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A CRISE LATENTE DO
DARWINISMO
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SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................................6
Introdução...............................................................................................................14
De que trata este livro? ................................................................................14
Um aparte: Naturalismo científico e naturalismo metafísico ........................17
De volta ao assunto .....................................................................................26
1. Esclarecimento metodológico..............................................................................27
Concepção epistemológica de fundo ............................................................27
Um exemplo histórico de mudança paradigmática .......................................29
O que nos dizem os exemplos históricos? ....................................................32
As mudanças na ciência são lentas...............................................................35
Novas perspectivas para as ciências da vida.................................................37
2. A luz de Darwin ..................................................................................................42
O que é central no darwinismo?...................................................................42
3. Um novo mundo dentro da célula ........................................................................52
O desencantamento......................................................................................52
... e o re-encantamento.................................................................................54
Implicações para o debate científico ............................................................56
A simplificação oculta a realidade ...............................................................57
O real é mais complexo (esclarecimentos científicos) ..................................58
Indo ao beco sem saída ................................................................................61
A simplicidade das explicações vs. a complexidade da realidade .................63
Ciência ficção..............................................................................................68
Ainda há um mundo a ser explorado pelas ciências da vida .........................69
4. Darwin na berlinda..............................................................................................71
4.1. A crítica de Behe ..........................................................................................74
A base da crítica ..........................................................................................74
Preenchendo as lacunas com ciência ............................................................78
Qual é a questão? ........................................................................................83
A resposta do darwinismo ...........................................................................84
Tais respostas são satisfatórias? ...................................................................91
Engano ou desespero? .................................................................................94
A crítica mais sensata a Behe ......................................................................96
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APRESENTAÇÃO
Penso que a história que precede a elaboração deste livro é interessante demais para
deixar de ser compartilhada com os leitores. O conhecimento do caminho que percorri em
relativamente pouco tempo – que começa com o propósito de defender a Teoria Darwinista
da Evolução e termina na forte suspeita a respeito de sua capacidade explicativa como
teoria científica – não é essencial para o entendimento das idéias aqui apresentadas, mas
pode servir para esclarecer as verdadeiras motivações da pesquisa que culminou no artigo,
publicado em espanhol, intitulado La crisis latente del darwinimo.1 Por mais estranho que
possa parecer, o objetivo inicial da pesquisa era defender a pertinência do darwinismo
como teoria científica, mas, ao mesmo tempo, contestar sua adequação como teoria social
ou princípio fundamentador das relações humanas. As conclusões do estudo, no entanto,
foram bem diferentes. Nestas páginas iniciais, pretendo esclarecer as razões do desvio de
rota que impediu a realização do objetivo da investigação.
A história começa com a publicação, em 2002, de meu livro “O princípio da
cooperação: em busca de uma nova racionalidade”. A idéia básica do livro, em resumo, é
de que a cooperação deve ser o princípio fundamentador das relações humanas e da
organização sócio-econômica do mundo, para que possamos superar os graves problemas
que a humanidade enfrenta na atualidade. Essa idéia se fundamenta na constatação de que
o ser humano evoluiu como ser humano (e não simplesmente como uma espécie a mais do
reino animal) porque foi capaz de estabelecer relações cooperativas intra-específicas. Isso
pode ser resumido nas palavras do biólogo Humberto Maturana:
A origem antropológica do Homo Sapiens não se deu através da competição, mas sim
através da cooperação. (...) O que nos faz seres humanos é nossa maneira particular de
viver juntos como seres sociais na linguagem (Maturana, 1999, p. 185).
1
O artigo foi publicado em 2006 na revista Asclepio, año LVIII, n.1. enero/junio, p. 43-94.
7
obra do acaso só pode ser superada com a concepção da vida como um “imperativo
cósmico”, fruto de leis naturais passíveis de serem conhecidas pela bioquímica. No
entanto, afirma ele, a partir de um certo ponto, com a vida já formada, tudo passa a ocorrer
por mutações aleatórias e pela ação da seleção natural. A forma, porém, como o autor
defende o darwinismo pareceu-me visivelmente descolada do restante da explicação. Não
fica claro, por exemplo, porque as leis bioquímicas deterministas que deram origem à vida
encerraram repentinamente seu trabalho e cederam espaço ao acaso e à seleção natural.
Essas leis não poderiam ter continuado a agir no desenvolvimento da vida, na sua
organização e reorganização e, conseqüentemente, na evolução das espécies? Por que o
acaso entra em cena? Por que a evolução não poderia ser também um processo
determinista, ocorrendo em situações peculiares, complexas, irrepetíveis e imprevisíveis?
Em minha análise, a forma como de Duve e outros autores evocavam as regras
darwinistas – como início ou conclusão abrupta de um relato repleto de complexidade – era
muito mais retórica do que explicativa.
Nessa mesma fase da investigação, encontrei, por acaso, o livro de Michael Behe, A
caixa preta de Darwin (1997a). Não tinha ainda conhecimento de toda a polêmica em
torno dele nos EUA. Interessei-me pelo título e pelo texto da contracapa. Era, para mim,
apenas mais um livro de um cientista insatisfeito com o darwinismo. A primeira parte foi
profundamente instrutiva. Os questionamentos levantados eram bastante diretos e
profundos e baseavam-se em explicações estritamente científicas. O argumento de Behe
contra o darwinismo pareceu-me (e ainda me parece) bastante consistente.
Mas a segunda parte do livro apresenta uma solução decepcionante: a proposição do
Design Inteligente. Ao invés de buscar causas naturais para os fenômenos naturais –
essência (e limite) do conhecimento científico – Behe buscou no sobrenatural a solução
para os problemas da teoria hegemônica. Não era bem o tradicional criacionismo, visto que
o autor não questionava o fato da evolução, mas uma forma de transcendentalismo que em
nada ajuda o conhecimento científico. A proposição acabou por desviar o impacto da
primeira parte do livro para a infrutífera polêmica “evolucionismo x criacionismo”.
A estratégia de Behe foi totalmente equivocada, mesmo para seus propósitos. Ao
apresentar sua concepção transcendentalista no mesmo livro em que apresentou as críticas,
Behe afastou-se de todos os críticos do darwinismo que não se sustentam em argumentos
transcendentais e permitiu que os sólidos argumentos da primeira parte de seu livro fossem
quase que totalmente ignorados em função da segunda. Os defensores mais “populares” do
darwinismo puderam esquivar-se das respostas aos questionamentos e concentrar-se
10
2
Isso o próprio Darwin admite na Origem das espécies, como será visto.
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3
Quero destacar aqui as duas memoráveis oportunidades que tive de debater o tema na Faculdade de
Biologia da Universidad Autónoma de Madrid, a convite do dr. Sandín, em 2005 e 2006, e a receptividade de
um significativo grupo de alunos de biologia daquela universidade.
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diálogo que uma parcela da humanidade tem buscado estabelecer com seu mundo social e
natural.
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INTRODUÇÃO
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O neodarwinismo (também chamado de Teoria Sintética) é o nome dado à síntese da teoria da evolução de
Darwin, apresentada em A origem das espécies, com as descobertas da genética e das leis da hereditariedade,
que Darwin não conhecia (embora Mendel as tenha formulado na mesma época em que foi apresentada a
teoria da evolução por seleção natural).
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Zimmer, embora não seja biólogo – e sim jornalista científico – tem se destacado como um grande
divulgador da ciência e tem um enorme acesso ao grande público. Citei aqui os mais populares, mas entre os
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que defendem a perfeição do neodarwinismo se podem encontrar Jerry A. Coyne, Allen H. Orr, Douglas J.
Futuyma, John Maynard Smith, Daniel Dennett e muitos outros.
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Um aparte:
aparte: Naturalismo científico e naturalismo metafísico
O entusiasmo dos primeiros modernos com o conhecimento da natureza
proporcionado pela Revolução Científica do século XVII teve conseqüências que perduram
até os dias atuais. Grande parte da nossa concepção sobre a ciência e seu papel no
conhecimento é herança daquela época e do Iluminismo do século XVIII. Porém, afastados
alguns séculos no tempo, podemos, atualmente, lançar um olhar histórico-crítico sobre o
ideal de ciência que predominou na modernidade.
No contexto social do período feudal, caracterizado por uma economia basicamente
agrária e pela estrutura estática de poder e de castas sociais, os conhecimentos das artes
práticas eram suficientes para movimentar a vida cotidiana. Para a compreensão e
explicação dos fenômenos naturais em nível mais erudito, recorria-se aos conhecimentos
das coisas que estariam “além” da natureza (no grego: meta tá fysiká). A natureza a ser
explicada pelo conhecimento erudito limitava-se ao que era revelado no âmbito da
6
O livro de Dawkins, Deus: um delírio (2007), é um exemplo perfeito da ação dessa blindagem. Os dados
para catalogação da edição brasileira listam como temas do livro: “1. Ateísmo; 2. Deus – existência; 3.
Fundamentalismo; 4 Irreligião.” No índice para catálogo sistemático encontra-se a referência: “Ateísmo e
irreligião: teoria da religião”. O que o coloca no rol dos livros de teologia. Algo incomum para o currículo de
um zoólogo.
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experiência. A idéia que ainda predomina no senso comum é de que a ciência moderna
rompeu com a metafísica e superou qualquer caráter especulativo do conhecimento,
inaugurando, assim, uma época na qual apenas conhecimentos “provados” teriam lugar.
Essa visão, que hoje podemos chamar de “simplista”, já foi bastante refutada pela
historiografia científica e pela filosofia das ciências durante o século XX.7 Ao contrário do
imaginário comum, a ciência moderna só surgiu quando as bases metafísicas do
conhecimento foram reconstruídas. Antes de ser possível qualquer sentença sobre o
comportamento da natureza (tarefa que cabe à ciência) é preciso, primeiramente, existir um
pressuposto claro a respeito do que a natureza é em si mesma, para além daquilo que ela
nos revela através de seus fenômenos (reflexão de ordem ontológica, metafísica). A
ontologia do universo como cosmo ordenado (base da física aristotélica) produz um tipo de
ciência bem diferente da ontologia do universo-máquina (base da física galileana,
cartesiana e newtoniana). Mudança equivalente ocorre quando se substitui a visão
maquinal da física moderna por uma ontologia orgânica, complexa e sistêmica da natureza.
A ciência, portanto, possui bases metafísicas irremovíveis.
A modernidade substituiu a ciência fundada na metafísica aristotélica por um
conhecimento calcado em uma ontologia mecanicista, determinista e matemática.
Enquanto os aristotélicos acreditavam que o universo era uma realidade harmônica,
hierárquica, estética e qualitativamente explicável, os modernos o concebiam como um
mecanismo funcional, com regularidade e leis fixas, passível de ser explicado apenas
quantitativamente. Essa concepção de ser do universo (portanto, metafísica) caracterizou
as diferenças entre a ciência aristotélica e a ciência moderna.
Mas a elaboração da nova metafísica pelos modernos não abandonou o espírito
renascentista que impulsionava os filósofos naturais a buscar na própria natureza a
explicação dos fenômenos naturais. Esse espírito pode ser chamado de naturalismo. Ou
seja, ainda que a ciência moderna repouse sobre uma base metafísica, a relação dessa base
com a estrutura não é direta, como era no aristotelismo medieval. O naturalismo moderno
pressupõe que as causas dos fenômenos são de ordem natural e imanentes ao universo.
Isso, contudo, até o limite das causas últimas, relacionadas à origem, à ordem, e aos
fundamentos das leis naturais. Nesse campo, as grandes figuras da Revolução Científica,
de Galileu a Newton, recorriam a Deus. Galileu era religioso e Newton escreveu mais
7
O leitor interessado em se aprofundar nessa questão, visto que não a tratarei aqui, pode consultar: Koyré
(1991); Rossi (1992); Thuillier (1994); Burtt (1991); Harré (1988); Kuhn (1990; 1997) e Feyerabend (1993).
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sobre teologia do que sobre física. O naturalismo era restrito ao campo da realidade
observável, manipulável e calculável.
Uma pequena reflexão sobre Newton pode ser bastante esclarecedora sobre o tipo de
naturalismo que prevaleceu nos momentos iniciais da ciência moderna. Na sua mais
célebre obra, os Princípios matemáticos da filosofia natural, Newton descreve o espírito
naturalista do qual estava imbuído:
(...) Tudo o que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as
hipóteses, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não
têm lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares são
inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução (Newton, 1974).
Isso significa que, ao mesmo tempo em que a “filosofia experimental” deveria fazer-
se apenas com base no que era inferido diretamente dos fenômenos, as causas últimas e os
fundamentos do universo eram encontrados em Deus. Há dois planos distintos na
concepção de Newton. Porém, a interferência de uma reflexão em outra acontecia apenas
no plano especulativo. Ou seja, o conhecimento das leis da natureza não decorre das
afirmações acerca do Ser inteligente; ao mesmo tempo, a existência do “Senhor Deus
Pantokrátor” é apenas uma afirmação a partir do conhecimento do universo e não uma
decorrência lógica e necessária desse conhecimento. Portanto, a nova metafísica sobre a
qual se assentava a ciência moderna era naturalista apenas até os limites do que podia ser
conhecido dos fenômenos de maneira experimental e generalizado pela teoria. Mas o
naturalismo não se estendia ao conhecimento das causas últimas e daquilo que se
encontrava além da natureza.
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8
Para uma compreensão da hegemonia da concepção neopositivista e de suas causas, bem como das
possíveis críticas que lhe podem ser dirigidas, o leitor pode recorrer à leitura de Chalmers (1991) e Oliva
(1990).
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apresentado como “crítica à religião” ou “negação da fé” perde sua característica científica
e se transforma em doutrina metafísica, pois extrapola o campo específico ao qual está
originalmente vinculado – o conhecimento da natureza – e dirige-se a um plano que foge
totalmente à sua capacidade de intelecção.
É apenas em virtude dessa confusão que se justifica o acalorado debate que ofusca a
discussão dos limites do darwinismo como paradigma científico. Em contrapartida, com
base na distinção feita acima, o darwinismo doutrinário e o fundamentalismo – religioso
ou científico – que têm acompanhado o debate científico e epistemológico sobre a
evolução, são completamente destituídos de sentido. Ambos manifestam uma concepção
obscura acerca tanto da fé quanto do conhecimento. É má teologia e má ciência. Trata-se
de um debate que não deveria ter tanta repercussão em uma sociedade espiritual e
intelectualmente madura.
Nos EUA, entretanto, a disputa entre “darwinistas e criacionistas” é extremamente
acirrada. Isso, obviamente, acaba por se refletir na ciência e na literatura especializada
produzida naquele país. Zimmer (2003, p. 493-509) relata que a história do acirramento de
ânimos chega às discussões de políticas educacionais e até aos tribunais. Mas essa história
de ânimos exaltados não pode ser trasladada para a maioria dos países ocidentais. Ainda
que seja um assunto da “ordem do dia” na sociedade estadunidense (e em alguma outra),
não é, de maneira alguma, uma discussão importante no estudo científico da evolução. A
não ser quando cientistas mascaram sua crença pessoal (ou a ausência dela) e seus
posicionamentos sócio-ideológicos com discursos pretensamente científicos e exatos,
como fazem tanto certos criacionistas como alguns cientistas ateus.
Portanto, o limite da ciência é a busca de causas naturais para fenômenos naturais.
O que ultrapassa tal limite não é campo de investigação da ciência, por razões
metodológicas e instrumentais. Questões como o que havia antes do Big Bang, a razão
última da existência da vida, o sentido da vida humana, a melhor forma de organização
social, a existência ou não de Deus ou deuses, o que é certo ou errado nas atitudes
humanas, etc. não são questões científicas, mas filosóficas, éticas, metafísicas ou
teológicas.
Mas o problema existe e, infelizmente, não é fácil resolvê-lo. A raiz está no fato de
que não existe ciência, teologia ou metafísica sem sujeitos que as façam. Cada sujeito
possui crenças individuais, inclusive os cientistas. Ao expor sua metafísica pessoal
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misturada com reflexões científicas, muitos fazem suas crenças parecerem afirmações da
ciência. Muitos crentes e ateus, cuja diferença se situa no nível metafísico e teológico,
refugiam-se na ciência para defender suas crenças e fazem a discussão parecer científica
quando na verdade não o é. Elaborações pretensamente científicas que dizem negar a fé ou
as que dizem “provar” coisas que pertencem exclusivamente à fé não são ciência, mas
metafísica disfarçada. Por outro lado, a fé que nega à ciência a capacidade de explicar a
natureza (não em seu sentido último) não é mais que um obscurantismo fundamentalista.9
É por essa razão que o zoólogo americano David Berlinsk afirma que seu colega britânico
Richard Dawkins “é motivado tanto por uma agenda teológica quanto por curiosidade
científica” (Berlinsk, 1997) e o biotecnólogo Richard Thornhill afirma que “Dawkins pode
ser mais corretamente considerado um materialista proselitista do que um popularizador da
ciência” (Thornhill, 2005).
A questão analisada neste livro não diz respeito aos problemas teológicos da
interpretação do darwinismo como doutrina metafísica. O foco está nas potencialidades do
darwinismo como teoria naturalista que busca explicar um fenômeno natural: a evolução
da vida e, em alguns casos, sua origem. Portanto, passa ao largo um confronto entre
“darwinismo” e “criacionismo”. A verdadeira questão abordada aqui é: dado um fenômeno
natural (a evolução da vida) e os conhecimentos recentes a ele relacionados, o darwinismo
é a teoria científica mais adequada para explicá-lo ou existe demanda e espaço para outra
teoria naturalista da evolução?
Com esses esclarecimentos pretendo também estimular os leitores a serem críticos
com os argumentos dos que negam qualquer crise no darwinismo, mas que se baseiam
somente na contraposição ao criacionismo, como se todas as críticas possíveis fossem
apenas questões de fé e não científicas. A defesa de uma tese deve ser feita com
argumentos a favor de sua pertinência e de sua solidez diante das críticas. De nada adianta
mostrar as debilidades de uma tese diferente, pois a fraqueza de um adversário não é
testemunha de nossa força, nem sua falsidade é prova de nossa veracidade.
9
Como a confusão hoje em dia é tremenda, tenho que fazer esta nota esclarecendo que a presente reflexão
diz respeito somente ao conhecimento do universo, não valendo para as implicações éticas da aplicação dos
conhecimentos científicos. Nesse campo, as coisas não são tão bem demarcadas assim, visto que ética é uma
questão social e não epistemológica.
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De volta ao assunto
Feita, pois, essa necessária digressão, podemos voltar aos aspectos introdutórios mais
diretamente relacionados ao tema deste livro, exposto através da pergunta inicial: Darwin
será para o século XXI o que Newton foi para o século XX?
Devemos ser bastante prudentes ao tratar uma questão como essa. Ao menos por
enquanto (e provavelmente ainda por muito tempo), trata-se de uma questão filosófica. Os
problemas científicos do darwinismo são questões científicas, mas a hipótese de uma crise
é ainda filosófica, no sentido de que só se pode abordá-la através de rigorosas e bem
fundamentadas especulações. No futuro, certamente se tornará ou uma constatação
histórica relevante ou sequer será mencionada, a não ser como uma das conjecturas
frustradas da filosofia das ciências. Tudo depende de como a ciência caminhará. Embora a
pergunta tenha uma formulação aparentemente histórica, trata-se de um problema
conjectural. A história só pode ser feita olhando-se para trás, ainda que seja para entender o
presente ou projetar o futuro. Fatos históricos, independente das interpretações às quais
possam estar submetidos, são fatos consumados. Quando levantamos questões
aparentemente históricas a respeito do presente ou do futuro próximo, só podemos discuti-
las no nível filosófico e especulativo. Mas isso, certamente, não nos livra dos fatos. Ao
contrário, exige um sólido apoio factual que sustente as especulações.
