
sombra do CDC e o perigo de sua eventual abusividade ser decretada.
A lei alemã de 1976 já visualizava este perigo e incluiu tais
cláusulas na sua lista cinza, de cláusulas cuja ineficácia deve ser
\valorada caso a caso pelo Juiz (§ 10, n. 5). Na referida lei alemã, a
regra é que uma cláusula, segundo a qual se considera como emitida
ou não emitida uma declaração do consumidor (parceiro contratual que
não redigiu previamente o contrato, não-predisponente, na terminologia
alemã), no caso do consumidor praticar (ação) ou não praticar deter-
minado ato (omissão), será ineficaz, a não ser que: a) tenha sido
concedido ao consumidor (parceiro contratual) um prazo adequado para
emitir a declaração expressa; e b) o predisponente (fornecedor) se
obrigue a chamar especialmente a atenção do parceiro contratual, no
começo do prazo, para o significado previsto para o seu comportamento
(ação ou omissão).
No direito alemão, a ineficácia é a regra deste tipo de cláusula,
mas permite-se ao fornecedor provar que cumpriu com seu dever de
informação e que avisou (a tempo) o consumidor das conseqüências
de seu comportamento.
O CDC não conhece regra específica sobre as declarações e a
jurisprudência brasileira tem chegado a conclusões semelhantes distin-
guindo entre os vários casos. Se a cláusula se refere a uma "fictícia
informação" que deveria ser prestada pelo fornecedor, a jurisprudência
tende a relembrar o dever de informar previsto nos arts. 30 e 31 do
CDC, o novo direito do consumidor à informação adequada e clara (art.
6.º, III do CDC),{309} concluindo pela incidência do art. 51, I
(nulidade),
quando não simplesmente desconsidera a existência da previsão
contratual contra legem.{310}
* (309) Sobre a importância do novo direito de informação e seus
reflexos
constitucionais (ação para prestação de contas), veja decisão do 1.º
TASP, 4.ª
C., j. 2.6.93, rel. Juiz Otaviano Santos Lobo: "A circunstância de
cláusula
contratual ter declarado que caberá à administradora prestar informações
sobre o andamento do consórcio em assembléias mensais, não retira O
direito individual do quotista de pleitear judicialmente a prestação de
contas
da ré" (acórdão na integra, in RT 698/99).
(310) Sobre o inderrogável dever de informar ensina o Des.
relator João Loureiro
Ferreira (AI 592052054, 3.ª Câm. Civ., TJRS, j. 5.8.92): "A
obrigação de
bem explicar o plano de saúde é da empresa ofertante do plano,
cabendo- (p. 512)
Relembre-se que o dever anexo de informação é decisivo quando
o consumidor escolhe, por exemplo, qual o plano de saúde deverá
proteger sua família, se deseja uma cobertura hospitalar e de que tipo,
quais são as carências e as exclusões de cada tipo de plano etc. Aqui
as informações são fundamentais para a decisão do consumidor e não
\deve haver indução ao erro, qualquer dolo bonus, simulação tolerada
ou falha na informação por parte do fornecedor. No espírito do CDC
a informação ao consumidor deve ser real e verdadeira e não inverídica
ou ficta contratualmente.
Nesse sentido, também a Diretiva européia concluiu pela
abusividade das cláusulas que tenham por objeto ou efeito "fazer
constar de forma irrefragável a adesão do consumidor a cláusulas as
quais não tenha tido a oportunidade de tomar conhecimento real antes
da celebração do contrato".{311}
No caso de "revisão contratual" através de simples "comunicação"
ou circular entre os consumidores, autorizada por cláusula contratual,
a qual especifica que silêncio dos consumidores valerá como tácita
aceitação das novas condições contratuais, a jurisprudência brasileira
ainda não se manifestou de forma definitiva. Encontram-se decisões ora
recusando as modificações ficticiamente bilaterais prejudiciais aos
consumidores, ora aceitando-as com base na autonomia da vontade e
nos costumes do mercado. Particularmente, considero que tais cláusulas
são abusivas, por contrárias ao inciso XIII do art. 51 do CDC, pois
"autorizam o fornecedor a modificar" (na prática) unilateralmente "o
conteúdo do contrato ou a qualidade do contrato" (das prestações), após
a sua celebração.{312}
*lhe a obrigação inafastável de bem informar seus clientes efetivos ou
potenciais de todos os termos do contrato".
(311) Assim a Diretiva 93-13/CEE, que como diretiva minimal
trouxe a lista de
cláusulas abusivas como sugestão para os países que já não possuem tal
lista
em seu Anexo, 1, letra i; trad. nossa do original espanhol, pub. in
Diário
Oficial de las Comunidades Europeas, L. 95/33, de 21.4.93.
(312) Exemplo de cláusula abusiva, presente em contrato para uso
de linha de TV
a cabo, em Belo Horizonte, a qual sequer menciona a possibilidade do
consumidor não concordar com as alterações, forçando um consenso prévio
e ficto com o simples conhecimento: "12.2. A operadora poderá alterar,
modificar ou editar o presente instrumento contratual, através de comuni-
cados ou termos aditivos, sempre com o objetivo de aprimorá-lo, com
vistas
à melhoria das condições de funcionamento do aludido relacionamento, (p.
513)
Cláusula ainda comum nos contratos de consumo no Brasil é
aquela que prevê a ciência ficta do consumidor do conteúdo do contrato
ou das condições gerais a ele aplicáveis, ciência esta que na prática não
ocorre, pois o contrato ou as CONDGs estão registradas em algum
cartório no país. Tal cláusula afronta o novo direito de informação do
consumidor, pois segundo o art. 46 do CDC deve ser dada a oportu-
nidade ao consumidor conhecer o conteúdo do contrato, de entender
a extensão das obrigações que assume e a abrangência das obrigações
do fornecedor de produtos ou de serviços.
Cláusula baseada em consenso ficto é igualmente a conhecida
cláusula de "renovação automática", onde o período contratual prorro-
ga-se automaticamente, caso não haja manifestação em contrário do
consumidor ou de nenhuma das partes. Sobre a eventual abusividade
ou não desta cláusula restam muitas dúvidas.
Note-se que a renovação dos contratos de consumo por vezes têm
base legal e, geralmente, é do interesse do consumidor. Particularmente,
parece-me que o caráter abusivo desta cláusula adviria ou de sua
unilateralidade ou da forma (restritiva ou limitativa), ou da forma como
o exercício do direito de recusa do consumidor for regulado. Ao
consumidor (assinante de revistas, associado em clubes, participante de
um abono para teatros etc.) deve lhe ser dada ocasião de manifestar sua
vontade em contrário, através de avisos específicos ou, no mínimo
chamadas específicas, incluídas nas cobranças do novo período. A
*tomando-se a obediência a essas eventuais alterações, modificações ou
aditamentos, obrigatória a partir do momento que das mesmas, for dado
conhecimento ao usuário, através do Boletim de programação ou de
correspondência pessoal ao usuário". Veja também basilar decisão da 5.ª
Câm. Civ. do TJRS, Ap. Cív. 591106646, j. 1.10.92, rel. Des. Araken de
Assis, com a seguinte ementa:
"Previdência privada. Plano empresarial de reembolso de despesas médicO-
\hospitalares ("Dame", da Golden Cross) - Critério de reajuste de
prestações
- Aditivo ao contrato prevendo o reajuste pelo Bônus do Tesouro NaciOnal
(BTN). Majoração das prestações segundo a variação real do custo das
despesas médico-hospitalares - Descabimento. Enquanto vigorar a dispo-
sição contratual e o próprio contrato, de resto denunciável e resolúvel
pelo
interessado, não pode a parte majorar o valor das prestações mensais que
tocam ao parceiro consoante o índice de sua necessidade em lugar do
índice
do contrato. Hipótese de manifesta procedência da consignatória. Apelação
provida". (p. 514)
exemplo da lei alemã, a ratio legis seria evitar que a passividade do
consumidor possa ser usada contra este e resulte em prejuízo econô-
mico afastável com a devida e prévia informação.
Observa-se, porém, que muitas destas cláusulas, ao contrário,
procuram dificultar a atuação do consumidor, por exemplo, exigindo
que sua manifestação seja por "carta registrada" ou estabelecendo um
longo prazo anterior ao término do contrato e a renovação automática
(60 ou 45 dias impreterivelmente etc.) e aqui pode residir sua
abusividade,
valorada, no caso concreto e para aquele tipo contratual, como contrária
à cláusula geral do art. 51, IV do CDC.
Efetivamente, a nova Diretiva da Comunidade Européia, atual
União Européia, considera contrária à boa-fé exatamente este tipo de
\cláusula, no n. 1, letra h, do Anexo; afirmando a abusividade das
\cláusulas que tenham por objeto ou efeito: "h) Prorrogar automatica-
mente um contrato de duração determinada se o consumidor não se
manifesta em sentido contrário, quando se tenha fixado data-limite
demasiado distante para que o consumidor expresse sua vontade de não
prorrogá-lo".{313}
Cláusulas envolvendo declarações fictas são, porém, mais comuns
nos contratos bancários e envolvendo financiamentos, onde geralmente
a aceitação e correção dos dados e cobranças é presumida em caso de
não manifestação do cliente.
Segundo a experiência Européia em matéria de cartões de crédito,
o problema central deste tipo de cláusula contratual é que a declaração
ficta presumida pelo silêncio do consumidor assemelha-se a um
"reconhecimento de dívida".{314} Assim, se o consumidor utilizou seu
cartão de crédito e enviada a cobrança, não manifesta sua discordância
com o valor, em um determinado prazo (5 dias, 10 ou 25 dias após a
data do aviso ou do provável recebimento do aviso), o saldo ou a
quantia ali manifestada é presumida como aceita pelo consumidor, com
todos os efeitos legais e contratuais possíveis.
\ A Corte Federal Alemã baseou-se no referido § 10, 5, a) da Lei
\1976 para considerar tal cláusula ineficaz. De forma bastante
elucidativa
\apegou-se ao fato do cartão de crédito ser uma forma de pagamento
* (313) Tradução nossa, do original espanhol, publicado in Diário
Oficial de las
\Comunidades Europeas, L. 95/33, de 21.4.93.
(314) Assim Martinek, t. III, p. 68. (p. 515)
\utilizada em viagens, argumento utilizado pelas próprias empresas em
sua publicidade, logo, a fixação de um prazo fixo (no caso, 25 dias)
para todos os consumidores manifestarem seu descontentamento seria
contrário à boa-fé. A validade e eficácia das declarações fictas é a
exceção no sistema da lei de 1976, logo as empresas de cartão de
crédito, que por motivos de praticidade e interesse seu, quiserem dela
se utilizar em suas CONDGs devem prever exceções para os consu-
midores, por exemplo, em caso de viagem, e devem assegurar além de
\"farta" informação, além de "suficiente e razoável prazo de tempo".{315}
Na experiência brasileira, a fonte de abusividade detectada
concen-
tra-se mais na unilateralidade{216} da elaboração do documento de dívida,
e na sua eventual utilização em execuções,{317} prerrogativa contratual
considerada abusiva em geral, quanto mais quando imposta frente ao
consumidor, do que na imposição por contrato de uma aceitação ficta do
saldo devedor ou da dívida. A posição da jurisprudência brasileira é
louvável, mesmo se não utiliza-se diretamente do CDC, mas de seus
\* (315) Assim a decisão citada e comentada por Martinek, t. III,
p. 68, BGHZ
\91.221. A decisão de 17.5.84 afirma em sua ementa que: a) o risco sobre
a correção ou falsidade dos comprovantes de compra é da empresa de cartão
de crédito e não pode ser transferido para o consumidor; b) o possuidor
de
um cartão de crédito não é obrigado a conferir imediatamente quando da
chegada do saldo a sua correção, sendo suficiente que o faça quando da
chegada de uma longa viagem.
(316) Segundo afirma o Juiz relator Brandão Teixeira do TAMG (Ap.
121.416-
0, 5.ª Câm. Civ., j. 12.3.92, in RT 697/167): "A cláusula contratual pela
qual
a parte se compromete a aceitar como bons os extratos elaborados é
destituída de maior valor, pois não é possível reconhecer-se àquela
prerro-
gativa de constituir título executivo em seu próprio favor, disposição
\contratual deste jaez ofende o art. 115 do CC, 2.ª parte".
(317) Assim a ementa da citada decisão do TAMG, in RT 697/166:
"Contrato
de abertura de crédito - Cheque especial - Execução inadmissível - Valor
cobrado superior ao contratado - Irrelevância de estar acompanhado de
extrato de conta-corrente - Documento unilateralmente elaborado que não
pode ser qualificado como demonstrativo de dívida líquida e certa -
Declaração de voto. Não constitui título executivo exigível o contrato de
abertura de crédito, mormente se é executado valor superior ao nele
consignado, ainda que acompanhado de extrato da conta corrente,
unilateralmente elaborado, cujos lançamentos não espancam, por si SÓS,
incerteza do saldo executado" (Ap. 121.416-0, 5.ª C., j. 12.3.92, rel.
Juiz
Brandão Teixeira. (p. 516)
princípios. Já a interessante linha jurisprudencial alemã, bem demonstra
as exigências de uma fase de execução contratual (e formulação do
conteúdo contratual) conforme a boa-fé, pensando refletidamente nos
interesses (e possibilidades fáticas) do parceiro contratual.
Em matéria de cobranças de dívidas e correção de dados, a
jurisprudência brasileira distingue entre a atuação dos bancos e
financei-
ras e a atuação das empresas responsáveis pelos serviços públicos uti
singuli prestados à população. Quanto aos bancos a sensibilidade da
jurisprudência para a cobrança indevida é tal que, mesmo existindo
cláusula contratual prevendo a veracidade do débito lançado em conta-
corrente ou do saldo devedor e a reflexa concordância ficta do consumi-
dor, refaz o equilíbrio do contrato e aceita condenar a empresa bancária
a danos morais pela "conduta ilícita ofensiva ao direito subjetivo" do
indivíduo.{318} Quanto a atividade das empresas prestadoras de serviços
públicos e a cobrança das taxas relativas a serviços públicos, a
jurispru-
dência brasileira ainda reluta em utilizar o CDC, preferindo a saída de
direito administrativo e a presunção de veracidade do demandado pelo
prestador de serviço público, presunção que só cederá face a prova do
excesso ou a excepcionalidade da ocorrência, segundo "o senso co-
mum", ensejando a determinação da inversão do ônus da prova pelo juiz,
de forma a facilitar a prova da alegação do consumidor.{319}
Outro tema interessante e que insere neste contexto é o da
tradição ficta, em verdade um ato real, mas que pode ser previsto
* (318) Exemplo desta linha jurisprudencial é a decisão do TJPB,
onde o relator,
Des. Antônio Elias Queiroga, cita abundante jurisprudência do STF e TJSP,
decisão reproduzida in RT 696/185, com a seguinte ementa:
"Indenização - Dano moral - Débito indevido lançado em conta-corrente,
originando saldo devedor, com a transferência para o crédito em
liquidação
- Conduta ilícita ofensiva ao direito subjetivo da pessoa -
Desnecessidade
de reflexo material - Condenação mantida. O dano moral, causado por
conduta ilícita, é indenizável, como direito subjetivo da pessoa
ofendida,
ainda que não venha a ter reflexo de natureza patrimonial". (Ap.
92.002713-
8 - 2.ª C., j. 18.8.92, rel. Des. Antônio Elias de Queiroga).
(119) Bom exemplo desta linha jurisprudencial, encontra-se na
Rev. Julgados do
TARS 82/238, cuja ementa é a seguinte: "Consignação em pagamento -
\Excesso de consumo de água - Corsan - Presunção de regularidade do
registro hidrométrico que cede diante da excepcionalidade da ocorrência.
Em
uma residência modesta, com menos de 32 m2, e apenas três ligações, a
normalidade é o consumo em torno da tarifa mínima, como ocorrido nos (p.
517)
em cláusula contratual, fazendo prova de sua ocorrência. No direito
alemão tal cláusula inclui-se entre as abusivas a depender da
"valoração do juiz no caso concreto". O direito brasileiro está mais
acostumado à tradição ficta e considera este negócio como causal,
o que diminui o perigo desta cláusula, bastando geralmente uma
\interpretação pró-consumidor pelo juiz forte no art. 47 do CDC. De
qualquer maneira, trata-se também de uma cláusula "cinza" a merecer
a valoração do juiz no caso concreto, de forma a verificar se viola
ou não o mandamento de boa-fé e equilíbrio nos contratos de consumo
(cláusula geral do art. 51, IV do CDC).
Note-se que nem todàs as declarações fictas do consumidor ou seu
silêncio considerado como declarações são fonte de abusividade. Por
vezes, a própria lei utiliza-se desta técnica para presumir a vontade do
consumidor, assim o próprio CDC, em seu art. 49, concede ao consumi-
dor um prazo de 7 dias, com elástico termo inicial, e contrario sensu
presume que passado este prazo é vontade do consumidor ficar vinculado
ao contrato concluído fora do estabelecimento comercial. Trata-se,
portanto, de um tipo de cláusula ou de um expediente (a declaração ficta)
do fornecedor a ser valorado pelo juiz e cuja abusividade há de ser
determinada no caso concreto, conforme a redação exata da cláusula,
conforme o tipo de contrato e as expectativas que cria, conforme a
prática
comercial anexa a esta estipulação, conforme a interpretação pró-
consumidor a ser dada a este contrato.

5. Cláusulas atípicas de remuneração

Remuneração variável ou repetida, cláusulas de imposição de índi-


ces unilaterais de reajuste ou de juros acima do limite constitucional.
As cláusulas de remuneração (pagamento) dos serviços e dos
produtos são essenciais em uma economia capitalista, como a brasilei-
*meses imediatamente precedentes. Tendo o hidrômetro medido consumo 5
vezes maior que nos meses anteriores, impendia à fornecedora provar a
existência do alegado vazamento, negado pelo consumidor. Regra de expe-
riência segundo a qual o normal não se prova, sim o excepcional. Apelação
provida para liberar o autor em face do valor depositado correspondente à
tarifa mínima, em consonância com consumos verificados anteriormente"
(Ap. Cív. 191178151, 1.ª C., j. 24.3.92, rel. Juiz Juracy de Souza). (p.
518)
ra. Em determinadas circunstâncias, porém, as cláusulas envolvendo o
preço podem conter previsões tão variáveis, incertas, arbitrárias ou
potestativas, que podem ser consideradas abusivas, contrárias aos
princípios da boa-fé e da justiça contratual.
O direito tem extrema dificuldade de regular o preço, considerado
o elemento do contrato onde há maior liberdade da vontade,{320} onde
praticamente inexistem regras supletivas a esta manifestação de von-
tade, onde o expectro de interpretação do aplicador da lei é menor;
simplesmente porque aqui, no preço, na remuneração, encontra-se o
interesse maior que move ao contrato o fornecedor, especialmente
aquele que trabalha com crédito ao consumo e financiamentos em geral.
A nulidade de uma cláusula de preço significa, na prática, a "morte"
do contrato, salvo em caso de tabelamento legal, podendo as partes no
máximo optar pela rescisão do contrato.{321} Por isso mesmo, o CDC em
seu art. 6.º, V, excepciona este tipo de cláusula, como mencionamos
anteriormente, e opta pela possibilidade de "modificação" da cláusula
eventualmente onerosa em excesso,{322} autorizando a atuação sanadora
do juiz fora do sistema de nulidade absoluta das cláusulas abusivas
previsto no art. 51 do CDC.
* (320) Relembro aqui as lições de Roppo, p. 144, segundo o qual
mesmo a noção
de comutatividade é uma noção relativa, a depender da vontade das partes,
onde o direito só intervém em casos graves, em desequilíbrio flagrante,
de
lesão.
(321) Decisão do TJDF (DJ 10.12.92, II, p. 41.927, rel. Des.
Vasques Cruxen),
utilizando a teoria da imprevisão, face a mora do consumidor em virtude
dos aumentos e reajustes do índice do SINDUSCON, superior ao aumento
dos salários, bem demonstra o esforço da jurisprudência para fornecer
respostas justas a este problema diário, alcançando, no máximo, a
rescisão
sem perdas e danos para o consumidor.
(322) Interessante atuação da jurisprudência, simplesmente
impondo uma modi-
\ficação contratualmente permitida, encontra-se na decisão da 2.ª Câm.
Cív.
\do TJRS, de 15.4.92, Ap. Cív. 592022826, rel. Des. Talai Selistre, com a
seguinte ementa: "Plano de saúde. Não pode a seguradora negar-se à
modificação da cobertura médico-hospitalar, ainda que para diminuí-la,
bem
como as prestações mensais devidas pelo segurado desta prevista, a
faculdade no manual por ela fornecido. Devolução das diferenças em dobro
\(CDC, art. 42, parágrafo único) e devidamente corrigidas desde a data da
alteração pretendida. Apelo provido, em parte, tão-só quanto ao montante
da verba honorária". (p. 519)
A jurisprudência brasileira ainda é tímida em utilizar esta auto-
\rização legal de modificação das cláusulas referentes ao preço,{322A}
com
\raras excessões, {322A} preferindo, face a complexidade do tema,
solucio-
nar a lide com a decretação da nulidade ou da abusividade de cláusulas
acessórias, geralmente cláusulas acessórias de remuneração ou de
indexação, sem tocar no verdadeiro problema do equilíbrio financeiro
original do negócio.{323}
Quanto à eventual abusividade das cláusulas de remuneração e
cláusulas acessórias de remuneração, quatro categorias ou tipos de
problemas foram identificados pela jurisprudência brasileira nestes
primeiros anos de vigência do CDC: 1) as cláusulas de remuneração
* (322A) Verdadeiro leading case foi a condenação, com liminar, de
famosa Segu-
radora de Saúde, em ação civil pública movida pelo MP/RS, "a revisar
todos
os reajustes de contribuições impostos a seus filiados em curso no Estado
do Rio Grande do Sul, com observância das respectivas periodicidades.
Bem assim, a proceder tais revisões com a utilização do índice de
variação
do BTN no período de reajuste como base (ou índice de variação dos custos
dos serviços médico-hospitalares nos termos da lei e dos contratos) e a
\devolver os valores cobrados a maior, devidamente corrigidos..."
(decisum
da Sentença 25.7.94, 14.ª Vara Cível da Comarca de Porto Alegre. Proc.
01189343419, Juiz Demétrio Xavier Lopes Neto); note-se que o magistra-
do, evitando a discussão constitucional, não amparou-se no CDC, uma vez
\que os reajustes litigiosos eram de 1989, mesmo assim afirma, a lis.:
"Vista
a questão sobre a ótica do CDC, diversa não é a solução, observando-se
a norma e espírito ali insculpidos. É que aqui, repita-se, opera
validamente
como norma interpretativa - no mínimo".
(323) Em caso envolvendo contrato de leasing, no JEPC de Passo
Fundo, o
\Relator da Turma Recursal, Juiz Facchini Neto, assevera:
"Cumpre analisar, assim, se os encargos pactuados eram ou não devidos.
Analisando-se a questão sob este prisma, constata-se facilmente que houve
\excessos na cobrança dos encargos. De fato, o art. 52, § 1.º, do CDC,
estabelece que as multas de mora não poderão ser superiores a 10% do
valor
da prestação. Apenas juros moratórios de 1% ao mês podem ser acrescidos
à multa contratual. Fora disso, apenas a correção monetária pode ser
exigida. Examinando-se a planilha de pagamentos efetuados, percebe-se,
porém, que os encargos cobrados pela requerida foram muito além de tais
limites, pois para um atraso de 33 dias, por exemplo, a prestação chegou
a aumentar cerca de 60%, como ocorreu com o pagamento efetuado em
17.10.90 (planilha de lis., juntada pela R.) Isso representa muito mais
do
que a inflação do período, acrescida de juros de 1% e cláusula penal de
10%" (fls). (p. 520)
variável conforme a vontade do fornecedor, seja através da indicação
de vários índices ou indexadores econômicos, seja através da imposição
de "regimes especiais" não previamente informados; 2) as cláusulas que
permitem o somatório ou a repetição de remunerações, de juros sobre
juros, de um duplo pagamento pelo mesmo ato, cláusulas que estabe-
lecem um verdadeiro bis in idem remuneratório; 3) cláusulas de
imposição de índices unilaterais para o reajuste ou de correção
monetária desequilibradora do sinalagma inicial; 4) cláusulas de juros
acima do limite constitucional.
Note-se que a identificação destes problemas não significa,
porém,
a certeza da abusividade deste tipo de cláusulas, nem a formação de
uma linha de atuação unitária da jurisprudência. Ao contrário, a
jurisprudência encontra-se em plena formação, mesmo assim, uma vez
que o tema é de capital importância para a prática, passaremos a uma
análise de cada uma das hipóteses.
O primeiro grupo de cláusulas atípicas em matéria de remuneração
a ser identificado pela jurisprudência foi o das chamadas cláusulas de
remuneração variável, onde uma estipulação contratual permite ao
fornecedor, de forma direta ou indireta, a variação unilateral do preço.
Esta cláusula é considerada abusiva pelo CDC que conhece previsão
expressa na lista do art. 51, X.
Também ao direito tradicional (art. 115 do CC) repugna esta
possibilidade (de sem concordância do parceiro contratual) o fornecedor
reservar-se o privilégio contratual de modificar o preço.{324} O preço é
elemento essencial do contrato, de sua transparência e base primeira de
seu equilíbrio, modificar justamente este elemento de maneira unilateral
é arbitrário e, possivelmente, lesionário. O art. 1 .125 do CC prevê
mesmo
a nulidade de todo o contrato de compra e venda, quando se deixa do
arbítrio exclusivo de uma das partes a taxação do preço. O CDC, ao
contrário, identifica o mesmo foco de abusividade, de arbítrio neste
privilégio unilateral e desequilibrador, mas prevê a nulidade somente da
Cláusula que permite esta variação unilateral, subsistindo a cláusula de
preço original. O CDC segue assim seu ideal de conservação (sempre que
Possível) da relação contratual (art. 51, § 2.º, do CDC).
A abusividade deste tipo de cláusulas e a decretação de sua
nulidade, forte no art. 51 do CDC ou nas previsões do CC, não deveria
* (324) Veja, no mesmo sentido, Aguiar, Cláusulas, p. 21. (p. 521)
mais propor dificuldades para a jurisprudência. A capacidade, porém,
de disfarçar a unilateralidade da previsão de remuneração ou de sua
possibilidade de variação superou as expectativas em um mercado tão
móvel como o brasileiro e onde o fenômeno da inflação acaba por
convencer que a variabilidade dos elementos do contrato é - em
princípio - aceitável e mesmo necessária. Assim, por exemplo, quem
desconfiaria de uma cláusula onde vários índices de correção ou de
reajuste, ou índices de atualização monetária estão colocados lado a
lado, de forma alternativa, subsidiária ou por ordem de preferência,
onde menciona-se a "variação positiva" de um destes índices ou a
utilização de "qualquer outro índice", em caso de falta dos primeiros?
Da mesma maneira, quem temeria uma cláusula que estabeleça um
regime especial, um aumento do preço, da remuneração do fornecedor,
quando atingir certa idade, em contrato de seguro saúde ou outro seguro
em que o risco do evento é maior conforme a idade?
No primeiro caso, a doutrina é unânime no sentido da impossi-
bilidade de previsão contratual de índices alternativos de atualização
monetária ou correção à escolha do fornecedor ou com escolha
fictamente bilateral do fornecedor e do consumidor, por abusiva e
contrária a previsão do art. 51, X do CDC. Nesse sentido a conclusão
n. 2 do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em Brasília:
"Nas relações de consumo são abusivas as cláusulas que atribuem ao
fornecedor o poder de escolha entre múltiplos indexadores".{325}
Já a jurisprudência ocila, alguns Tribunais aceitam por vezes
índices "alternativos" fora do Sistema Financeiro da Habitação,{326}
guiados sem dúvida pela idéia que a "atualização monetária", e
portanto, a escolha de um índice ou outro, seria simples correção
monetária que nada acrescenta ao preço e não constitui um plus ou um
prejuízo possível ao consumidor.{327} Importante setor da jurisprudência
* (325) Note-se que, antes da vigência do CDC, alguns planos
econômicos previram
expressamente esta possibilidade de utilização alternativa de índices
(por
exemplo o chamado Plano Verão).
(326) Veja a decisão do STJ in REsp. 38.242-4-SP: "Compromisso de
compra e
venda de imóvel - Reajuste de prestações - Índice alternativo.
Consolidado
na jurisprudência do STJ o entendimento de que: "É lícito o pacto pelo
qual,
em caso de alienação do imóvel, não abrangido pelo Sistema Financeiro da
Habitação, se estabelecem índices alternativos de reajustes das
prestações".
(327) Sobre a correção monetária, exemplar, veja decisão do 1.º
TACiVSP
reproduzida in RT 679/119, ou da 3.ª T. do STJ, in Lex 48/231 e ss. (p.
522)
brasileira, porém, seguindo a experiência do homem comum de que os
índices nem sempre refletem a realidade inflacionária e nem todos
levam ao mesmo resultado final,{328} preferem afastar qualquer cláusula
que permita ao fornecedor, direta ou indiretamente, por exemplo
através da escolha do índice de correção do valor ou da taxa de
juros,{329}
a variação do preço e a modificação unilateral do contratado,{330} uma
vez que esta possibilidade de variação ou escolha unilateral do
fornecedor desequilibra as forças do contrato e quebra a paridade de
tratamento entre os contratantes.{331}
Nos contratos do Sistema Financeiro da Habitação muitas vezes
a divisão das cláusulas de remuneração em várias e diferentes cláusulas
no texto dos contratos acaba por permitir a variação do preço através
da variação unilateral do percentual de juros. Segundo a conclusão n.
5 do referido Congresso de Brasília tal cláusula também é abusiva.{332}
* (328) As diferenças ficam maiores no caso de planos de combate a
inflação, veja
a decisão do TARS, Rel. Juracy de Souza, j. 16.2.93, Ap. Cív. 192129526.
(329) Nesse sentido a decisão basilar do TARS, rel. Antonio Janyr
Dall’Agnol
Jr., j. 19.5.93, in RT 697/173 e ss., de cuja ementa retiro a passagem:
"Sendo
os juros o "preço" pago pelo consumidor, nula é a cláusula que preveja
alteração unilateral do percentual prévia e expressamente ajustado pelos
figurantes do negócio".
(330) Veja o citado leading case de extensão do CDC através do
art. 29, TARS,
rel. Paulo Heerdt, j. 24.10.92, Ap. Cív. 192188076, cuja ementa, em seu
final, tem o seguinte teor: "Cláusula que permite variação unilateral de
taxa
de juros é abusiva porque, nos termos do art. 51, X e XIII, possibilita
variação de preço e modificação unilateral dos termos contratados. Possi-
bilidade de controle judicial, visando estabelecer o equilíbrio
contratual,
reduzido o vigor do princípio pacta sunt servanda".
(331) Nesse sentido o leading case do TARS, Rel. Paulo Heerdt, j.
9.5.91, com
a seguinte ementa: "Contrato de leasing - Plano verão. Cabível a
consignatória
para discutir índice de reajuste, ainda que as leis do Plano Verão
(7.738/
89 e 7.774/89) tenham permitido a utilização de índice alternativo
previsto
em contrato, não pode o Judiciário chancelar a cláusula abusiva em
contrato,
que, por ser de adesão, fere claramente a paridade de tratamento entre
contratantes. Posição reiterada da jurisprudência, agora consagrada pela
Lei
de Defesa do Consumidor" (in Julgados TARS, 78/284-287).
(332) O original da conclusão é o seguinte: "5. É abusiva, nos
termos do art. 51,
X do CDC, a cláusula que permite ao mutuante a variação do percentual
de juros". Sobre a problemática específica dos contratos do SFH veja o
excelente artigo de Arnaldo Rizzardo, in Direito do Consumidor 9/67 e ss.
(p. 523)
A abusividade deste tipo de cláusula encontra-se em dois fatores
objetivos: sua unilateralidade e a falta de possibilidade de informação
precisa do consumidor (leia-se, transparência mínima da relação
contratual) e em dois fatores potenciais: o desequilíbrio contratual que
cria e o arbítrio de uma das partes sobre a outra, que permite.
Destaco aqui a insegurança criada por este grupo de cláusulas de
escolha unilateral e variação unilateral do fornecedor sob o contrato de
consumo, pois me parece ser a falta de transparência destas relações
um dos motivos da decretação de abusividade destas cláusulas pelo
CDC. Assim, também é abusiva a cláusula contratual que prevê a
imposição de um aumento das prestações pagas pelo consumidor, dos
juros ou de qualquer tipo de remuneração do fornecedor e não
especifica qual será este aumento, ou pelo menos em que bases
(percentuais, por exemplo) se dará este aumento ou esta passagem para
um regime especial. No caso dos seguros-saúde, os contratos geralmen-
te prevêem um aumento das contribuições quando a pessoa atinge
determinada idade (30, 40, 50 e 60 anos), aderindo o consumidor ao
contrato, sem saber ao certo o que este aumento representa, pois o
contrato não fixa percentuais ou limites para estes aumentos.{333}
Um segundo grupo de cláusulas identificadas pela jurisprudência
como abusivas ou potencialmente abusivas são as que permitem o
somatório ou a repetição de remunerações, de juros sobre juros, de um
duplo pagamento pelo mesmo ato, cláusulas que estabelecem um
verdadeiro bis in idem remuneratório.
Assim a jurisprudência está pacificada quanto a inacumulabilidade
da previsão contratual da comissão de permanência com a correção
monetária (Súmula STJ n. 30), pois ambas preenchem a mesma
função.{334} Mesmo assim os contratos bancários e de financiamento
ao consumidor incluem muitas destas cláusulas de bis in idem
remuneratório disfarçado sob vários nomes e taxas, cabendo ainda
ao consumidor demonstrar (ou em caso de inversão do ônus da prova,
alegar) a cumulação, que tais custos já estão embutidos nos juros,
\em outras taxas pagas ou na correção monetária. É indevida para
* (333) Veja neste sentido os acordos e ações propostas pela PGE e
PROCON/SP
ainda sub judice.
\ (334) Veja decisão do TJRS, in RJTJRS 146/191 e decisão do TARS,
in Jul.
\82/302, veja decisão do STJ no REsp. 5.380/RS. Segundo a Súmula 30
\STJ, a "comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláVeis
os consumidores a capitalização de juros. Esta é permitida só
excepcionalmente e entre comerciantes, como o próprio STJ fixa em
\sua Súmula n. 93. (p. 524)
\ Não só o sistema bancário conhece este tipo de cláusula, mas
também as famosas taxas de intermediação, que ainda estão presentes
em muitos contratos e na prática de imobiliárias,{335} tiveram sua
abusividade decretada e sua prática considerada contrária a boa-fé
justamente porque o futuro locatário paga um serviço que é contratado
(e pago) também pelo locador, recebendo a imobiliária duas vezes
pelo mesmo serviço.
Muito discutidas na prática são as cláusulas que impõem como
índices de reajuste ou de correção o índice da Federação ou do
Sindicato dos fornecedores, por exemplo, na construção o índice
\SINDUSCON; pois são considerados índices unilaterais{336} sua
impo-
\sição (prevalecendo contra índices oficiais) permitiria uma variação
indireta do preço ou pelo menos sua adaptação as necessidades (e
expectativas unilaterais) dos fornecedores e de seu setor econômico.{337}
Nesse sentido, a conclusão n. 7 do referido Congresso em Brasília: "É
abusiva e contrária ao sistema do CDC a cláusula que prevê o
reajustamento das prestações nos contratos de consumo por índices
setoriais dos fornecedores". Frise-se que abuso do direito aqui é
genérico e afeta tanto os consumidores como os outros contratantes,
em face da unilateralidade da fixação do índice, tanto que o STJ, com
base no art. 115 do CCBr. e após declarar em mais de 18 recursos
\especiais nula a cláusula que indexa o débito à variação do índice Anbid
* (335) Veja a ação movida pela PGE e PROCON/SP contra várias
administradoras
e imobiliárias em São Paulo, ainda sub judice.
(336) O próprio STJ denominou-o de "indexador da construção
civil" no REsp.
31.428-1, afirmando in Lex 48/254: "Evidenciando que a avença teve por
objeto imóvel construído afasta-se a aplicabilidade das normas que
estabele-
cem a incidência de correção monetária (índice da construção civil) sobre
os
insumos".
(337) Importante decisão do TJDF, publicada no DJ 10.12.92, II,
p. 41.927 aplica
a teoria da imprevisão "ante a impossibilidade do cumprimento das
obrigações por parte dos contratantes, por motivos alheios à vontade dos
mesmos, como é o caso dos aumentos baseados no índice editado pelo
SINDUSCON, que supera a inflação e os reajustes salariais, estabelecendo
o desequilíbrio" (rel. Des. Vasquez Cnixen). (p. 525)
(Associação Nacional dos Bancos de Investimento e Desenvolvimento),
sumulou tal orientação (Súmula STJ 176).{338}
Por fim, extremamente polêmicas são as cláusulas de juros acima
do limite constitucional de 12% presente no § 3.º do art. 192 da
Constituição Federal. Segundo parte da jurisprudência, especialmente
de 1.º grau de jurisdição e alguns Tribunais estaduais, o mencionado
artigo da Constituição Federal contém norma proibitória e auto-
aplicável, sem necessitar de qualquer complemento legislativo ou
definição legislativa do que sejam juros reais; logo, as cláusulas
contratuais que imponham juros reais mais elevados são ilícitas e
abusivas, violando previsão constitucional expressa.{339} Já outra parte
da
jurisprudência, seguindo a orientação do STF considera que o § 3.º do
art. 192 da CF que limitou a taxa de juros a 12% ao ano não seria auto-
aplicável, dependendo de lei complementar e, portanto, as cláusulas dos
contratos, especialmente dos contratos com instituições financeiras,
seriam válidas.{340}
Face a este impasse jurisprudencial, que por seu aspecto bastante
pragmático e político provavelmente só terminará quando a economia
brasileira estabilizar-se, resta-nos apenas declinar nossa opinião. Pare-
ce-nos que a força do limite de juros estabelecido no § 3.º do art. 192
da CF advém de seu sentido e finalidade, sua ratio é atuar, modificando
o mercado por uma aplicação imediata, pois nenhum efeito útil teria
em caso contrário. Uma interpretação literal e gramatical do próprio
texto constitucional também leva a esta conclusão, pois no § 3.º do art.
192 um sinal de ponto e vírgula divide claramente a afirmação (ou
princípio) inicial de limite e a segunda parte da frase, onde por fim se
menciona a necessidade de regulamentação. Basta apenas valorizar o
ponto e vírgula, que significa gramaticalmente um ponto, uma pausa,
se bem que mais flexível que o simples ponto, para afastar o adagio
da aplicação da expressão final a toda a frase. Note-se que a auto-
* (338) Súmula 176 do STJ: "É nula a cláusula contratual que
sujeita o devedor
\à taxa de juros divulgada pela ANBID/CETIP". Veja também Recursos
Especiais n. 60.678, 68.529, 56.154 e 92.868, todos oriundos do TARS.
(339) Veja as decisões do TARS, in: Julgados 79/201, 81/314,
81/384, 84/357,
veja igualmente a decisão sobre a inconveniência de uniformização da
jurisprudência do referido tribunal, in Julgados 84/395.
(340) Veja decisão do 1.º TACivSP, in RT 679/119 e decisão do
TARS, in Julgados
79/294. (p. 526)
aplicação da norma seria por demais salutar para o mercado, pois
tratam-se de juros verdadeiros ou reais, logo o plus.

