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INFÂNCIA

TÂNIA MARTINS

Corriam pelo parapeito. A mãe lá dentro: Trinrinreinriin, à máquina Singer. Começava uma
música de igreja. Primeiro da Católica, depois descobriu que a Protestante esbanjava mais ós e
us, cheia de nannannan e cortava a exibição da música que a tia lhe ensinara. Ao lado, a irmã
branquinha olhando com inveja – tirava seu braço do muro com violência saltando pra rua:
- “Não sabes que vim ao mundo pra cuidar das coisas do meu pai que está no céu?” – Repetiu
teimosa. A mãe ficou de campana, escutando:
- Carminha, volta aqui!
Ouvia longe, longe. Seguia um cão em ziguezague, ele focinhava um sapato velho que um pneu
estragara, cheirava um rastro esborrachado na areia e seguia. A sirena da fábrica apitava e
pessoas saiam de uma portinhola, umas atrás das outras. Iam pesadas, lentas, tristes. Uma
entrara em uma casa bem pequena e uma mulher de cabelo comprido passou a mão em volta do
seu pescoço.
O ar exalava cheiro de lingüiça e folha seca. Um menino lavava o mercadinho. Outra entrara
em casa também, havia uma velha na janela que nem se moveu. E outra caminhava pela rua
principal, a Getúlio Vargas, a rua mais comprida do mundo, maior que o número mil, que era o
maior número que existia.
“Oh, beija-me numa segunda, segunda, segunda que é muito e muito bom...” – Cantou.
Quem foi pela Getúlio Vargas? Seu Chico que sempre aparecia em casa com o pai.
- Esta é a filha do Zé que fugiu de novo.
Davam tapas nas costas uns dos outros, um ia à procura de um galo, outro pegava o do terreiro,
os coitadinhos sacudiam as penas, inflavam, ela de cócoras, vendo o confronto.
- Carminha!
- Fala pra titia onde você nasceu?
Ela:
- Nasci em Gurinhatã, palavra tupi guarani que significa Pequeno Pássaro Azul.
- Oh!
“Oh, beija-me também na terça na terça na terça com todo o coração.”
Mergulham-na no balde com água fria, imaginem, chegara um fotógrafo que também era
escrivão e, no assunto de fotografá-la, puxara o riso lambido da mãe. Ela mexera nos cabelos,
incrédula, até se esquecera da câimbra por causa de o dia inteiro pedalar, pedalar, pedalar.
Limpinha, cantou, mas a foto desse momento sumiu com a mudança inteira em um trem da
FEPASA, interior de São Paulo, para sempre.
“Oh, beija-me também na quarta, na quinta, na sexta, no sábado beijar!”
- Amoleça a cadeira!
- Escuta o violão!
O fotógrafo quis levá-la com ele, disse: “Sou do Rio de Janeiro e faço dela uma grande
cantora”. Exibiu meninas americanas e garotos mexicanos. Mas a mãe rosnou rindo, deitou a
mão no meio das pernas, polegar em figa. O pai cercou mais o quintal, limpou um dos
revólveres que sempre tinha pra vender.
- Volta aqui, Carminha!
Vieram buscá-la no meio da rua. Ia fazendo um triângulo vermelho sobre tinta branca na parede
virar um coração... Via olhos se avivarem, uns de um jeito, outros de outro. As veias do
pescoço cresciam, estiradas. Na próxima nota, ai, seria um Deus nos acuda. Além disso, a mãe
deixou acumular sujeira no seu pescoço, o suor da testa descia num caldo lamoso até a barriga
nua, mãos para trás, geladas, morria de emoção.
Outras músicas entraram no seu repertório, ensinadas pela professora que sabia todos os passos
do tango. O “Oh, beija-me!” ficou banal, banalíssimo.
- Mas nunca, nunca, nunca no domingo, domingo, domingo que é dia de... de? Esquecera. Caía
meio mundo. Tinha febre. Diziam que era mau-olhado, eram três dias de cama e de preces. Mas
o pai chegava no meio da noite à porta do quarto, emitia um assobio fino e combinado e ela
saltava do berço para o chão. Ele ajoelhava-se com ela no meio da cozinha e murmurava:
“P`assopêto do pai”. E lhe babava. Da sua boca vinha um cheiro de fogo amarrado, de carne
queimada no limão. Espiavam a porta, pois a mãe podia aparecer nela como fantasma medonho.
Ele se levantava com ela abraçado, tremendo de emoção e graça que achava em vê-la tão
pequena.
- Sabia, seu égua, acordou a menina, não é?
Um bode, a mãe.
- Pensa que não sei? Desde que ela nasceu, eu sei. Queria um macho, não é? Agora quer matá-
la de pouquinho em pouquinho.
Agarrava saias.
- Sua doida!
Agarrava calças.
- Sou doida, é? Quando adoeceu, você não deu um centavo, disse que ela era franzina, bichada,
porcaria de fêmea, que eu devia enterrá-la em uma caixa de sapato no fundo do quintal.
Ele grunhindo.
Enquanto não surgisse aquela sombra branca à porta, os dois preparavam feijão com farinha e
pimenta. A conversa que tinham nestes momentos era confusa, só entendia o “P’assoPêto”. De
repente ele vacilava, a panela retinia no piso com um barulho horrendo e ele soltava uma risada
bêbada de pesar.
- Sabia, seu égua...
Ou ele trazia os amigos, sumido desde o começo da semana.
- Precisam ver que sapeca... Canta aquela música, como é? Ah, já sei: “Recuerdos de Ipacaray”!
Canta.
Ele cantava um trechinho, oh, pobre voz:
“En una noche tíbia nos conocemos
Junto el lago azul de Ipacaray
Tu cantabas tristes por elcamino
Biejas melodias em Guarani "...
Úmida, latina, triste, tonitroante voz!
Ou:
“Que bonitos ojostienes
Debarro dessas docerras
Debarro dessas docerras
Que bonitos ojostienes!