O apoio factual deste livro foi fornecido pelos questionamentos advindos de
pesquisadores dos campos da bioquímica, genética e microbiologia interpretados à luz da
biologia evolutiva. É essa necessidade de apoio factual que justifica as inúmeras
referências a dados científicos que serão encontradas nos próximos capítulos, mesmo que
não se trate de um estudo científico, mas tão somente de filosofia das ciências. Ainda que
alguns leitores possam, eventualmente, incomodar-se com os detalhes científicos aqui
aduzidos, é preciso deixar claro que sem esse apoio factual não há debate possível. O
centro da questão está justamente nos detalhes. Com toda certeza, a ocultação desses
detalhes em livros de divulgação científica é o que faz parecer que o problema não existe.
Para quem conhece a fábula A assembléia dos ratos, de La Fontaine, a melhor idéia
dos roedores foi a de colocar um sino no pescoço do gato, para que o som denunciasse sua
aproximação e lhes permitisse a fuga antes de serem surpreendidos pelo felino. Entre os
ratos, esta será sempre a melhor idéia, a mais aceita, a mais lógica e a mais bem elaborada,
sempre que não discutirem os detalhes, como, por exemplo: quem colocará o sino e de que
maneira? Espero que os leitores se lembrem dessa fábula durante e no fim da leitura.
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1. ESCLARECIMENTO METODOLÓGICO
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Um precioso debate entre distintas concepções da epistemologia contemporânea pode ser encontrado em
Lakatos e Musgrave (1979).
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externos à atividade científica podem fazer com que as anomalias venham a colocar o
paradigma à prova. As tentativas se voltam, neste caso, para a resolução do problema ainda
dentro da base hermenêutica vigente. Em certos casos, as anomalias adquirem força
suficiente para provocar uma crise no conhecimento científico. Surgem, então, algumas
tentativas de analisá-las à luz de proposições diferentes das do paradigma hegemônico.
Esse ensaio faz surgir alternativas bem sucedidas que, aos poucos, atraem o interesse da
comunidade científica, principalmente das gerações mais novas ou em fase de formação.
Gradativamente, um novo paradigma conquista a hegemonia em substituição ao anterior. O
processo de mudança paradigmática é chamado por Kuhn de “revolução científica”.
A despeito do que o termo “revolução” possa evocar, a idéia não é a de uma
transição abrupta, visível, em que hordas de mentes atacam o paradigma central para impor
um novo. O processo é muito mais lento e gradual e está relacionado à dinâmica do
conhecimento humano. A realidade compõe-se de muito mais elementos do que pode caber
em qualquer teoria. Por isso, nenhum paradigma pode abarcar a totalidade do real, que
inclui o conjunto das coisas conhecidas e desconhecidas pelo ser humano. Os fenômenos
conhecidos que não se enquadram no paradigma podem ser anomalias toleráveis ou o
estopim de uma crise. O mesmo acontece com os dados ou dimensões da realidade
descobertos pelo avanço da ciência após o estabelecimento de uma base hermenêutica. É
natural que os limites de compreensibilidade do intelecto humano sejam constantemente
desafiados pelo desenvolvimento histórico do conhecimento e pelas novas descobertas
científicas. A revolução é o caso-limite em que a relação sujeito-objeto só pode prosseguir
com a substituição do paradigma criado em circunstâncias diferentes das atuais.
órbita de mercúrio só foram possíveis com a teoria da relatividade de Einstein. Mas este
fator não gerou nenhuma crise para a física newtoniana. Tampouco foi o motivador para a
teoria de Einstein. Ou seja, a física e a astronomia poderiam avançar tranqüilamente sem
que a órbita de mercúrio estorvasse seus caminhos.
No entanto, outro problema não resolvido pela física clássica (composta basicamente
pela mecânica newtoniana e pelo eletromagnetismo de Maxwell) foi o problema da
“radiação do corpo negro”, ou seja, o cálculo sobre a emissão de radiação eletromagnética
resultante do aquecimento de um corpo capaz de absorver todos os níveis (freqüências) de
radiação. A história é relativamente bem conhecida: uma hipótese heterodoxa de Max
Planck resolveu a questão. Planck, ao invés de supor a radiação eletromagnética como um
espectro contínuo de energia, postulou que ela era emitida em quantidades discretas de
energia, denominadas quanta de energia. Ou seja, a radiação eletromagnética (luz visível,
raios x, ondas de rádio e raios gama – que são radiações eletromagnéticas em freqüências
diferentes) não seria um “fluxo” contínuo de energia, mas um “bombardeio” de pequenos
pacotes com valor energético mínimo definido: 6,62 x 10-34 joules-segundo.
A princípio, a hipótese não tem nada de especial e pode, hoje, ser ensinada nas
escolas. No entanto, no início do século passado ela estava totalmente fora dos padrões de
compreensão aceitos. Mesmo Planck estava consciente de que sua proposta era totalmente
inusitada. Por isso ele a concebeu, inicialmente, como uma hipótese instrumental, ou seja,
como uma conjectura que, a princípio, não se refere à dimensão real do fenômeno (ou seja,
não tem pretensões ontológicas e não pretende afirmar que as coisas sejam de fato como
diz). A função de uma hipótese instrumental é apenas adequar a teoria e os cálculos aos
fenômenos observados. Em outras palavras, para efeitos de operacionalidade e cálculo,
simula-se que o mundo seja assim, mas não se acredita que realmente o seja. Foi como
uma hipótese instrumental, por exemplo, que o clérigo Osiander (prefaciador da obra de
Copérnico De revolutionibus orbium coelestium) apresentou a tese copernicana do
heliocentrismo. A fim de facilitar o cálculo, poder-se-ia supor que o sol é o centro, embora
a Terra, no plano ontológico, não perdesse seu lugar central. Einstein também acreditava
que a teoria quântica proposta pela escola de Copenhague (Heisenberg e Bohr) era boa
como hipótese instrumental, mas não descrevia o mundo da forma como era – razão que o
levou a tentar elaborar, sem sucesso, uma teoria alternativa.
A hipótese de Planck, inconcebível dentro do paradigma adotado, passou a ser
postulada para vários aspectos do comportamento de um novo campo fenomênico em
descoberta: o mundo do átomo. No nível atômico, os paradigmas predominantes na física
31
11
É esse fenômeno que permite o acendimento noturno automático dos postes de luz, segura portas de
elevadores e detecta movimento em sistemas de alarme.
12
Quando foi agraciado com o título de Sir pela coroa dinamarquesa, Bohr escolheu para o seu brasão o
símbolo oriental do Yin e Yang, subscrito com a frase em latim Contraria sunt complementa (os contrários
são complementares).
33
Einstein, por exemplo, resistia à nova teoria quântica por razões metafísicas. A
interpretação mais aceita dos fenômenos quânticos pressupunha, em certa medida, um
comportamento probabilístico do universo, incapaz de ser previsto com a precisão absoluta
do tipo de determinismo que acompanhou a ciência newtoniana. A rejeição de Einstein foi
expressa em sua famosíssima frase de que “Deus não joga dados com o universo”.
Certamente, a nova física gerou espanto, resistência e a necessidade de se reconhecer a
crise da visão clássica do mundo.
A física, porém, é um campo de pesquisa mais manipulável e controlável, onde a
precisão das evidências e dos cálculos pode ser usada como argumento de maior persuasão.
Além disso, o avanço do conhecimento no nível atômico era desejado pelas forças sociais
hegemônicas. Uma transição paradigmática que permitisse avanços nessa direção não teria
a resistência do establishment econômico e político – ao contrário, seria muito bem aceita.
E não devemos nos esquecer que os cientistas são parte da sociedade.
O mesmo, contudo, não ocorre com a biologia evolutiva, por dois motivos. Por um
lado, seu campo experimental é restrito e pouquíssimo controlável. Por tratarem-se de
eventos ocorridos no passado e em largas escalas temporais, que apenas deixam escassas
pistas, sua reprodução em laboratório é praticamente impossível. Dessa forma, o poder de
persuasão das evidências e do formalismo teórico não é tão poderoso. Por outro lado, o
paradigma evolutivo atual (o darwinismo) é usado como sustentação ideológica pelos
grupos hegemônicas na sociedade. Conseqüentemente, por razões não-científicas, os
grupos sociais dominantes não se interessarão facilmente por uma transição que lhes venha
a retirar o sustentáculo científico de sua ideologia social. Seus interesses, portanto, estão
voltados mais para a coleta dos resultados das ciências de laboratório que possam
converter-se em patentes e produtos comercializáveis. Assim, a propaganda, os
investimentos e a formação da consciência social (da qual os cientistas também fazem
parte) tendem a reafirmar continuamente o paradigma, ainda que os dados experimentais
venham a questioná-lo.
O exemplo da física do século XX nos revela que quanto mais se avança na
perscrutação da natureza, criando-se para tanto instrumentos de observação e medição mais
refinados e modelos teóricos mais abrangentes e de maior alcance, mais fenômenos novos
são descobertos e a dimensão factual do conhecimento cresce continuamente. O quantum
de ação, por exemplo, é de um nível tão pequeno que só faz sentido quando aplicado ao
34
13
O quantum de ação é da ordem de 6, 62 x 10 –34 joules-segundo, valor da constante de Plank. Para quem
não está habituado à notação científica, é preciso esclarecer que esse número é zero, seguido por 33 zeros
depois da vírgula, e o número 662.
35
Para se ter uma idéia da lentidão de uma transição, observe-se que, mesmo com todo o
tempo decorrido de debates, estudos e complexas experiências com altíssimos níveis de
energia e mesmo com o sucesso tecnológico atingido pela mecânica quântica,14 ainda não
se pode dizer que a satisfação com sua descrição da natureza seja completa. Alguns
problemas ainda sobrevivem. O chamado “modelo padrão” pressupõe a concepção das
partículas elementares como pontos geométricos (sem extensão espacial) – o que é uma
abstração matemática útil na teoria, mas com complicações no plano ontológico. Há
também a dificuldade de se fazer uma síntese entre a relatividade e a mecânica quântica na
descrição dos fenômenos macro e micro-cósmicos. Existe ainda o problema da unificação
das teorias relacionadas às quatro forças atuantes na natureza (gravidade,
eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca), hoje considerada por alguns como o
“Santo Graal” da física teórica. A unificação das forças eletromagnética e nuclear fraca, a
partir do modelo de Higgs, enfrenta um duplo problema: a complexidade de seus
parâmetros e os fracassos experimentais na busca do bóson de Higgs.15 Estes são apenas
alguns exemplos para que se tenha idéia do caráter eminentemente histórico, lento,
incompleto e invisível das transições de paradigmas, ou seja, das revoluções científicas (cf.
Kuhn, 1997, p. 173-181).
Essas observações são importantes para que se compreenda a dimensão histórica de
uma possível crise do paradigma darwinista que será discutida adiante. Certamente,
ninguém verá um paradigma ruir como se implode um edifício.
O século XX foi, portanto, marcado pela débâcle da física de Newton. Como já foi
observado, isso não ocorreu por ela apresentar insuficiência no nível de realidade ao qual
se dirigia, pois aí se revelou um sucesso estrondoso (a moderna sociedade industrial deve
sua existência ao poder da física newtoniana). E ainda o é, dado que os valores envolvidos
tanto no quantum de ação (da mecânica quântica) quanto nas distorções espaço-temporais
(da teoria da relatividade) são muito pequenos e se tornam irrelevantes quando aplicados
ao mundo vivido cotidianamente. Sua falência como descrição geral da natureza se deu
14
Estima-se que cerca de 30% do PIB dos EUA está relacionado à produção que depende dos conhecimentos
proporcionados pela física quântica (Tegmark & Wheeler, 2001).
15
Em termos gerais, tal modelo pressupõe que os fótons (os bósons da força eletromagnética) e os bósons da
força nuclear fraca são equivalentes. Mas os bósons da força nuclear fraca possuem massa e os fótons não.
Higgs postulou que a adquirição de massa pelos bósons da força fraca seja decorrente da sua presença em um
campo, chamado “campo de Higgs”. Como a todo campo deve estar relacionado uma partícula (um bóson),
para a existência do campo de Higgs, deveria existir um “bóson de Higgs”. Até hoje, nenhum laboratório
conseguiu detectá-lo, mesmo com a expectativa de que ele seria encontrado até o ano 2000. Até o momento
em que este livro era escrito, a partícula não passava de uma possibilidade teórica.
37
16
Momento é o produto da multiplicação da velocidade pela massa.
39
dados sobre o momento e posição de uma partícula subatômica. Em poucas palavras, pelo
princípio da incerteza de Heisenberg ou se têm medições precisas do momento e perde-se
a exatidão no que se refere à posição, ou têm-se informações precisas sobre a posição e se
perde a precisão em termos de momento. A observação afeta o comportamento das
partículas.17 Tal constatação restringe a precisão absoluta das medições e introduz um
elemento de probabilidade na mecânica.
Mas trata-se de uma probabilidade totalmente controlada e expressa em uma equação
dinâmica que permite a previsão dos resultados prováveis (a equação de Schrödinger). É
claro que o determinismo expresso em termos de probabilidade difere do determinismo
absoluto do demônio de Laplace (e isso incomodou bastante a Einstein), mas não chega a
postular a imprevisibilidade total dos fenômenos. Portanto, a previsibilidade clássica,
embora ligeiramente modificada para termos probabilísticos, continuou, de certa forma, a
existir.
Mas esse último pressuposto metacientífico da ciência moderna foi submetido a
questionamento quando novas áreas de pesquisa constataram que o comportamento de
sistemas complexos não era dedutível da superposição linear das propriedades de seus
elementos componentes. O “todo” desses sistemas só era suscetível a uma abordagem que
o considerasse como uma estrutura decorrente da interdependência simultânea de todos os
elementos constituintes. Dito de outra forma, é a compreensão da interdependência entre os
componentes e de seu comportamento conjunto – e não das propriedades de cada um
considerado isoladamente – que leva ao conhecimento da totalidade composta. Isso evoca
o velho jargão de que o todo é mais do que a soma das partes. Mas trata-se de algo mais
profundo, que poderia ser expresso, em termos aproximativos, com a frase “o
comportamento do todo não pode ser reduzido a uma mera superposição linear das
propriedades de suas partes submetidas à ação local de certas leis”.
Sistemas complexos não podem ser submetidos ao procedimento analítico
reducionista, ao estilo cartesiano, que implica na decomposição do todo, o conhecimento
de cada um de seus menores componentes e das leis a que estão submetidos. O
comportamento da totalidade emerge justamente do fato de constituírem um conjunto
interdependente e não das propriedades de cada elemento em particular. Decorre disso o
fato de que pequenas mudanças podem alterar o comportamento do todo, porém não
17
Não, obviamente, por uma relação subjetivista, como querem algumas interpretações, mas por afetação
material, dado o fato de que, por fugirem ao alcance dos sentidos humanos, as partículas subatômicas têm
40
necessariamente na medida específica dessa mudança, mas em uma escala global capaz de
ocasionar efeitos imprevisíveis e até uma reestruturação da totalidade. O tipo de mudança
ocasionada pela alteração de alguns elementos não é dedutível somente das características
dos novos elementos que entraram em cena no sistema, mas da reação (imprevisível) da
totalidade a essa alteração. Qualquer elemento novo pode gerar conseqüências que fogem
ao controle da previsão.
Nessa perspectiva, a imprevisibilidade decorrente do caráter intrinsecamente
probabilístico dos sistemas complexos não é, como na mecânica quântica, resultado da
indeterminação originada pela interação do objeto com o instrumento de medida. A
imprevisibilidade do comportamento futuro desses sistemas assume o status de
característica da própria natureza. Trata-se de um exorcismo total do demônio de
Laplace. É um conceito diferente do que a natureza é e de como se comporta – portanto,
possui também um caráter ontológico.
Uma mudança conceptual dessa ordem lança luzes sobre o estudo dos sistemas vivos,
que se comportam como sistemas complexos que dificilmente podem ser reduzidos às
propriedades de seus elementos (as moléculas orgânicas). Um dos aspectos da possível
crise de paradigma na biologia está diretamente relacionado à noção de complexidade. O
paradigma darwinista conduziu as ciências biológicas a uma abordagem reducionista que
acredita que a evolução e o desenvolvimento da vida são resultados de fenômenos
localizados na molécula de DNA, submetidos a leis locais e alterações ao acaso.
Abordagens mais recentes recorrem às teorias da complexidade para escapar das
dificuldades decorrentes da análise reducionista quando comparada aos fenômenos reais –
tais como o fato de que a ação dos genes não depende apenas das seqüências de bases que
os compõem, mas da totalidade na qual estão imersos.
******
que ser observadas com a utilização de “luz” com comprimentos de onda menores do que o da luz visível. A
projeção de “luz” de freqüências maiores afeta o comportamento da partícula (Heisenberg, 1995, p. 41).
41
2. A LUZ DE DARWIN
Quando digo que as condições para a teoria da evolução de Darwin estavam bem
colocadas, não quero dizer com essa afirmação que a teoria já estava “prestes a ser
descoberta” em função dos avanços da ciência. Teorias não são descobertas, mas
elaboradas subjetivamente. Darwin, portanto, não “descobriu” sua teoria da evolução; ele a
criou. As condições a que me refiro dizem respeito ao que se tinha de dados disponíveis,
mas também, e principalmente, ao “espírito da época” (Zeitgeist). Os itens essenciais da
teoria da evolução de Darwin já estavam presentes tanto nas teorias sociais de Malthus e
Spencer quanto no liberalismo clássico. Ou seja, havia uma pré-disposição subjetiva não só
em função do problema empírico que se apresentava aos naturalistas, mas também em
razão de uma pré-disposição social para aquele tipo de teoria (cf. Sandín, 2000). A criação
da teoria da evolução por seleção natural foi conduzida tanto pelo desafio posto pelo
conhecimento da natureza quanto pela forma de pensamento predominante na época. As
semelhanças do darwinismo com o liberalismo certamente não são meras coincidências.
Apesar de ter sido um estrondoso sucesso editorial, a aceitação da teoria de Darwin
como paradigma científico hegemônico não foi imediata.18 Dizer que isso foi apenas uma
resistência com base em dogmas religiosos é um reducionismo que despreza a influência
do espírito humano no fazer histórico da ciência. O maniqueísmo presente em certas
histórias da ciência sempre coloca em eterna oposição “a ciência que descobre a verdade”
e o “obscurantismo das religiões que a temem”. Esses relatos, ao invés de serem um retrato
histórico fundado em fatos reais, assemelham-se mais às ficções históricas em que
cientistas heróis abnegados, sem convicções pessoais e movidos apenas pelo desejo da
verdade, travam uma eterna luta contra ignorantes, clérigos e beatos aferrados a dogmas de
livros sagrados e desejosos de ocultar a verdade ao mundo. No entanto, nada mais distante
da história real do que essa imagem. Embora o obscurantismo religioso e as perseguições
doutrinárias tenham, de fato, deixado marcas tristes e profundas na história, os cientistas
reais também carregam convicções pessoais que, muitas vezes, são tão dogmáticas quanto
as dos inquisidores renascentistas. Além disso, suas proposições sempre possuem falhas
que criam resistências para a aceitação imediata mesmo entre seus pares (sobre isso, cf. o
estudo de Rossi, 1996, p. 167-178, sobre os erros de Galileu na explicação das marés).
A teoria de Darwin, na sua expressão original, também possui enormes lacunas e, em
seu “estado puro”, não dava conta de explicar uma série de complexidades encontradas nos
18
Segundo Sandín (2002b), esse sucesso deveu-se mais à adequação das idéias de Darwin aos interesses das
elites industriais inglesas e ao fato de que ela funcionava como uma justificativa “científica” para as
44
1. Os organismos variam, e essas variações são herdadas (pelo menos em parte) por
seus descendentes. 2. Os organismos produzem mais descendentes do que aqueles que
podem sobreviver. 3. Na média, a descendência que varia com mais intensidade em
direções favorecidas pelo meio ambiente sobreviverá e se propagará. Variações
favoráveis, portanto, crescerão na população através da seleção natural (Gould, 1999,
p. 1).
profundas desigualdades sociais e nacionais geradas pelo capitalismo industrial, do que pelas suas qualidades
científicas.