6. Cláusulas de liberação do vínculo: Resolução, rescisão, denúncia,


renovação em curto prazo, distrato forçado em contratos de longa
duração

O sistema resolutório clássico tem como modelo os contratos


comutativos imediatos, como a compra e venda, onde as partes sabem
exatamente o que esperar como prestação e quanto. Inadimplente uma
das partes, a tendência da ciência do direito é autorizar a outra parte
a rescindir o contrato ou a denunciá-lo por graves motivos. Liberar os
contratantes e fazer retornar as coisas ao estado anterior, é o ideal do
sistema resolutório clássico. Trata-se de um direito formativo extintivo
dos mais básicos, apoiado na idéia que não se pode obrigar alguém a
manter vínculos contratuais que não mais lhe convêm, por culpa ou
\inadimplência do outro, ou a manter vínculos contratuais.{340A}
Na liberdade de contratar estaria íncita a liberdade de descontratar.
Descontratar sofrendo as conseqüências necessárias para a proteção do
outro parceiro ou, o caso de inadimplemento da outra parte, sem
conseqüências negativas, apenas uma volta ao status quo.
Ocorre que nem todas as relações contratuais modernas adaptam-
se mais a este modelo imediatista, sendo muitas delas relações de longa
duração e de prestações contínuas. Da mesma maneira, ganharam em
importância no mundo moderno os serviços, os fazeres úteis, onde a
almejada volta ao status quo reserva inúmeras dificuldades práticas,
assim também constituem muitos destes fazeres contratos aleatórios,
envolvendo a expectativa de proteção dos riscos da sociedade moderna,
a expectativa de segurança e conforto para o consumidor e sua família.
Nestes casos, inadaptado o sistema de liberdade de resolução porque
a retroatividade não tornará as coisas como eram já que o risco já
ocorreu, o tempo já passou, outra fase da vida está presente (por
exemplo, no contrato de seguro-saúde ou de aposentadoria privada), e
não é mais possível restituir as coisas no estado anterior. Liberar as
partes do vínculo contratual, acabar prematuramente com uma relação
* (340A) Sobre incumprimento contratual e rescisão, veja as obras
de Ruy Rosado
de Aguiar Jr. e Araken de Assis. (p. 527)
contratual, pode ser uma penalidade em si para a parte mais vulnerável
\da relação.{341}
O tema toca princípios basilares de nossa idéia contratual, espe-
cialmente o dogma da autonomia da vontade, do direito subjetivo de
liberar-se de um vínculo duradouro por nova manifestação de vontade,
e por outro lado, o mandamento de proteção da confiança despertada
por uma atuação no mercado, por uma áurea de segurança e perenitude.
A identificação da abusividade ou não da cláusula contratual que
permite esta desvinculação, esta liberação do vínculo, por incumprimento
ou por outros motivos, estabelecendo prazos e maneiras para a
denúncia, distrato ou rescisão é um dos temas mais polêmicos e
complexos do direito atual.
No direito comparado, observa-se uma reiterada intervenção do
poder estatal limitando a liberdade dos fornecedores de libertarem-se
\dos vínculos contratuais com consumidores, mesmo se inadimplentes.{342}
Já a declaração de abusividade destas cláusulas é geralmente deixada
\à valoração do judiciário caso a caso{343} ou prefere-se estabelecer em
lei ou regulamento os elementos (condições, prazos, notificações etc.)
que este tipo de cláusula deverá conter para sua validade e eficácia em
\uma determinada espécie de contratos.{344}
* (341) Sobre o efeito "sanção" do prematuro final da relação
contratual veja
\BRUCHNER/OTIT, p. 446.
\ (342) Assim, por exemplo, a lei alemã sobre crédito ao
consumidor (VerbrKrG),
de 17.12.90, em virtude da Diretiva da Comunidade Européia 87/102/CEE,
\a qual em seus § 13, Abs. 1 e § 12 permite excepcionalmente a resolução
\unilateral (=Rücktritt) por inadimplemento ou mora do consumidor, se o
fornecedor concede um prazo extra de 2 semanas para o pagamento
atrasado, informando das conseqüências e este prazo não surtiu efeito e
se
a mora é de 2 parcelas seguidas, que representam pelo menos 10% do
crédito ou 5%, se o crédito foi concedido com prazo de mais de 3 anos.
\ (343) Assim a lei alemã AGB-GcsetZ de 1976 sobre CQNDGs, em seu
§ 10, 3.
\ (344) Na Alemanha, a lei geral de 1976, AGB-Gesetz, excepciona
os contratos
de longa duração, pois uma lei especial sobre os contratos de seguro,
ainda
\da época de Bismarck, a "VVG - Gesetz über den Versicherungsvertrag",
de 30.5.80, contém normas detalhadas sobre a possibilidade e as condições
\de denúncia do contrato por ambas as partes (§ 8.º, resolução (§ 19),
rescisão
\unilateral por culpa do segurado (§ 24) e normas especiais (§ 30, 31)
para
\contratos novos. (p. 528)
No Brasil, também a jurisprudência começa a ser confrontada com
esta nova visão, já não mais absoluta da autonomia da vontade, do
direito (= poder) de liberar-se de um vínculo contratual. Para que o
contrato possa cumprir sua função social, para que possa efetivamente
ser um instrumento de segurança no mercado, sua interpretação não
pode desconhecer a existência de deveres anexos a esta relação
contratual, especialmente em se tratando de relações de longa duração,
os contratos cativos como aqui denominamos na parte 1 desta obra, ou
no caso de contratos aleatórios, como os de seguros.
Efetivamente, observando um contrato de longa duração, como o
contrato de previdência privada, de seguro-saúde, de prestação de
serviços educacionais em escolas ou universidades, verificamos que
estes contratos representam uma relação jurídica dinâmica, que "nasce
e desenvolve-se", vinculando durante anos, talvez décadas, um forne-
cedor de serviços, o organizador do plano, administrador da escola ou
seguradora, e um consumidor e seus dependentes (consumidores-
equiparados). A mencionada-visão da doutrina alemã, segundo a qual
a relação contratual é de um feixe de obrigações complexas e duradou-
ras, pode ser útil a nossa análise.
Se a relação jurídica de consumo é assim um verdadeiro processo,
o qual se desenvolve no tempo um processo social, um processo
jurídico, o contrato, visualizado dinamicamente, erradiando uma série
\de efeitos jurídicos (Rechtsfolgen) durante a sua realização, antes
mesmo dessa e após,{345} fazendo nascer direitos e deveres outros que
os resultantes da obrigação principal. Conclui-se, como afirmamos
anteriormente, que a relação de consumo contratual não envolve
somente a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação
de conduta. São os importantes deveres de atuação conforme a boa-fé
\e conforme o direito (Verhaltenspflichten), os quais nos obrigam a
todos, todos os dias, nas relações extracontratuais e muito mais, nas
relações contratuais duradouras.
Por exemplo, o dever anexo de lealdade, de cooperação, reflete-
se também na redação dos contratos, a qual é executada geralmente de
maneira unilateral e prévia pelo fornecedor. Segundo o novo paradigma
do CDC, o fornecedor está autorizado a utilizar o método da contratação
em massa, através de contratos de adesão, e a imposição de condições
\* (345) Larenz, Schr, p. 28. (p. 529)
gerais, mas deve redigir estes textos de forma clara e precisa (art. 54,
\§ 1.º) destacando as cláusulas que limitem direitos do consumidor.
Importante em nossa análise é constatar que, ex vi lege, se o
fornecedor de serviços utiliza esses métodos, sua liberdade de elaborar
cláusulas resolutórias ou análogas está limitada pelo disposto no art.
54, § 2.º do CDC, pelo qual estas cláusulas só serão permitidas (= não
abusivas) se "alternativas", "cabendo a escolha ao consumidor" e não
ao fornecedor de serviços. Ao assegurar a escolha ao consumidor, segue
o CDC a nova doutrina internacional que, em contratos "pós-moder-
nos", cativos, de longa duração, massificados e de grande importância
social, impede a rescisão, mesmo com causa pelo fornecedor, e
transfere a decisão para o consumidor, que pode optar pelo "aumento"
das prestações, pela sanção por seu descumprimento contratual, até
mesmo por alguma modificação{346} do plano para adaptá-los as novas
circunstâncias, mas optando, ao mesmo tempo, pela manutenção (e não
resolução) da relação jurídica de consumo.{347}
Reconhece-se hoje que o contrato de longa duração, de execução
sucessiva e protraída traz em si expectativas outras que os contratos de
execução imediata, baseiam-se mais na confiança, no convívio reite-
rado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos
serviços, pois como afirmamos, trazem implícita a expectativa de
mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade
nestes vários anos de relação contratual. A satisfação da finalidade
perseguida pelo consumidor (por exemplo, segurança na aposentadoria
ou efetiva assistência médica para si e sua família) depende da
continuação da relação jurídica, fonte de obrigações. A capacidade de
adaptação, de cooperação entre contratantes, de continuação da relação
contratual é básica.
* (346) Neste sentido basilar a decisão do TJRS citada
anteriormente e já aplicando
o CDC: "Plano de Saúde. Não pode a seguradora negar-se à modificação
de cobertura médico-hospitalar, ainda que para diminuí-la, bem como as
prestações mensais devidas pelo segurado, desta prevista faculdade no
manual por ela oferecido. Devolução das diferenças em dobro (CDC, art.
\42, parágrafo único) e devidamente corrigidas desde a data da alteração
\pretendida". (Ap. Cív. 592022826, 2.ª Câm. Civ., j. 15.4.92, rel. Des.
Talai
\Selistre). No caso, o segurado viu-se na contingência de pagar o
exigido,
por mais de um ano, ou perder o seguro-saúde, mesmo querendo modificar
seu seguro (e benefícios), face a dificuldades financeiras
supervenientes.
(347) Veja Ghersi, Contrato de Medicina Pré-paga, p. 121. (p.
530)
Dois valores entram aqui em conflito: a expectativa futura dos
consumidores na continuação dos vínculos que têm como finalidade
justamente protegê-los dos riscos futuros e a lógica regra da autonomia
da vontade, que ninguém continua vinculado a uma relação contratual
que não mais lhe convém. A solução deste aparente conflito e o
caminho do meio entre estes dois valores é o atual desafio da
jurisprudência.
Da prática brasileira podemos destacar, como exemplo apto a
demonstrar a necessidade desta nova visão, a chamada "cláusula de
vigência, renovação, reajuste e rescisão" por ambas as partes nos
contratos de seguro-saúde.{348} Escolhemos o exemplo dos contratos de
seguro-saúde pela sua importância prática no mercado brasileiro e face
ao crescente número de litígios que envolve. Tais cláusulas não eram
abusivas sob a ótica da análise tradicional dos contratos de trato
sucessivo, mas em virtude de sua utilização no mercado brasileiro para
acabar com planos de saúde não mais vantajosos ou para retirar da
clientela os consumidores que atingem idade mais avançada, está a
merecer uma análise mais aprofundada de sua nova "abusividade".
Na segunda edição deste livro, antes da introdução da lei espe-
cífica sobre seguros e planos de saúde, escrevemos: "O próprio
legislador brasileiro verificou a possibilidade de abuso na liberação do
vínculo em caso de seguros e tentou regular em lei especial estas
cláusulas. Assim o Dec.-lei 73/66, lei especial sobre seguros, em seu
art. 13, dispõe expressamente que as apólices (leia-se contratos e
posteriores alterações, comunicações etc.) "não poderão conter cláusula
que permita rescisão unilateral dos contratos de seguros ou por qualquer
* (348) Tais cláusulas vem assim formuladas: "12. Vigência,
renovação, reajuste e
rescisão da apólice - O período de vigência deste Seguro é de 24 meses,
contados da data de seu início, constante da apólice, a qual será
renovada,
automática e sucessivamente, a cada 12 meses, se não houver manifestação
em contrário de uma das partes, por escrito, até 30 dias antes do término
de cada período anual de vigência.
12.1 O reajuste monetário... 12.1.1 A periodicidade de
reajustes das mensa-
lidades é mensal. 12.1.2... 12.2 - Na ocasião dos reajustes serão
considerados,
ainda, para efeito de cálculo do prêmio, as mudanças das seguintes faixas
etárias do Segurado e/ou seus beneficiários dependentes até 35 anos: de
36
a 45 anos, de 46 a 55 anos, e de 56 a 65 anos. 12.2.1 Os segurados, a
partir
da idade de 66 anos, terão seus prêmios corrigidos anualmente por mudança
de idade, além do reajuste previsto nesta cláusula". (p. 531)
modo subtraia sua eficácia ou validade, além das situações previstas
em lei".
Procurou, assim, o legislador brasileiro evitar a aplicação da
cláusula resolutória tácita do art. 1 .092 do CC ou previsão de seme-
lhante poder de resolução em cláusula contratual, constituindo cláusula
resolutória expressa.
Constata-se, portanto, que o legislador, já em 1966, observara o
caráter especial das relações contratuais de longa duração envolvendo
seguros em geral, reconhecendo que os interesses, os objetivos, as
expectativas legítimas dos consumidores, que os levaram a vincular-se
e a pagar durante anos os prêmios dos seguros-saúde, poderiam vir a
ser frustradas se permitidas cláusulas resolutórias ou, como chama a
lei, cláusulas rescisórias unilaterais neste tipo de contrato.
O legislador utilizou talvez de maneira infeliz a expressão "res-
cisão unilateral", que pode ser interpretada de forma restritiva, mas
deixou clara a sua intenção (ratio) nas expressões finais do art. 13
(subtrair "sua validade e eficácia"). A doutrina brasileira já
estabeleceu
que o art. 1.092 do CC e normas semelhantes tratam do instituto da
resolução e não de rescisão contratual.{349}
A resolução, enquanto instituto específico, tem efeito extintivo
sobre a relação contratual. A resolução é um direito formativo, isto é,
um direito (leia-se, poder) destituído de pretensão, com efeito de
sujeitar mediata ou imediatamente o co-contratante ou terceiro ao
exercício deste poder (= direito subjetivo), sem nada poder argüir.{350}
Trata-se do mais forte dos "direitos formativos extintivos", fundado no
incumprimento da outra parte. A resolução ex lege do art. 1.092 do CC,
portanto, gira em torno de dois elementos: a existência de um contrato
bilateral unindo devedor e credor e um inadimplemento contratual
imputável ao devedor.{351}
O legislador de 1966 tentou afastar estas cláusulas resolutórias,
mas a verdade é que o jurista tradicional está acostumado a considerar
válidas e possíveis estas cláusulas extintivas, por exemplo, prevendo a
possibilidade do distrato futuro ou a possibilidade de resolução unila-
teral por inadimplemento do devedor. Tratam-se de cláusulas normal-
* (349) Assim ensina Assis, p. 11.
(350) Assim ensina Aguiar Jr., Extinção, p. 17.
(351) Assim ensina Assis, p. 43. (p. 532)
mente válidas em outros tipos de contratos, mas não nesses contratos
pós-modernos, massificados e cativos, de longa duração envolvendo
serviços considerados prioritários, como a segurança e a saúde do
consumidor e de sua família".
As observações continuam válidas, reforçadas inclusive pela nova
Lei 9.656/98, que em seu art. 13 prevê a renovação automática dos
contratos, estabelece um prazo mínimo de vigência e veda expressa-
mente "a suspensão do contrato e a denúncia unilateral, salvo por
fraude ou não pagamento da mensalidade por período superior a
sessenta dias, a cada ano de vigência do contrato" (art. 13, II, b, da
Lei 9.656/98); veda também "a denúncia unilateral durante a ocorrência
de internação do titular" (art. 13, II, c, da Lei 9.656/98).{352}
A cláusula geralmente menciona também o distrato futuro, que é
a rescisão bilateral, onde faticamente, porém, o desejado "comum
acordo" ou "consenso" pode ser imposto pelo fornecedor ou segura-
dora, face a sua posição contratual preponderante. Quando, por exem-
plo, o fornecedor envia correspondência ao consumidor comunicando
a mudança de planos, a extinção de um plano, o aumento nas
contribuições, a mudança do índice de cálculo e especifica claramente
que o consumidor deve assinar o comunicado para acabar (extinguir)
com o seu contrato anterior, sob pena de perder tudo o que pagou e
ter de enfrentar novas carências em novo plano de saúde de empresa
concorrente, ou ficar vinculado, automaticamente, a um novo plano, já
com novo contrato e sob as novas condições impostas unilateralmente
pelo fornecedor ou segurado, o "consenso" é só fictício.
Trata-se de um distrato, mas de um distrato contrário à boa-fé,
mesmo que contratualmente prevista esta possibilidade através de
cláusulas de "revogação", "modificação", "cancelamento", "distrato"
ou como quiserem chamar.
Tais cláusulas impostas em relações de seguro-saúde, cujo obje-
tivo é justamente alcançar alguma segurança para o futuro e manuten-
ção das promessas e condições contratualmente acertadas, é um poder
discricionário (ou melhor: formativo extintivo) excessivo, a colocar o
consumidor em uma desvantagem excessiva e contrária a boa-fé. Trata-
se, também, de fraude a lei, ao afastar a aplicação das normas do CDC
* (352) Veja decisão do TAPR sobre "nulidade da cláusula que
autoriza o cance-
lamento unilateral do contrato-seguro de vida", in RT 728/359. (p. 533)
que garantem a indisponibilidade dos novos direitos do consumidor, e
ao permitir a variação faticamente "unilateral" do conteúdo do contrato,
das prestações, do preço (art. 51, I, X, XI, XIII do CDC).
Assim, também as cláusulas de que possibilitam a resolução
unilateral por inadimplemento do devedor, no caso dos seguros-saúde,
trazem um novo potencial abusivo. Tais cláusulas trazem nomes
diversos (cláusulas de cancelamento por falta de pagamento, de não
renovação por descumprimento contratual etc.), como querendo evitar
que o magistrado recorde-se disposto no Dec.-lei 73/66 e Lei 9.656/
98. Tais cláusulas permitem faticamente o exercício de direito extintivo,
ao considerar que o inadimplemento do consumidor (atraso ou mora
por 30, 60, 90 dias e, em alguns contratos, qualquer atraso, ou mesmo
outra forma de inadimplemento dos deveres anexos) pode ser punido
com a extinção do vínculo contratual, quando existem outras formas
que não o exercício deste poder extintivo do vínculo, reservado
contratualmente (e arbitrariamente) ao fornecedor.{353}
Aplicável neste caso, para decretar a abusividade destas
cláusulas,
do exercício deste direito contratualmente previsto através de cláusula
contratual, é a norma geral do art. 51, IV do CDC. O § 1.º do art. 51,
referindo-se a concreção da norma geral do art. 51, IV, especifica que
na observação da vantagem exagerada, da abusividade in concreto das
cláusulas, deverá o magistrado ater-se justamente ao fato de tal cláusula
ofender ou não os princípios do sistema (por exemplo, os dos contratos
de seguro e seguro-saúde, regulados por leis especiais).
Note-se que o princípio da boa-fé, princípio orientador das
\relações de consumo segundo o CDC (art. 40, III),{354} apresenta dupla
* (353) Interessante reconhecimento da existência de deveres
anexos de lealdade e
cooperação e do efeito equivalente das cláusulas de renovação e de
rescisão,
\encontra-se em cláusulas usadas no mercado, "Capítulo XIV - Da Rescisão.
\Cláusula 31.ª - Além do caso previsto na Cláusula 28.ª (Da renovação), o
presente contrato será rescindido, de pleno direito, independentemente de
interpretação, notificação judicial ou extrajudicial se o contratante: a)
atrasar o
pagamento das mensalidades por mais de 120 dias; b) impedir ou dificultar
qualquer exame ou diligência necessária para ressalva dos direitos da
contrata-
da; c) omitir, de má-fé, informações ou tentar, por qualquer meio doloso
ou
fraudulento, obter vantagens ilícitas deste contrato; d) praticar
qualquer omis-
são, falsidade, inexatidão ou erro que influa na aceitação deste
\contrato".
(354) Veja por todos Aguiar, Direto do Consumidor, v. 14, p. 21 e
ss. (p. 534)
\função. Tem função criadora (pflichtenbegrundende Funktion), seja
\como fonte de novos deveres (Nebenpflichten), deveres de conduta
anexos aos deveres de prestação contratual, como o dever de informar,
de cuidado e de cooperação, seja como fonte de responsabilidade por
\ato lícito (Vertrauenshaftung), ao impor riscos profissionais novos e
indisponíveis. Assim, também possui o princípio da boa-fé uma função
\limitadora (Schranken-bzw, Kontrollfunktion), reduzindo a liberdade de
atuação dos parceiros contratuais ao definir algumas condutas e
cláusulas como abusivas, seja controlando a transferência dos riscos
profissionais e libertando o devedor em face da não razoabilidade de
\outra conduta (pflichenbefreinde Vertrauensunstãnde).{355} A primeira
dessas funções da boa-fé e a existência de deveres de cooperação e
lealdade entre os parceiros para a realização dos objetivos contratuais
devemos destacar aqui, pois nos contratos cativos de longa duração há
prevalente interesse do contratante mais fraco na manutenção do
vínculo.
A nova relevância do fator tempo/contraprestações nas relações
cativas de longa duração reflete-se na imposição de um novo patamar
de manutenção do vínculo. Certo é que não existem contratos eternos
e que repugna ao direito brasileiro contratos de seguro que não
prevejam o fim e o tempo de duração da cobertura de riscos (art. 1.449
do CCBr.), prevendo geralmente os contratos de seguros um prazo
determinado, mas renovado automaticamente por força de lei. Certo,
portanto, que esse novo patamar mínimo de manutenção do contrato
possui hoje fonte legal, a qual assegura novos direitos aos consumidores
e impõe novos deveres para os fornecedores desse ramo de serviços,
considerando abusivas práticas e cláusulas de rompimento antes con-
sideradas normais.
Esse é o espírito do art. 13 da lei especial de seguros, do
Decreto-
Lei 73/66, dos arts. 13 e 14 da lei especial de seguro-saúde, Lei 9.656/
98, que vedam cláusulas de rescisão unilateral ou cláusulas que por
qualquer outro modo subtraiam a validade e eficácia ou suspendam o
contrato de longa duração. O Código de Defesa do Consumidor, no art.
54, § 2.º, admite a cláusula resolutória, mas desde que alternativa,
cabendo a escolha ao consumidor. Também considera abusivas as
cláusulas que impliquem renúncia a esses novos direitos (art. 51, I,
\* (355) Veja por todos, Fikentscher, p. 130 e ss. (p. 535)
CDC), que transfiram a responsabilidade a terceiros (art. 51, III, CDC)
e aquelas que autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateral-
mente (art. 51, XI, CDC).
Da análise dos textos legais conclui-se que todos, sem exceção,
procuram o equilíbrio contratual através da manutenção do vínculo,
evitando-se o rompimento por vontade unilateral do fornecedor, por
impedir a própria consecução da finalidade do contrato, e privilegiando
soluções alternativas e consensuais, a escolha do consumidor e segundo
os princípios do equilíbrio e da boa-fé.
O Direito Comparado demonstrou que nos contratos de longa
duração a abusividade desta cláusula deve ser regulada por lei{356} e que
sua abusividade encontra direta relação com o princípio de boa-fé nas
relações, pois muitas vezes está mais na forma de seu exercício, do que
na sua simples previsão.{357} Tanto que o legislador alemão a incluiu
entre
\aquelas submetidas à "valoração do juiz" (§ 10, 3 da AGB-Gesetz de
\1976) quanto à sua ineficácia (Unwirksamkeit) e no caso dos seguros,
mesmo especificando o contrato causas graves para a resolução e
redigida a cláusula de forma clara e destacada, para não se tornar
exemplo de cláusula surpresa, fica sempre submetida ao especial
\controle da cláusula geral de boa-fé (§ 9.º, AGB-Gesetz de 1976).{358}
Observa-se nos contratos de seguro-saúde oferecidos no mer-
cado brasileiro também a presença das chamadas cláusulas de
\* (356) Assim a nova versão da lei alemã sobre contrato de seguro
(§ 8.º, III, VVG
\n. F.) modificou a lei sobre condições gerais dos seguros de
responsabilidade
\civil (§ 8.º, I, (3) ARB n. F.) e impôs novas condições para que o
segurador
possa "resolver" ou denunciar o contrato de longa duração, incluindo
inclusive o fato do segurador não estar oferecendo "novos planos" ou
seguros de longa duração semelhantes ao que pretende rescindir, caso em
que não pode ex lege exercitar este direito, mesmo que contratualmente
\previsto, veja detalhes em Günther Bauer, Die Rechtsprechung zu den
\Allgenseinen Bedingungenfur die Rechtsschut:versichei-ung (ARB) im Jahre
1992, in: NJW 1993, 1.302-1308.
(357) Assim uma decisão da Corte Federal Alemã, BGH 27.3.91,
considerando
\contrária à boa-fé (§ 9.º AGB-Gesetz) cláusula de resolução que previa
sua
possibilidade de utilização logo após a ocorrência do evento danoso
coberto
(e efetivamente, indenizado), acabou ordenando uma nova interpretação
\para a cláusula considerada antes lícita pelo § 19, II ARB e uma mudança
das normas legais; assim Bauer, ob. cit., p. 1.302.
(358) Assim ensinam Ulmer/Brandner/Hensen, p. 206, (Nr. 15). (p.
536)
cancelamento.{359} Tais cláusulas permitem o cancelamento "por
qualquer das partes", sem causa ou por determinadas causas (como
a "falta de pagamento" ou a "comprovação de má-fé" do consumidor
na "solicitação e/ou utilização de benefícios") e possuem o mesmo
efeito extintivo das cláusulas de rescisão unilateral e cláusulas
resolutórias expressas. Estas cláusulas de cancelamento permitem,
por exemplo, que um grupo hospitalar de grande capital lance um
novo "plano de saúde", com o objetivo especial de construir um
Hospital mais completo, eficiente e sofisticado, no qual os segurados
que aderissem ao plano e contribuíssem na construção poderiam
utilizá-lo. Construído o Hospital, funcionando este eficientemente,
o plano de saúde não era mais "conveniente" para o fornecedor e
foi cancelado, frustrando as expectativas, obstruindo a realização do
objetivo contratual dos consumidores.
Nota-se, portanto, que o direito, contratualmente assegurado ao
fornecedor, de poder cancelar um plano de saúde, cancelar um contrato,
isto é, extinguir uma relação contratual de seguro-saúde individualmen-
te ou em grupo, é abusivo, é contrário as regras mínimas de boa-fé e
de sobrevivência deste importante setor econômico e social. A
abusividade desta cláusula nos contratos pós-modernos não é ilidida
pelo simples fato de ser estabelecida de forma ficticiamente bilateral.
O consumidor, como especificamos, após pagar anos e anos, após
atingir determinada idade, após ligar-se e acostumar-se a determinada
seguradora ou empresa, raramente fará uso desse direito, pois seu
interesse é justamente de manutenção do vínculo, de segurança futura.
Este direito extintivo não deve ser permitido indistintamente ao fornece-
dor que atua neste campo econômico, pois é de seu risco profissional ter
que manter um plano de saúde que lançou no mercado, ter que manter
o vínculo contratual com o indivíduo que pagou contribuições durante
* (359) Estas cláusulas vem assim redigidas: "4. Cancelamento do
plano de
assistência médica. O contrato subscrito entre a seguradora e o
beneficiário
titular poderá ser cancelado em qualquer momento por qualquer das partes,
sem necessidade de se mencionar a causa, não cabendo qualquer indeni-
zação ou pagamento. A decisão de cancelamento do plano de assistência
médica, deverá ser comunicada por escrito por qualquer uma das partes.
(...)
O Plano de assistência médica será cancelado automaticamente na data em
que ocorrer qualquer das situações abaixo: a) falta de pagamento das
cotas
nas datas estabelecidas; b) comprovação de má-fé ou fraude referente a
solicitação e/ou utilização de benefícios". (p. 537)
anos para os seus serviços e talvez nem as tenha utilizado, devido a sua
boa saúde e pouca idade. O CDC já menciona que a escolha entre a
resolução (liberação do vínculo) e a indenização de sanção deve ser
exclusivamente do consumidor, nos contratos massificados (art. 54, §
2.º), quanto mais nos contratos de serviços socialmente importantes e
autorizados à iniciativa privada, como os de saúde.
As cláusulas de cancelamento (art. 51, IX, do CDC), mesmo que
bilaterais, permitem uma vantagem excessiva do fornecedor, o qual
embolsa durante anos a contraprestação dos consumidores e, depois,
libera-se da vinculação contratual, justamente quando estes mais
necessitavam da prestação contratual. Tais cláusulas de cancelamento,
mesmo que teoricamente bilaterais, são abusivas por ofensa ao art. 51,
IV e § 1.º, II do CDC e fraude ao espírito das normas especiais sobre
seguros e seguros-saúde.
Por fim, devemos mencionar as cláusulas que especificam a vigên-
\cia determinada dos contratos.{360} Estas cláusulas, em princípio
lícitas e
mesmo necessárias, em alguns casos, estão sendo utilizadas de forma
abusiva pelos fornecedores no Brasil. As cláusulas de vigência reduzida
(por exemplo: de 12 ou 24 meses), em contratos de seguro-saúde são por
vezes mais curta do que muitas carências, reduzindo o conteúdo do
contrato. Seu problema maior é estipularem um poder (= direito)
contratual de qualquer das partes renovar ou não o contrato, a cada prazo
de vigência, bastando para rescindir unilateralmente (denunciar, revo-
gar) o simples envio de comunicação 30 dias antes de vencido o prazo.
Como frisamos anteriormente, em se tratando de contratos pós-
modernos de serviços cada vez mais essenciais, destaca-se um fator
considerado até então metajurídico como cada vez mais relevante na
\solução dos conflitos contratuais do momento: a pressão (der
Zwang).{361}
* (360) Tais cláusulas vem assim redigidas: "Capítulo XII - da
vigência e
renovação. Cláusula 25.ª - Este comrato terá um período de vigência de 24
meses, a partir da data da aceitação da proposta de admissão. Cláusula
26.ª
- O presente contrato será renovado, automaticamente, pelo período de 24
meses, se não houver manifestação contrária por escrito de qualquer das
partes contratantes até 30 dias antes do seu vencimento, coincidindo,
porém,
a sua primeira renovação e as posteriores com o ano civil".
(361) Veja interessante decisão do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande
\do Sul, Ap. Civ. 593118870, 1.ª Câm. Civ., Rel. Sérgio Gischow Pereira,
j. 8.2.94, que, em caso de cessão de carteiras, reforça manutenção do
vínculo e usa a teoria da aparência para responsabilizar o antigo
fornecedor. (p. 538)
Encontrando-se um dos contraentes em posição vulnerável de pressi-
onado, de estruturalmente submisso, o exercício de determinados
direitos por parte do outro contratante profissional, em posição de
poder, pode ser um abuso do direito ou um ato contrário aos bons
costumes e à boa-fé exigida no tráfico jurídico.{362}
Em se tratando de relações contratuais cativas, parece-me impor-
tante destacar a nova relevância jurídica desse fator estrutural-social
de
pressão. Nesse tipo de contrato, o interesse legítimo do consumidor é
no sentido da continuidade da relação contratual. Interessa-lhe, via de
regra, a renovação contratual chegado o termo final do contrato (art.
13 da Lei 9.656/98) e, em princípio, que essa renovação se faça nos
mesmos termos e condições da apólice inicial. Já o interesse também
legítimo do fornecedor é lucrar com sua atividade, mas sua atuação
como co-contratante em relações de consumo está limitada pelo
mandamento de boa-fé nessas relações, relações contratuais concluídas
com um parceiro ex vi lege considerado vulnerável e tutelado de forma
especial.
Quanto ao interesse de continuidade da relação, dois aspectos
devem aqui ser destacados. Em primeiro lugar, note-se que a perda da
condição de segurado, sem culpa ou vontade própria, é nesse tipo de
contrato impeditiva da realização do verdadeiro objetivo contratual do
consumidor, pois suas expectativas legítimas não eram apenas de
conseguir cobertura de riscos no passado, enquanto talvez não neces-
sitasse de tratamento médico-hospitalar, mas de regra sua expectativa
legítima, nesse tipo de contrato, era conseguir cobertura desses riscos
de saúde no futuro, quando, já mais velho e menos "atrativo" para o
mercado, dele necessitasse.
Em segundo, devemos distinguir o caso dos dependentes, cuja
perda da condição de segurado-dependente pode ou não frustrar suas
expectativas. Segundo os contratos, dependente é aquele assim definido
pelas regras tributárias do imposto de renda, isto é, o cônjuge ou
companheiro, os filhos solteiros ou outros dependentes declarados
como tais. Em se tratando de idosos e de crianças, na condição de
dependentes de segurados, a perda dessa condição frustraria as expec-
tativas legítimas do segurado-consumidor, pois que contratou um
seguro-saúde familiar e a garantia a sua família foi retirada.
\* (362) Kótz/Europ~isches, Vertragsrecht, p. 200 e ss. (p. 539)
Note-se, por fim, que a diretiva européia sobre cláusulas
abusivas,
Diretiva 93/13, levou à modificação do Código Civil italiano, que em
\seu art. 1.469-bis presume abusivas uma série de cláusulas de término
de vínculo, em caso de contratos de adesão de longa duração, em que
o profissional as utilize para evitar a renovação automática ou evitar
a continuação da relação sem justa causa.
Em resumo, tal cláusula comum no Brasil era considerada lícita,
em princípio, nos contratos de longa duração, e estava sendo usada para
que os fornecedores pudessem retirar de sua clientela, por exemplo,
aqueles que mais necessitavam de cuidados médicos, aqueles que por
mais tempo contribuíram com o sistema, aqueles que maiores expec-
tativas tinham quanto à segurança e proteção dos eventos danosos à
saúde no futuro: os idosos.
A injustiça do exercício deste direito (= poder) contratual, o
abuso,
a contrariedade à boa-fé é flagrante e foi bem identificada pela evolução
jurisprudencial e legislativa.{363} Como afirmamos anteriormente,
utilizar
as novas normas do CDC a esses contratos pós-modernos, ao exercício
atual abusivo desses direitos contratualmente assegurados e preservar
os interesses e expectativas dos consumidores é imperativo para a
justiça, para a harmonia no mercado e para a preservação desta
atividade de prestação de serviços, envolvendo saúde, pela iniciativa
privada.
Recusar aplicação ao princípio da boa-fé nestes contratos é
contrariar a nova ordem pública constitucional e apostar no caos e na
insegurança jurídica para tão importante setor de nossa sociedade. A
nova abusividade destas cláusulas de extinção do vínculo nos contratos
massificados de longa duração, nos contratos cativos e autorizados,
como no aqui examinado exemplo dos serviços envolvendo saúde deve
ser decretada pela jurisprudência brasileira e a sua conseqüente nuli-
dade. Nulidade absoluta face a contrariedade ao princípio da boa-fé na
formação e execução dos contratos, princípio já conhecido pelo direito
brasileiro antes de 1990, mas hoje basilar no direito civil pátrio.
* (363) Assim também a tendência jurisprudencial, veja recente
decisão da 5.ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul onde ficou
estabelecida a abusividade da cláusula de vigência temporária dos
contratos
de seguro-saúde por violação às expectativas legítimas dos consumidores
(Art. 51, IV e § 1.º, inc. I, da Lei 8.078/90), Ap. Cív. 596230888, Rel.
Des.
Luiz Felipe Brasil Santos, j. 5.6.97, DJ 27.6.97. (p. 540)
Concluindo, as cláusulas que possibilitam a rescisão unilateral,
a
resolução unilateral por inadimplemento do devedor, o cancelamento,
a modificação ou a não renovação do contrato anualmente, o distrato
e outras que permitem a extinção do vínculo contratual, especialmente
no caso dos seguros-saúde e de assistência médica, trazem em si um
novo potencial abusivo. O legislador brasileiro tentou afastar, ainda que
timidamente, estas cláusulas, tradicionalmente consideradas válidas,
mas que faticamente permitem o exercício de direito (formativo)
extintivo por parte do fornecedor, mesmo que uma fictícia
"bilateralidade"
seja conseguida.
Aplicável neste caso, para decretar a abusividade destas
cláusulas,
do exercício deste direito contratualmente previsto através de cláusula
\contratual, é a norma geral do art. 51, IV c/c § 1.º do CDC. Espera-
se que a entrada em vigor da legislação especial quanto aos seguros
e planos de saúde e uma maior utilização do princípio da boa-fé nas
relações de consumo por força do CDC possam retirar do mercado
brasileiro definitivamente essas cláusulas.

