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Maurício Abdalla

A CRISE LATENTE DO
DARWINISMO
2

Para Francisco Bosco, físico e “filosofo natural”


3

Perguntemos, pois, aos cientistas: como pensais, quais são


as vossas tentativas, os vossos ensaios, os vossos erros?
Quais são as motivações que vos levam a mudar de
opinião? Por que razão vós vos exprimis tão sucintamente
quando falais das condições psicológicas de uma nova
investigação? Transmiti-nos, sobretudo, as vossas idéias
vagas, as vossas contradições, as vossas idéias fixas, as
vossas convicções não confirmadas.
(G. Bachelard, A filosofia do não).
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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................6
Introdução...............................................................................................................14
De que trata este livro? ................................................................................14
Um aparte: Naturalismo científico e naturalismo metafísico ........................17
De volta ao assunto .....................................................................................26
1. Esclarecimento metodológico..............................................................................27
Concepção epistemológica de fundo ............................................................27
Um exemplo histórico de mudança paradigmática .......................................29
O que nos dizem os exemplos históricos? ....................................................32
As mudanças na ciência são lentas...............................................................35
Novas perspectivas para as ciências da vida.................................................37
2. A luz de Darwin ..................................................................................................42
O que é central no darwinismo?...................................................................42
3. Um novo mundo dentro da célula ........................................................................52
O desencantamento......................................................................................52
... e o re-encantamento.................................................................................54
Implicações para o debate científico ............................................................56
A simplificação oculta a realidade ...............................................................57
O real é mais complexo (esclarecimentos científicos) ..................................58
Indo ao beco sem saída ................................................................................61
A simplicidade das explicações vs. a complexidade da realidade .................63
Ciência ficção..............................................................................................68
Ainda há um mundo a ser explorado pelas ciências da vida .........................69
4. Darwin na berlinda..............................................................................................71
4.1. A crítica de Behe ..........................................................................................74
A base da crítica ..........................................................................................74
Preenchendo as lacunas com ciência ............................................................78
Qual é a questão? ........................................................................................83
A resposta do darwinismo ...........................................................................84
Tais respostas são satisfatórias? ...................................................................91
Engano ou desespero? .................................................................................94
A crítica mais sensata a Behe ......................................................................96
5

4.2. A crítica de Margulis ....................................................................................99


A base da crítica ..........................................................................................99
Confronto com o darwinismo .................................................................... 102
DNA: programa ou dados? ........................................................................ 104
O mistério da origem da vida ..................................................................... 105
As anomalias se multiplicam ..................................................................... 108
4.3. A crítica de Máximo Sandín ....................................................................... 109
A base da crítica ........................................................................................ 109
Um retorno à ciência empírica ................................................................... 112
Uma nova teoria da evolução..................................................................... 115
O papel dos vírus na evolução ................................................................... 116
Lamarck tinha razão? ................................................................................ 117
Evolução é diferente de adaptação ............................................................. 119
O que a natureza seleciona? ....................................................................... 121
Síntese da proposta evolutiva de Sandín .................................................... 122
4.4. Pequeno balanço do debate......................................................................... 125
Conclusão ............................................................................................................. 127
Ciência dialógica ....................................................................................... 127
Ciência dinâmica e dialética ...................................................................... 128
A teoria da evolução é imutável? ............................................................... 132
Um obstáculo epistemológico .................................................................... 133
O futuro do darwinismo............................................................................. 134
Darwinismo e sociedade ............................................................................ 135
Darwinismo e naturalismo científico ......................................................... 137
Novos desafios .......................................................................................... 138
Referências Bibliográficas .................................................................................... 139
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APRESENTAÇÃO

Penso que a história que precede a elaboração deste livro é interessante demais para
deixar de ser compartilhada com os leitores. O conhecimento do caminho que percorri em
relativamente pouco tempo – que começa com o propósito de defender a Teoria Darwinista
da Evolução e termina na forte suspeita a respeito de sua capacidade explicativa como
teoria científica – não é essencial para o entendimento das idéias aqui apresentadas, mas
pode servir para esclarecer as verdadeiras motivações da pesquisa que culminou no artigo,
publicado em espanhol, intitulado La crisis latente del darwinimo.1 Por mais estranho que
possa parecer, o objetivo inicial da pesquisa era defender a pertinência do darwinismo
como teoria científica, mas, ao mesmo tempo, contestar sua adequação como teoria social
ou princípio fundamentador das relações humanas. As conclusões do estudo, no entanto,
foram bem diferentes. Nestas páginas iniciais, pretendo esclarecer as razões do desvio de
rota que impediu a realização do objetivo da investigação.
A história começa com a publicação, em 2002, de meu livro “O princípio da
cooperação: em busca de uma nova racionalidade”. A idéia básica do livro, em resumo, é
de que a cooperação deve ser o princípio fundamentador das relações humanas e da
organização sócio-econômica do mundo, para que possamos superar os graves problemas
que a humanidade enfrenta na atualidade. Essa idéia se fundamenta na constatação de que
o ser humano evoluiu como ser humano (e não simplesmente como uma espécie a mais do
reino animal) porque foi capaz de estabelecer relações cooperativas intra-específicas. Isso
pode ser resumido nas palavras do biólogo Humberto Maturana:

A origem antropológica do Homo Sapiens não se deu através da competição, mas sim
através da cooperação. (...) O que nos faz seres humanos é nossa maneira particular de
viver juntos como seres sociais na linguagem (Maturana, 1999, p. 185).

As sociedades atuais – que surgiram recentemente na longa história antropológica do


Homo sapiens moderno (contada em aproximadamente 150 mil anos) – estruturam-se pelo
princípio da competição e, por isso, colocam-se em contradição com a maneira pela qual o
ser humano enfrentou o risco da extinção e se tornou uma espécie tão diferente das demais,
não tanto por sua constituição genética, pouco diferente da dos chimpanzés e mesmo dos
ratos, mas por suas realizações concretas. Não é de se surpreender, portanto, que o modelo

1
O artigo foi publicado em 2006 na revista Asclepio, año LVIII, n.1. enero/junio, p. 43-94.
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de sociedade e de relações humanas baseado na competição e no individualismo, que hoje


se apresenta como hegemônico, coloque diante de nossa espécie a ameaça do
desaparecimento.
No entanto, a defesa da cooperação como princípio fundamentador das relações
humanas viu-se diante de um obstáculo que eu não supunha tão poderoso. Após a
publicação do livro, escutei inúmeras vezes que o princípio da cooperação “contradiz as
leis da natureza”, baseadas supostamente na competição e na luta de todos contra todos.
Essa idéia – que parte de uma “certeza científica” e solidifica-se em uma ideologia social –
impregna a cosmovisão contemporânea de maneira mais intensa do que se possa imaginar.
Li, certa vez, o texto de um filósofo que afirmava ser o capitalismo o sistema perfeito, uma
vez que suas regras estão de acordo com as “leis naturais”. O texto dizia que o socialismo
jamais poderia dar certo, por exigir relações que estão em contradição com as leis naturais
da evolução da espécie. Por isso, justificava o filósofo, o capitalismo triunfou no mundo.
Não é difícil identificar a origem científica dessa ideologia social. Pode-se ver
claramente o rosto de Darwin por trás de cada uma das afirmações a respeito da natureza
competitiva do ser humano, ou do primado da luta pela sobrevivência, com a conseqüente
seleção do mais apto, nas relações sociais. Minha opinião, no entanto, era de que Darwin
jamais poderia ser responsabilizado pelo uso ideológico que se fazia de suas idéias
científicas. Assim como a maioria, eu também acreditava na necessidade de se defender o
darwinismo científico diante do que, supostamente, não passava de uma “distorção” de sua
teoria, uma “aplicação social espúria” de leis científicas perfeitamente válidas para o
mundo natural, mas inapropriadas para as relações humanas.
Porém, diante de um obstáculo tão vigoroso à idéia do princípio da cooperação,
fazia-se necessário enfrentar o debate com rigor. Tal era o objetivo inicial da pesquisa:
validar o darwinismo como teoria científica adequada à compreensão da natureza e da vida
e, ao mesmo tempo, argumentar a respeito de sua inadequação para a organização da
sociedade e para a fundamentação das relações humanas. No fundo, queria contestar as
afirmações de que a defesa da cooperação como princípio baseava-se em um idealismo
romântico diante da implacável lei natural da competição.
Para dar o primeiro passo nessa direção, pus-me a estudar minuciosamente a teoria
de Darwin e o neodarwinismo, bem como as pesquisas mais atuais a respeito da evolução
da vida e sua complexidade – que incluem áreas como a genética, bioquímica e
microbiologia. Foi nesse momento que as primeiras sinalizações que indicavam a
necessidade de um desvio de rota apareceram.
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Embora o objeto estudado pertencesse às ciências naturais, minha aproximação era


de filósofo, não de cientista – e, particularmente, não era de biólogo. Alguns filósofos
cultivam um certo costume de suspeitar das coisas. Pertenço a essa categoria. Alguns
dados de pesquisas sobre a complexidade da vida começaram a trazer-me dificuldades para
enquadrá-los e entendê-los à luz da descrição darwinista da evolução. Inicialmente, atribuí
essas dificuldades à minha falta de competência científica. Confesso que perdi boas horas
tentando apaziguar os conflitos de minha mente, simplesmente tentando conformar-me
com o fato de que realidades tão complexas pudessem ter-se formado apenas pelas
mutações aleatórias controladas pela seleção natural! Os dados que não se encaixavam
nessa descrição, as lacunas enormes que apareciam e a insuficiência de alguns relatos
pretensamente explicativos eram considerados apenas “detalhes não compreendidos” por
aqueles que, como eu, não tinham formação científica oficial.
Porém, quanto mais a investigação avançava, mais os “detalhes” se avolumavam.
Percebi que, se quisesse ser rigoroso na pesquisa, era necessário investigar se havia
cientistas para os quais esses “detalhes” pudessem representar um problema científico.
Esse foi o primeiro desvio de rota do objetivo inicial. A questão agora era saber se o
darwinismo era questionado também por cientistas (em particular biólogos) ou se todos os
seus postulados eram consensuais.
Quero adiantar – pois ficará claro na introdução – que descartei previamente
qualquer crítica religiosa ao darwinismo. O chamado “criacionismo” não foi sequer
considerado como questionamento possível à teoria darwinista da evolução. Procurei
encontrar críticas científicas em artigos e livros que tratassem do tema.
Comecei a convencer-me de que o desvio de rota era essencial quando me deparei
com uma série de autores que, implícita ou explicitamente (a maioria implicitamente),
apontavam falhas na descrição darwinista da evolução. As idéias dos biólogos Francisco
Varela e Humberto Maturana distanciavam-se da ortodoxia darwinista. Stephen Jay Gould
apontava alguns problemas na teoria. Henry Atlan propunha uma interpretação bem
diferente do simplismo da relação DNA-fenótipo. Stuart Kauffmann reclamava por uma
nova teoria da evolução que incluísse a idéia de complexidade. A propósito, identifiquei
que a maioria dos autores que tratavam a vida como um sistema complexo tinha uma
abordagem que não se adequava à descrição darwinista, mas poucos questionavam
explicitamente o paradigma evolucionista vigente.
O prêmio Nobel Christian de Duve (em Poeira Vital, 1997), por exemplo, descreve a
origem da vida como algo de uma complexidade fantástica, cuja improbabilidade como
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obra do acaso só pode ser superada com a concepção da vida como um “imperativo
cósmico”, fruto de leis naturais passíveis de serem conhecidas pela bioquímica. No
entanto, afirma ele, a partir de um certo ponto, com a vida já formada, tudo passa a ocorrer
por mutações aleatórias e pela ação da seleção natural. A forma, porém, como o autor
defende o darwinismo pareceu-me visivelmente descolada do restante da explicação. Não
fica claro, por exemplo, porque as leis bioquímicas deterministas que deram origem à vida
encerraram repentinamente seu trabalho e cederam espaço ao acaso e à seleção natural.
Essas leis não poderiam ter continuado a agir no desenvolvimento da vida, na sua
organização e reorganização e, conseqüentemente, na evolução das espécies? Por que o
acaso entra em cena? Por que a evolução não poderia ser também um processo
determinista, ocorrendo em situações peculiares, complexas, irrepetíveis e imprevisíveis?
Em minha análise, a forma como de Duve e outros autores evocavam as regras
darwinistas – como início ou conclusão abrupta de um relato repleto de complexidade – era
muito mais retórica do que explicativa.
Nessa mesma fase da investigação, encontrei, por acaso, o livro de Michael Behe, A
caixa preta de Darwin (1997a). Não tinha ainda conhecimento de toda a polêmica em
torno dele nos EUA. Interessei-me pelo título e pelo texto da contracapa. Era, para mim,
apenas mais um livro de um cientista insatisfeito com o darwinismo. A primeira parte foi
profundamente instrutiva. Os questionamentos levantados eram bastante diretos e
profundos e baseavam-se em explicações estritamente científicas. O argumento de Behe
contra o darwinismo pareceu-me (e ainda me parece) bastante consistente.
Mas a segunda parte do livro apresenta uma solução decepcionante: a proposição do
Design Inteligente. Ao invés de buscar causas naturais para os fenômenos naturais –
essência (e limite) do conhecimento científico – Behe buscou no sobrenatural a solução
para os problemas da teoria hegemônica. Não era bem o tradicional criacionismo, visto que
o autor não questionava o fato da evolução, mas uma forma de transcendentalismo que em
nada ajuda o conhecimento científico. A proposição acabou por desviar o impacto da
primeira parte do livro para a infrutífera polêmica “evolucionismo x criacionismo”.
A estratégia de Behe foi totalmente equivocada, mesmo para seus propósitos. Ao
apresentar sua concepção transcendentalista no mesmo livro em que apresentou as críticas,
Behe afastou-se de todos os críticos do darwinismo que não se sustentam em argumentos
transcendentais e permitiu que os sólidos argumentos da primeira parte de seu livro fossem
quase que totalmente ignorados em função da segunda. Os defensores mais “populares” do
darwinismo puderam esquivar-se das respostas aos questionamentos e concentrar-se
10

apenas na proposição do Design Inteligente. O resultado, ao invés de um debate científico


instrutivo, foi muito mais uma guerra religiosa entre crentes e ateus que queriam amparar
sua crença ou não-crença em argumentos científicos. Enfim, desperdiçou-se uma ótima
oportunidade para se debater os limites do paradigma das ciências biológicas.
Para a minha investigação, a solução apresentada por Behe levantou suspeitas acerca
da validade dos seus argumentos científicos contra o darwinismo. Por rigor metodológico,
deveria procurar, nos artigos de defensores do paradigma vigente, as respostas a críticas
tão diretas e incisivas. Pus-me, então, a procurar a contra-argumentação darwinista para os
questionamentos de A caixa preta de Darwin. Como será visto no capítulo 4 (seção 4.1),
não encontrei tais respostas, ou, quando as encontrei, eram profundamente insatisfatórias.
Tive, portanto, a certeza de que o darwinismo apresentava sérios limites. Não mais
apenas como ideologia social, senão que também como teoria científica. Se uma teoria não
é mais capaz de abrigar os dados, de apresentar soluções às lacunas que deixa em aberto e
nem de responder às críticas que lhes são dirigidas, sua capacidade explicativa está
seriamente comprometida. Nas palavras de Thomas Kuhn, isso é um sintoma de crise.
A conclusão à qual o primeiro desvio de rota me conduziu foi a de que o darwinismo
precisava de uma reformulação que o adaptasse à ciência do século XXI. Aos poucos,
porém, percebi que era necessário mudar mais uma vez a direção da pesquisa. Tal
percepção foi provocada inicialmente pela leitura de Lynn Margulis.
Opositora mordaz do neodarwinismo, a bióloga de Massachusetts é uma crítica
acima de qualquer suspeita. Membro da National Academy of Science, e respeitada nos
círculos “oficiais” da ciência, Margulis apresenta uma teoria da evolução bastante
contrastante com os princípios do darwinismo. Ela, contudo, afirma ser apenas contra o
neodarwinismo, e não contra o darwinismo original. Comentarei sobre isso no capítulo 4
(seção 4.2). O que gostaria de adiantar aqui é que as idéias de Margulis foram definitivas
para que eu me convencesse de que apenas uma nova teoria da evolução pode trazer a
explicação de um fenômeno tão complexo como o desenvolvimento da vida. A natureza
que Margulis nos apresenta tem sentido determinista, é simbiótica e cooperativa, muito
mais do que aleatória e competitiva.
Nesse ponto da pesquisa, mudei completamente o objetivo. Queria agora levantar as
seguintes questões: o darwinismo é uma teoria em crise, no sentido kuhniano da palavra? É
possível uma teoria da evolução não-darwinista, capaz de dar sentido às inúmeras
complexidades e aos dados recentes das pesquisas genéticas, bioquímicas e
microbiológicas? A biologia necessita passar por uma revolução científica?
11

Como “não-biólogo”, não me caberia responder às questões em definitivo, tampouco


propor qualquer teoria científica alternativa. No entanto, como filósofo que escolhe a
ciência como objeto, poderia ao menos propor o debate e analisar o contexto científico nos
quais as questões podem ganhar relevância. A investigação prosseguiu, mas, agora, com
um objetivo diferente.
As buscas levaram-me aos estudos do biólogo da Universidad Autónoma de Madrid,
Máximo Sandín. Menos conhecido que os demais autores pesquisados, Sandín apresenta
uma teoria completamente em contradição com os postulados darwinistas. Sua heterodoxia
poderia colocá-lo no rol dos “cientistas excêntricos”, não fosse a abundância de dados que
se encontra em seus artigos e livros, todos extraídos das mais respeitadas publicações
científicas mundiais. Seus escritos rejeitam por completo o darwinismo e o acusa de ser
uma mera doutrina social aplicada à natureza.2
Sandín não se limita à crítica aos postulados darwinistas. Também apresenta uma
teoria da evolução alternativa (como será visto no capítulo 4, seção 4.3) que, embora não
tenha sido totalmente criada por ele, recebeu de suas mãos um desenvolvimento que a
coloca em sintonia com as mais recentes pesquisas nas áreas da genética e microbiologia.
Em sua teoria, os vírus cumprem um papel fundamental na evolução das espécies.
Surpreendentemente, o papel dos vírus na evolução e sua presença em seqüências
genômicas responsáveis por funções vitais essenciais têm sido relatados por inúmeras
publicações científicas recentes.
É impossível não reagir à proposta de Sandín. Seus artigos estão publicados em
revistas do campo científico e acadêmico e em livros, além de serem facilmente
encontrados pela Internet. Se, do ponto de vista científico, suas idéias estivessem “erradas”
ou fossem facilmente contestáveis, certamente teríamos diversas respostas publicadas.
Quando questões secundárias do darwinismo são questionadas por grupos extra-
acadêmicos – na maioria das vezes fundamentalistas e minoritários, como certos grupos de
criacionistas militantes – não faltam cientistas para lhes responderem. Questionei-me,
então, sobre o porquê da inexistência de um debate científico sério em torno das propostas
de Máximo Sandín. O que está ao meu alcance dizer é que tais idéias são fortemente
convincentes. Se os guardiões da ortodoxia quiserem proteger-nos de idéias “equivocadas”,
precisam urgentemente levar a sério os seus questionamentos.

2
Isso o próprio Darwin admite na Origem das espécies, como será visto.
12

Até que algum cientista, em particular algum biólogo, demonstre a invalidade


científica da teoria da evolução proposta pelo biólogo de Madri, sustento a conclusão de
que é plenamente possível uma teoria científica não-darwinista da evolução. Dizer, porém,
qual teoria se tornará um novo paradigma está totalmente fora de minha competência.
Cabe-me simplesmente afirmar que o darwinismo não detém a exclusividade da explicação
sobre evolução e que, portanto, evolucionismo não é sinônimo de darwinismo.
Por tudo isso, cheguei à firme convicção de que o darwinismo é uma teoria no limiar
da crise, desde que a analisemos sob o ponto de vista estritamente científico e
epistemológico. As razões dessa afirmação estão apresentadas neste livro.
Tão logo comecei a ter oportunidades de colocar o assunto em pauta,3 começaram-se
as preparações para a comemoração do bicentenário de Darwin em 2009. Os preparativos
eram mais para uma festa do que para um debate crítico. Jamais foram vistas tantas
celebrações para uma teoria científica e o tom defensivo (diria até quase sectário) da
propaganda darwinista me fizeram perder as esperanças de levar o debate crítico adiante.
Alguém iria querer fazer questionamentos no meio da festa? Perguntei-me sobre o porquê
de tanta propaganda para uma teoria que pretende apenas explicar o funcionamento da
natureza. É claro que razões sócio-ideológicas pesaram a favor da intensidade das
festividades e da massiva celebração do autor da teoria da evolução por seleção natural.
Ainda acho difícil entender por que poucos levantam suspeita sobre uma teoria quando
todas as teorias científicas são passíveis de questionamentos de diversas ordens.
Se, por acaso, as reflexões aqui presentes chegarem a vir a público, espero que o
leitor, ao menos, aceite o debate e não deixe sua capacidade crítica embotar-se diante da
propaganda massiva.
Enfim, do objetivo inicial de minha pesquisa, restou apenas a conclusão de que a
proposta do princípio da cooperação não está em contradição com nenhuma outra teoria a
não ser o liberalismo. A natureza é muito mais bela e harmoniosa do que possa supor uma
teoria científica baseada nos princípios sociais liberais de Malthus e Spencer. Não será
mais preciso tentar harmonizar a teoria da cooperação com as “leis da natureza” e a
biologia. A base teórica da biologia é que, talvez, precise fazer as pazes com a
complexidade, simbiose, integração e cooperação que a ciência experimental vem, cada
vez mais, descobrindo na natureza. Mais que isso, precisa também estar aberta ao novo

3
Quero destacar aqui as duas memoráveis oportunidades que tive de debater o tema na Faculdade de
Biologia da Universidad Autónoma de Madrid, a convite do dr. Sandín, em 2005 e 2006, e a receptividade de
um significativo grupo de alunos de biologia daquela universidade.
13

diálogo que uma parcela da humanidade tem buscado estabelecer com seu mundo social e
natural.
14

INTRODUÇÃO

De que trata este livro?