19
Não vem muito ao caso, para o debate atual, se bispos ou clérigos da Igreja Anglicana rejeitaram a teoria
de Darwin, uma vez que a própria hierarquia daquela Igreja já se retratou e que a maioria esmagadora dos
teólogos cristãos não-fundamentalistas aceitam a teoria de Darwin sem problemas. Além disso, e mais
importante, a influência das igrejas no debate acadêmico e científico atual é tão reduzida que uma suposta
oposição religiosa à teoria de Darwin resultaria inócua para os propósitos da ciência teórica.
45
20
No texto original, tanto da introdução quanto do capítulo 3 (com mínimas variações): “This is the doctrine
of Malthus, applied to the whole animal and vegetable kingdoms” (Darwin, 2005).
21
Citação do poeta Alfred Tennyson.
46
Devo frisar que emprego o termo luta pela sobrevivência em sentido lato e metafórico,
o que implica relações mútuas de dependência dos seres organizados, e, o que é mais
importante, não somente a vida do indivíduo, como a sua aptidão e bom êxito em
deixar descendentes. Afirma-se que dois animais carnívoros, em tempos de fome,
lutam um contra o outro em busca de alimentos necessários para sua sobrevivência.
Mas chegar-se-á a dizer que uma planta, à beira de um deserto, luta pela sobrevivência
contra a falta de água, embora fosse mais correto dizer que a sua sobrevivência
depende da humildade. Poder-se-ia dizer com mais exatidão que uma planta, que
produz anualmente um milhão de sementes, das quais uma, em média, chega a
desenvolver-se e a amadurecer por seu turno, luta com as plantas da mesma espécie,
ou espécies diferentes, que cobrem já o solo (...). Emprego, pois, para uma maior
comodidade, o termo geral luta pela sobrevivência, nos diferentes sentidos que se
confundem uns com os outros (Darwin, 2003, p. 69-70).
22
Além de reconhecer a aplicação da teoria de Malthus à natureza, Darwin cita Spencer cinco vezes em A
origem das espécies, nos capítulos 1, 3, 4, 9 e 15.
47
Darwin, contudo, não sabia como as variações ocorriam e nem por que eram
herdadas. A Teoria Sintética, ou neodarwinismo, incorporou a genética mendeliana e as
leis da hereditariedade e atribuiu a causa das variações nos organismos a mudanças
aleatórias que ocorrem no código genético. Essas mutações são minúsculas. Tratam-se de
pequenas mudanças em seqüências de bases em um gene ou a duplicação de genes – ou
seja, tratam-se de variações moleculares. Esse acréscimo reforça duas implicações dos
eixos darwinistas, o gradualismo das mutações e a ausência de um mecanismo causador
das mudanças.
Para o darwinismo ortodoxo, as mutações não podem ser súbitas e agir através de
saltos, pois mutações grandes e repentinas não têm, para efeitos práticos, nenhuma
probabilidade de gerar componentes complexos e funcionais nos organismos, como um
olho completo ou um cérebro (se considerarmos que as mutações são aleatórias). Em
termos estatísticos, a probabilidade de mudanças aleatórias simultâneas em vários genes
gerarem um órgão completo e funcional é praticamente nula. Seria o mesmo que construir
uma casa em miniatura apenas lançando uma grande quantidade de palitos para o alto.
Além disso, uma variação abrupta que criasse em um indivíduo as características de uma
nova espécie o deixaria sem parceiros para reprodução (dado que o que caracteriza uma
espécie, pelo menos no reino animal, é a capacidade de cruzamento fértil). Para os
neodarwinistas, pesa também a favor de mudanças graduais, passo a passo, o fato da maior
parte de grandes mutações serem desfavoráveis, dado o ajuste anterior da espécie ao seu
ambiente (Dawkins, 2001, p. 327-371).
Darwin também defendia uma mudança lenta, mas porque observava que as
diferenças entre os indivíduos da mesma espécie eram pequenas e, na ausência de um
seletor consciente, apenas com muito tempo as variações poderiam acumular-se para gerar
uma nova espécie. Quando se constatou que variações genéticas são mudanças moleculares
na seqüência de bases que constituem a grande molécula de DNA e se pressupôs que tais
modificações são completamente aleatórias, o processo de geração de uma nova espécie,
na ótica neodarwinista, deve ser muito mais lento e gradual do que imaginava o próprio
Darwin.
Contudo, o registro fóssil, uma das importantes bases empíricas de qualquer teoria da
evolução, não revela esse gradualismo. Os dados da paleontologia mostram longos
períodos de estase (onde espécies predominam sem mutações significativas), seguidos de
eventos de extinção em massa e surgimento brusco de novas espécies. Embora ainda possa
haver quem atribua este fato à imperfeição na coleta de dados paleontológicos, Gould e
48
Eldredge (1972; 1993) propuseram que esse padrão revela o que ocorre de fato na evolução
e chamaram o seu modelo de “equilíbrio pontuado”. Segundo os autores, há uma tendência
das grandes populações resistirem às mudanças, devido ao grande número de
possibilidades de cruzamentos que “dissipam” as mutações e reduzem as probabilidades
das variações serem transmitidas aos descendentes. Mas, em pequenos grupos que se
isolaram da população principal, na maioria das vezes por uma barreira geográfica, as
possibilidades de cruzamento são pequenas e ocorrem entre aparentados, o que dá às
mutações mais chances de prevalecer e de se acumular de forma rápida (em escala
geológica), e isso pode resultar na formação de uma espécie diferente.
Quando esse novo grupo “evoluído” reencontra a população da qual se separou, já
está muito diferente para que ocorram cruzamentos férteis com o grupo original. Nesse
caso, pode acontecer uma coexistência ou uma competição na qual a antiga população é
extinta. Isso explicaria, segundo os autores, o padrão de estase, extinção e surgimento
aparentemente brusco de novas espécies.
Mesmo que no modelo do “equilíbrio pontuado” de Gould e Eldredge a evolução
passe por períodos de mudanças “rápidas” seguidos de longos períodos de estase, esse
“rápido” só faz sentido em termos geológicos e pode significar até milhões de anos. Ainda
assim, para os autores, as mutações nos indivíduos da parte isolada da população maior
seguem a lógica gradualista do darwinismo. Segundo Gould (1992, p. 259) sua visão
advoga “mudanças espasmódicas ou episódicas, preferencialmente a um ritmo suave e
gradual”. O modelo de Gould e Eldredge adapta o darwinismo a uma de suas bases
empíricas conflitantes (o registro fóssil), sem macular seus princípios fundamentais.
A outra implicação decorrente dos eixos da teoria de Darwin e reforçada pela Teoria
Sintética é a completa aleatoriedade das variações. As mutações são concebidas como
acidentais, totalmente dependentes do acaso. Não há, para o darwinismo, nenhum princípio
causador das mudanças que possa ser categorizado e tornar-se um conceito dentro da
teoria. A multiplicidade de espécies e sua complexidade, embora aparente ter um
direcionamento ou um motor, são apenas frutos da intensa variação que deixa muitas
possibilidades sobre as quais a seleção natural pode agir. É um puro lance de sorte um
organismo ser agraciado com um tipo de mutação que possa vir a ser vantajoso em
determinadas condições ambientais. A adaptação que, segundo a teoria darwinista, leva à
evolução, não é provocada pelo meio, senão que ocorre por um misto entre acaso e seleção
natural. Se não houver a coincidência de acontecer, por acaso, mutações que ofereçam
vantagens adaptativas, não há o que a natureza selecionar e, portanto, não há evolução.
49
Desse princípio decorre outra importante implicação dos eixos da teoria darwinista: o
papel exclusivo da seleção natural na manutenção das variações. Diferente da seleção
intencional dos criadores de pombos e de cães de caça que serviram de inspiração para
Darwin, não pode haver intencionalidade na escolha das mudanças que prevalecerão no
mundo selvagem. É apenas a maior aptidão de um organismo para sobreviver em seu meio
e vencer a luta pela sobrevivência que decidirá quais variações serão mantidas através da
geração de um maior número de descendentes. A natureza faz todo o papel.
Portanto, para que se chegue a formar organismos complexos a partir de pequenas
mutações aleatórias, a seleção natural é um fator imprescindível para a manutenção das
mudanças e para que a acumulação de mutações ao acaso chegue a gerar uma nova
espécie. Ou seja, a seleção natural age como fator de restrição da aleatoriedade das
mutações, conforme já foi observado acima. Todo provável passo intermediário entre um
ancestral simples e sua descendência mais complexa deve apresentar alguma vantagem
seletiva que justifique sua permanência e posterior predominância.
Isso significa que, para o darwinismo, uma mutação só se propagará caso apresente
vantagem em relação à sobrevivência em um determinado ambiente e à capacidade de
gerar mais descendentes. Caso contrário, não haverá motivos para que determinada
mutação esteja presente na maioria dos indivíduos. Não apresentando vantagem seletiva, as
mudanças acabam absorvidas pelo padrão normal da espécie, através dos cruzamentos. Na
explicação evolutiva de organismos complexos, os passos não podem ser apenas citados
como seqüenciais, pois cada um tem que ser relacionado à obtenção de alguma vantagem
seletiva. Se este fator não for considerado, a explicação não preserva a teoria. Tal
exigência dificulta a descrição da evolução das espécies em termos estritamente
darwinistas, em função da dificuldade de se reconstituir as diversas características
ecológicas do passado – embora estudos em ecologia evolutiva procurem dar conta desse
problema (cf. Foley, 1993, p. 81-102).
O geneticista japonês Motoo Kimura defendeu, por outro lado, que a maioria das
mutações são neutras, ou seja, não são adaptativas, e ocorrem em uma taxa regular.
Cavalli-Sforza estudou os efeitos dessas mutações, chamadas de “deriva genética”, em
pequenas populações isoladas geneticamente (geograficamente ou por motivos culturais ou
religiosos), onde os cruzamentos próximos tendem a aumentar a probabilidade de
permanência de uma mutação neutra (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p. 142-149).
Neste caso, a seleção natural não pode ser responsabilizada pela manutenção da mudança.
Segundo Dawkins, essa visão, conhecida como “neutralismo”, é ocasionalmente
50
O desencantamento...
desencantamento...
A compreensão de que as células são as unidades básicas que compõem todos os
seres vivos data da primeira metade do século XIX e deve-se principalmente aos trabalhos
de Matthias Schleiden e Theodor Schwann. Embora não se possa atribuir o surgimento de
uma teoria à simples aplicação de instrumentos adequados à observação (dado que
instrumentos não elaboram teorias), é inegável que a base de uma teoria celular para a
composição do ser vivo surgiu apenas quando sucessivos refinamentos na capacidade dos
microscópios revelaram dimensões da realidade antes completamente ignoradas e sequer
supostas.
No decorrer da segunda metade do século XIX, aceitava-se que as células
compunham todos os tecidos e órgãos, tanto de animais como de vegetais, e que o
desenvolvimento embrionário ocorria por divisões celulares. Descobriu-se que pequenos
filamentos eram partilhados no momento da divisão celular. A descoberta se deu através da
utilização do corante cromatina na observação da célula, que revelou e deu nome aos
cromossomos. Entretanto, não se tinha ainda uma idéia clara acerca das substâncias que
formavam as células e nem do tipo de interação que ocorria em seu interior. Alguns,
inclusive, acreditavam que a matéria que as constituíam era de natureza qualitativamente
distinta da que participava da composição dos objetos inanimados, ou que as forças que
determinavam o seu desenvolvimento e a constituição dos organismos vivos eram externas
ao fenômeno, derivadas de um princípio vital ou outra força que impulsionava a
organização, associação e reprodução celulares – idéia conhecida como vitalismo.
As suspeitas de vinculação com interações químicas comuns só surgiram após o
trabalho de Friedrich Wöhler que, em 1828, obteve uréia apenas como resultado do
aquecimento de cianato de amônio. O cianato de amônio é um composto químico comum,
ao passo que a uréia é resultante de processos biológicos (encontrada na urina dos animais,
no leite e no sangue). A obtenção de um composto orgânico pelo simples aquecimento de
um inorgânico sugeriu que os processos biológicos poderiam ser resultantes de processos
químicos. Embora isso tenha dado uma contribuição fundamental para o surgimento da
química orgânica, não chegou a determinar um rompimento definitivo da barreira
53
conceitual que separava os processos vivos dos não-vivos. A célula ainda era apenas um
dado, porém pouco conhecido em sua estrutura interna. Supunha-se, ademais, que sua
estrutura era mecanicamente simples, cujo conhecimento poderia revelar os segredos da
dinâmica dos organismos viventes.
Até por volta da década de 40 do século XX, ainda não se tinha claro como era o
funcionamento interno da célula. Conhecia-se já algo mais a respeito do núcleo e algumas
organelas, devido à utilização do microscópio eletrônico, mas muito pouco da
complexidade que hoje se conhece. Ao mesmo tempo em que alguns sugeriam uma
dinâmica resultante da interação de moléculas comuns, organizadas de uma forma peculiar,
outros ainda defendiam a ação de um princípio vital, que agia sobre a matéria comum ou
sobre um tipo qualitativamente diferente da que constituía os seres inanimados. Embora
uma ou outra posição pudesse ser mais ou menos acreditada nos meios científicos, os
argumentos a favor da organização molecular regida por leis físicas e químicas ordinárias
não dispunham de uma base empírica tão forte que pudesse refutar a idéia de um princípio
vital.
O físico Erwin Schrödinger, famoso pela equação que descreve a lei dinâmica básica
da teoria quântica, também se notabilizou por ter defendido a idéia de que a vida era
basicamente constituída por moléculas comuns, dispostas de uma forma análoga à dos
cristais (Schrödinger, 1997). Schrödinger não foi o primeiro a levantar tal hipótese, mas foi
o que lhe deu uma elaboração rigorosa e forneceu argumentos suficientes para induzir um
grande número de cientistas a trilhar o caminho da pesquisa das dimensões moleculares da
vida. Foi um importante passo para se descobrir a “química da vida” (bioquímica). A
coroação do programa molecular adveio dos trabalhos de James Watson e Francis Crick.
Através de métodos matemáticos e instrumentos avançados de cristalografia por raios X,
os dois cientistas revelaram, em 1953, a forma da molécula responsável pela codificação
da estrutura dos organismos vivos, o ácido desoxirribonucléico (DNA).
A partir do trabalho de Watson e Crick, ocorreram inúmeros avanços na
compreensão da química da vida durante toda a década de 60 do século XX. Algumas
moléculas essenciais à vida foram sintetizadas em laboratório, através de experimentos
com reações químicas comuns. As experiências de Juan Oró, em 1960, conseguiram
sintetizar uma das bases que compõem os ácidos nucléicos, a adenina, utilizando processos
químicos que procuravam reproduzir as condições da Terra prebiótica (antes da existência
de vida). Mais tarde, esse mesmo químico sintetizou outra base, a guanina, e outros
conseguiram a síntese da uracila (base componente do RNA), em 1961, da citosina, em
54
parei
... e o re-
re-encantamento aqui
Mas o que é preciso ser ressaltado é que tais moléculas e suas interações constituem,
no conjunto, um sistema altamente complexo e organizado, diferente de tudo o que a
natureza tenha revelado até o momento. Tamanha organização e interdependência de ação
dos diferentes componentes que constituem a estrutura celular só são comparáveis à
dinâmica organizativa de grandes empresas humanas – mesmo assim, os empreendimentos
organizados humanos perdem em termos de complexidade, interação e organização,
mesmo sendo planejados por seres conscientes. Descobriu-se que o funcionamento da
23
O que não significa que tenham sido benéficas.
55
célula e dos processos básicos que sustentam a vida são fenômenos de complexidade
extraordinária. E quanto mais se aprimora a capacidade de se conhecê-los, mais surpresas
são reveladas. Se houve um desencantamento com relação à matéria que constitui a vida,
ainda permanece o mistério acerca de sua organização e, principalmente, de sua origem.
Os que propunham que leis simples da química e da física, aplicadas localmente,
explicariam todo o funcionamento da célula pareciam desconsiderar, por seu reducionismo,
o problema da complexidade e da ordem que emergem das interações moleculares no
interior das células e dos organismos que elas compõem. Alguns cientistas se têm atentado
para esse novo problema e propõem formulações que variam entre uma espécie de
24
vitalismo químico cósmico e teorias da complexidade, autopoiese e auto-organização.25
Há ainda os que propõem a intervenção de um “planejador inteligente” na organização da
complexidade no nível celular (Behe, 1997a).
O conhecimento mais profundo sobre o funcionamento da vida, ao mesmo tempo em
que desvendou um mistério (a matéria que a constitui), surpreendeu o pensamento humano
ao mostrar um comportamento inusitado para um aglomerado de componentes químicos
comuns: a complexa organização da matéria que a torna viva.26 A complexidade e
organização das células são manifestadas nas intrincadas e altamente coordenadas
interações entre as moléculas. Pedaços inanimados de matéria interagem para manter o
organismo vivo, possibilitar seu desenvolvimento através do metabolismo e da síntese de
proteínas e permitir sua replicação com um mínimo de erro possível. Nenhumas das partes
podem ser consideradas vivas isoladamente. A vida emerge somente da inter-relação
coordenada de cada uma delas. Apenas descrever a quantidade de troca de informação e
trabalho coordenado que ocorre no interior da célula já é trabalho bastante difícil; mais
difícil ainda é dar uma explicação de como esse processo pode ter-se originado e
evoluído.27
24
A expressão é de minha autoria. Mas, Christian de Duve, prêmio Nobel de Medicina em 1974, por
exemplo, afirma que há uma tendência cósmica para a vida. Em suas palavras: “À famosa frase de Monod ‘O
universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera do homem’ eu respondo: ‘Você está enganado. Eles
estavam, sim’” (De Duve, 1997, p. 393.).
25
Ver Maturana & Varela (1997). A teoria da autopoiese de Maturana e Varela é seguida pela bióloga Lynn
Margulis, que acrescenta a tese da simbiogênese na constituição e evolução dos organismos vivos (Margulis
& Sagan, 2002a e 2002b). Também neste campo da auto-organização e da complexidade situam-se os
biólogos Stuart Kauffman (1997) e Henri Atlan (1992). Ver também sobre isso Capra, 2000.
26
Esse é o principal fator que tem gerado os questionamentos ao neodarwinismo na sua capacidade de lançar
luz ao entendimento dessa complexidade, como veremos adiante.
27
Os leitores podem conferir a complexidade dos processos bioquímicos e moleculares da célula consultando
um livro de bioquímica ou biologia molecular em alguma biblioteca, como por exemplo Voet, Voet & Pratt,
2000 e Alberts et. al. 2004.
56
oculta um processo extremamente complexo sob a forma de uma sentença simples. Mesmo
uma breve descrição mais detalhada do que está envolvido na síntese de proteínas não dá
conta de toda a complexidade dos mecanismos conhecidos que a tornam possível. Os
parágrafos seguintes têm o único objetivo de exemplificar, de forma genérica, o que se
esconde por trás do processo aparentemente simples da produção de uma proteína a partir
de um gene.28 Como se acredita que toda mudança hereditária é uma mudança nas
sequências dos genes, com a conseqüente produção de tipos variados de proteínas, a
descrição da evolução também deveria se referir a essa complexidade, procurando explicar
como surgiu e se desenvolveu. Não se pode apenas dizer que esse processo simplesmente
“aconteceu”. Entretanto, grande parte das descrições evolucionistas, principalmente as de
acesso ao grande público, usualmente recorre a afirmações simples para relatar a possível
origem das células a partir de mutações aleatórias e seleção natural (ou seja, a partir dos
eixos do darwinismo).29 Tentarei exemplificar da forma mais abreviada possível.30
28
A próxima seção tem uma característica mais técnica e pode ser lida de passagem por um leitor avesso a
esse tipo de linguagem, mas não devem ser desconsiderados em seu objetivo de dar uma fundamentação
fática aos argumentos aqui utilizados.