7. Cláusulas-barreira

Outro caso que se localiza na zona cinza, entre o permitido e


proibido, entre o abusivo nas relações contratuais de consumo e o
simplesmente "prejudicial" ao consumidor são as cláusulas, muitas
vezes simples práticas comerciais, que aqui denominaremos cláusula-
"barreira". São cláusulas presentes em muitos contratos de longa
duração ou em contratos envolvendo financiamento que, ao estabele-
cerem as condições para o exercício dos direitos do consumidor ou para
o cumprimento dos deveres contratuais, principais ou anexos, do
consumidor ou do fornecedor, impõem tantas dificuldades e exigências,
que além de constituírem verdadeiras cláusulas-surpresa, podem ser
chamadas de "cláusulas-barreira" ou de impeditivas do exercício de
direitos e deveres contratuais.
Assim, por exemplo, quando o consumidor necessita adimplir a sua
obrigação e o fornecedor, seja através de disposição contratual, seja
através de uma prática comercial - prevista ou permitida pelo contrato
- dificulta o pagamento do consumidor, ao determinar que este só pode
ser executado em local especial ou em horas difíceis, ou somente após
autorizado por determinados papéis ou determinados servidores etc. A (p.
541)
"barreira" ou a tentativa de impedir a prestação pode voltar-se para a
prestação do próprio fornecedor, quando o contrato prevê que esta só será
"exigível" após determinadas e múltiplas autorizações, papéis, provas,
sem justificativa plausível, apenas para dificultar e desencorajar o
consumidor a fazer valer sua própria (e principal) pretensão. Ao impor
estas práticas comerciais ou estas cláusulas contratuais procura o forne-
cedor exonerar-se de seu dever anexo de cooperar durante a execução do
contrato, em outras palavras, exonerar-se de suas obrigações contratuais
acessórias, conforme a boa-fé. Cooperar, como afirmamos anteriormen-
te, é agir com lealdade, é não obstruir ou impedir, é pensar de maneira
refletida também nos interesses (legítimos) do parceiro contratual.{364}
Interessante caso de cláusula barreira foi identificado pela
juris-
prudência brasileira, onde cláusula de contrato de seguro-saúde previa
a reabertura das carências para caso de atraso de pagamento. No caso
em juízo, o consumidor estava internado em Hospital conveniado no
dia do pagamento e, por isso, deixou de pagar em dia, adimplindo,
porém, tão logo recebeu alta. A partir do dia do vencimento da parcela
não "paga", a seguradora negou-se a cobrir seus gastos médicos,
alegando que "terceiro" deveria ter pago em dia e que o doente deveria
ter se preocupado com o pagamento, mesmo estando operado. A
jurisprudência afastou a eficácia da cláusula com a utilização dos
princípios gerais do direito e reconheceu o direito do segurado-
hospitalizado e não reabertura da carência.{365}
Parece-nos importante repetir que, sob o novo paradigma do CDC,
as relações de consumo envolvem um dever anexo "de cooperação",
dever de colaborar durante a execução do contrato, conforme a boa-
fé objetiva.{366} Não se trata de impor uma nova obrigação ou um novo
* (364) Os doutrinadores franceses denominam este dever de
"obrigação de leal-
dade", de "fidelidade à execução", ao objetivo do contrato ("obrigation
de
loyauté" ou "fidelité d’execution"), veja detalhes em Mayer, ob. cit., p.
102;
veja exemplo jurisprudencial brasileiro in: RJTJRS 138/232 e ss.
(365) O rel. Des. Loureiro Ferreira afastou a incidência de tal
cláusula sob o
argumento de força maior e ausência de culpa do consumidor (Ap.
592088512, TJRS, 3.ª C., j. 30.9.92). Note-se que uma maior consciência
por parte do fornecedor de seu próprio dever de conduta conforme a boa-
fé, ou do dever contratual anexo de cooperação na execução das obrigações
poderia ter evitado a lide e a sucumbência.
\ (366) Com opinião contrária, Arnoldo Wald, nos Travaux de
l‘Association Henri
\Capitant, Rapport Brésilien, p. 262, afirma que o CDC, como lei
especial, (p. 542)
fazer a alguém, sem base legal (o que seria contrário ao art. 5.º, II da
CF/88), mas de uma leitura mais ampla dos deveres inerentes ao
contrato, deveres íncitos à relação contratual normal, dever agora
imposto por lei. Em verdade, uma maior consciência da existência e
exigibilidade destes anexos pode evitar lides a facilitar a prática
diária
dos novos direitos do consumidor.{367}
A doutrina francesa chega a afirmar o nascimento de um novo
espírito de colaboração, que supera a mera tolerância e passa a exigir
atos concretos de colaboração ou pelo menos atos de não obstrução dos
parceiros contratuais.{368}
A cláusula-barreira que permite exonerar-se de um dever de boa-fé
é contrária à norma do art. 51, IV do CDC, pois desequilibra substancial-
mente a relação contratual entre o fornecedor e o consumidor. O
desequilíbrio, a abusividade de referida cláusula advém do fato do
contrato entre as partes tornar-se um instrumento jurídico a impedir a
colaboração (normal e desejável) entre os contratantes, instrumento a
autorizar a própria violação do dever anexo imposto imperativamente.{369}
*protegeria apenas os "consumidores de boa-fé". A afirmação não é falsa,
mas transforma o princípio de boa-fé em norma de boa-fé subjetiva,
contrariamente ao que afirma o art. 4.º, III do próprio CDC, diminuindo o
seu potencial de utilização. O próprio autor, porém, afirma que no
direito
brasileiro "a noção de boa-fé constitui, em virtude da lei civil e
comercial,
uma regra de interpretação dos contratos" (p. 262, trad. nossa).
(367) Em seu famoso estudo sobre o combate às cláusulas abusivas
Hélene Bricks
\já afirmava: "Toda proteção é insuficiente quando sua mise en oeuvre
necessita de uma ação na justiça", Bricks, p. 81.
\ (368) Nesse sentido a excelente exposição de Picod, p. 104, o
qual se bem
direcione seu estudo para os contratos entre os comerciantes, chega a
afirmar que o dever de lealdade (leia-se boa-fé objetiva) é a expressão
de
uma nova e mais elevada solidariedade entre as partes.
(369) Os deveres de conduta conforme a boa-fé, de colaboração
como estamos
aqui denominando, não são disponíveis seja por previsão contratual
(geral-
mente nas CONDGs) ou por prática costumeira. Nesse sentido, veja decisão
da 6.ª Câm. Civ. do TARS, j. 19.12.91, Rel. Juiz Moacir Adiers, in
Julgados
81/291, onde se lê na ementa: "Sendo o cheque emitido por terceiro contra
o Banco no qual mantém conta corrente, não é dado a este recusar-se ao
seu pagamento direto ao portador beneficiário e a compeli-lo ao seu
depósito em conta corrente que este mantém com a instituição bancária da
qual é devedor, para fins de compensar com o crédito que este tem para
(p. 543)
Se o princípio da boa-fé objetiva, se os deveres anexos às
relações
contratuais foram positivados e aceitos pelo CDC, não pode o direito
permitir que seja disponíveis, derrogáveis por simples determinação de
vontade das partes, ou nenhum efeito prático terão. Mais do que
abusiva, em verdade, a cláusula que contradiz um dever imperativo
seria ilícita, contrária à nova ordem jurídica. Como tal classificação
conhecida no direito francês não foi utilizada pelo legislador
brasileiro,
cabe incluí-la como abusiva ou nula.{370}
Tal linha de pensamento ampara-se, sem dúvida, em uma valoração
do intérprete; valoração que aparecerá em uma análise casuística dos
contratos, pois somente se o fornecedor fizer valer tais privilégios
contratuais é que o desequilíbrio aparecerá. Uma vez, porém, utilizadas
tais cláusulas barreira, poderão estas ter sua nulidade decretada pelo
juiz com base na cláusula geral do art. 51, IV, do CDC.
\ Já no direito tradicional as figuras da exceptio dou e da
exceptio
non adimplenti contractus reforçam a existência de um dever de
lealdade e cooperação a ser cumprido pelo fornecedor ou pelo consu-
midor, evitando inviabilizar ou dificultar a atuação do outro
contratante,
quando este tenta cumprir com suas obrigações contratuais e preser-
vando o equilíbrio e as expectativas legítimas de ambas as partes.
Exemplo de cláusula-barreira que foi identificado na jurisprudên-
cia européia e agora encontra-se positivado na lista de cláusulas
\abusivas do anexo da Diretiva 93/13/CEE, 1, letra o, é aquela que obriga
o consumidor a cumprir primeiro com todas as suas obrigações, mesmo
*com o portador do cheque. Na emissão de cheque para ser descontado em
Banco com o qual o emitente mantém conta corrente bancária, a devedora
é quem emite o cheque, e não o Banco, que atua como mero mandatário.
Não pode ele, por isso, recusar-se ao pagamento quando existentes fundos
e muito menos obrigar o beneficiário do cheque a fazer o depósito do
mesmo
em conta corrente, com vistas a operar compensação. Não sendo o Banco
devedor da quantia do cheque emitido pela correntista, falta o primeiro
dos
requisitos da compensação: a identidade entre devedor e credora. Apelação
improvida".
(370) Interessante notar que também os belgas, veja a obra
coordenada por
Bourgoignie, Droit des consommateurs, p. 61, vêm a necessidade do juiz
decretar a nulidade de todas as cláusulas contrárias a leis imperativas
ou
de ordem pública, por simples argumento de clareza na interpretação dos
contratos. Também o art. 116 sanciona as condições juridicamente impos-
síveis no plano da validade e não nos planos da existência ou ineficácia.
(p. 544)
que o fornecedor não tenha cumprido as suas. Cláusula de uma
simplicidade total, na verdade contém certa abusividade ao impor ao
\consumidor um "dever de pré-prestação total" (Vorleistungspflicht,
como denominam os doutrinadores alemães), o que significa a perda
da exceção de contrato não cumprido e, nos casos envolvendo serviços
públicos, pode levar o consumidor a desistir de reclamar o que imagina
ser seu direito.
A prática do fornecedor, portanto, viola um direito do
consumidor,
viola um dever seu de cooperar durante a execução do contrato. A
pergunta que fica, então, é sobre a abusividade da cláusula que assegura
a contratualidade desta prática.{371}
Outro exemplo de cláusula-barreira que foi identificado pela
jurisprudência européia refere-se a chamada cláusula de "reclamação
da vítima", presente em muitos contratos de seguros de responsabili-
dade, segundo o qual somente serão indenizados os danos do evento
danoso previstos no contrato, se a vítima (leia-se, terceiro) fizer
frente
a seguradora determinado requerimento até determinado prazo ou
entrar na justiça contra o responsável pelo dano (leia-se,
segurado).{372}
Se deve o fornecedor, igualmente, abster-se de usar ou impor
expedientes desnecessários ou maliciosos, que dificultem o acesso do
consumidor aos seus direitos ou inviabilizem que a prestação seja
devida,{373} como por exemplo, exigir uma grande série de autorizações,
* (371) Em caso envolvendo cláusula que proibia a locação em
promessa de compra
e venda no SFH, a 7.ª Câm. Civ. do TARS (Ap. Civ. 192001154, j. 12.2.92,
Rel. Araken de Assis) afirmou: "Em princípio, tal cláusula, além de
válida,
é eficaz. Dependerá do fato concreto alegado para preenchê-la, principal-
mente na sua face axiológica, a procedência ou não da demanda resolutória
nele calcada. Hipótese em que ocorreu locação pura e simples, sem Outro
motivo senão a exploração imobiliária do imóvel, o que repugna à
finalidade
social da moradia. Cabimento da resolução...".
(372) O acórdão da Corte de Cassação francesa é de 19.12.90 e
considerou nula
a cláusula que limita a garantia do seguro de responsabilidade somente
aos
fatos danosos que deram lugar a uma "reclamação da vítima" durante o
período de efeito do contrato; veja detalhes no artigo da Professora de
Lyon,
\Lambert-Faivre, Yvonne, "La durée de la garantie dans les assurances de
\responsabilité: fona’ement et portée de la nullité des clauses"
réclamation
\de la victirne, Recueil Dalloz Sirey, 1992, Crh. III, p. 13, 9.1.92 n.
2.
\ (373) A exceptio dou é lembrada por Wieacker, ob. cit., p. 59.
(p. 545)
documentos, solicitações só retiráveis em determinados locais, em
determinada hora e por decisão arbitrária do próprio fornecedor, exigir
comunicações imediatas ou em curto espaço de tempo em matérias que
envolvem a integridade física, psíquica da pessoa e seus familiares, e
ainda mais, exigindo esta atuação contratual sob pena de perda dos
direitos contratuais, como imposição de novas carências; se este é o
novo dever do fornecedor, as cláusulas que asseguram este direito ao
fornecedor devem ser neutralizadas e consideradas abusivas pelo
Judiciário? Trata-se de caso de abuso do direito de livre estipulação,
de livre contratação ou de caso de mal escolha, de simples prejuízo ou
incômodo ao consumidor?
A prudência dos juÍzes brasileiros (e mesmo dos fornecedores, que
raras vezes se apegam a tais cláusulas... como que "perdoando" os
enganos e reclamos do consumidor) tem optado por desconsiderar a
incidência de tais cláusulas, em uma fática ineficácia, mais do que
decretar-lhes claramente a nulidade com base no art. 51, IV do CDC.
Esta declarada "ineficácia" para o caso concreto soluciona o problema
do consumidor individual, mas não tem o desejado efeito multiplicador
ou preventivo, de forma a desestimular que tais cláusulas seja incluídas
nos contratos ou que a prática dos fornecedores mude. Uma maior
consciência da aplicabilidade dos deveres anexos, inclusive do de
cooperação, traria maior harmonia ao mercado.
Parece-nos que a abusividade deste tipo de cláusula localiza-se
no
seu poder de prever contratualmente a possibilidade do fornecedor
"inadimplir parcialmente" o contrato, frustrar seu fim, frustrar as
expectativas e o fim almejado pelo consumidor (seu parceiro contratual),
sem nada pagar. Localiza-se igualmente na capacidade de trazer
prejuízos ao consumidor, inclusive financeiros, senão meramente morais,
desequilibrando o contrato, sua justiça de deveres e direitos, sem que
nenhuma compensação (nem que fosse no preço do serviço) lhe seja
assegurada em troca. Estas dificuldades excessivas, previstas ou auto-
rizadas contratualmente, impedem ou dificultam o cumprimento da
prestação principal a contento e significam, portanto, o descumprimento
das obrigações acessórias oriundas do contrato e do dever de conduta
segundo a boa-fé. E descumprir o dever de cooperação, de lealdade,
significa inadimplir o contrato, mesmo que parcialmente.
Neste sentido, a lição do rel. Des. Ivo Gabriel da Cunha (Ap.
Cív.
5920110771, 2.ª C. Civ., TJRS, j. 25.3.92) sobre a interpretação pró- (p.
546)
consumidor dos deveres principais e anexos implícitos nas relações de
consumo: "Seguro - Contrato bilateral. A bilateralidade impede que ao
simples adimplemento ruim (defeituoso) da obrigação do segurado se
oponha o descumprimento da obrigação essencial da seguradora. O
recebimento do prêmio em parcelas de amortização monetariamente
corrigidas, sem ressalvas, torna insignificante o prejuízo resultante do
atraso no seu pagamento. Abusividade da cláusula contratual que
institui carência de 60 dias na cobertura quando de atraso superior a
30 dias no pagamento do prêmio, em tais condições. Contrato de adesão
que não pode ser interpretado em desfavor do aderente. Sentença
confirmada".
Por fim, mencione-se que as aqui denominadas "cláusula-barrei-
ra" apresentam-se também como cláusulas limitativas dos direitos dos
consumidores e devem seguir o mesmo regime das cláusulas limitativas
da responsabilidade do fornecedor. Assim, por exemplo, a cláusula que
impõe uma forma especial para o exercício dos direitos do consumidor,
forma não prevista em lei, é limitativa da responsabilidade do forne-
cedor, pois este teoricamente só responderá se o consumidor seguir
exatamente a forma prevista no texto contratual. Também a cláusula
encurtando os prazos para reclamar ou impondo que a reclamação
teoricamente "válida" seja feita somente em um local ou de uma forma
são limitativas dos direitos dos consumidores assegurados no CDC e
tentam limitar a responsabilidade do fornecedor naquela relação
contratual especial. Uma cláusula estabelecendo um termo suspensivo
da obrigação de indenizar, por exemplo, ou impondo uma determinada
relação de causalidade entre o não-cumprimento e os danos ressarcíveis,
são cláusulas limitativas{374} dos direitos do consumidor e verdadeiras
cláusulas-barreira de validade discutível frente ao disposto no art. 51,
inciso I do CDC e à cláusula geral de boa-fé do art. 51, IV do CDC.
Cabe frisar nesta nova edição que as cláusulas-barreiras
multipli-
caram-se no mercado brasileiro, uma vez que servem agora para
"dificultar" a realização dos direitos assegurados ao consumidor por lei,
quase como se seu uso pudesse "fraudar" ou dificultar a eficácia prática
da lei imperativa. A barreira erguida pelas novas cláusulas não é mais
direta, isto é, não mais nega o direito em si ou impede sua realização,
mas indireta, dificultando o exercício desse direito ou o modo de prestar
* (374) Estes exemplos de cláusulas Limitativas da
responsabilidade foram retirados
da obra exaustiva de Ana Prata, pp. 90 e 102. (p. 547)
do fornecedor. Por exemplo, o consumidor tem direito à devolução do
que pagou como prestação de seu consórcio. Porém, ao retirar-se do
grupo (art. 53 do CDC), as novas cláusulas contratuais dificultarão
tanto essa devolução, prolongarão de tal maneira esse prestar no tempo,
de forma que o recebimento retardado dela redundará em prejuízo claro
ao consumidor.{375} Outro exemplo: as cláusulas de aumentos das
mensalidades para o consumidor que alcança determinada idade. Se a
Lei 9.656/98 as proíbe aos 60 anos (art. 15, parágrafo único, da lei
especial), é fato hoje que os aumentos significativos de preços dos
seguros e planos de saúde ocorrem aos 50-55 anos, não importanto aí
o tempo de contribuição do indivíduo. Esse aumento será abusivo, se
constituir, como geralmente ocorre, uma barreira à manutenção do
consumidor no sistema. Assim, apesar de a lei especial autorizar tais
mudanças de faixa (art. 15, caput, Lei 9.656/98), o CDC proíbe a
aplicação da cláusula, ex vi do art. 51, IV, § 1.º do CDC, uma vez que
é utilizada para tentar dificultar que o consumidor mais idoso continue
vinculado ao plano ou seguradora, agora em que, se presume, já não
é mais tão saudável.

1.3 Controle judicial dos contratos de consumo

O projeto de CDC aprovado pelo Congresso brasileiro previa um


controle prévio administrativo dos contratos de adesão e das cláusulas
contratuais gerais, a ser exercido pelo Ministério Público, e um controle
judicial a posteriori em relação a todos os contratos de consumo. O
Presidente da República, porém, vetou a previsão de controle adminis-
trativo.
O CDC inova ao criar, em seu art. 51, § 4.º, um controle judicial
em abstrato. Segundo esta norma o Ministério Público é o único
legitimado para propor essa ação de controle abstrato dos contratos
* (375) Veja exemplos em matéria de consórcios de automóveis, em
acórdão
comentado por Nunes, p. 209. O 1.º TASP, citando abundante jurisprudên-
cia neste sentido, considerou abusiva a cláusula que posterga a
restituição
em 60 dias após a distribuição do último crédito do grupo. Veja também
\decisões na RT 696/134, RT 725/250. Já na Ap. Civ. 661494-6, Opice Blum,
j. 30.1.96, o 1.º TASP considerou abusiva a cláusula que posterga por 30
dias, após o fim do grupo, a devolução, assim como cláusula que impõe
"taxa de administração" de 50% do valor pago. (p. 548)
oferecidos no mercado, a pedido do consumidor ou a pedido de alguma
entidade que o represente.{376}
Note-se que o projeto original do CDC continha normas (art. 51,
§ 3.º e art. 54, § 5.º) prevendo a criação de um controle administrativo
geral das cláusulas pré-elaboradas unilateralmente, a ser exercido pelo
Ministério Público e cuja decisão teria caráter geral.{377} Tais normas,
porém, foram objeto de veto pelo Presidente da República, de maneira
que a versão do CDC positivada em lei somente autoriza falarmos de
um controle judicial dos contratos de consumo.

a) Controle formal e controle do conteúdo dos contratos - O CDC


escolheu, no art. 51, a nulidade absoluta{378} como sanção para as
cláusulas abusivas, deixando claro o caráter destas cláusulas como
gravemente ofensivas ao novo espírito social do direito brasileiro.
Uma vez que a nulidade absoluta deverá ser decretada ex officio
pelo Poder Judiciário, cria o CDC, na prática, um novo controle
incidente do conteúdo e da eqüidade de todos os contratos de consumo
submetidos à apreciação do Judiciário brasileiro. Um controle direto
\também é possível, segundo os arts. 80 e 83, através de uma ação de
nulidade da cláusula. O CDC institui, portanto, um duplo controle
judicial, tanto formal quanto do conteúdo dos contratos de consumo.
O juiz examinará, inicialmente, a manifestação de vontade do consu-
midor, verificando se foi respeitado o seu novo direito de informação
sobre o conteúdo das obrigações que está assumindo (art. 46), sob pena
de declarar o contrato como não existente; verificará igualmente se
houve exercício do novo direito de desistência, assegurado ao consu-
midor pelo art. 49, no prazo de 7 dias, nos casos de contratos de compra
* (376) Veja os leading cases REsp. 95.993-MT, Min. Sálvio de
Figueiredo
Teixeira, j. 10.12.96; REsp. 89.646-PR, Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira,
j. 10.12.96; REsp. 34.155-MG, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
14.10.96 e REsp. 94.810-MG, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 17.6.97.
\ (377) Sobre a legitimidade do Ml’ e a visão da doutrina atual e
jurisprudência,
veja Lisboa, p. 199.
(378) Concorda Dall’Agnol, p. 37. O art. 51 refere-se a nulidade
de pleno direito,
segundo o autor, diz-se "de pleno direito" a nulidade derivada de vício
manifesto, de defeito comprovado, visível pelo próprio instrumento ou por
prova literal; por isso é admitido ao juiz dela conhecer. "A nulidade
deve
ser decretada pelo juiz, absoluta que é, mas não dispensa a determinação
judicial, no que se insere no sistema normal brasileiro". (p. 549)
e venda concluídos fora do estabelecimento comercial, nas conhecidas
vendas de "porta-em-porta". O art. 47 assegura também, como frisamos
anteriormente, interpretação favorável ao consumidor.
De outro lado, os arts. 51 a 53 do CDC impõem um controle do
conteúdo do contrato, coibindo especialmente as cláusulas abusivas,
sob pena de nulidade absoluta.{379}

b) Controle concreto e em abstrato - A escolha da nulidade


absoluta como sanção para as cláusulas abusivas descritas na lista do
art. 51 do CDC, nulidade esta que deverá ser decretada ex officio pelo
juiz brasileiro, faz antever a grande importância que terá o chamado
controle incidente, concreto, do conteúdo e do equilíbrio contratual.
O § 4.º do art. 51 do CDC permite, também, que a nulidade da
cláusula seja requerida em abstrato, mesmo antes, por exemplo, da
utilização do contrato-formulário no mercado brasileiro, através de
ação promovida pelo Ministério Público.
Nesta terceira edição, gostaríamos de frisar alguns momentos
desse controle abstrato realizado com sucesso pelo Ministério Público.
Em matéria de locação, encontra-se jurisprudência específica sobre
esse controle abstrato: "Ação Civil Pública. Tem o Ministério Público
legitimidade para propor ação visando a proteção do consumidor. A
relação de intermediação de imóveis para locação, submete-se às
disposições do Código de Defesa do Consumidor. Cláusulas de contrato
de adesão cuja nulidade se reconhece. Inaplicabilidade da Lei 8.078,
de 11.09.90, aos contratos firmados anteriormente à sua vigência.
Recurso parcialmente provido".{380}
Em matéria de contratos bancários, destaque-se a sentença de
\16.5.95 do magistrado Gerci Giareta, em ação civil pública de controle
abstrato promovida pelo Ministério Público/RS, cuja ementa é: "Ação
declaratória de nulidade de cláusulas inseridas em contrato bancário
(contrato de adesão). Legitimação do Ministério Público, aplicação do
\art. 129, III, da Carta Constitucional de 1.988 e art. 82, I, do Código
de
Defesa do Consumidor. Nulidade de cláusulas abusivas. Proibição de uso
nas operações futuras. Medida de proteção abstrata e preventiva em
* (379) Posição detalhada sobre as formas de controle encontra-se
em Amaral Jr.,
pp. 116 e ss.
(380) TARS, Ap. Civ. 195049630, j. 29.8.95, Rel. Alcindo Gomes
Bittencourt. (p. 550)
defesa dos consumidores. Necessidade da adequação às inovações
implantadas pela nova ordem jurídica, decorrente do sistema protetivo
que restabelece o equilíbrio contratual entre forneçedor e consumidor.
Aplicação do art. 51 do CDC. Procedência da ação".{381} Tais sentenças
permitindo o controle abstrato em ações coletivas do MP foram mantidas
pelo Tribunal de Justiça/RS{382} e pelo Tribunal de Alçada/RS.{383}
Em matéria de compromisso de compra e venda de imóveis
destaque-se como modelo a decisão do STJ, no Recurso Especial
105.215 (96/0053455-1), DF, j. 24.6.97, Rel. Ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira, em cuja ementa lê-se: "Processual civil, ação
coletiva. Cumulação de demandas. Nulidade de cláusula de instrumento
de compra-e-venda de imóveis. Juros. Indenização dos consumidores
que já aderiram aos referidos contratos. Obrigação de não-fazer da
construtora. Proibição de fazer constar nos contratos futuros. Direitos
coletivos, individuais homogêneos e difusos. Ministério Público. Le-
gitimidade. Doutrina. Jurisprudência. Recurso provido.
I - O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação
coletiva
de proteção ao consumidor, em cumulação de demanda, visando: a) à
nulidade de cláusula contratual inquinada de nula (juros mensais); b)
à indenização pelos consumidores que já firmaram os contratos em que
constava tal cláusula; c) à obrigação de não mais inserir nos contratos
futuros a referida cláusula.
II - Como já assinalado anteriormente (REsp 34.155-MG), na
sociedade contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos de
uma nova atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estreitamente
* (381) Número do processo: 01194446926, comentada também por
Bonatto/
Moraes do MPRS. Veja com o mesmo teor sentença do mesmo magistrado,
processo 01194211098.
(382) Veja neste sentido decisão do TJRS, Ap. Civ. 597030717, j.
25.6.97, Des.
Arnaldo Rizzardo em cuja ementa é: "Código de Defesa do
Consumidor.
Contratos bancários. Anulam-se as cláusulas que ofendem
dispositivos da
Lei n. 8.078/90. Recurso do Banco provido em parte, e provido o
apelo do
Ministério Público".
(383) Assim Ap. Civ. 196 197 867,j. 12.3.98, rel. José Aquino
Flores de Camargo,
em cuja ementa lê-se: "(...) Ação que visa não só a proteção da
comunidade
de clientes do Banespa, como a população em geral, dado seu caráter
declaratório, abstrato e geral. Incidência das disposições do CDC às
relações bancárias (...)" (p. 551)
aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no
Ministério Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da
cidadania.
III - Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se
caracterizam
como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros
dizem respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por
circunstâncias de fato; os segundos, a um grupo de pessoas ligadas entre
si ou com a parte contrária através de uma única relação jurídica.
IV - Direitos individuais homogêneos são aqueles que têm a
mesma origem no tocante aos fatos geradores de tais direitos,
origem
idêntica essa que recomenda a defesa de todos a um só tempo".
Em matéria de bancos de dados e serviço de proteção de crédito,
veja decisão do TJRS, Ap. Civ. 591097050, j. 27/11/91, Des. Ivo
Gabriel da Cunha, em cuja ementa lê-se:
"Serviço de Proteção ao crédito. O Ministério Público é parte
legítima e a ação civil pública é processo adequado à defesa coletiva
do consumidor, universo indeterminado de pessoas unidas pela circuns-
tância fáctica do consumo. A regularidade dos cadastros e informações
relativas ao consumidor interessa não apenas aos cadastrados, mas ao
universo dos consumidores".

c) Papel do Ministério Público e das entidades de proteção ao


consumidor - O Projeto original de Código de Defesa do Consumidor
apresentado pelo Conselho Nacional de Defesa do Consumidor/MJ à
sociedade brasileira em 1989 previa uma atuação decisiva do Ministério
Público, como verdadeiro Onbudsman{384} do mercado, a assegurar que
as normas de eqüidade e boa-fé do CDC tivessem repercussão prática
no mercado de consumo, especialmente através do controle prévio dos
contratos de massa a serem oferecidos aos consumidores. Os vetos
presidenciais aos §§ 3.º do art. 51 e 5.º do art. 54 retiraram tal
possibilidade de controle administrativo geral e cogente, preferindo
optar por um controle essencialmente judicial, como é a tradição
brasileira. Perde-se, assim, em agilidade{385} nas decisões. O Papel do
\* (384) Sobre o papel do Onbudsman veja em português Edling, p. 7
ou O
\ dinamarquês Bernhard Gomard, "Clauses abusives... - Danemark",
in revue
\mi. Droit. Comparé, n. 3, 1982, p. 614.
(385) Veja Edling, pp. 8 e 9. (p. 552)
Ministério Público continua, porém, decisivo na proteção do consumi-
dor, seja como órgão de conciliação, seja como legitimado para a ação
civil pública,{386} seja como órgão legitimado para propor a ação de
controle em abstrato das cláusulas abusivas, segundo o § 4.º do art. 51.
Da mesma maneira as associações de defesa do consumidor e as
entidades e órgãos da administração pública destinados à defesa dos
consumidores passam a ter legitimidade ativa, segundo o art. 100 do
CDC, para a proporem as ações coletivas de defesa de interesses
individuais homogêneos, previstas nos arts. 91 e ss., as class actions
do direito norte-americano, que a partir da entrada em vigor do CDC
passaram a fazer parte do dia-a-dia do Judiciário nacional.
Espera-se que a opção do legislador brasileiro pela nulidade
absoluta leve o Poder Judiciário, com a ajuda do Ministério Público e
dos novos legitimados para as ações coletivas de defesa dos interesses
do consumidor, a sanar o mercado brasileiro quanto à utilização de
cláusulas abusivas nestes contratos.
Os instrumentos para esta verdadeira revolução nas relações
contratuais encontram-se positivados no CDC.

1.4 Novas linhas jurisprudenciais de controle do sinalagma contratual


e de recurso à ineficácia de cláusulas

Nesta terceira edição devemos acrescentar um novo item referente


à atuação do Judiciário na concretização do princípio básico da
eqüidade ou equilíbrio contratual. Trata-se de linhas jurisprudenciais,
algumas até tradicionais, que buscam revitalizar o sinalagma inicial ou
final dos contratos de consumo através da força interpretativa do
princípio da boa-fé objetiva nessas relações. Tais linhas sempre exis-
tiram, usando figuras tradicionais do direito, como a repetição do
indébito, o enriquecimento sem causa, e outras mais jovens, como a
correção monetária e a quebra da base do negócio. Queremos aqui tecer
comentários especiais sobre essas novas linhas, não só porque passaram
os magistrados a utilizar-se do CDC como base legal e teleológica, mas
principalmente porque essas decisões são reflexos diretos dos princí-
pios informadores do CDC.
* (386) Sobre a ação civil pública veja a Lei n. 7.347, de 24 de
julho de 1985,
modificada pelo CDC e a obra de Mancuso, especialmente na parte
referente à legitimação coletiva, pp. 64 e ss. (p. 553)
As decisões que passaremos a analisar não tratam especificamente
de cláusulas abusivas, nem concluem pela onerosidade excessiva de
algumas prestações. Ao contrário, propugnam uma visão total da
relação obrigacional ou uma visão de estrito formalismo informativo
para concluir pela ineficácia de cláudulas contratuais não suficiente-
mente informadas e destacadas ao consumidor. As decisões
consubstanciam ou representam um controle da totalidade da relação
contratual, especialmente um controle concreto do equilíbrio ou nexo
entre prestação e contraprestação, motivo pelo qual separamos, ante-
riormente, estas observações no item 1.2 deste Capítulo, dedicado à
proibição de cláusulas abusivas.

a) A tendência de ineficácia de cláusulas não informadas ou


destacadas corretamente - Após esses sete anos de prática com o CDC,
não podemos negar que a jurisprudência brasileira passou a exercitar
um forte controle do equilíbrio dos contratos, não somente através de
decisões de nulidade de cláusulas abusivas, mas também através de
surpreendentes decisões de ineficácia de parte do conteúdo dos con-
tratos de consumo.
Surpreendentes foram essas decisões não porque sua base não
estivera positivada no CDC; ao contrário, os arts. 46 e 54, § 4.º do
Código lhes dão perfeita fundamentação legal. Surpreendente é seu
espírito libertador, exatamente contrário ao que queria inicialmente o
sistema do CDC. O sistema básico do Código é de inclusão de todas
as cláusulas contratuais, escritas ou não, presentes até na publicidade,
na embalagem, nos prospectos, recibos etc., cláusulas afirmadas oral-
mente por vendedores, fornecedores diretos e indiretos e mesmo por
seus representantes autônomos prevalecem; todas essas informações
vinculam os fornecedores e integram as relações contratuais, ex vi do
art. 30, 31, 34 e 48 do CDC.
Justamente por esse espírito básico de inclusão nos contratos de
toda e qualquer informação suficientemente precisa, deixaram os
autores do CDC de introduzir no Código norma semelhante ao § 3.º
\da Agbgesetz alemã, que em matéria de contratos de adesão impõe uma
formalidade informativa bastante forte para que uma cláusula possa ser
incluída na relação contratual in concreto. Como mencionamos ante-
riormente, tínhamos dúvidas se essa seria a melhor opção legislativa,
quando as novas normas - especialmente européias - tendem a
aumentar a informação do consumidor, o dever de informar do (p. 554)
fornecedor e a valorizar juridicamente a falta dessa perfeita informação,
seja através de um aumento do prazo de reflexão ou arrependimento
sem causa do consumidor, seja para simplesmente considerar ineficaz
o vínculo ou alguma de suas cláusulas.
Parece-nos que a sábia e aqui denominada surpreendente tendên-
cia jurisprudencial brasileira de decretar a ineficácia de algumas
cláusulas contratuais e mesmo de vínculos inteiros de consumo, com
base nos arts. 46 e 54, § 4.º, do CDC, segue essa tendência européia
de formalidade informativa.{387} Em outras palavras, cláusulas que
estavam sob a análise do Judiciário para que se estabelecesse a sua
abusividade ou não (o que levaria à nulidade absoluta imposta pelo
CDC) foram consideradas "ineficazes" por problemas de forma, pro-
blemas na formação do contrato, na sua elaboração pressupondo-se que
o consumidor não tivesse sido suficientemente informado e alertado de
sua presença naqueles contratos.
Os exemplos dessa linha jurisprudencial são vários. Vejamos
alguns casos de contratos de seguro-saúde, em que particularmente
optaria pela abusividade simples das referidas cláusulas. Em caso
envolvendo cláusula de reabertura de prazo de carência na hipótese de
atraso do pagamento, a 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São
Paulo considerou tal cláusula efetivamente nula com base no art. 51,
IV, do CDC, por violar o princípio da boa-fé,{388} mas antes afirmou
* (387) Bom exemplo é a decisão do JEPC/RS, Recurso 01196885485,
Rel. J. Wilson
Carlos Rodycz, j. 13.11.96, em cuja ementa se lê: "Time-sharing. Tempo
compartido. Nulidade das cláusulas abusivas (...). Nulidade das cláusulas
que
colocam o consumidor em desvantagem exagerada (CDC, art. 51, IV). Pos-
sibilidade de denúncia do contrato a qualquer tempo em razão de vício de
manifestação da vontade, captada em circustâncias em que o descortínio
crítico
estava prejudicado pela atmosfera criada pela vendedora (CDC, art. 46)".
(388) Ap. Civ. 235.957-2, j. 25.8.94, Des. Aldo Magalhães, cuja
ementa é a
seguinte: "Contrato - Cláusula - Plano de Saúde - Imposição de novo prazo
de carência por atraso no pagamento - Inaplicabilidade - Desconhecimento
pelo consumidor de sua existência - aplicação do artigo 46 do CDC -
Nulidade decretada - Recurso provido. O fornecedor deverá ter a cautela
de oferecer oportunidade ao consumidor para que, antes de concluir o
contrato de consumo, tome conhecimento de seu conteúdo, do contrário,
as prestações por ele assumidas não o obrigarão".
"Contrato - Cláusula - Plano de Saúde - Imposição de novo prazo
de
carência por atraso no pagamento - Abusividade - Inteligência do artigo
(p. 555)
pedagogicamente que tal cláusula era inaplicável e não operava contra
o consumidor in concreto, forte no art. 46 do CDC: "Ora, sendo
incontroverso, como visto, que ao recorrente não se deu prévio
conhecimento do instrumento contratual e notadamente de sua cláusula
14.8.1, contra ele não opera, nos termos do artigo 46 do Código de
Defesa do Consumidor, essa estipulação (...). Ante o exposto, dão
provimento ao recurso para declarar a nulidade da cláusula que reabre
o prazo de carência no caso de pagamento com atraso e declarar,
também, a inaplicabilidade dessa estipulação à relação de consumo
existente entre as partes e, em conseqüência, declarar a ré (seguradora)
responsável pelas despesas de internação".{389}
Assim também o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em caso
envolvendo a cláusula de limitação a 30 dias de internação cobertos em
UTI, decidiu contrariamente à abusividade identificada pelo magistrado
de primeiro grau que entendeu ser esta cláusula válida, com base no
disposto no art. 1.460 do CC. Porém, segundo a 5.ª Câmara Cível do
TJRJ, ela seria válida, mas ineficaz no caso concreto, forte no art. 54,
§ 4.º, do CDC, uma vez que não impressa e redigida com o destaque
legalmente exigido.{390} O exemplo é interessante por se tratar de um
*51, inciso IV da Lei Federal 8.078, de 1990 - Consumidor colocado em
condição exageradamente desvantajosa - Equilíbrio rompido - Mora,
ademais, já sanada pela correção monetária - Nulidade decretada - Recurso
provido. Constituindo a purga da mora medida fundada na eqüidade, que
recompõe o contrato, é incompatível a estipulação que não restitui o
contrato à normalidade, mas conduz a situação de desequilíbrio entre os
\contratantes" (Decisão citada por Nunes, p. 3-5, apud JTL, Lex 161/43).
\ (389) Decisão citada por Nunes, p. 3-5, apud JTL, Lex 161/43.
\ (390) Ap. Civ. 2.361/97 - 5.ª Cam. Civ., j. 17.6.97, Des. Marcus
Faver, cuja
ementa é: "Seguro-saúde. Ressarcimento de despesas médico-hospitalares.
Contrato firmado entre a Golden Cross e Associação de Servidores da
\UFRJ-ASUR. Estipulação de condições gerais de plano de saúde, para seus
associados. Adesão da genitora da autora. Filha que necessita de
internação
em UTI Neonatal. Seguradora que recusa-se a pagar o período de internação
superior a 30 dias. Existência de cláusula contratual expressa
exoneratória
de cobertura, para prazo excedente. Sentença monocrática declarando a
nulidade da cláusula. Recursos. Não é nula a cláusula limitativa de
riscos.
Inteligência do art. 1.460 do Código Civil. Em se tratando, todavia, de
contrato de adesão, a cláusula que implique em limitação a direito do
consumidor tem que ser redigida com destaque. Possibilidade de fácil e
imediata compreensão. Circunstância não ocorrente na hipótese. Caso de
(p. 556)
plano de saúde em grupo, assinado por uma entidade e no qual o
consumidor direto recebia apenas proposta em branco, em que constava
que estaria ciente de todas as condições gerais, inclusive exclusões e
limitações, mas estas não lhe foram entregues. Realmente, neste caso,
a assinatura do consumidor, assinalando que teria sido informado ou
que lhe teria sido oportunizada a informação, era apenas fictícia,
prática
esta não condizente com o dever de informar e dever de destacar os
limites da cobertura e as condições contratuais imposta pelo CDC ao
fornecedor, que deveria ter se organizado de forma (assim como
entregou as cópias de tal formulário) a atender e informar a todos os
que o contrataram em grupo.
Já o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo optou por
combinar os arts. 46, 47 e 51 do CDC e leis especiais sobre seguro-
saúde e exercício médico, para determinar a ineficácia da cláusula de
exclusão do tratamento da Aids in conccreto, em face do não conhe-
cimento pelo autor dessas cláusulas contratuais, de seu caráter leonino
genérico e da indivisibilidade do direito à saúde. Logo, propugnou
também sua nulidade.{391}

b) A tendência de revitalização do sinalagma no tempo e correção


monetária - Os contratos bilaterais, aleatórios e de transferência de
riscos futuros, como os de seguro, encontram seu signalagma funcional,
seu nexo co-respectivo de prestação e contraprestação, tanto no passar
do tempo e desenvolver da relação contratual, isto é, no multiplicar de
contribuições, de prêmios, de fazeres e não-fazeres, de reembolsos, de
cumprimento de deveres anexos, quanto na sua expectativa de manu-
tenção do contrato, tendo em vista a função econômico-social que esse
*ineficácia da cláusula, mas não de nulidade. Interpretação do artigo 54,
§
4.º do Código de Defesa do Consumidor. Provimento parcial do recurso".
(391) Esta interessante decisão conjunta, em segredo de Justiça,
que cita a Lei
\3.268/57, art. 15, g, e o Dec. 73/66, é a Ap. Civ. 250.316-1, Rel. Des.
\Debatin Cardoso, j. 2.10.96, comentada no relatório Brasilcon, à p. 30.
No
mesmo sentido da ineficácia (também da nulidade), mas sem citar o artigo
específico do CDC, TJSP, Ap. Civ. 212.145-1, Rel. Des. Gonzaga
Franceschini, j. 28.11.95, comentada no relatório Brasilcon, à p. 22. Já
considerando apenas que tais cláusulas violam o princípio da eqüidade e
da boa-fé disposto no art. 51, IV, do CDC, veja do mesmo TJSP, Ap. Civ.
188.788-2, Rel. Des. Marrey Neto, j. 25.10.94, comentada no relatório
Brasilcon, à p. 31. (p. 557)
vínculo preenche. A álea é a probabilidade de vantagem ou desvanta-
gem na passagem do tempo, uma vez que a prestação da seguradora
depende de evento futuro e incerto. A ocorrência ou não de eventos de
saúde para o consumidor e sua família é o que torna incerta a
necessidade e a quantidade da prestação do fornecedor. Como mencio-
namos anteriormente, essas características do contrato de seguro-saúde
põem em destaque a relevância do fator tempo nessa relação, isto é,
a realização do verdadeiro interesse do consumidor pode estar ligado
ao fator tempo.
O tempo já transcorrido de duração do relacionamento contratual
passa a ser, então, juridicamente relevante. Nesse ramo de negócios,
a expectativa do consumidor é segurar não só seu presente, mas seu
futuro e de sua família, enquanto a seguradora trabalha assumindo
também riscos presentes e futuros, através de cálculos atuariais e
probabilidades de sinistros de saúde e de coberturas necessárias. O fator
tempo trabalha, porém, contra a seguradora, uma vez que, com o
envelhecimento da carteira, naturalmente mais despenderá em reembol-
so. Note-se que exatamente é esse o risco profissional desse ramo de
atividades e quem nele está, deve incluí-lo em seus cálculos e manter
as promessas contratuais feitas com os consumidores, evitando frustrar
o fim do contrato ou abusar de sua posição contratual ao romper
definitivamente com o vínculo. É risco profissional dos fornecedores
cobrar corretamente, com base em cálculos atuariais fiéis, as mensa-
lidades e/ou os reembolsos executados.{392} A tendência de manutenção
desses vínculos, isto é, dos contratos cativos de longa duração, pode
ser vista como uma tendência de proteção do sinalagma funcional
desses contratos.
Já nos contratos comutativos em geral, com a sucessão de planos
econômicos no país, ficou como desafio para a jurisprudência estabele-
cer aqui qual a justa correção da moeda nestes tempos incertos. A
necessidade de correção monetária das dívidas é pacífica,{393} não,
porém,
* (392) Assim decidiu o TJRS, Ap. Civ. 595 169 921,j. 29.22.95,
Des. José Maria
\Tesheiner: "Seguro de reembolso de despesas de assistência médica e/ou
hospitalar. Incumbe à seguradora o ônus de comprovar a correção dos
pagamentos efetuados".
(393) Veja por todos, ementa do Recurso Especial 42.226-SP, j.
17.11.96, Rel.
Min. Bueno de Souza, nos seguintes termos: "Recusada que fosse a
correção monetária, estaríamos a incentivar enriquecimento sem causa do
devedor". (p. 558)
os índices utilizados no seu cálculo. "A correção nada acrescenta ao
débito, atuando como mero fator de preservação da moeda aviltada por
processo inflacionário".{394} Assim, por exemplo, a Lei 7.730/89 congelou
\o índice OTN, e determinou, em seu art. 10, § 2.º, que nos contratos
entre
particulares "a cláusula de reajuste com base na OTN adotará o IPC como
índice substitutivo (...)". Note-se que o cálculo do IPC de janeiro de
1989
\é bastante controverso, variando de 35,48, 42,72% até 70,28%, sendo
\que o STJ, em Corte Especial, já adotou o índice de 42,72%,{395} mas
\também, em caso de desapropriação agrária, os 70,28%.{396}
A Lei 7.799, de 10 de julho de 1989, republicada em agosto e que
instituiu a BTN mensal e a BTN fiscal diária (art. 1.º), modificou o
plano econômico e instituiu a BTN fiscal "como referencial de
indexação de tributos e contribuições de competência da União" e
especificou que esse índice também poderia "ser utilizado, como
referencial, para a atualização monetária de contratos ou obrigações
expressos em moeda nacional, efetivados após a data da vigência desta
Lei (art. 1.º, caput e § 3.º, Lei 7.799/89).
Em março de 1990 advém novo plano econômico, o Plano Collor
1 (Lei 8.024, de 12 de abril de 1990), criando uma série de índices, o
BTNF, o INPC e após a TR (taxa referencial). Após, a Lei 8.177, de
1.º de março de 1991, instituiu o Plano Collor 1, extinguindo o BTN e
\o BTN fiscal (art. 42).
Na jurisprudência observa-se um tratamento diferenciado. Os
contratos de financiamento habitacional ou empréstimos bancários
recebem tratamento especial com o uso da BTN mensal, em virtude
do disposto na Lei 8.024/90.{397} Os débitos agrícolas ou de reajuste de
crédito agrícola, na Lei 7.730/89 e nas leis posteriores, em virtude da
anistia constitucional, submeteram-se a um regime de reajuste espe-
cial.{398} Às contas de poupança popular, ex vi lege, aplica-se o índice
de correção legal, o IPC expurgado e o BTN mensal.
* (394) Assim ementa do Recurso Especial 42.226-SP, j. 17.11.96,
Rel. Min. Bueno
de Souza.
(395) Veja Lex 79, 139.
(396) Veja Lex 79, 138.
(397) Veja por todos, Julgados TARGS, n. 91, p. 372 e ss.,
Julgados TARGS, n.
93, p. 117 e ss.
(398) Veja por todos, Recurso Especial 194.909.1, in RT 737, p.
175 e ss, e
Julgados TARGS, n. 92, p. 204 e ss. (p. 559)
Quanto à polêmica incidência das leis que instituíram planos
econômicos a contratos assinados anteriormente, foi reafirmado, em
recente decisão do Supremo Tribunal Federal, de 10 de dezembro de
1996, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello e Presidente o Ministro
Moreira Alves, o princípio segundo o qual a aplicação da lei nova (no
caso a Lei 7.730/89) sobre os efeitos futuros de contrato preexistente,
assinado anteriormente (no caso, Caderneta de Poupança) é conside-
rada retroatividade inadimissível, que feriria a garantia constitucional
do ato jurídico perfeito disposta no art. 5.º, inc. XXXVI, da Carta
Política. A ementa oficial, reproduzida na RT741, p. 202 e 203, assim
afirma:
"Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência,
ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo
os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não
se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conse-
qüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são
regidas pela legislação em vigor no momento da pactuação. Os
contratos, que se qualificam como atos jurídicos perfeitos, acham-
se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos
futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5.º, XXXVI da
Constituição da República.
A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um
contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora
do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade
injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula
constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas
definitivamente consolidadas.
A possibilidade de intervenção do Estado no domínio econômico
não exonera o Poder Público do dever jurídico de respeitar os
postulados que emergem do ordenamento constitucional brasileiro.
Razões de Estado, que muitas vezes configuram fundamentos políticos
destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inacei-
tável adoção de medidas de caráter normativo, não podem ser invocadas
para viabilizar o descumprimento da própria Constituição. As normas
de ordem pública, que também se sujeitam à cláusula inscrita no art.
5.º, XXXVI, da Carta Política, não podem frustrar a plena eficácia da
ordem constitucional, comprometendo-a em sua integridade e desres-
\peitando-a em sua autoridade. (p. 560)
O contrato de depósito em caderneta de poupança, enquanto
ajuste negocial validamente celebrado pelas partes, qualifica-se como
típico ato jurídico perfeito, à semelhança dos negócios contratuais
em geral, submetendo-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao
ordenamento normativo vigente à época de sua estipulação. Assim
sendo, caso a sua contratação ou renovação tenha ocorrido antes da
entrada em vigor da Lei 7.730/89, não se aplicam as normas dessa
legislação infraconstitucional em virtude do exposto no art. 5.º,
XXXVI da CF, ainda que os rendimentos venham a ser creditados
em data posterior" (Recurso Especial 201.176-2/RS, 1.ª Turma, DJU
21.3.1997, in RT 741, 202 e ss.).
Manteve, assim, o STJ a decisão do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, que seguindo a orientação majoritária e firmada pelo
próprio Supremo Tribunal Federal{399} quanto ao respeito ao ato jurídico
perfeito, conclui pela não aplicação da Medida Provisória 32/89,
convertida na Lei 7.730/89, aos efeitos dos contratos em curso e aos
contratos de caderneta de poupança{400} por ferir a garantia constitucio-
nal através de lei infraconstitucional:
"Isso significa, ante a supremacia do postulado constitucional
que
tutela a integridade do ato jurídico perfeito, que mesmo as leis de ordem
pública não podem desconsiderar relações contratuais que foram
válidas e precedentemente estipuladas pelas partes (...)
Regra básica e inalterável é que todas as conseqüências de um
contrato concluído sob o império de uma lei, inclusive seus efeitos
futuros, devem continuar a ser regulados por essa lei em homenagem
ao valor da certeza do direito e ao princípio da tutela do equilíbrio
contratual (...)
Em suma: O STF, tendo presente a importância político-jurídica
da norma inscrita no art. 5.º, XXXVI da CF - e considerando ainda
a grave advertência da doutrina (...) - firmou orientação na matéria ora
em exame, enfatizando, na perspectiva do princípio constitucional que
protege o ato jurídico perfeito, que "(...) nos casos de cadernetas de
poupança cuja contratação ou (...) renovação tenha ocorrido antes da
entrada em vigor da MedProv 32, de 15.01.1989, convertida na Lei
* () Veja RTJ 106/314 e 143/724.
() Recurso Especial 200.514-RS, rel. Min. Moreira Alves, e
Recurso Especial
198.304-RS, rel. Min. Sydney Sanches. (p. 561)
7.730, de 31.01.1989, a elas não se aplicam, em virtude do disposto
no art. 5.º, XXXVI, da CF, as normas dessa legislação infraconstitu-
cional, ainda que os rendimentos venham a ser creditados em data
posterior (...)".{401}
Concorde-se ou não com a referida lição jurisprudencial, retira-
se dela o postulado segundo o qual a garantia constitucional do ato
jurídico perfeito deve ser usada para proteger o equilíbrio contratual,
a certeza do direito contra as vicissitudes de um mercado incerto como
o brasileiro e da reiterada intervenção estatal na econômia e seus
efeitos
por vezes perversos nos contratos privados. A opção majoritária da
jurisprudência brasileira aqui é da manutenção e proteção do sinalagma
genético, servindo a correção monetária e os esforços para preservação
e atualização dos índices contratuais como instrumentos para esse
controle do equilíbrio contratual afetado por fatores externos.
A tendência de preocupação com a correção monetária e o
equilíbrio financeiro das dívidas é corroborada pelo grande número de
Súmulas recentes do STJ que tratam do tema, como as de número 35,
43, 54, 179 e 186.{402} Dentre estas, destaque-se, por tratar de tema
contratual e de consumo, a Súmula 35 do STJ: "Incide correção
monetária sobre as prestações pagas, quando da sua restituição, em
virtude da retirada ou exclusão do participante de plano de consórcio".