A questão central que desejo levantar com este livro pode ser expressa da seguinte
maneira: Darwin será para o século XXI o que Newton foi para o século XX? Porém, é
preciso esclarecer de que forma desejo abordá-la. Trata-se de uma investigação acerca dos
limites de uma teoria científica bem estabelecida, tendo como foco sua capacidade de lidar
com os problemas que lhe são colocados pelo próprio desenvolvimento da ciência. O
background desta discussão é o problema (já velho, mas ainda atual) do status das teorias
científicas. Seria a ciência a portadora de verdades definitivas acerca do mundo, uma
atividade de descoberta dos segredos da natureza através da generalização de observações
cuidadosas e experiências perfeitamente controladas, que também fornecem sua “prova”?
Ou as teorias científicas são construções teórico-racionais úteis, resultantes de um diálogo
dinâmico entre a subjetividade humana e o mundo natural, cuja veracidade possui caráter
historicamente provisório? As verdades teóricas das ciências são tão inquestionáveis
quanto a observação coletiva de um fato, ou estão relacionadas a um determinado período
histórico e a um dado nível de relacionamento entre as potencialidades do conhecimento
humano e o comportamento do universo em si mesmo?
A análise da teoria darwinista da evolução pode trazer contribuições ao debate bem
fundamentado sobre esse tema. No entanto, é preciso deixar claro que analisar a questão
expressa na pergunta do início do parágrafo anterior não significa respondê-la de forma
definitiva. O propósito deste livro é tão somente avaliar sua pertinência e refletir sobre as
conseqüências de uma possível crise da base teórica das ciências biológicas. Com efeito,
não há elementos suficientes nos dias atuais que nos permitam uma resposta categórica
sobre uma possível crise do darwinismo neste século, pois inúmeros fatores – que vão
desde os resultados da ciência experimental até a psicologia dos cientistas, passando pelas
implicações ideológico-sociais da biologia – influenciam os resultados. Porém, não é
possível negar, pelas razões que serão apresentadas nos capítulos seguintes, que o debate
se faz cada vez mais necessário, oportuno e relevante.
15

Não há dúvidas sobre o fato de que o darwinismo, e mais especificamente o


neodarwinismo, ainda é um paradigma solidamente estabelecido nas ciências biológicas.4
Não é comum encontrarmos críticos do darwinismo entre cientistas e professores de
biologia. Também na sociedade a teoria da evolução de Darwin é considerada a explicação
científica “exata”, ou “provada”, para os fenômenos que envolvem a evolução da vida e até
sua origem, ainda que nem todos compreendam exatamente o que seja o darwinismo
científico. Conhecidos defensores e divulgadores da ortodoxia neodarwinista,
principalmente os mais populares como Richard Dawkins (1989; 1996; 2001) e Carl
Zimmer (1999; 2003), escrevem e falam como se discorressem sobre a verdade final,
irrevogável, inquestionável e possível de ser aplicada a todas as dimensões da vida.5
Muitos acreditam haver uma explicação darwinista para todas as questões, desde o
intrincado problema da origem da vida até a complexidade de sua organização bioquímica
em nível molecular, além da consciência, do comportamento humano e até de nossos
sentimentos, crenças e realizações culturais. A maioria da comunidade científica também
parece estar convencida de que a Teoria Sintética é a chave perfeita para orientá-la em suas
investigações sobre a vida, sua origem e evolução, e que dá pleno sentido aos fenômenos
pesquisados.
Tais fatores poderiam, com razão, colocar sob suspeita a hipótese de uma crise. A
julgar por esse quadro, o questionamento sobre uma possível crise do darwinismo,
principalmente no contexto caloroso das celebrações do bicentenário de seu criador,
poderia ser interpretado como uma especulação sem sentido, fruto da mente criativa de
cientistas excêntricos ou de filósofos ansiosos por novidades e ávidos por levantar
polêmicas desnecessárias.
No entanto, a despeito do que se apresenta ao grande público, nos bastidores da
ciência há várias mostras de que determinados campos de investigação sobre a vida têm
desafiado o modelo interpretativo oferecido pela teoria hegemônica – embora
pouquíssimos cientistas pareçam dispostos a reconhecer e enfrentar o desafio. A aluvião de
dados, resultantes de um sem número de pesquisas, traz, a cada momento, novos
conhecimentos e grandes surpresas que podem levar o paradigma darwinista a um ponto

4
O neodarwinismo (também chamado de Teoria Sintética) é o nome dado à síntese da teoria da evolução de
Darwin, apresentada em A origem das espécies, com as descobertas da genética e das leis da hereditariedade,
que Darwin não conhecia (embora Mendel as tenha formulado na mesma época em que foi apresentada a
teoria da evolução por seleção natural).
5
Zimmer, embora não seja biólogo – e sim jornalista científico – tem se destacado como um grande
divulgador da ciência e tem um enorme acesso ao grande público. Citei aqui os mais populares, mas entre os
16

crítico de tensão. Da luta para adaptar-se ao progresso incessante do conhecimento


empírico dos fenômenos biológicos e dar inteligibilidade à grande quantidade de dados
provenientes principalmente da bioquímica, genética e microbiologia, ou o darwinismo
sairá vitorioso e robustecido ou passará para a história como um paradigma superado. A
enorme quantidade de conhecimentos e dados a respeito da vida, gerada pelas pesquisas
das últimas décadas, tem revelado coisas surpreendentes. Talvez pela ausência de uma
síntese teórica que os interprete e organize, esses conhecimentos e dados não figuram nos
livros de divulgação e nem chegam ao conhecimento do público não especializado.
O que pretendo demonstrar com este livro é que, apesar da hegemonia conquistada
pelo darwinismo, investigações mais recentes têm criado um certo clima de suspeita e
insatisfação entre um crescente número de cientistas. Não nos é possível afirmar o que
acontecerá no futuro, mas podemos, ao menos, dizer com toda certeza que uma espada de
Dâmocles foi colocada sobre a cabeça de Darwin.
Na verdade, o darwinismo nunca deixou de ter opositores e sempre esteve submetido
a questionamentos de diversas ordens. A oposição mais conhecida – porque mais
divulgada – sempre partiu dos chamados “criacionistas”, ou seja, daqueles que defendem a
necessidade da ciência reconhecer um ser ou uma inteligência superior que age diretamente
no desenho e criação dos seres vivos. Durante mais de um século, os criacionistas têm
apresentado questionamentos à teoria da evolução por seleção natural. A maioria deles,
porém, pôde ser respondida por engenhosas argumentações dentro da teoria darwinista, ou
por algumas modificações em sua forma, que não comprometem sua estrutura
fundamental. Trata-se, afinal, de um debate muito mais “religioso” do que científico.
Contudo, os desafios atuais a que me refiro são substancialmente diferentes, pois
estão relacionados ao avanço do próprio conhecimento científico em níveis da realidade
desconhecidos até relativamente pouco tempo e que apresentam fenômenos desafiadores
para a estrutura fundamental da teoria vigente sobre a vida.
A reflexão aqui apresentada ficará dentro dos limites dos questionamentos científicos
ao darwinismo. Entretanto, a polêmica entre “criacionismo” e “evolucionismo” tornou-se
tão acalorada (e, ao mesmo tempo, tão confusa) que acabou por ofuscar quase toda
reflexão séria sobre o darwinismo como paradigma científico. A confusão, inflada pela
mídia, tornou-se tão grande que chegamos a um ponto em que qualquer questionamento
científico ou epistemológico apresentado à teoria darwinista da evolução é imediatamente

que defendem a perfeição do neodarwinismo se podem encontrar Jerry A. Coyne, Allen H. Orr, Douglas J.
Futuyma, John Maynard Smith, Daniel Dennett e muitos outros.
17

respondido com críticas ao criacionismo, ainda que a resposta careça visivelmente de


conexão lógica com o questionamento apresentado. Mesmo quando um crítico do
paradigma darwinista não demonstra ter qualquer vínculo com doutrinas criacionistas,
suspeita-se (e até se afirma publicamente) de que é “um criacionista disfarçado”.
Intencional ou não, o fato é que a inflação da polêmica criou uma blindagem que
protege o darwinismo de qualquer questionamento. O “escudo protetor” tem dupla ação:
desloca o foco da crítica para questões metafísicas,6 ao mesmo tempo em que espalha entre
cientistas e estudantes de biologia o temor de serem acusados de fortalecer o
fundamentalismo religioso caso levantem qualquer suspeita, por mínima que seja, a
respeito das capacidades explicativas de seu paradigma.
Para evitar a interferência inconveniente dessa polêmica no debate que ora proponho,
é preciso esclarecer algumas questões que colocam a discussão em seu devido lugar. Tais
esclarecimentos referem-se às formas como o darwinismo pode ser compreendido e ao
papel da ciência no conjunto maior do conhecimento humano. Para isso, farei uma breve
reflexão sobre ciência e metafísica, com o objetivo de traçar uma distinção conceitual entre
o que podemos chamar de naturalismo científico e naturalismo metafísico.

Um aparte:
aparte: Naturalismo científico e naturalismo metafísico
O entusiasmo dos primeiros modernos com o conhecimento da natureza
proporcionado pela Revolução Científica do século XVII teve conseqüências que perduram
até os dias atuais. Grande parte da nossa concepção sobre a ciência e seu papel no
conhecimento é herança daquela época e do Iluminismo do século XVIII. Porém, afastados
alguns séculos no tempo, podemos, atualmente, lançar um olhar histórico-crítico sobre o
ideal de ciência que predominou na modernidade.
No contexto social do período feudal, caracterizado por uma economia basicamente
agrária e pela estrutura estática de poder e de castas sociais, os conhecimentos das artes
práticas eram suficientes para movimentar a vida cotidiana. Para a compreensão e
explicação dos fenômenos naturais em nível mais erudito, recorria-se aos conhecimentos
das coisas que estariam “além” da natureza (no grego: meta tá fysiká). A natureza a ser
explicada pelo conhecimento erudito limitava-se ao que era revelado no âmbito da

6
O livro de Dawkins, Deus: um delírio (2007), é um exemplo perfeito da ação dessa blindagem. Os dados
para catalogação da edição brasileira listam como temas do livro: “1. Ateísmo; 2. Deus – existência; 3.
Fundamentalismo; 4 Irreligião.” No índice para catálogo sistemático encontra-se a referência: “Ateísmo e
irreligião: teoria da religião”. O que o coloca no rol dos livros de teologia. Algo incomum para o currículo de
um zoólogo.
18

observação cotidiana. Tratava-se, portanto, de uma aproximação epistemológica mais


contemplativa do que operativa. Para esse grau de exigência, o aristotelismo se
apresentava como o paradigma mais adequado ao conhecimento científico da época.
A física aristotélica era a aplicação direta dos princípios metafísicos de Aristóteles ao
mundo observável. Nosso cotidiano, a propósito, é muito mais “aristotélico” do que possa
supor nossa compreensão moderna, já impregnada pela física galileana e newtoniana. A
experiência comum mostra que tudo o que é posto em movimento tende ao repouso; que o
sol e todos os astros realmente giram ao nosso redor (para “provar” esse fato, basta apontar
o sol com o dedo e acompanhá-lo durante todo um dia); que o ar circunda a Terra, a água
se espalha na superfície, a terra se assenta em direção ao centro do planeta e o fogo sempre
queima para cima – cada coisa parece ter um lugar natural; que o mundo celeste apresenta-
se como uma estrutura absolutamente regular, como esferas em movimento repetitivo, ao
passo que as coisas terrestres são marcadas pela irregularidade, assimetria, etc. Todas essas
experiências cotidianas são a base da física e metafísica aristotélicas e são por elas
explicadas. Para um nível de conhecimento contemplativo e não operacional, excetuando-
se uns poucos problemas de adequação teórica de alguns fenômenos observáveis, a síntese
aristotélica era uma perfeita ciência. A metafísica parecia mesmo explicar a física do
mundo observável.
Os filósofos árabes e os medievais do ocidente vincularam a metafísica aristotélica à
Revelação (do Alcorão ou da Bíblia) e construíram um conhecimento em que Deus era
parte fundamental e inseparável do conhecimento da natureza. O fundamento da ciência
repousava em um plano que transcendia à natureza. É o que podemos chamar de
transcendentalismo científico. A ciência era inseparável dos aspectos metafísicos e
teológicos do conhecimento.
No entanto, para a dinâmica das sociedades urbanas e mercantis – que tornava-se
cada vez mais predominante na Europa, principalmente a partir dos séculos XIV e XV, já
marcada pela ascensão da burguesia –, a demanda dirigia-se mais para o conhecimento das
coisas do mundo real e sua manipulação do que para as especulações a respeito dos
fundamentos transcendentais. Em uma sociedade mais operativa, que precisa transformar a
natureza em mercadorias, manipular e comercializar objetos, converter valores, etc., um
conhecimento que se caracterize pela operacionalidade e matematicidade torna-se muito
mais necessário e aceito. Transformar a natureza em produto de forma sistemática e em
larga escala exige o conhecimento de seus segredos e de seu funcionamento; travar
relações de troca, converter objetos em valores e valores em moeda, calcular estoques,
19

fazer balanço de receitas e despesas, etc. exige compreensão de cálculo e um instrumental


matemático adequado.
A mudança de configuração da sociedade e, conseqüentemente, de perspectiva para o
conhecimento deu origem ao Renascimento, época marcada pelo esforço de se conhecer os
fenômenos por dentro e de buscar explicações mais “coladas” às coisas, que as tornassem
passíveis de cálculo e previsibilidade e dessem ao ser humano o domínio sobre o
comportamento da natureza. Para a ciência, o mundo natural converteu-se em objeto de
manipulação, mais do que de contemplação. A idéia de transcendência aos poucos dava
lugar à imanência. Ou seja, ao invés de buscar entender a natureza a partir dos princípios
metafísicos aristotélicos ou das verdades reveladas, era preciso encontrar as explicações no
interior mesmo do mundo fenomênico.
O espírito de imanência do Renascimento gerou grande quantidade de informações a
respeito de inúmeras coisas. Tratavam-se, no entanto, de conhecimentos catalográficos,
carentes de síntese teórica, além de misturarem-se à magia, astrologia, hermetismo,
alquimia, etc. A Renascença foi uma época bastante rica em informações e descobertas,
mas absolutamente pobre em termos de teorias científicas. Koyré (1991, p. 46-55) faz uma
breve e excelente reflexão acerca desse período histórico e indica que a carência de
sínteses teóricas no Renascimento e a mescla de saberes racionais com magia e derivados
deveram-se à ausência de uma nova metafísica que substituísse a aristotélica.

Depois de ter destruído a física, a metafísica e a ontologia aristotélica, a Renascença se


viu sem física e sem ontologia, isto é, sem possibilidade de decidir, de antemão, se
alguma coisa é possível ou não. (...) Uma vez essa ontologia destruída, e antes que
uma nova ontologia, elaborada somente no século XVII, seja estabelecida, não se
dispõe de critério algum que permita decidir se a informação que se recebe de tal ou
qual “fato” é verdadeira ou não. Daí resulta em uma credulidade sem limites. (Koyré,
1991, p.47)

A nova metafísica (ontologia, ou seja, concepção acerca do ser da natureza e do


universo) só veio a se estabelecer no movimento que vai de Galileu a Newton (que contou
com a contribuição de Kepler, Tycho Brahe, Descartes e tantos outros), conhecido como
Revolução Científica do século XVII.
Para muitos, a idéia de que a ciência moderna criou uma nova metafísica ainda pode
parecer estranha e surpreendente. A visão comum é de que a ciência surgiu substituindo e
destruindo “a” metafísica. A maneira vulgar de se expor a história parece apresentar a
Revolução Científica e seu principal ícone, Galileu, como destrutores do obscurantismo
medieval e da metafísica e descobridores da “verdade factual” que brota somente da
20

experiência. A idéia que ainda predomina no senso comum é de que a ciência moderna
rompeu com a metafísica e superou qualquer caráter especulativo do conhecimento,
inaugurando, assim, uma época na qual apenas conhecimentos “provados” teriam lugar.
Essa visão, que hoje podemos chamar de “simplista”, já foi bastante refutada pela
historiografia científica e pela filosofia das ciências durante o século XX.7 Ao contrário do
imaginário comum, a ciência moderna só surgiu quando as bases metafísicas do
conhecimento foram reconstruídas. Antes de ser possível qualquer sentença sobre o
comportamento da natureza (tarefa que cabe à ciência) é preciso, primeiramente, existir um
pressuposto claro a respeito do que a natureza é em si mesma, para além daquilo que ela
nos revela através de seus fenômenos (reflexão de ordem ontológica, metafísica). A
ontologia do universo como cosmo ordenado (base da física aristotélica) produz um tipo de
ciência bem diferente da ontologia do universo-máquina (base da física galileana,
cartesiana e newtoniana). Mudança equivalente ocorre quando se substitui a visão
maquinal da física moderna por uma ontologia orgânica, complexa e sistêmica da natureza.
A ciência, portanto, possui bases metafísicas irremovíveis.
A modernidade substituiu a ciência fundada na metafísica aristotélica por um
conhecimento calcado em uma ontologia mecanicista, determinista e matemática.
Enquanto os aristotélicos acreditavam que o universo era uma realidade harmônica,
hierárquica, estética e qualitativamente explicável, os modernos o concebiam como um
mecanismo funcional, com regularidade e leis fixas, passível de ser explicado apenas
quantitativamente. Essa concepção de ser do universo (portanto, metafísica) caracterizou
as diferenças entre a ciência aristotélica e a ciência moderna.
Mas a elaboração da nova metafísica pelos modernos não abandonou o espírito
renascentista que impulsionava os filósofos naturais a buscar na própria natureza a
explicação dos fenômenos naturais. Esse espírito pode ser chamado de naturalismo. Ou
seja, ainda que a ciência moderna repouse sobre uma base metafísica, a relação dessa base
com a estrutura não é direta, como era no aristotelismo medieval. O naturalismo moderno
pressupõe que as causas dos fenômenos são de ordem natural e imanentes ao universo.
Isso, contudo, até o limite das causas últimas, relacionadas à origem, à ordem, e aos
fundamentos das leis naturais. Nesse campo, as grandes figuras da Revolução Científica,
de Galileu a Newton, recorriam a Deus. Galileu era religioso e Newton escreveu mais

7
O leitor interessado em se aprofundar nessa questão, visto que não a tratarei aqui, pode consultar: Koyré
(1991); Rossi (1992); Thuillier (1994); Burtt (1991); Harré (1988); Kuhn (1990; 1997) e Feyerabend (1993).
21

sobre teologia do que sobre física. O naturalismo era restrito ao campo da realidade
observável, manipulável e calculável.
Uma pequena reflexão sobre Newton pode ser bastante esclarecedora sobre o tipo de
naturalismo que prevaleceu nos momentos iniciais da ciência moderna. Na sua mais
célebre obra, os Princípios matemáticos da filosofia natural, Newton descreve o espírito
naturalista do qual estava imbuído:

(...) Tudo o que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as
hipóteses, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não
têm lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares são
inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução (Newton, 1974).

Portanto, na esteira do pensamento de Francis Bacon, para a nascente ciência


moderna (“filosofia experimental”) não era mais possível aduzir causas ou princípios
metafísicos na explicação dos fenômenos. Trata-se claramente de uma orientação
metodológica e de demarcação de uma atividade específica do conhecimento. Mas, alguns
parágrafos antes dessas afirmações, Newton escreve:

Esse magnífico sistema do Sol, planetas e cometas poderia somente proceder do


conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso. (...) Esse Ser governa todas as
coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo; e por causa de seu
domínio costuma-se chamá-lo Senhor Deus Pantokrátor, ou Soberano Universal (...)
(Newton, 1974).