29
Esse é o ponto de encontro deste capítulo com o anterior (A luz de Darwin). As tentativas de se aplicar o
darwinismo à origem da vida parece passar por cima do que se conhece hoje do interior da célula.
30
Uma descrição detalhada do processo de codificação de proteínas a partir da formação da molécula de
RNA, com todos os seus detalhes e enzimas envolvidas podem ser encontrados em Alberts et. al (2004, p.
299-372) e Voet; Voet & Pratt (2000, p. 813-883).
31
Na verdade só podemos dizer que essa seqüência representa “um pedaço de informação” por conhecermos
os seus resultados e o processo como um todo – ou seja, é uma descrição do observador. No DNA, o que se
59
encontra é apenas uma grande quantidade de bases dispostas, ininterruptamente, por toda a extensão da
molécula.
32
Há inúmeras outras complicações que tornam a própria definição de gene algo extremamente difícil. Quem
deseja se aprofundar um pouco mais, sugiro a leitura de Gerstein, et. al. (2007), um artigo científico após a
leitura do qual não é mais possível falar de genes com a simplicidade e segurança que vemos em livros
didáticos ou de divulgação, sem contar que perde totalmente o sentido a noção de pequenas mudanças em
bases específicas que poderiam gerar novas funções. Conforme os autores: “A visão clássica de um gene
60
como uma unidade de informações hereditárias alinhadas pela extensão de um cromossomo, cada um
codificando uma proteína, mudou dramaticamente durante o século passado. Para Morgan, os genes nos
cromossomos eram como contas em um colar. A revolução da biologia molecular mudou consideravelmente
esta idéia. Para citar Falk (1986), ‘...o gene não é [...] nem discreto [...], nem contínuo [...], nem possui uma
localização fixa [...] nem uma função claramente definida [...], nem sequer sequências constantes [...], nem
fronteiras definidas.’ E agora o projeto ENCODE aumentou a complexidade ainda mais.”
33
Este detalhe importante será retomado no capítulo 4, seção 4.3.
34
Na verdade, sabe-se que algumas ligações podem, a princípio, realizar-se sem um catalisador, mas de
forma extremamente lenta e com um rendimento muito baixo, o que não permitiria a seqüência de passos
necessários à formação das moléculas fundamentais para a vida (De Duve, 1997, p. 32-35).
61
chance em 3 bilhões de algo ocorrer, não é de se surpreender que algo tão improvável
ocorra, desde que se tente 3 bilhões de vezes.35 A seleção natural manteria essa ocorrência
improvável até que outra se juntasse a ela e, gradualmente, formasse algo cuja
probabilidade de ocorrência meramente ao acaso é baixíssima.
Dawkins dá o exemplo da possibilidade de uma frase de Shakespeare ser escrita por
um macaco digitando ao acaso. Para ele, a probabilidade é quase nula. Mas, desde que haja
um programa no computador que mantenha as letras corretas no lugar correto a frase pode
vir a surgir (Dawkins, 2001, p.78-82). O programa faria o papel da seleção natural,
mantendo as conexões de letras contidas na frase-objetivo que o macaco digitasse
aleatoriamente.
Mas a simulação do acaso de Dawkins é, no mínimo, curiosa. O teclado está
preparado para que se digite apenas as letras do alfabeto em que foi pensada a frase-
objetivo (no português, 26 letras). Ou seja, há uma relação do “acaso” (as letras digitadas
pelo macaco) com a finalidade (a frase em determinado idioma). Além disso, a seleção do
computador trabalhará com um acaso limitado, pensado pelo programador (um ser
inteligente!) em virtude de sua intencionalidade. Dawkins não me parece disposto a aceitar
uma natureza preparada intencionalmente para a vida. Por isso, uma simulação do acaso
que se adaptasse à natureza real deveria oferecer um teclado com todas as letras de todas as
línguas do planeta e ainda com inúmeros símbolos sem significado. Gostaria de saber
aonde o cálculo de probabilidade de Dawkins nos levaria com um teclado desse tipo para
convencer leitores exigentes de que a seleção natural teve realmente tempo de produzir
sistemas complexos funcionais e adaptados às suas funções apenas conservando
ocorrências aleatórias de baixíssimas probabilidades. Além do mais, seria necessário
explicar como o programa que seleciona as letras poderia ter surgido sem o programador.
Mais do que ninguém, Dawkins rejeita terminantemente a explicação de que o programa
“sempre existiu”. Portanto, não poderia usá-la para o “papel de software” da seleção
natural.
Em suma, quando desconsideram o mundo real que existe dentro da célula, as
explicações darwinistas apresentam uma boa lógica que serve para simulações e narrativas
35
Essa idéia não é correta. A probabilidade em termos matemáticos-estatísticos não representa uma
probabilidade real para efeitos práticos. Sobre a improbabilidade da vida ocorrer meramente por acaso, ver
De Duve (1997, p. 9-12). De Duve cita a afirmação do astrônomo Alfred Hoyle segundo a qual a
probabilidade de eventos aleatórios gerarem estruturas vivas (dado o que se conhece hoje das células) é
comparável a de um Boeing 747 completo surgir de um vendaval que atinge um ferro-velho. É possível
calcular a probabilidade de tal acontecimento, o que não significa que ele vá ocorrer caso se tente o número
de vezes relacionados aos cálculos de probabilidade.
63
A teoria da evolução (...) de Darwin é satisfatória porque nos mostra uma forma pela
qual a simplicidade se poderia ter transformado em complexidade, como átomos
desordenados se poderiam agrupar em estruturas cada vez mais complexas, até
acabarem por formar pessoas. Darwin fornece-nos uma solução, a única, dentre todas
as sugeridas, aplicável à questão profunda da existência (Dawkins, 1989, p. 43).
Apesar da confiança ufanista na teoria que adota, o mesmo autor reconhece que suas
explicações são especulações: “A descrição da origem que farei é necessariamente
especulativa; por definição, ninguém estava presente para ver o que aconteceu” (p. 46).
Mas isso não abala sua crença de que está fazendo ciência: “A descrição simplificada que
farei não ficará, provavelmente, muito longe da verdade” (grifo meu). O problema de sua
especulação, no entanto, é saltar elementos fundamentais, deixados sem explicação.
Dawkins parece ver a origem da vida e a evolução de forma muito simples. Porém, mesmo
para um observador externo à ciência, mas com algum conhecimento científico, fica
patente que a segurança de Dawkins não se assenta totalmente em dados. Apenas para
exemplificar, tomemos mais duas proposições de O gene egoísta (Dawkins, 1989) que
versam sobre o surgimento e evolução dos organismos vivos.
A idéia fundamental do referido livro é que a unidade básica da vida é um replicador,
surgido a partir da tendência à estabilidade de certos aglomerados de átomos, e que tenta,
de todas as maneiras, reproduzir-se e perpetuar-se. Dawkins afirma que o surgimento desse
replicador não é nenhum mistério e, sim, resultado de “processos físicos e químicos
vulgares”. Resta saber se o “impulso” ou “desejo” de reproduzir-se (chamado de “egoísta”,
selfish) pode ser resultado desses processos físicos e químicos ou se trata de um atributo
metafísico do replicador (visto que psicológico não pode ser). Dawkins não diz de onde
64
vem esse suposto “egoísmo” do gene, que não pode ser deduzido de leis físicas ou
químicas, ao menos das que se conhecem atualmente. Nenhuma delas é capaz de gerar um
“impulso egoísta”, mesmo se a palavra fosse usada em sentido metafórico – o que, porém,
não é o caso, visto que sua reflexão atribui o egoísmo humano ao comportamento dos
genes. Ele acrescenta ainda que não há “nenhum desígnio, propósito ou direcionalidade”
no surgimento desse replicador original, mas, curiosamente, conclui o parágrafo dizendo
“por definição, tinha de acontecer assim”.36
Ainda segundo Dawkins, alguns grupos de átomos possuem a tendência de formar
estruturas estáveis, ou seja, moléculas que são preservadas em função da relação química
peculiar de seus átomos constituintes. Outros formam aglomerados que, ao contrário, são
instáveis e tendem a se desfazer. A conclusão óbvia é que as estruturas estáveis se
preservam e as moléculas instáveis desaparecem. O autor, então, afirma com total
segurança que o processo vital se inicia quando uma destas moléculas estáveis adquire a
capacidade de se autocopiar, tornando-se o primeiro replicador do planeta – mas nada é
dito a respeito do que seria necessário para uma auto-replicação bem sucedida.
A ciência atual conhece o mecanismo da divisão celular e da replicação do DNA,
mas o mundo real da célula e dos mecanismos celulares parece não ter importância para o
relato de Dawkins. A partir daí ele tece sua narrativa sobre como pequenas falhas no
processo de replicação podem ter dotado alguns grupos de replicadores de certas vantagens
na competição pelos aminoácidos disponíveis na Terra, aplicando a hipótese darwiniana.
Algumas dessas vantagens seriam a capacidade de “devorar” outro replicador – retirando
dele os aminoácidos que necessita para sua própria perpetuação – e a aquisição de uma
membrana que deu origem à primeira célula. Tudo parece muito óbvio e a descrição segue
uma lógica perfeitamente assimilável por qualquer leitor. No entanto, o relato de Dawkins
não é apenas especulativo, mas trata-se de um exercício semelhante ao de se fazer ficção
científica.
A afirmação de que moléculas estáveis se perpetuam e as instáveis se desfazem é
uma obviedade. Mas isso não se aplica de forma tão óbvia às moléculas fundamentais da
vida; mais especificamente não se aplica aos ácidos nucléicos. Uma molécula de RNA ou
de DNA não se forma sem a presença de um catalisador. Jamais se poderia conseguir um
ácido nucléico apenas pela aglomeração fortuita de átomos, seja em qualquer condição. Na
36
Para mim essa frase é uma revelação de uma única direção possível, portanto, uma “direcionalidade” que
ele diz negar. Mas essa é uma questão secundária.
65
forma atual da célula, as enzimas fazem a catálise dos ácidos nucléicos – e, conforme já foi
dito, as enzimas são proteínas sintetizadas a partir de ácidos nucléicos. Já foi mencionado
o problema da circularidade do processo. Dawkins, no entanto, não faz sequer menção a
essa dificuldade. Para ele, os primeiros replicadores simplesmente “se formaram”, sem a
necessidade de proteínas.
Uma maneira engenhosa de se esquivar do problema é afirmar ser possível que os
primeiros replicadores não teriam sido ácidos nucléicos, mas um “aparentado”, e que
posteriormente as “máquinas de sobrevivência” foram “apanhadas” pelo DNA. Essa
solução, também apresentada por Dawkins, possui, entretanto, duas deficiências. Primeiro,
explica-se o início da vida utilizando-se uma entidade misteriosa e inexistente na
atualidade, sem mencionar sequer um elemento químico que pudesse entrar na composição
do replicador ancestral. Segundo, não responde ao problema da formação do DNA ou do
RNA que viria, posteriormente, a assumir o lugar do primeiro replicador. A solução,
portanto, acaba sendo tão científica quanto a afirmação de que alguma divindade ou força
misteriosa interveio no processo: ambas jogam o problema para entidades que não são
abordáveis pelo método científico, nem experimental, nem teoricamente.
Christian De Duve estabelece a hipótese de que um catalisador não protéico
(atualmente inexistente e com indicações insuficientes de qual poderia ser a sua
constituição química) pode ter feito o papel hoje cumprido pelas enzimas. Se a descrição
que De Duve faz de sua provável constituição não fosse tão problemática, como ele
próprio reconhece, e se fossem feitos avanços em laboratório na construção (ou
descoberta) desse catalisador, essa seria uma hipótese científica bastante adequada e
plausível e as leis tradicionais da química poderiam começar a revelar o mistério da origem
vida. No entanto, as tentativas de se conseguir produzir uma molécula de RNA ou uma
proteína sem o auxílio de proteínas enzimáticas não obteve sucesso até hoje. O químico
francês Auguste Commeyras cita a literatura especializada para ilustrar este fato: “É difícil,
senão impossível, sintetizar longos polímeros de aminoácidos (peptídeos ou proteínas) ou
de ácidos nucléicos (RNA) em solução aquosa homogênea” (Orgel apud Commeyras,
2002, p.87).
A “simplicidade” com que Dawkins trata a questão é uma simplicidade apenas
retórica, mas pouco tem a ver com os problemas reais da química da vida. O desafio da
ciência a partir do novo mundo descoberto dentro da célula é construir uma explicação fora
das leis simples da química e da física. Novas abordagens teóricas devem atentar-se para a
complexidade química e física que o fenômeno revela.
66
Alguns leitores podem ter-se desanimado com o número de lacunas que há no retrato
que pintei. Eu preferia que se admirassem com os detalhes já reunidos – todos durante
a vida deste escritor – sobre uma entidade minúscula de enorme complexidade que
existiu há cinqüenta milhões de vidas humanas (De Duve, 1997, p. 152).
Mas alguns autores não se admiram com os detalhes e nem se desanimam com as
lacunas: simplesmente os ignoram. Por isso, a aplicação da ortodoxia darwinista à origem
da vida e à evolução de sua complexidade no nível molecular tem resultado em narrativas
que serviriam tanto para organismos vivos como para máquinas construídas por seres
humanos. Tanto faz dizer simplesmente que “surgiu”, por variação aleatória, uma nova
parte da célula como dizer que “surgiu” o mecanismo de injeção eletrônica nos
automóveis. Mas a ciência não pode se contentar com isso. A insatisfação de alguns
cientistas pode ser expressa nas palavras de Margulis e Sagan e Máximo Sandín:
Como um lanche açucarado que satisfaz temporariamente nosso apetite, mas nos priva
de uma alimentação mais nutritiva, o neodarwinismo sacia nossa curiosidade
intelectual com abstrações desprovidas de detalhes reais – sejam metabólicos,
bioquímicos, ecológicos ou de história natural. (Margulis & Sagan, 2002a, p. 103).37
37
Todas as citações de fontes em língua estrangeira contidas aqui foram traduzidas por mim apenas para este
livro.
68
Ciência ficção
São esses problemas que fazem a narrativa de Dawkins (e de inúmeros outros
biólogos e divulgadores da ciência) ser análoga à ficção científica e deixar a desejar em
termos de ciência real. Os autores de ficção científica exercitam sua imaginação projetando
o futuro. Imaginam naves que superam a velocidade da luz, sem que a aceleração afete
seus tripulantes, formas de vida extraterrestre com estruturas semelhantes às da Terra,
teletransporte, máquinas com pensamento e sentimentos humanos, etc., mas não precisam
descrever os processos que possibilitaram cada uma dessas realizações. Se alguém
perguntar a um autor de ficção científica: como pode um corpo ser teletransportado?
Como se faz para cada átomo ser desintegrado de seu local e aparecer na mesma
estrutura organizada em um local distante? Ou: qual a estrutura de uma nave que atinge a
velocidade da luz? Que combustível usa? Como fazer para que os tripulantes não sintam
os efeitos da aceleração? Ou ainda: qual a configuração do meio ambiente extraterrestre
que pode ter moldado organismos com a mesma base estrutural dos terráqueos? O autor,
certamente, ou desconsiderará a pergunta, ou dirá que a ciência descobrirá essas coisas no
futuro, ou simplesmente afirmará que, no campo da ficção, tais perguntas não são
procedentes – cabe a ele apenas fantasiar o que pode acontecer no futuro e entreter os
leitores com uma boa história ou um bom filme. Não é de sua responsabilidade indicar os
complicados processos que seriam necessários para que sua história acontecesse na vida
real.
Dawkins é saldado pela mídia como cientista. E também é reconhecido assim pelos
biólogos, pois suas obras são citadas em inúmeros trabalhos científicos e sua terminologia
incorporou-se ao discurso hegemônico da biologia. Não se trata de um autor de ficção ou
um mero “vulgarizador” da ciência que pode ser desconsiderado. Porém, da mesma forma
que alguns outros biólogos e divulgadores da ciência, o que Dawkins faz é um verdadeiro
exercício de ficção científica. A diferença é a direção temporal invertida: sua ficção aponta
para o passado. Ao invés de dizer algo como “haverá uma forma de superar a velocidade
da luz e o ser humano passará a viajar para outras galáxias”, etc., ele diz: o replicador
“descobriu” um meio de se proteger com uma camada protéica, depois criou máquinas de
sobrevivência complexas; então, surgiu o cérebro como resultado de pequenas mutações,
etc. Os processos que possibilitaram esses eventos ficam totalmente omitidos em sua
explicação pretensamente científica – assim como não importam aos autores de ficção.
69
De fato, ele diz que seu livro (O gene egoísta) deve ser lido “quase como um livro de
ficção científica”, mas atesta que “não é ficção científica: é ciência.” Ele abusa, nesse e em
outros livros, de termos como “errado”, “certo”, “verdade”, “verdadeiro”, “falso”, etc.
Além disso, é dessa “especulação” que depende o que Dawkins e muitos darwinistas
acreditam ser uma verdade científica incontestável: o determinismo do “egoísmo” do gene
em todas as dimensões da vida na Terra. Desta verdade ele se coloca como uma espécie de
profeta Jeremias, que, mesmo não querendo ser profeta, não podia se calar diante da
verdade divina:
Pessoalmente creio que seria muito desagradável viver numa sociedade humana
baseada simplesmente na lei do egoísmo, implacável e universal, do gene. Mas,
infelizmente, por mais que se lamente algo, esse algo não deixa, por isso, de ser
verdadeiro (Dawkins, 1989, p. 30).38
O que importa aqui, no entanto, não é discutir se Dawkins tem ou não razão, mas
questionar a pertinência dos relatos darwinistas para o surgimento da vida ou a aplicação
da ortodoxia darwinista ao mundo bioquímico e microbiológico. À segurança
pretensamente científica dos relatos nesses níveis não corresponde uma descrição
apropriada e frutuosa em termos científicos reais.
tão misterioso? O sucesso de Darwin ao explicar a evolução dos seres vivos quando não se
conhecia bem sua estrutura, pode manter-se diante da revelação dos mecanismos básicos
através dos quais se processa a evolução? Estamos diante apenas da necessidade de
adequação da teoria darwinista ou do início de uma crise de paradigma?
Ao meu ver, estas são questões atualíssimas. A despeito do incômodo que possam
causar em inúmeros cientistas e não obstante a defesa radical (nem sempre racional, como
veremos) que vem sendo feita da plenipotência do darwinismo, são ainda questões em
aberto, sem decisão visível para as próximas décadas, mas que merecem e precisam ser
debatidas.39
Newton não sobreviveu ao teste dos componentes básicos da matéria cujo
movimento tão bem explicou. Tampouco chegou mais longe do que o sistema solar.
Assistiremos, em nossa época, ao teste de sobrevivência de Darwin diante do mundo
elementar das células.
A seguir, discutirei um pouco mais a fundo quais são os problemas que o darwinismo
tem enfrentado e como eles têm sido tratados por alguns cientistas que ousaram encarar a
questão.
38
O profeta Jeremias, da Bíblia cristã e judaica, também dizia que não gostaria de ser profeta, mas não
poderia se calar diante das revelações de Deus. Notem nessa citação que Dawkins relaciona a “sociedade
humana” com suas idéias sobre os “genes”. Há uma “sociologia” derivada de sua “biologia”!
39
Vejo, hoje, que a celebração do bicentenário de Darwin tenderá a adiar o debate em alguns anos ou talvez
décadas.