c) A tendência de controle da novação contratual e do equilíbrio


- Um dos exemplos principais de contratos cativos de longa duração
são as novas relações banco-cliente, as quais estão apresentando alguns
aspectos novos, que podem ser encontrados também nas relações e
contratos de uso de cartão de crédito, nos seguros em geral, nos serviços
de organização e aproximação de interessados (como os exercidos pelas
empresas de consórcios), nos serviços de transmissão de informações
* (401) RT 741, p. 204-206.
(402) Súmula 43 do STJ: "Incide correção monetária sobre dívida
por ato ilícito
a partir da data do efetivo prejuízo". Súmula 54 do STJ: "Os juros
moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade
extracontratual". Súmula 179 do STJ: "O estabelecimento de crédito que
recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da
correção
monetária relativa aos valores recolhidos". Súmula 186 do STJ: "Nas
indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são devidos por
aquele que praticou o crime". (p. 562)
e de investimento de numerário alheio, de representação e compra de
ações etc.
Esses aspectos novos da prática bancária e financeira no Brasil
levaram ao aparecimento de novas tendências na jurisprudência brasi-
leira, que agora analisaremos. Gostaríamos, porém, de destacar que
essa evolução, ou provocação e resposta, parece indicar - na teoria -
a consolidação de uma nova noção de contrato, não só a noção social
de contrato apresentada nesta obra, mas de uma relação contratual mais
fluida, mais fragmentada, menos formal e mais aberta a adaptações e
modificações do que a anterior, noção esta que me parece estar
começando a ser empregada pelos profissionais do direito ao "contro-
larem" as novas relações múltiplas entre bancos e consumidores.
Essa tendência nasce da eficácia do CDC, que efetivamente aporta
uma nova teoria ou visão contratual para o direito civil brasileiro,
rejuvenescendo nossa doutrina e prática. Essa visão baseada na boa-
fé objetiva das relações contratuais e em uma noção mais exigente de
equilíbrio e eqüidade contratual impõe um novo regime para os
contratos cativos de longa duração, dentre eles os contratos bancários
e financeiros, proibindo uma série de práticas consideradas abusivas.
Dentre essas práticas e cláusulas consideradas abusivas, como comen-
tamos, está a de modificar unilateralmente o conteúdo do contrato, das
prestações, da qualidade (art. 51, XIII, do CDC), a de modificar
unilateralmente o preço ou valor pago em contraprestação de serviços
ou produtos (art. 51, X, do CDC) que imponham a conclusão de Outro
negócio jurídico - através de representante - pelo consumidor (art. 51,
VIII do CDC) e, de modo genérico, a de estabelecer "obrigações
consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em des-
vantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade" (art. 51, IV, do CDC).
Em outras palavras, o novo regime dos contratos bancários de
consumo impede que o elaborador unilateral dos contratos abuse de sua
posição contratual (Machtposition) e aproveite-se do desequilíbrio
intrínseco e estrutural dessas relações para impor cláusulas abusivas ou
contrárias a leis imperativas vigentes e após, mesmo, renove essas
relações continuadas por natureza, em virtude da expectativa de
contínuo acesso ao crédito e rolagem eventual da dívida.
Em face destas limitações, merece nossa especial atenção uma
prática bancária existente desde 1993, coincidente com a jurisprudência
(p. 563)
mais ativa de defesa do consumidor dos Tribunais estaduais. Tendo em
vista essa aplicação prática do CDC, os bancos e instituições de crédito
passaram a propor a seus clientes uma renegociação "sanadora" ou
novação "salvadora" da dívida, a qual, além de consolidar a dívida
pendente baseada em juros acima do patamar constitucional e da
cobrança reiterada e cumulativa de juros sobre juros e outras práticas
reiteradamente consideradas abusivas, retirava do novo texto contratual
todos os abusos identificados como tais na jurisprudência e nas novas
leis, incluindo aí o CDC. "Adaptou" pois, essa relação continuada aos
novos patamares de boa-fé e equilíbrio de prestações exigido por lei,
mas perenizando o abuso no débito consolidado, confessado ou
renovado na renegociação.
Trata-se, pois, de uma prática comercial abusiva do setor
bancário, a qual visa ou consegue justamente fraudar o efeito das
normas do Código de Defesa do Consumidor, da limitação consti-
tucional dos juros e de outras leis imperativas através da novação
da dívida, isto é, do pagamento e fim teórico da relação abusiva e
"nascimento" de uma nova relação "sanada" dos vícios da primeira,
mas que traz em seus encargos financeiros os frutos do abuso já
cometido e "sanado" pela manifestação de vontade do consumidor
em novo contrato ou na renegociação. Há nesta "nova contratação"
o cuidado de incluir na relação de consumo apenas cláusulas
contratualmente lícitas, segundo a jurisprudência majoritária e normas
especiais em vigor, inclusive o CDC.
Através da teoria contratual normal a solução para esse problema
não é da mais fácil, pois que o contrato chegou a seu fim, seu bom fim,
que é o adimplemento através da novação, da confissão de dívida ou
da renegociação contratual. Teoricamente o primeiro contrato foi
extinto. Como propor um exame judicial do conteúdo de um contrato
extinto? Parece-me que aqui há de se avançar e aprofundar a análise,
pois somente a aceitação de uma espécie nova de pós-eficácia dos
contratos, baseada na boa-fé necessária às relações de consumo, pode
propor uma solução para esse problema prático de enriquecimento sem
causa lícita. O exame judicial do conteúdo do contrato extinto é
possível, justamente através da nova visão continuada e de longa
duração das relações de consumo, que se compõem de vários e
\múltiplos contratos: contratos acessórios e principais, contratos
iniciais (p. 564)
e finais, de cadeias de fornecedores solidários por lei em virtude
justamente dos laços que formam a catividade de seus clientes,
fornecedores e consumidores entrelaçados em relações contratuais
complexas de consumo, múltiplas e fluidas que são o novo desafio de
nosso tempo. Vejamos, pois, duas análises desses contratos cativos de
longa duração. A primeira considera tratar-se de relações e contratos
de "relacionais" (relational contracts){403} destacando os elementos
sociológicos que condicionam o nascimento e a estabilidade dos
contratos complexos de longa duração. A contribuição desses estudos,
como frisamos anteriormente, foi grande, pois, observando as relações
"não-contratuais", as projeções de troca dos empresários e sua orga-
nização em networks, baseadas mais na confiança, solidariedade e
cooperação no que em vínculos contratuais expressos, desenvolveram
a noção de um contrato aberto, de uma relação contínua, duradoura,
ao mesmo tempo em que modificável pelos usos e costumes ali
desenvolvidos e pelas atuais necessidades das partes.{404}
Essa visão "aberta" e fragmentada de contrato ou relação
obrigacional é bastante pós-moderna e atual, com enorme potencial.
Identificar um contrato relacional onde há vinculo, mas não necessa-
riamente contratual, como nas parcerias econômicas furtivas e momen-
tâneas de hoje. Identificar um contrato relacional, em que o vínculo
oficialmente já acabou, mas há relacionamento posterior, como em um
contrato cumprido, não renovado, mas novado ou mesmo reescrito.
Identificar um contrato relacional em que existem vários contratos, com
várias e diferentes pessoas jurídicas, como os contratos com bancos
múltiplos, 6 contratos em um só, ou um contrato com 4 pessoas
diferentes, banco, corretora, financeira, seguradora, ou fornecedora de
serviços outros, tudo em um só relacionamento finalístico de consumo!
Identificar um contrato de troca real, em que há na teoria um contrato
unilateral clássico, como no mútuo, destacando a reciprocidade intrín-
seca das prestações, dos direitos e deveres principais e anexos, faz com
\que o nexo (finalne.~us) que liga a prestação oficialmente única e a
contraprestação escondida (pagamento de juros pelo capital colocado
a disposição e o tempo) reapareça, criando um sinalagma fantasma,
uma bilateralidade real, bilateralidade relacional, ousada e absoluta-
mente não-clássica.
O modelo relacional é fascinante, mas desenvolvido tendo em
vista problemas típicos da common law, que no direito brasileiro, em
* (403) Macneil, p. 691 e ss.
(404) Veja Macedo Jr., p. 127 e ss. (p. 565)
especial com base no CDC, podem ser resolvidos com a utilização dos
princípios da confiança, da boa-fé, da acessoriedade das relações de
pré-consumo ou pela teoria da aparência.{405} Sendo assim, a mais
importante contribuição desses estudos para a nova teoria contratual
brasileira é a criação de um modelo teórico contínuo que engloba as
constantes renegociações e as novas promessas, bem destacando que
a situação externa e interna de catividade e interdependência dos
contratantes faz com que as revisões, novações ou renegociações
contratuais naturalmente continuem ou perpetuem a relação de consu-
mo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual
dominante, ou - pior - validar prejuízos sem causa ao contratante mais
fraco ou tentar superar e descumprir deveres de cooperação, de
solidariedade e de lealdade que integram a relação em toda a sua
duração.{406}
No caso dos contratos de mútuo, parece-me que a teoria do
contrato relacional pode contribuir para uma nova compreensão da
confiança despertada pela atividade dos fornecedores e para a aceitação
de uma readaptação constante das relações de longa duração conforme
a boa-fé, de forma a não frustrar as expectativas legítimas das partes,
apesar da limitação da vontade manifestada inicialmente.
No caso em exame, os bancos e instituições de crédito passaram
a propor a seus clientes uma renegociação "sanadora" ou novação
"salvadora" da dívida. Apoiados em cláusulas específicas nos contratos
e mediante a contingência nacional de insolvência e falta de crédito,
os bancos brasileiros ofereceram aos consumidores desde 1993 uma
* (405) Segundo Oechster, p. 114, a teoria do contrato relacional
é uma "re-
importação" do modelo jurídico alemão. A solução alemã baseada na
responsabilidade pela confiança teria sido recebida nos EUA justamente
para suprir os problemas da common law com relações de longa duração
e que, agora, estaria retornando ao continente. A leitura do original de
Macneil, ao contrário, parece partir de observações básicas sociológicas,
quanto às raízes do contrato, para só então aprofundar-se na relação de
confiança. (veja Macneil, p. 701 e ss. em especial).
(406) Como ensina Macedo, Relacional, p. 335, a teoria contratual
relacional tem
função descritiva, analítica, mas "o modelo relacional tem também caráter
normativo e prescritivo. Assim é que ele recomenda uma revalorização e
ampliação do uso do princípio da boa-fé, justiça e equilíbrio contratual
como princípios capazes de orientar os agentes contratuais e operadores
do
direito na direção do reconhecimento das circunstâncias fáticas
concretas". (p. 566)
revisão contratual "sanadora" e novação da dívida, na qual seriam
retiradas dos contratos renegociados a previsão de cobrança de juros
reais (juros remuneratórios) superiores a 1% ao mês e outras cláusulas
consideradas abusivas na jurisprudência e em leis imperativas, como
o próprio CDC. Ficava ali, porém, consolidada e confessa a dívida
oriunda de anos de cobrança desses juros exagerados, cumulação de
taxas, multas, capitalização mensal e outros abusos.
A cláusula, que permite a renegociação bilateral benéfica ao
consumidor, nada tem de abusiva; ao contrário, procura melhorar e
adaptar os contratos de consumo às regras existentes no ordenamento
jurídico naquele momento. Infelizmente, a sua prática no mercado
brasileiro foi perversa. Perversa, pois criou expectativas no consumidor
de que na revisão iriam ser "excluídas" e "retiradas" as cláusulas
abusivas de cobrança de juros usurários ou mesmo juros sobre juros.
Acabou, porém, preservando o abuso, consolidando-o em imensas e
impagáveis dívidas. Perversa, pois ao retirar do contrato atual as
cláusulas abusivas, ao impor ao consumidor que confessasse a dívida
oriunda do abuso, quase impossibilitou a atuação reequilibradora do
Judiciário. Geralmente os fornecedores exigiram a assinatura de con-
fissão de dívida total ou assinatura de títulos de crédito, preservando
os juros já cobrados e o passivo deles resultantes já existente, em ficta
declaração de que o pagamento era devido, para só então elaborar a
novação contratual, agora, sim, sem as cláusulas abusivas e em texto
uniforme pré-elaborado unilateralmente.
Em outras palavras, os débitos e encargos resultantes de
cláusulas
tão abusivas que foram retiradas pelos próprios bancos e agentes
financeiros na renegociação, encargos contrários à boa-fé, mesmo
assim foram cobrados e foram incluídos no passivo, no total da dívida.
Esse total foi transportado para a renegociação, assinada confissão ou
título executivo extrajudicial pelo total da dívida e apenas as cláusulas
foram retiradas do texto, não seus efeitos abusivos já ocorridos.
Essa atitude quase paralisou o controle do Judiciário brasileiro,
pois na relação de consumo atual o contrato não mais apresentava as
referidas cláusulas abusivas, a prestação inicial (débito) fora paga por
novação e o dever de adaptar seus contratos ao CDC já teria sido
cumprido. A defesa dos bancos era simples, afirmando que adaptara seu
contrato e que não cobrava tais juros usurários ou praticava anatocismo.
Meia verdade quase destruidora, pois o controle do conteúdo dos (p. 567)
contratos não é só atual, mas sim, desde o início da relação contratual
de consumo, relação continuada vista como um processo finalístico,
como uma relação de deveres mútuos de conduta, de boa-fé e de
prestação, que se prolonga no tempo até atingir o seu fim: o bom
cumprimento do objetivo inicial do contrato e das expectativas legíti-
mas (somente as legítimas) de ambos os contratantes. No caso concreto,
abusiva foi a cobrança durante anos de encargos baseados ou susten-
tados por cláusulas consideradas por lei (Constituição e CDC) e por
jurisprudência pacífica como abusivas e lesionárias.
A jurisprudência respondeu a essa renegociação contratual pre-
judicial ou revisão abusiva de forma clara. Considerou viável a revisão
e o controle do conteúdo de toda a relação, em suas várias fases e
contratos renegociados.{407} A relação é efetivamente continuada, {408} é
um
* (407) Bom exemplo dessa linha jurisprudencial são as decisões,
ainda não
publicadas, do TARGS, com as seguintes ementas: "Titulo Executivo
Extrajudicial - Ação Declaratória Revisional de Contratos - Renegociação.
Viável a revisão de toda relação negocial, haja vista ser verificável no
contrato de renegociação a incidência de encargos excessivos, o que, por
\certo, se repetiu nos contratos renegociados. - Art. 42, Parágrafo Único
do
CDC - Não há que se falar em quantia indevida, uma vez que o contrato
foi livremente firmado, incidindo os encargos contratuais. O que ocorre é
a abusividade das cláusulas contratuais (...). O índice mais favorável à
recorrente é o IGP-M, devendo este ser o adotado (...). Não caracterizada
a
mora, inviável a cobrança de multa contratual. (...) - Juros
Remuneratórios.
Quer pela auto-aplicabilidade da norma constitucional, ou pela legislação
infraconstitucional, os juros estão limitados em 12% ao ano. -
Capitaliza-
ção. Anual (Súmula n. 121 do STJ e Decreto n. 22.626/33)" (Ap. Civ.
196 123 558, 5.ª C., TARGS, j. 5.9.96, Rel. Juiz Jasson Torres).
"Embargos
à execução - Instrumento particular de confissão de dívida e vedação da
capitalização mensal - Juros moratórios - Índice de correção monetária
(...).
A alegada novação da dívida não impede a revisão de toda a contratação
entre as partes, se esta contém cláusulas nulas (...)" (Ap. Civ. 196 256
275,
4.ª C., TARGS., j. 27.3.97, Rel. Juiza Manuela Martinez Lucas).
(408) Assim a jurisprudência majoritária da 4.ª Câmara Cível do
TARGS, como
se observa nas seguintes ementas: "Contratos Bancários - Revisão. É
cabível a revisão de todos os contratos, mesmo consolidados em
renegociação
de débito. Relações negociais que constituem uma situação jurídica
continuativa que deve ser encarada como uma unidade (...)". (Ap. Civ.
\196104160, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser); "Revisão de Contrato -
Confissão de Dívida. A confissão de dívida não impede a revisão do débito
nas relações jurídicas continuativas, adequando-se à ordem jurídica.
Limite (p. 568)
contrato cativo de longa duração, em que o consumidor, na prática,
aceitará qualquer renegociação, mesmo que abusiva ou a ele extrema-
mente prejudicial para que não vençam antecipadamente seus débitos
e tenha tempo de cumprir sua prestação.
No caso, a renegociação nunca poderia ser negada, pois era
sanadora de um dos grandes problemas dessas relações econômicas: o
preço do crédito, o custo do serviço bancário no Brasil. O que há é
impossibilidade jurídica de sanar a nulidade ou ilegalidade por novo
acordo, por confissão de dívida ou renegociação das obrigações.{409} As
cláusulas antigas eram abusivas, tanto que foram retiradas logo, seus
efeitos também estão contaminados por essa abusividade e devem ser
retirados da relação, de modo a adaptá-lo à ordem jurídica então
vigente.{410}
Mister se faz a declaração da abusividade das cláusulas
pretéritas,
para sanar a relação, reequilibrando-a, declarando-se, por conseguinte,
indevidos os encargos e ônus resultantes dessas cláusulas abusivas
nulas, de efeitos sempre presentes. É cabível a repetição do
indébito.{411}
Note-se que a nulidade da cláusula pelo CDC é absoluta; logo, retroage,
*de juros e sua capitalização. Juros de mora e multa. Correção monetária
e
comissão de permanência. Substituição da TR pelo INPC: jurisprudência
do STJ" (Ap. Civ. 196088041, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser).
(409) Veja decisão, ainda não publicada, do TARGS em relação
inter-empresarial,
mas que no mérito pode servir como exemplo: "Ação Revisional de
Contratos Bancários e Repetição de Indébito e/ou compensação. Possibi-
lidade de revisão: relação jurídica continuativa. Impossibilidade de
validar-
se por novação obrigações nulas ou ilegais. Exegese do art. 1.007 do
Código
Civil. Limite legal de juros e sua capitalização. Distinção entre juros
remuneratórios e juros moratórios. Elevação da taxa pelo inadimplemento.
Correção monetária. Sucumbência. Provimento parcial do primeiro e
integral do segundo apelo") (Ap. Civ. 196 121 811, 4.ª C., TARGS, j.
20.2.97, Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser).
(410) Assim decisão da 4.ª Câmara Cível do TARGS: "Revisão
Contratual -
Cabimento. Cabe a revisão dos contratos bancários para adequação de suas
cláusulas à ordem jurídica, em especial no tocante à taxa de juros e sua
capitalização. Precedentes da Câmara e do Superior Tribunal de Justiça.
Extensão da revisão: relação jurídica continuativa" (Ap. Civ. 196089858,
Rel. Juiz Moacir Leopoldo Hasser).
(411) Assim a decisão do TARGS, em relação inter-empresarial de
leasing, em
\que forte no art. 29 se aplicou o CDC: "Repetição do Indébito. Aplicação
do CDC para a hipótese de considerar Erro - Caso de nulidade absoluta.
(p. 569)
tornando ilícita a cobrança realizada e diminuindo a dívida atual do
consumidor.{412} Não havendo mais "causa" para a cobrança de juros
executada, reduz-se a dívida, e o pagamento indevido deve ser devol-
vido. Descabe exigir-se a prova do pagamento errado, como previa o
art. 965 do CC., pois no sistema do CDC é dever e risco profissional
do fornecedor cobrar corretamente e segundo lhe permitem as normas
\jurídicas imperativas (vide art. 42, parágrafo único, do CDC).{413}
A alegada novação da dívida não impede a revisão de toda a
contratação entre as partes, se esta contém ou continha cláusulas nulas.
O controle do conteúdo da relação de consumo contratual autorizado
pelo CDC se mostra possível mesmo com o contrato findo, segundo
a jurisprudência,{414} pois absoluta a nulidade{415} e (pós) eficaz o
paradigma
*É cabível a repetição do indébito em contratos já quitados. Quem cobra
juros acima de 12% viola expressa disposição de lei. Logo, não há erro
(defeito do ato anulável), mas ilícito (defeito do ato nulo). Ademais,
mesmo
que se considere erro, incide o Código de Defesa do Consumidor, inversão
do ônus da prova. Assim não cabe ao devedor provar que pagou com erro,
para repetir o indébito, é à instituição financeira que incube demonstrar
que
cobrou com acerto. Logo, é a instituição financeira quem deve provar que
não houve erro.Voto vencido. Apelação desprovida" (Ap. Civ. 196 246 151,
5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova).
(412) Note-se que mesmo se a nulidade imposta pelo CDC fosse, ad
argumentandum, relativa, não teria sido sanada pelo novo acordo, porque
também contrato de adesão, segundo o art. 54 do CDC, não se presumindo,
pois, que o interessado (prejudicado), o consumidor, com ela tenha
concordado efetivamente, se entrou com ação específica em contrário para
rever o texto e retirar da relação continuada os efeitos dos abusos antes
cometidos. Frise-se que a nulidade imposta pelo CDC é absoluta, até mesmo
porque os direitos assegurados no Código são indisponíveis, uma vez que
o CDC é norma de ordem pública (art. 1.º do CDC), não prevalecendo sobre
eles os acordos e contratos particulares.
(413) Assim concorda Benjamin, Forense, 3,ª ed., p. 248-249.
(414) No voto vencido da decisão antes mencionada defendia o
relator inicial, Juiz
Márcio Borges Fortes, que "a revisão de cláusulas contratuais só se
mostra
possível quando ainda em curso o contrato", sendo então a autora
"carecedora
da pretensão deduzida na inicial, por absoluta impossibilidade jurídica
do
pedido" (voto do relator vencido, p. 3-4 do citado acórdão, Ap. Civ. 196
246 151, 5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova).
(415) Assim o relator vencedor no referido acórdão: "Cobrar juros
acima de 12%
é ato com objeto ilícito, pois afronta texto expresso de lei. Logo é ato
nulo (p. 570)
da boa-fé. Note-se aqui a força do princípio da boa-fé objetiva no novo
direito dos contratos, força que permite, ao exemplo da pós-eficácia dos
deveres anexos (de sigilo, de cooperação, de cuidado e de não-
\concorrência), uma pós-eficácia do controle do sinalagma inicial (!),
do equilíbrio econômico da relação e da licitude dessas cobranças
abusivas, mesmo quitado o contrato, realizado - teoricamente - o seu
fim principal.
A cláusula e a prática em contratos de adesão que permite a
renegociação prejudicial ao consumidor, a revisão contratual abusiva
de forma a fraudar o controle do conteúdo da relação contratual
continuada é contrária à boa-fé e a lealdade normal entre parceiros
contratuais reiterados. Se válida fosse, seria figura próxima a fraude
à lei, pois traz um véu de "legalidade" a uma relação contínua que
por anos sofreu o impacto da abusividade das cláusulas principais.
Essa renegociação, essa revisão contratual, autorizada em cláusula e
mesmo que consensual, não pode ter como efeito sanar a nulidade
absoluta imposta pelo CDC em seu art. 51 e seguintes. Não há como,
por manifestação de vontade das partes, mesmo que teoricamente
livre, escapar ao controle e ao patamar mínimo de boa-fé e equilíbrio
imposto imperativamente pelo CDC. Essa também é a lógica do
Projeto de Código Civil de 1984 quando, em matéria de novação,
expressamente dispõe que: "Não podem ser objeto de novação
obrigações nulas" (art. 366 do Projeto 118/84). O absolutamente nulo
não se sana por vontade das partes!
Ainda, quanto ao Projeto de Código Civil de 1984, deve ser
também analisado um outro aspecto, pois que este projeto legislativo
positiva a figura da lesão, valorizando - pelo menos à primeira vista
- o mencionado estado de "premência", de "necessidade", de
"inexperiência" que acaba por levar o consumidor a aceitar "prestação
manifestamente desproporcional" (art. 156 do Projeto 118/84). Esse
*(inválido). (...) esta Câmara tem aceitado, sem qualquer dissonância, a
revisão (e por conseqüência o abatimento de valores pagos a maior) em
casos de continuidade negocial em que os contratos subseqüentes quitam
\os conseqüentes. Sei, o presente caso é diferente. Naquelas hipóteses o
pagamento do contrato dá-se por via da novação. Aqui o pagamento foi
feito
em dinheito. A lei não restringe forma de pagamento, para a imposição do
indébito (...) não cabe ao julgador restringir" (...) (Voto do Relator,
p. 6, Ap.
Civ. 196 246 151, 5.ª C. TARGS, j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova). (p.
571)
paradigma da lesão, parece-me, data venia, porém, não ser o melhor,
pois remete a uma consideração econômica e não moral da divída
consolidada na novação "sanadora". Note-se igualmente que a lesão
positivada no Projeto de 1984, em seu texto aprovado pelo Senado, não
é o referido paradigma de equilíbrio geral, mas sim um vício da
vontade, vontade esta privada revisitada e revalorizada. Sendo assim,
a lesão pelo Projeto de novo Código Civil será sancionada somente com
a nulidade relativa (art. 177, II), como um outro vício da vontade.
Penso que no caso em exame não há vício da vontade, mas
vontade, vontade limitada por novos paradigmas legais, pois não há
mais espaço para o auto-regramento privado através de cláusulas
consideradas abusivas pelo CDC; justamente por ser de ordem pública
a norma do CDC é indisponível pela vontade das partes. A ratio no
CDC é a proteção da vontade do consumidor, limitando também o seu
poder de auto-submissão ao outro co-contratante, visualizando de
forma bastante realista que assim como o consumidor aceitou sem
discutir o primeiro texto contratual por adesão, aceitará também o da
renegociação ou da novação, mas que ex vi lege nenhum dos dois pode
praticar abusos ou autorizar práticas contrárias ao novo patamar de boa-
fé nas relações de consumo. {416}
Sem querer trazer uma conclusão stricto sensu a tema tão novo
e polêmico como o aqui exposto, gostaria de frisar, por fim, que em
face da realidade atual impõe-se pensar as relações bancárias múltiplas
atuais e pós-modernas como contratos cativos de longa duração
submetidos ao novo regime contratual do CDC, sempre que o outro
co-contratante for um consumidor. As operações bancárias, os
contratos oferecidos no mercado brasileiro, envolvendo serviços e
produtos, dentre eles o crédito, estão regidos pelas regras gerais sobre
* (415) Assim pondera o Juiz Carlos alberto Alves Marques na
referida Ap. Civ.
196 246 151, 5.ª C. TARGS,j. 12.6.97, Rel. Juiz Rui Portanova, p. 6:
"(...)
tratando-se de contrato de adesão, não é ao devedor que incube provar ter
pago com erro, para repetir o indébito, é ao Banco que cabe demonstrar
ter cobrado com acerto, para inviabilizar a pretensão (...) De fato, não

como negar que os contratos bancários, como o questionado, são de adesão,
já que as instituições bancárias os apresentam prontos, segundo as
diretrizes
da orientação macroeconômica vigorantes, legais ou não, constitucionais
ou
não, sem que o cliente possa discutir suas cláusulas, tal como está no
art.
54, do CDC, que se aplica aos serviços bancários, financeiros e de
crédito,
\como, com evidente clareza, consagra o § 2.º, do art. 30 da dita lei".
(p. 572)
contratos e pelas regras especiais do CDC, em caso de contratos
bancários de consumo. As relações contratuais bancárias são múltiplas
e complexas e visualizadas hoje como formadas por um feixe de
deveres principais e anexos negociais, e de deveres de informação,
e de lealdade pré e pós-negocial, isto é, de "vinculações extranego-
ciais"{417} e negociais que se prolongam no tempo a sujeitar os
contraentes a deveres indisponíveis.
Há, efetivamente, uma nova geração de contratos de consumo de
massa que demonstra uma importância renovada (e mesmo avassaladora)
na prática jurisprudencial atual e que estamos aqui denominando de
pós-moderna ou de "contrato cativo de longa duração", mas que
também pode ser considerada "relacional", se assim preferirem. Mais
importante do que acrescentar uma nova denominação a esses novos
e velhos contratos, hoje, complexos é identificar essa nova prática e os
desafios propostos por essas relações contratuais em cadeia, fluidas,
complexas, solidárias, múltiplas, formalmente desconectadas, mas
intrinsicamente acessórias ao consumo e que reduzem a uma impres-
sionante posição de catividade e de extrema vulnerabilidade técnica e
jurídica o leigo, o consumidor. Do civilista atual esperasse possam
contribuir seus estudos para o desenvolvimento de uma nova linha de
pensamento, assentada nas figuras, conceitos e direitos da antiga
dogmática do século XIX, mas que sejam capazes de resolver os
problemas práticos do dia-a-dia dessa nossa complexa vida em socie-
dade e do desafiante mercado atual. O direito privado deve ser um
instrumento de Justiça e de equilíbrio das relações, a criar harmonia
em sociedade e a incentivar o tratamento leal e de boa-fé entre todos,
e não um instrumento para perpetuar abusos e consolidar desequilíbrios
contratuais continuados.

2. Princípio da confiança

A função social do contrato, reconhecida na nova teoria


contratual,
a transforma de simples instrumento jurídico para o movimento das
riquezas do mercado, em instrumento jurídico para a realização dos
legítimos interesses do consumidor, exigindo, então, um regramento
legal rigoroso e imperativo de seus efeitos.
\* (417) Cordeiro, p. 24, citando ensinamentos de Canaris, in
Bankvertragsrecht,
vol. 1. (p. 573)
A manifestação de vontade do consumidor é dada almejando
alcançar determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação
dos fornecedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado criam no
consumidor expectativas, também, legítimas de poder alcançar estes
efeitos contratuais. No sistema tradicional seus intentos poderiam vir
a ser frustrados, pois o fornecedor, elaborando unilateralmente o
contrato, o redigia da forma mais benéfica a ele, afastando todas as
garantias e direitos contratuais, que a lei supletiva civil permitisse
(direitos disponíveis). No sistema do CDC leis imperativas irão
proteger a confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual,
mais especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim
que razoavelmente dela se espera, irão proteger também a confiança
que o consumidor deposita na segurança do produto ou do serviço
colocado no mercado.
Interessante notar que o mandamento de proteção da confiança
\(Vertrauensgebot) está intimamente ligado, pode-se mesmo afirmar
ser uma conseqüência ética, ao anonimato das novas relações sociais.
Como as relações contratuais e pré-contratuais, a produção, a
comercialização são massificadas e multiplicadas, sem que se possa
claramente identificar os beneficiados (consumidores e usuários), foi
necessário criar um novo paradigma. Um novo paradigma mais
objetivo do que a subjetiva vontade, boa ou má-fé do fornecedor in
concreto, mas sim um standard de qualidade e segurança que pode
ser esperado por todos, contratantes, usuários atuais e futuros
(expectativas legítimas).{418}
Note-se que a ciência do direito para proteger convenientemente
a confiança despertada pela atuação dos fornecedores no mercado terá
que superar a summa divisio entre a responsabilidade contratual e extra-
contratual, e o fará revigorando a figura dos deveres anexos
\(Nebenpflichten). Estes são deveres de conduta, deveres de boa-fé
presentes nas relações sociais mesmo antes da conclusão de contratos,
presentes mesmo depois de exauridas as prestações principais ou em
caso de contratos nulos ou inexistentes. Em verdade, os deveres anexos
\* (418) Nesse sentido, em excelente exposição, Pasqualotto,
\"Riscos", pp. 75 e 55.
\esta mesma linha de argumentação foi usada na famosa decisão alemã
\"Limonaden-Fa1P", em que uma garrafa de refrigerante explodiu na casa do
\consumidor, ferindo seu filho de 3 anos, o qual perdeu um olho e parte
da
\visão do outro olho, BGH, NJW, 1988, pp. 2.611 e ss. (p. 574)
de cuidado, de informação, de segurança e de cooperação estão
presentes em todas as relações, mesmo as extracontratuais, pois são
\deveres de conduta humana (Verkehrspflichten), só indiretamente (ou
eventualmente) dirigidos a prestação contratual.
A massificação, a despersonalização, o anonimato das relações de
consumo, principalmente tomando em consideração o novo papel da
publicidade e das técnicas de venda na economia,{419} complementam-
se com outro elemento desafiador que é a complexidade tecnológica
dos atuais produtos oferecidos no mercado.
Por mais simples que a conjunção destes elementos pareça, o
resultado jurídico é a mudança das expectativas do consumidor na sua
relação contratual com o comerciante. Ao comprar um remédio em uma
pequena farmácia ou um refrigerante em um bar, há que se perguntar o
jurista que pretensão possui o consumidor contra o fornecedor direto em
caso de dano (e normalmente danos graves) a sua saúde e de sua família?
Em outras palavras, se o fornecedor direto não mais "domina" o produto
por mais corriqueiro que seja, se o comerciante não conhece sua fórmula,
não o testa, não o examina, como pode ter agido culposamente ao
revendê-lo? Teria o comerciante violado ou descumprido um dever seu
ao não examinar o produto, ao colocá-lo no mercado? Resta a pretensão
contratual tradicional, mas esta nem sempre é ampla o suficiente para
cobrir o efetivo ressarcimento dos danos sofridos. A noção de culpa, e
mesmo o recurso à presunção de negligência ou imperícia do fornecedor
direto, portanto, não são suficientes para dividir de forma justa os
novos
riscos na sociedade de consumo.
A tendência mundial é, portanto, de imputar tal responsabilidade
por danos à saúde e segurança diretamente ao fabricante, produtor ou
importador e, em caso de vício contratual por inadequação da coisa
adquirida, prever a responsabilidade solidária de toda a cadeia de
fornecedores, diretos e indiretos. Trata-se no primeiro caso de uma
transferência de funções, de papéis, em uma relação tripla ou triangular,
entre o consumidor final, o fornecedor direto (que a doutrina alemã
\denomina "pessoa de ligação", Zwischenperson) e o fornecedor indi-
reto, único que domina a técnica do produto.{420}
* (419) Assim ensina Pasqualotto, Riscos, p. 75.
(420) No direito alemão esta troca de papéis foi esclarecida no
leading case
\Hünerpestfall (BGHZ 51, 91-108), no qual a Corte Federal Alemã, em (p.
575)
Transferindo a função de "garantidor", antes cumprida pelo
fornecedor direto (comerciante) para o fabricante, persegue-se assim a
realização das expectativas legítimas de segurança dos consumidores
frente aos produtos que consomem. Esta mudança de papéis e a
imputação de responsabilidades conjuntas a indivíduos vinculados e
não vinculados por laços contratuais, demonstra a atual tendência de
superar a estrita divisão entre a responsabilidade contratual e
extracontratual{421} em matéria de proteção do consumidor e das pessoas
ex vi lege a ele equiparadas.{422} A positivação no CDC desta tendência
merece uma análise acurada.
É o princípio da Confiança, instituído pelo CDC, para garantir ao
consumidor a adequação do produto e do serviço, para evitar riscos e
prejuízos oriundos dos produtos e serviços, para assegurar o ressarci-
mento do consumidor, em caso de insolvência, de abuso, desvio da
pessoa jurídica-fornecedora, para regular também alguns aspectos da
inexecução contratual do próprio consumidor. Todos estes reflexos do
princípio da confiança são tema de nossa análise.