Isso significa que, ao mesmo tempo em que a “filosofia experimental” deveria fazer-
se apenas com base no que era inferido diretamente dos fenômenos, as causas últimas e os
fundamentos do universo eram encontrados em Deus. Há dois planos distintos na
concepção de Newton. Porém, a interferência de uma reflexão em outra acontecia apenas
no plano especulativo. Ou seja, o conhecimento das leis da natureza não decorre das
afirmações acerca do Ser inteligente; ao mesmo tempo, a existência do “Senhor Deus
Pantokrátor” é apenas uma afirmação a partir do conhecimento do universo e não uma
decorrência lógica e necessária desse conhecimento. Portanto, a nova metafísica sobre a
qual se assentava a ciência moderna era naturalista apenas até os limites do que podia ser
conhecido dos fenômenos de maneira experimental e generalizado pela teoria. Mas o
naturalismo não se estendia ao conhecimento das causas últimas e daquilo que se
encontrava além da natureza.
22

Assim, o naturalismo moderno inicialmente limitava-se ao que a ciência era capaz de


conhecer. Por isso, podemos chamá-lo de naturalismo científico em oposição ao
transcendentalismo científico do aristotelismo medieval.
Entretanto, a concepção demarcatória da relação entre ciência e metafísica não foi a
que prevaleceu na modernidade. A “filosofia experimental”, transformada em ciência,
converteu-se na nova forma de se conhecer todas as dimensões possíveis do universo. A
nova civilização que passou a dirigir o espírito europeu já no século XVIII viu na ciência a
única e verdadeira forma de se conhecer o mundo: tratava-se da luz da razão a brilhar nas
trevas da ignorância. Tal exaltação não surpreende, visto que a ciência era o saber que mais
proporcionava realizações práticas, como foi demonstrado pela Revolução Industrial.
Conseqüentemente, era o que mais contribuía para o aumento da riqueza e poder da classe
que já detinha hegemonia espiritual e econômica em vários países europeus e estava
prestes a conquistar o poder político e espalhar-se sobre o mundo.
Como resultado dessa maneira de se conceber a ciência, o naturalismo acabou por
romper os limites da “filosofia experimental” e invadiu a própria metafísica. O episódio no
qual Laplace diz a Napoleão que não precisou da hipótese do Criador para seu tratado
sobre o sistema solar é bastante conhecido. A afirmação de Laplace é um perfeito exemplo
do naturalismo demarcatório, que afasta das explicações científicas qualquer influência
direta de uma hipótese metafísica. Porém, o episódio se converteu rapidamente em uma
espécie de palavra de ordem para a exclusão da metafísica de todo o conhecimento que se
pretendesse verdadeiro. Augusto Comte interpretou o desenvolvimento da humanidade em
três fases – teológica, metafísica e científica –, das quais apenas a última representa a plena
maturidade. No mundo moderno, todos os fenômenos possíveis, para serem
compreendidos, deveriam submeter-se ao naturalismo da ciência e ao método experimental
e indutivo traçado por Francis Bacon e calculado ao modo das ciências físicas. Kant negou
a possibilidade de qualquer ontologia, pois os conhecimentos metafísicos, por carecerem
de dados sensíveis (captados pelos sentidos, de forma experimental) não se apresentam
como fenômenos e, dessa forma, escapam ao escrutínio da razão.
Quando deixa de se restringir a uma orientação geral para um campo específico do
conhecimento (a ciência) e se transforma em regra universal para o conhecimento em geral,
o naturalismo científico se converte em naturalismo metafísico. Dito de outra forma,
quando as regras de um determinado campo do conhecimento passa a dizer respeito à
totalidade das coisas cognoscíveis, as fronteiras da demarcação são rompidas e se cria uma
espécie de orientação metafísica para a epistemologia. Por isso, a concepção moderna de
23

conhecimento não se limitou a ser simplesmente cientificamente naturalista, senão que se


tornou metafisicamente naturalista. É nesse sentido que devemos compreender a base
conceptual para as inúmeras controvérsias que envolveram ciência e religião ou ciência e
filosofia na modernidade. A ciência não foi concebida apenas como um conhecimento, mas
como o conhecimento. A tentativa de monopolizar a verdade sobre todas as dimensões do
universo humano e natural provocou o isolamento mútuo e, às vezes, a troca de
hostilidades entre diferentes campos do saber.
No início do século XX, a concepção cientificista foi reforçada pela filosofia da
ciência neopositivista do “Círculo de Viena”. A hegemonia do neopositivismo ainda está
presente no senso comum tanto dos cientistas quanto da sociedade em geral.8 No entanto, o
desenvolvimento dos debates epistemológicos e as mudanças na física no século passado
lançaram contínuas e irrevogáveis críticas ao neopositivismo e ao cientificismo. Filósofos
como Bachelard, Popper, Thomas Kuhn, Feyerabend, Morin, Ladrière e outros, e cientistas
como Einstein, Heisenberg, Paul Davies, Prigogine, Maturana e outros, contribuíram para
o rompimento dos limites que separavam ciência e filosofia e recuperaram a perspectiva
demarcatória na abordagem da relação entre metafísica e saber científico. A contribuição
dos filósofos foi elaborar novas formas de se conceber a ciência e a epistemologia. A dos
cientistas foi admitir as implicações filosóficas e metafísicas de seu campo de
conhecimento e refletirem honestamente sobre elas.
O pensamento contemporâneo, portanto, nos oferece todos os elementos conceituais
necessários para se resgatar o verdadeiro naturalismo científico, sem torná-lo metafísico ou
excluir outras formas de cognição. Ciência, metafísica e teologia dirigem-se a horizontes
distintos do universo e, por isso, possuem suas próprias formas de abordagem e limites de
abrangência. Elas podem influenciar-se mutuamente (e realmente o fazem), mas, por
razões metodológicas e conceituais, não podem competir em um mesmo plano cognitivo
(cf. Ladrière, 1978).
À luz da reflexão precedente, a polêmica entre “criacionismo” e “evolucionismo
científico” só é possível quando se misturam e se confundem dois campos distintos de
cognição. Um “criacionismo científico” ou uma “ciência criacionista” faz ressurgir o
transcendentalismo científico medieval, à medida que vincula diretamente a compreensão
da natureza a causas metafísicas e transcendentais. Por outro lado, o evolucionismo

8
Para uma compreensão da hegemonia da concepção neopositivista e de suas causas, bem como das
possíveis críticas que lhe podem ser dirigidas, o leitor pode recorrer à leitura de Chalmers (1991) e Oliva
(1990).
24

apresentado como “crítica à religião” ou “negação da fé” perde sua característica científica
e se transforma em doutrina metafísica, pois extrapola o campo específico ao qual está
originalmente vinculado – o conhecimento da natureza – e dirige-se a um plano que foge
totalmente à sua capacidade de intelecção.
É apenas em virtude dessa confusão que se justifica o acalorado debate que ofusca a
discussão dos limites do darwinismo como paradigma científico. Em contrapartida, com
base na distinção feita acima, o darwinismo doutrinário e o fundamentalismo – religioso
ou científico – que têm acompanhado o debate científico e epistemológico sobre a
evolução, são completamente destituídos de sentido. Ambos manifestam uma concepção
obscura acerca tanto da fé quanto do conhecimento. É má teologia e má ciência. Trata-se
de um debate que não deveria ter tanta repercussão em uma sociedade espiritual e
intelectualmente madura.
Nos EUA, entretanto, a disputa entre “darwinistas e criacionistas” é extremamente
acirrada. Isso, obviamente, acaba por se refletir na ciência e na literatura especializada
produzida naquele país. Zimmer (2003, p. 493-509) relata que a história do acirramento de
ânimos chega às discussões de políticas educacionais e até aos tribunais. Mas essa história
de ânimos exaltados não pode ser trasladada para a maioria dos países ocidentais. Ainda
que seja um assunto da “ordem do dia” na sociedade estadunidense (e em alguma outra),
não é, de maneira alguma, uma discussão importante no estudo científico da evolução. A
não ser quando cientistas mascaram sua crença pessoal (ou a ausência dela) e seus
posicionamentos sócio-ideológicos com discursos pretensamente científicos e exatos,
como fazem tanto certos criacionistas como alguns cientistas ateus.
Portanto, o limite da ciência é a busca de causas naturais para fenômenos naturais.
O que ultrapassa tal limite não é campo de investigação da ciência, por razões
metodológicas e instrumentais. Questões como o que havia antes do Big Bang, a razão
última da existência da vida, o sentido da vida humana, a melhor forma de organização
social, a existência ou não de Deus ou deuses, o que é certo ou errado nas atitudes
humanas, etc. não são questões científicas, mas filosóficas, éticas, metafísicas ou
teológicas.
Mas o problema existe e, infelizmente, não é fácil resolvê-lo. A raiz está no fato de
que não existe ciência, teologia ou metafísica sem sujeitos que as façam. Cada sujeito
possui crenças individuais, inclusive os cientistas. Ao expor sua metafísica pessoal
25

misturada com reflexões científicas, muitos fazem suas crenças parecerem afirmações da
ciência. Muitos crentes e ateus, cuja diferença se situa no nível metafísico e teológico,
refugiam-se na ciência para defender suas crenças e fazem a discussão parecer científica
quando na verdade não o é. Elaborações pretensamente científicas que dizem negar a fé ou
as que dizem “provar” coisas que pertencem exclusivamente à fé não são ciência, mas
metafísica disfarçada. Por outro lado, a fé que nega à ciência a capacidade de explicar a
natureza (não em seu sentido último) não é mais que um obscurantismo fundamentalista.9
É por essa razão que o zoólogo americano David Berlinsk afirma que seu colega britânico
Richard Dawkins “é motivado tanto por uma agenda teológica quanto por curiosidade
científica” (Berlinsk, 1997) e o biotecnólogo Richard Thornhill afirma que “Dawkins pode
ser mais corretamente considerado um materialista proselitista do que um popularizador da
ciência” (Thornhill, 2005).
A questão analisada neste livro não diz respeito aos problemas teológicos da
interpretação do darwinismo como doutrina metafísica. O foco está nas potencialidades do
darwinismo como teoria naturalista que busca explicar um fenômeno natural: a evolução
da vida e, em alguns casos, sua origem. Portanto, passa ao largo um confronto entre
“darwinismo” e “criacionismo”. A verdadeira questão abordada aqui é: dado um fenômeno
natural (a evolução da vida) e os conhecimentos recentes a ele relacionados, o darwinismo
é a teoria científica mais adequada para explicá-lo ou existe demanda e espaço para outra
teoria naturalista da evolução?
Com esses esclarecimentos pretendo também estimular os leitores a serem críticos
com os argumentos dos que negam qualquer crise no darwinismo, mas que se baseiam
somente na contraposição ao criacionismo, como se todas as críticas possíveis fossem
apenas questões de fé e não científicas. A defesa de uma tese deve ser feita com
argumentos a favor de sua pertinência e de sua solidez diante das críticas. De nada adianta
mostrar as debilidades de uma tese diferente, pois a fraqueza de um adversário não é
testemunha de nossa força, nem sua falsidade é prova de nossa veracidade.

9
Como a confusão hoje em dia é tremenda, tenho que fazer esta nota esclarecendo que a presente reflexão
diz respeito somente ao conhecimento do universo, não valendo para as implicações éticas da aplicação dos
conhecimentos científicos. Nesse campo, as coisas não são tão bem demarcadas assim, visto que ética é uma
questão social e não epistemológica.
26

De volta ao assunto
Feita, pois, essa necessária digressão, podemos voltar aos aspectos introdutórios mais
diretamente relacionados ao tema deste livro, exposto através da pergunta inicial: Darwin
será para o século XXI o que Newton foi para o século XX?
Devemos ser bastante prudentes ao tratar uma questão como essa. Ao menos por
enquanto (e provavelmente ainda por muito tempo), trata-se de uma questão filosófica. Os
problemas científicos do darwinismo são questões científicas, mas a hipótese de uma crise
é ainda filosófica, no sentido de que só se pode abordá-la através de rigorosas e bem
fundamentadas especulações. No futuro, certamente se tornará ou uma constatação
histórica relevante ou sequer será mencionada, a não ser como uma das conjecturas
frustradas da filosofia das ciências. Tudo depende de como a ciência caminhará. Embora a
pergunta tenha uma formulação aparentemente histórica, trata-se de um problema
conjectural. A história só pode ser feita olhando-se para trás, ainda que seja para entender o
presente ou projetar o futuro. Fatos históricos, independente das interpretações às quais
possam estar submetidos, são fatos consumados. Quando levantamos questões
aparentemente históricas a respeito do presente ou do futuro próximo, só podemos discuti-
las no nível filosófico e especulativo. Mas isso, certamente, não nos livra dos fatos. Ao
contrário, exige um sólido apoio factual que sustente as especulações.
O apoio factual deste livro foi fornecido pelos questionamentos advindos de
pesquisadores dos campos da bioquímica, genética e microbiologia interpretados à luz da
biologia evolutiva. É essa necessidade de apoio factual que justifica as inúmeras
referências a dados científicos que serão encontradas nos próximos capítulos, mesmo que
não se trate de um estudo científico, mas tão somente de filosofia das ciências. Ainda que
alguns leitores possam, eventualmente, incomodar-se com os detalhes científicos aqui
aduzidos, é preciso deixar claro que sem esse apoio factual não há debate possível. O
centro da questão está justamente nos detalhes. Com toda certeza, a ocultação desses
detalhes em livros de divulgação científica é o que faz parecer que o problema não existe.
Para quem conhece a fábula A assembléia dos ratos, de La Fontaine, a melhor idéia
dos roedores foi a de colocar um sino no pescoço do gato, para que o som denunciasse sua
aproximação e lhes permitisse a fuga antes de serem surpreendidos pelo felino. Entre os
ratos, esta será sempre a melhor idéia, a mais aceita, a mais lógica e a mais bem elaborada,
sempre que não discutirem os detalhes, como, por exemplo: quem colocará o sino e de que
maneira? Espero que os leitores se lembrem dessa fábula durante e no fim da leitura.
27

1. ESCLARECIMENTO METODOLÓGICO

Concepção epistemológica de fundo


Toda reflexão sobre a ciência tem por base uma concepção epistemológica. Quando
os fundamentos filosóficos da análise não são considerados, reproduz-se de maneira
acrítica os postulados de determinada filosofia das ciências como se fossem axiomas
irrefutáveis. De modo geral, a concepção positivista ainda predomina nas análises que
desconsideram os fundamentos epistemológicos do conhecimento científico. Idéias como
“conhecimento científico é conhecimento provado” ou “a ciência é a generalização dos
dados da experiência”, apesar de estarem presentes como pressupostos comuns em
inúmeras elaborações – mesmo que não estejam explícitos –, são nada mais do que
reafirmações da filosofia positivista das ciências. Ao contrário do que pode parecer ao
senso comum, as bases do positivismo ingênuo tornaram-se insustentáveis no debate
epistemológico sofisticado que se desenvolveu no século XX. A epistemologia
contemporânea teve como ponto de partida a destruição do cientificismo positivista. A
produção intelectual no campo da filosofia das ciências caracterizou-se pela tentativa de
apresentar visões alternativas diante da derrocada da concepção outrora hegemônica.10
Dada a inexistência de consenso ou hegemonia na filosofia das ciências
contemporânea, o rigor metodológico nas investigações de cunho filosófico sobre o
empreendimento científico exige que se esclareça previamente a concepção epistemológica
de fundo que orienta a análise.
As investigações que resultaram na elaboração deste livro foram orientadas pela
perspectiva epistemológica de Thomas Kuhn (1979a; 1979b; 1997; 2006). Na concepção
kuhniana, a história das ciências pode ser interpretada como o processo no qual modelos
científicos gerais – com suas hipóteses, formas de experimentação e leis (reunidos sob o
conceito de paradigma) – conquistam a hegemonia por determinado período de tempo e
orientam todo o trabalho da ciência: pesquisa experimental, elaboração teórica, ensino e
divulgação.
O termo “paradigma” transformou-se em uma espécie de “conceito coringa” e,
conseqüentemente, perdeu sua capacidade elucidativa original. Este fato fez com que Kuhn
preferisse substituí-lo pela locução “base hermenêutica” (Kuhn, 2006). Como, no entanto,
28

a palavra foi incorporada ao vocabulário epistemológico, independente da vontade de seu


próprio criador, continuarei a utilizá-la. Porém, a locução é muito mais esclarecedora a
respeito do conceito que se quer evocar com o termo “paradigma”. Hermenêutica é um
sentido profundo de interpretação. Seu pressuposto é o de que nenhum dado possui sentido
em si mesmo, senão que apenas quando incluído em um horizonte interpretativo. Em
outras palavras, o contato direto com os fenômenos não nos fornece sua compreensão.
Somente quando os inserimos em um fundo interpretativo é que os dados se tornam
compreensíveis. Portanto, diferentes bases hermenêuticas geram sentidos e compreensões
diferenciadas, inclusive sobre os mesmos fenômenos. Nas ciências naturais, a base
hermenêutica (paradigma) é constituída por teorias e hipóteses bem sucedidas e modelos e
procedimentos que se mostraram adequados em outras situações. Os motivos que levam à
opção por um paradigma não são, segundo Kuhn, de ordem estritamente racional e estão
além da ciência. Diversos fatores entram em ação na aceitação de uma determinada base
hermenêutica, tais como a cosmovisão metafísica acerca da natureza, motivações
originadas na vida social, a estética de teorias e equações e até elementos de ordem
psicológica.
Uma vez estabelecido o paradigma por consenso entre a maioria da comunidade
científica, a ciência segue sem questionar sua base, em um trabalho que Kuhn designou de
“ciência normal”. O período “normal” da ciência não questiona o paradigma; ao contrário,
quando os fenômenos eventualmente vêm desafiá-lo, as pesquisas buscam validá-lo a todo
custo. A hegemonia de uma base hermenêutica dura uma grande quantidade de tempo.
Portanto, a ciência não é simplesmente uma atividade de coleta e generalização de
dados e, sim, de interpretação dos dados à luz de um paradigma estabelecido e a tentativa
de mantê-lo válido diante de novas descobertas. A própria prática experimental depende de
orientações teóricas que a torne possível. A complexidade dos laboratórios e instrumentos
de observação atuais atesta que não é possível realizar experiências sem um enorme
conjunto de conhecimentos prévios que direcionam a experimentação e o cálculo, a
construção de laboratórios e o planejamento de instrumentos de medida.
Os fenômenos que não podem ser interpretados à luz do paradigma aceito pela
comunidade científica, são tidos como anomalias. As anomalias podem conviver com o
paradigma durante muito tempo, sem causar maiores problemas, desde que os fenômenos
anômalos não sejam centrais para a ciência. No entanto, diversos fatores internos e

10
Um precioso debate entre distintas concepções da epistemologia contemporânea pode ser encontrado em
Lakatos e Musgrave (1979).
29

externos à atividade científica podem fazer com que as anomalias venham a colocar o
paradigma à prova. As tentativas se voltam, neste caso, para a resolução do problema ainda
dentro da base hermenêutica vigente. Em certos casos, as anomalias adquirem força
suficiente para provocar uma crise no conhecimento científico. Surgem, então, algumas
tentativas de analisá-las à luz de proposições diferentes das do paradigma hegemônico.
Esse ensaio faz surgir alternativas bem sucedidas que, aos poucos, atraem o interesse da
comunidade científica, principalmente das gerações mais novas ou em fase de formação.
Gradativamente, um novo paradigma conquista a hegemonia em substituição ao anterior. O
processo de mudança paradigmática é chamado por Kuhn de “revolução científica”.
A despeito do que o termo “revolução” possa evocar, a idéia não é a de uma
transição abrupta, visível, em que hordas de mentes atacam o paradigma central para impor
um novo. O processo é muito mais lento e gradual e está relacionado à dinâmica do
conhecimento humano. A realidade compõe-se de muito mais elementos do que pode caber
em qualquer teoria. Por isso, nenhum paradigma pode abarcar a totalidade do real, que
inclui o conjunto das coisas conhecidas e desconhecidas pelo ser humano. Os fenômenos
conhecidos que não se enquadram no paradigma podem ser anomalias toleráveis ou o
estopim de uma crise. O mesmo acontece com os dados ou dimensões da realidade
descobertos pelo avanço da ciência após o estabelecimento de uma base hermenêutica. É
natural que os limites de compreensibilidade do intelecto humano sejam constantemente
desafiados pelo desenvolvimento histórico do conhecimento e pelas novas descobertas
científicas. A revolução é o caso-limite em que a relação sujeito-objeto só pode prosseguir
com a substituição do paradigma criado em circunstâncias diferentes das atuais.