71
4. DARWIN NA BERLINDA
A base da crítica
Qualquer comentário sobre Michael Behe encontra-se cercado de preconceitos. Ele
está no centro de uma polêmica que tornou seu nome quase proibido no debate científico,
dado sua vinculação com a idéia “filocriacionista” do Design Inteligente. É preciso muito
cuidado ao comentá-lo. A simples presença de seu nome em meu artigo40 já foi motivo de
rechaço, sem que os críticos se dessem ao trabalho de ler em que contexto se fazia a
referência. Mas uma análise desapaixonada pode ser bastante instrutiva para os propósitos
deste livro.
Behe apresentou suas reflexões em um único e polêmico livro, A caixa preta de
Darwin (Behe, 1997a) e em diversos artigos que giravam em torno do mesmo tema. Sua
crítica é bem fundamentada em análises científicas a partir de seu campo de estudo, a
40
Abdalla (2006).
75
41
O autor, porém, acrescenta a esses elogios a observação de que os argumentos de Behe estão “errados”.
76
las, mas apenas reafirmaram sua adesão quase “doutrinária” ao darwinismo, sem
apresentar novas proposições capazes de dirimir as dúvidas decorrentes das críticas de
Behe. Até que apareça alguma resposta que não possa ser enquadrada nesses três grupos,
resta a conclusão de que o darwinismo parece mesmo ser um paradigma com anomalias
capazes de gerar uma crise.
Vejamos quais são os problemas apontados por Behe. Ressalto, porém, que uma
visão mais adequada e completa dos detalhes bioquímicos é imprescindível para se
perceber o alcance das críticas – e isso apenas a leitura de sua obra proporciona. Embora
seja tentador, não creio que seja adequado para o presente livro reproduzir de forma
extensa as suas reflexões.
Behe, primeiramente, coloca o problema nos mesmos moldes de outros críticos da
ortodoxia darwinista: novos campos de fenômenos têm desafiado a capacidade explicativa
do paradigma darwinista:
Quase um século e meio após Darwin ter apresentado sua teoria, a biologia evolutiva
tem obtido muito sucesso na explicação dos padrões de vida que vemos ao nosso
redor. Para muitos, seu triunfo é completo. A verdadeira obra da vida, porém, não
acontece no nível do animal ou do órgão completos. As partes mais importantes dos
seres vivos são pequenas demais para serem vistas. A vida é vivida nos detalhes, e
cabe às moléculas se encarregarem desses detalhes. A idéia de Darwin pode explicar
cascos de cavalos, mas poderá explicar os alicerces da vida? (Behe, 1997a, p. 14).
ter entendido isso ou, se entenderam, ignoraram deliberadamente para tornar o debate mais
fácil para seu lado.
No mundo da bioquímica, as coisas adquirem um grau de complexidade sem
nenhuma analogia possível no mundo macroscópico. Essa complexidade, para Behe, não
se pode ter formado por mutações aleatórias graduais nas sequências gênicas e por seleção
natural. Para sustentar sua afirmação, ele utiliza o conceito de complexidade irredutível,
expressão que se refere aos sistemas compostos de várias partes interatuantes cuja
funcionalidade depende da presença e atuação de todas as partes simultaneamente. Em
um sistema irredutivelmente complexo, a ausência de uma das partes, por definição,
elimina a funcionalidade do todo. Sua analogia, que se tornou tão famosa quanto
controversa, é a da ratoeira. Uma ratoeira só possui funcionalidade quando todas as partes
já se encontram unidas e funcionalmente relacionadas; caso falte uma peça, a ratoeira não
funciona.
Um sistema irredutivelmente complexo não pode ter fases intermediárias funcionais.
Se for produzido por algum ser inteligente, como no caso da ratoeira, a construção por
etapas será resultado da intencionalidade do produtor. Porém, na natureza não-intencional
da concepção darwinista, onde os eventos ocorrem ao acaso, as fases intermediárias não-
funcionais não teriam nenhuma razão para se perpetuar à espera de que o acaso as dotasse
do “toque final” que permitiria disparar sua funcionalidade. É preciso recordar que a
natureza só seleciona sistemas funcionais capazes de dotar o organismo de alguma
vantagem na sobrevivência (como discuti no capítulo 2). Ademais, as explicações
darwinistas costumam afirmar que a seleção natural tende a eliminar elementos sem função
por representar um custo maior para a manutenção do organismo; como, por exemplo, o
olho em peixes de regiões escuras das profundezas do oceano.
Behe afirma, portanto, que
Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se por acaso existir tal coisa, seria
um fortíssimo desafio à evolução darwiniana. Uma vez que a seleção natural só pode
escolher sistemas que já funcionam, então, se um sistema biológico não pudesse ser
produzido de forma gradual, ele teria que surgir como uma unidade integrada, de uma
única vez, para que a seleção natural tivesse algo com que trabalhar (Behe, 1997a, p.
48).
Com base nessa premissa, o autor passa a defender a idéia de que, analisados no
nível bioquímico, muitos dos principais processos que sustentam a vida (como a síntese de
proteínas, o sistema de coagulação sanguínea e o sistema imunológico) e os órgãos
78
42
Dawkins diz isso a respeito da visão. Em resposta ao comentário de Gould sobre inutilidade de uma
mutação que gerasse apenas 5% da visão, o autor de O gene egoísta afirma: “5% de um olho é melhor do que
nenhum” (Dawkins, 2001).
79
43
Carl Zimmer (2003, p. 513-516) descreve dessa maneira a evolução do sistema de coagulação e acredita
estar realmente explicando o fenômeno. O fato de Zimmer não ser cientista pode ser uma observação que
descredencie seu relato, mas é exatamente esse o modelo padrão das explicações darwinistas.
44
Como já observei anteriormente, é preciso ter uma visão completa do processo, seja através da leitura de
Behe ou através de livros de bioquímica, caso contrário, a narrativa de que “um sistema mais simples
adquiriu uma nova proteína” passa a fazer sentido, mas sem referir-se a um processo real.
80
Quando um animal sofre um corte, uma proteína denominada fator de Hageman cola-
se à superfície das células próximas ao ferimento. O fator de Hageman é, em seguida,
dividido por uma proteína chamada HMK, a fim de gerar o fator Hageman ativado.
Imediatamente, esse fator converte uma outra proteína, denominada pré-calicreína, em
sua forma ativa, a calicreína. A calicreína ajuda a HMK a acelerar a conversão de mais
fator de Hageman em sua forma ativa. O fator de Hageman ativado e a HMK juntos
transformam em seguida uma outra proteína, denominada PTA, em sua forma ativa. A
PTA ativada, por seu lado, juntamente com a forma ativada de outra proteína (...),
chamada convertina, mudam uma proteína chamada fator de Christmas para sua forma
ativa. Por fim, o fator de Christmas ativado, juntamente com o fator anti-hemofílico
(que é ativado pela trombina de forma semelhante ao que acontece com a
proacelerina), muda o fator Stuart e lhe dá sua forma ativa (Behe, 1997a, p. 91).
Não é propósito deste livro enfadar os leitores com informações técnicas. Mas não
podemos limitar a argumentação simplesmente a afirmações como: “a complexidade não
pode ser explicada pelo darwinismo”. Se não se esclarece a quê complexidade se está
referindo, a afirmação pode ser facilmente respondida por outra do tipo: “pode sim, basta
um conjunto de mutações que se acumulam e se mantém através da seleção natural”. Essa
é a forma de argumentação que se mantém apenas no aspecto formal da explicação, sem
investigar os fatores reais que estão submetidos a uma tentativa de entendimento. Portanto,
se nos abstermos das informações científicas, criamos um “debate entre surdos”. Essa,
infelizmente, tem sido a forma habitual das discussões sobre o darwinismo, mesmo no
meio científico, o que, de fato, é surpreendente e às vezes desanimador.
Por isso, devemos evitar as respostas fáceis e, para isso, não se podem omitir os
detalhes reais. Esta é a razão pela qual reproduzirei abaixo outra parte do livro de Behe que
nos informa sobre o que é preciso para evitar que o processo de coagulação mate o animal
por trombose generalizada. O que espero é somente que se perceba a complexidade do
processo no nível bioquímico. A pergunta é: o que faz o processo de coagulação parar na
hora certa?
Com a ação desse outro conjunto de proteínas, o sistema pode começar e parar na
hora certa. Caso contrário, seu início e fim seriam descontrolados e só teriam como
resultado a morte do animal.
Com a ação dessas diversas proteínas, o sangramento é evitado pela formação
controlada de um coágulo. Mas ainda falta algo. Uma vez curado o ferimento, o coágulo
precisa ser dissolvido. Para isso, outra proteína entra em ação, a plasmina, responsável pela
dissolução da fibrina. Novamente, começa a ação em cascata. Se a plasmina se encontrasse
45
Outras proteínas ainda entram no processo e são citadas por Behe. Ou seja, o processo é ainda mais
complexo do que o que é retratado aqui.
83
na sua forma ativa, nenhum coágulo se formaria, pois sempre que a fibrina entrasse em
ação, a plasmina a desintegraria. Por isso, a plasmina se encontra no organismo na sua
forma inativa, o plasminogênio. O mecanismo exato de ativação da plasmina a partir do
plasminogênio não é totalmente conhecido, embora se saiba que ele exige um outro
conjunto complexo de proteínas que agem em cascata para se realizar (cf. Elias & Souza,
2005).
Qual é a questão?
Em função da interatuação das diversas proteínas, da dinâmica de cascata do sistema
de coagulação e da fina sintonia entre todos os elementos, qualquer ausência no sistema, ao
invés de apresentar uma vantagem em menores proporções, é letal. Com as proteínas que
formam o sistema atual, é impossível de se imaginar um sistema “mais simples” que se
tenha sofisticado gradativamente com a aquisição de melhorias ao acaso. É isso que Behe
chama de complexidade irredutível, pois, segundo ele, não há como se pensar em um
sistema de coagulação funcional e vantajoso retirando-se uma ou mais proteínas que agem
em cascata. O sistema só funciona quando está todo montado.
Considerando ainda que cada proteína é codificada por um gene específico presente
na longa cadeia de bases da molécula de DNA, a esse sistema corresponde um conjunto de
genes responsável por sua existência e funcionalidade. Como isso se formou? O que fez
com que o DNA adquirisse os genes necessários para cada proteína do sistema e
respondesse à demanda pela sua produção na quantidade e momento necessários?
Pequenas mutações ao acaso ou duplicações aleatórias de genes mantidas pela seleção
natural? Diante da complexidade do sistema, respostas como essa não estão muito longe da
defesa de um surgimento mágico ou miraculoso.
Além do sistema de coagulação, Behe também descreve outros de enorme
complexidade, organização e ação conjunta. Segundo o darwinismo, tudo deveria ter se
formado passo a passo, por pequenas mutações aleatórias nas sequências genicas mantidas
pela seleção natural. Behe pergunta: como isso é possível, se a funcionalidade desses
sistemas exige a atuação de todas as proteínas em conjunto? A probabilidade de uma
mutação conjunta ao acaso (uma “macromutação”) gerar um sistema complexo e funcional
é, para efeitos práticos, nula. Portanto, a partir desses dados, o darwinismo se encontra
realmente em uma difícil tarefa.
84
Dizer que a evolução darwiniana não pode explicar tudo na natureza não equivale a
dizer que a evolução, a mutação aleatória e a seleção natural não ocorram. Elas foram
observadas (...) em muitas ocasiões diferentes. (...) Acredito que a prova confirma
convincentemente a ascendência comum. Mas a pergunta fundamental permanece sem
resposta: o que teria levado sistemas complexos a se formar? Ninguém jamais
explicou de forma detalhada, científica, como a mutação e a seleção natural poderiam
construir as estruturas complexas, intricadas, discutidas neste livro (Behe, 1997a,
p.179).
A resposta do darwinismo
darwinismo
Uma vez apontadas as deficiências da teoria hegemônica e feitas afirmações tão
categóricas e contundentes contra sua capacidade explicativa, é necessário analisar quais
respostas foram apresentadas pelos defensores do darwinismo que pudessem livrá-lo da
acusação de paradigma em crise. O livro de Behe foi amplamente divulgado em todo o
mundo e não poderia ficar sem resposta por parte dos darwinistas.
Porém, foi difícil selecionar no debate em torno de sua obra as questões mais
propriamente relacionadas à ciência. A maioria dos artigos que se referem a Behe apenas
sustenta o debate acalorado e apaixonado entre criacionismo e evolucionismo e não entra
nos detalhes científicos. Às vezes, a discussão chega a situações próximas à puerilidade.
Behe afirmou inúmeras vezes não ter problemas de ordem filosófica ou religiosa com o
darwinismo e que acredita tanto na evolução darwiniana para um nível da realidade, como
no fato de que descendemos de um ancestral comum. Dawkins e outros críticos negam a
própria declaração de Behe e afirmam que ele é um “criacionista disfarçado” (Dawkins,
1996), opositor do evolucionismo. Assim, encerram a questão, como se não precisassem
rebater os argumentos científicos de A caixa preta de Darwin.
Quando o debate assume tal caráter, chega-se ao ponto final de um possível
confronto frutuoso de idéias, pois se cai na infantil troca de rotulações. O filósofo Arthur
85
Schopenhauer cita essa prática como um dos estratagemas da erística para se vencer um
debate sem se ater aos conteúdos:
O perigo desse livro (...) é, em parte, porque é muito bem escrito (...). Eu aprendi um
monte de coisas com ele (…). Além disso, aqui nós temos um cientista real e muito
competente (mas profundamente desencaminhado [misguided]) fornecendo ciência
muito boa e pontuando algumas omissões muito importantes em nosso atual
conhecimento. Dr. Behe e seu livro devem ser como ouro em pó entre o lixo dos
criacionistas em geral e a sua, assim chamada, literatura. Os leitores em geral não
saberão das limitações do seu argumento ou não estarão informados sobre suas
distorções dos fatos, e serão facilmente seduzidos pelos seus argumentos. Além disso,
parece muito mais fácil, e certamente evita uma grande quantidade de esforço
intelectual, aceitar que Deus fez tudo, ainda que nós tenhamos que interpretar as
86
46
Cito na bibliografia apenas as publicações que serviram de referência direta para este livro. O resultado
completo da busca não foi referenciado aqui, dado o fato de que a maioria dos textos não trazia questões que
exigissem uma análise mais detalhada. Há também uma enorme quantidade de documentos na Internet que
tratam a questão colocando-a no meio das disputas entre “criacionistas” e “evolucionistas”, “crentes” e
“céticos”, etc. Não me detive em nenhum desses documentos, por não considerar que o problema é de ordem
ideológica ou teológica.
87
Richard Dawkins e Douglas Futuyma, procuram analisar as críticas levantadas por A caixa
preta de Darwin.
O artigo de Jerry Coyne, professor e pesquisador do departamento de Ecologia e
Evolução da Universidade de Chicago, é repleto de adjetivos, a começar pelo título: More
crank science.47 Coyne refere-se aos “antievolucionistas acadêmicos” (colocando nessa
categoria todos os cientistas não-darwinistas) com o termo pejorativo “gadfly” (pessoa
irritante, chata) e diz que o que Behe faz “não é ciência”, que o editor do seu livro
“procurou lucro e não exatidão”, que Behe pretende ser um gênio como Einstein e Newton,
etc. No entanto, para fundamentar o que diz, faz apenas afirmações sem indicação de
pesquisas ou fontes científicas que possam corroborá-las, mesmo que essas afirmações
tenham sido, mais de uma vez, negadas com argumentos por Behe. Quando nos deparamos
com um artigo rico em adjetivos, temos motivos para suspeitar da pobreza de substantivos
de seu autor.
Concentrando-se na proposição do Design Inteligente, Coyne afirma: “Uma tal idéia
não pode ser falsificada porque a cada vez que uma via metabólica recebe uma explicação
evolucionista, Behe pode simplesmente estreitar o domínio do planejador para incluir as
vias ainda não explicadas” (Coyne, 1997). Acontece que Behe afirma em seu livro que não
há nenhuma publicação especializada que tenha editado sequer um artigo com uma
explicação evolucionista darwiniana à complexidade bioquímica de sistemas metabólicos.
Para que os leitores de Behe não acreditem nessa afirmação, são necessárias provas que a
contradigam. Mas Coyne, embora a negue, não indica nenhuma fonte científica que possa
ser consultada para que nos convençamos do contrário. Se ele conhece alguma, guardou-a
em segredo e perdeu a oportunidade de nos mostrar a nulidade das acusações de Behe
contra o darwinismo.
Quando se refere ao conceito de complexidade irredutível dos sistemas bioquímicos,
Coyne recorre à teoria de Karl Popper, e diz que “a teoria de Behe sobre a complexidade
bioquímica não é científica porque é intestável: não há observação ou experimento que
possa refutá-la”. Karl Popper foi um dos mais importantes filósofos da ciência do século
XX. Segundo ele, uma teoria, para ser científica, deve ser passível de falsificação pela
experiência, ou seja, deve apresentar as condições para ser submetida a testes que possam
47
Crank, na gíria estadunidense, significa “exêntrico”, “esquisito”.
88
48
A filosofia da ciência de Thomas Kuhn, que serve de apoio metodológico para este livro, se contrapõe à de
Popper. Para quem desejar entender as discordâncias a partir dos próprios autores, ver Lakatos & Musgrave,
1979.
89
conhecidos dos mortais comuns? Os não-cientistas devemos apenas crer que há uma
explicação darwinista que, contudo, não nos pode ser revelada?
Coyne usa o mesmo tom e a mesma base argumentativa em uma resenha sobre o
livro de Behe para a prestigiosa revista Nature. Seguindo o estratagema denunciado por
Schopenhauer, escreve:
A meta dos criacionistas sempre foi substituir o ensino da evolução pela narrativa
fornecida pelos primeiros onze capítulos do Gênesis. Quando a Justiça frustrou seus
esforços, 50 os criacionistas tentaram uma nova estratégia: disfarçarem-se sob o manto
da ciência. (...) A alternativa científica de Behe à evolução vem a ser, no final das
contas, uma confusa e intestável miscelânea de idéias contraditórias (Coyne, 1996).
Note-se aqui uma sutileza que é uma poderosa estratégia para desmontar a tese
adversária. Não se pode afirmar se fruto de uma confusão ou de deliberada malícia, mas a
identificação da evolução (afirmação factual, amplamente registrada) com a teoria
darwinista da evolução (que já comentei acima) é uma ação recorrente – diversos cientistas
que pesquisei acusam Behe de negar a evolução e baseiam seus argumentos nessa
acusação inventada. Na citação acima, por exemplo, Coyne fala de uma “alternativa de
Behe à evolução” e não à teoria darwinista. Mas a verdade é que Behe não nega o fato da
evolução e, sim, sua descrição pela teoria darwinista. É difícil acreditar que cientistas tão
preparados não consigam interpretar textos simples direcionados ao público em geral.
Repetirei parte de uma citação de Behe feita acima para que os leitores tenham noção de
que não é apenas ciência o que está em jogo nesse debate:
Dizer que a evolução darwiniana não pode explicar tudo na natureza não equivale a
dizer que a evolução, a mutação aleatória e a seleção natural não ocorram. Elas
foram observadas (...) em muitas ocasiões diferentes. (...) Acredito que a prova
confirma convincentemente a ascendência comum (Behe, 1997a, p. 179. Grifos meus).
Insistir que Behe nega um fato (a evolução) e não uma teoria (o darwinismo) –
mesmo que tenha sido dito exatamente o contrário – ou é um estratagema desonesto com
objetivo deliberado de confundir o público para ganhar o debate, sem se ter conteúdo
suficiente para isso, ou mostra que há algum problema com a capacidade de interpretação
49
E o próprio filósofo esclarece que quando fala em darwinismo ele se refere à síntese moderna, ou seja, ao
neodarwinismo.
50
Coyne aqui se refere aos esforços dos evangélicos dos EUA para tornar lei o ensino do criacionismo nas
escolas e proibir as explicações evolucionistas.