2.1 Novo regime para os vícios do produto

Analisar o regime legal dos vícios do produto, no sistema


introduzido pelo CDC, é analisar o problema da responsabilidade civil.
Os vícios representam na sistemática do CDC a imputação da respon-
sabilidade dos danos (contratuais, extracontratuais, patrimoniais ou
morais) ao fornecedor. Os "vícios" no CDC, segundo a melhor
doutrina,{423} são os vícios por inadequação (arts. 18 e ss.) e os vícios
\por insegurança (arts. 12 e ss.). O novo regime dos "vícios" possui
assim aspectos contratuais e extracontratuais.
*26.11.68, exculpou o veterinário, que havia vacinado os animais, de
qualquer responsabilidade contratual pela "peste" do qual foram vítimas
por
defeito da vacina e impôs ao fabricante da vacina a responsabilidade
(extracontratual) pelo defeito e ônus pela prova da inexistência do
defeito
e de negligência na sua fabricação.
\ (421) Assim tb. Viney, 11300, n. 245.
\ (422) Segundo Viney, Introduction, p. ~ é na responsabilidade
dos profissionais
ante os consumidores que a summa divisio se mostra particularmente
inoportuna e tende a ser superada.
(423) Assim Benjamin, Comentários, p. 38. (p. 576)
Devido ao aspecto contratual que queremos imprimir a este
trabalho, vamos nos concentrar no regime dos vícios por inadequação
ou por desconformidade{424} alertando que tal regime não é mais
simplesmente o de uma responsabilidade contratual (consumidor/
fornecedor-direto);{425} a responsabilidade por vícios ultrapassa tais
barreiras para ser imputada a um número maior de agentes, através da
solidariedade, imposta pelo art. 18 do CDC, a todos os fornecedores
da cadeia de produção. Nasce então a dúvida sobre qual seria o
fundamento desta nova e mais ampla responsabilidade civil do forne-
cedor.
De fato, "toda a manifestação da atividade humana traz em si o
problema da responsabilidade", no dizer do mestre Aguiar Dias,{426}
responsabilidade seria "a repercussão obrigacional da atividade do
homem". Esta repercussão ocorrerá principalmente se o homem viola
dever, obrigação imposta pelo direito (inclusive a que regula a força
obrigatória dos contratos).{427} A idéia nuclear não é mais um juízo de
valor negativo sobre a conduta dos agentes, mas, a necessidade de
reparação do dano.{428}
Hoje, mais do que nunca a culpa é noção insuficiente como
geradora da responsabilidade civil. As barreiras entre as responsabili-
dades de origem contratual e extracontratual estão cada vez mais
* (424) Assim os autores franceses distinguem entre "obrigação de
segurança" e
obrigação de "conformidade", veja Calais-Auloy, L’Influence, p. 249.
(425) Não seguimos neste trabalho a teoria francesa da ficta
existência de uma
relação contratual entre o fabricante e todos os consumidores, baseada
na cadeia de contratos entre os fornecedores. Esta teoria tem fortes
inconvenientes processuais, não beneficiando o consumidor, que hoje
possui teorias jurídicas mais ágeis e eficazes (responsabilidade
objetiva,
deveres anexos etc).
(426) Aguiar Dias, vol. 1, pp. 1 e 2.
(427) Seguimos aqui a noção italiana de negócio jurídico como
espaço reservado
e protegido pelo direito para a autonomia da vontade, possuindo, no caso
do contrato de consumo, a lei supremacia sobre a vontade, veja no
Capítulo
1, sobre renovação da teoria contratual os títulos 1 e 3.
(428) Conclui Ghersi, Reparación, p. 35, que "todo daño debe ser
reparado por
dos razones: la necesidad de conservación individual y social de los
bienes
y servicios, desde un punto de vista económico - por su escasez y alto
costo
\de reposición y el respecto al ser humano, por su sola existencia",
propondo
assim uma nova teoria geral da "reparação de situações danosas", p. 36.
(p. 577)
fluidas, de modo que mesmo os franceses, apegados ao seu sistema de
estreita separação entre elas e de não cumulação{429} de pretensões
\originárias de áreas diferentes ~(principle du non-cumul), tiveram de
criar em matéria de defesa do consumidor um terceiro caminho, uma
responsabilidade per si mista.{430} Procura-se uma unidade teórica da
responsabilidade, não mais baseada na culpa como noção transcenden-
te, procura-se um outro fundamento unitário, mesmo reconhecendo a
necessária dualidade técnica que existe entre a responsabilidade de
origem contratual e a extracontratual.{431}
O Princípio da Proteção da Confiança, confiança esta despertada
no consumidor pelos prodútos e serviços colocados no mercado pela
atividade dos fornecedores, exige que se impute, que se responsabilize
um maior número de agentes da cadeia de produção, visando à efetiva
reparação da vítima/consumidor, como ordena o art. 6.º, inciso VI
do CDC.
Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor,
estamos assistindo mais um passo na evolução do direito civil a procura
da efetiva reparação dos danos sofridos pelas vítimas.{432} Como a noção
de culpa já não mais satisfaz,{433} procura o direito outros elementos
que
possam fundamentar a obrigação de reparação do dano, seja através da
imposição de deveres anexos ao contrato (dever de qualidade do
produto), de deveres anexos à própria atividade produtiva (dever geral
de qualidade do produto), seja através da imposição de novas garantias
implícitas (não só contra a evicção e contra o vício redibitório, mas
garantia de adequação de todo produto introduzido no mercado,
podendo pensar se mesmo em uma garantia da segurança do produto).
Assim, no sistema do CDC, da tradicional responsabilidade
assente na culpa passa-se a presunção geral desta e conclui-se com a
imposição de uma responsabilidade legal. O novo regime de vícios no
\* (429) Sobre o princípio de não cumulação (non-cumul), veja
Mazeaud, p. 384,
n. 403 e ss.
(430) Veja as conclusões de André Tunc, p. 33.
\ (431) Veja a exposição de Aguiar Dias sobre as doutrinas no
direito comparado,
\vol. 1, p. 426, n. 154-D.
(432) Veja nossas posições sobre a responsabilidade civil, no
artigo "Novos
Rumos" in RT 629/71 e ss.
(433) Assim ensina tb. Aguiar Dias, p. 18. (p. 578)
CDC caracteriza-se como um regime de responsabilidade legal do
fornecedor, tanto daquele que possui um vínculo contratual com o
consumidor, quanto daquele cujo vínculo contratual é apenas com a
cadeia de fornecedores.{434}
A doutrina brasileira mais moderna está denominando Teoria da
Qualidade,{435} o fundamento único que o sistema do CDC instituiria para
responsabilidade (contratual e extracontratual) dos fornecedores. Isto
significa que ao fornecedor, no mercado de consumo, a lei impõe um
dever de qualidade dos produtos e serviços que presta. Descumprido
este dever surgirão efeitos contratuais (inadimplemento contratual ou
ônus de suportar os efeitos da garantia por vício) e extracontratuais
(obrigação de substituir o bem viciado, mesmo que não haja vínculo
contratual, de reparar os danos causados pelo produto ou serviço
defeituoso). A Teoria da Qualidade se bifurcaria, no sistema do CDC,
na exigência de qualidade-adequação e de qualidade-segurança, se-
gundo o que razoavelmente se pode esperar dos produtos e dos serviços.
Nesse sentido haveriam vícios de qualidade por inadequação (arts. 18
\e ss.) e vícios de qualidade por insegurança (arts. 12 a 17) do
CDC.{436}
A esclarecedora apresentação da Teoria da Qualidade por seu
iniciador no Brasil, Antônio Herman Benjamin,{437} e a sua perfeita
adaptação às normas introduzidas pelo CDC no ordenamento jurídico
brasileiro, tornam desnecessária qualquer discussão sobre a utilidade
desta teoria na interpretação e no entendimento do novo regime de
responsabilidade.
Realmente, a responsabilidade do fornecedor em seus aspectos
\contratuais e extracontratuais, presente nas normas do CDC (arts. 12
a 27), está objetivada, isto é, concentrada no produto ou no serviço
prestado, concentrada na existência de um defeito (falha na segurança)
ou na existência de um vício (falha na adequação, na prestabilidade).
* (434) Veja nossas conclusões sobre a natureza da
responsabilidade pelo fato do
produto impostas aos fornecedores pelo CDC, no título 2.4, deste
Capítulo.
(435) Veja, excelente, Benjamin, Comentários, pp. 38 e ss.,
baseando-se nos
mestres consumeristas Bourgoignie e Calais-Auloy.
(436) O CDC não menciona os vícios por insegurança, e sim a
responsabilidade
pelo fato do produto ou do serviço e a noção de defeito; esta
terminologia
nova, porém, é muito didática ajudando na interpretação do novo sistema
de responsabilidade.
(437) Comentários, Saraiva, pp. 38 a 43. (p. 579)
Observando a evolução do direito comparado há toda uma evidência
que o legislador brasileiro inspirou-se na idéia de garantia implícita do
\sistema da COmmon law (implied warranty). Assim, o produto ou
serviços prestados trariam em si uma garantia de adequação para o seu
uso e, até mesmo, uma garantia referente à segurança que deles se
espera. Há efetivamente um novo dever de qualidade instituído pelo
sistema do CDC, um novo dever anexo à atividade dos fornecedores.
Trata-se, como afirmamos anteriormente, de uma responsabilida-
de legal. O dever anexo de qualidade, qualidade-adequação, e seu
reflexo, o vício por inadequação do produto ou do serviço, substituem
no sistema do CDC, com largas melhoras, a noção de vício redibitório.
Mas tratando-se de responsabilidade pelo fato do produto, responsabi-
lidade puramente extracontratual e não mista, como a oriunda da nova
noção de vício (art. 18 do CDC), consideramos que o sistema instituído
pelo CDC de uma garantia de qualidade foi complementado por noções
oriundas, também, do direito comparado, no caso, da Comunidade
Econômica Européia. Esta influência européia destaca a importância da
noção de defeito, de modo a evitar as falhas do sistema da common law
(de origem contratual), procurando, assim, alcançar uma responsabili-
dade objetiva eficaz, que está sendo chamada na Europa de responsa-
bilidade não-culposa, e cuja introdução ou não no ordenamento
jurídico brasileiro será examinada em detalhes no título 2.4 deste
capítulo.
Feita esta ressalva, podemos concluir que a Teoria da Qualidade,
proposta pelo mestre de São Paulo, permite uma releitura mais adaptada
à realidade atual da garantia do vício redibitório, tradicionalmente
restrita como responsabilidade contratual, e serve para acentuar a
natureza independente da culpa da responsabilidade pelo fato do
produto, objetivando-a na atividade do fornecedor, constituindo-se,
assim, em instrumento eficaz para atingir a proteção do consumidor.
Tratando-se de Direito do Consumidor, a sua causa primeira,
a razão de ser de todos estes seus novos institutos, deve ser a atividade
do sujeito protegido pelo direito, isto é, o consumidor. O direito muda,
evolui a fim de proteger o consumidor, seja em suas expectativas
em relação à prestação contratual, seja em suas expectativas em
relação a um tipo determinado de serviço ou de produto, sua
adequação para determinados fins, ou a segurança que dele razoa-
\velmente se espera. (p. 580)
Nesse sentido, temos pautado toda a sistemática deste trabalho em
princípios, princípios estes que seriam a origem das normas do CDC.
O princípio, no caso em exame, seria o da proteção da confiança, o
da proteção das legítimas expectativas, contratuais e extracontratuais,
criadas no mercado de consumo pela atividade dos fornecedores. Estes
por sua atividade, e não só com a colocação de sua marca no produto,
mas todos os que contribuíram para a colocação daquele produto no
mercado, como técnicos, como profissionais, prometeram uma obra
isenta de vícios ou defeitos; nisto confiou o consumidor (contratante
ou não).
O princípio das novas normas sobre vício seria o da proteção da
confiança, que o produto ou serviço despertou legitimamente no
consumidor. Confiança{438} esta na adequação do produto ou serviço aos
\"fins que razoavelmente deles se esperam", segundo dispõe o art. 20,
§ 2.º do CDC.
O método escolhido pelo sistema do CDC foi positivar um novo
dever legal para o fornecedor, um dever anexo, um dever de qualidade,
como ensina Benjamin.{439} Se a Teoria da Qualidade concentra-se no
objeto da prestação contratual (produto ou serviço), é porque visualiza
o resultado da atividade dos fornecedores de modo a imputar-lhes
objetivamente o dever de qualidade dos produtos que ajudam a colocar
no mercado. Mas seu fim é o mesmo de todas as normas do CDC, a
proteção do consumidor, assegurando seu ressarcimento, evitando
novos danos, melhorando a qualidade de vida, trazendo maior harmonia
e segurança às relações de consumo.
Nesse sentido é uma teoria típica do novo Direito do Consumidor,
não devendo ser utilizada no Direito Comercial ou Direito Civil
comum, pois trata-se de uma responsabilidade legal, dependente dos
parâmetros impostos nas previsões legais.{440} Em outras palavras, a ação
do fornecedor, a sua prestação e a qualidade de sua prestação, só
* (438) Veja sobre a teoria da confiança a obra de Koendgen e
nossa exposição no
capítulo 1, título 4.2, em especial letra "c".
(439) Benjamin, Comentários, p. 39.
(440) Nesse sentido a Teoria da Qualidade seria diferente daquela
desenvolvida
pela jurisprudencia francesa, de Defeito baseada na interpretação do art.
1.641 do Code Civil, que tb. estabelece uma garantia pela funcionalidade
do bem, mas se aplica a todos, consumidores ou não, veja detalhes em
\Macena de Lima, p. 97. (p. 581)
interessa enquanto relacionada com a reação do consumidor ou alguém
a ele equiparado.
A imposição deste novo dever legal tem seus limites definidos no
\CDC,{441} o dever de qualidade liga-se ao princípio da proteção da
confiança, confiança esta depositada pelo consumidor no resultado da
atividade produtora do fornecedor, confiança esta despertada pela
atividade do fornecedor, por seu produto ou serviço, como duas facetas
da mesma realidade.
Feitas estas observações, passamos a analisar o conjunto de
disposições presentes nos arts. 18 a 26 do CDC.

a) Vícios de qualidade - vícios por inadequação - Segundo a


teoria que estamos seguindo,{442} o sistema do CDC prevê três tipos de
vícios por inadequação dos produtos: vícios de impropriedade, vícios
de diminuição do valor e vícios de disparidade informativa. Estes
últimos denominamos aqui vícios de qualidade por falha na informa-
ção, os quais por sua relação com o dever de informação, destacado
anteriormente como um dos principais do novo regime contratual do
CDC, estudaremos em seção à parte (letra b).
Quanto aos vícios por inadequação, o dispositivo mais importante
é o do art. 18 do CDC, o qual institui em seu caput uma solidariedade
entre todos os fornecedores da cadeia de produção, com relação à
reparação do dano (note-se que é um dano contratual na visão do
consumidor) sofrido pelo consumidor em virtude da inadequação do
produto ao fim que se destinava. Assim, respondem pelo vício do
produto todos aqueles que ajudaram a colocá-lo no mercado, desde o
fabricante (que elaborou o produto e o rótulo), o distribuidor, ao
comerciante (que contratou com o consumidor). A cada um deles é
imputada a responsabilidade pela garantia de qualidade-adequação do
produto. Parece-nos, em um primeiro estudo, uma solidariedade imper-
feita, porque tem como fundamento a atividade de produção típica de
cada um deles. É como se a cada um deles a lei impusesse um dever
específico, respectivamente, de fabricação adequada, de distribuição
* (441) O vício, por exemplo, só existirá se o germe do vício já
existir à época da
entrega do bem, afastando a "inadequação" causada por mau uso (veja
2.3.c)
e mesmo o vício por insegurança fica afastado se o defeito existia, mas
\houve "culpa exclusiva" da vítima (art. 12, § 1.º, III) (veja 2.4).
(442) Assim Benjamin, Comentários, p. 86. (p. 582)
somente de produtos adequados, de comercialização somente de
produtos adequados e com as informações devidas. No sistema do
\CDC, a escolha de tal dos fornecedores solidários será sujeito passivo
\da reclamação do consumidor cabe a este último. Normalmente, o
consumidor preferirá reclamar do comerciante mais próximo a ele,
mais conhecido, parceiro contratual identificado, mas o fabricante,
muitas vezes o único que possui conhecimentos técnicos para suprir a
falha no produto, será eventualmente demandado a sanar o vicio.
Dispõe o art. 18 do CDC:
"Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou
não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade...,
podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
"§ 1.º Não sendo o vício sanado, no prazo máximo de 30 dias,
pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
"I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em
perfeitas condições de uso;
"II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
"III - o abatimento proporcional do preço".
Das hipóteses de composição do vício, previstas no § 1.º do art.
18 do CDC, duas são dirigidas especialmente ao fornecedor-direto, isto
é, aquele que contratou, que vendeu o produto ao consumidor. São elas
a "restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada",
prevista no inciso II e o "abatimento proporcional do preço". Nestes
casos, o sistema do CDC também prevê uma solidariedade imperfeita;
logo todos os fornecedores respondem, em potencial, mas terão direito
de regresso contra o comerciante e vice-versa. Se a intenção do
consumidor for conseguir a rescisão do contrato (redibição) e o
abatimento do preço que pagou, irá normalmente voltar-se ao comer-
ciante, que foi o seu parceiro contratual.
Também a hipótese prevista no art. 18, in fine, de substituição
das
partes viciadas, e do prazo previsto no § 1.º, segundo a qual o
fornecedor pode tentar consertar o vício durante 30 dias, após a
reclamação do consumidor, parece que será mais usada contra o
fornecedor-final.{443}
* (443) Veja decisão do JEPC/SP, reproduzida in Direito do
Consumidor, 10/275,
com a seguinte ementa: "Aquisição de bem durável (aparelho de ar (p. 583)
Nunca é demais frisar que este prazo de 30 dias previsto no § 1.º
só será utilizado em situações especiais, que permitam a substituição
das partes do produto. Nesse sentido, é claro o § 3.º que exclui o prazo
"sempre que em razão da extensão do vício, a substituição das partes
viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto,
diminuir-lhe o valor...". É um critério bastante subjetivo, que será
sempre interpretado pró-consumidor, tendo em vista as expectativas
legítimas que o produto despertou nele. Tratando-se de uma sociedade
de consumo, o eventual conserto de bens de grande valor geralmente
acarreta a diminuição de seu valor.
O § 3.º do art. 18 também exclui este prazo de conserto, a favor
do fornecedor, "sempre que... se tratar de produto essencial". O CDC
não define o que é um produto essencial; a princípio todos os produtos
comestíveis e de uso pessoal básico já podem ser aí incluídos. O critério
deve ser lido sob o impacto do princípio da proteção da confiança;
assim, se o consumidor compra um sapato, mesmo que para utilizar em
festas e o sapato apresenta um vício de inadequação, a loja não pode
exigir, como ocorreu em Porto Alegre, "o prazo legal de 30 dias" para
consertar o sapato ou "talvez depois substituí-lo por outro semelhante".
O produto é essencial, quanto à expectativa do consumidor de usá-lo
de pronto; logo, deve o consumidor poder exigir de pronto a substi-
tuição do produto.
Ainda quanto ao prazo do § 1.º do art. 18, confirma a tendência
de ter sido criado para benefício do fornecedor-direto o fato do § 2.º
do art. 18 prever a possibilidade de convenção contratual a respeito.
Efetivamente dispõe o art. 18:
"Art. 18...
"§ 2.º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do
prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a 7 (sete)
nem superior a 180 (cento e oitenta) dias. Nos contratos de adesão, a
*condicionado) com defeito de qualidade (avaria no compressor). Exigência
do fornecedor-direto do prazo de 30 dias para sanar o vício, que não se
compadece com a extensão do defeito. Produto, além do mais, que se
classifica como essencial, consideradas as circunstâncias do caso.
Interpre-
tação dos §§ 1.º e 3.º do art. 18 do CDC. Sentença reformada". (Acórdão
da Turma do Conselho Recursal, Proc. 6.133/93, rel. Juiz Jairo dos Santos
Ferreira). (p. 584)
cláusula de prazo deVerá ser convencionada em separado, por meio de
manifestação expressa do consumidor".
O prazo do § 1.º, apesar de utilização rara, como frisamos, tendo
em vista o princípio da confiança e o respeito às expectativas do
consumidor, trata-se de um prazo semi-dispositivo. Este é um exemplo
raro no novo Código de Defesa do Consumidor de um direito poder
ser reduzido através do contrato. A autonomia de vontade pode reduzir
este prazo para até 7 dias ou ampliá-lo, como será a regra, até 180 dias
através de previsão contratual.
Parece-nos que não foi feliz o legislador do CDC ao permitir esta
quebra no sistema, porque a hipótese de conserto do produto, de
sanação do vício amigavelmente é uma das mais interessantes para a
proteção das expectativas do consumidor. Através da norma do § 2.º
permite o CDC que este direito do consumidor, de conserto do vício,
seja postergado até por 180 dias; institui, assim, um direito do
fornecedor ao cumprimento do prazo antes que o consumidor possa
exigir a rescisão contratual, o abatimento, ou a substituição do produto.
Não se diga que a previsão da necessidade de convenção em "separa-
do", ajudará a assegurar a eqüidade da referida cláusula. Como
analisamos longamente, tratando-se de contratos de consumo, em
especial de contratos de adesão, a imposição de cláusulas pelo forne-
cedor ao consumidor, sem que este possa se eximir, é um fato. Não
importa se o consumidor lerá ou não, se terá consciência ou não dos
riscos que está correndo, a experiência mostra que ele se submeterá à
imposição do fornecedor, que ele assinará mais este papel colocado à
sua frente. Sua confiança será quebrada não só pelo vício do produto,
como também pelo prazo longuíssimo permitido em lei. Logo, a própria
norma do CDC ofende o seu fim, que seria de reequilibrar a relação
contratual. Para evitar abusos, espera-se que a jurisprudência interprete
de forma ampla a norma do § 3.º do art. 18, que afasta a imperatividade
do prazo para conserto. Somente neste caso, a interpretação será
conforme o princípio da proteção da confiança do sujeito protegido pela
nova lei, o consumidor.
Por fim, quanto à identificação do fornecedor mais visado pelas
reclamações de vícios dos produtos, cabe ainda mencionar que a
hipótese do inciso I, do § 1.º do art. 18, a da substituição do produto
por outro da mesma espécie, parece-nos a que os consumidores mais (p.
585)
utilizarão e se voltarão tanto contra o fabricante ou distribuidor quanto
contra o seu parceiro contratual, o fornecedor-direto.{444}
Este novo direito de substituição do produto viciado não estava
presente no sistema do Código Civil de 1917; ao contratante só era
permitido redibir o contrato ou reclamar o abatimento do preço (art.
1.105). Sua inclusão é muito salutar, pois permite a satisfação dos
interesses do consumidor de maneira rápida e eficaz, evitando mesmo
lides judiciais se houver uma maior conscientização dos fornecedores
sobre este novo direito do consumidor. Mas pode o consumidor exigir
outro produto, de outra marca, para substituir o produto viciado? A
hipótese foi prevista no § 4.º do art. 18, que pretende um novo
reequilíbrio das prestações contratuais com o pagamento das dife-
renças.
Dispõe o § 4.º do art. 18:
"Art. 18...
"§ 4.º Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I
do § 1.º deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá
haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos,
mediante complementação ou restituição de eventual diferença de
\preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e II, do § 1.º deste
artigo".
Em nosso estudo, de natureza contratual, devemos destacar como
um todo o novo regime legal dos vícios por inadequação que se
concentra na relação econômica equilibrada entre o objeto do contrato
e a contraprestação feita pelo consumidor.
Por fim cabe frisar que a solidariedade instituída pelo art. 18
do
CDC não parece rompida pela norma do § 5.º.{445} O novo dever legal
tem uma finalidade também educativa para os fornecedores, nesse
sentido deve ser interpretada a norma em questão. Segundo o § 5.º do
art. 18, o comerciante e o produtor identificado dos produtos in natura
são responsáveis solidários pelos vícios do produto, um porque o
produziu e outro porque o colocou no mercado e vinculou-se con-
* (444) Note-se que em toda a nossa exposição estamos recusando
aceitar a teoria
francesa da existência de uma relação contratual entre o consumidor e o
fabricante, relação esta que se baseia na ficção de uma cadeia de
contratos.
Hoje esta teoria não é mais necessária e nem traz benesses especiais ao
consumidor pelos problemas processuais que origina.
(445) Com opinião contrária Benjamin, Comentários, p. 87. (p.
586)
tratualmente com o consumidor. Se o comerciante descumprir também
seu dever de identificar a origem do produto a responsabilidade ficará
concentrada em sua pessoa, ele é o agente imputável, porque outro não
existe frente ao consumidor, destinatário da norma. Na cadeia de
produção todos são responsáveis da mesma maneira, podendo haver
ação de regresso do comerciante.
O produto inadequado no sistema do CDC é aquele impróprio e
o que tem seu valor diminuído. A segunda hipótese é mais subjetiva
e será determinada caso a caso, tendo em vista o princípio da confiança
e do equilíbrio das prestações. A primeira hipótese, porém, é mais
objetiva, e o § 6.º estabelece alguns critérios que caracterizam um
produto impróprio ao uso e ao consumo:
"I - os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos;
"II - os produtos deteriorados, alterados, avariados,
falsificados,
corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda,
aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação,
distribuição ou apresentação;
"III - os produtos que, por qualquer motivo, se revelarem
inadequados ao fim que se destinam".
A clareza da norma nos leva a comentar somente seus critérios
de aplicação. O regime de vícios pressupõe um descumprimento de um
dever anexo dos fornecedores, como analisamos anteriormente, um
dever de qualidade, dever de adequação do produto ao uso que se
destina. Nesse sentido o produto é viciado "de origem", viciado por
uma falha na sua adequação que já veio com ele quando foi colocado
no mercado. Concretamente, o CDC impõe aos fornecedores a obriga-
ção de liberar no mercado somente produtos isentos de vícios. Trata-
se de uma obrigação de resultado, não importa perquirir a culpa de
algum dos fornecedores da cadeia. O importante é o vício, que será
reclamado, normalmente, frente ao comerciante-direto, último da
cadeia, aquele que conclui o contrato com o consumidor.
Frisamos este aspecto, porque as normas de vícios do CDC não
se referem ao problema do mau uso. O mau uso liga-se ao problema
do dever de informação; cumprido este dever anexo, o fornecedor só
responde pelo vício de adequação do produto, não pelo problema de
adequação do produto oriundo de eventual mau uso pelo consumidor (p. 587)
ou terceiro. Na expressão feliz de Benjamin,{446} o germe do vício já
devia existir no momento da última atividade do fornecedor. Outro não
era o sistema do Código Civil Brasileiro, que previa o "vício oculto,
já existente ao tempo da tradição" em seu art. 1.104. No sistema do
CDC, como analisaremos em detalhes no título dedicado à garantia de
adequação dos produtos, o vício pode ser oculto ou aparente, vício da
coisa ou do serviço, sempre que haja contrato de consumo, não
necessitando ser contrato comutativo, se bem que este seja a regra.
Evitar tal vício na qualidade do produto é dever legal de todos
os
fornecedores da cadeia de produção, responsáveis pela introdução do
produto no mercado de consumo. A responsabilidade nasce com a
simples violação do dever legal, não sendo seu pressuposto a culpa do
fornecedor ou de seu preposto (negligência, imperícia, imprudência),
não importando por isso a ciência, o conhecimento ou não do vício pelo
fornecedor responsabilizado (art. 23 do CDC).
Alguns autores consideram que no caso há presunção absoluta de
culpa.{447} Outros consideram{448} que a obrigação de garantia, isto é, o
dever da qualidade que se impõe ao fornecedor, trará como resultado
da violação deste dever a atribuição de uma responsabilidade objetiva,
sem culpa, que só pode ser afastada em caso de prova de causa alheia
(mau uso, culpa exclusiva de terceiro, caso fortuito externo à atividade
do fornecedor e posterior à entrega do bem ao consumidor) ou em caso
de não aplicação da norma àquele fornecedor (fornecedor alheio ao
processo de produção daquele bem).{449}
* (446) Benjamin, Comentários, p. 114.
(447) Assim Stiglitz, p. 91 e Benjamin, Comentários, p. 114; veja
sobre presunção
de culpa como o fundamento da responsabilidade por vício a lição clássica
de Mazeaud, pp. 375 e ss.
(448) Assim propõe a Exposição de Motivos do Projeto Argentino
reproduzido
em Stiglitz, p. 135, a Lei Argentina aprovada (Lei 24.240 de 15.10.93),
porém, sofreu um veto presidencial (art. 11, parte inicial), o qual
modificou
(praticamente extinguiu) o previsto regime de garantias; veja texto
integral
da lei em nosso "Estudos". Segundo ensina Stiglitz, Estudos, p. 152,
manteve-se apenas o dever anexo de segurança, forte no art. 1.198 do CC
Argentino (Cláusula geral de boa-fé) e as regras dispositivas sobre a
garantia
contratual.
(449) Nesse sentido tb. as conclusões de Benjamin, Comentários,
p. 114,
prevendo que a exoneração do fornecedor só acontecerá se provar a
inexistência do vício, do dano, do nexo causal entre eles ou não existir
a
anterioridade do vício (causa alheia). (p. 588)
Parece-nos que, tratando-se de um dever contratual específico e
de um dever legal específico, não há mais necessidade de falar-se em
culpa, bastando a comprovação do fato, analogicamente a um
descumprimento contratual.{450} Não desconhecemos que a idéia de
presunção de culpa foi muito importante para facilitar a aprovação do
Projeto de Código, tendo em vista a forte reserva que qualquer tipo de
responsabilidade objetiva desperta nos setores mais tradicionais. O
sistema do CDC seria, assim, um sistema de compromisso, de respon-
sabilidade objetiva para o fato do produto e de presunção absoluta de
culpa na responsabilidade contratual e extracontratual por vícios de
inadequação.
Os resultados são praticamente os mesmos, tratando-se de uma
presunção que não pode ser afastada ou de uma responsabilidade
objetiva. Os resultados estão nas próprias normas do CDC, com clara
tendência a concentrar, a objetivar a responsabilidade no resultado
(falta de adequação) e não na ação (eventual culpa na fabricação do
produto, no empacotamento). Isto se deve à necessidade de responsa-
bilizar alguém pelo domínio da técnica de produzir, em uma sociedade
de massas, como a nossa.{451} Também o direito tradicional, em matéria
de vícios redibitórios, não perguntava da culpa, imputava a responsa-
bilidade ao parceiro contratual, baseado na idéia de equilíbrio das
prestações contratuais (sinalagma). Nesse sentido o sistema do CDC
não pergunta da eventual culpa, basta o resultado objetivo (existência
de um vício), a base subjetiva (quebra da confiança razoável) e a
previsão legal do dever violado.
O CDC adota, assim, uma imputação, ou atribuição objetiva, pois
todos são responsáveis solidários, responsáveis, porém, em última
análise por seu descumprimento do dever de qualidade, ao ajudar na
introdução do bem viciado no mercado. A legitimação passiva se
\* (450) Para Macena de Lima, p. 227, na conclusão de Tese de
Doutorado, a
presunção de culpa e a inversão do õnus da prova apenas mascaram uma
responsabilidade por infração de um dever próprio, que deveria ser
objetivada.
Particularmente, acredito que a noção de culpa é, no contrato,
desnecessária,
se observados os princípios de boa-fé e de proteção da confiança. Parece-
nos que em um Direito do Consumidor a culpa não deveria ser mais
pressuposto da responsabilidade.
(451) Nesse sentido só a "causa alheia" à atividade de produção e
à vida normal
do produto exoneraria o fornecedor de suportar o vício. (p. 589)
amplia com a responsabilidade solidária e com um dever de qualidade
que ultrapassa os limites do vínculo contratual consumidor/fornecedor-
direto.
Concluindo, há a imposição de um dever anexo, não só ao
contrato, como eram os vícios redibitórios, mas anexo à própria
atividade produtiva, abrangendo assim a todos os fornecedores, confor-
me dispõe o art. 18 do CDC. Podemos dizer também que o novo dever
legal afasta a incidência das normas ordinárias sobre vício redibitório,
assim como o dever legal de informar e cooperar afasta as normas
ordinárias sobre o erro.{452} O vício, enquanto instituto do chamado
Direito do Consumidor, é mais amplo e seu regime mais objetivo, não
basta a simples qualidade média do produto, é necessária a sua
adequação objetiva, a possibilidade que aquele bem satisfaça a confi-
ança que o consumidor nele depositou, sendo o vício oculto ou
aparente. Da mesma maneira, os legitimados passivamente, isto é, os
responsáveis são agora todos os fornecedores envolvidos na produção
e não só o co-contratante.

b) Vícios de qualidade por falha na informação - No sistema do


CDC a falha na informação, tipificada pela "disparidade com as
indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou
mensagem publicitária", é considerada vício de qualidade do produto
(art. 18 do CDC).
O novo regime de vícios de informação pode ter redobrada
importância também tratando-se dos chamados contratos de bagatela,
pequenas compras em supermercados, contratos de serviços de peque-
no valor, quando a oferta assegure qualidades ou prestações que não
existem no produto ou no serviço, por exemplo, a embalagem que
afirma ser o refrigerante apto para ser ingerido por diabéticos, o
shampoo que afirma ser antialérgico etc. Nestes casos o consumidor
* (452) Interessante exemplo da jurisprudência sobre a prevalência
do novo dever
legal do CDC, em matéria de qualidade, diante das normas ordinárias sobre
vício redibitório e erro, encontra-se na decisão do TJRS, cuja ementa
ensina: "Consumidor. Automóvel. Vício oculto. (...) Constitui vício
oculto
o erro quanto ao ano de fabricação, ou modelo, de automóvel, pois não se
constata, desde logo, pelo confronto da nota fiscal com o próprio
veículo.
Caso em que o consumidor adquiriu um automóvel modelo 1995 e recebeu
um modelo 1994. Apelo improvido" (Ap. Civ. 597083247, Des. Pedro
Freire, j. 10.6.97, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 184, p.
377). (p. 590)
terá as opções dos arts. 18 e 20 (substituição do produto, abatimento
do preço, rescisão contratual etc.).
Os vícios por disparidade informativa muitas vezes só poderão ser
sanados pelos fabricantes, no que se refere ao conserto ou à substituição
por outro em perfeitas condições (art. 18, caput e § 1.º, I), pois são
estes
que rotulam, embalam o produto e que conhecem as suas fórmulas. Mas
ao consumidor interessa rapidez na satisfação de suas pretensões
contratuais, por isso fará uso, também em caso de falha na informação,
das hipóteses previstas nos outros incisos do art. 18, mas diretamente
contra o comerciante, seu parceiro contratual.
Destaque-se igualmente a possibilidade do consumidor optar pela
substituição do bem por outro de outra espécie, marca ou modelo, desde
que haja complementação (ou eventual redução) do preço pago,
conforme dispõe o § 4.º do art. 18.

c) Vícios de quantidade - Segundo dispõe o art. 19 do CDC,


também em caso de vício de quantidade do produto os fornecedores
respondem solidariamente.{453} A regra do art. 19 caracteriza-se, porém,
por uma maior subjetividade já que excepciona várias hipóteses de
diferença de quantidade "decorrentes da natureza" do produto. Parâmetro
para se auferir a diferença de quantidade serão as informações cons-
tantes "do recipiente, da embalagem, da rotulagem ou da mensagem
publicitária". O art. 19 não menciona a oferta, mas a hipótese está
claramente incluída uma vez que há obrigação contratual, de cumprir
o prometido na oferta em geral e não só na publicidade.
Segundo dispõe o art. 19 o consumidor tem a sua escolha,
alternativamente:
"Art. 19...
"I - o abatimento proporcional do preço;
"II - complementação do peso ou medida;
"III - a substituição do produto por outro da mesma espécie,
marca ou modelo, sem os aludidos vícios;
"IV - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos".
* (453) O art. 18 do CDC já mencionava os vícios de quantidade,
mas o regime
legal específico é fornecido pelo art. 19. (p. 591)
As opções escolhidas parecem indicar uma tendência a permitir
a composição amigável e extrajudicial do litígio, como é a tendência
atual, evitando a morosidade e os gastos da lide judicial e privilegiando
a utilização dos Juizados de Pequenas Causas e outros foros de
conciliação.{454} O acesso à justiça está previsto expressamente como
direito básico do consumidor no art. 6.º, inciso VII do CDC.
Cabe destacar que, optando o consumidor pela substituição do
produto e não sendo esta possível, por força do art. 19, § 1.º CDC,
"poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo
diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferen-
ça de preço..."
Quanto à reparação do vício de quantidade o sistema do CDC
impõe uma responsabilidade específica do fornecedor-direto ou comer-
ciante, a qual romperia assim a normal solidariedade dos fornecedores.
É no caso previsto no § 2.º do art. 19 do fornecedor-contratante realizar
a pesagem ou a medição do produto e o instrumento utilizado não
estiver aferido segundo os padrões oficiais; neste caso assume a
responsabilidade sozinho de reparar o "vício de quantidade".{455}

2.2 Novo regime para os vícios do serviço

O CDC inova o sistema brasileiro ao introduzir uma noção de


vício do serviço, no art. 20. Não que no sistema do direito civil
tradicional não existisse remédio jurídico para a falha na execução do
serviço contratado; simplesmente, o caso era considerado como
inadimplemento contratual e não como vício redibitório.
O Código Civil regulava apenas os vícios redibitórios, aqueles
vícios ou defeitos ocultos, que tornem a coisa recebida em virtude do
contrato comutativo imprópria ao uso a que é destinada ou lhe
diminuam o valor (art. 1.101 do CCB).
A nova idéia de vício do serviço, capaz de originar até a
rescisão
do contrato, facilita a satisfação do contratante e agiliza o processo de
cobrança da prestação ou da reexecução do serviço, isto porque
* (454) Assim tb. Stiglitz, p. 49 e excelente, Benjamin,
Comentários, p. 86.
(455) Mais uma vez o CDC assume um caráter educativo, conduzindo
o
fornecedor-direto a auferir os seus instrumentos de pesagem e medição de
\forma a desonerar-se desta imputação solitária da responsabilidade. (p.
592)
concentra-se na funcionalidade, na adequação, do serviço prestado e
não na subjetiva existência da diligência normal ou de uma eventual
negligência do prestador de serviços e de seus prepostos. A prestação
de um serviço adequado passa a ser a regra, não bastando que o
fornecedor tenha prestado o serviço com diligência.