Um exemplo histórico de mudança paradigmática


Para tornar mais claro o que foi tratado de forma abstrata nos parágrafos anteriores,
creio ser oportuno exemplificar com um caso de transição paradigmática ocorrido na física
no século XX. Assim, também poderemos entender melhor a referência a Newton na
pergunta inicial da introdução.
A física newtoniana (hoje chamada de “clássica”) conviveu com diversas anomalias
toleráveis durante seu período de vigência. Uma delas foi a “precessão do periélio de
Mercúrio”, um comportamento da órbita desse planeta nas proximidades do sol (periélio)
que não se adequava às previsões dos cálculos clássicos. Jamais a mecânica de Newton
chegou a entrar em crise por causa dessa anomalia. Os cálculos que dão conta de explicar a
30

órbita de mercúrio só foram possíveis com a teoria da relatividade de Einstein. Mas este
fator não gerou nenhuma crise para a física newtoniana. Tampouco foi o motivador para a
teoria de Einstein. Ou seja, a física e a astronomia poderiam avançar tranqüilamente sem
que a órbita de mercúrio estorvasse seus caminhos.
No entanto, outro problema não resolvido pela física clássica (composta basicamente
pela mecânica newtoniana e pelo eletromagnetismo de Maxwell) foi o problema da
“radiação do corpo negro”, ou seja, o cálculo sobre a emissão de radiação eletromagnética
resultante do aquecimento de um corpo capaz de absorver todos os níveis (freqüências) de
radiação. A história é relativamente bem conhecida: uma hipótese heterodoxa de Max
Planck resolveu a questão. Planck, ao invés de supor a radiação eletromagnética como um
espectro contínuo de energia, postulou que ela era emitida em quantidades discretas de
energia, denominadas quanta de energia. Ou seja, a radiação eletromagnética (luz visível,
raios x, ondas de rádio e raios gama – que são radiações eletromagnéticas em freqüências
diferentes) não seria um “fluxo” contínuo de energia, mas um “bombardeio” de pequenos
pacotes com valor energético mínimo definido: 6,62 x 10-34 joules-segundo.
A princípio, a hipótese não tem nada de especial e pode, hoje, ser ensinada nas
escolas. No entanto, no início do século passado ela estava totalmente fora dos padrões de
compreensão aceitos. Mesmo Planck estava consciente de que sua proposta era totalmente
inusitada. Por isso ele a concebeu, inicialmente, como uma hipótese instrumental, ou seja,
como uma conjectura que, a princípio, não se refere à dimensão real do fenômeno (ou seja,
não tem pretensões ontológicas e não pretende afirmar que as coisas sejam de fato como
diz). A função de uma hipótese instrumental é apenas adequar a teoria e os cálculos aos
fenômenos observados. Em outras palavras, para efeitos de operacionalidade e cálculo,
simula-se que o mundo seja assim, mas não se acredita que realmente o seja. Foi como
uma hipótese instrumental, por exemplo, que o clérigo Osiander (prefaciador da obra de
Copérnico De revolutionibus orbium coelestium) apresentou a tese copernicana do
heliocentrismo. A fim de facilitar o cálculo, poder-se-ia supor que o sol é o centro, embora
a Terra, no plano ontológico, não perdesse seu lugar central. Einstein também acreditava
que a teoria quântica proposta pela escola de Copenhague (Heisenberg e Bohr) era boa
como hipótese instrumental, mas não descrevia o mundo da forma como era – razão que o
levou a tentar elaborar, sem sucesso, uma teoria alternativa.
A hipótese de Planck, inconcebível dentro do paradigma adotado, passou a ser
postulada para vários aspectos do comportamento de um novo campo fenomênico em
descoberta: o mundo do átomo. No nível atômico, os paradigmas predominantes na física
31

enfrentavam sérias dificuldades, o que criava a necessidade de se procurar soluções fora da


ortodoxia. As anomalias assumiam proporções maiores, uma vez que as pesquisas
tornavam os átomos fenômenos centrais da física. Diferente da órbita de Mercúrio, o
domínio da matéria e da energia em nível atômico atraía não apenas cientistas, mas
também os financiadores da ciência (indústrias e governos), em virtude das possibilidades
estratégias – industriais e bélicas – que tais pesquisas abriam. Assim, as anomalias
deixaram de ser toleráveis e passaram a desafiar o paradigma adotado, ao mesmo tempo
em que abriu espaço para proposições diferentes, fora da base hermenêutica consensual na
comunidade científica.
Em 1908, Ernest Rutherford bombardeou partículas alfa (núcleos de átomos de hélio)
contra uma placa fina de ouro e mediu seus desvios. A experiência mostrou que as
partículas atravessavam diretamente a placa ou eram desviadas em um padrão que poderia
ser interpretado como indicador da presença de um núcleo carregado positivamente,
cercado de espaços vazios e orbitado por partículas carregadas negativamente. Daí surgiu o
modelo orbital, a imagem tradicional do átomo que figura nos livros didáticos. No entanto,
pela teoria clássica do eletromagnetismo, uma partícula carregada em movimento irradia e
perde energia. Caso essa lei se repetisse no mundo atômico, os elétrons (partículas
carregadas em movimento) perderiam energia e entrariam em colapso com o núcleo em
pouquíssimo tempo. Pelas regras do consagrado e bem sucedido eletromagnetismo de
Maxwell, o universo não poderia existir!
Ao invés de ignorar os dados para salvar a teoria, Niels Bohr utilizou-se do conceito,
ainda insólito, de quanta de ação de Planck e conseguiu sugerir um modelo para o átomo
de hidrogênio que evitava a conseqüência indesejada do colapso do universo. Sua
proposição causou certo estranhamento por postular que o “salto orbital” – a passagem dos
elétrons para um nível maior ou menor de energia, representado por camadas orbitais – era
feito sem que a partícula percorresse o espaço intermediário de uma camada a outra. Os
níveis eletrônicos no modelo do átomo de Bohr eram relacionados ao valor do quantum de
Plank.
Einstein fez o mesmo ao buscar explicação para o efeito fotoelétrico. O fenômeno da
produção de corrente elétrica decorrente da exposição de um metal à luz era
incompreensível quando se concebia a luz como um fluxo contínuo de caráter
ondulatório.11 Einstein resolveu o problema com a utilização da hipótese quântica. Quando
32

a luz é concebida como um conjunto de pequenas partículas de energia (quanta), o


fenômeno passa a fazer sentido e pode ser perfeitamente calculado e manipulado: o
impacto das partículas de luz (fótons) coloca os elétrons em movimento, gerando, assim, a
corrente elétrica. A hipótese de Planck passava, então, a servir como um modelo possível
de ser aplicado a vários fenômenos além daquele para o qual foi originalmente proposto.
Mas a história de mudanças na física não parou aí. Além do impacto normal que uma
hipótese heterodoxa gera para os que aderem firmemente a um paradigma, a explicação do
efeito fotoelétrico trazia um problema adicional. Experiências anteriores mostravam, de
maneira incontestável, que a luz era um fenômeno ondulatório. No entanto, Einstein, nos
passos de Planck, a apresentava como um conjunto de partículas. Embora onda e partícula
sejam modos de ser excludentes, um único fenômeno se apresentava com as duas
características. Bohr sugeriu que os fenômenos deveriam ser abordados sob a dupla
perspectiva, ondulatória e corpuscular, a despeito de sua contradição, e chamou sua
proposição de princípio da complementaridade.12
O ser contraditório da radiação eletromagnética (posteriormente aceito para toda a
matéria) aplicou outro golpe na visão tradicional do mundo. Os cientistas se viram
forçados a aceitar, depois de outras experiências e elaborações de ordem teórica, o estranho
fato de que a luz (e toda a matéria) é ao mesmo tempo onda e partícula. Esse problema
ficou conhecido como “dualidade onda-partícula”. Não é de se admirar que a reação inicial
a idéias tão estranhas e que contradiziam os padrões habituais de compreensão da física
tenha sido de suspeita e até rejeição.

O que nos dizem os exemplos históricos?


O que devemos reter dos exemplos mencionados é o fato de uma anomalia não
tolerável (a radiação do corpo negro) ter forçado o surgimento de uma nova hipótese de
caráter heterodoxo e como as anomalias do mundo dos átomos foram resolvidas pela
aplicação dessa hipótese, gerando posteriormente uma nova síntese teórica. Interessante
também é notar que as novas elaborações traziam surpresas difíceis de se aceitar e que
careciam tanto de uma formulação completa como de uma síntese teórica em seu início.
Mas, nem por isso deixaram de orientar a pesquisa.

11
É esse fenômeno que permite o acendimento noturno automático dos postes de luz, segura portas de
elevadores e detecta movimento em sistemas de alarme.
12
Quando foi agraciado com o título de Sir pela coroa dinamarquesa, Bohr escolheu para o seu brasão o
símbolo oriental do Yin e Yang, subscrito com a frase em latim Contraria sunt complementa (os contrários
são complementares).
33

Einstein, por exemplo, resistia à nova teoria quântica por razões metafísicas. A
interpretação mais aceita dos fenômenos quânticos pressupunha, em certa medida, um
comportamento probabilístico do universo, incapaz de ser previsto com a precisão absoluta
do tipo de determinismo que acompanhou a ciência newtoniana. A rejeição de Einstein foi
expressa em sua famosíssima frase de que “Deus não joga dados com o universo”.
Certamente, a nova física gerou espanto, resistência e a necessidade de se reconhecer a
crise da visão clássica do mundo.
A física, porém, é um campo de pesquisa mais manipulável e controlável, onde a
precisão das evidências e dos cálculos pode ser usada como argumento de maior persuasão.
Além disso, o avanço do conhecimento no nível atômico era desejado pelas forças sociais
hegemônicas. Uma transição paradigmática que permitisse avanços nessa direção não teria
a resistência do establishment econômico e político – ao contrário, seria muito bem aceita.
E não devemos nos esquecer que os cientistas são parte da sociedade.
O mesmo, contudo, não ocorre com a biologia evolutiva, por dois motivos. Por um
lado, seu campo experimental é restrito e pouquíssimo controlável. Por tratarem-se de
eventos ocorridos no passado e em largas escalas temporais, que apenas deixam escassas
pistas, sua reprodução em laboratório é praticamente impossível. Dessa forma, o poder de
persuasão das evidências e do formalismo teórico não é tão poderoso. Por outro lado, o
paradigma evolutivo atual (o darwinismo) é usado como sustentação ideológica pelos
grupos hegemônicas na sociedade. Conseqüentemente, por razões não-científicas, os
grupos sociais dominantes não se interessarão facilmente por uma transição que lhes venha
a retirar o sustentáculo científico de sua ideologia social. Seus interesses, portanto, estão
voltados mais para a coleta dos resultados das ciências de laboratório que possam
converter-se em patentes e produtos comercializáveis. Assim, a propaganda, os
investimentos e a formação da consciência social (da qual os cientistas também fazem
parte) tendem a reafirmar continuamente o paradigma, ainda que os dados experimentais
venham a questioná-lo.
O exemplo da física do século XX nos revela que quanto mais se avança na
perscrutação da natureza, criando-se para tanto instrumentos de observação e medição mais
refinados e modelos teóricos mais abrangentes e de maior alcance, mais fenômenos novos
são descobertos e a dimensão factual do conhecimento cresce continuamente. O quantum
de ação, por exemplo, é de um nível tão pequeno que só faz sentido quando aplicado ao
34

mundo subatômico e só pode ser abordado por instrumentos refinadíssimos (e de alto


custo) e por equações de elevado grau de complexidade.13
Em virtude dessa constante e progressiva investigação da natureza, surgem, por
vezes, dimensões totalmente novas do universo, que se mantinham até então fora do
alcance dos sentidos, dos instrumentos de observação ou do instrumental teórico disponível
para se supô-las. Seria um excesso de soberba acreditar que os novos campos da realidade
ainda inexplorados tenham que, necessariamente, submeter-se às leis das teorias vigentes.
Embora isso às vezes ocorra – e seja, de fato, surpreendente notar a capacidade
raciocinativa do ser humano – a história nos sugere ser necessário ter sempre guardado um
suprimento de humildade para nos havermos com um universo multidimensional e repleto
de surpresas. Em diversas ocasiões, as proposições de “fim” das ciências – quando se
achava que tudo já estava conhecido e não havia mais possibilidade de avanço teórico –
revelaram-se um extremo de autoconfiança por parte de um ser limitado por cinco sentidos
e pela percepção tridimensional da realidade – mesmo considerando a ampliação da
percepção por instrumentos e o alcance pluridimensional que a matemática proporciona.
Sempre que determinados campos ou fenômenos da realidade se tornam enigmas
(quebra-cabeças, ou puzzles, como dizia Kuhn) que não podem ser resolvidos pelo
paradigma vigente, abre-se a possibilidade para o surgimento de novas proposições que se
candidatam a paradigmas. Uma delas pode conquistar a hegemonia e tornar-se a base
hermenêutica de uma ciência em particular, ou mesmo servir de base para outras ciências.
Foi o que ocorreu com a mecânica de Newton e com o eletromagnetismo de Maxwell. Não
se trata, porém, de uma simples “correção de erros”. A física clássica, de maneira alguma,
está “errada” para os fenômenos aos quais se dirige. Tanto que não houve mudança nos
currículos de engenharia civil para que se calculasse uma edificação com base na mecânica
quântica ou na teoria da relatividade. Os satélites continuam em órbita a despeito de sua
estabilidade ser decorrência de cálculos newtonianos. O telégrafo ainda funciona e nosso
rádio continua a tocar, todos montados sobre as equações do eletromagnetismo de
Maxwell. Enfim, nada entrou em colapso quando se descobriu a inadequação da mecânica
e do eletromagnetismo clássicos para o mundo subatômico.
No entanto, a insuficiência dos postulados clássicos para explicar um novo campo de
fenômenos exigiu o reconhecimento de seu esgotamento e a criação de novos paradigmas,

13
O quantum de ação é da ordem de 6, 62 x 10 –34 joules-segundo, valor da constante de Plank. Para quem
não está habituado à notação científica, é preciso esclarecer que esse número é zero, seguido por 33 zeros
depois da vírgula, e o número 662.
35

a fim de que a ciência teórica não se estagnasse. A necessidade de se reestruturar toda a


física sobre novos postulados decorre do fato de que os novos fenômenos descobertos são
basilares, ou seja, o próprio universo macroscópico é constituído por interações que se
realizam no nível quântico. Por que isso também não poderia ocorrer com as ciências
biológicas?
Deve-se observar, porém, que a transição de paradigmas nas ciências geralmente não
ocorre como um gentil acordo de cavalheiros entre os cientistas. A polêmica que
acompanha uma crise de paradigma extrapola muitas vezes o âmbito restrito das discussões
científicas e torna-se um caso para uma psicologia social dos cientistas. Na história, as
críticas ao paradigma predominante são muitas vezes repelidas de formas que variam da
morte na fogueira da Santa Inquisição à condenação verbal e desdenhosa utilizada pelos
divulgadores modernos da ciência ou por autoridades dos meios acadêmicos. Muitas vezes,
os debates costumam desviar-se dos argumentos científicos e se perder em questões
periféricas ou em rotulações generalizantes. Tudo isso bem ao gosto da crítica mordaz de
Schopenhauer que, em publicação póstuma, descreve trinta e oito estratagemas para se
vencer um debate mesmo sem se levar em conta o conteúdo em discussão (Schopenhauer,
1997).

As mudanças na ciência são lentas


É preciso observar, no entanto, que não é qualquer nova afirmação no campo da
ciência que se constitui em um “novo paradigma”. Mesmo que alguns autores nos mostrem
a insuficiência dos modelos tradicionais para explicar determinados campos de fenômenos,
isso não significa que uma proposição particular decorrente dessa percepção de limites e
exposta em livro ou artigo seja já um novo paradigma. Não se produzem novos paradigmas
na mesma velocidade com que se publicam livros ou artigos. Essa precaução é necessária,
pois o mercado editorial, o jornalismo científico e alguns teóricos (entre filósofos,
sociólogos, psicólogos, pedagogos, etc.) entusiastas de “novidades atordoantes” que
“reformulariam todo o pensamento” parecem ter a necessidade de apresentar a cada
momento uma nova e “revolucionária” concepção científica, muitas vezes para justificar
concepções filosóficas bem particulares.
As novas teorias só se tornam paradigmas hegemônicos após longo período histórico
de debates, estudos e sucessos na aplicação. Eventualmente, servem apenas para reforçar o
paradigma existente através de uma resposta convincente dentro mesmo de seu âmbito.
36

Para se ter uma idéia da lentidão de uma transição, observe-se que, mesmo com todo o
tempo decorrido de debates, estudos e complexas experiências com altíssimos níveis de
energia e mesmo com o sucesso tecnológico atingido pela mecânica quântica,14 ainda não
se pode dizer que a satisfação com sua descrição da natureza seja completa. Alguns
problemas ainda sobrevivem. O chamado “modelo padrão” pressupõe a concepção das
partículas elementares como pontos geométricos (sem extensão espacial) – o que é uma
abstração matemática útil na teoria, mas com complicações no plano ontológico. Há
também a dificuldade de se fazer uma síntese entre a relatividade e a mecânica quântica na
descrição dos fenômenos macro e micro-cósmicos. Existe ainda o problema da unificação
das teorias relacionadas às quatro forças atuantes na natureza (gravidade,
eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca), hoje considerada por alguns como o
“Santo Graal” da física teórica. A unificação das forças eletromagnética e nuclear fraca, a
partir do modelo de Higgs, enfrenta um duplo problema: a complexidade de seus
parâmetros e os fracassos experimentais na busca do bóson de Higgs.15 Estes são apenas
alguns exemplos para que se tenha idéia do caráter eminentemente histórico, lento,
incompleto e invisível das transições de paradigmas, ou seja, das revoluções científicas (cf.
Kuhn, 1997, p. 173-181).
Essas observações são importantes para que se compreenda a dimensão histórica de
uma possível crise do paradigma darwinista que será discutida adiante. Certamente,
ninguém verá um paradigma ruir como se implode um edifício.
O século XX foi, portanto, marcado pela débâcle da física de Newton. Como já foi
observado, isso não ocorreu por ela apresentar insuficiência no nível de realidade ao qual
se dirigia, pois aí se revelou um sucesso estrondoso (a moderna sociedade industrial deve
sua existência ao poder da física newtoniana). E ainda o é, dado que os valores envolvidos
tanto no quantum de ação (da mecânica quântica) quanto nas distorções espaço-temporais
(da teoria da relatividade) são muito pequenos e se tornam irrelevantes quando aplicados
ao mundo vivido cotidianamente. Sua falência como descrição geral da natureza se deu

14
Estima-se que cerca de 30% do PIB dos EUA está relacionado à produção que depende dos conhecimentos
proporcionados pela física quântica (Tegmark & Wheeler, 2001).
15
Em termos gerais, tal modelo pressupõe que os fótons (os bósons da força eletromagnética) e os bósons da
força nuclear fraca são equivalentes. Mas os bósons da força nuclear fraca possuem massa e os fótons não.
Higgs postulou que a adquirição de massa pelos bósons da força fraca seja decorrente da sua presença em um
campo, chamado “campo de Higgs”. Como a todo campo deve estar relacionado uma partícula (um bóson),
para a existência do campo de Higgs, deveria existir um “bóson de Higgs”. Até hoje, nenhum laboratório
conseguiu detectá-lo, mesmo com a expectativa de que ele seria encontrado até o ano 2000. Até o momento
em que este livro era escrito, a partícula não passava de uma possibilidade teórica.
37

quando se perscrutou dois níveis da realidade antes desconhecidos: o mundo do átomo


(que está na base de toda a realidade material) e o campo das grandes velocidades e das
grandes massas (o universo em sua dimensão macrocósmica).

Novas perspectivas para as ciências da vida


Para concluir este capítulo que procura fornecer as bases metodológicas para a
análise de uma possível crise do darwinismo, precisamos refletir sobre uma mudança de
perspectiva que se vem operando em certos campos da pesquisa científica e configurando
uma nova base analítica e interpretativa sobre a qual podem estar fundados os novos
paradigmas. Trata-se de uma mudança conceptual que dá suporte à abordagem de sistemas
complexos, como é o caso dos organismos vivos. Esse tipo de mudança traz consigo uma
nova perspectiva de compreensão do real e reorienta os pressupostos da pesquisa e da
elaboração teórica. Não se trata de uma “descoberta” da ciência, mas de uma nova forma
de abordagem que cria condições epistemológicas e conceituais para o surgimento de
novas teorias. Pela sua importância na discussão sobre sistemas vivos, temos de tratá-la
aqui, ainda que de forma breve.
O fundo conceptual que sustenta o trabalho da ciência é chamado de metaciência.
Tal conceito diz respeito a questões epistemológicas e a pressupostos de ordem filosófica
que acompanham a prática científica. Exemplos de questões epistemológicas que fazem
parte da discussão metacientífica são: o que é a verdade? O que faz uma teoria ser
considerada científica? Como se justifica uma afirmação que se pretende verdadeira?
Como se processa o conhecimento científico? Pressupostos metacientíficos de ordem
filosófica podem ser exemplificados com as seguintes questões: o universo é isotrópico (ou
seja, segue as mesmas leis em qualquer localização)? O real é previsível,
probabilisticamente previsível ou totalmente imprevisível? As partes revelam o
funcionamento do todo, como afirmava o método analítico de Descartes, ou a totalidade
representa mais do que a superposição linear das partes? Há uma regularidade fixa no
comportamento de todo o universo?
Como se pode constatar, tais questões dizem respeito ao fundamento do
conhecimento e a pressupostos acerca do objeto de estudo. Elas orientam o tipo de
abordagem que será feito pelos cientistas e dão sustentabilidade ao que se pretende afirmar
como verdade na ciência. As concepções metacientíficas sustentam a ciência, mas estão
além de seu campo específico de reflexão – em outras palavras, não são abordáveis pelo
38

método científico, pois o precedem. Essa é a razão da existência de tantos debates e


controvérsias entre cientistas e entre filósofos da ciência. As proposições metacientíficas
jamais podem ser consideradas afirmações “cientificamente comprovadas”, mesmo que se
chegue a um improvável consenso com relação à maioria delas.
As reflexões metacientíficas são de extrema importância para a ciência, pois dão
legitimidade à pretendida veracidade das teorias e fornecem as idéias necessárias para
sistemas explicativos do mundo. Mudanças nas concepções de fundo também viabilizam
novas abordagens e fazem surgir novos paradigmas. Por essa razão, não poderíamos deixar
de falar sobre uma mudança de ordem metacientífica que se observa em grande parte do
estudo sobre a vida.
Apesar da revolução causada pela mecânica quântica e pela teoria da relatividade,
uma concepção mais profunda decorrente da cosmovisão mecânica determinista e
reducionista (com raízes em Descartes e Newton) sobreviveu. Laplace afirmou que se uma
mente sobre-humana obtivesse as informações acerca da posição e do momento 16 de todas
as partículas existentes, bastar-lhe-ia processar os dados através das equações da física
newtoniana para saber tudo sobre o passado e o futuro do universo. Essa afirmação –
conhecida como o “demônio de Laplace” –, embora pareça uma presunção triunfalista,
revela, na verdade, uma concepção metacientífica segundo a qual o comportamento da
totalidade do universo e de totalidades locais é sempre resultado da soma das
características de cada elemento que as compõe, submetidos a leis conhecidas que agem
localmente em cada parte constituinte do todo.
Esse reducionismo (o todo se reduz à soma das partes) conduz a um tipo forte de
determinismo (conhecendo-se as partes e as leis a que estão submetidas, conhece-se o todo
e a sua evolução temporal). Tal concepção traz a idéia de previsibilidade em princípio, cuja
concretização dependeria apenas do conhecimento detalhado de cada parte do todo. A
ausência de previsibilidade seria atribuída à ignorância acerca das condições iniciais ou ao
desconhecimento de todas as características de cada elemento. O mesmo reducionismo
caracterizou também as ciências biológicas e é manifestado principalmente na tentativa de
se fazer toda a complexidade da vida decorrer da interação mecânica das suas moléculas
fundamentais, principalmente da parte codificadora do DNA (os genes).
A mecânica quântica introduz um elemento de incerteza que diminui a pretensão
determinista absoluta, ao postular a impossibilidade da exatidão simultânea acerca dos