90
51
Behe aponta os problemas dessa explicação do olho, mostrando a quantidade de moléculas envolvidas no
seu funcionamento, e conclui: “Agora que a caixa preta da visão foi aberta, não é mais aceitável que uma
explicação evolutiva dessa capacidade leve em conta apenas as estruturas anatômicas de olhos completos,
como fez Darwin no século XIX (e como continuam a fazer hoje os popularizadores da evolução). Todas as
etapas e estruturas anatômicas que Darwin julgou tão simples implicam, na verdade, processos biológicos
imensamente complicados que não podem ser disfarçados por retórica” (Behe 1997a, p 25-32). Thornhill &
Ussery, mesmo escrevendo quatro anos depois de Behe ter tecido suas críticas, simplesmente ignoram seus
argumentos e reafirmam a simplicidade da evolução do olho.
52
Dawkins (2001) dá o exemplo dos arcos de Stonehenge: sua estrutura final pode ser resultado do apoio dos
arcos superiores sobre pedras que foram posteriormente retiradas. Sem referência a essas pedras, fica o
mistério de como ele pode ter sido construído.
92
suas pegadas? Isso não responde aos questionamentos de Behe e dá uma explicação
darwinista para a evolução dos sistemas complexos?
Em minha opinião, tais respostas só são satisfatórias do ponto de vista formal. Elas
preservam a lógica do darwinismo quando afirmam que é possível adequar a constatação
da complexidade à perspectiva darwinista. No entanto, uma explicação científica exige
mais do que o esforço formal de se preservar uma teoria. A “forma”, em ciência natural,
deve ser preenchida com “conteúdo”. É nesse ponto que as explicações acima deixam de
ser convincentes.
É certo que recompor todo o passado evolutivo pela via empírica direta é tarefa
impossível e, nesse caso, é preciso esforço imaginativo e especulativo. Mas não é apenas a
biologia evolutiva que enfrenta esse problema. A cosmologia física também lida com a
evolução do universo tentando recompor os passos que precederam e formaram o universo
atual, passos que foram apagados quase em sua totalidade. No entanto, mesmo que a
cosmologia se caracterize pela especulação, seu formalismo é preenchido com elementos
reais, sejam partículas elementares conhecidas, átomos e moléculas, agindo em processos
resultantes de leis conhecidas e passíveis de serem realizados por imaginação e calculados.
Se se descobre que a interação entre duas partículas prevista em um modelo cosmológico
provocaria uma catástrofe universal ou impediria desenvolvimentos ulteriores do universo,
a hipótese dessa interação tem que ser descartada. Se for uma hipótese central da teoria, a
própria base teórica está comprometida.
Mas o mesmo não ocorre com as explicações darwinistas. O caminho 3 descrito por
Thornhill e Ussery tem como único critério a “imaginabilidade” e não a imaginação
concreta, composta por elementos reais conhecidos pela ciência. Ou seja, apenas se supõe
um processo possível, mas ninguém o reproduz preenchendo-o com elementos possíveis
dentro de um quadro científico imaginável e que preserve os princípios fundamentais do
darwinismo. Um artigo de Keith Robison, biólogo da Universidade de Harvard, (Robison,
1996) é citado por Thornhill e Ussery por traçar um quadro evolutivo darwinista provável
da formação do sistema de coagulação sanguínea. Mas Robison descreve um quadro
usando incógnitas como X e Y e não elementos químicos reais. Incógnitas não provocam
efeitos em organismos. A pergunta que deve ser feita é: o que aconteceria ao organismo
que adquiriu X se X fosse a fibrina (uma proteína real e não uma incógnita)? Ou Y, se Y
fosse a plasmina?
Pode-se supor, como faz Robison, que mudanças em “X” são neutras, mas a presença
de fibrina ativa no sangue não é neutra! Ela levaria a uma coagulação descontrolada. Ou
93
53
Behe responde a essas e outras críticas em Behe (2000b).
94
natural não age na formação dos sistemas. Eles têm que se formar instantaneamente ao
acaso para depois serem selecionados em função das vantagens que apresentam. Além
disso, está-se falando em inúmeros sistemas que compõem o mundo vivo e não apenas em
um ou outro órgão. Atribuir toda a responsabilidade ao acaso não seria dotá-lo de poderes
quase sobrenaturais?
Os exemplos de mudança de função (caminho 4) mencionados no artigo de Thornhill
e Ussery são retirados do mundo macroscópico e referem-se a estruturas anatômicas já
formadas e a sistemas bem mais simples e com menos elementos. Não é o caso dos
sistemas bioquímicos complexos que envolvem dezenas ou centenas de proteínas em
interações coordenadas, sincronizadas, auto-reguladas e interdependentes.
Em outro artigo, Ussery concorda que ainda não há um modelo teórico satisfatório
para explicar a complexidade bioquímica e afirma que essa é uma importante questão em
aberto (Ussery, 1997). Ao tentar explicar a formação dos sistemas que Behe chama de
irredutivelmente complexos, utiliza termos como “eu posso facilmente imaginar um
cenário...” e segue listando passos virtuais na formação do flagelo bacteriano, sem, no
entanto, fazer referência à seleção natural e à complexidade desse órgão explicada
detalhadamente por Behe (Behe 1997a, p. 77-79). Nas palavras de Ussery, “uma ‘bactéria
primitiva’ podia ter um anel, depois você teria um flagelo com dois anéis, depois três e
assim por diante” (Ussery, 1997).
Conforme já afirmei, esse tipo de explicação serviria também para automóveis,
aviões e computadores. O que surpreendentemente os cientistas parecem esquecer é que
não basta uma explicação de como uma coisa pode ser montada passo a passo, mas como
cada passo pode ter acontecido ao acaso e sido selecionado pela natureza a partir da
vantagem de cada um deles. O darwinismo não é apenas uma explicação da sucessão passo
a passo de mudanças, mas também da perpetuação e direcionamento dessas mudanças pela
seleção natural.
Engano ou desespero?
Comentar outros artigos sobre esse tema seria redundante, pois todos apresentam o
mesmo padrão de argumentação. Mas há um episódio digno de ser narrado que pode ser
um sintoma (embora periférico) de crise de paradigma. No volume da Boston Review
mencionado acima, o bioquímico Russel Doolittle, da Universidade da Califórnia, citado
por Behe como um dos maiores especialistas em coagulação sanguínea, também escreve
95
um artigo criticando A caixa preta de Darwin (Doolittle, 1997). Esse artigo pode ser
submetido a praticamente todos os comentários já feitos até aqui, mas chama a atenção por
citar uma pesquisa publicada na revista Cell que colocaria abaixo o argumento da
complexidade irredutível.
Segundo Doolittle, uma pesquisa teria provado ser possível a exclusão de algumas
proteínas chaves do sistema de coagulação sem que sua funcionalidade fosse
comprometida. Conforme o relato de Doolittle, pesquisadores constataram que a retirada
dos genes que produzem o plasminogênio em ratos provocaram trombose, como era de se
esperar.54 Posteriormente, retiraram de outros ratos o gene responsável pela síntese de
fibrinogênio e tiveram também o esperado resultado de complicações hemorrágicas.55
Depois, cruzaram as duas linhagens de ratos e – diz Doolittle – a prole com deficiência
tanto de plasminogênio como de fibrinogênio (duas proteínas que compõem o sistema de
coagulação) era normal. A conclusão de Doolittle é que a pesquisa prova que os
argumentos de Behe em defesa da complexidade irredutível foram derrubados, pois dois
elementos fundamentais do sistema foram retirados e nada aconteceu. Com um toque de
elegância, ele conclui, triunfante e categoricamente: “Ao contrário do que prega a
complexidade irredutível, o conjunto completo de proteínas não é necessário. Música e
harmonia podem surgir de uma orquestra menor” (Doolittle, 1997).
A leitura do artigo de Doolittle me fez acreditar que alguém finalmente estava
apresentando dados reais, frutos de pesquisa científica, que poderiam abalar os argumentos
de Behe. Isso me levou à leitura do artigo citado, para não me limitar à referência indireta.
Para minha surpresa, Doolittle citou as conclusões da pesquisa de forma equivocada. Os
autores dizem, na verdade, que
Ou seja, o que a pesquisa mostra, realmente, é que a prole deficiente nas duas
referidas proteínas não é normal! O artigo diz que a ausência de ambas provoca o mesmo
mal que a ausência apenas do fibrinogênio. Ou seja, a prole sem os genes que sintetizam o
fibrinogênio e o plasminogênio sofre de problemas hemorrágicos. O motivo é que, na
54
O plasminogênio, como já foi visto, é a forma inativa da plasmina, proteína responsável por desfazer os
coágulos.
55
O fibrinogênio é a forma inativa da proteína fibrina, responsável pela formação dos coágulos.
96
56
Isso não passou despercebido de Behe, que comenta detalhadamente esse mau entendimento de Doolittle
em Behe (2000b).
97
Recordemos, a propósito, que Kauffman não pode ser incluído entre os defensores da
ortodoxia darwinista. Sua teoria da complexidade é incompatível com os princípios
centrais da Teoria Sintética Moderna, fato que o levou a sugerir que “precisamos repensar
a teoria evolucionária (...). Precisamos ver a vida de uma maneira nova e interpretar novas
leis para o seu desdobramento” (Kauffman, 1997, p. 132-133). Ou seja, é possível uma
explicação naturalista para a evolução, desde que haja um deslocamento dos princípios de
mutação aleatória e seleção natural para a idéia de auto-organização ou outras que
trabalhem com a noção de complexidade.
Shanks e Joplin tratam o ponto central da questão levantada pelo livro de Behe e
defendem a capacidade da ciência para explicar a evolução sem recorrer a causas
sobrenaturais. Mas os autores não ousaram reconhecer, no referido artigo, a insuficiência
do darwinismo para responder ao “desafio da bioquímica”. A auto-organização é um
fenômeno em contradição com o gradualismo das mutações buriladas pela competição
seletiva na natureza selvagem.
Defender o naturalismo científico não significa defender o darwinismo, dado que ele
não é a única teoria naturalista possível. Torna-se claro que a busca por uma explicação
naturalista da evolução, face às novas descobertas das ciências biológicas, deve ser feita a
partir de teorias alternativas fora da ortodoxia darwinista hegemônica. Este parece ser o
ponto central do debate em uma filosofia das ciências biológicas.
Embora Behe tenha feito um excelente trabalho apontando os limites do darwinismo
e tenha municiado o debate com elementos até então não discutidos, sua contribuição se
98
57
Conforme refleti na introdução, na seção “Naturalismo científico e naturalismo metafísico”.
99
A base da crítica
Lynn Margulis é pesquisadora do mundo microbiológico e crítica mordaz do
neodarwinismo. Seu trabalho é respeitado inclusive por aqueles que defendem a concepção
que ela critica.58 A importância de suas pesquisas rendeu-lhe uma vaga na Academia
Nacional de Ciências dos EUA e a Presidential Medal of Science. Seus livros são
geralmente em co-autoria com Dorion Sagan, filho de seu casamento com o conhecido
astrônomo Carl Sagan. Seu campo de estudo é o mundo vivo invisível aos nossos olhos, o
mundo das bactérias, dos protistas, dos fungos e das organelas que compõem a estrutura
celular. Margulis é responsável pela descoberta da origem bacteriana das mitocôndrias,
cloroplastos e outras organelas que desempenham funções indispensáveis no mecanismo
celular, tanto animal quanto vegetal.
Atenta a um mundo outrora não explorado, Margulis também percebeu a
insuficiência e inadequação dos princípios neodarwinistas quando aplicados à vida no nível
microbiológico. Mais do que isso, intuiu que, se não se pode aplicá-los ao mundo vivo em
suas dimensões mais elementares, tais princípios não seriam adequados à compreensão
geral da vida, sua origem e evolução. Seu comentário crítico aos neodarwinistas segue,
portanto, o padrão já comentado anteriormente: novos campos de investigação revelaram
realidades que não se enquadram na explicação hegemônica, em função de sua
complexidade e organização e por causa de inúmeras descobertas que estão em contradição
com certos princípios consagrados do neodarwinismo. Segundo Margulis, os pesquisadores
evitam relacionar essas descobertas com a Teoria Sintética e, por isso, não percebem a
contradição:
58
O prefácio de seu livro Acquiring genomes, por exemplo, é assinado pelo famoso e respeitado
neodarwinista Ernst Mayr, que, no entanto, faz algumas ressalvas às idéias mais provocativas do livro.
100
59
Os seres formados por apenas uma célula sem núcleo são chamados de procariontes.
101
60
Os cinco reinos, segundo Marguilis, são Monera (que inclui todos os tipos de bactérias e as cianobactérias
–também conhecidas como algas verde-azuladas), Protoctista (que inclui os seres unicelulares eucariontes –
102
complexidade da vida. Em seu livro com Dorion Sagan, Acquiring Genomes (ainda sem
tradução para o português), Margulis nos fornece uma ampla série de exemplos de
simbiose ocorridas no mundo natural.
As bactérias cumpririam, portanto, o mais importante papel na evolução das
espécies. Se os leitores quiserem apenas um exemplo simples para perceber a simbiose em
ação na natureza (em nível macroscópico), basta observar uma vaca. O organismo dos
ruminantes não tem capacidade para digerir o capim que comem. Quem faz a digestão são
as bactérias presentes no rume. Só depois do trabalho das bactérias é que o animal pode
engolir o alimento. Sem as bactérias, os ruminantes morreriam de fome.
Confronto
Confronto com o darwinismo
A conclusão de Margulis afeta os eixos básicos do neodarwinismo e alguns
princípios decorrentes. As grandes mutações verdadeiramente responsáveis pela evolução
(e não simplesmente pelas diferenças entre seres da mesma espécie) não são fruto de
pequenas variações moleculares casuais que se acumulam nos organismos:
A visão corriqueira é que a vida evolui através da mudança genética aleatória, a qual,
além disso, não raro é prejudicial. As mutações ao acaso, cegas e sem direção, são
enaltecidas como a principal fonte da novidade evolutiva. Nós (e um contingente cada
vez maior de estudiosos da vida com orientação semelhante) não concordamos
totalmente. Enormes lacunas na evolução foram saltadas pela incorporação simbiótica
de componentes previamente aprimorados – componentes burilados em linhagens
separadas. A evolução não começa do zero a cada vez que surge uma nova forma de
vida (Margulis & Sagan, 2002b, p. 23).
Sua visão é apresentada, conforme suas palavras, não como uma “alternativa ao
darwinismo clássico”, mas como “uma extensão, um refinamento e amplificação da idéia
de Darwin”. Para Margulis, o núcleo central da teoria de Darwin que possui validade
inquestionável é o papel da seleção natural, por isso ela reivindica-se “darwinista e não
neodarwinista” (este é o título do primeiro capítulo de Acquiring genomes).
Mas, se considerarmos que o darwinismo só se estabeleceu como paradigma
hegemônico a partir do neodarwinismo, seus questionamentos não deixam de representar
uma crítica ao paradigma predominante. Além disso, embora reconheça o papel da seleção
natural, a teoria de Margulis, compreendida como uma síntese explicativa e não apenas
como um conjunto de proposições isoladas, parece conceder-lhe apenas um papel óbvio: o
de manter os organismos que são bem acoplados a seu entorno. Isso me parece apenas o
reconhecimento de uma evidência trivial: se a manutenção de um organismo vivo depende
de uma relação sintônica entre sua estrutura interna e o meio circundante – com o qual
realiza trocas vitais através do metabolismo –, só serão mantidos os seres que apresentarem
essa sintonia, perecendo todos os outros que, por algum motivo, não conseguirem se
acoplar ao meio.
Concebendo-a dessa maneira, a seleção natural perde o lugar que ocupa no
darwinismo, ou seja, o de conceito teórico central que explica o mecanismo da evolução e
que é responsável tanto pela complexidade e diversidade dos seres vivos, como pelas
mudanças de espécie.
Portanto, em uma análise mais acurada, a proposta de Margulis atinge não só o
neodarwinismo, mas o darwinismo em si mesmo, embora a autora, por razões não muito
claras, não admita tal conclusão. É difícil perceber o que resta do darwinismo quando se
aceita a simbiogênese em todas suas conseqüências. Apenas aceitar que a seleção natural
104
papel na saga evolucionária, mas são incapazes de explicar o processo evolutivo como um
todo.
Henri Atlan também propõe a revisão da abordagem do DNA como “programa” e
sugere a sua compreensão como “dados armazenados” interpretados pelo conjunto
complexo constituído pela rede de reações metabólicas do organismo – esse sim uma
espécie de “programa” distribuído pelo corpo vivo (Atlan, 2002). Ou seja, o DNA entra
apenas com os dados, mas não define, em última instância, como esses dados serão
processados. O processamento da informação depende de inúmeras condições às quais as
células ou o organismo estão submetidos. Ou seja, a estrutura final de um organismo, e não
sua forma eventual, é definida pelo meio em interação com os dados do genoma. Não há,
portanto, uma relação direta e mecânica entre o genótipo (estrutura genética) e o fenótipo
(as características reais dos organismos viventes). O processo é muito mais complicado e
dependente de inúmeros fatores além da simples disposição de bases no DNA. A interação
com o meio, responsável pelo “contexto” da célula, provoca respostas distintas no
funcionamento do genoma.
Esse não é um detalhe superficial e deve ser compreendido em seu verdadeiro
impacto para a teoria darwinista. Note-se que, segundo os autores mencionados, o meio
(em interação com o genoma) define a estrutura do organismo e não apenas o seleciona.61
61
Essa questão voltará a ser abordada mais adiante, quando tratarmos das idéias de Sandín.
62
Para se entender melhor a interpretação da vida como um fenômeno termodinâmico, como a emergência de
“ordem a partir da desordem”, ver Margulis & Sagan (2002a, p.42-50) ou a exposição de rara clareza de
Schneider & Kay (1997).
106
63
Em poucas palavras, as células de Bénard são estruturas organizadas, com certa estabilidade, que se
formam em um líquido em um determinado momento quando colocado no meio entre uma fonte de calor e
outra de resfriamento. As diferenças de temperatura geram um gradiente alto. As estruturas organizadas que
se formam no líquido facilitam o movimento de calor de uma fonte para a outra, acelerando a redução do
gradiente. O progressivo equilíbrio entre temperaturas é uma regra natural.
107
64
Segundo Maturana e Varela, o peso no papel da natureza como agente selecionador foi uma interpretação
equivocada da seleção natural (2001, p. 113). A compreensão equivocada da seleção natural acabava
provocando a impressão de que o meio instrui as mudanças nos organismos.
108
As anomalias se multiplicam
Todas essas questões – a complexidade e organização da vida em níveis
microscópicos, as implicações reais da mudança e evolução das espécies, o problema da
origem da vida e até mesmo as recentes descobertas do Projeto Genoma – têm-se tornado
anomalias que parecem não ser adequáveis ao paradigma hegemônico.65 As proposições de
Margulis (e as reflexões de outros autores mencionado nesta seção) reforçam ainda mais a
idéia de que o darwinismo chegou ao seu limite de produtividade e as anomalias estão se
tornando intoleráveis para o avanço da compreensão da vida – mesmo que os autores
citados possam talvez não aceitar minha conclusão.
Ainda que Margulis tente dizer que o darwinismo “original” se preserva em suas
reflexões, é difícil perceber quê papel ele pode ter no quadro geral de uma teoria da
evolução baseada nas idéias por ela apresentadas.
Há, como se pode notar, a necessidade de uma nova interpretação da evolução que se
contraponha ao darwinismo moderno, uma vez que os conhecimentos da biologia se
ampliam com grande rapidez e fogem às possibilidades de explicação nos limites da visão
dominante. Para resolver as contradições, não tem sido suficiente reinterpretar, ampliar ou
65
Ver Sandín (2002a) a respeito das descobertas do Projeto Genoma e sua inadequação ao neodarwinismo.