Elos mi quierem mijar


Pero si tu no losderras
Pero si tu no losderras
Ni si quierespalpadiar

Malaguena, Salerosa!
Besar tu lábios quisera
Besar tu lábios quisera
MalaguenaSalerosa

Jo non te ofresco riqueza


Ti ofresco me corazon
Ti ofresco me corazon
A cambio de me pobreza

Malaguena!!!!!!! Salerosa.
E eras linda, e é de sera
Eras linda e é de sera
Como el condor de uma rosa,
Como el condor, de uma rosa!!!!!!!!!
Sentavam-se ungidos.
Os vizinhos chegavam, a mãe colava-se à porta.
Homens traídos, mulheres sem passado, de repente gordas e ressuscitadas. Sol a pino lá fora. O
bairro parava.
Mas, não raro, toda essa poesia se mostrava em sangue vivo quando a mãe as atirava pela janela
e caíam em um tapete de flores. Ouviam no meio do sono que deviam correr. Atrás de si vinha
sua irmã branquinha que só brincava de boneca e não topava fugir de casa.
Seguiam madrugada afora e a mãe dizia: Corram, meninas! Corriam a mais não poder.
Silenciavam perto da casa da avó:
- Quem está aí?
- Nada não, dona Maria, somos nós.
Era o pai, seu filho bêbado, violento e louco.
A avó saía curvada sob a chuva, a chuva viera em cima dos seus rastos, via sua saia ramada
desaparecer na entrada da casa, de lá dos respingos. Depois ela voltava com os pés molhados e
enxugava seus cabelos de judia em uma toalha limpinha.
- Pronto, ele dormiu - dizia.
Ou os vizinhos acordavam apavorados e as casas se enchiam de luz. A tia dava com a mãe
encolhida em um canto e lhe subia um sangue enxameado nas veias. Dizia:
- Vamos!
Iam com ela.Mas ninguém perdesse tempo em fazer o Nome do Pai; Um homem bêbado não é
o mesmo que um homem louco, um homem bêbado é o mesmo que um homem cansado, um
homem cansado e triste – Era este o cálculo que a tia fazia e ele nunca se lembrava, ela
chegava, batia nele e ia embora. Ele ainda desafiava:
- Veio saber com quantos paus se faz uma canoa?
E cantava, a plenos pulmões:
“É um martírio gostar de alguém que vive, nos braços de outro
Este alguém já foi meu amor.
Ao recordar que me acariciavas quando estava ao meu lado
Os meus olhos choram de dor.
Tu és para mim, a minha mulher amada
E eu para ti, sou o homem que tu desprezas
Peço desculpas se tu me ouvires cantando que eu te amo
Pois meu vício és tu meu amor!!!”
Ou ainda, mais debochado:
“Se você pretende, saber que eu sou, eu posso lhe dizer
Entre no meu carro e na estrada de Santos, você vai me conhecer
Você vai pensar que eu não gosto nem mesmo de mim
E que na minha idade, só a velocidade, anda junto a mim
Eu prefiro as curvas da estrada de Santos
“Onde o tempo é bem menor...”
O pai também cantava até se calar, rouco, estridente.
Com o tempo, a mãe foi dizendo que o pai era bom, romântico, e que a culpa de tudo era dela,
que saíra ao seu avô cigano, inglês e ruim feito carne de pescoço. Também saíra à sua avó,
índia domada no laço pelo cigano inglês que tinha muito ódio no coração. O costume de comer
de cócoras era da avó bugra.De dizer que ninguém gostava dela nesse mundo, que foi deserdada
pelo casamento.
E desfiava a história toda da índia sendo domado no laço pelo cigano inglês no terreiro da casa
de fazenda. A perna dela machucada, seios expostos, amarrada a um tronco de árvore até perder
a fúria. Raça maldita! – Ela dizia de si mesma. Nem foi à toa que o velho nem morreu, o diabo
o buscou antes, após velar seus gemidos em um catre durante vinte anos. Feixe de ossos, foi
enterrado sem ninguém saber se estava vivo ou morto.
Ela dizia que do lado do pai também havia “dois povos igualmente desterrados e sem
serventia”, ou seja, tristes: Negros e judeus! Tristes? Não, tristes, não, mas sem sorte nesse
mundo. Os judeus são tristes. A tristeza dos negros só se vê com o coração.E ela ouvia pesarosa
de que tais coisas se dessem desse jeito e tivessem acontecido há tanto tempo que, delas, talvez
nem o demônio existisse mais. Sobretudo crescia parando de cantar para, quem sabe, encarcerá-
las no tempo e ir sabendo delas por sua conta, e devagarzinho, embora tão penosamente quanto
fora com todos os seus?

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