16
Momento é o produto da multiplicação da velocidade pela massa.
39

dados sobre o momento e posição de uma partícula subatômica. Em poucas palavras, pelo
princípio da incerteza de Heisenberg ou se têm medições precisas do momento e perde-se
a exatidão no que se refere à posição, ou têm-se informações precisas sobre a posição e se
perde a precisão em termos de momento. A observação afeta o comportamento das
partículas.17 Tal constatação restringe a precisão absoluta das medições e introduz um
elemento de probabilidade na mecânica.
Mas trata-se de uma probabilidade totalmente controlada e expressa em uma equação
dinâmica que permite a previsão dos resultados prováveis (a equação de Schrödinger). É
claro que o determinismo expresso em termos de probabilidade difere do determinismo
absoluto do demônio de Laplace (e isso incomodou bastante a Einstein), mas não chega a
postular a imprevisibilidade total dos fenômenos. Portanto, a previsibilidade clássica,
embora ligeiramente modificada para termos probabilísticos, continuou, de certa forma, a
existir.
Mas esse último pressuposto metacientífico da ciência moderna foi submetido a
questionamento quando novas áreas de pesquisa constataram que o comportamento de
sistemas complexos não era dedutível da superposição linear das propriedades de seus
elementos componentes. O “todo” desses sistemas só era suscetível a uma abordagem que
o considerasse como uma estrutura decorrente da interdependência simultânea de todos os
elementos constituintes. Dito de outra forma, é a compreensão da interdependência entre os
componentes e de seu comportamento conjunto – e não das propriedades de cada um
considerado isoladamente – que leva ao conhecimento da totalidade composta. Isso evoca
o velho jargão de que o todo é mais do que a soma das partes. Mas trata-se de algo mais
profundo, que poderia ser expresso, em termos aproximativos, com a frase “o
comportamento do todo não pode ser reduzido a uma mera superposição linear das
propriedades de suas partes submetidas à ação local de certas leis”.
Sistemas complexos não podem ser submetidos ao procedimento analítico
reducionista, ao estilo cartesiano, que implica na decomposição do todo, o conhecimento
de cada um de seus menores componentes e das leis a que estão submetidos. O
comportamento da totalidade emerge justamente do fato de constituírem um conjunto
interdependente e não das propriedades de cada elemento em particular. Decorre disso o
fato de que pequenas mudanças podem alterar o comportamento do todo, porém não

17
Não, obviamente, por uma relação subjetivista, como querem algumas interpretações, mas por afetação
material, dado o fato de que, por fugirem ao alcance dos sentidos humanos, as partículas subatômicas têm
40

necessariamente na medida específica dessa mudança, mas em uma escala global capaz de
ocasionar efeitos imprevisíveis e até uma reestruturação da totalidade. O tipo de mudança
ocasionada pela alteração de alguns elementos não é dedutível somente das características
dos novos elementos que entraram em cena no sistema, mas da reação (imprevisível) da
totalidade a essa alteração. Qualquer elemento novo pode gerar conseqüências que fogem
ao controle da previsão.
Nessa perspectiva, a imprevisibilidade decorrente do caráter intrinsecamente
probabilístico dos sistemas complexos não é, como na mecânica quântica, resultado da
indeterminação originada pela interação do objeto com o instrumento de medida. A
imprevisibilidade do comportamento futuro desses sistemas assume o status de
característica da própria natureza. Trata-se de um exorcismo total do demônio de
Laplace. É um conceito diferente do que a natureza é e de como se comporta – portanto,
possui também um caráter ontológico.
Uma mudança conceptual dessa ordem lança luzes sobre o estudo dos sistemas vivos,
que se comportam como sistemas complexos que dificilmente podem ser reduzidos às
propriedades de seus elementos (as moléculas orgânicas). Um dos aspectos da possível
crise de paradigma na biologia está diretamente relacionado à noção de complexidade. O
paradigma darwinista conduziu as ciências biológicas a uma abordagem reducionista que
acredita que a evolução e o desenvolvimento da vida são resultados de fenômenos
localizados na molécula de DNA, submetidos a leis locais e alterações ao acaso.
Abordagens mais recentes recorrem às teorias da complexidade para escapar das
dificuldades decorrentes da análise reducionista quando comparada aos fenômenos reais –
tais como o fato de que a ação dos genes não depende apenas das seqüências de bases que
os compõem, mas da totalidade na qual estão imersos.

******

Com a reflexão acima, concluímos este capítulo. A abstração teórica e os vários


exemplos evocados tiveram como objetivo fornecer uma descrição concreta de como se
concebe a transição de paradigmas e quais fatores estão realmente envolvidos nesse
processo. Trata-se de um esforço necessário para evitar simplificações abstratas que,
embora facilitem a descrição e tornem a leitura “mais leve”, não ajudam no entendimento

que ser observadas com a utilização de “luz” com comprimentos de onda menores do que o da luz visível. A
projeção de “luz” de freqüências maiores afeta o comportamento da partícula (Heisenberg, 1995, p. 41).
41

da questão. O foco introdutório na física deve-se ao fato de que o cenário científico do


século XX foi tumultuado justamente pelos debates nessa área específica da ciência.
Grandes novidades também surgiram na biologia e na bioquímica, mas não se chegou a
debater suficientemente o tipo de impacto que essas novidades apresentam à descrição
darwinista da vida, que é o paradigma predominante nas ciências biológicas.
A partir das concepções de base apresentadas neste capítulo, podemos passar ao foco
central de nossa reflexão. Analisaremos, a seguir, a teoria darwinista da evolução e os
problemas enfrentados na sua relação com o que hoje se conhece do funcionamento dos
organismos vivos. As questões que orientarão a análise são:
- As últimas décadas de investigação das ciências biológicas trazem anomalias
relevantes para a teoria darwinista?
- Tais anomalias, se existem, podem ser incorporadas à teoria predominante
ou, ao menos, conviver como anomalias toleráveis dentro do paradigma?
- Estamos testemunhando uma transição de paradigma que destinará a
Darwin o mesmo respeitoso lugar que hoje ocupa Newton?
Para iniciar a análise, tentarei fazer nos próximos dois capítulos um sumário histórico
da teoria darwinista e das descobertas da biologia. Meu propósito é ser tão breve quanto
possível, sem, contudo, ocultar detalhes importantes para o entendimento em nome da
simplificação exagerada.
42

2. A LUZ DE DARWIN

O que é central no darwinismo?


darwinismo?
À época de Darwin, a evolução das diversas formas de vida não era um fato
desconhecido. Ao contrário da visão popular, Darwin não “descobriu” o fenômeno da
evolução. Não foi ele que afirmou que a vida evoluía, senão que apenas mais um que
tentou explicar porquê e como se dava a evolução. O evolucionismo, portanto, não surgiu
com Darwin e, por conseguinte, evolucionismo não é sinônimo de darwinismo. A
paleontologia e a anatomia comparada já eram praticadas desde o século XVI e, com
sucessivos avanços principalmente no século XVIII e início do XIX, revelaram
semelhanças enormes entre diferentes espécies existentes e entre atuais e extintas. Era um
fato bem aceito uma espécie de “sucessão progressiva” das diversas formas de organismos.
Não se conhecia, porém, quê tipo de mecanismo dirigia essa evolução, nem por que as
espécies mudavam com o tempo e surgiam outras. Até explicações criacionistas admitiam
essa sucessão, mas negavam a relação de descendência entre as espécies, afirmando que
Deus as havia criado diferentemente a cada vez (Thuillier, 1994, p. 193).
O estudo dos fósseis e da anatomia dos seres vivos revelou dados antes
desconhecidos, o que colocou em xeque a idéia até então bem aceita da imutabilidade das
espécies. Conseqüentemente, isso gerou a necessidade de uma nova concepção científica
que explicasse o mecanismo e a razão das mudanças evolutivas. Naturalistas anteriores a
Darwin, como Georges Leclerc (o Conde de Buffon, 1707-1788), Jean Baptiste de
Lamarck (1744-1829), Georges Cuvier (1769-1832), entre tantos outros, debruçaram-se
sobre esse desafio e buscaram explicações naturalistas para o fenômeno da evolução.
Darwin foi apenas mais um deles. Sua teoria não surgiu por súbita iluminação que lhe
arrancasse um “eureca” arquimediano. Tampouco foi decorrência automática da longa
instrução empírica a bordo do Beagle. Embora tanto a capacidade imaginativa quanto o
conhecimento concreto da natureza tenham sido fundamentais para Darwin, as condições
para sua teoria da evolução estavam tão bem colocadas que outro naturalista, Alfred Russel
Wallace, chegou quase às mesmas conclusões de forma independente, o que fez Darwin se
encorajar e publicar A origem das espécies cerca de vinte anos depois de mantida apenas
como um programa de pesquisa pessoal (Gould, 1999).
43

Quando digo que as condições para a teoria da evolução de Darwin estavam bem
colocadas, não quero dizer com essa afirmação que a teoria já estava “prestes a ser
descoberta” em função dos avanços da ciência. Teorias não são descobertas, mas
elaboradas subjetivamente. Darwin, portanto, não “descobriu” sua teoria da evolução; ele a
criou. As condições a que me refiro dizem respeito ao que se tinha de dados disponíveis,
mas também, e principalmente, ao “espírito da época” (Zeitgeist). Os itens essenciais da
teoria da evolução de Darwin já estavam presentes tanto nas teorias sociais de Malthus e
Spencer quanto no liberalismo clássico. Ou seja, havia uma pré-disposição subjetiva não só
em função do problema empírico que se apresentava aos naturalistas, mas também em
razão de uma pré-disposição social para aquele tipo de teoria (cf. Sandín, 2000). A criação
da teoria da evolução por seleção natural foi conduzida tanto pelo desafio posto pelo
conhecimento da natureza quanto pela forma de pensamento predominante na época. As
semelhanças do darwinismo com o liberalismo certamente não são meras coincidências.
Apesar de ter sido um estrondoso sucesso editorial, a aceitação da teoria de Darwin
como paradigma científico hegemônico não foi imediata.18 Dizer que isso foi apenas uma
resistência com base em dogmas religiosos é um reducionismo que despreza a influência
do espírito humano no fazer histórico da ciência. O maniqueísmo presente em certas
histórias da ciência sempre coloca em eterna oposição “a ciência que descobre a verdade”
e o “obscurantismo das religiões que a temem”. Esses relatos, ao invés de serem um retrato
histórico fundado em fatos reais, assemelham-se mais às ficções históricas em que
cientistas heróis abnegados, sem convicções pessoais e movidos apenas pelo desejo da
verdade, travam uma eterna luta contra ignorantes, clérigos e beatos aferrados a dogmas de
livros sagrados e desejosos de ocultar a verdade ao mundo. No entanto, nada mais distante
da história real do que essa imagem. Embora o obscurantismo religioso e as perseguições
doutrinárias tenham, de fato, deixado marcas tristes e profundas na história, os cientistas
reais também carregam convicções pessoais que, muitas vezes, são tão dogmáticas quanto
as dos inquisidores renascentistas. Além disso, suas proposições sempre possuem falhas
que criam resistências para a aceitação imediata mesmo entre seus pares (sobre isso, cf. o
estudo de Rossi, 1996, p. 167-178, sobre os erros de Galileu na explicação das marés).
A teoria de Darwin, na sua expressão original, também possui enormes lacunas e, em
seu “estado puro”, não dava conta de explicar uma série de complexidades encontradas nos

18
Segundo Sandín (2002b), esse sucesso deveu-se mais à adequação das idéias de Darwin aos interesses das
elites industriais inglesas e ao fato de que ela funcionava como uma justificativa “científica” para as
44

organismos (no caso as macroscópicas) e nem se adequava ao registro fóssil disponível na


época (e nem ao atual). Portanto, não se tratava apenas de uma doutrina que se opunha a
concepções religiosas, mas uma teoria, de início, cientificamente problemática (cf.
Thuillier, 1997, p.189-224). Daí a resistência de muitos naturalistas em aceitá-la, baseados
em convicções estritamente científicas.19
Hoje, no entanto, a análise do darwinismo não pode se restringir aos escritos de
Darwin. Mesmo com todos os problemas apresentados por A origem das espécies (como,
por exemplo, o desconhecimento do mecanismo da hereditariedade e a inadequação ao
registro fóssil), essa obra lançou as bases para um novo paradigma que orientou as ciências
da vida como um poderoso programa de pesquisa. Ao mesmo tempo, o avanço dos debates
científicos em torno da evolução proporcionou respostas a diversos problemas originais da
teoria de Darwin e reformulou partes de sua estrutura para eliminar as lacunas. Quando, no
início do século XX, as pesquisas do monge Gregor Mendel sobre a hereditariedade foram
redescobertas e passou-se a conhecer mais a respeito da genética, os cientistas trataram de
construir uma síntese entre o darwinismo e esses novos conhecimentos. Com isso, a teoria
de Darwin se fortaleceu e triunfou como ciência (segundo alguns, de forma definitiva) sob
a forma do neodarwinismo ou Teoria Sintética Moderna. O paradigma predominante nas
ciências biológicas, hoje, é o neodarwinismo e não simplesmente as proposições originais
de Darwin. Falar em darwinismo hoje é falar da “síntese moderna”, por isso, no decorrer
deste livro, usarei apenas a designação “darwinismo”, a não ser que o contexto exija a
especificação que distinga o darwinismo original do neodarwinismo.
Embora a Teoria Sintética lhe tenha acrescentado vários princípios, a estrutura
central da teoria da evolução darwinista é extremamente simples. Segundo Stephen Jay
Gould, compõe-se de três eixos básicos:

1. Os organismos variam, e essas variações são herdadas (pelo menos em parte) por
seus descendentes. 2. Os organismos produzem mais descendentes do que aqueles que
podem sobreviver. 3. Na média, a descendência que varia com mais intensidade em
direções favorecidas pelo meio ambiente sobreviverá e se propagará. Variações
favoráveis, portanto, crescerão na população através da seleção natural (Gould, 1999,
p. 1).

profundas desigualdades sociais e nacionais geradas pelo capitalismo industrial, do que pelas suas qualidades
científicas.
19
Não vem muito ao caso, para o debate atual, se bispos ou clérigos da Igreja Anglicana rejeitaram a teoria
de Darwin, uma vez que a própria hierarquia daquela Igreja já se retratou e que a maioria esmagadora dos
teólogos cristãos não-fundamentalistas aceitam a teoria de Darwin sem problemas. Além disso, e mais
importante, a influência das igrejas no debate acadêmico e científico atual é tão reduzida que uma suposta
oposição religiosa à teoria de Darwin resultaria inócua para os propósitos da ciência teórica.
45

O primeiro eixo introduz um aspecto não direcional na evolução: os organismos


simplesmente “variam”, sem causa determinada. A aleatoriedade das variações é burilada
pelo terceiro eixo. A seleção natural as direciona em função de suas vantagens para a
sobrevivência e neutraliza o caráter aleatório da evolução. O segundo eixo é, conforme diz
o próprio Darwin, a aplicação da teoria de Malthus aos animais e vegetais. Malthus
afirmava que o crescimento da população não é acompanhado pelo crescimento dos
recursos disponíveis, o que torna necessário uma limitação natural que bloqueie o aumento
populacional (epidemias, guerras, doenças ocasionadas pela fome, etc.), ou a intervenção
através do controle da natalidade junto às populações pobres. Caso não se detenha o
crescimento pela ação de fatores limitadores, a população, como um todo, não sobrevive.
Darwin cita Malthus duas vezes em A origem das espécies, uma na introdução e outra no
capítulo 3 (“A luta pela sobrevivência”). Em ambas as referências, Darwin diz
textualmente que sua idéia “é a doutrina de Malthus aplicada à totalidade dos reinos animal
e vegetal” (Darwin, 2003).20 A respeito também da influência malthusiana na sua teoria da
evolução, Darwin diz em sua autobiografia:

Em outubro de 1838 (...) estava lendo, para me distrair, o Essay on pupulation de


Malthus e, estando já bem preparado para compreender a luta pela existência travada
em toda a parte através de uma observação contínua dos hábitos de animais e plantas,
ocorreu-me de súbito que, sob tais circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a
ser preservadas, enquanto as desfavoráveis seriam destruídas. O resultado disso seria a
formação de novas espécies (Darwin, apud Gould, 1999, p.11).

Como conseqüência desses eixos de sua compreensão da origem das espécies,


Darwin via na natureza uma constante luta pela sobrevivência, cujos vencedores eram
agraciados com a possibilidade de ter uma prole maior. Essa talvez seja a mais popular
idéia relacionada ao darwinismo. Foi ela que gerou a imagem da natureza de “rubros
21
dentes e garras” dos naturalistas do século XIX e serviu de reforço ao liberalismo de
Herbert Spencer, que se tornou um “darwinismo social” (uma ideologia curiosamente
reforçada a partir do final da década de 1980 com o triunfo das doutrinas neoliberais pelo
mundo). Com certeza, inspirado por Malthus, Spencer e pela teoria econômica liberal,
Darwin viu na natureza uma competição contínua pela sobrevivência, em função da

20
No texto original, tanto da introdução quanto do capítulo 3 (com mínimas variações): “This is the doctrine
of Malthus, applied to the whole animal and vegetable kingdoms” (Darwin, 2005).
21
Citação do poeta Alfred Tennyson.
46

desproporção entre a quantidade de recursos e o crescimento da população.22 Segundo


Darwin, no entanto, o termo “luta” não tem necessariamente o significado de embate
violento:

Devo frisar que emprego o termo luta pela sobrevivência em sentido lato e metafórico,
o que implica relações mútuas de dependência dos seres organizados, e, o que é mais
importante, não somente a vida do indivíduo, como a sua aptidão e bom êxito em
deixar descendentes. Afirma-se que dois animais carnívoros, em tempos de fome,
lutam um contra o outro em busca de alimentos necessários para sua sobrevivência.
Mas chegar-se-á a dizer que uma planta, à beira de um deserto, luta pela sobrevivência
contra a falta de água, embora fosse mais correto dizer que a sua sobrevivência
depende da humildade. Poder-se-ia dizer com mais exatidão que uma planta, que
produz anualmente um milhão de sementes, das quais uma, em média, chega a
desenvolver-se e a amadurecer por seu turno, luta com as plantas da mesma espécie,
ou espécies diferentes, que cobrem já o solo (...). Emprego, pois, para uma maior
comodidade, o termo geral luta pela sobrevivência, nos diferentes sentidos que se
confundem uns com os outros (Darwin, 2003, p. 69-70).

Pode-se interpretar a citação acima de duas maneiras. A mais complacente pode


acreditar que Darwin queria amenizar as conseqüências morais da proposição da luta pela
sobrevivência como regra natural, tirando do termo “luta” a característica de embate
violento ou de guerra. Se assim fosse, a aplicação do darwinismo à sociedade não teria o
aval de seu criador, que falava em luta e competição apenas metaforicamente.
Mas, há uma outra maneira de se interpretar o excerto – que, particularmente, penso
ser mais adequada em relação ao conjunto de sua obra. Darwin já tinha como pressuposto,
por sua formação vitoriana e suas leituras de Malthus e Spencer, que o princípio geral da
evolução, assim como na concepção liberal da sociedade, era a luta pela sobrevivência.
Tratava-se então de encaixar os dados, ainda que forçadamente, na regra pressuposta – e
bem aceita pelo pensamento dominante –, mesmo nos casos em que a natureza não parecia
submeter-se a ela; como os exemplos da citação acima. Ao invés de se ver na planta do
deserto uma forma de acoplamento ao ambiente para se manter a sintonia entre organismo
e meio que permite a vida, deve-se inseri-la no mesmo processo de luta e competição dos
mamíferos que disputam alimento, em que o mais forte garantirá a sobrevivência.
De qualquer maneira, o darwinismo é uma teoria que coloca a competição e a luta
pela sobrevivência como motores do desenvolvimento das espécies, pois a seleção natural
acontece não só na relação com o ambiente físico, mas também com predadores e
indivíduos da mesma espécie.