109
A base
base da crítica
Se Lynn Margulis recusa-se a abandonar o rótulo de darwinista (ainda que as
conseqüências de suas reflexões conduzam a uma posição distante do núcleo do
darwinismo) e Michael Behe propõe uma alternativa não naturalista à teoria da evolução
de Darwin, Máximo Sandín, biólogo da Universidad Autónoma de Madrid, rejeita
veementemente a teoria darwinista em qualquer de suas versões e, ao mesmo tempo,
propõe uma explicação naturalista alternativa para o fenômeno da evolução, sem recorrer a
princípios sobrenaturais.
Destaca-se em seu trabalho uma incansável luta para demonstrar que o sucesso do
darwinismo não tem razões científicas, mas sociológicas e ideológicas. A aceitação do
darwinismo, para ele, é decorrente de sua assimilação pela sociedade como ideologia e não
como teoria científica. Sandín afirma que o que Darwin fez foi aplicar à natureza as regras
de convívio social propostas pelo liberalismo – mais especificamente, as idéias de Malthus
110
66
Conforme foi visto no capítulo 2, o próprio Darwin admite que sua idéia de luta pela sobrevivência é uma
“aplicação da doutrina de Malthus à totalidade dos reinos animal e vegetal”.
67
As referências a Sandín neste livro utilizam a data de publicação original de seus artigos em revistas
especializadas, mas seus trabalhos podem ser encontrados no livro Pensando la evolución, pensando la vida
(Sandín, 2006) ou em sua página pessoal na Internet: www.uam.es/personal_pdi/ciencias/msandin.
111
Com efeito, são cada vez mais os mecanismos e processos biológicos que têm um
enquadramento difícil dentro da Teoria Sintética. Os elementos móveis, as seqüências
repetidas, os genes homeóticos, as seqüências reguladoras... Tudo isso submetido, no
nível celular, a um complexíssimo controle de proteínas que “revisam” e “reparam” os
erros de duplicação, que controlam o correto funcionamento celular e que se auto-
regulam entre si. No nível do desenvolvimento embrionário, a campos morfogenéticos
que controlam com incrível precisão o progresso espacial e temporal da formação dos
tecidos e órgãos e que são capazes de corrigir acidentes e reconduzir o processo. E no
nível orgânico, a sistemas neuro-endócrinos de regulação que relacionam tecidos e
órgãos entre si, sob a proteção de um complexo sistema imunológico com uma
surpreendente capacidade de resposta a agentes estranhos.
A grande precisão com que funciona cada um desses mecanismos e a estreita
interconexão entre todos eles, ou seja, sua qualidade de sistemas complexos, cujos
elementos não podem atuar como partes independentes, concede pouca margem de
atuação aos erros aleatórios como mecanismo da evolução. Ainda, se além disso
levarmos em conta sua capacidade de auto-reparação, tanto no nível celular como
embriológico, que campo de ação resta para a Seleção Natural para as mudanças nos
organismos que impliquem realmente evolução? (Sandín, 1997).
68
Acredito, inclusive, que foi a descoberta dessa complexidade e o fracasso na identificação dos genes
responsáveis por cada tipo de doença ou característica humana (fracasso gerado pela expectativa de uma
relação mecânica entre o DNA e as funções vitais) que fez o Projeto Genoma Humano perder o encanto e não
ser mais tão atrativo para indústria farmacêutica que o ajudava a financiar. Os leitores devem ter reparado a
diferença abismal entre as promessas do Projeto Genoma, exaustivamente expostas pela mídia, e o que foi
realmente apresentado publicamente como resultado.
113
69
Há uma ampla referência bibliográfica acompanhando principalmente um de seus últimos artigos (Sandín,
2005) que remete às mais recentes descobertas do estudo do genoma humano. Os leitores interessados na
precisão e origem dos dados citados podem recorrer a essas referências.
70
Uma tentativa de redefinição do próprio conceito de gene pode ser encontrada, em publicação
especializada, em Gerstein, et. al. (2007).
114
Isso quer dizer que a parte não-codificadora, mas com função essencial, também está
formada por vírus ou seqüências derivadas de vírus. Sandín contesta a interpretação de que
essa conformação do genoma possa ter sido resultado de mutações aleatórias e seleção
natural. Também recusa a anedótica explicação de Dawkins que atribui aos genes um
comportamento “moral”, o egoísmo, que justificaria a presença da parte não-codificadora
no genoma.
Segundo Dawkins, genes sem função, mas “interesseiros” e com a idéia fixa de se
replicar a todo custo, “pegaram carona” com os genes realmente funcionais que
conseguiam se multiplicar pelas suas vantagens na luta pela sobrevivência. Esses genes
egoístas e oportunistas garantiam sua replicação grudando-se nos genes funcionais – o
resultado da ação desses aproveitadores é um DNA com uma parte funcional e outra não.71
Para Sandín, a hipótese mais razoável seria a de que os vírus se inseriram (por sua
capacidade de “contaminação”) em genomas mais simples, acrescentaram informação
genética, provocaram duplicações e rearranjos de genes e, conseqüentemente, modificaram
a estrutura do organismo. Ou seja, um determinado conjunto de genes, responsável por
certos organismos com uma configuração específica, foi modificado por inserção de novas
seqüências provindas de vírus que conseguiram inserir-se nas células germinais
(responsáveis pela reprodução e hereditariedade) ou pela ativação de vírus endógenos (já
inseridos no DNA) a partir de pressões do meio, gerando um organismo novo, diferente do
anterior.
71
A terminologia de Dawkins é usada em artigos especializados e livros de biologia. Ou seja, não se trata
simplesmente de uma metáfora divertida visando o melhor entendimento do público leigo. É realmente a
explicação que muitos cientistas aceitam.
115
sim de um fato comprovado: a capacidade dos vírus para integrar-se nos genomas
(Sandín, 2005).
mas que os responsáveis pela inserção dos genes que respondem pelas outras funções
celulares foram os vírus: “Atualmente, sabemos que existe na natureza algo que não é
exatamente um quarto domínio de seres vivos, que não está extinto, mas que tem a
capacidade de ‘transferência horizontal de genes’: os vírus” (Sandín, 2006).
encontradas nos genomas, algumas com funções vitais para o organismo como o controle
do desenvolvimento embrionário e funcionamento de órgãos importantes (Sandín, 1997).72
Essas características tornam os vírus responsáveis pela inserção de novas seqüências
com conteúdo informativo no DNA e pela reorganização de genomas já existentes. Se o
material genético trazido pelos vírus fosse apenas apêndices sem importância no genoma
ou se a reorganização provocada pela sua mobilidade, duplicação e inserção não estivesse
implicada em funções vitais, o fenômeno não teria importância a ser considerada no estudo
da evolução. No entanto, a presença massiva de seqüências virais no DNA de animais e
plantas, a função reguladora (dentro de uma totalidade complexa) e as funções específicas
no desenvolvimento embrionário e em características importantes dos organismos fizeram
Sandín atribuir aos vírus não só uma grande importância na evolução da vida, mas um
papel determinante.
O interesse pelo seqüenciamento de genomas nos últimos anos revelou que
seqüências de origem viral estão envolvidas de forma determinante no surgimento da
placenta nos mamíferos; em partes constituintes do cérebro, embrião, pulmão, e outras; na
morfogênese (processo pelo qual a divisão da célula fecundada é direcionada para a
formação de um determinado ser vivo); na codificação de proteínas essenciais de
organismos eucariontes (inclusive do ser humano); no sistema imunológico; etc. (Sandín,
1997; 2005).73
72
A importância das sequências repetidas tem sido amplamente documentada. Um exemplo recente de sua
função na diferenciação dos primatas pode ser encontrado em Marques-Bonet, et.al. (2009).
118
mutação em sua estrutura) que são hereditárias. Ou seja, o ambiente produz mudanças no
contexto da célula que, por sua vez, induzem a respostas diferentes do genoma. O resultado
são manifestações fenotípicas bem diferentes a partir de um mesmo genoma, que
dependem das condições do ambiente. Alguns organismos podem ter diferenças tão
visíveis, apenas em função do meio, que chegam a dar a impressão de que pertencem a
espécies diferentes, embora compartilhem uma mesma constituição genética. Essas
mudanças estão amplamente documentadas e recebem o nome de mudanças
“epigenéticas”.
Segundo Atlan, algumas respostas do DNA às condições do ambiente são
suficientemente estáveis para serem transmitidas aos descendentes. Daí sua conclusão de
que o DNA não é um “programa” genético, mas um conjunto de “dados” interpretados pela
totalidade da célula em sua relação com o ambiente através do metabolismo.
Sandín também menciona elementos que indicam a importância dessa interação com
o meio na configuração dos organismos. Há determinadas plantas de uma mesma espécie
que, crescendo em condições diferentes, acabam parecendo pertencer a espécies distintas.
Curioso também é o fato de que pesquisas com os tentilhões (aves estudadas por Darwin
nos Galápagos) revelaram que as diferenças em seus bicos são decorrentes do tipo de
alimentação e de condições ambientais e não de diferenças no genoma (cf. Werner &
Sherry, 1987; Grant, et. al. 2003).
Um exemplo incontestável da ação do meio é o splicing alternativo (cf. capítulo 3,
acima). Estudos comprovam que as diferentes cópias RNA resultantes de um mesmo gene
(com a conseqüente produção de proteínas diferentes a partir de uma mesma seqüência
genética) não são frutos de uma combinação ao acaso de éxons, mas envolvem um
conjunto de ações coordenadas, determinadas pelo ambiente no qual a célula está inserida
(Sandín, 2005). Em outras palavras, o processo de transcrição das informações contidas no
DNA, que resultará na produção de proteínas, depende das condições ambientais e não
pode ser entendido isoladamente.
Tudo isso se afasta da concepção darwinista, segundo a qual o meio apenas trabalha
com o que já está disponível através de mutações ao acaso, mas não produz mutações
como resultado de uma interação.
73
Para quem se interessar por um quadro com referências mais técnicas sobre o papel dos vírus no
funcionamento do genoma, com citações abundantes, ver Sandín, 2005.
119
Quanto aos ajustes a diferentes condições ambientais (um fenômeno diferente das
mudanças de organização), os sistemas de controle e regulação da informação genética
mostraram uma variada gama de mecanismos de resposta ao ambiente, tanto
epigenéticos: metilação, imprinting, RNA de interferência, silenciamento transgênico
(Mattick y Gagen, 2001; Elgin y Grewal, 2003; True et al., 2004); como genéticos:
splicing alternativo, retrogenes e retropseudogenes (Vitali, et al., 2003), transposições
e inserções de elementos móveis (Schramke y Allshire, 2003). Inclusive o
desenvolvimento embrionário responde, comprovadamente, às condições ambientais
(Rutherford y Lindquist, 1998; Hall, 2003) (Sandín, 2005).74
Com isso, chegamos ao conceito axial da doutrina prevalecente: o termo “mais apto”
(ou em sua versão “populacional”, a “eficácia biológica”). Os conhecimentos atuais
74
Mantive as referências entre parêntesis do artigo original para reafirmar o suporte que as afirmações de
Sandín têm em pesquisas reais.
120
Com relação à evolução, Sandín possui uma hipótese totalmente heterodoxa. Como
já disse acima, o conceito de evolução refere-se a mudanças de organização estrutural de
um organismo. Esse tipo de mudança, segundo o autor, não pode ser gradual, por ser um
fenômeno extremamente coordenado que afeta simultaneamente todo o organismo. A
organização estrutural de um ser vivo é determinada em etapas muito precoces do
desenvolvimento embrionário e está pouco sujeita a mutações aleatórias. Sandín defende a
idéia de mudanças bruscas de organização em determinados momentos da história da vida
e advoga o termo “transformação” para esses episódios (Sandín, 2005). Portanto, não há
uma evolução gradual a partir de pequenas modificações nos seres vivos, mas mudanças
bruscas e episódicas na estrutura dos organismos, que caracterizam o surgimento de novas
espécies.
Se, por um lado, tal idéia se distancia enormemente do paradigma darwinista, por
outro, aproxima-se dos registros fósseis disponíveis (umas das principais bases empíricas
de qualquer teoria da evolução). Como vimos no capítulo 2, a paleontologia não fornece
uma base fática para o gradualismo darwinista, o que levou Eldredge e Gould a elaborarem
um modelo específico (o equilíbrio pontuado) para adequar a teoria aos fatos. Sandín, por
sua vez, utiliza os dados da paleontologia para confirmar sua hipótese de que a evolução
ocorreu tal qual o registro fóssil nos revela: mudanças bruscas, em episódios específicos e
sem fases intermediárias (Sandín, 2006). Mas, com um detalhe importante: as mudanças na
organização de seres vivos que caracterizaram a evolução das espécies foram
acompanhadas por transformações bruscas nas condições ambientais. A pressão do meio
provoca reações diversas nos organismos, que podem gerar mudanças de caráter evolutivo.
Mas qual seria, para Sandín, o mecanismo das “transformações”?
121
[Uma] nova espécie surgiria repentinamente, mediante uma mudança substancial (tal
como se observa no registro fóssil) e comum a um considerável número de indivíduos
“infectados”, o que tornaria possível sua interfecundidade. A Seleção Natural já não
seria a “força impulsora” da evolução. Simplesmente seria o mecanismo de eliminação
dos desenhos defeituosos durante os longuíssimos períodos de estase evolutiva,
durante a qual, os indivíduos aptos (não os “mais aptos”) se reproduziriam sem
maiores problemas e com variações em aspectos não essenciais (em cuja origem, por
outra parte, não se pode descartar os “erros de cópia” dos retrovírus) (Sandín, 1997).
Nesse contexto, a Seleção Natural (...) ficaria relegada a um papel não só secundário
no processo evolutivo, senão que ocasional e vazio de conteúdo como mecanismo de
evolução. A competição não seria a força impulsora da evolução, já que novas
espécies surgiriam e amadureceriam em conjunto. O acaso, quer seja biológico ou
estatístico, ficaria ainda mais interditado pelo determinismo, o conteúdo teleológico
que implica a existência de uns “componentes da vida”, qualquer que seja sua origem
(...) (Sandín, 1997).
75
A síntese que segue reproduz quase que textualmente o resumo apresentado a mim pelo autor, em
comunicação por correio eletrônico.
76
Nosso planeta tem cerca de 4,5 bilhões de anos e a vida surgiu entre 3,8 e 4 bilhões e anos.
123
que o surgimento das primeiras células na Terra (as bactérias) nem foi obra do acaso, nem
de extraterrestres, senão que resultado de leis naturais ainda não totalmente conhecidas.77
As bactérias contribuíram com os processo celulares básicos e que se mantém até a
atualidade. As pesquisas de Gupta e Doolittle, citadas acima, revelam que os genes
responsáveis pelos processos básicos da vida (transmissão de informações genéticas e
metabolismo) são de origem bacteriana. Os vírus teriam se incorporado ao genoma das
bactérias, trazendo os programas embrionários e os processos de regulação genética dos
eucariontes, visto que essas funções são controladas atualmente por genes de origem viral.
O processo teria sido a formação e evolução do genoma como num jogo de montar, com
módulos pré-prontos, ou seja, conjuntos completo de genes que se combinaram e
provocaram modificações e recombinações.
No genoma dos seres vivos encontram-se muitos vírus endógenos com seqüências
completas e muitos outros elementos de origem viral, com pequenas modificações. Sandín
afirma que todos os genes que não são de origem bacteriana são de origem viral. Mais de
95% do genoma humano é formado por vírus endógenos, elementos móveis e seqüências
repetidas. Estes dois últimos (elementos móveis e seqüências repetidas) são derivados de
vírus que perderam (alguns não) as seqüências de bases que codificam o capsídio (a
camada que os envolve).
Os transposons (sequências de nucleotídeos que mudam de posição no genoma) são
78
derivados de vírus DNA e os retrotransposons (responsáveis pela formação das
seqüências repetidas) são derivados de retrovírus (vírus RNA).79 Os genes que controlam o
desenvolvimento embrionário são seqüências repetidas, resultado da ação de
retrotransposons e, portanto, são de origem viral.
Acreditava-se que a maior parte do genoma era inativa, pelo fato de não codificar
proteínas. Hoje se sabe que essa parte não-codificadora tem um papel essencial para as
funções celulares (além de ter função reguladora no genoma ela compõe uma totalidade
interagente; ver GERSTEIN et. al., 2007).
Conforme explica Sandín, todos os elementos de origem viral que compõem essa
parte do DNA também podem ser ativados mediante agressões ambientais, radiação,
deficiência ou excesso de nutrientes e até estresse emocional (como o vírus do herpes). A
ativação de vírus por fatores externos é um fenômeno constatado por experiências (ver
77
Margulis & Sagan (2002a), Schneider & Kay (1997) e De Duve (1997) afirmam exatamente o mesmo.
78
Para especialistas que querem conhecer o papel dos transposons em funções vitais importantes nos
mamíferos ver Van de Lagemaat, et. al. (2003).
124
Sandín, 1997). Ou seja, fatores externos podem ativar sequências virais, ocasionando um
rearranjo genômico por acréscimo, transposições ou duplicações de sequências inteiras de
bases e, consequentemente, novos organismos.
Curiosamente, há registros de distúrbios ambientais acompanhando a aparição de
novas espécies na história da vida. As diferenças genéticas de grandes grupos de seres
vivos que surgiram em episódios de mudanças ambientais drásticas são caracterizadas por
duplicação de genes (em maior ou menor escala) e reorganização genômica, ou seja,
resultado típico da ação dos transposons e retrotransposons – características que se
adaptam bem à hipótese de Sandín, mas de difícil encaixe nas mutações lentas e ao acaso
da teoria darwinista.
As bactérias e os vírus, portanto, deixam de ser concebidos como “microorganismos
patógenos que buscam reproduzir-se a todo custo” e que “competem entre si e com os
demais seres vivos”, para se tornarem os componentes fundamentais da vida. Para Sandín,
a ação patogênica freqüentemente ressaltada das bactérias e vírus seria uma resposta a
agressões no ecossistema que alteram seu equilíbrio natural.
Os vírus têm capacidades dinâmicas peculiares. As principais são as de: “infectar”
organismos – o que permite a transmissão horizontal de material genético –; inserir-se em
genomas, permanecer inativos e posteriormente recuperar a atividade; fazer cópias de si
mesmos e inseri-las em certos locais do DNA; e mover-se de posição no genoma. Tais
capacidades proporcionam a reorganização do genoma, com o conseqüente surgimento de
novos organismos através da transformação dos já existentes. Na idéia de Sandín, isso
explicaria a evolução (mudanças de organização) a partir de uma nova concepção,
radicalmente diferente da concepção darwinista. E, o mais importante, completamente
sustentada em dados reais e capaz de explicar inúmeros fenômenos que não são explicados
pela simplicidade das mutações aleatórias e seleção natural.
Adequada ou não para direcionar a pesquisa biológica (não me cabe definir tal
questão, nem defender teorias no campo da biologia), o certo é que a teoria proposta por
Sandín tem todas as características de um programa de pesquisa científico que pode se
candidatar a paradigma para a biologia evolutiva. Seu problema é ser por demais
heterodoxa e, por isso, pode enfrentar os “obstáculos epistemológicos” de que nos fala
79
Sobre os retrotransposons e seu papel no genoma humano ver Bannert & Kurth (2004).
125
Thomas Kuhn estava correto em sua afirmação de que a adesão a um paradigma não
tem motivação racional, mas é um processo de “conversão”. As idéias de Sandín sofrem a
resistência que as impedem de ser colocadas em debate.
A despeito do que afirmou Lakatos (1979), a escolha de um programa de pesquisa
não é uma escolha consciente a partir da constatação da degenerescência de um programa
anterior e da proficuidade de um novo. A adesão ao darwinismo, mesmo diante de tantas
anomalias, envolve questões doutrinárias e de crenças, muito mais do que certezas
científicas e racionais. Por isso, veremos ainda por muito tempo as idéias heterodoxas
serem ignoradas, rejeitadas sem análise ou lançadas no fogo da nova Inquisição (cujos
protagonistas não são mais os agentes da Igreja, mas das próprias universidades e
instituições científicas).