a) Vícios de qualidade dos serviços - Enquanto o direito tradi-


cional se concentra na ação do fornecedor do serviço, no seu fazer,
exigindo somente diligência e cuidados ordinários, o sistema do CDC,
baseado na teoria da função social do contrato, concentra-se no efeito
do contrato. O efeito do contrato é a prestação de uma obrigação de
fazer, de meio ou de resultado. Este efeito, este serviço prestado, é que
deve ser adequado para os fins que "razoavelmente deles se espe-
ram";{456} é o serviço prestado, por exemplo, o transporte de
passageiros,
a pintura da parede da casa, a intervenção cirúrgica ou a guarda do
automóvel na garagem, que deve possuir a adequação e a prestabilidade
normal. Está claro que o fazer e seu resultado são inseparáveis, conexos
de qualquer maneira, mas o CDC como que presume que o fazer foi
falho, viciado, se o serviço dele resultante não é adequado ou não
possui a prestabilidade regular.{457}
Se efetivamente o fornecedor agiu ou não com a diligência, o
cuidado e a vigilância normal, quando da prestação de sua obrigação,
importa apenas para a alegação de um eventual inadimplemento
contratual.{458} O recurso usado pelo CDC de instituir uma noção de vício
* (456) Veja nesse sentido, exemplo de decisão do JEPC/RS:
"Conserto de motor
realizado com deficiência - Pagamento do preço pelo cliente - Direito a
restituição do quantum despendido - Incabível argumento de que fora
serviço contratado pela metade. Não pode prosperar alegação da oficina-
ré, no sentido de ter o cliente-autor contratado o serviço pela metade. O
preço cobrado tem o condão de resolver o problema do motor objeto do
conserto, de sorte que a permanência do defeito gera direito à
restituição
do quantum despendido". (Proc. 01189753161, Rec. 65/89, rel. Dr. Roberto
Laux, 1.ª Câm. Recursal do Juizado Especial de Pequenas Causas,
12.10.89).
(457) Veja na letra "a", 2.1 a discussão se se trata de uma
presunção absoluta de
culpa do fornecedor pelo vício ou de uma responsabilidade objetiva. Já
nos
manifestamos no sentido de tratar-se de uma responsabilidade oriunda de
um dever legal e objetivamente imputada, em caso de violação do dever que
frustre a confiança depositada pelo consumidor no produto.
(458) Veja, quanto ao inadimplemento contratual, interessante
decisão: "Respon-
sabilidade Civil Solidária. Empresas integradas na venda de consórcio (p.
593)
do serviço facilitará a satisfação das expectativas legítimas dos consu-
midores também nos contratos de serviços, pois objetiva os critérios
jurídicos para determinar se há ou não falha na prestação do fornecedor.
Dispõe o art. 20 CDC, quanto à qualidade dos serviços:
"Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de
qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o
valor, podendo o consumidor exigir, alternativamente e a sua
escolha:
"I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando
cabível;
"II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente
atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
"III - o abatimento proporcional do preço".
No caso de vícios de qualidade do serviço importa caracterizar o
que seja um serviço "impróprio". Segundo o sistema do CDC, "impró-
prios são os serviços que se mostrem inadequados para os fins que
razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam
às normas regulamentares de prestabiLidade". (art. 20, § 2.º).
Nunca é demais repetir, que esta concentração feita do sistema
do CDC no "serviço prestado" não significa que todas as obrigações
de fazer passam a ser obrigações de resultado. Se a obrigação é de
meio (por exemplo, um tratamento médico, uma cirurgia), só se pode
exigir que o fornecedor preste um serviço adequado para os fins que
razoavelmente dele se espera (salas de cirurgia com o material
necessário, limpas,{459} preparadas para emergências, ou um tratamento
\*respondem solidariamente por conduta ilícita praticado funcionário de
uma
delas, que vende a mais de um cliente a mesma quota consorcial. Recursos
\improvidos. Sentença mantida". (Rec. 473/93, rel. Dr. Cíaudir Fidélis
\Faccienda, 3.ª Câm. Recursal, Porto Alegre, 13.5.93 JEPC/RS); veja tb.
no
caso de contratos médicos, RT 695/84, considerando razoável o serviço
prestado e, contra, RJTJRS 160/294, com condenação por danos morais.
(459) Grande problema é a responsabilidade por infecção
hospitalar, veja decisão
do TJRS, Ap. 595 060 146, Des. Osvaldo Stefanello, j. 19.12.95, cuja
ementa é: "Responsabilidade Civil. Morte por infecção contraída em
hospital. Entidade hospitalar, pessoa jurídica. Aplicação dos preceitos
contidos no Código do Consumidor. É o hospital, pessoa jurídica,
civilmen-
te responsável por danos materiais e morais sofridos por familiares de
(p. 594)
médico com remédios e exames normais para aquele caso), mas não
se pode exigir que o serviço alcance um determinado resultado (cura
do paciente ou evitar a sua morte).{460} Note-se, porém, se o serviço
é considerado obrigação de resultado (como vacinação, transfusão
de sangue, exames simples, segurança dos instrumentos que utiliza
e visitas),{461} basta demonstrar o descumprimento do contrato, o
vício do serviço.{462} Em outros casos trata-se da responsabilidade
por perda de uma chance{463} ou de deveres inerentes à internação
*pessoa que, por infecção hospitalar contraída durante internamento, vier
a
morrer. Hospital que não presta apenas serviços de hotelaria, mas
fornece-
dor do equipamento e instrumentos cirúrgicos, empregador do corpo de
funcionários, mesmo graduados, além de credenciador do corpo médico,
sendo, conseqüentemente, responsável por tudo o que ocorrer no período
de internamento do paciente, inclusive e especialmente no campo da
responsabilidade por dano que decorrer à saúde ou à vida do paciente.
Responsabilidade só afastada se o dano decorrer do imponderável, do
fortuito ou da força maior, causas externas e excludentes de
responsabili-
dade. Ademais, entidade prestadora de serviços, está, o hospital, sujeito
ao
CDC, Lei 8.078/90, inclusive no que diz com a inversão do ônus de provar
e ao princípio da responsabilidade objetiva (...)" No mesmo sentido, veja
decisão do TAMG, in Revista Direito do Consumidor v. 9, p. 151.
(460) Sobre as obrigações de meio dos médicos, de diligência e
zelo, veja TJSP,
\Ap. Civ. 177.280-1/8, Rel. Souza Lima, e também Andorno, p. 224 e ss.
(461) Assim Aguiar Jr., p. 39, citando base doutrinária e
jurisprudencial.
(462) Polêmica ainda é a inclusão das cirurgias estéticas como
obrigação de
resultado, apesar de ser esta a tendência. Veja, com revisão da doutrina,
\Forster, Nestor José. Cirurgia plástica estética: obrigação de resultado
ou
obrigação de meios?, in RT 738, p. 83-89. Veja considerando obrigação de
resultado, TJRS, Ap. Civ. 595 068 842, j. 10.10.95, Rel. Des. Osvaldo
Stefanello, em cuja ementa lê-se: "(...) A cirurgia plástica de natureza
meramente estética objetiva embelezamento. Em tal hipótese o contrato
médico-paciente é de resultado, não de meios. A prestação do serviço
médico há de corresponder ao resultado buscado pelo paciente e assumido
pelo profissional da medicina. Em sendo negativo esse resultado ocorre a
presunção de culpa do profissional (...)".
(463) Veja também o leading case do TJRS, após o CDC,
reconhecendo a "perda
de uma chance" como fator de responsabilidade médica, Ap. Civ.
592.020.846,
Araken de Assis, in RTJRS, n. 158, p. 214: "Liberando o paciente e
retardando seu reingresso a instituição hospitalar, o apelante fê-lo
perder
chance razoável de sobreviver, embora a virulência estatística da
doença".
Veja, anterior ao CDC, Des. Ruy Rosado de Aguiar Jr., in RJTJRS, n. 149,
(p. 595)
hospitalar{464} e de deveres de pós-eficácia do contrato.{465} Nestes
casos,
os limites são do próprio tipo de contrato que vincula as partes não
pertencendo à noção de vício do serviço instituída pelo CDC.
Por fim, parece-nos que o art. 20 concentra imputação da
responsabilidade por vício do serviço naqueles que efetivamente
prestam o serviço para o consumidor. Aqui há um dever de qualidade,
dever de adequação do serviço. O fornecedor é responsável, não
importando a sua culpa. a culpa ou não de seus prepostos, de seus
eventuais auxiliares (como no caso dos contratos de viagem turísti-
ca),{466} de seus representantes. Não é demais lembrar aqui a responsa-
bilidade imposta ao fornecedor de serviços pelo art. 34 do CDC, por
ato, diligente ou não, de seu preposto ou representante autônomo.{467} O
*p. 459-463. Veja comentários desta linha jurisprudencial em Gerson Luiz
Carlos Branco, Aspectos da Responsabilidade Civil e do Dano Médico, in
RT 733, p. 66.
(464) Assim manifestou-se o TJRS, considerando deveres inerentes
à internação
hospitalar a proteção contra infecção hospitalar: "Civil.
Responsabilidade
Civil. Hospital. Morte de parturiente em virtude de infecção hospitalar.
Procedência (...). 2. O hospital responde, civilmente, pelos atos de seus
médicos, integrantes do corpo clínico e de seu pessoal auxiliar, agindo
sob
orientação daqueles, bem como pelo descumprimento de deveres inerentes
à internação hospitalar. No último caso, se situa a infecção hospitalar,
contraída pela parturiente, que não a portava antes da baixa, que
representa
quebra do compromisso básico de causar-lhe dano em decorrência da
\própria internação" (EI 596 057 216,j. 2.08.96, Des. Araken de Assis).
(465) Sobre cuidados básicos pós-operatórios, veja TJRS, Ap. Civ.
595 080 011,
j. 30.11.95, Rel. Des. Clarindo Favretto, cuja ementa é:
"Responsabilidade
Civil. Médico. Cirurgia e morte posterior do paciente. A obrigação do
médico não acaba com a cirurgia. mas ele continua juridicamente vinculado
ao devido acompanhamento pós-operatório, pena de incorrer em negligên-
\cia".
(466) Veja nesse sentido a decisão de JEPC/RS, com a seguinte
ementa:
"Responsabilidade civil - Negligência - Motor fundido - Ausência de óleo
no motor - Dever de indenizar. É responsável o posto-réu, diante da
negligência de empregado que, apesar de cobrar o valor referente à troca
de óleo, libera o veículo do autor sem repor o óleo retirado, dando causa
ao fundimento do motor. Dever de indenizar o equivalente ao reparo do
motor fundido". (Proc. 01188756439, Rec. 44/89, Relator Dr. Silvestre
Jasson Ayres Tôrres, 1.ª Câm. Recursal do JEPC/RS, 11.5.89).
(467) Veja capítulo II, 1.2. (p. 596)
art. 20 do CDC concentra-se na qualidade dos serviços, no resultado
obtido e não na atuação direta ou indireta do fornecedor e na valoração
desta atuação. Trata-se, portanto, de uma norma genérica de garantia
de prestabilidade do serviço que ao mencionar apenas o "fornecedor"
institui uma solidariedade legal entre toda a cadeia de fornecedores,
organizados para servir ao consumidor.{468} Cabe ao consumidor a
escolha de quem irá reclamar, geralmente seu co-contratante direto,
como as agências de viagens, que poderão ressarcir-se com base no
disposto no parágrafo único do art. 7.º do CDC.{469}
Frise-se que no caso de serviços prestados por muitos fornecedo-
res (unidos entre si ou não) o dever legal de qualidade é de todos. Veja
interessante precedente de vício de todos os fornecedores por falha no
dever anexo de boa-fé, cautela e sigilo, em pequena cidade do interior
gaúcho, na decisão do Tribunal de Justiça/RS, 3.ª C., Ap. Civ. 595 160
250, j. 7.12.95, Rel. Des. Araken de Assis, cuja ementa é: "Civil.
Responsabilidade civil. Divulgação de resultado de exame para iden-
tificar o vírus da sida, culpa do médico e do hospital, pela divulgação,
e do laboratório, que não ressalvou a possibilidade de erro. 1. O médico
e o hospital respondem, solidariamente, pelos danos materiais e morais
causados à paciente pela divulgação do resultado de exame para
identificar o vírus da Sida (Síndrome da Imuno deficiência Adquirida).
Quebra de sigilo inadmissível, no local e nas circunstâncias, conside-
rando o óbvio preconceito contra a doença. Também faltou o médico
com o seu dever de informar ao paciente do resultado do exame e de
não exigir confirmação do resultado. E há responsabilidade do labo-
ratório, porque não ressalvou, ao comunicar o resultado, a possibilidade
de o resultado se mostrar equivocado. Dano material bem arbitrado.
Dano moral majorado".
* (468) Desta solidariedade retiram-se também efeitos processuais.
Assim decidiu
o TJRS que: "Agravo de instrumento. Ação de reparação. Agência de
viagem. Legitimidade passiva. Denunciação da lide. Tem a agência de
viagem, perante seu cliente, consumidor, a legitimidade passiva para ação
de reparação por insatisfatório serviço, resguardada da ré eventual
regresso
contra outrem como a operadora de viagem, a quem imputa o adimplemento
ruim" (AI 597174499, 6.ª Câm. C., Des. Antonio Janyr Dall’Agnol Júnior,
j. 7.10.97, ainda não publicado).
(469) Assim decidiu-se no caso antes citado, em que se tratava de
venda de
"pacotes fechados de turismo". Veja AI 597174499, 6.ª Câm. C., Des.
Antonio Janyr Dall’Agnoll Júnior, j. 7.10.97, ainda não publicado, p. 4.
(p. 597)
O sistema do CDC concentra-se, objetiva-se, no resultado falho
(vício) e na resultante violação de um dever legal.

b) Vícios nos serviços de reparação - O sistema do CDC inova


ao criar uma obrigação específica para o fornecedor de serviços de
reparação, disposta no art. 21 do Código. Por imposição legal o
fornecedor contratante terá a obrigação de utilizar na reparação do
produto peças originais e novas. Efetivamente dispõe o art. 21:
"Art. 21. No fornecimento de serviços que tenham por objetivo
a reparação de qualquer produto considerar-se-á implícita a obrigação
do fornecedor de empregar componentes de reposição originais adequa-
dos e novos, ou que mantenham as especificações técnicas do fabri-
cante, salvo, quanto a estes últimos, autorização em contrário do
consumidor".
Quanto ao dever de adequação do serviço, e portanto das peças
utilizadas, originais ou não, este é um dever geral de qualquer
fornecedor de produtos ou de serviços no sistema do CDC, como
veremos a seguir no título 2.3. O novo Código institui uma garantia
legal, inafastável, imperativa de adequação dos produtos e dos serviços
para os fins que se destinam (art. 24 do CDC). A norma do art. 21
refere-se, portanto, ao dever de utilizar componentes originais e novos.
A única possibilidade do fornecedor de serviços de reparação afastar este
novo dever é informando o consumidor de maneira prévia que irá
utilizar outras peças (não originais ou já utilizadas) e conseguindo a
"autorização" expressa do consumidor neste sentido,{470} como dispõe o
art. 21, in fine.
Observando a experiência no direito estrangeiro destacam-se dois
grupos de problemas nos contratos de reparação: o referente ao preço
do serviço e o referente à adequação do serviço ou seu vício. Quanto
ao preço a dificuldade começa pela elaboração do orçamento (veja art.
\40 CDC), pois muitas vezes é necessário abrir o produto para poder
descobrir que tipo de conserto deve ser executado. A cobrança destas
horas iniciais de trabalho, ou do transporte do produto até a oficina do
comerciante já podem ser objeto de discussão, ou mesmo, para alguns,
de espécie de "venda casada", proibida pelo art. 39, I. Particularmente,
considero o início da prestação contratual, podendo ser cobrado do
* (470) Concorda com a hipótese Benjamin, Comentários, p. 108. (p.
598)
consumidor os gastos para a elaboração do orçamento, desde que
previamente informado o consumidor e aceita a oferta.{471} Mesmo o
necessário transporte do objeto pode ser cobrado, mas deve haver
prévio conhecimento e autorização do consumidor, ou o fornecedor
passa a executar um fornecimento não autorizado, o que seria uma
prática abusiva, segundo o art. 39, VI do CDC. Quanto aos vícios dos
serviços de reparação, a experiência demonstra que é difícil para o
consumidor exigir a sua correção. O sistema do CDC tenta evitá-los
através da exigência de adequação destes serviços de reparação,
exigindo igualmente a utilização de peças novas e originais.

c) Vícios de informação - Sobre o novo dever do fornecedor de


informação já nos referimos no capítulo III, título 1.2. Queremos agora
simplesmente frisar que tratando-se de contratos de consumo objetivando
a prestação de serviços, no sistema do CDC, além do problema da
inadequação do serviço há o vício de informação. O vício de informa-
ção caracteriza-se, segundo dispõe o art. 20, in fine, pela disparidade
entre as indicações constantes da oferta ou da mensagem publicitária
e o serviço efetivamente prestado. No caso, as opções do consumidor
são as mesmas do vício de qualidade do produto (reexecução, abati-
mento do preço ou rescisão do contrato). Observando-se a experiência
de direito comprado podemos antever que esta novidade do CDC será
especialmente utilizada em se tratando de contratos de viagem turística
ou contratos denominados de "organização de viagens turísticas", nos
quais a oferta é feita pela agência de turismo e a prestação de serviços
é executada por outras pessoas, consideradas juridicamente como seus
"auxiliares" no país ou cidade para onde o consumidor se deslocou.{472}
Nesse sentido, já se decidiu que a omissão na oferta, feita por
publicidade impressa, de alguns acréscimos no preço total da viagem,
tornaria a publicidade enganosa.{473} Tratando-se de responsabilidade
* (471) Assim tb. a jurisprudência alemã, relatada por Hensen, pp.
826 e 751.
(472) Neste mesmo sentido, trazendo exaustiva pesquisa da nova
jurisprudência
brasileira sobre pacotes de viagem e contratos de turismo, veja o texto
de
Tepedino, apresentado no 4.º Congresso Brasileiro de direito do Consumi-
dor, realizado em março de 1998 em Gramado a ser publicado na revista
Ajuris.
(473) Assim a decisão do Tribunal Federal Suíço, de 26.1.87,
comentada in Revue
Européenne de la consommation, 1987, 212; relembre-se que a responsa-
bilidade pela publicidade enganosa é extracontratual. (p. 599)
contratual, a lei alemã de 4 de maio de 1979 sobre o contrato de
viagens,{474} permite que o contrato contenha cláusulas prevendo a
eventual mudança de preços, mas até 3 semanas antes do início da
viagem e assegurando um direito de desistência do consumidor.{475} O
controle sobre os contratos de turismo está sendo realizado com sucesso
no Brasil, através de ações civis públicas promovidas pelo Ministério
Público e por inúmeras ações individuais, especialmente escolhendo a
via do Juizado Especial.{476} A omissão quanto ao preço no sistema do
CDC teria como reflexos a responsabilidade contratual de
descumprimento do dever anexo de informar, de vício de informação,
mas também a responsabilidade extracontratual pela publicidade enga-
nosa e por seus danos causados ao consumidor.

2.3 Garantia legal de adequação do produto e do serviço

a) Noções gerais - Entre os novos dispositivos que asseguram a


proteção da confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual,
em seus efeitos principais, que são as prestações recebidas em virtude
do contrato, o produto e o serviço, encontra-se a norma do art. 24 do
CDC e garantia legal{477} que institui:
"Art. 24. A garantia legal de adequação do produto ou serviço,
independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do
fornecedor".
O sistema do CDC introduz no ordenamento brasileiro uma
garantia legal, imperativa, de adequação do produto.{478} Tal garantia
\* (474) Reisevertragsgesetz, BGBL./S.509; veja detalhes em
Ulmer/Brandner/
Hensen, pp. 737 e ss.
(475) Assim Ulmer/Brandner/Hensen, p. 740. Veja a jurisprudência
brasileira
\sobre o tema, na Parte 1, 2. 1.2, b.
(476) Veja inicial da ação civil pública movida pela Procuradora
Lea Barboza Vianna
Freire (MPRJ), in Revista Direito do Conswnidor, v. 20, p. 300 e ss.
(477) Cf. ensina Benjamin, Comentários, p. 119, as garantias no
CDC subdivi-
dem-se em garantia contra os vícios de quantidade, garantia contra os
vícios
de qualidade por insegurança (seção I e II) e garantia contra os vícios
de
qualidade por inadequação (seção III), não tratando o CDC da garantia
contra evicção, a qual continua a ser regulada pelos arts. 1.107 a 1.117
CCB.
(478) Assim concorda Macena de Lima, p. 98; comentando evolução
semelhante
no direito francês sobre vícios ocultos (1.645 e 1.646 Code
Civil), conclui (p. 600)
impede que se estipulem cláusulas contratuais que impossibilitem,
exonerarem, ou mesmo atenuem as obrigações pelos vícios de
inadequação, dispostas nos arts. 18 a 23, examinados acima. A garantia
de adequação do produto é um verdadeiro ônus natural para toda a
cadeia de produtores,{479} a adequação do produto nasce com a atividade
de produzir, de fabricar, de criar, de distribuir, de vender o
produto.{480}
No sistema do CDC a garantia de adequação é mais do que a garantia
de vícios redibitórios, é garantia implícita ao produto,{481} garantia de
sua
funcionalidade, de sua adequação, garantia que atingirá tanto o forne-
cedor direto como os outros fornecedores da cadeia de produção (veja
art. 18, caput).
A garantia por inadequação exige a existência de uma relação
contratual original, pois o CDC só a impõe se existir um consumidor,
isto é, aquele que adquiriu o bem de um fornecedor. Mas a partir do
ato de consumo, a partir da entrega do produto para o primeiro
consumidor, que retira o bem do mercado, passa a existir a garantia
legal por inadequação e os pólos desta relação de garantia se multipli-
carão. Isto porque de um lado o consumidor-original pode ceder a um
outro consumidor-beneficiário (o patrão que recebe um relógio dos
empregados no dia de seu aniversário) o produto adquirido,{482} de outro,
*que se "impõe aos agentes produtores a obrigação de liberar o produto
livre
de defeitos. Trata-se de uma obrigação imperativa e de resultado...".
(479) Para Benjamin, Comentários, p. 119, a garantia seria uma
forma de
alocação de riscos.
(480) Utilizando a Teoria da Aparência, a jurisprudência tem
estabelecido a
responsabilidade de empresas "líderes de grupos" em casos envolvendo
consumidores. Veja neste sentido sobre a solidariedade da empresa de
cartão
de crédito em caso de seguro de vida, 1.º TASP, Ap. Civ. 610.637-2, j.
22.8.96, rel. Kioitsi Chicuta, in RT 735/290.
\ (481) Defendemos aqui uma garantia inerente ao produto (ob rem),
em alguns
aspectos semelhante à desenvolvida pela jurisprudência norte-americana, a
inzplied warranty, mas que, no sistema do CDC, adviria da atividade
objetiva dos fornecedores (por isso solidários, pelo art. 18) e não só de
fundo
contratual. Garantia funcional de que o produto será adequado ao seu fim
toda vez que ele (fornecedor) participa do processo produtivo.
(482) Mesmo no caso de responsabilidade simplesmente contratual o
terceiro
beneficiário já podia invocar a responsabilidade do
fornecedor/contratante
(veja Aguiar Dias, p. 194), quanto mais em uma responsabilidade concen-
trada no resultado (produto) da atividade do fornecedor. (p. 601)
o consumidor pode escolher pelo art. 18 se reclamará ao fornecedor-
contratante (loja que vendeu o relógio) ou ao fornecedor-fabricante
(quem fabricou o produto, colocou a sua marca e possui o know-how),
ou mesmo a loja enviará o produto ao fabricante para que este o
conserte, pois em se tratando de vícios por inadequação a garantia está
muito ligada ao problema de assistência técnica, do serviço, e de outros
pós-venda{483} e da reparação da falha no produto (veja art. 18, in
fine).
Nesse sentido, parece-nos claro que o fim último da garantia de
adequação instituída pelo CDC é o reequilíbrio da relação de consumo,
especialmente da contratual, pois a garantia concentra-se no objeto do
contrato, na sua prestação principal que é o produto ou o serviço
adequado ao fim que se destina. Assim, diferentemente do sistema de
vício por insegurança, que visa ressarcir os danos sofridos pelo consu-
midor, a garantia no vício por inadequação visa satisfazer os interesses
deste, forçando o cumprimento perfeito da prestação (conserto, art. 18,
§ 1.º, ou substituição do produto, art. 18, § 1.º, I), ou o reequilíbrio
entre
as prestações efetuadas (abatimento proporcional do preço, art. 18, §
1.º,
III) ou evitar maiores danos ao consumidor e ressarcir os eventualmente
já sofridos (através da rescisão contratual, devolução da quantia paga e
eventuais perdas e danos, art. 18, § 1.º, II).
Mas parece-nos que o fundamento, a origem primeira da garantia
legal de adequação não é o contrato de consumo, mas a produção para
o consumo, isto é, a participação do fornecedor na cadeia de produção
de bens destinados ao consumidor e a confiança que qualquer produto
colocado no mercado desperta legitimamente no consumidor, um dever
legal, um novo ônus, com base na obrigatória boa-fé do fornecedor no
mercado.{484} Seria uma garantia implícita (no sentido literal de implied
warranty), garantia natural do produto, garantia que o acompanharia
desde o seu nascimento, sua fabricação, mas que só poderia ser
* (483) Parece-me, em uma perspectiva de evolução para um consumo
sustentável
também no Brasil, que maior atenção deveria ser dada a uma "pós-
garantia",
em especial no que se refere à retirada de produtos tóxicos ou
problemáticos
para o meio ambiente, com divisão de responsabilidades entre os fornece-
dores, que lucraram com estes, e o Estado, arrecadador dos impostos de
circulação da riqueza.
(484) Sobre o princípio de boa-fé como origem da garantia de
vícios redibitórios
(contratuais), veja o artigo clássico do Professor Konder Comparato, pp.
92
e ss.; assim como a Parte 1. (p. 602)
utilizada pelo consumidor; portanto, só após o contrato de consumo.
Esta idéia de garantia como elemento do próprio produto poderia
explicar porque todos os fornecedores são responsáveis por ela, e não
só aquele que contratou com o consumidor.
Esta garantia implícita é mais do que a marca que o fabricante
coloca no produto, a garantia é suportada por todos os que ajudam a
inserir o produto no mercado (fabricante, distribuidor, montador e
comerciante).{485} A garantia, então, acompanharia o produto quando este
fosse transmitido a sucessivos consumidores, durante a vida útil do
bem, não importando se o vício oculto, por exemplo, em um forno de
microondas, aparecerá no primeiro ano ou no segundo, quando já está
em mãos da sobrinha da compradora original. Teria assim o CDC
instituído não só uma garantia de funcionamento do produto, mas uma
garantia até certo ponto de durabilidade.{486} A fonte desta ampla
garantia
de adequação é a lei, pois segundo o art. 24 do CDC a garantia legal
independe de termo expresso e é imposta pelos arts. 18 e ss. do CDC;
logo, ex lege.
Outra possibilidade de explicar a solidariedade dos fornecedores
imposta pelo art. 18 é recorrer ao sistema francês que se apóia na ficção
de que o consumidor-contratante teria direitos contratuais contra todos
aqueles que estão ligados por contratos de produção, isto é, que fazem
parte da cadeia de produção (fabricante que contratou com o distribui-
dor, que contratou com o comerciante, que contratou com o consumi-
dor-original, que contratou (mesmo através de doação) com o consu-
midor-sucessivo). Esta parece ser a teoria majoritária no momento na
doutrina brasileira.{487}
O mesmo vale para as cadeias organizadas por prestadores de
serviços, como nos conhecidos planos de saúde, pois o art. 20 do CDC não
distingue entre fornecedores diretos (médicos, hospitais) e indiretos
* (485) Veja a interessante norma do § 2.º do art. 25 CDC, a qual
frisa a
responsabilidade solidária daquele fornecedor "que realizou a incorpora-
ção" da peça ou componente que causou o vício.
(486) As expressões estão presentes na análise de Benjamin,
Comentários, pp.
32 e 33, mas o mestre de São Paulo não menciona expressamente se no
sistema do CDC se teria alcançado ou não uma garantia pela durabilidade
do produto.
(487) Nesse sentido parece interpretar o sistema do CDC o
comentador Benjamin,
pp. 118 e ss., sem porém entrar no mérito da questão. (p. 603)
(administradora do plano ou seguro de saúde misto). Como ensina Ruy
Rosado de Aguiar Júnior, a entidade privada de assistência à saúde, que
associa ou credencia "interessados através de planos de saúde, e mantém
hospitais ou credencia outros para a prestação dos serviços a que está
obrigada, tem ela responsabilidade solidária pela reparação dos danos
decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados."{488}
Certo é que a impossibilidade de exoneração dessa garantia ex
lege
já teria origem na simples natureza de norma de ordem pública (art.
1.º do CDC), mas é considerada tão importante ao sistema de proteção
do consumidor que será repetida no art. 25 e no art. 51, I do CDC. A
aplicação do art. 1.101 do CC para contratos submetidos ao regime do
CDC está, portanto, totalmente, afastada.

b) Garantia legal e novo prazo decadencial - Os exíguos prazos


para a ação redibitória, dispostos no art. 178, § 2.º e § 5.º, IV do
CC,{489}
de 15 dias, a contar da tradição, para bens móveis e de 6 meses para
bens imóveis, foram causa de ineficiência do sistema tradicional de
garantia contra vícios redibitórios, ineficiência aumentada, é claro,
pela
possibilidade de renúncia contratual a este direito.
Eis porque o sistema do CDC preocupa-se especialmente com o
tema, instituindo novos prazos, os quais considera de decadência, não
só para os vícios ocultos (antigos vícios redibitórios), mas também para
os vícios aparentes ou de fácil constatação (art. 26, caput).
Queremos destacar que a posição do CDC representa a acolhida
de uma evolução jurisprudencial de legeferenda, evolução esta que teve
como base os fins sociais a que se destinam as normas jurídicas, como
preleciona o art. 5.º da Lei de Introdução.
* (488) Aguiar Jr., RT 718, p. 47, citando como base
jurisprudencial decisões do
TJRJ no AI 1.475/92, TJMG, Ap. Civ. 164.656-2, j. 14.12.93, e do TJSP,
Rel. Des. Walter Moraes, EI 106.119-1, cuja ementa reproduz: "Empresa
de assistência médica. Lesão corporal provocada por médico credenciado.
Responsabilidade solidária da selecionadora pelos atos ilícitos do
selecio-
nado (...)". Concorda Lopez, p. 225.
(489) Veja também os prazos no Código Comercial (art. 211), os
quais não
mencionamos aqui devido à nossa opção pela interpretação finalista de
consumidor. Sobre a profissionalidade da vítima e o vício redibitório,
veja
Benjamin, Comentários, p. 35, o qual em um primeiro momento não
considerava superado o problema pelo sistema do CDC, opinião com a qual
não concordamos. (p. 604)
Pioneiro neste sentido foi o Tribunal de Justiça de São
Paulo,{490}
que em casos de compra de máquinas ou de animais, afirmou que "o
prazo prescricional há de contar-se, não da data da entrega, mas de sua
experimentação" (RT 134/548). Tais prazos seriam incompatíveis com
as necessidades da vida atual, praticamente anulando o direito do
comprador, logo propugnavam uma interpretação adequada às exigên-
cias sociais e aos ditames da boa-fé (RF 116/499).
Esta tese passou então a ser defendida pelo Supremo Tribunal
Federal, que em voto lapidar do Ministro Thompsom Flores, no RE n.
76.233,{491} em 1973, considerava a hipótese: "... na literalidade do
dispositivo (art. 178, § 2.º), está claro nele qual seja o momento, o
marco zero da contagem; é o momento da tradição. Mas em certas
\situações de fato, conforme a natureza da coisa ou do defeito que porte,
não seria possível o exercício da ação dentro desse prazo exíguo, se
contado da tradição, não tanto pela exigüidade, mas pela impossibili-
dade da revelação do defeito... Nesse caso, se atendermos à lei, na sua
letra fria, estaríamos condenando a um abortamento inapelável o direito
dos adquirentes, contra todos os princípios de direito e o bom senso...",
propugnando pela mudança da interpretação e afirmando "... essa
interpretação adequada às exigências sociais é o imperativo que decorre
do enunciado do art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil: "Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e
às exigências do bem comum"."... "a ação redibitória objetiva a garantia
do comprador contra os defeitos ocultos da coisa adquirida... para que
se possa exercer efetivamente o direito à ação, decorrente da garantia...
há de ser proporcionado ao comprador um prazo razoável e que este
seja contado a partir de quando for possível a revelação do defeito
oculto..." (RTJ 68/222).{492}
Nesse sentido o sistema introduzido pelo CDC:
"Art. 26. O direito de reclamar...
"§ 3.º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se
no
momento em que ficar evidenciado o defeito".
Os prazos introduzidos, porém, são os mesmos (30 ou 90 dias)
para vícios aparentes e vícios ocultos, mas os primeiros contam-se da
* (490) Veja RT 134/584, RT 178/581, RT 275/834.
(491) In RTJ 68/222.
(492) Grifo nosso, trechos citados das pp. 224, 225, 226, RTJ 68.
(p. 605)
entrega efetiva do produto ou da execução do serviço, e os ocultos, da
revelação do defeito.
Dispõe o art. 26:
"Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de
fácil
constatação caduca em:
"I - 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e
de
produto não-durável;
"II - 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e
de produto durável;
"§ 1.º. Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da
entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços".
Os critérios legais são, portanto, a facilidade de constatação do
vício e a durabilidade ou não do produto, concedendo a nova lei,
aproximadamente, de um a três meses para a ação do consumidor. A
opção pela decadência é majoritária na doutrina{493} e está presente
também no Projeto de Código Civil 118/84, que em seu art. 444 apenas
duplica os prazos do Código civil atual, não modificando o seu termo
inicial, o que seria mais condizente com a evolução da doutrina e da
jurisprudência.{494}
A inicial dificuldade de interpretação da norma, do que seria um
serviço ou produto não-durável foi superada pela manifestação do STJ,
que esclareceu: "Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se
exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os
duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não-
efêmera" (Recurso Especial 114.473, 96/0074492-0-RJ, Rel. Min.
Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 24.3.97).{495} "Não duráveis seriam
* (493) Veja análise detalhada da doutrina em nosso artigo
Tendances récentes de
la prescription extinctive en droit brésilien in Extintive Prescription -
On
the Limitation of Actions. Reports to the XIVth Congress International
\Academy of Comparative Law, Coord. Gwoud. H. Hondius, Editor Kluwer
Law International, Haia, Países Baixos, 1994, p. 75-90.
(494) Segundo o art. 444 do Projeto 118/84, os prazos
decadenciais seriam de 30
dias para móveis e um ano para imóveis, "contados da entrega efetiva"
\(Diário do Senado Federal, Supl. 11 de Dez. 1997, p. 146).
(495) Publicado no DJ de 5.5.97, cuja ementa na íntegra é:
"Direito do
consumidor. Ação de preceito cominatório. Substituição de mobiliário
entregue com defeito. Vício aparente. Bem durável. Ocorrência de decadên-
(p. 606)
aqueles bens de vida rápida, cuja existência termina pouco tempo
depois da aquisição, enquanto que os duráveis seriam encontrados por
exceção aos primeiros.{496}
Note-se que no sistema introduzido pelo CDC algumas ações
(atos) do consumidor "obstam" a decadência do direito. Especialmente
a reclamação perante o fornecedor tem sido muito usada pelos
consumidores, o que é positivo, pois coaduna-se com o espírito de
cooperação e boa-fé do CDC e permite ao fornecedor uma chance para
reparar o descumprimento contratual. Recomenda-se, porém, aos con-
sumidores que reflitam sobre a prova desta reclamação frente ao
fornecedor, caso a resposta deste for negativa (art. 26, § 2.º, do
CDC).{497}
A norma do art. 26 não é de todo translúcida, no caput menciona
a decadência do "direito de reclamar", evitando falar da decadência do
direito subjetivo, ou de prescrição da ação que protege tal direito de
receber um produto adequado. Em seu § 2.º a norma do art. 26 dispõe
que obsta a decadência: "I - a reclamação comprovadamente formulada
pelo consumidor perante o fornecedor... até a resposta negativa..." Ora,
*cia. Prazo de noventa dias. Art. 26, II, da Lei 8.078/90. Doutrina.
Precedente
da turma. Recurso provido".
I - Existindo vício aparente, de fácil constatação no produto, não há que
\se falar em prescrição quiixjiienal, mas, sim, em decadência do direito
do
consumidor de reclamar pela desconformidade do pactuado, incidindo o art.
26 do Código de Defesa do Consumidor.
III - O art. 27 do mesmo diploma legal cuida somente das
hipóteses em que
estão presentes vícios de qualidade do produto por insegurança, ou seja,
casos em que o produto traz um vício intrínseco que potencializa um
acidente de consumo, sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente.
\ ffl - Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se
exaurem no
primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os duráveis,
definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não-efêmera".
(496) Assim ensina o Ministro Relator no anterior REsp. 114473-
RJ, citando
Antonio Herman Benjamin.
(497) Veja exemplo da linha jurisprudencial sobre prova de que o
consumidor
obstou a decadência, in Revista de Jurisprudência do TJRGS, n. 184, p.
377,
em cuja ementa lê-se: "Consumidor. Automóvel. Vício oculto. Decadência
\(...). Comprovada, por documentos roborados por testemunhos insuspeitos,
a reclamação oportuna (art. 26, § 2.º, da Lei 8.078/90), tem-se como
obstada
a decadência do direito" (Ap. Civ. 597083427, Des. Pedro Freire, j.
10.6.97). (p. 607)
se a decadência fosse efetivamente do direito de reclamar, este já teria
sido usado, exercitado como direito, logo não poderia morrer, decair,
caducar como se queira. Parece-nos que a regra do art. 26 refere-se à
decadência do direito "de reclamar" judicialmente, isto é, decadência
do direito à satisfação contratual perfeita, obstada por um vício de
inadequação do produto ou serviço. De qualquer maneira, parece-nos
que a discussão sobre o verdadeiro sentido da norma está apenas
começando. Em decisão do STJ, ficou estabelecido que "não obsta a
decadência a simples denúncia oferecida ao Procon, sem que se formule
qualquer pretensão, e para a qual não há cogitar de resposta".{498}
Vale lembrar que além da reclamação feita frente ao fornecedor,
o § 2.º do art. 26 menciona como fato que obstaculiza a decadência:
"III - a instauração de inquérito civil, até o seu encerramento".
Inquérito civil é aquele instaurado pelo Ministério Público para
apurar
a existência de fundamento para a propositura de uma ação civil
pública.{499}
Quando a compatibilidade da nova garantia de adequação do
produto, instituída pelo CDC, com outras garantias existentes na
legislação ordinária, já nos manifestamos no sentido de sua utilização
conjunta, com base no art. 7.º CDC, sempre que compatíveis com as
novas normas. Assim, no contrato de empreitada o construtor responde
durante cinco anos perante o dono da obra, por força do art. 1.245 do
CC. A jurisprudência brasileira é unânime em afirmar que o prazo é de
garantia, não prazo para exercício da ação; assim, verificada a
existência
do defeito, começaria a correr o prazo de prescrição (RT 569/90), se a
prescrição era aquela de seis meses prevista no art. 178, § 5.º, IV (RT
567/243) ou a comum aos direitos pessoais (RT 577/85) dependia se
o contrato era de fornecimento de material e execução ou só de
construção.{500} Igualmente se discutia se a responsabilidade do constru-
tor estava restringida apenas aos vícios de solidez e de segurança, ou
abrangeria todo o tipo de vício oculto da construção. Hoje, tratando-
se de contrato de consumo, e aplicadas as normas do CDC, a garantia
legal estende-se a todos os vícios que impedem a adequação do produto
(imóvel construído), sendo que o prazo de cinco anos pode permane-
cer, como forma de facilitar a responsabilização do fornecedor/cons-
* (498) Lex 94, p. 153-154, j. 11.11.96, Rel. Min. Eduardo
Ribeiro.
(499) Sobre o inquérito civil veja a Lei 7.347/85, art. 8.º.
(500) Veja detalhes em Aguiar Dias, pp. 371 e ss. (n. 137 e ss.).
(p. 608)
trutor, mas efetivamente o prazo para decadência do direito começa a
correr no momento em que ficar evidenciado o defeito" (art. 26, § 3.º
do CDC).