22
Além de reconhecer a aplicação da teoria de Malthus à natureza, Darwin cita Spencer cinco vezes em A
origem das espécies, nos capítulos 1, 3, 4, 9 e 15.
47

Darwin, contudo, não sabia como as variações ocorriam e nem por que eram
herdadas. A Teoria Sintética, ou neodarwinismo, incorporou a genética mendeliana e as
leis da hereditariedade e atribuiu a causa das variações nos organismos a mudanças
aleatórias que ocorrem no código genético. Essas mutações são minúsculas. Tratam-se de
pequenas mudanças em seqüências de bases em um gene ou a duplicação de genes – ou
seja, tratam-se de variações moleculares. Esse acréscimo reforça duas implicações dos
eixos darwinistas, o gradualismo das mutações e a ausência de um mecanismo causador
das mudanças.
Para o darwinismo ortodoxo, as mutações não podem ser súbitas e agir através de
saltos, pois mutações grandes e repentinas não têm, para efeitos práticos, nenhuma
probabilidade de gerar componentes complexos e funcionais nos organismos, como um
olho completo ou um cérebro (se considerarmos que as mutações são aleatórias). Em
termos estatísticos, a probabilidade de mudanças aleatórias simultâneas em vários genes
gerarem um órgão completo e funcional é praticamente nula. Seria o mesmo que construir
uma casa em miniatura apenas lançando uma grande quantidade de palitos para o alto.
Além disso, uma variação abrupta que criasse em um indivíduo as características de uma
nova espécie o deixaria sem parceiros para reprodução (dado que o que caracteriza uma
espécie, pelo menos no reino animal, é a capacidade de cruzamento fértil). Para os
neodarwinistas, pesa também a favor de mudanças graduais, passo a passo, o fato da maior
parte de grandes mutações serem desfavoráveis, dado o ajuste anterior da espécie ao seu
ambiente (Dawkins, 2001, p. 327-371).
Darwin também defendia uma mudança lenta, mas porque observava que as
diferenças entre os indivíduos da mesma espécie eram pequenas e, na ausência de um
seletor consciente, apenas com muito tempo as variações poderiam acumular-se para gerar
uma nova espécie. Quando se constatou que variações genéticas são mudanças moleculares
na seqüência de bases que constituem a grande molécula de DNA e se pressupôs que tais
modificações são completamente aleatórias, o processo de geração de uma nova espécie,
na ótica neodarwinista, deve ser muito mais lento e gradual do que imaginava o próprio
Darwin.
Contudo, o registro fóssil, uma das importantes bases empíricas de qualquer teoria da
evolução, não revela esse gradualismo. Os dados da paleontologia mostram longos
períodos de estase (onde espécies predominam sem mutações significativas), seguidos de
eventos de extinção em massa e surgimento brusco de novas espécies. Embora ainda possa
haver quem atribua este fato à imperfeição na coleta de dados paleontológicos, Gould e
48

Eldredge (1972; 1993) propuseram que esse padrão revela o que ocorre de fato na evolução
e chamaram o seu modelo de “equilíbrio pontuado”. Segundo os autores, há uma tendência
das grandes populações resistirem às mudanças, devido ao grande número de
possibilidades de cruzamentos que “dissipam” as mutações e reduzem as probabilidades
das variações serem transmitidas aos descendentes. Mas, em pequenos grupos que se
isolaram da população principal, na maioria das vezes por uma barreira geográfica, as
possibilidades de cruzamento são pequenas e ocorrem entre aparentados, o que dá às
mutações mais chances de prevalecer e de se acumular de forma rápida (em escala
geológica), e isso pode resultar na formação de uma espécie diferente.
Quando esse novo grupo “evoluído” reencontra a população da qual se separou, já
está muito diferente para que ocorram cruzamentos férteis com o grupo original. Nesse
caso, pode acontecer uma coexistência ou uma competição na qual a antiga população é
extinta. Isso explicaria, segundo os autores, o padrão de estase, extinção e surgimento
aparentemente brusco de novas espécies.
Mesmo que no modelo do “equilíbrio pontuado” de Gould e Eldredge a evolução
passe por períodos de mudanças “rápidas” seguidos de longos períodos de estase, esse
“rápido” só faz sentido em termos geológicos e pode significar até milhões de anos. Ainda
assim, para os autores, as mutações nos indivíduos da parte isolada da população maior
seguem a lógica gradualista do darwinismo. Segundo Gould (1992, p. 259) sua visão
advoga “mudanças espasmódicas ou episódicas, preferencialmente a um ritmo suave e
gradual”. O modelo de Gould e Eldredge adapta o darwinismo a uma de suas bases
empíricas conflitantes (o registro fóssil), sem macular seus princípios fundamentais.
A outra implicação decorrente dos eixos da teoria de Darwin e reforçada pela Teoria
Sintética é a completa aleatoriedade das variações. As mutações são concebidas como
acidentais, totalmente dependentes do acaso. Não há, para o darwinismo, nenhum princípio
causador das mudanças que possa ser categorizado e tornar-se um conceito dentro da
teoria. A multiplicidade de espécies e sua complexidade, embora aparente ter um
direcionamento ou um motor, são apenas frutos da intensa variação que deixa muitas
possibilidades sobre as quais a seleção natural pode agir. É um puro lance de sorte um
organismo ser agraciado com um tipo de mutação que possa vir a ser vantajoso em
determinadas condições ambientais. A adaptação que, segundo a teoria darwinista, leva à
evolução, não é provocada pelo meio, senão que ocorre por um misto entre acaso e seleção
natural. Se não houver a coincidência de acontecer, por acaso, mutações que ofereçam
vantagens adaptativas, não há o que a natureza selecionar e, portanto, não há evolução.
49

Desse princípio decorre outra importante implicação dos eixos da teoria darwinista: o
papel exclusivo da seleção natural na manutenção das variações. Diferente da seleção
intencional dos criadores de pombos e de cães de caça que serviram de inspiração para
Darwin, não pode haver intencionalidade na escolha das mudanças que prevalecerão no
mundo selvagem. É apenas a maior aptidão de um organismo para sobreviver em seu meio
e vencer a luta pela sobrevivência que decidirá quais variações serão mantidas através da
geração de um maior número de descendentes. A natureza faz todo o papel.
Portanto, para que se chegue a formar organismos complexos a partir de pequenas
mutações aleatórias, a seleção natural é um fator imprescindível para a manutenção das
mudanças e para que a acumulação de mutações ao acaso chegue a gerar uma nova
espécie. Ou seja, a seleção natural age como fator de restrição da aleatoriedade das
mutações, conforme já foi observado acima. Todo provável passo intermediário entre um
ancestral simples e sua descendência mais complexa deve apresentar alguma vantagem
seletiva que justifique sua permanência e posterior predominância.
Isso significa que, para o darwinismo, uma mutação só se propagará caso apresente
vantagem em relação à sobrevivência em um determinado ambiente e à capacidade de
gerar mais descendentes. Caso contrário, não haverá motivos para que determinada
mutação esteja presente na maioria dos indivíduos. Não apresentando vantagem seletiva, as
mudanças acabam absorvidas pelo padrão normal da espécie, através dos cruzamentos. Na
explicação evolutiva de organismos complexos, os passos não podem ser apenas citados
como seqüenciais, pois cada um tem que ser relacionado à obtenção de alguma vantagem
seletiva. Se este fator não for considerado, a explicação não preserva a teoria. Tal
exigência dificulta a descrição da evolução das espécies em termos estritamente
darwinistas, em função da dificuldade de se reconstituir as diversas características
ecológicas do passado – embora estudos em ecologia evolutiva procurem dar conta desse
problema (cf. Foley, 1993, p. 81-102).
O geneticista japonês Motoo Kimura defendeu, por outro lado, que a maioria das
mutações são neutras, ou seja, não são adaptativas, e ocorrem em uma taxa regular.
Cavalli-Sforza estudou os efeitos dessas mutações, chamadas de “deriva genética”, em
pequenas populações isoladas geneticamente (geograficamente ou por motivos culturais ou
religiosos), onde os cruzamentos próximos tendem a aumentar a probabilidade de
permanência de uma mutação neutra (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p. 142-149).
Neste caso, a seleção natural não pode ser responsabilizada pela manutenção da mudança.
Segundo Dawkins, essa visão, conhecida como “neutralismo”, é ocasionalmente
50

apresentada como uma “alternativa à seleção darwinista”. No entanto, a maioria dos


autores a adota como um acréscimo ao estudo da diversidade dos seres vivos e não como
uma explicação para o aparecimento de novas espécies. É apenas um elemento que explica
diferenças intra-específicas. Ainda assim, o valor adaptativo da deriva genética só pode ser
definido pela seleção natural (Cavalli-Sforza & Cavalli-Sforza, 2002, p. 142-149;
Dawkins, 2001, p. 440-442). A mera mutação sem conteúdo adaptativo, embora exista e
possa se propagar em populações isoladas, não é suficiente, na teoria hegemônica, para
explicar a evolução: o papel da seleção natural é condição sine qua non para que ela
ocorra.
A teoria da evolução darwinista foi aceita como capaz de apresentar um modelo
teórico naturalista capaz de explicar a variedade das espécies, a razão de suas semelhanças,
as causas da diferenciação e o surgimento de novas espécies em clara descendência de
espécies diferentes, atuais ou extintas. A partir dos escritos de Darwin e após a sua
coroação como paradigma em sua versão moderna, praticamente todas as ciências da vida
passaram a ser orientadas por uma concepção evolucionista darwiniana e um amplo campo
de pesquisas foi aberto. O paradigma darwinista foi (e ainda é) um grande sucesso entre a
maioria da comunidade científica. A polêmica mais popular em torno dele ficou restrita à
sua suposta oposição à fé ou a suas “conseqüências filosóficas radicais” como diz Gould.
Entretanto, embora o impacto do darwinismo para a fé e para a filosofia tenha sido
inegável, também é inegável o fato de que toda nova compreensão científica do mundo
traz conseqüências filosóficas e teológicas. As conseqüências extracientíficas da ciência
estão presentes em toda a história do pensamento e não são “privilégios” da teoria
darwinista da evolução. Mas, como é costume exagerar as forças do inimigo para aumentar
os méritos do herói, insiste-se em ressaltar o mérito revolucionário extracientífico da teoria
de Darwin.
De fato, em uma época em que parte da consciência social ainda estava submissa às
igrejas e que certos valores burgueses eram ainda revolucionários em relação ao
conservadorismo moral herdado de épocas anteriores, empunhar a bandeira darwinista era
lutar contra parte significativa do status quo, principalmente em termos filosóficos. Por
isso, mesmo após 150 anos, muitos ainda acreditam ser o darwinismo uma teoria
filosoficamente revolucionária. Difícil é entender como uma teoria que seja supostamente
contrária ao status quo pode ter tanto destaque e propaganda nos meios de formação de
opinião controlados pelas elites dominantes. O quadro, na verdade, mudou. A doutrina
social e a concepção filosófica de fundo que predominam na sociedade atual são
51

eminentemente darwinistas e nada mais há de revolucionário na defesa do darwinismo. É


hoje uma opção conservadora – embora não haja nada de intrinsecamente negativo em
certos conservadorismos; destaco apenas que não se pode reivindicar caráter crítico apenas
por ser darwinista, como poderia ser no passado dominado pelas idéias religiosas.
Em suma, para a compreensão da evolução e da adaptação dos organismos ao meio –
fatores interligados na concepção biológica hegemônica – o darwinismo é considerado a
melhor ferramenta teórica disponível para a maioria da comunidade científica. O grupo que
manifesta publicamente sua insatisfação constitui-se uma minoria dissidente.
No entanto, ao mesmo tempo em que Darwin formulava sua teoria a respeito de
animais e plantas, um outro nível de realidade era investigado e obteve, paralelamente,
grandes avanços na segunda metade do século XIX e durante todo o século seguinte. Trata-
se do estudo da célula e de seu mecanismo interior. Darwin não tinha a menor noção do
que se passava no interior de uma célula e não direcionou sua reflexão, como é óbvio, a
essa dimensão da realidade natural. O paradigma darwinista poderá, contudo, sobreviver a
esse nível de fenômenos, ou estamos, mais uma vez, diante de um caso em que a
descoberta de novas dimensões da natureza exige a formulação de novas concepções
científicas?
52

3. UM NOVO MUNDO DENTRO DA CÉLULA

O desencantamento...
desencantamento...
A compreensão de que as células são as unidades básicas que compõem todos os
seres vivos data da primeira metade do século XIX e deve-se principalmente aos trabalhos
de Matthias Schleiden e Theodor Schwann. Embora não se possa atribuir o surgimento de
uma teoria à simples aplicação de instrumentos adequados à observação (dado que
instrumentos não elaboram teorias), é inegável que a base de uma teoria celular para a
composição do ser vivo surgiu apenas quando sucessivos refinamentos na capacidade dos
microscópios revelaram dimensões da realidade antes completamente ignoradas e sequer
supostas.
No decorrer da segunda metade do século XIX, aceitava-se que as células
compunham todos os tecidos e órgãos, tanto de animais como de vegetais, e que o
desenvolvimento embrionário ocorria por divisões celulares. Descobriu-se que pequenos
filamentos eram partilhados no momento da divisão celular. A descoberta se deu através da
utilização do corante cromatina na observação da célula, que revelou e deu nome aos
cromossomos. Entretanto, não se tinha ainda uma idéia clara acerca das substâncias que
formavam as células e nem do tipo de interação que ocorria em seu interior. Alguns,
inclusive, acreditavam que a matéria que as constituíam era de natureza qualitativamente
distinta da que participava da composição dos objetos inanimados, ou que as forças que
determinavam o seu desenvolvimento e a constituição dos organismos vivos eram externas
ao fenômeno, derivadas de um princípio vital ou outra força que impulsionava a
organização, associação e reprodução celulares – idéia conhecida como vitalismo.
As suspeitas de vinculação com interações químicas comuns só surgiram após o
trabalho de Friedrich Wöhler que, em 1828, obteve uréia apenas como resultado do
aquecimento de cianato de amônio. O cianato de amônio é um composto químico comum,
ao passo que a uréia é resultante de processos biológicos (encontrada na urina dos animais,
no leite e no sangue). A obtenção de um composto orgânico pelo simples aquecimento de
um inorgânico sugeriu que os processos biológicos poderiam ser resultantes de processos
químicos. Embora isso tenha dado uma contribuição fundamental para o surgimento da
química orgânica, não chegou a determinar um rompimento definitivo da barreira
53

conceitual que separava os processos vivos dos não-vivos. A célula ainda era apenas um
dado, porém pouco conhecido em sua estrutura interna. Supunha-se, ademais, que sua
estrutura era mecanicamente simples, cujo conhecimento poderia revelar os segredos da
dinâmica dos organismos viventes.
Até por volta da década de 40 do século XX, ainda não se tinha claro como era o
funcionamento interno da célula. Conhecia-se já algo mais a respeito do núcleo e algumas
organelas, devido à utilização do microscópio eletrônico, mas muito pouco da
complexidade que hoje se conhece. Ao mesmo tempo em que alguns sugeriam uma
dinâmica resultante da interação de moléculas comuns, organizadas de uma forma peculiar,
outros ainda defendiam a ação de um princípio vital, que agia sobre a matéria comum ou
sobre um tipo qualitativamente diferente da que constituía os seres inanimados. Embora
uma ou outra posição pudesse ser mais ou menos acreditada nos meios científicos, os
argumentos a favor da organização molecular regida por leis físicas e químicas ordinárias
não dispunham de uma base empírica tão forte que pudesse refutar a idéia de um princípio
vital.
O físico Erwin Schrödinger, famoso pela equação que descreve a lei dinâmica básica
da teoria quântica, também se notabilizou por ter defendido a idéia de que a vida era
basicamente constituída por moléculas comuns, dispostas de uma forma análoga à dos
cristais (Schrödinger, 1997). Schrödinger não foi o primeiro a levantar tal hipótese, mas foi
o que lhe deu uma elaboração rigorosa e forneceu argumentos suficientes para induzir um
grande número de cientistas a trilhar o caminho da pesquisa das dimensões moleculares da
vida. Foi um importante passo para se descobrir a “química da vida” (bioquímica). A
coroação do programa molecular adveio dos trabalhos de James Watson e Francis Crick.
Através de métodos matemáticos e instrumentos avançados de cristalografia por raios X,
os dois cientistas revelaram, em 1953, a forma da molécula responsável pela codificação
da estrutura dos organismos vivos, o ácido desoxirribonucléico (DNA).
A partir do trabalho de Watson e Crick, ocorreram inúmeros avanços na
compreensão da química da vida durante toda a década de 60 do século XX. Algumas
moléculas essenciais à vida foram sintetizadas em laboratório, através de experimentos
com reações químicas comuns. As experiências de Juan Oró, em 1960, conseguiram
sintetizar uma das bases que compõem os ácidos nucléicos, a adenina, utilizando processos
químicos que procuravam reproduzir as condições da Terra prebiótica (antes da existência
de vida). Mais tarde, esse mesmo químico sintetizou outra base, a guanina, e outros
conseguiram a síntese da uracila (base componente do RNA), em 1961, da citosina, em
54

1966, e da timina, em 1971. Todas as bases que compõem a estrutura molecular


fundamental da vida foram produzidas em laboratório através da simulação das condições
prováveis do planeta há 4 bilhões de anos.
Contudo, a síntese das bases foi obtida sempre com rendimento muito baixo para
explicar o surgimento dos ácidos nucléicos (DNA e RNA) e a origem da vida. Uma coisa é
conseguir as peças, outra é explicar a montagem. Apesar de não desvendar o mistério da
célula, essas experiências foram essenciais para confirmar a vinculação dos processos
orgânicos com reações químicas comuns entre elementos conhecidos. A matéria que
constitui os organismos viventes é formada pelas mesmas moléculas do mundo inorgânico.
O mais importante, porém, foi que o programa de pesquisa molecular da vida revelou
não apenas a estrutura das moléculas básicas dos processos bioquímicos – os ácidos
nucléicos, as proteínas e os aminoácidos – mas também desmontou gradativamente a idéia
de que a célula era uma unidade simples. Essa é uma questão de extrema importância.
Costuma-se ressaltar uma espécie de “desencantamento” ocasionado pela revelação de que
a vida é apenas um aglomerado de moléculas funcionando de forma especial e constituída
basicamente de seis elementos: carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e
enxofre. Os adversários do vitalismo salientaram muito a derrota da idéia do princípio vital
quando se revelou que, nos organismos vivos, a interação entre átomos segue leis físicas
conhecidas e a interação entre moléculas faz o mesmo com relação a leis químicas
igualmente compreendidas. A matéria da vida não tinha nada de extraordinário: o mistério
estava desfeito. De fato, esse foi um avanço sem precedentes para o conhecimento da vida.
Suas aplicações na medicina, farmacologia, agricultura e criação de animais são realmente
notáveis.23

parei
... e o re-
re-encantamento aqui
Mas o que é preciso ser ressaltado é que tais moléculas e suas interações constituem,
no conjunto, um sistema altamente complexo e organizado, diferente de tudo o que a
natureza tenha revelado até o momento. Tamanha organização e interdependência de ação
dos diferentes componentes que constituem a estrutura celular só são comparáveis à
dinâmica organizativa de grandes empresas humanas – mesmo assim, os empreendimentos
organizados humanos perdem em termos de complexidade, interação e organização,
mesmo sendo planejados por seres conscientes. Descobriu-se que o funcionamento da

23
O que não significa que tenham sido benéficas.
55

célula e dos processos básicos que sustentam a vida são fenômenos de complexidade
extraordinária. E quanto mais se aprimora a capacidade de se conhecê-los, mais surpresas
são reveladas. Se houve um desencantamento com relação à matéria que constitui a vida,
ainda permanece o mistério acerca de sua organização e, principalmente, de sua origem.
Os que propunham que leis simples da química e da física, aplicadas localmente,
explicariam todo o funcionamento da célula pareciam desconsiderar, por seu reducionismo,
o problema da complexidade e da ordem que emergem das interações moleculares no
interior das células e dos organismos que elas compõem. Alguns cientistas se têm atentado
para esse novo problema e propõem formulações que variam entre uma espécie de
24
vitalismo químico cósmico e teorias da complexidade, autopoiese e auto-organização.25
Há ainda os que propõem a intervenção de um “planejador inteligente” na organização da
complexidade no nível celular (Behe, 1997a).
O conhecimento mais profundo sobre o funcionamento da vida, ao mesmo tempo em
que desvendou um mistério (a matéria que a constitui), surpreendeu o pensamento humano
ao mostrar um comportamento inusitado para um aglomerado de componentes químicos
comuns: a complexa organização da matéria que a torna viva.26 A complexidade e
organização das células são manifestadas nas intrincadas e altamente coordenadas
interações entre as moléculas. Pedaços inanimados de matéria interagem para manter o
organismo vivo, possibilitar seu desenvolvimento através do metabolismo e da síntese de
proteínas e permitir sua replicação com um mínimo de erro possível. Nenhumas das partes
podem ser consideradas vivas isoladamente. A vida emerge somente da inter-relação
coordenada de cada uma delas. Apenas descrever a quantidade de troca de informação e
trabalho coordenado que ocorre no interior da célula já é trabalho bastante difícil; mais
difícil ainda é dar uma explicação de como esse processo pode ter-se originado e
evoluído.27