É mais provável que testemunhemos, durante ainda algum tempo, uma abundante
produção literária e científica que busque “salvar” o darwinismo, ao invés de vermos as
propostas discordantes serem colocadas em discussão e estudo – por melhores que se
apresentem e mesmo que resolvam uma quantidade maior de problemas empíricos. Novas
propostas só se tornam paradigmas após muito tempo, durante o qual a formação dos
novos cientistas ocupa um papel fundamental.
Uma coisa, porém, é certa: as reflexões de Sandín, Margulis e Behe (e outras
mencionadas de passagem neste livro), dão o necessário apoio para que se admita, pelo
menos, a pertinência da pergunta da introdução deste livro. De todas as reflexões decorre
80
Em poucas palavras, obstáculo epistemológico é um conjunto de fatores de diversas ordens, entre os quais
a linguagem e teorias prévias, que dificultam a aproximação ao objeto em função da formação de pré-
conceitos que configuram a subjetividade. Cf. Bachelard (1996).
81
O avanço a que me refiro é em termos de compreensão do mundo e não de manipulação do mundo. A
ciência é uma forma de conhecimento e não pode ser confundida com a tecnologia. Avanços tecnológicos e
manipulação genética não significam avanços na ciência como forma de compreensão do mundo.
126
uma forte suspeita, quase uma certeza, de que o século XXI irá presenciar o lento declínio
do darwinismo como paradigma científico.
127
CONCLUSÃO
Ciência dialógica
Conforme afirmei na introdução, a ciência é uma construção permanente de
conhecimentos acerca da natureza, resultante do diálogo dinâmico entre a consciência
humana e o mundo natural. As teorias não são descobertas – pois não estão prontas, à
nossa espera, em algum recanto ainda não explorado da natureza – mas, sim, criadas pelo
sujeito para dar inteligibilidade aos dados da experiência. Os fatos é que são descobertos,
mas não trazem consigo as teorias que os explicam.
A função da elaboração teórica é englobar os fatos conhecidos em uma síntese
racional e dar-lhes explicações coerentes, utilizando, para tanto, os conceitos possíveis em
cada época – conceitos já existentes ou novos, mas somente os que são possíveis em cada
estágio do conhecimento da humanidade. Os conceitos da teoria de Einstein não seriam
apenas estranhos e incompreendidos na Idade Média: seriam simplesmente impossíveis.
Os novos fatos que são descobertos pelo trabalho de pesquisa guiada por uma teoria
podem ou não se enquadrar no referencial teórico utilizado para se entendê-los. É natural
que a acumulação de novos dados desafie a teoria. Em um diálogo, os dois pólos
envolvidos são ativos na comunicação. Se a ciência é um diálogo do ser humano com a
natureza, não podemos reivindicar o monopólio da fala. Ou seja, podemos até querer que
os fatos se enquadrem nas teorias para que possamos entendê-los mais facilmente, mas tal
desejo deve ter um limite: a natureza também precisa “falar” ser “ouvida”.
Para que o diálogo se torne inteligível e intercomunicável, estabelecemos certos
“protocolos” a partir dos quais as informações do mundo real (a “fala” da natureza) são
interpretadas e entendidas por uma coletividade de cientistas e pela sociedade. Criamos,
em outras palavras, sistemas (compostos de teorias, leis, instrumentos de medida e regras
experimentais, etc.) a partir dos quais a “linguagem” da natureza é traduzida.
Na ausência desses sistemas, a “fala” da natureza é incompreensível. As chapas
radiográficas só se comunicam com o médico (e não com o paciente); as trajetórias das
partículas elementares em aceleradores de partículas só falam ao físico; os sinais de rádio
provenientes do espaço só dialogam com o astrofísico; a mudança de coloração resultante
da mistura de elementos químicos só se comunica com o químico; as seqüências do
genoma só falam aos biólogos e geneticistas, etc. Ou àqueles que, embora não sejam das
128
Galileu e outros. Por outro lado, as teorias deixam de ser científicas quando perdem o
apoio ou o controle dos dados, seja por carência de base factual, por flagrante contradição
com os dados disponíveis ou por incapacidade de explicar os fatos conhecidos.
Os cinco fatores supracitados que põem a ciência em movimento e a tornam
dinâmica (história, interesse social, tecnologia, ampliação da base fática e “insights”
emblemáticos do gênio humano), mereceriam uma análise à parte. Mas podemos
mencioná-los em uma breve reflexão.
A história se caracteriza pela predominância de determinados processos
civilizatórios em distintas épocas. Os grandes períodos históricos são caracterizados pela
hegemonia de uma forma de produção, de padrões mais ou menos fixos de sociabilidade,
de uma ética e, no nível mais fundamental, de uma ontologia (idéia sobre o ser da
realidade) a partir da qual se conformam as concepções gerais acerca da natureza, do
universo e do ser humano. Em cada época da história, a relação do ser humano com o
mundo é fundamentada nessas “matrizes interpretativas” (ou “racionalidade”). Suas
realizações, como literatura, arte, religião, filosofia, ciência, cultura, etc. refletem-nas de
alguma maneira.
Contudo, a relação entre as matrizes interpretativas predominantes e as realizações
espirituais do ser humano não é de determinação mecânica. Ainda que haja um fundamento
comum, é possível identificar uma grande variabilidade na forma concreta de expressão da
racionalidade que distingue cada período histórico e mesmo divergências profundas que
coexistem com o padrão hegemônico. Em outras palavras, o fundamento se manifesta de
diferentes maneiras, ao mesmo tempo em que existem formas de pensamento e ação
minoritárias não-hegemônicas, ou até contra-hegemônicas. Daí a pluralidade das
expressões espirituais em datas e locais distintos dentro de um mesmo período histórico em
que predominam matrizes interpretativas comuns.
Ou seja, a existência das matrizes predominantes não uniformiza a arte, a filosofia, a
ciência, etc. No entanto, todas essas expressões compartilham um fundamento comum. As
divergências existentes (manifestações não-hegemônicas ou contra-hegemônicas) não
possuem extensão e força necessárias para impedir a identificação da forma geral que
caracteriza a presença subjetiva do ser humano no mundo nos diversos períodos históricos.
É por esses motivos que a historiografia pode usar o recurso da periodização que,
embora passível de discussões em suas fronteiras, torna possível a identificação de
matrizes que caracterizaram o Ocidente na Antiguidade Clássica, nos impérios Helenístico
e Romano, na Idade Média e na Modernidade. Além disso, é possível também identificar a
130
82
Sobre as concepções gerais que orientaram o nascimento da ciência moderna e a vinculação da ciência com
concepções gerais de mundo (metafísicas e teológicas) que caracterizaram períodos históricos, ver Koyré,
1991; Rossi, 1992; Thuillier, 1994; Burtt, 1991 e Harré, 1988.
83
Interesse social aqui não se refere aos interesses da maioria, mas aos que advêm das relações de poder e
hegemonia em uma sociedade.
131
84
A excessiva exposição de Darwin na mídia por ocasião do bicentenário de seu nascimento é algo
absolutamente inédito com relação a qualquer personagem da ciência. O centenário do nascimento de
Einstein, em 1979, não teve sequer uma pequena fração de toda essa publicidade, nem os 100 anos da sua
teoria da relatividade, em 2005.
85
Kurzban & Houser (2005), em artigo publicado nas Atas da Academia Nacional de Ciências dos EUA,
afirmam que a existência da cooperação em larga escala entre seres humanos não aparentados é “um dos
maiores enigmas da biologia”. Seu artigo tenta, através de experimentos com humanos baseados na teoria dos
jogos e recorrendo a uma matemática complexa, contribuir para a interpretação de um fenômeno “estranho”
aos princípios evolutivos: a cooperação. Resta saber se o comportamento cooperativo “em larga escala entre
não aparentados” é um enigma para a biologia ou para uma determinada concepção de sociedade fundada na
doutrina liberal. Relações sociais humanas são problemas “científicos” ou regras de relacionamento
decorrentes da forma como o ser humano cria suas sociedades?
132
liberal, pode ser confirmada a partir da leitura do próprio Darwin.86 Esse é um aspecto a ser
pensado seriamente para percebermos o caráter histórico e de interesse social da teoria da
evolução hegemônica.
Vimos, através das reflexões de Behe, Margulis e Sandín, os sérios problemas que o
darwinismo tem encontrado no campo científico em função de seus conflitos com o que se
conhece hoje sobre a vida. Esse conhecimento deve-se tanto aos avanços da tecnologia
(que trouxeram novos aportes empíricos à pesquisa), como às novas abordagens teóricas
provenientes de outras ciências que ampliaram a maneira de se interpretar os fatos.
Um obstáculo epistemológico
Por outro lado, vimos também a conotação ideológica e doutrinária que a teoria da
evolução de Darwin assumiu no ataque perpetrado por seus expoentes às críticas de Behe e
na rápida menção que fiz sobre a resistência a, pelo menos, considerar com imparcialidade
a proposição de Sandín (ainda que seja para negá-la com argumentos científicos). Isso
significa que embora a ciência, considerada como uma atividade humana, seja dinâmica e
dialética, não é necessariamente dessa forma que aparece na cabeça dos cientistas.
Bachelard refletiu filosoficamente sobre esse tipo de contradição e cunhou, para explicá-lo,
o conceito de “obstáculo epistemológico” (Bachelard, 1996). Thomas Kuhn também
aborda o problema e afirma que a adesão a um paradigma não tem motivações racionais
(Kuhn 1979a;1979b). Esse tipo de resistência aos novos conhecimentos e o apego às idéias
já conhecidas já estava presente, no século XVII, nas reflexões de Francis Bacon sobre os
ídolos que impedem o avanço do conhecimento (Bacon, 1973).87
O que se pode concluir da reação de certos darwinistas (alguns da “elite” do
darwinismo) a qualquer tipo de crítica ou a elaborações fora de sua ortodoxia é que o
darwinismo está se transformando em um obstáculo epistemológico, pois não consegue
mais explicar o que a realidade nos mostra e impede que outras proposições o façam.
Bachelard afirma que o problema das teorias que se cristalizam na história e se fecham às
críticas é justamente esse: se, de início, contribuem com o entendimento do mundo real, o
86
Dizem alguns biólogos que a maioria esmagadora de seus colegas de profissão jamais leram sequer uma
obra de Darwin, mas somente as publicações posteriores da biologia e os livros técnicos utilizados na sua
formação acadêmica. Esse fato, se verdadeiro, dificulta a percepção da historicidade do darwinismo.
87
A peculiaridade de Bacon, que hoje, afastados de seu tempo, podemos julgar ingênua, é que ele acreditava
ser possível livrar-se totalmente dos ídolos. A ciência, para ele, seria uma atividade totalmente imparcial em
virtude da purgação dos obstáculos da subjetividade humana. Mas Bacon também percebia a dificuldade que
o ser humano tem para fazer uma transição de pensamento.
134
mesmo não o fazem quando se tornam estáticas frente a uma realidade e um conhecimento
sempre dinâmicos.
O futuro do darwinismo
Tenho, portanto, fortes razões para suspeitar que a pergunta da introdução (Darwin
será para o século XXI o que Newton foi para o século XX?) terá uma resposta afirmativa,
a partir da solidez e consistência das críticas que se podem dirigir ao paradigma dominante
na biologia e pela própria dinâmica histórica do conhecimento. Seria sensato acreditar que
todas as ciências passam por transições de paradigmas, mas que a biologia descobriu a
verdade final e imutável sobre a evolução? A biologia evolutiva chegou ao fim da história
logo que deu o primeiro passo – e justamente um passo no escuro, ou seja, quando ainda
não se conheciam os mecanismos básicos do desenvolvimento da vida?
Imaginar, no entanto, que um processo de crise e revolução será facilmente digerido
pelos cientistas é uma enorme ingenuidade. Às novas gerações de cientistas
(especificamente do campo das ciências biológicas, mas não excluindo outras áreas como a
física e a química) está colocado o desafio de manter a cientificidade da ciência na
explicação dos fenômenos que envolvem a vida. Isso implica um duplo desafio, um de
ordem científica e outro de caráter filosófico.
O desafio científico é manter as teorias adequadas ao âmbito factual que pretendem
explicar, sem abandonar o naturalismo científico. Ao mesmo tempo, é necessário cultivar a
concepção de que o empreendimento científico é algo dinâmico e dialético, abandonando a
visão que o trata como “descoberta” e “revelação da verdade” sobre a natureza – este é o
desafio de ordem filosófica. Para enfrentar ambos, é preciso disposição para superar os
dogmas científicos e a ideologia positivista que ainda prevalece no senso comum. Mais
ainda, faz-se necessário, igualmente, romper com a ideologia social dominante que
pretende ver a natureza como o espelho das relações sócio-econômicas criadas
artificialmente.
É preciso, também, deixar claro que a crise do darwinismo não é um assunto
doutrinário ou religioso, mas um tema de investigação da filosofia das ciências e um
problema científico. Sendo assim, não se pode afirmar que a derrocada do darwinismo
significará a vitória dos diversos tipos de criacionismo ou de alguma corrente filosófica ou
concepção social em particular. Mas, sem dúvida, a perda de justificação científica para
um modelo de relação social e econômica (o liberalismo) traz implicações enormes para o
135
debate filosófico e social. Sandín também reflete sobre isso de forma bastante interessante
em artigo com o sugestivo título Uma nova biologia para uma nova sociedade (Sandín,
2002b; 2006, p. 21-95).
A conhecida arrogância de Dawkins e sua constante exposição na mídia como uma
espécie de profeta do ateísmo e do egoísmo universal sustentam-se na crença de que o
darwinismo é uma teoria “cientificamente comprovada” e, conseqüentemente, eternamente
verdadeira e impassível de dúvidas ou de questionamento de qualquer ordem. Com uma
crise do paradigma darwinista, o caráter de “verdades inquestionáveis” que algumas
proposições metafísicas e sociais adquirem por estarem supostamente amparadas nas
“verdades científicas” do darwinismo, pode, finalmente, ruir. Dawkins e outros serão
obrigados a defender suas posições metafísicas e sociais a partir de argumentos filosóficos
e sociológicos e deixar de levar esse tipo de discussão para a ciência. Terão que convencer
baseados em argumentos e enfrentar o debate abertamente sem a proteção do “manto
sagrado” da ciência, que lhes confere autoridade sacerdotal e maior poder de predicação.
A ciência, como já afirmei mais de uma vez neste livro, limita-se à busca de causas
naturais para fenômenos naturais. Nenhuma religião, crença ou pressuposições metafísicas
e de ordem social podem ser empecilhos para o conhecimento da natureza ou para quem
quer adquiri-lo sem partilhar tais pressupostos. Embora pressuposições de diversas ordens
influenciem o trabalho da ciência, elas não podem tornar-se critérios de censura para a
investigação. E quando digo nenhuma religião, crença ou pressuposições metafísicas e de
ordem social, estou mesmo querendo dizer nenhuma: nem a de grupos fundamentalistas de
diferentes religiões, nem as de Dawkins e demais darwinistas ortodoxos.
Darwinismo e sociedade
Não podemos também separar a reflexão sobre os impactos da crise do darwinismo
da discussão sobre a crise geral da sociedade moderna e sua racionalidade – assim como
não se pôde separar o surgimento da teoria da evolução de Darwin das suas implicações
filosóficas e sociais.
A origem das espécies é citada insistentemente como um marco do desencantamento
do mundo e do ser humano que caracterizou o espírito da modernidade. São conhecidas as
influências de Darwin no anti-humanismo de Nietzsche e nas diversas doutrinas de
superioridade racial. Além disso, o liberalismo tornou-se um darwinismo social e não são
poucos os que acreditam, com convicção quase absoluta, que os conflitos sociais do
136
capitalismo e a competição desenfreada entre os seres humanos são regras naturais que
vigoram na natureza e fazem a vida evoluir. Se são naturais, acabam por não dever nada
aos sistemas econômicos e, dessa maneira, o Estado e as classes sociais dominantes
(interpretadas como “superioras”) estão isentos de qualquer culpa na configuração atual
das relações humanas. A exclusão social de populações inteiras seria simplesmente um
produto dessa regra natural. A situação social dos países periféricos, ainda que indesejada,
seria imutável porque são reflexos de leis da natureza, às quais o ser humano não pode
fugir.
Qualquer elaboração ou movimento social que pretendam reformular os parâmetros
que definem as relações humanas na atualidade, frente à crise global da sociedade
moderna, torna-se apenas um “ideal romântico”, sem possibilidade de concretização, já que
“as regras implacáveis” da competição, da luta pela sobrevivência e da vitória do mais apto
não são “invenções humanas”, mas “regras irrevogáveis da natureza”. Poucos parecem
saber que Darwin afirma textualmente que não as descobriu na natureza, mas conheceu-as
através de Spencer e Malthus (teóricos sociais) e as aplicou ao mundo natural.
Que impactos para o pensamento decorreriam de uma crise no paradigma
hegemônico das ciências biológicas que foi usado como fundamentação das idéias sociais
hegemônicas? Que novas reflexões a crise poderia trazer para as relações dos seres
humanos em sociedade?
Pessoalmente, não acredito que devamos estabelecer nossos padrões de
relacionamentos a partir de supostas “regras naturais” (sejam elas de competição ou
cooperação). O ser humano é livre para definir que tipo de sociedade vai construir para sua
própria sobrevivência.88 O que caracterizou a “humanidade” do ser humano foi
principalmente a capacidade de transcender às leis naturais e montar as suas próprias
regras de sobrevivência (cf. Abdalla, 2005).
Mas, se as leis naturais (ou melhor, a forma como se compreende tais leis a partir da
ciência) não podem servir de parâmetros para a organização da sociedade humana, pelo
menos não mais poderão ser aduzidas como argumentos “científicos” contra uma
sociedade diferente da que é montada sob os princípios do liberalismo econômico. Ou seja,
o darwinismo, uma vez tendo perdido seu status de verdade final sobre a vida, não poderá
mais ser empecilho para que o ser humano possa pensar livremente acerca de sua própria
sociedade e de seu comportamento.
88
Pude refletir sobre isso em Abdalla (2002, p. 130-139).
137
Novos desafios
Para aqueles que serão testemunhas do século XXI, é bastante provável que uma
nova revolução aconteça nas ciências. Desta vez, ao invés da física, a grande protagonista
será a biologia. Mudanças assim já ocorreram outras vezes na história e não significaram
“correção de erros”, mas transição de paradigmas.
Porém, a história das ciências, da mesma maneira que registra as revoluções, também
nos lembra da resistência dos setores mais conservadores a essas mudanças. Os
responsáveis pela Inquisição, em nome de princípios religiosos fundados mais na física
aristotélica do que na Bíblia, cometeram atos que até hoje nos repugnam. Os homens e
mulheres da ciência de hoje (e também da filosofia) devem refletir sobre se a sua maneira
de tratar a ciência não os está conduzindo ao apego a princípios transformados em
“sagrados” e se esse possível apego não os farão cumprir o papel de inquisidores do século
XXI. A capacidade de resgatar o espírito naturalista não dogmático e de entender a eterna
transitoriedade dos paradigmas será certamente o principal motor de uma nova ciência.
No momento, a crise do darwinismo é ainda latente e, por isso, as idéias heterodoxas
são repelidas e ridicularizadas, antes mesmo de serem debatidas. Quando, porém, essa crise
se tornar patente; quando os biólogos e biólogas das novas gerações começarem a se
questionar sobre a validade de seu paradigma frente aos enormes avanços no conhecimento
experimental e de outras disciplinas; quando, enfim, o peso da “doutrina” darwinista e da
visão social que ela carrega não for mais um obstáculo para a compreensão do mundo e
para a ousadia dos cientistas, será, então, o início da revolução científica.
Aí, os ratos se convencerão de que para se livrar do gato é preciso uma idéia factível
e não apenas convincente.
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