c) Relação da garantia contratual com a garantia legal - A


\de~~nado garantia, enquanto responsabilização por risco, no caso
\por vício de adequação do produto ou serviço, ~&e ser legal, oriunda
do próprio CDC, ou contratual, oriunda da manifestação de vontade do
fornecedor-direto no contrato (garantia do comerciante), ou do forne-
cedor-indireto (garantia do fabricante, incluída no contrato como forma
de estimular a venda de seus produtos).
No sistema do CDC a garantia legal independe de termo expresso
(art. 24), existe naturalmente, implícita, interna ao produto, é dever,
ônus de todos os fornecedores, como estamos expondo aqui; enquanto
a garantia contratual é facultativa, eventual, oriunda da manifestação
de vontade expressa do fornecedor, devendo ser disposta em termo
\escrito (art. 50).
Enquanto a garantia legal refere-se ao funcionamento do produto,
à adequação do produto ou serviço, sendo portanto total, a garantia
contratual pode ser total ou parcial, pois depende da manifestação de
vontade do fornecedor, quando da formação do contrato ou mesmo
após, e é, portanto, limitada por esta mesma manifestação. Assim é
possível imaginar, por exemplo, uma garantia concedida pelo fabricante
de geladeiras, que exclua os problemas do motor ou das partes feitas
de borracha. Já a garantia legal inclui necessariamente os vícios no
motor, porque uma geladeira cujo motor não funcione, não é "adequa-
da" ao seu uso normal, não gelará os alimentos como é a expectativa
legítima do consumidor.
A garantia contratual pode ser condicionada a determinadas
hipóteses, como por exemplo o comerciante de máquinas de lavar, que
garante somente aquelas instaladas por seus técnicos, sendo vedado ao
consumidor mesmo abrir a embalagem da máquina, de modo a não
danificá-la ou a diminuir o número de peças enviadas pela fábrica para
a instalação. Já a garantia legal não pode ser condicionada ou
restringida,
como bem afirma o art. 25 do CDC.
Destaque-se aqui o texto da norma do art. 25 do CDC, o qual
proibe uma prática normal no mercado brasileiro, qual seja a de incluir,
na lista de cláusulas do termo de garantia contratual, uma cláusula (p.
609)
excluindo qualquer responsabilidade extracontratual por eventual fato
do produto. Dispõe, efetivamente:
"Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que
impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta
e nas Seções anteriores".{501}
A aplicação das normas sobre responsabilidade civil, pelo fato do
produto (seção anterior de n. II) e pelo vício (seção III), formam uma
espécie de núcleo rígido, indisponível.{502}
Voltando ao tema da garantia contratual, devemos enfocar o
momento de seu nascimento, que é o do nascimento, do contrato. Mas
\apesar do art. 50, como veremos, prever a obrigação do fornecedor de
preencher o termo de garantia, isto nem sempre acontece na prática.
A garantia contratual é um plus, um anexo voluntário, por isso pode
ser concedida mesmo após a assinatura do contrato. No caso, por
exemplo, de um freguês de importadora que após comprar um rádio,
sem garantia, volta a loja e o comerciante para facilitar a venda de mais
dois rádios para a família lhe oferece a garantia sobre os três produtos
durante seis meses, comprometendo-se a trocá-los caso apresentem
defeito. Já a garantia legal nasce potencialmente junto com o vínculo
contratual original, junto à entrega efetiva do produto ou a execução
do serviço; a partir de então o consumidor já pode "reclamar" os
direitos assegurados pelo art. 18 do CDC.
Como podemos observar, o regime da garantia contratual e da
garantia legal são diversos. Na garantia contratual não se pergunta se
o vício é oriundo de mau uso, ou de culpa exclusiva do consumidor
ou de terceiro, não se pergunta pela vida útil do bem. Se a garantia
contratual existe, se a garantia prevista abrange aquele detalhe do
produto e se não transcorreu o seu prazo, o fornecedor conserta ou
substitui o produto e o devolve ao consumidor. Já a garantia legal é
de adequação, de funcionalidade do produto ou serviço, só poderá ser
usada se a causa da inadequação é o próprio produto ou o serviço, não
abrangendo os casos de mau uso ou de caso fortuito posterior ao
contrato, que tornem o bem inadequado ao uso. O fornecedor tem o
* (501) O grifo é nosso para destacar que o art. 25 refere-se tb.
ao disposto nas
seções precedentes (I e II).
(502) Ver, porém, para o consumidor pessoa jurídica o que dispõe
o art. 51, inciso
I, in fine, do CDC. (p. 610)
dever legal de entregar um produto em perfeitas condições, adequado
para o seu uso, que resista ao uso normal, que dure o tempo ordinário
da vida útil deste tipo de produtos. Se a televisão não tem som,
presume-se que o problema é interno da televisão, que o produto é
inadequado, não importando se o problema nasceu na fábrica, na loja,
no transporte que levou o bem à casa do consumidor. Nesse caso, o
consumidor pode utilizar a garantia legal. Mas, se o vício originou-se
da imprudência do filho menor do consumidor que destruiu o botão que
nivelava o som, não havia vício de inadequação do produto, mas houve
mau uso, uso não razoável; logo, a garantia legal não será aplicada,
só a garantia contratual resolveria o problema.
Nesse sentido, podemos concluir que a garantia contratual pode
não ser sempre tão ampla quanto à legal, instituída pelo CDC, mas é
mais fácil de ser utilizada pelo consumidor, pelo menos o consumidor-
original.
Resta analisarmos a relação temporal entre as duas espécies de
garantia. Inicialmente é necessário frisar que antes da entrada em
vigor do CDC o prazo era de 15 dias para a ação redibitória (veja
análise anterior, na letra b). Em virtude deste prazo exíguo, a
jurisprudência brasileira, especialmente do Tribunal de Justiça de São
Paulo, mais uma vez adaptou o texto superado do art. 178, § 2.º
do CCB e à nova realidade social. Criou-se, então, a ficção de que
o prazo de decadência ou prescrição só começaria a fluir depois do
término do prazo da garantia contratual. Se a garantia contratual
de um relógio, por exemplo, era de um ano a contar da data do
contrato, o consumidor poderia entrar com a ação redibitória um ano
e quinze dias após a compra. A ratio era alargar o exíguo prazo legal,
prazo de "garantia legal".
A jurisprudência brasileira argumentava que o fornecedor que
concedesse a garantia contratual estava renunciando ao prazo de
prescrição legal, dilatando-o por vontade própria, pois no prazo da
garantia contratual o consumidor teria a assistência técnica do forne-
cedor, poderia devolver o produto viciado, mas a garantia contratual
não visava o fim (rescisão) do vínculo contratual, ao contrário visava
fortalecê-lo, enquanto a garantia legal de vícios redibitórios, como
dizia o nome, permitia somente redibir o contrato{503} ou abater no
preço.
* (503) Veja RT 182/738, 186/100 e 288/332, RJTJRS 10/243. (p.
611)
Nesse sentido basilar a decisão do tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul na A. C. 585006620, em 1985, onde o Relator
Desembargador Galeno Lacerda, expõe os princípios de proteção do
consumidor que deveriam levar a uma interpretação mais social da lei
civil, defasada no tempo, ensinando: "a interpretação dos dispositivos
dos Códigos Civil e Comercial, a propósito dos exíguos prazos da ação
redibitória, mais consentânea com as exigências do mundo moderno,
de proteção ao consumidor, e com os princípios programáticos do art.
5.º da Lei de Introdução, que ordena ao juiz, na aplicação da lei, atenda
os fins sociais a que ela se dirige, e às exigências do bem comum, e,
sem dúvida, a que vem sendo adotada de há muito tempo, pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo, com ressonância neste Tribunal. É que,
havendo garantia de bom funcionamento do objeto, dada pelo vendedor
ou pelo fabricante, se presume tenha ele aberto mão do prazo de
prescrição ou de decadência posto na lei em seu favor. Que se trata de
questão disponível, não resta a menor dúvida; não há nenhum interesse
público em proteger as indústrias com prazos dessa exigüidade, em
detrimento da grande massa de consumidores; ao contrário, o interesse
público há de voltar-se, necessariamente, para o universo dos compra-
dores anônimos, perante o qual há de ceder o individualismo jurídico
vigorante nas eras remotas de elaboração de nossos vetustos Códigos
de direito material. Cumpre, sem dúvida, à jurisprudência o dever
primordial de afeiçoar, enquanto não revogados, os velhos textos à nova
e impostergável realidade. Essa adaptação se revela perfeita nos
acórdãos indicados..."
Transcrevemos esta lapidar aula sobre a necessidade de proteção
contratual dos consumidores, justamente, para frisar que esta interpre-
tação, literalmente de lege ferenda, era necessária enquanto "não
revogados" os antigos textos do art. 178, § 2.º e § 5.º CCB. Hoje, tais
textos não estão "revogados", mas não mais se aplicam para reger as
relações de consumo, agora submetidas a uma nova lei, o CDC. Se há
uma nova lei, em consonância com o interesse público, destacado pelo
mestre Galeno Lacerda, há de haver também uma nova interpretação.
Esta evolução é necessária e deve ser feita, pois a garantia de adequação
do CDC é muito mais ampla que a garantia por vícios redibitórios do
antigo art. 178 do Código Civil.
Hoje, a interpretação mais favorável ao consumidor é aquela da
\garantia legal implícita de adequação. Assim, se há garantia contratual
(p. 612)
(express warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do
contrato (termo de garantia), as garantias começam a correr juntas, pois
a garantia legal nasce necessariamente com o contrato de consumo, com
a entrega do produto, sua colocação no mercado de consumo. Ao
consumidor é que cabe escolher qual delas fará uso. Pode usar a garantia
contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de argüir
que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia
legal, porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto
(geladeira), que não está incluído na garantia contratual, ou porque o
consumidor se interessa em redibir o contrato e adquirir outro produto de
\marca diferente. Logo, com a aplicação imperativa do art. 18 e 50 do
CDC parece-nos superada a jurisprudência que afirmava começar a
garantia legal só após o fim do prazo da contratual. Era uma
interpretação
pró-consumidor, baseada na falta de legislação específica, que procurava
adaptar normas superadas à realidade moderna. As novas normas do
CDC são, porém, imperativas, não havendo possibilidade do consumidor
ou do fornecedor dispor sobre elas; os limites temporais são outros.
A garantia legal possui limites temporais específicos. Se o vício
é aparente seus limites serão 30 ou 90 dias da entrega efetiva do
produto ou do término dos serviços. Bastando que o consumidor
reclame perante o fornecedor, ou perante o Ministério Público para
obstar a decadência de seu direito. Vício aparente é aquele de fácil
constatação, aquele que não exige conhecimentos técnicos específicos,
ou a experimentação do produto. Sendo assim, o prazo de 30 dias para
os bens não-duráveis e 90 dias para os bens duráveis parecem razoáveis.
A eventual garantia contratual será um plus.
Se o vício é oculto, porque se manifesta somente com o uso, a
experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após
a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo
inicial, segundo o § 3.º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente
a partir da descoberta do vício (talvez meses ou anos após o contrato)
é que passarão a correr os 30 ou 90 dias.
Será, então, a nova garantia legal eterna? Não, os bens de
consumo
possuem uma durabilidade determinada. É a chamada vida útil do
produto.{504} Se se trata de videocassete, por exemplo, sua vida útil
seria
* (504) A importância do critério de vida útil do produto foi
destacada por Antônio
Herman Benjamin nas discussões por ocasião do II Congresso de Daños,
em Buenos Aires, sendo deste autor o exemplo que analisamos acima. (p.
613)
de 8 anos aproximadamente; se o vício oculto se revela nos primeiros
anos de uso há descumprimento do dever legal de qualidade, há
responsabilidade dos fornecedores para sanar o vício. Somente se o
fornecedor conseguir provar que não há vício, ou que sua causa foi
alheia à atividade de produção como um todo, pois o produto não tinha
vício quando foi entregue{505} (ocorreu mau uso desmesurado ou caso
fortuito posterior), verdadeira prova diabólica, conseguirá excepcional-
mente se exonerar. Se o vício aparece no fim da vida útil do produto
a garantia ainda existe, mas começa a esmorecer, porque se aproxima
o fim natural da utilização deste, porque o produto atingiu já durabi-
lidade normal, porque o uso e o desgaste como que escondem a
anterioridade ou não do vício, são causas alheias à relação de consumo
que como se confundem com a agora revelada inadequação do produto
para seu uso normal. É a "morte" prevista dos bens de consumo.
Em outras palavras, caberá ao Judiciário verificar se o dever do
fornecedor de qualidade (durabilidade e adequação) foi cumprido. Se
o fornecedor não violou o seu dever ao ajudar a colocar no mercado
aquele produto, não haverá responsabilidade. Neste sentido, a garantia
legal de adequação dos produtos com vício oculto tem um limite
temporal, qual seja a vida útil do produto.
Quanto à garantia contratual, cabe, porém, esclarecer que ela não
pode limitar, excluir ou diminuir a garantia legal, como dispõe
claramente os arts. 25 e 51, I do CDC. Nesse sentido, elas só podem
ser um plus em relação à garantia legal, ou porque facilitam a
assistência técnica, porque não se interessam pela anterioridade ou não
do vício, concentrando-se na obrigação de manter a adequação do
produto por certo lapso de tempo, mesmo em caso de uso inadequado
por parte do consumidor.
É nesse sentido que deve ser interpretada a norma no caput do
\art. 50 do CDC, que dispõe:
"Art. 50. A garantia contratual é complementar à legal e será
conferida mediante termo escrito".
Quanto à garantia contratual, o art. 50 institui alguns deveres
do
fornecedor, principalmente de informação e de preenchimento do termo
* (505) Defende a necessidade de "anterioridade do vício", isto é,
sua existência
potencial à época do fornecimento, Calais-Auloy, seguido no Brasil por
Benjamin, Comentários, p. 120. (p. 614)
de garantia. O parágrafo único do art. 50 deve ser destacado, pois
estabelece também alguns deveres acessórios para o fornecedor, tais
como: entregar, no ato do fornecimento, além do termo de garantia, um
manual de instrução e uso do produto em linguagem didática, com
ilustrações.
Nesse sentido, cabe destacar um dever pós-contratual do forne-
cedor, que já está sendo aceito pela doutrina e jurisprudência, no caso,
a manutenção de alguma assistência técnica do produto, tanto no prazo
da garantia legal, quanto após, pois o ideal é que o produto mantenha-
se adequado, até mesmo para a proteção da incolumidade física do
consumidor e dos terceiros (2.4). Nesse sentido, o projeto original do
CNDC-MJ previa também a obrigação de manter a fabricação de peças
para a reposição nos 5 anos consecutivos à saída de linha do produto,
especialmente no caso dos automóveis.
\ No CDC atual, prevê o art. 32 a necessidade dos fabricantes e
importadores assegurarem "a oferta de componentes e peças de
reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto",
e mesmo cessada a produção ou a importação cabe a estes fornecedores
manter a oferta "por período razoável de tempo", como dispõe o
parágrafo único do art. 32 do CDC. Esperemos que tal norma, sem
previsão de tempo, seja suficiente.

2.4 Garantia legal de segurança do produto ou do serviço (Respon-


sabilidade extracontratual do fornecedor)
O consumidor que adquire um produto ou utiliza um serviço
oferecido no mercado brasileiro passa a ter, no sistema do CDC, dois
tipos de garantia: a garantia legal da adequação do produto ou do
serviço, a qual será concretizada através da utilização das novas normas
sobre o vício e garantia de segurança razoável do produto, imposta pelo
CDC nos arts. 8.º a 17, e que tem por fim a proteção da incolumidade
física do consumidor e daqueles equiparados a consumidores.{506} No
sistema tradicional, a doutrina acostumou-se a denominar garantia a
* (506) Assim ensina Benjamin/Comentários, p. 28; adotamos esta
sistemática por
considerarmos didática, apesar do CDC usar terminologia diversa: vício,
para os vícios de qualidade/adequação e defeito, para a responsabilidade
pelo fato do produto, para nós, vícios por insegurança. (p. 615)
responsabilidade de origem contratual e reservar o termo responsabi-
lidade para a responsabilidade aquiliana.{507}
Note-se que no CDC a garantia de segurança do produto ou
serviço deve ser interpretada enquanto reflexo do princípio geral do
CDC de proteção da confiança. Nesse sentido, o dever de qualidade-
\segurança será limitado, como afirma o § 1.º do art. 12 do CDC, "a
segurança que dele legitimamente se espera". Não se trata de uma
segurança absoluta, mesmo porque o CDC não desconhece ou proibe
que produtos naturalmente perigosos sejam colocados no mercado de
consumo, ao contrário, concentra-se na idéia de defeito, de falha na
segurança legitimamente esperada.{508}
No sistema do CDC, a garantia de segurança do produto ou do
\serviço tem clara natureza extracontratual, sendo que o art. 12 a impõe
ao fabricante, produtor/construtor e importador, só, subsidiariamente
ao distribuidor ou fornecedor-direto.{509} O tema estaria, assim,
excluído
de nossa análise, a qual pretende destacar os reflexos nas relações
contratuais trazidos pela entrada em vigor do CDC. Três aspectos,
porém, chamam nossa atenção para o tema. Em primeiro lugar, os arts.
8.º a 10 instituem novas obrigações para todos os fornecedores, incluin-
do, portanto, o fornecedor-direto, que contrata com o consumidor. Em
segundo, a possibilidade no direito brasileiro de cumulação dos pedidos
com base contratual e extracontratual de ressarcimento de danos contra
o mesmo fornecedor destaca a importância de determinarmos, no siste-
ma do CDC, os limites da responsabilidade do fornecedor-direto, do
distribuidor-varejista, do comerciante que contrata com o consumidor.
Por último, o parágrafo único do art. 13 assegura um direito legal de
regresso do fornecedor que arcou com a reparação do dano do consumi-
dor, em relação aos outros fornecedores. Ora, a relação entre o
fabricante
e o comerciante, e entre o fabricante e o importador também é contratual.
* (507) Assim ensina Aguiar Dias, p. 148 (n. 67).
(508) Concorda Benjamin, Comentários, p. 60, o qual distingue
entre periculosidade
inerente e periculosidade adquirida, p. 47. Note-se, porém, que a norma
\proibitória do art. 10 do CDC pode ser interpretada como criando para O
fornecedor um dever de segurança tal que inibirá a utilização do mercado
brasileiro como mercado "cobaia" para, por ex., novos produtos farmacêl-
ticos ou agrotóxicos.
(509) Veja nesse sentido a ação movida pelo PROCON/SP e PGE/SP,
contra a
coca-cola (fabricante) face a insegurança das garrafas "retomáveis" e
danos
aos consumidores. (p. 616)
Este vínculo contratual na cadeia chamada de "produção" não é tema
normal do Código, que se destina somente à proteção do consumidor,
como frisamos (Cap. II, 1 .1), mas o art. 13, parágrafo único, excepcio-
nalmente, invade também estes contratos, para, com sua norma de ordem
pública, impedir que os fornecedores estabeleçam, usando sua autono-
mia de vontade, a exclusão deste direito de regresso.
Nesse sentido, consideramos que devem ser feitas algumas obser-
vações sobre as normas dos arts. 8.º a 17 do CDC. O tema é fascinante,
pois para podermos impor a um agente econômico, no caso o forne-
cedor, a obrigação de reparar os danos causados ao consumidor por um
produto, que fabrica, que monta ou que vende no mercado brasileiro,
é necessário definirmos um fundamento para esta responsabilidade.{510}
Será esta uma responsabilidade baseada na culpa, no risco da atividade
ou em um terceiro critério? Quais são os elementos desse ilícito civil?
A qual dos fornecedores da cadeia de produção deve ser imputado o
ônus do ressarcimento? Poderá o fornecedor não-culpado ressarcir-se
frente ao fornecedor culpado do que pagou ao consumidor? Pode o
consumidor cumular os pedidos de ressarcimento de danos por vício
do produto e de danos por fato do produto, escolhendo o comerciante
\mais próximo? Ou deve seguir a hierarquia do art. 12, exigindo as
reparações diretamente do fabricante (também responsável no art. 18)?
Antes de passarmos as observações sobre a responsabilidade pela
segurança do produto, mister tecer alguns breves comentários sobre
serviços. Em matéria de hotéis, a jurisprudência brasileira utiliza o
art.
14 do CDC para estabelecer que acidentes sofridos nas dependências
dos hotéis são acidentes de consumo e, portanto, responde o hotel
independentemente de culpa, admitindo-se ainda a cumulação de danos
materiais e morais.{511}
O dever de segurança nos transportes já foi comentado,{512} mas
cabe relatar que a responsabilidade objetiva do transportador terrestre
e ferroviário é complementada por legislação especial, como o Dec.-
* (510) Assim ensinam Rippert/Boulanger, Tratado, Tomo V, p. 22,
assim tb. o
mestre italiano Alpa, ob. cit., p. 302.
(511) Assim decisão do TJBA, Ap. Civ. 22.267-9, j. 6.11.95, Des.
Walter
Nogueira Brandão, in RT 729/259.
(512) Veja polêmica sobre transportes aéreos e a validade das
cláusulas referentes
aos limites do ressarcimento com base na legislação especial. Veja
utilizan-
do a legislação especial, decisão do 1.º TACivSP, in RT 729/224. (p. 617)
\Lei 2.681/12, e é considerada unanimemente como obrigação de
resultado. A evolução da jurisprudência brasileira é no sentido de
valorizar os deveres anexos do fornecedor de transporte, em especial
o de cuidado e cooperação.{513}
Sobre furto de veículos em shopping centers, supermercados e
outros estabelecimentos que contam com estacionamento, a jurispru-
dência é hoje pacífica no sentido da existência do dever de cuidado,
de segurança e de vigilância.{514} A responsabilidade das entidades
bancárias, quanto aos deveres básicos contratuais de cuidado e segu-
rança é pacífico, em especial a segurança nas retiradas,{515} assinaturas
falsificadas{516} e segurança nos cofres.{517}

a) Deveres do fornecedor de produtos perigosos - Os arts. 8.º e


10 do CDC impõem aos fornecedores, inclusive ao comerciante final,
não fabricante, a obrigação de não colocarem no mercado produtos ou
serviços que acarretem "riscos à saúde ou segurança dos consumidores,
exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua
natureza e fruição".
Em caso de produto perigoso ou potencialmente nocivo fica o
fornecedor obrigado a prestar as informações necessárias e adequadas
a respeito ao consumidor (art. 8.º), sendo que o art. 9.º do CDC exige
que esta informação seja "ostensiva". O fornecedor-direto, mesmo que
somente comerciante, terá também este dever especial de informar, mas
se o produto é industrializado o parágrafo único concentra-se dever
especial de informar na pessoa do fabricante.{518}
* (513) Veja interessante caso de queda na porta do coletivo, in
RT 728/262. Veja
também sobre isenção de deveres especiais no transporte gratuito: TARJ,
in RT 728/363, e Súmula do STJ.
(514) Veja jurisprudência sobre responsabilidade do fornecedor
por furto de
veículo, anterior à Súmula, in RT677/103; 677/177; 677/233; 678/215; 638/
157 e 679/208.
(515) Veja RT 675/171.
(516) Veja RT 679/92.
(517) Veja RT 676/151 e 680/83.
(518) É necessário esclarecer que o comerciante continua com o
seu dever geral
de informação, e com o ônus da garantia de adequação sobre todos OS
produtos que ajuda a introduzir no mercado; a norma refere-se apenas aos
produtos de periculosidade inerente. (p. 618)
O CDC previa, igualmente no art. 11, um dever de retirar o
produto do mercado brasileiro, mas este artigo foi lamentaveLmente
vetado pelo Presidente da República.
Mesmo cumprido este dever anexo de informação e concluído o
contrato, o dever de informação sobre a nocividade do produto
acompanhará o fornecedor que colocou o produto no mercado. O § 1.º
do art. 10 impõe a todos os fornecedores, que posteriormente à
introdução no mercado do produto tiverem conhecimento da
periculosidade apresentada por este, o dever de informar aos consumi-
dores, como temos observado em ocasiões que os fornecedores ofere-
cem aos seus consumidores consertos "gratuitos" dos freios ou da
distribuição determinada marca ou série de automóveis.{519}
Note-se que o art. 10 parece mais voltado para fornecedor-
fabricante, ou para os fornecedores mencionados no art. 12, pois institui
o dever de informar às autoridades e aos consumidores, por meio de
onerosos anúncios publicitários. No sistema do CDC, porém, o dever
de informar é geral. Nesse sentido, pode-se interpretar o art. 10 como
instituindo um dever pós-contratual, isto é, um dever de vigilância,
dever de informar ao consumidor, se "tiver conhecimento" da
periculosidade de um produto, que ajudou a colocar no mercado.
Assim, o farmacêutico informado sobre a proibição de determinado
remédio, que causa o câncer, deve informar seus ex-parceiros contratuais
da periculosidade do produto vendido, afixando, por exemplo, um
cartaz no estabelecimento comercial. Assim, também, o supermercado
que descobre que determinado queijo vendido está causando intoxica-
ção nas pessoas que o ingerem, determinada revendedora de carros que
descobre que algumas das peças vendidas vieram com defeito de
fábrica nos freios. São casos em que os princípios da transparência e
da boa-fé nas relações contratuais irão se unir aos princípios da
proteção da confiança do consumidor na segurança normal do produto
vendido para impor um dever nitidamente pós-contratual ao fornece-
dor-direto e não simplesmente, extracontratual,{520} como o é para o
fabricante.
A sanção virá, no sistema do CDC, pela aplicação tanto de normas
contratuais (sobre vício de qualidade, substituição de freios no auto-
\* (519) Veja exemplo de recall litigioso, in: Direito do
Consumidor 6/297 e ss.
(520) Assim também Ferreira de Almeida, p. 30. (p. 619)
móvel, art. 18, caput), quanto das normas extracontratuais, presentes
no art. 12 (ressarcimento dos danos causados em acidente de automóvel
por falha dos freios).{521} A falta de "segurança", o defeito do produto,
dá origem à responsabilidade extracontratual pelo dano, segundo o art.
12 do CDC, tomando em conta a sua falta de segurança esperada ou
de informação.

b) Limites da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço


- (A responsabilidade do comerciante) - Em matéria de responsabi-
lidade civil, o principal valor a ser protegido pelo direito deve ser o
efetivo e rápido ressarcimento das vítimas. O CDC para alcançar este
fim afasta-se do conceito de culpa e evolui, no art. 12, para uma
responsabilidade objetiva, do tipo conhecida na Europa como respon-
sabilidade "não-culposa".{522}
A tendência em direito comprado é atribuir ao fabricante{523} a
responsabilidade extracontratual pelos danos causados ao consumidor
por produtos defeituosos. O CDC adere a essa tendência, modificando
o sistema brasileiro{524} que exige a culpa própria (falha na esfera de
sua
atividade){525} para a responsabilização. O Código de Defesa do Consu-
midor, em seu art. 12, dispõe:
\* (521) Veja em Taschner, Product Liabilitv, pp. 4 a 23, o caso
"Mc. Phearson v.
\Buick Co. de 1916, um leading case que serve para o autor mostrar a
evolução
da responsabilidade civil nos EUA; em português Leães, pp. 42 e ss.
\ (522) A expressão é adaptada do alemão verchuldensunabhãngigc
Hafiung, citada
pelo elaborador da Directiva da Comunidade Européia Hans Claudius
\Taschner/Produkthaftung, p. 9; sobre a responsabilidade objetiva no CDC,
veja os excelentes comentários de Benjamin, p. 45, que considera a
responsabilidade tb. objetiva, mas por risco criado pela atividade dos
forllecedores.
(523) Nesse sentido conclui Leães, pp. 125, 126 e 154, 155; veja
igualmente o
\mestre italiano Guido Alpa em sua obra Diritto privato dei CO))SUfl)j,
pp.
286 a 334 sobre a responsabilidade do fabricante.
(524) Veja os artigos de Caio Mário da S. Pereira
"Responsabilidade Civil do
\Fabricante", in Rev. de Din C’omparado Luso-Brasileira, jan. 1983, vol.
2, p.
28 e de Orlando Gomes "Responsabilidade Civil do Fabricante" in RDC (32)
abr./jun. 1985, p. 12, ou mais recente Luiz C. Ramos Pereira,
"Generalidades
sobre a Responsabilidade Civil do Fabricante", in RT 654/52.
(525) Veja sobre responsabilidade civil extracontratual no
direito brasileiro
tradicional a obra basilar de José de Aguiar Dias, Da responsabilidade
Civil,
\Rio de Janeiro, Forense, 1987, especialmente o ml. II. (p. 620)
"Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor nacional e o
importador respondem, independentemente da culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de
projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre a sua utilização e
riscos".
O sistema do CDC, portanto, imputa ao fabricante, independen-
temente de sua culpa, a responsabilidade pelo fato do produto defei-
tuoso e não necessariamente ao fornecedor-direto.
Na lista do art. 12 o grande ausente é o comerciante,{526} agente
ordinariamente responsável pela reparação dos danos, tendo em vista,
principalmente, a sua ligação contratual com o consumidor-comprador
e a idéia de uma garantia implícita de qualidade-segurança, extensível
a terceiros-vítimas. O legislador do CDC, porém, preferiu uma melhor
divisão dos ônus econômicos e fixou-se nas figuras do fabricante,
construtor e importador.{527}
Segundo o art. 13 do CDC, o comerciante será, porém, igualmente
responsável (solidário) pela reparação quando:
"I - o fabricante, construtor, produtor ou o importador não
puderem ser identificados;
"II - quando o produto não oferecer uma identificação clara de
seu fabricante, produtor, construtor ou importador;
"III - quando o comerciante não conservar adequadamente os
produtos perecíveis".
Podemos concluir que, segundo os arts. 12 e 13 do CDC, o
fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o
importador são responsáveis principais pela reparação dos danos
causados ao consumidor pôr defeito,do produto, independentemente de
culpa. O art. 12 estaria, assim, em relação ao art. 13, instituindo uma
* (526) Sobre tratamento jurídico da figura híbrida do vendedor-
fabricante, veja o
clássico artigo de Henri Mazeaud, "La responsabilité civile du vendeur-
fabricant" in revue trimestrielle de droit civil, 53(1955), pp. 611-621.
(527) Veja detalhes sobre a responsabilidade do comerciante e do
fabricante no
Projeto de Código Civil 634/75 em Arthur E. S. Rios, "A responsabilidade
civil - os novos conceitos indenizáveis do projeto Reale" in Revista
Forense, 291(1985), p. 121. (p. 621)
hierarquia{528} de responsáveis. Por sua vez, em casos especiais, a norma
do art. 13 acrescenta mais um responsável solidário à lista do art. 12,
o fornecedor-final ou comerciante.
Se definirmos responsabilidade objetiva simplesmente como aquela
que prescinde de culpa, certamente podemos concluir que o art. 12 do
CDC segue a teoria objetiva, na medida em que este artigo afirma
nascer a responsabilidade de determinados fornecedores "independen-
temente da existência de culpa".
A teoria subjetiva, ao contrário, afirma que, para
responsabilizar-
mos alguém, é necessário que a este possa ser imputada alguma conduta
contrária ao direito (antijurídica), e que tenha esta pessoa agido com
culpa (negligência, imperícia, imprudência), exigindo-se a prova da
culpa. A culpa pode ser no máximo presumida de maneira absoluta
("nenhuma responsabilidade sem culpa").
Mas, se no sistema do CDC a imputação da responsabilidade é
objetiva, o que significa esta hierarquia de responsáveis? Por que ela
existe, se a todos os fornecedores, que colaboram na introdução do
produto no mercado, o CDC imputaria um dever de qualidade, como
afirmamos no título anterior, 2.1? Será que nem todos os fornecedores
estão obrigados por este dever legal de qualidade-segurança?
O mestre italiano Alpa,{529} observa que a maioria dos defeitos
têm
sua origem na fabricação, na construção ou no projeto do bem e não
quando de sua comercialização. Parece ter sido este o motivo da decisão
do legislador do CDC de imputar a responsabilidade, em princípio,
àqueles que poderiam ter evitado o defeito (fabricante, construtor e
produtor) ou a seus substitutos (o importador e o comerciante, em
hipóteses, porém, diferenciadas).
O caput do art. 12 especifica que os danos indenizáveis são só
aqueles "causados aos consumidores por defeitos... de seus produtos".
Seguindo esta linha de pagamento, observamos que, no sistema do
* (528) Concorda Benjamin, Comentários, p. 55, para o qual o CDC
prevê três tipos
de responsáveis: o real (fabricante, construtor e produtor), o presumido
(o
importador) e o aparente (o comerciante quando deixa de identificar o
responsável real), divisão que se assemelha à da Diretiva Européia; veja,
porém, o art. 13, III, em que o comerciante seria o responsável real.
(529) Alpa, Diritto, p. 302; veja sobre os tipos de defeitos,
Taschner, Product
\Liabilitv, pp.7e ss. (p. 622)
CDC, é necessária a existência de um defeito no produto e um nexo
causal entre este defeito e o dano sofrido pelo consumidor, e não só
entre o dano e o produto. O produto será defeituoso, segundo dispõe
o § 1.º do art. 12, "quando não oferecer a segurança que dele
legitimamente se espera". Assim, segundo o § 3.º do art. 12, os agentes
não serão responsabilizados quando provarem justamente que: 1) não
colocaram o produto no mercado brasileiro, 2) o defeito inexiste, 3)
houve a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Ao citar somente o fabricante, o produtor, o construtor, e o
importador, o art. 12 do CDC teria imposto o dever legal de segurança
somente àqueles fornecedores e só excepcionalmente ao comerciante.
Note-se que doutrinas estrangeiras, como a francesa, tiveram de
desenvolver intrincadas teorias, como a da "guarda da estrutura do
produto", para poder imputar somente àqueles, que dominavam a
técnica de fabricação e que poderiam ter evitado o defeito, a respon-
sabilidade pelo fato do produto.{530} O legislador brasileiro tentou
resolver o problema imputando a responsabilidade a alguns agentes e
exigindo a existência de um defeito (falha na segurança esperada do
produto).
Poderíamos terminar por aqui as nossas observações sobre o tema,
concluindo que se trata de uma responsabilidade legal de imputação
\objetiva (gesetzliche Haftung), mas, ao analisar mais profundamente a
questão,{531} observamos que o legislador do CDC pode ter introduzido
no Brasil, consciente ou inconscientemente, um novo tipo de respon-
sabilidade objetiva: a responsabilidade não-culposa,{532} cuja adaptação
e compreensão na prática podem trazer alguns problemas.
Tratando-se de responsabilidade extracontratual, afirmar, como
fizemos acima, que ela tem sua origem na violação de um dever legal,
* (530) Veja sobre esta teoria francesa a lição de Macena de Lima,
pp. 105 e ss.
de sua Tese de Doutorado.
(531) Veja o nosso "A Responsabilidade do Importador pelo Fato do
Produto
segundo o Código de Defesa do Consumidor", apresentado na Semana de
\Estudos Jurídicos para Integração Latino-Americana, LLADI!UFRGS/1 990.
(532) Segundo ensina Hans Claudius Taschner, no Mercado Comum
Europeu, a
opção por uma responsabilidade não-culposa, concentrada no defeito, foi
um caminho de compromisso entre as pressões das empresas, contrárias à
adoção de uma responsabilidade objetiva pura, e as necessidades do
mercado de uma maior qualidade dos produtos, reduzindo a reparação às
hipóteses de defeito, p. 9. (p. 623)
e que os deveres legais dos fornecedores são diferenciados, só resolve,
\em princípio, problema da imputação (peritus spondet artem suam).
Resta, porém, a pergunta sobre qual o fundamento desta respon-
sabilidade. Seria a culpa do fornecedor ao não agir com a diligência
necessária, o seu fundamento, como parece exsurgir do inciso III do
art. 13? Seria o risco criado pela atividade dos fornecedores, como no
caso da responsabilização dos fabricantes? Ou teria esta responsabili-
dade como base o resultado objetivo da ação do fornecedor, de ter
introduzido um produto com defeito e este defeito ter causado dano ao
consumidor, como parece ser o caso dos importadores, alçados a
posição de responsáveis principais?
Esta aparente mistura só pode ser explicada com a análise do
direito comparado, que serviu de base para o projeto de CDC. Dois
sistemas parecem ter influenciado o legislador consumerista brasileiro,
o sistema norte-americano,{533} que partindo das garantias implícitas
(contratuais) chegou à responsabilidade objetiva (por risco), e o sistema
da Diretiva{534} da Comunidade Econômica Européia,{535} que partiu da
idéia de defeito dos produtos industrializados (e só destes) introduzidos
no mercado pelo fornecedor (ato antijurídico), para imputar a respon-
sabilidade objetivamente ao fabricante que pode suportá-la e dividir os
ônus na sociedade.{536}
Desta fusão teria resultado o sistema do CDC. Assim, da aceitação
de uma Teoria da Qualidade nasceria, no sistema do CDC, um dever
* (533) Assim Benjamin, Comentários, p. 45, um dos elaboradores do
Código.
\ (534) Directiva 851374/CEE, de 25.7.85, publicada no Jornal
Oficial das Comu-
\nidades Européias, em 7.8.85, n. Lei 210/29, Fasc. 19, pp. 8 a 12; sobre
a Diretiva veja detalhes na obra de seu elaborador, Taschner; em
português,
veja a Tese de Doutorado de Macena de Lima.
(535) Diretiva é uma norma obrigatória para os Estados membros da
Comunidade,
mas deve ser incorporada ao ordenamento jurídico interno através de leis
nacionais, dos Parlamentos. Processa-se, assim, uma harmonização dos
direitos, pois concede-se ao legislador nacional um certo espaço quando
da
transformação em lei interna.
(536) Concordam com a influência da Diretiva na elaboração do
CDC, Macena
de Lima, p. 226 e Benjamin, Comentários, p. 61, se bem que este advirta
que muitos de seus aspectos não foram seguidos, p. 56. Em minha opinião,
porém, o fundamento da responsabilidade introduzida pelo CDC é o mesmo
do sistema da Diretiva européia, por isso destacamos a necessidade de seu
estudo. (p. 624)
anexo para o fornecedor (uma verdadeira garantia implícita de segu-
rança razoável, como no sistema anterior norte-americano).{537} Este
dever seria "anexo" ao produto, isto é, concentrado no bem e não só
"anexo" ao contrato, por conseguinte seria um dever legal de todos os
fornecedores que ajudam a introduzir (atividade de risco) o produto no
mercado.
Mas, no sistema do CDC, só haverá violação deste dever,
nascendo a responsabilidade de reparar os danos, quando existir um
defeito no produto (por influência européia).{538} No sistema do CDC,
pode haver o dano e o nexo causal entre o dano e o produto
(explosão de um botijão de gás), mas se não existir o defeito (art.
12, § 3.º, II), não haverá obrigação de reparar para o fornecedor,
arcando este, porém, com o ônus da prova da inexistência do defeito
de seu produto.
Ora, se o legislador brasileiro estivesse pensando somente na
divisão dos riscos em virtude do lucro da atividade exercida pelo
importador, por exemplo, nos casos em que o dano ocorresse, deveria
responsabilizar sempre o fornecedor e não obrigar o consumidor, nesta
hipótese, a suportá-los. Em nosso CDC, o art. 12 exige tanto o
lançamento no mercado do produto, a prova do dano, quanto também
um terceiro elemento: o defeito do produto lançado no mercado! Certo
é, que se presume, tendo em vista o dano, que exista o defeito,
invertendo, assim, o CDC o ônus da prova e o impondo aos fornece-
dores de bens. Este fato, porém, não diminui a importância da inclusão
deste novo requisito para a responsabilização. Segundo o § 3.º, inciso
II, do art. 12, não será responsabilizado o agente econômico se provar
que não há defeito no produto, apesar de ter colocado o produto no
mercado e deste produto ter causado comprovadamente dano ao
consumidor.
O dever legal instituído no CDC seria, então, de só introduzir
no mercado produtos livres de defeitos (art. 12, § 3.º, I e II). Por
conseguinte, não basta a atividade de risco de introduzir o produto
\no mercado e lucrar com isto (cujus commodum, e jus periculum),
* (537) Sobre a utilização da teoria das garantias implícitas
extracontratualmente
e a evolução veja a obra de Leães ou a Tese de Macena de Lima.
(538) Veja sobre a evolução da noção de defeito na jurisprudência
francesa e no
direito europeu em Macena de Lima, p. 97. (p. 625)
porque também os comerciantes-finais o fazem e não são respon-
sáveis principais no sistema do CDC (art. 12, caput).{539}
Assim, na sistemática do Código, todos os fornecedores que
ajudam a introduzir o produto no mercado podem ser potencialmente
responsabilizados (é o caso do comerciante na hipótese do art. 13), mas
a figura européia do defeito concentrou a imputação em alguns
fornecedores, não com base no simples risco criado por sua atividade
(ou imputaria a todos a responsabilidade, como no sistema norte-
americano),{540} mas com base em uma valoração legal específica.
Imputou a responsabilidade principal ao fabricante, ao construtor e ao
produtor porque presumivelmente deram origem ao defeito, ou pode-
riam ter, ao menos potencialmente, evitado sua existência; imputou ao
importador, porque é o único fornecedor acessível ao consumidor brasi-
leiro, uma vez que o fabricante tem sua sede em outro país; imputou
também ao comerciante, quando este for o único fornecedor acessível (art.
13, I), ou, em decisão inovadora dos legisladores do CDC,{541} também,
quando este descumprir o seu dever anexo de identificação clara da
origem do produto (violação ao art. 31) ou quando for o real causador
do defeito do produto perecível, por não ter cumprido seu dever de
conservá-lo corretamente (violação ao art. 8.º).
Na Europa, o mestre francês André Tunc{542} afirma, simplesmente,
que na Diretiva o fundamento da responsabilidade é o defeito e não a
culpa; o consumidor fica liberado de provar a culpa do fabricante, mas
* (539) Sobre a teoria do risco e as atividades criadoras de
riscos veja a obra de
\nosso mestre alemão Prof. Michael R. Will, Quellen erhõter Gefahr,
\Munique, Beck, 1980, e em português a obra basilar de Ah’ino Lima, Culpa
e Risco.
\ (540) O Second Restatement of the Law (Tons) de 1965, Section
405, afirma que
o vendedor profissional responde perante o consumidor quando seu produto,
por seu caráter defeituoso ou simplesmente perigoso, impõe ao consumidor
um risco anormal (não razoável), veja Alpa, p. 310 e Macena de Lima, p.
8.
(541) Esta solução é diferente da Diretiva Européia, que
responsabiliza
prioritariamente "produtor" (fabricante, construtor, produtor, art. 3.º,
1.º) e
o importador (art. 3.º, 2.º) ou "cada fornecedor", incluindo o
comerciante,
se o produtor não puder ser identificado (art. 3.º, 3.º); veja sobre
semelhan-
ças e diferenças do sistema da Diretiva e do CDC, em nosso Responsabi-
lidade...
(542) André Tunc, "La Directiva Européenne sur la Responsabilité
du Fait des
Produits Defectuex", in Europa-Institut, n. 140, p. 9. (p. 626)
será obrigado a provar o defeito (art. 4.º da Diretiva). Seguindo esta
linha de pensamento, a lei européia imputaria o dano ao fabricante, ao
produtor ou ao importador sempre que houvesse um nexo causal entre
o defeito e o dano sofrido pelo consumidor. Não seria este o funda-
mento também da responsabilidade no sistema do CDC?
Parece-nos, à primeira vista, que o art. 12 do nosso CDC, por
influência da Diretiva européia, funciona como uma espécie de hipó-
tese-tipo,{543} na qual se prevê uma responsabilidade legal sem culpa dos
agentes ali citados, nos casos e nos limites impostos pela norma. A
responsabilidade positivada no CDC é, sem dúvida, objetiva,{544} no
sentido de ser independente da existência de culpa, mas não pelo risco
da atividade.{545} Seria a introdução, no ordenamento jurídico
brasileiro,
na chamada responsabilidade não-culposa. Este tipo de responsabili-
dade exige, para caracterizar o ilícito, a existência de um defeito,
\defeito este imputado objetivamente (peritus spondet artem suam) aos
fornecedores citados na norma do art. 12 e nos casos especiais previstos
do art. 13. Esta imputabilidade objetiva, baseada no profissionalismo
dos fornecedores e no defeito efetivamente existente, afastaria qualquer
alegação de que o defeito seria, por exemplo, oriundo de caso fortuito
ou força maior quando da atividade do fornecedor (corte de energia,
erro do computador, erro dos prepostos, etc.).
Não se diga que a idéia do descumprimento de um dever legal de
segurança (existência do defeito no produto), isto é, a exigência de um
* (543) Em recente artigo de Guido Alpa, "Le nouveau régime
juridique de la
responsabilité du producteur en Italie et l’adaptation de la directiva
communautaire" in Revue Int. de Droit Comparé, 1-1991/74, p. 71,
concorda o mestre italiano que a directiva introduz uma "hipótese-tipo"
para
a nova responsabilidade não-culposa.
(544) Assim Macena de Lima, ob. cit., pp. 226, 227, na Europa a
maioria dos
autores concorda que a responsabilidade da Diretiva é também objetiva,
veja
detalhes no artigo de Geneviève Viney, "La responsabilité du fait des
Produits en Droit Civil", Journées de la Societé de Législation Comparé,
1989, p. 585.
(545) Assim concluímos em nosso artigo "A Responsabilidade do
Importador...",
com posicionamento contrário Benjamin, Comentários, defendendo que a
responsabilidade no CDC é objetiva, mas baseada no risco, p. 58. Ocorre
que
a teoria do risco concentra-se na atividade (lícita, mas perigosa) e a
respon-
sabilidade prevista no CDC concentra-se no resultado, no defeito
(ilícito,
contrário ao dever de segurança), exigindo seu nexo causal com o dano.
(p. 627)
ato antijurídico para que se impute a responsabilidade legal a alguns
agentes, não é compatível com a teoria da responsabilidade objetiva,{546}
que visa, em última análise, regular os efeitos de um ilícito civil (ato
valorado como antijurídico) e alcançar uma justiça distributiva.{547} A
Teoria da Responsabilidade Objetiva entre nós evoluiu baseando-se em
leis especiais, as quais excluíam a questão da culpa e imputavam o
dever de reparar a uma determinada pessoa.{548} A responsabilidade
\objetiva acostumou-se a ser uma responsabilidade legal (gesetzliche
Haftung), para a qual o momento decisivo era a imputação do dano a
\uma determinada pessoa (Zurechnung),{549} não por culpa deste agente,
mas por sua condição pessoal, por sua condição de agente capaz de
suportar as conseqüências do evento danoso. Parece-nos que mais uma
vez isto ocorreu, como caminho de compromisso entre a responsabi-
lidade pura pelo risco da atividade e a responsabilidade baseada na
culpa presumida. O sistema do CDC é somente criticável pela falta de
possibilidade do juiz, em caso de produtos não industrializados,
imputar a responsabilidade prioritariamente ao comerciante, geralmen-
te mais forte economicamente que o produtor rural ou artesanal.{550}
Feitas estas observações, e considerando que o caput do art. 13
impõe a aplicação do art. 12 também para o comerciante, podemos
* (546) Veja a excelente exposição do professor argentino Carlos
Alberto Ghersi,
Reparación de Daños, Buenos Aires, Ed. Universidad, 1989, pp. 161 a 169,
em que analisa o ato antijurídico (valoração normativa da conduta), que
pode ter sua origem na culpabilidade ou na simples imputabilidade
objetiva.
(547) Assim ensina tb. Benjamin, Comentários, p. 58.
\ (548) Ghersi, ob. cit., p. 98 cita Jiménez de Asuá: "imputar un
hecho a un individuo
\es atribuirselo para hacerle sufnr las consecuencias". No mesmo sentido,
ensina a jurisprudência brasileira (in: RT 698/111): "A atividade de
transporte
encerra em si o perigo, razão pela qual doutrina e jurisprudência
acabaram
por instituir regime próprio de responsabilidade civil, assentado no
risco, e
decorrente do simples fato do exercício. Impera, na matéria, o fator
risco, que
torna objetiva a responsabilidade, em várias leis que, apartadas da
codificação
civil, compõem o citado regime específico, inclusive o Dec. Legislativo
2.681/12. Não se cogita, desse modo, de caso fortuito como excludente,
ou,
simplesmente, é ele afastado do respectivo contexto" (Ap. 531.181-3 - 4.ª
C.
- J. 9.9.93 - rel. Juiz Carlos Bittar, 1.º TACivSP).
(549) Assim tb. os comparatistas alemães Konrad Zweigert e Hein
Koetz, p. 433.
(550) Nesse sentido, na seção sobre responsabilidade pelo fato do
produto, faltaria
uma norma análoga à do art. 34 do CDC. (p. 628)
concluir que nestes casos, a sua responsabilidade solidária é a mesma
do fabricante, oriunda de uma imputação objetiva,{551} dependendo
somente do defeito e do nexo causal entre defeito e dano. O comer-
ciante fica liberado da obrigação de reparar o dano, quando ele
consegue provar que não ajudou a colocar o produto no mercado, que
não existe ou existia defeito no produto,{552} mesmo que tenha havido
nexo causal entre o produto e o dano (art. 12, § 3.º, I e II do CDC).
O sistema do CDC prevê ainda a exoneração na hipótese do inciso III
do § 3.º do art. 12, de culpa exclusiva da vítima ou de terceiro;
hipótese
esta que no sistema da Diretiva{553} européia ficaria submetida ao juízo
de valor do Judiciário, mas que no sistema do CDC exonera os
fornecedores, pois, mesmo existindo no caso um defeito no produto,
não haveria nexo causal entre o defeito e o evento danoso (culpa da
vítima).
Concluindo, concorde-se com a introdução de uma responsabili-
dade objetiva por risco, ou de uma responsabilidade objetiva mitigada,
não-culposa,{554} através do CDC, o importante é frisar que a discussão
sobre a culpa dos fornecedores, imputados objetivamente, ficou supe-
rada. Agora se discutirá, no direito brasileiro, em todos{555} os casos
de
\* (551) Assim tb. Thomas Weickhorts, "Bisherige
Produzentenhaftung, EG-Produ-
\kthaftungsrichtlinie und das neue Produkthaftungsgesetz", in JuS
1990/2, p. 89.
(552) Esta prova já está sendo chamada de prova diabólica, em
virtude de sua
dificuldade.
(553) O art. 8.º da Diretiva dispõe que se há defeito, há
responsabilidade do
produtor e seus equiparados, mas esta pode ser "reduzida ou excluída"
tendo
em vista a ação concorrente da culpa da própria vítima ou de terceiros
pelos
\quais ela se responsabiliza. Este fato levou Schmidt-Salzer-Hollman
(art.
\1 /) a afirmar que a culpa se concretiza no defeito, tendendo a
subjetivar
a responsabilidade, opinião com a qual não concordamos.
(554) Para Taschner, p. 9, a responsabilidade não-culposa também
é objetiva e por
\risco (Gefãhrdungshaftung), possivelmente pelo risco criado pelo
defeito.
No caso, porém, os resultados práticos são os mesmos, porque se destaca
o elemento novo à teoria tradicional do risco, que é a necessidade de um
defeito e não só do nexo causal entre a atividade de risco e o dano.
\ (555) Serão todos os casos, pois o art. 17 CDC equipara todas as
vítimas a
consumidores. Logo basta ser vítima de um acidente de consumo, para ser
consumidor e requerer a aplicação das normas protetivas do CDC. A
expressão acidentes de consumo é utilizada por Benjamin, Comentários, p.
44; nesse sentido basilar a decisão do TA/RS, in: Julgados, n. 84, p.
271. (p. 629)
responsabilidade pelo fato do produto (acidentes de consumo), a
existência de um defeito. a colocação no mercado e uma eventual culpa
exclusiva de terceiro ou da vítima. A discussão sobre a culpa dos
fornecedores, ou como CDC denomina, "a causação" do defeito (art.
13, parágrafo único), ocorrerá na cadeia de fornecedores, sendo
proibida a denunciação da lide (art. 86) entre os fornecedores solida-
riamente responsáveis, quando acionados pelo consumidor.
Parece-nos, portanto, que este sistema de compromisso instituído
pelo CDC alcançará seus fins de efetiva reparação{556} dos danos sofridos
pelos consumidores (art. 6.º, VI) e de conseqüente melhoria da
qualidade de vida e qualidade dos produtos oferecidos no mercado
\brasileiro (art. 40).