24
A expressão é de minha autoria. Mas, Christian de Duve, prêmio Nobel de Medicina em 1974, por
exemplo, afirma que há uma tendência cósmica para a vida. Em suas palavras: “À famosa frase de Monod ‘O
universo não estava prenhe de vida, nem a biosfera do homem’ eu respondo: ‘Você está enganado. Eles
estavam, sim’” (De Duve, 1997, p. 393.).
25
Ver Maturana & Varela (1997). A teoria da autopoiese de Maturana e Varela é seguida pela bióloga Lynn
Margulis, que acrescenta a tese da simbiogênese na constituição e evolução dos organismos vivos (Margulis
& Sagan, 2002a e 2002b). Também neste campo da auto-organização e da complexidade situam-se os
biólogos Stuart Kauffman (1997) e Henri Atlan (1992). Ver também sobre isso Capra, 2000.
26
Esse é o principal fator que tem gerado os questionamentos ao neodarwinismo na sua capacidade de lançar
luz ao entendimento dessa complexidade, como veremos adiante.
27
Os leitores podem conferir a complexidade dos processos bioquímicos e moleculares da célula consultando
um livro de bioquímica ou biologia molecular em alguma biblioteca, como por exemplo Voet, Voet & Pratt,
2000 e Alberts et. al. 2004.
56

Implicações para o debate científico


Tal complexidade, na maioria das vezes, encontra-se ausente nos relatos de autores
que procuram dar uma explicação científica para o surgimento e evolução da vida. Muitos
parecem acreditar que a ciência, para fazer jus à sua fama de conhecimento “verdadeiro” e
“provado”, deve ter sempre à mão uma explicação final e definitiva para todos os
fenômenos da natureza e que nada pode existir que não seja explicado cientificamente.
Quem assim concebe o saber científico não consegue conviver com mistérios ainda não
desvendados e, por isso, prefere omiti-los a reconhecer a insuficiência do nosso
conhecimento. Por outro lado, há aqueles que utilizam a existência de lacunas e fenômenos
não explicados como argumento contra a capacidade do método científico de encontrar
explicações naturalistas para os fenômenos naturais e defendem a necessidade de se inserir
o sobrenatural na ciência (muitas vezes a ação direta de um ser inteligente).
Em função dessa polarização – ambas decorrentes de concepções acríticas sobre a
ciência –, uns ocultam a complexidade que não é satisfatoriamente explicável pelos
instrumentais teóricos atuais, por temerem fortalecer a tese do sobrenatural; e outros
acreditam que jamais haverá uma explicação naturalista para a complexidade, e, por isso,
recusam-se a reconhecer a necessidade de novos paradigmas restritos aos limites do
conhecimento científico. Quando grupos de cientistas concebem seu campo de trabalho
como “trincheira ideológica, teológica ou metafísica” e temem reconhecer a limitação de
seus conhecimentos por “razões estratégicas”, os derrotados são a ciência, o conhecimento
humano e a sociedade.
O problema, tanto de uma visão como de outra (ou seja, a que acredita que a ciência
sempre tem uma explicação pronta para tudo e a que acha que a ciência deve render-se ao
sobrenatural por não conseguir explicar certos fenômenos) é não considerar a historicidade
do empreendimento científico e não compreender que as explicações da ciência são
resultados de um diálogo constante e dinâmico entre o ser humano e a natureza. “Não
conseguir explicar algo” não é uma sentença definitiva. Na verdade significa “não
conseguir explicar algo com os instrumentos teóricos existentes em determinado
momento” – deixando claro que este “algo” limita-se a questões acerca do mundo natural.
O fato do saber humano possuir limites essenciais não constitui um problema que deponha
contra o saber científico. É apenas uma advertência sobre o caráter eminentemente
histórico do conhecimento. Não é preciso esconder as insuficiências de um paradigma para
se defender a ciência. Pelo contrário, é na admissão da possibilidade de se reformularem
57

totalmente os instrumentos teóricos – que ocasionalmente se tornam inadequados – que


repousa a riqueza do empreendimento científico.

A simplificação oculta a realidade


realidade
No que diz respeito às dificuldades atuais na compreensão da vida, relatos simples e
facilmente digeríveis pelo grande público só são possíveis quando a complexidade é
ignorada ou ocultada. O problema é que, sem considerá-la, a “explicação” perde sua
capacidade elucidativa e assume características míticas. Com efeito, a função do mito em
diversas formas de sociedade é dar explicação para os fenômenos do mundo, sem se
preocupar com a adequação do relato ao mundo real. O mesmo ocorre com a narrativa de
cientistas que buscam explicar a origem e evolução da vida sem considerar a complexidade
descoberta no mundo celular. Esse tipo de narrativa fornece, de fato, uma explicação, mas,
ao não se atentar para os detalhes reais, funciona apenas como história que satisfaz a
curiosidade, mas não explica o fenômeno.
Tomemos como exemplo uma parte do relato de Richard Dawkins sobre o
surgimento das primeiras células em O gene egoísta. Segundo o autor:

[Alguns] replicadores talvez tenham “descoberto” como se protegerem a si próprios,


quer quimicamente, quer erguendo uma barreira física de proteína à sua volta. Poderá
ter sido assim que surgiram as primeiras células vivas. Os replicadores começaram
não só a existir, mas a construir invólucros, veículos para a preservação de sua
existência (Dawkins, 1989, p.53).

Dawkins prossegue dizendo que sucessivos melhoramentos ocorreram na luta pela


sobrevivência até que surgissem “máquinas de sobrevivência” mais eficientes e complexas.
Essas afirmações evocam a idéia de que a síntese de proteínas por genes (os “replicadores”
que existiram originalmente) é um processo simples que não precisa de maiores
explicações. O processo pelo qual as proteínas são codificadas pelos genes e sintetizadas
na célula não é mencionado, mas, obviamente, está pressuposto na afirmação de que os
replicadores “descobriram” formas de se proteger com um invólucro protéico. No entanto,
como Dawkins nada mais diz sobre o assunto, o leitor tem a impressão de que a produção
de proteínas por uma célula (ou, mais ainda, por um precursor da célula ainda sem
membrana) é algo trivial, simples e óbvio, que simplesmente acontece na natureza e que
não merece maiores investigações.
Mas, na verdade, a afirmação de que uma nova proteína ou “uma barreira protéica”
foi sintetizada pela ação de um novo gene ou por uma mutação no “replicador ancestral”
58

oculta um processo extremamente complexo sob a forma de uma sentença simples. Mesmo
uma breve descrição mais detalhada do que está envolvido na síntese de proteínas não dá
conta de toda a complexidade dos mecanismos conhecidos que a tornam possível. Os
parágrafos seguintes têm o único objetivo de exemplificar, de forma genérica, o que se
esconde por trás do processo aparentemente simples da produção de uma proteína a partir
de um gene.28 Como se acredita que toda mudança hereditária é uma mudança nas
sequências dos genes, com a conseqüente produção de tipos variados de proteínas, a
descrição da evolução também deveria se referir a essa complexidade, procurando explicar
como surgiu e se desenvolveu. Não se pode apenas dizer que esse processo simplesmente
“aconteceu”. Entretanto, grande parte das descrições evolucionistas, principalmente as de
acesso ao grande público, usualmente recorre a afirmações simples para relatar a possível
origem das células a partir de mutações aleatórias e seleção natural (ou seja, a partir dos
eixos do darwinismo).29 Tentarei exemplificar da forma mais abreviada possível.30

O real é mais complexo (esclarecimentos científicos)


Um gene é um pedaço de informação contido na longa molécula de DNA (ácido
desoxirribonucléico), especificado por um tipo de ordenamento seqüencial de quatro bases:
adenina, citosina, guanina e timina (representadas pelas letras A, C, T e G).31 O DNA é
uma molécula formada pela disposição em seqüência de milhões de moléculas de fosfato e
ribose, às quais estão unidas as quatro bases (cada molécula contém uma das bases). O
fosfato, a ribose e uma das quatro bases formam os nucleotídeos. O DNA é uma molécula
extensa formada pela união de uma grande quantidade de nucleotídeos. Como os
nucleotídeos são compostos com uma das quatro bases, o resultado é uma enorme
seqüência de A, C, T e G com diversas disposições.
O pedaço que constitui um gene é formado geralmente por milhares de nucleotídeos
e encontra-se junto a dezenas de milhares de outros, como numa corrente e em seqüência

28
A próxima seção tem uma característica mais técnica e pode ser lida de passagem por um leitor avesso a
esse tipo de linguagem, mas não devem ser desconsiderados em seu objetivo de dar uma fundamentação
fática aos argumentos aqui utilizados.
29
Esse é o ponto de encontro deste capítulo com o anterior (A luz de Darwin). As tentativas de se aplicar o
darwinismo à origem da vida parece passar por cima do que se conhece hoje do interior da célula.
30
Uma descrição detalhada do processo de codificação de proteínas a partir da formação da molécula de
RNA, com todos os seus detalhes e enzimas envolvidas podem ser encontrados em Alberts et. al (2004, p.
299-372) e Voet; Voet & Pratt (2000, p. 813-883).
31
Na verdade só podemos dizer que essa seqüência representa “um pedaço de informação” por conhecermos
os seus resultados e o processo como um todo – ou seja, é uma descrição do observador. No DNA, o que se
59

contínua sem conteúdo informativo aparente. O processo que se desenrola no interior da


célula tem por base a identificação das seqüências que constituem um gene, onde está
contida a informação para a síntese de proteína. Para identificar um gene, há outras
seqüências que agem como marcadores. Existem marcadores de início, reforço e final
gene, todos também formados por seqüências das quatro bases. Trata-se de um código
escrito com quatro elementos químicos que funcionam como unidades de informação,
como as letras do alfabeto, “lido” e interpretado por outras moléculas no interior da célula.
A rigor, o pedaço do DNA que chamamos gene não é nada a não ser quando inserido
em uma estrutura celular ou quando interage com outras moléculas. Sem a inserção em um
todo interagente, uma molécula de DNA não contém nada de especial ou informativo, ou
seja, não contém “genes”, mas tão somente uma seqüência contínua e desordenada de A,
C, T e G. O conteúdo informativo só se manifesta quando uma enzima (a RNA polimerase)
identifica o gene e fabrica outra molécula análoga àquela seqüência de DNA, chamada
RNA (ácido ribonucléico). O gene é uma espécie de molde para a fabricação do RNA. Para
a produção de uma molécula de RNA, outras enzimas entram em ação: uma para escolher
o gene certo (o molde) a ser copiado, outra para “consertar” o DNA afetado pela RNA
polimerase, outra para corrigir possíveis erros de cópia, etc. Não se trata de um simples
processo de conversão automática de uma seqüência de letras em outra correlata. As
relações de decodificação das informações genéticas em uma célula constituem um
processo extremamente complexo e as enzimas envolvidas parecem “saber” o que estão
fazendo ou estarem “programadas” para fazê-lo.
Há um fator que aumenta enormemente a complexidade da síntese de proteínas. Um
gene não precisa ter toda a seqüência informativa em uma cadeia ininterrupta de
nucleotídeos. A maioria deles (no ser humano mais de 64%) está, na verdade, formada por
certas seqüências de bases que serão usadas na síntese da proteína (chamada de éxons)
intercaladas por longos segmentos não-codificadores, ou seja, que não serão utilizados para
a síntese de proteínas (chamados íntrons). Ou seja, o molde é composto por partes que não
se encontram todas unidas. Isso torna o trabalho de identificação do gene mais complicado
e, ao mesmo tempo, menos determinista, conforme veremos.32

encontra é apenas uma grande quantidade de bases dispostas, ininterruptamente, por toda a extensão da
molécula.
32
Há inúmeras outras complicações que tornam a própria definição de gene algo extremamente difícil. Quem
deseja se aprofundar um pouco mais, sugiro a leitura de Gerstein, et. al. (2007), um artigo científico após a
leitura do qual não é mais possível falar de genes com a simplicidade e segurança que vemos em livros
didáticos ou de divulgação, sem contar que perde totalmente o sentido a noção de pequenas mudanças em
bases específicas que poderiam gerar novas funções. Conforme os autores: “A visão clássica de um gene
60

Quando uma molécula de RNA é formada a partir de um gene, os íntrons se separam


dela, como se houvesse uma ordem a definir quais partes são ou não informativas. Além
disso, é possível que diferentes éxons de um mesmo gene sejam ligados de forma diferente,
o que resulta em moléculas de RNA distintas e, conseqüentemente, a produção de
diferentes proteínas a partir de um mesmo gene. Esse processo é conhecido como splicing
alternativo (cf. Sandín, 2005).33
A molécula de RNA criada a partir da transcrição do DNA contém as informações do
gene e as leva para o ribossomo (por isso é chamada de RNA “mensageiro”). Constituídos
por moléculas de RNA e proteínas, os ribossomos são organelas que catalisam as ligações
entre os aminoácidos, que são as unidades componentes das proteínas e se encontram no
citoplasma. Nos ribossomos começa o processo de produção da proteína. Seqüências de
três bases no RNA mensageiro correspondem a um aminoácido específico dos 20 que são
utilizados pela vida – e essa curiosa correlação é crucial. Os aminoácidos são transportados
por outras moléculas de RNA (o RNA “transportador”, ligado a um aminoácido e com um
conjunto de 3 bases que o farão acoplar-se a uma trinca correspondente no RNA
mensageiro) e se juntam de acordo com o seqüenciamento contido no RNA mensageiro.
Uma grande cadeia de aminoácidos forma uma proteína, que terá uma função específica e
decisiva na vida celular.
A complexidade que emerge da interação molecular em organismos vivos é
demonstrada, além do processo descrito brevemente acima, no fato de que as enzimas são
proteínas e, por isso, as proteínas são, ao mesmo tempo, o produto final do processo de
síntese protéica e um componente ativo para que tal síntese ocorra. Ou seja,
conceitualmente, elas participam como agentes de sua própria produção. Além disso, as
ligações moleculares que formam as moléculas maiores que compõem a vida dependem de
catalisadores para se realizar.34 Os catalisadores das moléculas que formam o RNA e o
DNA são também enzimas. As proteínas, portanto, estão no começo, no meio e no fim do
processo de sua própria produção!

como uma unidade de informações hereditárias alinhadas pela extensão de um cromossomo, cada um
codificando uma proteína, mudou dramaticamente durante o século passado. Para Morgan, os genes nos
cromossomos eram como contas em um colar. A revolução da biologia molecular mudou consideravelmente
esta idéia. Para citar Falk (1986), ‘...o gene não é [...] nem discreto [...], nem contínuo [...], nem possui uma
localização fixa [...] nem uma função claramente definida [...], nem sequer sequências constantes [...], nem
fronteiras definidas.’ E agora o projeto ENCODE aumentou a complexidade ainda mais.”
33
Este detalhe importante será retomado no capítulo 4, seção 4.3.
34
Na verdade, sabe-se que algumas ligações podem, a princípio, realizar-se sem um catalisador, mas de
forma extremamente lenta e com um rendimento muito baixo, o que não permitiria a seqüência de passos
necessários à formação das moléculas fundamentais para a vida (De Duve, 1997, p. 32-35).
61

Pode-se ler na literatura especializada:

Os processos moleculares envolvidos na síntese de proteína nas células atuais parecem


insoluvelmente complexos. Embora compreendamos a maioria desses processos, eles
não apresentam um sentido conceitual da forma que a transcrição de DNA, o reparo de
DNA e a replicação de DNA o fazem. É especialmente difícil de imaginar como a
síntese de proteína evoluiu, tendo em vista que ela é hoje realizada por um complexo
sistema interligado de moléculas de proteínas e RNA (Alberts, et. al, 2004. Grifo
meu).

Indo ao beco sem saída


Esses e tantos outros fatos reais, amplamente documentados e conhecidos pelos
cientistas, são geralmente deixados de lado por biólogos que tentam fazer o surgimento da
vida e a complexidade da célula parecerem algo óbvio, inevitável, simples e possível de se
descrever com uma ordenação de passos hipotéticos resultantes de mutações ao acaso e
vitória na luta pela sobrevivência. Dawkins espera que seus leitores se satisfaçam com a
afirmação de que os replicadores (pedaços isolados de genes) “descobriram” como fazer
proteínas que lhes fornecessem uma camada de proteção, sem a utilização de enzimas e
saltando todo o processo pelo qual uma proteína é produzida. Pode-se argumentar que a
complexidade da síntese de proteínas é apenas do sistema atual, mas que nos primórdios da
vida pode ter sido mais simples. Mas uma afirmação como essa gera uma enorme
interrogação: mais simples como? Que tipo de processo viável mais simples poderia ter
sido utilizado ao acaso pelos replicadores originais?
É curioso notar que grande parte desse tipo de narrativa acaba por limitar-se à
descrição das possíveis mutações que podem ter ocorrido até se chegar a um sistema
complexo e se esquece de que também é necessário dizer como podem ter ocorrido (quem
fez o papel de catalisador, como as informações eram decodificadas, como surgiram as
enzimas, etc.) e porquê foram mantidas pela seleção natural (qual a função isolada de uma
mutação que só cumpre um papel em um sistema de vários componentes, etc.). Ou seja,
falta saber como o sino foi colocado no pescoço do gato.
A única dificuldade que parece se colocar diante das popularizações darwinistas é a
baixíssima probabilidade de alguns eventos evolutivos acontecerem ao acaso. Tal
improbabilidade, no entanto, é superada pelas escalas temporais envolvidas na evolução,
contada em bilhões ou centenas de milhões de anos, e pela ação de redução da
aleatoriedade proporcionada pela seleção natural. Parece vigorar a idéia de que se há uma
62

chance em 3 bilhões de algo ocorrer, não é de se surpreender que algo tão improvável
ocorra, desde que se tente 3 bilhões de vezes.35 A seleção natural manteria essa ocorrência
improvável até que outra se juntasse a ela e, gradualmente, formasse algo cuja
probabilidade de ocorrência meramente ao acaso é baixíssima.
Dawkins dá o exemplo da possibilidade de uma frase de Shakespeare ser escrita por
um macaco digitando ao acaso. Para ele, a probabilidade é quase nula. Mas, desde que haja
um programa no computador que mantenha as letras corretas no lugar correto a frase pode
vir a surgir (Dawkins, 2001, p.78-82). O programa faria o papel da seleção natural,
mantendo as conexões de letras contidas na frase-objetivo que o macaco digitasse
aleatoriamente.
Mas a simulação do acaso de Dawkins é, no mínimo, curiosa. O teclado está
preparado para que se digite apenas as letras do alfabeto em que foi pensada a frase-
objetivo (no português, 26 letras). Ou seja, há uma relação do “acaso” (as letras digitadas
pelo macaco) com a finalidade (a frase em determinado idioma). Além disso, a seleção do
computador trabalhará com um acaso limitado, pensado pelo programador (um ser
inteligente!) em virtude de sua intencionalidade. Dawkins não me parece disposto a aceitar
uma natureza preparada intencionalmente para a vida. Por isso, uma simulação do acaso
que se adaptasse à natureza real deveria oferecer um teclado com todas as letras de todas as
línguas do planeta e ainda com inúmeros símbolos sem significado. Gostaria de saber
aonde o cálculo de probabilidade de Dawkins nos levaria com um teclado desse tipo para
convencer leitores exigentes de que a seleção natural teve realmente tempo de produzir
sistemas complexos funcionais e adaptados às suas funções apenas conservando
ocorrências aleatórias de baixíssimas probabilidades. Além do mais, seria necessário
explicar como o programa que seleciona as letras poderia ter surgido sem o programador.
Mais do que ninguém, Dawkins rejeita terminantemente a explicação de que o programa
“sempre existiu”. Portanto, não poderia usá-la para o “papel de software” da seleção
natural.
Em suma, quando desconsideram o mundo real que existe dentro da célula, as
explicações darwinistas apresentam uma boa lógica que serve para simulações e narrativas

35
Essa idéia não é correta. A probabilidade em termos matemáticos-estatísticos não representa uma
probabilidade real para efeitos práticos. Sobre a improbabilidade da vida ocorrer meramente por acaso, ver
De Duve (1997, p. 9-12). De Duve cita a afirmação do astrônomo Alfred Hoyle segundo a qual a
probabilidade de eventos aleatórios gerarem estruturas vivas (dado o que se conhece hoje das células) é
comparável a de um Boeing 747 completo surgir de um vendaval que atinge um ferro-velho. É possível
calcular a probabilidade de tal acontecimento, o que não significa que ele vá ocorrer caso se tente o número
de vezes relacionados aos cálculos de probabilidade.
63

sustentadas em casos virtuais. O problema surge quando se tenta aplicá-las a processos


reais, compostos por elementos químicos em interação, moléculas, enzimas, etc. Sem uma
rigorosa relação das explicações com a complexidade dos dados, elas perdem o sentido e a
capacidade de elucidação que se espera de qualquer teoria.

A simplicidade das explicações vs. a complexidade da realidade


Dawkins é apenas um dos exemplos dos que parecem acreditar que criativas
especulações podem assumir o status de ciência apenas pelo fato de se adequarem aos
princípios darwinistas, mesmo que não se refiram a nada que se possa experimentar ou
indicar materialmente sua possibilidade de ocorrência e que ignorem os detalhes reais que
vêm sendo documentados pela ciência há mais de 50 anos. Ele afirma:

A teoria da evolução (...) de Darwin é satisfatória porque nos mostra uma forma pela
qual a simplicidade se poderia ter transformado em complexidade, como átomos
desordenados se poderiam agrupar em estruturas cada vez mais complexas, até
acabarem por formar pessoas. Darwin fornece-nos uma solução, a única, dentre todas
as sugeridas, aplicável à questão profunda da existência (Dawkins, 1989, p. 43).