c) Direito de regresso - Os fornecedores citados no art. 12 são


responsáveis solidários, o consumidor pode escolher qual deles deverá
responsabilizar pelo pagamento imediato dos danos. Frente ao consu-
midor o que vigora é a chamada causalidade alternativa, em que se
imputa a todo um grupo de fornecedores uma atividade lícita grupal{557}
(a de participar da cadeia de produção), assim frente ao consumidor
todos são responsáveis. O comerciante, ao contrário, é responsável
secundário, só nas hipóteses de produtos brancos (sem identificação),
de falha no cumprimento de seus deveres referentes a identificação de
produtos e no caso de produtos perecíveis.
Internamente, na cadeia de produção o CDC estipula, em seu art.
13, parágrafo único, a responsabilidade pelo ressarcimento do dano
novamente ligada ao defeito do produto, mas desta vez responderá cada
fornecedor na medida de sua "participação", isto é, se o defeito pode
ou não ser a ele imputado subjetivamente. Assim, se o defeito foi na
fabricação do iogurte, no tipo de microorganismo utilizado, o comer-
ciante pode até ser responsabilizado pelos danos causados à saúde de
seus clientes e de suas famílias, pois está mais próximo e se presume
que tenha falhado na conservação do produto perecível, mas, se o
* (556) Note-se que o sistema do CDC, ao contrário da Diretiva
européia não prevê
um teto máximo para as indenizações. O sistema do CDC também modifica
o prazo prescricional, que passa a ser de 5 anos (art. 27) a partir do
conhecimento, tanto do dano como também de sua autoria.
(557) Sobre a responsabilidade civil dos grupos veja Tese do
Mestrado da UFRGS
\de Vasco della Giustina, 1991, publicada pela Editora Aide, Rio de
Janeiro. (p. 630)
defeito do produto foi causado pelo fabricante, terá o comerciante
direito de regresso. Se o defeito que deu origem ao evento danoso foi
causado totalmente pelo fabricante, terá direito de regresso integral.
Dispõe o art. 13, em seu parágrafo único:
"Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado
poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis,
segundo sua participação na causação do evento danoso".
Trata-se, portanto, no momento do regresso, de uma espécie de
solidariedade imperfeita, pois não tem causa única, cada um seria
responsável, no momento final, isto é frente a frente com os outros
fornecedores, por sua participação na causação do defeito do produto, do
resultado.{558}
A natureza da responsabilidade é então novamente subjetiva, nos
moldes tradicionais, com toda a dificuldade de prova que isto significa.
Parece-nos que na inclusão da possibilidade de exercer o direito de
regresso contra o verdadeiro causador do dano, em norma de ordem
pública do CDC, afasta as estipulações contratuais entre fornecedores
de renúncia a este direito. A ratio da norma do CDC, em uma das
poucas passagens que invade o regime das relações comerciais entre
os fornecedores, é assegurar que seu ideal de socialização dos custos
sociais da produção{559} funcione, e que os responsáveis principais,
escolhidos pelo CDC, os fabricantes, prováveis causadores dos defei-
tos, suportem os ônus sociais daí oriundos.
Por fim, cabe esclarecer que a norma do art. 25 aplica-se também
à seção sobre responsabilidade extracontratual. O art. 25 veda a
estipulação de cláusula contratual que impossibilite, exonere ou atenue
a obrigação de indenizar prevista no CDC. Referida norma é aplicável,
principalmente, aos contratos entre fornecedor e consumidor, mas na
sistemática do CDC nada impede que seja aplicada também excepcio-
nalmente aos contratos entre fornecedores.
* (558) Nesse sentido a decisão do JEPC/RS: "Consumidor - Sub-
rogação. O
parágrafo único do art. 13 do CDC assegura o direito de regresso àquele
interveniente da relação que compõe o dano, dando-se sub-rogação nos
direitos assegurados ao consumidor, com o que poderá discutir abatimento
no
\preço devido". (Rec. 147/93, rela. Dra. Rosane Wannerda Silva Bordasch,
3.ª
Câm. Recursal, Porto Alegre, deram provimento ao recurso, 24.6.93).
(559) Veja Benjamin/Comentários, p. 34. (p. 631)

2.5 Inexecução contratual pelo consumidor e cobrança de dívidas

No caso de inexecução por parte do consumidor, em que ele


descumpre a sua obrigação principal, o pagamento, vigoram as regras
do Código Civil sobre o tema. Somente dois aspectos civis foram
regulados de maneira especial pelo CDC; o primeiro tem a ver com
a harmonia e boa-fé nas relações contratuais de consumo e o segundo
trata-se de mais um direito especial do consumidor.
O primeiro aspecto regulado pelo CDC é o dever acessório de
lealdade quando da cobrança da obrigação principal, que uma vez
violado pode dar origem ao ressarcimento por danos morais. Dispõe
\o caput do art. 42:
\ "Art. 42. Na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não
será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça".
A norma tem caráter civil e assim deve ser interpretada, não
utilizando-se para interpretá-la o que dispõe a norma de caráter penal,
contida no art. 71.{560} Ora, civilmente o exercício de um direito não
constitui coação ou constrangimento; logo, improcedem as afirmações
radicais de que a norma do art. 42 impediria a cobrança de dívidas no
Brasil, a partir da entrada em vigor do CDC. A norma do art. 42 institui
um mínimo ético de conduta, qual seja não expor o consumidor a
ridículo, não ameaçá-lo com meias-verdades - como aquelas comuns
em cartas de cobrança, ameaçando-o de prisão, quando se sabe da
estrita regulamentação legal sobre o assunto -, não impor um constran-
gimento ao consumidor, como impedi-lo de entrar no estabelecimento
comercial etc. Mas, repita-se que a cobrança, judicial e extrajudicial,
da dívida é e continua sendo um direito do fornecedor, o qual, porém,
deve limitar-se a parâmetros de civilidade normal. Note-se, ainda, que
o CDC não prevê sanção específica para o descumprimento deste novo
dever do fornecedor. A sanção originalmente prevista era pecuniária,
segundo o art. 45, mas foi vetada. Por conseguinte, deverá ser agora
* (560) Muitos comentaristas consideram que o art. 42 deve ser
"lido em conjunto
com o art. 71". veja Benjamin-Forense, p. 241, posição da qual discorda-
mos; as esferas de proteção são diferenciadas, os fins a serem atingidos
também (adimplemento conforme a boa-fé e, no penal, proteção da ordem
social, evitando ofensas à pessoa do consumidor); se o legislador
desejasse
que a norma civil tivesse o mesmo conteúdo do tipo penal, o teria feito.
(p. 632)
deduzida pela jurisprudência dos princípios gerais do CDC, que prevê
em seu art. 6.º, VI a efetiva reparação de danos patrimoniais e mesmo
morais sofridos pelo consumidor.
Neste sentido, mister frisar em geral que o CDC influenciou a
definição jurisprudencial atual de quais são os danos indenizáveis em
matéria de contratos de consumo, em caso de inexecução do consumi-
dor ou do fornecedor. Como anteriormente comentado, no sistema do
CDC os danos morais individuais e coletivos devem ser indenizados
e, segundo a Súmula 37 do STJ, "são cumuláveis as indenizações por
dano material e dano moral oriundos do mesmo fato".{561}
Efetivamente, nestes primeiros anos de vigência do CDC, a
jurisprudência brasileira têm-se mostrado especialmente sensível ao
problema do ressarcimento do dano moral sofrido pelo consumidor em
suas relações de consumo com fornecedores e seus auxiliares profis-
sionais (SPC, Cartórios de Protesto de Títulos, Jornais etc.). Esta
massiva resposta jurisprudencial, de uma unanimidade poucas vezes
observada em matéria de defesa do consumidor, pode ter sua origem
na hierarquia constitucional da proteção da personalidade e da digni-
dade humana, mas demonstrou de forma clara a importância da atuação
do Judiciário na criação de uma sociedade mais ética.
Ao exigir um tratamento mais leal e transparente dos fornece-
dores e sua cadeia de auxiliares em relação aos seus clientes, impôs
o Judiciário brasileiro através da interpretação teleológica do CDC
um novo paradigma de boa-fé nas relações de consumo contratuais,
caracterizado pela aceitação do dever de cuidado do fornecedor ao
cobrar suas dívidas ou movimentar seus auxiliares, suportando o risco
profissional de ter causado dano moral ao consumidor em caso de
cobrança indevida de dívida,{562} registro indevido de seu nome do
* (561) Veja ainda do STJ as Súmulas 43, "Incide correção
monetária sobre dívida
por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo", 54, "Os juros
moratórios
fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade
extracontratual"
e 186, "Nas indenizações por ato ilícito, os juros compostos somente são
devidos por aquele que praticou o crime".
(562) Este é o caso mais comum na jurisprudência, geralmente
decidido nos
JEPCs, veja como exemplo a seguinte ementa: "Dano moral. Responde por
dano moral o comerciante que cadastra indevidamente, cliente que havia
pago antes mesmo do vencimento a obrigação. Dano moral é o abalo da
auto-estima, do amor próprio, é aquele que causa constrangimento. É (p.
633)
SPC,{563} ou de protesto indevido de título abstrato.{564} Nesse sentido,
o STJ já foi chamado várias vezes a interpretar o art. 43, §§ 1.º
e 5.º do CDC, concluindo que "não podem constar, em sistema de
proteção ao crédito anotações relativas a consumidor, referentes a
período superior a 5 anos ou quando prescrita a correspondente ação
de cobrança".{564A}
Quanto ao crime tipificado no art. 71, segue ele os parâmetros
dos
dispositivos penais, de interpretação restrita, e no caso de condutas
normalmente civis, uma interpretação que leva a sua aplicação somente
em casos excepcionais e extremos.{565}
O segundo aspecto da cobrança de dívidas destacado pelo CDC
é o caso da cobrança indevida. Dispõe o parágrafo único do art. 42:
"Art. 42...
"Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem
direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro ao que pagou
*distinto de prejuízo. Aferição do valor indenizatório de forma
subjetiva, pela
inexistência de parâmetros objetivos (unânime)". (Proc. 221/70-91, São
Leopoldo, rel. Dr. Ivan Leomar Bruxel, 1.ª Câm. Recursal/RS, 29.8.91).
(563) Veja RJTJRS 159/319; nesta decisão, porém, o TJRS preferiu
não utilizar
o CDC, presumindo a culpa do fornecedor, uma vez que o consumidor já
saldara sua dívida.
(564) Veja jurisprudência citada quando da análise da cláusula-
mandato, Parte II,
1.2, c, e a ementa: "SPC - Comunicação indevida - Protesto cambial
indevido e registro no SPC - Abalo de crédito - Dano moral e material.
A molestação, o incômodo e o vexame social, decorrentes de protesto
cambial indevido ou pelo registro do nome da pessoa no SPC, constituem
causa eficiente que determina a obrigação de indenizar, por dano moral,
quando não representam efetivo dano material. Sentença confirmada.
Negado provimento (unãnime)". (Ap. Cív. 189000326, rel. Dr. Clarindo
Favretto, 2.ª Câm. Cív., TARS, 1.6.89).
(564A) Assim REsp. 30.666-1-RS, 3.ª T., j. 8.2.93, in RT696/249 e
ss., no mesmo
sentido REsp. 14.624-0-RS (Lex/STJ 41/189); na doutrina destacam-se a
exposição precisa de Antônio Janyr Dall’Agnol Jr., "Cadastro de Consumi-
dores", in Rev. AJURIS 51/196 e ss. e o artigo de Bertram Stürnier,
"Banco
de Dados e Habeas Data no Código do Consumidor", in Lex/STJ, 49/7 e
ss. e ambos explicando a evolução jurisprudencial que levou as Súmulas
\11 e 13 do rms sobre o tema. Sobre o tema "Habeas Data no CDC",
comparece a decisão do TJRS, in: RJ 160/407, negando a gratuidade da
certidão requerida pelo consumidor.
(565) Veja alguns exemplos de casos de abusos nas cobranças
citados por
Benjamin-Forense, pp. 239 e ss. (p. 634)
em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo
hipóteses de engano justificável".
Tratando-se, portanto, de contratos entre consumidor e
fornecedor,
duas hipóteses podem ser pensadas. Se ocorre a cobrança de quantia
indevida, o fornecedor não só fica obrigado a restituir o que cobrou em
demais, como seria normal através da aplicação do art. 964 do Código
Civil, como também fica obrigado legalmente a restituir o dobro,
corrigido monetariamente, para evitar qualquer dano ao consumidor e,
em última análise, para evitar a negligência no cálculo do valor a ser
cobrado do consumidor. A restituição em dobro serve, assim, como uma
espécie de multa, de sanção legal. Mas pode ser ilidida se o fornecedor
provar que o engano foi justificável". O ônus da prova cabe ao
fornecedor e esta será uma prova muito difícil, pois no sistema do CDC
o fornecedor deve, como profissional, dominar todos os tipos de erros
prováveis em sua atividade, erros de cálculo, impressão do valor errado
por computador, troca do nome nas correspondências etc. Em nossa
opinião não basta que inexista má-fé, dolo ou mesmo ausência de culpa
do fornecedor (negligência, imperícia e imprudência),{566} deve ter
ocorrido um fator externo à esfera de controle do fornecedor (caso
fortuito ou força maior) para que o engano (engano contratual, diga-
se de passagem) seja justificável.{567} Em matéria contratual a noção de
"ausência de culpa" fica deslocada, pois o que há é dever/obrigação
de fazer, de cumprir com o que se vinculou. O vínculo contratual exige
cumprimento dos deveres principais, mas também dos chamados
anexos, entre eles o de respeito, de cooperação e também o de cuidado
e vigilância. O próprio vínculo contratual entre fornecedor (cobrador)
e consumidor (devedor) impõe que a cobrança seja correta; sendo
assim, as falhas serão imputadas ao fornecedor.
O CDC teria assim instituído uma imputação objetiva do erro na
cobrança ao fornecedor, semelhante àquela que imputou com referência
* (566) Com opinião contrária, Benjamin-Forense, p. 250, mas os
exemplos de
enganos "justificáveis" são todos externos à "esfera de atividade do
fornecedor" ou de caso fortuito.
(567) Reforçamos a idéia de cobrança indevida, como cobrança
contratual para
frisar que a noção de "culpa" nos contratos não é mais adequada; para nós
há na cobrança indevida um descumprimento contratual do fornecedor, cuja
pena já vem prevista legalmente no art. 42, devolução em dobro, e não
simples ato ilícito extracontratual que exigiria a culpa. (p. 635)
do defeito do produto ou do serviço. Este parece ter sido o caminho
utilizado pelo CDC brasileiro, que estipulou uma regra especial no art.
42 para a falha na cobrança de contratos de consumo, isto é, para o
descumprimento do dever contratual de correção na exigência das
prestações contratuais, impondo uma sanção, o pagamento em dobro
da quantia paga a mais. A ratio da devolução em dobro não seria o
princípio do enriquecimento ilícito (ato ilícito do fornecedor ou de seus
prepostos), mas o descumprimento de um dever contratual (e o
enriquecimento sem causa contratual). Se não houve este
descumprimento do dever anexo ao contrato de consumo, a devolução
será simples, seguindo a regra comum do Código Civil do pagamento
indevido, que não distingue a origem da obrigação (tributária,
contratual,
extracontratual, natural).

2.6 Inexecução contratual pelo fornecedor e desconsideração da


personalidade da pessoa jurídica

a) Noções gerais - Quanto à inexecução contratual do fornecedor,


observamos anteriormente que ela pode ser total ou parcial,
descumprimento do dever principal de fornecer o produto, de transferir
a propriedade, descumprimento dos novos deveres cogentes (antigos
deveres acessórios), anexos de adequação do produto, de informação
sobre o produto ou serviço, de informação sobre a periculosidade
específica e outros baseados na boa-fé, como o de esclarecimento sobre
o uso do produto, cooperação, auxílio, manutenção da assistência
técnica.{568} O CDC regula o descumprimento contratual do fornecedor
em muitas de suas normas, mas duas delas merecem destaque.
No campo processual, devemos destacar a preocupação do legis-
lador brasileiro com a facilitação do acesso à justiça, como forma de
efetivar a proteção do consumidor.{569} O CDC possui uma seção
específica sobre a defesa do consumidor em juízo, desenvolvendo no
Brasil as ações coletivas, a class action do direito norte-americano,
para
facilitar a defesa do consumidor, normalmente menos propenso a
recorrer à Justiça para fazer respeitar seus direitos; propõem, igualmen-
* (568) A obrigação como ensina Couto e Silva/Obrigação, passa a
ser um
\"processo" (Veifahren).
(569) Sobre as preocupações com o acesso à justiça veja
Bourgoingnie/Clauses,
p. 516, Stiglitz, p. 49 e Mancuso, pp. 60 e ss. (p. 636)
te, estas normas processuais que se dê prioridade à conciliação e à
transação extrajudicial, com o auxílio de órgãos como os PROCONs,
as Associações de Defesa (mesmo através de uma nova figura, a
Convenção Coletiva de Consumo, art. 107) e principalmente pela ação
do Ministério Público. A novidade das normas processuais, sua espe-
cialidade, instituindo inclusive a coisa julgada erga omnes e ultra
partes (art. 103), completam o sistema de proteção material instituído
pelo CDC, merecendo destaque pela excelência de suas normas, que
esperamos reflita-se em eficiência e rapidez na solução dos litígios do
consumo. O sistema do CDC permite ações coletivas e mesmo uma
ação civil pública, movida pelo Ministério Público (art. 51, § 4.º), para
declarar em abstrato a nulidade de determinada cláusula presente nos
contratos de massa. Nestes casos as ações envolvem interesses
metaindividuais; lógico, portanto, que se estendem os efeitos das
decisões aos casos futuros e análogos, no caso de procedência do
pedido (veja arts. 81 a 104 do CDC).

b) A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica - No


âmbito contratual, cabe destacar a norma do art. 28 do CDC, que
\positiva no Brasil a doutrina da Disregard of legal Entity, do direito
\norte-americano, doutrina do Durchg4ff no direito alemão, a doutrina
da Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica, abordada
pioneiramente no Brasil por Requião{570} em 1979.
A doutrina da desconsideração tem seu fundamento nos princípios
gerais de proibição do abuso de direito, e permite ao Judiciário,
excepcionalmente, desconsiderar (ignorar no caso concreto) a personi-
ficação societária, como se a pessoa jurídica não existisse, atribuindo
condutas e responsabilidades diretamente aos sócios e não à pessoa
jurídica.{571}
O reflexo desta doutrina no esforço de proteção aos interesses do
consumidor é facilitar o ressarcimento dos danos causados aos consu-
midores por fornecedores-pessoas jurídicas. No direito tradicional é o
patrimônio societário que responde pelas dívidas da sociedade, estando
a responsabilidade dos sócios restrita conforme o tipo de sociedade
* (570) Rubens Requião, "Abuso de direito e a fraude da
personalidade jurídica
(disregard doctrine)", in RT 410/12.
(571) Assim Marçal Justen Filho, A Desconsideração da
Personalidade Societária
no Direito Brasileiro, São Paulo, Ed. RT, 1987, p. 55. (p. 637)
criada (sociedade por quotas de responsabilidade, sociedade anônima,
comandita etc.).
Ao nosso estudo, restrito aos aspectos contratuais, interessa
distinguir os dois aspectos da pessoa jurídica. A pessoa jurídica de
direito privado é criada por uma manifestação de vontade (inter vivos
ou causa mortis), podendo ser a reunião de pessoas (associação,
sociedades civis e comerciais) ou de bens (fundação). Para alcançar a
personalidade jurídica submete-se a formalidades, controle e necessi-
dade de registro (arts. 18 e ss. do CC).
Alcançada a personificação, considere-se a pessoa jurídica como
uma ficção, em honra aos ensinamentos do mestre Savigny, ou uma
realidade técnica, doutrina aceita atualmente, certo é que a pessoa
jurídica passa a agir na sociedade como ente diferenciado de seus sócios
\(art. 20 do CC). Este é o chamado aspecto ativo da personificação que
permite ao novo ente ter capacidade ou legitimação para agir, para
realizar os seus objetivos societários.{572} Já o aspecto passivo da
pessoa
jurídica é considerá-la como massa de garantia para as ações e contratos
que realiza no mercado. Aqui ocorre a separação - por força última da
vontade das partes, ao criarem a sociedade, mas também por autori-
zação do direito - entre os patrimônios dos sócios e dos administradores
e o patrimônio da pessoa jurídica.
A pergunta que se põe é qual dos aspectos da pessoa jurídica será
desconsiderado em favor do consumidor? O juiz declarará a invalidade
do contrato, que criou a sociedade, por abuso de direito? Destruirá o
Judiciário o ente criado segundo o direito, por se ter desviado de seus
fins? Ou imputará o juiz os atos e condutas da sociedade aos sócios,
desconsiderando as regras de responsabilidade patrimoniais daquele tipo
de sociedade criada, como punição ao abuso ou desvio ocorrido? Ou
imputará o juiz tais condutas aos sócios e administradores individual-
mente, casuisticamente, para evitar o sacrifício de interesses
superiores?
A doutrina do disregard desenvolveu-se no sistema norte-ameri-
cano, na procura da solução justa e funcional para o caso concreto,
sistema menos formal, onde o conceito de pessoa jurídica se aproxi-
mava da ficção proposta por Savigny, e foi desenvolvida pela via
especial da equity.{573} Era, portanto, uma solução casuística, excepcio-
nal, justa para o caso concreto (eqüidade).
* (572) Assim ensina Los Mozos, p. 260.
(573) Assim ensina Los Mozos, p. 253. (p. 638)
Chegando na doutrina alemã vai sistematizar-se, na tese famosa
\apresentada por Rouph Serick à Universidade de Tübingen em 1952,
em que procura caracterizá-la como hipótese de abuso do direito e
como intenção de fraude à lei.{574}
No Brasil vai ganhar, no Projeto de 1975 de Código Civil, traços
de invalidade do contrato de criação da sociedade, de verdadeira forma
especial de dissolução da sociedade, fato que levantará críticas dos
comercialistas.{575} Após, a melhor doutrina fixará que na
desconsideração
o problema é de imputação do ato jurídico aos sócios. A doutrina
encarregar-se-á de considerar a teoria aplicável somente em casos de
desvio das finalidades da sociedade ou abuso de direito, casos graves
que justifiquem desconsiderar a pessoa jurídica regularmente constitu-
ída, que praticou determinado ato jurídico.{576} O método é mais uma vez
tópico e funcional, bem ao gosto do CDC no sentido de resolver o
problema concreto do conflito de valores entre a manutenção do dogma
da separação patrimonial e os interesses da outra parte contratante com
a pessoa jurídica insolvente.
Assim, dispõe o art. 28 do CDC:
"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou
violação
dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será
efetivada quando houver falência, estando de insolvência, encerramen-
to ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".
A previsão ampla, englobando todas as hipóteses detectadas no
direito comprado e na experiência jurisprudencial brasileira sobre o
tema,{577} deixa bem clara a opção legislativa pela proteção do consu-
midor através da desconsideração sempre que a "personalidade" atri-
buída à sociedade for obstáculo ao ressarcimento dos danos sofridos
pelo consumidor. Nesse sentido, terminamos estas observações, que
pretendiam ser breves, transcrevendo o texto do § 5.º do art. 28,
* (374) Assim Adalberto Pasqualotto, "Desvio da Pessoa Jurídica",
in Rev.
AJURIS, 47.
(575) Veja detalhes e críticas de Requião ao Projeto 634/75, em
Justen, pp. 151
a 153.
(576) Assim conclui Justen, em sua monografia, pp. 53, 59, 152.
(577) Sobre as decisões nos tribunais brasileiros, veja
Pasqualotto/Desvio, p. 209. (p. 639)
|do próprio contrato, para responsabilizar objetivamente toda a cadeia
de fornecedores, tudo para alcançar a proteção da confiança depositada
na sociedade de consumo.
Nossa análise tentou, portanto, sistematizar as novas normas,
estudando-as enquanto reflexos de princípios básicos do direito tradi-
cional e do novo Direito do Consumidor. Poderíamos genericamente
afirmar que o princípio máximo orientador do CDC é o clássico
princípio da boa-fé nas relações entre os homens, mas, por uma questão
de didática e procurando aprofundar a procura da ratio de cada norma,
destacamos a existência de quatro vertentes distintas para as normas
do novo Código. Estes princípios são os da Transparência e da Boa-
Fé nas relações entre consumidores e fornecedores, não só em suas
relações contratuais mas também pré ou extracontratuais, os Princípios
da Eqüidade ou Equilíbrio dos Contratos de Consumo e o Princípio da
Proteção da Confiança depositada pelo consumidor tanto no vínculo
contratual e em seus efeitos, quanto no produto ou serviço oferecido
no mercado.
O princípio da Transparência impõe uma nova conduta mais leal
e aberta na fase-contratual, antiga fase de negociações preliminares
entre os futuros parceiros contratuais. A finalidade destas normas do
CDC será, portanto, possibilitar uma aproximação e uma futura relação
mais sincera e menos danosa para o consumidor. Transparência
significa, para nós, informação e lealdade na fase pré-contratual.
O Princípio da Boa-Fé orientará não só o contrato de consumo,
mas, como destacamos, será o guia das práticas comerciais dos
fornecedores no mercado brasileiro. O CDC busca, em última análise,
transparência e harmonia nas relações de consumo (art. 4.º); esta
harmonia será alcançada através da exigência de boa-fé nas relações
pré-contratuais entre fornecedor e consumidor. As normas do CDC
impõem um novo regime basilar para as práticas comerciais (publici-
dade e práticas agressivas de venda, inclusive para a chamada venda
de porta-em-porta e por reembolso postal), evitando assim que estas
práticas se utilizem da vulnerabilidade dos consumidores.
No sistema do CDC deveres até então considerados secundários,
e nem sempre reconhecidos pela jurisprudência como existentes,
passam a ser positivados como obrigatórios nas relações de consumo;
assim, o dever de informar passa a ser um dever básico dos fornece-
dores, anexo à própria atividade de fomentar o consumo, mas também (p.
642)
anexo ao próprio contrato, como na doutrina tradicional. Uma das
características da nova lei é justamente a imposição de novos deveres
anexos, verdadeiros ônus para os fornecedores da cadeia de produção.
Destacamos, igualmente, que com a entrada em vigor do Código vários
aspectos da publicidade comercial passam a ser juridicamente relevan-
tes, vinculando e responsabilizando aqueles fornecedores que dela se
utilizarem para a promoção de seus produtos ou de suas vendas.
O Princípio da Eqüidade Contratual, significa o reconhecimento
da necessidade, na sociedade de consumo de massa, de restabelecer um
patamar mínimo de equilíbrio de direitos e deveres nos contratos,
intervindo o Estado de forma a compensar o desequilíbrio fático
existente entre aquele que pré-redige unilateralmente o contrato e
aquele que simplesmente adere, submetido à vontade do parceiro
contratual mais forte. Assim institui o CDC normas imperativas, as
quais proíbem a utilização de cláusulas abusivas nos contratos de
consumo e possibilitam um controle tanto formal quanto do conteúdo
destes contratos, tudo para alcançar a esperada justiça contratual.
Por fim, o Princípio da Proteção da Confiança leva o sistema do
CDC a concentrar-se também nas expectativas legítimas despertadas
nos consumidores pela ação dos fornecedores, protegendo a confiança
que o consumidor depositou no vínculo contratual e também na
prestação contratual, mais especificamente na adequação ao fim que
razoavelmente se pode esperar dos produtos e dos serviços colocados
no mercado pelos fornecedores. O Princípio da Confiança garante
assim a adequação, a qualidade e mesmo uma segurança razoável dos
produtos e serviços de forma a evitar danos à saúde e prejuízos
econômicos para o consumidor e os terceiros vítimas. A finalidade
destas normas é, em última análise, melhorar a qualidade de vida dos
brasileiros, melhorando a qualidade dos produtos que consome e dos
serviços que são colocados à sua disposição.
Como afirmávamos no início desta obra, a nova lei rompe
efetivamente com o pensamento individualista e liberal de nosso
Direito das Obrigações. Rompe com a função exclusivamente supletiva
das normas que disciplinavam os contratos. E introduz uma nova
concepção deste instituto basilar do direito e da economia, concepção
esta que vai relativizar o dogma da autonomia da vontade, instituindo
estes novos valores imperativos: transparência, boa-fé, equilíbrio,
segurança e respeito nas relações de consumo. (p. 643)
Não se exige mais que o consentimento seja livre, se exige que
o consentimento seja refletido, oriundo de informações verídicas,
baseado na oportunidade de conhecimento do conteúdo das obrigações
que se está assumindo. Do direito obstáculo, passa-se ao comando
concreto, impondo deveres de conduta e concentrando-se a lei objeti-
vamente no resultado concreto das atividades dos fornecedores, no
contrato formulado de maneira unilateral e ineqüitativa, na prestação
contratual inadequada ou de menor valor, na segurança inexistente em
virtude do defeito do produto ou do serviço.
O CDC representa, assim, uma verdadeira evolução no espírito do
ordenamento jurídico brasileiro. As idéias, porém, que o guiam não são
novas; ao contrário, como tentamos demonstrar, estão positivadas no
CDC as teorias que representam o melhor da evolução do pensamento
jurídico e da ação criadora da jurisprudência nos últimos dois séculos.
São diferentes teorias de fundo social, que podem, porém, ser sistema-
tizadas, enquanto reflexos dos novos princípios básicos de proteção do
consumidor, instituídos pelo CDC. A importância destes princípios está
em balizar a ação do intérprete do novo texto, evitando excessos.
Desta análise do novo Código de Defesa do Consumidor e de seus
reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, podemos concluir que a
maior contribuição da nova lei, no que respeita ao regime dos contratos,
não está em regular problemas típicos da sociedade de consumo, que
não encontravam resposta no ordenamento tradicional, mas que está em
assumir um posicionamento mais social no Direito Civil, no Direito das
Obrigações, na esteira do que já acontecia no Direito de Família e de
Sucessões, pensamento mais voltado para os efeitos sociais do contrato
e menos para a vontade dos indivíduos participantes.
Critique-se sua maneira tópica de pensar, seu abrangente campo
de aplicação, mas não há como negar que o novo Código é um conjunto
funcional e sistemático de normas gerais e cogentes, que garantem a
proteção dos consumidores contra várias das manifestações danosas do
fático desequilíbrio existente nas relações entre consumidores e forne-
\cedores no mercado brasileiro. (p. 644)
Na primeira edição deste trabalho tivemos a oportunidade de
afirmar: "Um Código deve ser algo dinâmico, de modo a possibilitar
seu desenvolvimento pela ação da jurisprudência e da doutrina, nesse
sentido, é inegável o potencial que representa o Código de Defesa do
Consumidor, com seus novos valores de ordem pública, suas normas
gerais, que poderão dar origem a uma fecunda renovação no Direito
Brasileiro e a uma efetiva melhoria na qualidade de vida neste país.
É o que esperamos".
Como a análise da jurisprudência brasileira nestes três primeiros
anos de vigência do CDC demonstrou, o Código efetivamente rejuve-
nesceu o direito civil, modificou sensivelmente o direito contratual e
introduziu novos patamares éticos no mercado brasileiro. A jurispru-
dência tem contribuído em muito para uma interpretação ponderada e
ao mesmo tempo efetiva das normas do CDC. Mesmo se, em alguns
casos, preferem os julgadores utilizar-se de instrumentos mais conhe-
cidos e tradicionais, não há como negar que o espírito de boa-fé objetiva
a eqüidade contratual introduzido pelo CDC acaba por influenciar
também essas decisões.
A abundante jurisprudência e os numerosos trabalhos de doutrina
estão a confirmar o que prevíamos: a eficácia prática da lei e sua
importância no sistema do direito civil. O caminho da conscientização
da nova função social do direito privado ainda não foi todo percorrido,
muitas modificações e reflexos da nova lei devem ser esperados, pois
a concreção do princípio da boa-fé na sociedade atual é um dos grandes
desafios do direito.
Se é impossível fazer ainda uma avaliação completa e total da
aplicação do CDC no mercado brasileiro, certo é que nestes três anos
o Código apresentou para leigos e profissionais um dos mais eficientes
instrumentos legais de reequilíbrio e eqüidade contratual, e esperamos
que assim continue. Se o mercado brasileiro ainda apresenta falhas, sem
dúvida tornou-se mais leal e transparente. A melhoria das relações entre
fornecedores e consumidores é um importante passo para o desenvol-
vimento de nossa economia e de nosso país. (p. 645)

(p. 646, em branco)

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