Apesar da confiança ufanista na teoria que adota, o mesmo autor reconhece que suas
explicações são especulações: “A descrição da origem que farei é necessariamente
especulativa; por definição, ninguém estava presente para ver o que aconteceu” (p. 46).
Mas isso não abala sua crença de que está fazendo ciência: “A descrição simplificada que
farei não ficará, provavelmente, muito longe da verdade” (grifo meu). O problema de sua
especulação, no entanto, é saltar elementos fundamentais, deixados sem explicação.
Dawkins parece ver a origem da vida e a evolução de forma muito simples. Porém, mesmo
para um observador externo à ciência, mas com algum conhecimento científico, fica
patente que a segurança de Dawkins não se assenta totalmente em dados. Apenas para
exemplificar, tomemos mais duas proposições de O gene egoísta (Dawkins, 1989) que
versam sobre o surgimento e evolução dos organismos vivos.
A idéia fundamental do referido livro é que a unidade básica da vida é um replicador,
surgido a partir da tendência à estabilidade de certos aglomerados de átomos, e que tenta,
de todas as maneiras, reproduzir-se e perpetuar-se. Dawkins afirma que o surgimento desse
replicador não é nenhum mistério e, sim, resultado de “processos físicos e químicos
vulgares”. Resta saber se o “impulso” ou “desejo” de reproduzir-se (chamado de “egoísta”,
selfish) pode ser resultado desses processos físicos e químicos ou se trata de um atributo
metafísico do replicador (visto que psicológico não pode ser). Dawkins não diz de onde
64

vem esse suposto “egoísmo” do gene, que não pode ser deduzido de leis físicas ou
químicas, ao menos das que se conhecem atualmente. Nenhuma delas é capaz de gerar um
“impulso egoísta”, mesmo se a palavra fosse usada em sentido metafórico – o que, porém,
não é o caso, visto que sua reflexão atribui o egoísmo humano ao comportamento dos
genes. Ele acrescenta ainda que não há “nenhum desígnio, propósito ou direcionalidade”
no surgimento desse replicador original, mas, curiosamente, conclui o parágrafo dizendo
“por definição, tinha de acontecer assim”.36
Ainda segundo Dawkins, alguns grupos de átomos possuem a tendência de formar
estruturas estáveis, ou seja, moléculas que são preservadas em função da relação química
peculiar de seus átomos constituintes. Outros formam aglomerados que, ao contrário, são
instáveis e tendem a se desfazer. A conclusão óbvia é que as estruturas estáveis se
preservam e as moléculas instáveis desaparecem. O autor, então, afirma com total
segurança que o processo vital se inicia quando uma destas moléculas estáveis adquire a
capacidade de se autocopiar, tornando-se o primeiro replicador do planeta – mas nada é
dito a respeito do que seria necessário para uma auto-replicação bem sucedida.
A ciência atual conhece o mecanismo da divisão celular e da replicação do DNA,
mas o mundo real da célula e dos mecanismos celulares parece não ter importância para o
relato de Dawkins. A partir daí ele tece sua narrativa sobre como pequenas falhas no
processo de replicação podem ter dotado alguns grupos de replicadores de certas vantagens
na competição pelos aminoácidos disponíveis na Terra, aplicando a hipótese darwiniana.
Algumas dessas vantagens seriam a capacidade de “devorar” outro replicador – retirando
dele os aminoácidos que necessita para sua própria perpetuação – e a aquisição de uma
membrana que deu origem à primeira célula. Tudo parece muito óbvio e a descrição segue
uma lógica perfeitamente assimilável por qualquer leitor. No entanto, o relato de Dawkins
não é apenas especulativo, mas trata-se de um exercício semelhante ao de se fazer ficção
científica.
A afirmação de que moléculas estáveis se perpetuam e as instáveis se desfazem é
uma obviedade. Mas isso não se aplica de forma tão óbvia às moléculas fundamentais da
vida; mais especificamente não se aplica aos ácidos nucléicos. Uma molécula de RNA ou
de DNA não se forma sem a presença de um catalisador. Jamais se poderia conseguir um
ácido nucléico apenas pela aglomeração fortuita de átomos, seja em qualquer condição. Na

36
Para mim essa frase é uma revelação de uma única direção possível, portanto, uma “direcionalidade” que
ele diz negar. Mas essa é uma questão secundária.
65

forma atual da célula, as enzimas fazem a catálise dos ácidos nucléicos – e, conforme já foi
dito, as enzimas são proteínas sintetizadas a partir de ácidos nucléicos. Já foi mencionado
o problema da circularidade do processo. Dawkins, no entanto, não faz sequer menção a
essa dificuldade. Para ele, os primeiros replicadores simplesmente “se formaram”, sem a
necessidade de proteínas.
Uma maneira engenhosa de se esquivar do problema é afirmar ser possível que os
primeiros replicadores não teriam sido ácidos nucléicos, mas um “aparentado”, e que
posteriormente as “máquinas de sobrevivência” foram “apanhadas” pelo DNA. Essa
solução, também apresentada por Dawkins, possui, entretanto, duas deficiências. Primeiro,
explica-se o início da vida utilizando-se uma entidade misteriosa e inexistente na
atualidade, sem mencionar sequer um elemento químico que pudesse entrar na composição
do replicador ancestral. Segundo, não responde ao problema da formação do DNA ou do
RNA que viria, posteriormente, a assumir o lugar do primeiro replicador. A solução,
portanto, acaba sendo tão científica quanto a afirmação de que alguma divindade ou força
misteriosa interveio no processo: ambas jogam o problema para entidades que não são
abordáveis pelo método científico, nem experimental, nem teoricamente.
Christian De Duve estabelece a hipótese de que um catalisador não protéico
(atualmente inexistente e com indicações insuficientes de qual poderia ser a sua
constituição química) pode ter feito o papel hoje cumprido pelas enzimas. Se a descrição
que De Duve faz de sua provável constituição não fosse tão problemática, como ele
próprio reconhece, e se fossem feitos avanços em laboratório na construção (ou
descoberta) desse catalisador, essa seria uma hipótese científica bastante adequada e
plausível e as leis tradicionais da química poderiam começar a revelar o mistério da origem
vida. No entanto, as tentativas de se conseguir produzir uma molécula de RNA ou uma
proteína sem o auxílio de proteínas enzimáticas não obteve sucesso até hoje. O químico
francês Auguste Commeyras cita a literatura especializada para ilustrar este fato: “É difícil,
senão impossível, sintetizar longos polímeros de aminoácidos (peptídeos ou proteínas) ou
de ácidos nucléicos (RNA) em solução aquosa homogênea” (Orgel apud Commeyras,
2002, p.87).
A “simplicidade” com que Dawkins trata a questão é uma simplicidade apenas
retórica, mas pouco tem a ver com os problemas reais da química da vida. O desafio da
ciência a partir do novo mundo descoberto dentro da célula é construir uma explicação fora
das leis simples da química e da física. Novas abordagens teóricas devem atentar-se para a
complexidade química e física que o fenômeno revela.
66

Outro aspecto que aparece simples e trivial na leitura de O gene egoísta é o


surgimento e a evolução das chamadas “máquinas de sobrevivência” dos genes, cujo
primeiro modelo foram as células mais simples envoltas em uma membrana. Mas a
aquisição da membrana não parece ser algo que possa apenas ser mencionado como “um
passo” ou resultado de uma pequena mutação em uma seqüência de bases.
A membrana celular é constituída por uma combinação que dispõe moléculas de uma
forma peculiar, suficientemente organizada para cumprir a função de proteger a célula do
ambiente e, ao mesmo tempo, possibilitar trocas com o meio. Sua aquisição não pode ser
descrita apenas como um mero acontecimento fortuito, como um pedaço de pano que um
mendigo acha na rua para se proteger do frio. Na célula, se o “pano” não tiver exatamente
um tipo urdidura, não terá a função adequada.
Dada a estrutura de cada componente celular, supor explicar seu surgimento apenas
relatando os passos é como tentar descrever o surgimento “natural” de um automóvel
apenas dizendo que “adquirir um volante foi vantajoso e por isso foi preservado”; ou que
“alguns automóveis descobriram como se envolver com uma lataria e venceram a disputa
pelos recursos (combustíveis) disponíveis”, etc. sem se fazer referência ao processo de
construção de cada parte ou ao motor, supondo-os como algo que não necessita de
explicação.
Christian De Duve é muito mais minucioso em sua análise. Ele não esconde os
problemas e recorre constantemente à química para fundamentar suas proposições acerca
da origem e desenvolvimento da vida. Ainda assim, várias partes de seu livro Poeira vital
(De Duve, 1997) parecem conter lacunas desse tipo. Em alguns capítulos ele afirma algo
como “a partir daí as coisas aconteceram por seleção darwinista” e passa simplesmente a
descrever a aquisição de estruturas e mecanismos de uma complexidade tão grande que a
simples referência à teoria darwinista da evolução não satisfaz nosso desejo de
compreensão – e nem o do próprio autor, pois ele coloca inúmeros fatores não explicados,
com “pouca evidência” ou “que não ficam muito claros” para dar seqüência a seu relato.
A narrativa de De Duve é bem detalhada, bastante informativa e descreve a
complexa química da vida de forma bastante acessível. Mas as referências às mutações
aleatórias nos genes e seleção natural só aparecem no fim, na forma de afirmações do tipo:
“Toda a sucessão de passos foi submetida à alternância característica de mutação e seleção
que é o modus operandi da evolução” (De Duve, 1997, p. 106). Isso acaba servindo apenas
como uma declaração de sua aceitação da teoria, mas ao leitor não é dado o entendimento
67

de como as intrincadas relações e as ultra-organizadas estruturas descritas no livro podem


ser compreendidas, passo a passo, a partir do modus operandi da evolução darwinista.
Volto a dizer que se essa forma de relato é suficiente para se demonstrar a
capacidade explicativa do darwinismo, bastaria adicionar a afirmação de que “tudo ocorreu
por mutação e seleção” ao final da descrição detalhada do funcionamento do computador
para “provarmos” que seu surgimento possui uma explicação darwinista.
Como já disse, o mundo descoberto dentro da célula desafia as explicações
tradicionais em sua capacidade elucidativa. É o próprio De Duve quem reconhece as
imensas lacunas no entendimento de como pode ter se desenvolvido esse universo ínfimo.
Após fazer um relato exaustivo de bioquímica e de como podem ter surgido as primeiras
células ele afirma:

Alguns leitores podem ter-se desanimado com o número de lacunas que há no retrato
que pintei. Eu preferia que se admirassem com os detalhes já reunidos – todos durante
a vida deste escritor – sobre uma entidade minúscula de enorme complexidade que
existiu há cinqüenta milhões de vidas humanas (De Duve, 1997, p. 152).

Mas alguns autores não se admiram com os detalhes e nem se desanimam com as
lacunas: simplesmente os ignoram. Por isso, a aplicação da ortodoxia darwinista à origem
da vida e à evolução de sua complexidade no nível molecular tem resultado em narrativas
que serviriam tanto para organismos vivos como para máquinas construídas por seres
humanos. Tanto faz dizer simplesmente que “surgiu”, por variação aleatória, uma nova
parte da célula como dizer que “surgiu” o mecanismo de injeção eletrônica nos
automóveis. Mas a ciência não pode se contentar com isso. A insatisfação de alguns
cientistas pode ser expressa nas palavras de Margulis e Sagan e Máximo Sandín:

Como um lanche açucarado que satisfaz temporariamente nosso apetite, mas nos priva
de uma alimentação mais nutritiva, o neodarwinismo sacia nossa curiosidade
intelectual com abstrações desprovidas de detalhes reais – sejam metabólicos,
bioquímicos, ecológicos ou de história natural. (Margulis & Sagan, 2002a, p. 103).37

A conseqüência de tudo isso é uma biologia com uma grande quantidade de


informações desconexas sem uma base teórica capaz de unificá-las e dar sentido
científico a esses conhecimentos. Simplesmente se mantêm as interpretações baseadas
na competição. E enquanto nas universidades se ensina a evolução como “uma
mudança gradual nas freqüências gênicas”, nos seus próprios laboratórios se observa
que os processos implicados na evolução morfológica nos dizem exatamente o
contrário (Sandín, 2002b).

37
Todas as citações de fontes em língua estrangeira contidas aqui foram traduzidas por mim apenas para este
livro.
68

Ciência ficção
São esses problemas que fazem a narrativa de Dawkins (e de inúmeros outros
biólogos e divulgadores da ciência) ser análoga à ficção científica e deixar a desejar em
termos de ciência real. Os autores de ficção científica exercitam sua imaginação projetando
o futuro. Imaginam naves que superam a velocidade da luz, sem que a aceleração afete
seus tripulantes, formas de vida extraterrestre com estruturas semelhantes às da Terra,
teletransporte, máquinas com pensamento e sentimentos humanos, etc., mas não precisam
descrever os processos que possibilitaram cada uma dessas realizações. Se alguém
perguntar a um autor de ficção científica: como pode um corpo ser teletransportado?
Como se faz para cada átomo ser desintegrado de seu local e aparecer na mesma
estrutura organizada em um local distante? Ou: qual a estrutura de uma nave que atinge a
velocidade da luz? Que combustível usa? Como fazer para que os tripulantes não sintam
os efeitos da aceleração? Ou ainda: qual a configuração do meio ambiente extraterrestre
que pode ter moldado organismos com a mesma base estrutural dos terráqueos? O autor,
certamente, ou desconsiderará a pergunta, ou dirá que a ciência descobrirá essas coisas no
futuro, ou simplesmente afirmará que, no campo da ficção, tais perguntas não são
procedentes – cabe a ele apenas fantasiar o que pode acontecer no futuro e entreter os
leitores com uma boa história ou um bom filme. Não é de sua responsabilidade indicar os
complicados processos que seriam necessários para que sua história acontecesse na vida
real.
Dawkins é saldado pela mídia como cientista. E também é reconhecido assim pelos
biólogos, pois suas obras são citadas em inúmeros trabalhos científicos e sua terminologia
incorporou-se ao discurso hegemônico da biologia. Não se trata de um autor de ficção ou
um mero “vulgarizador” da ciência que pode ser desconsiderado. Porém, da mesma forma
que alguns outros biólogos e divulgadores da ciência, o que Dawkins faz é um verdadeiro
exercício de ficção científica. A diferença é a direção temporal invertida: sua ficção aponta
para o passado. Ao invés de dizer algo como “haverá uma forma de superar a velocidade
da luz e o ser humano passará a viajar para outras galáxias”, etc., ele diz: o replicador
“descobriu” um meio de se proteger com uma camada protéica, depois criou máquinas de
sobrevivência complexas; então, surgiu o cérebro como resultado de pequenas mutações,
etc. Os processos que possibilitaram esses eventos ficam totalmente omitidos em sua
explicação pretensamente científica – assim como não importam aos autores de ficção.
69

De fato, ele diz que seu livro (O gene egoísta) deve ser lido “quase como um livro de
ficção científica”, mas atesta que “não é ficção científica: é ciência.” Ele abusa, nesse e em
outros livros, de termos como “errado”, “certo”, “verdade”, “verdadeiro”, “falso”, etc.
Além disso, é dessa “especulação” que depende o que Dawkins e muitos darwinistas
acreditam ser uma verdade científica incontestável: o determinismo do “egoísmo” do gene
em todas as dimensões da vida na Terra. Desta verdade ele se coloca como uma espécie de
profeta Jeremias, que, mesmo não querendo ser profeta, não podia se calar diante da
verdade divina:

Pessoalmente creio que seria muito desagradável viver numa sociedade humana
baseada simplesmente na lei do egoísmo, implacável e universal, do gene. Mas,
infelizmente, por mais que se lamente algo, esse algo não deixa, por isso, de ser
verdadeiro (Dawkins, 1989, p. 30).38

Novamente, Margulis e Sagan comentam:

A terminologia da maioria dos evolucionistas modernos é não apenas falaciosa, mas


também perigosa, pois leva as pessoas a acharem que entendem a evolução da vida,
quando na verdade estão confusas e iludidas. O “gene egoísta” nos proporciona um
bom exemplo. O que é o “gene egoísta” (selfish gene) de Richard Dawkins? Para
começar, um gene nunca é um ego (self). Um gene isolado é apenas um pedaço de
DNA com extensão suficiente para ter uma função. O gene por si só pode ser
descartado; mesmo se preservado em um freezer ou em solução salina, o gene isolado
não tem absolutamente qualquer atividade. Não há vida em um gene. Não há self
(Margulis & Sagan, 2002a, p. 16).

O que importa aqui, no entanto, não é discutir se Dawkins tem ou não razão, mas
questionar a pertinência dos relatos darwinistas para o surgimento da vida ou a aplicação
da ortodoxia darwinista ao mundo bioquímico e microbiológico. À segurança
pretensamente científica dos relatos nesses níveis não corresponde uma descrição
apropriada e frutuosa em termos científicos reais.

Ainda há um mundo a ser explorado pelas ciências da vida


Considerando todas as questões expostas, levanto as seguintes perguntas: poderia a
teoria de Darwin, o paradigma confortavelmente predominante em toda ciência biológica
(apesar de um ou outro opositor), ser aplicado nos níveis bioquímico e microbiológico, ou
seja, no âmbito das complexas interações moleculares que mantêm a vida um fenômeno
70

tão misterioso? O sucesso de Darwin ao explicar a evolução dos seres vivos quando não se
conhecia bem sua estrutura, pode manter-se diante da revelação dos mecanismos básicos
através dos quais se processa a evolução? Estamos diante apenas da necessidade de
adequação da teoria darwinista ou do início de uma crise de paradigma?
Ao meu ver, estas são questões atualíssimas. A despeito do incômodo que possam
causar em inúmeros cientistas e não obstante a defesa radical (nem sempre racional, como
veremos) que vem sendo feita da plenipotência do darwinismo, são ainda questões em
aberto, sem decisão visível para as próximas décadas, mas que merecem e precisam ser
debatidas.39
Newton não sobreviveu ao teste dos componentes básicos da matéria cujo
movimento tão bem explicou. Tampouco chegou mais longe do que o sistema solar.
Assistiremos, em nossa época, ao teste de sobrevivência de Darwin diante do mundo
elementar das células.
A seguir, discutirei um pouco mais a fundo quais são os problemas que o darwinismo
tem enfrentado e como eles têm sido tratados por alguns cientistas que ousaram encarar a
questão.

38
O profeta Jeremias, da Bíblia cristã e judaica, também dizia que não gostaria de ser profeta, mas não
poderia se calar diante das revelações de Deus. Notem nessa citação que Dawkins relaciona a “sociedade
humana” com suas idéias sobre os “genes”. Há uma “sociologia” derivada de sua “biologia”!
39
Vejo, hoje, que a celebração do bicentenário de Darwin tenderá a adiar o debate em alguns anos ou talvez
décadas.
71

4. DARWIN NA BERLINDA

Em O gene egoísta, Dawkins faz a seguinte afirmação: “Hoje a teoria da evolução


está tão sujeita à dúvida quanto a teoria de que a Terra gira à volta do sol” (Dawkins, 1989,
p. 28). É evidente que ele pretende dizer que a teoria da evolução (identificando-a com o
darwinismo) é algo inquestionável e que só não a aceita quem está preso a dogmas
ultrapassados, geralmente de origem religiosa. Ao colocar dessa forma o status de uma
teoria científica, Dawkins estabelece um conceito prévio, não científico, que protege a
teoria de qualquer debate que venha a questionar sua validade, caracterizando-o
antecipadamente como negação do óbvio ou como obscurantismo de fanáticos. Margulis e
Sagan destacam:

Críticos honestos do modo de pensamento evolucionista, que têm enfatizado os


problemas com o dogma dos biólogos e seus termos indefiníveis, são freqüentemente
desprezados como se fossem fanáticos cristãos fundamentalistas ou intolerantes raciais
(Margulis & Sagan, 2002a, p. 18-19).

A intenção da afirmação de Dawkins é imediatamente rechaçada por quem tem da


ciência uma visão histórica. Nenhuma teoria pode ser concebida como definitiva, infalível
e não sujeita a dúvidas. A filosofia e a historiografia da ciência contemporâneas colocam
verdadeiros obstáculos a essa concepção aistórica das teorias científicas. No entanto, a
afirmação de O gene egoísta citada acima, desde que avaliada com certo rigor, diz, sem o
querer, uma verdade que revela bem o que pode estar se passando com a teoria darwinista
da evolução.
Em primeiro lugar, Dawkins evoca uma afirmação factual, a órbita da Terra em torno
do sol, e depois a usa para fazer uma analogia com uma teoria que explica um fato. Ele
confunde, primariamente, fato com teoria. Fato é o que se acredita ocorrer realmente na
natureza pela constatação intersubjetiva (ou seja, quando vários sujeitos que se comunicam
admitem tal ocorrência a partir do controle dos sentidos ou de experimentos). Teoria é uma
explicação construída subjetivamente, a partir de regras racionais aceitas para cada campo
do conhecimento, que procura dar sentido aos fatos dentro de uma estrutura conceitual. A
teoria da evolução não é um fato. A evolução, sim, pode ser concebida como tal. Por outro
lado, o giro da Terra em torno do sol não é uma teoria, mas uma afirmação factual dentro
de uma teoria.
72

Se admitirmos que a órbita da Terra é um fato inquestionável, o mesmo não podemos


dizer das teorias que explicam a razão dessa órbita. Na verdade, todo o esforço de Galileu
foi o de criar mecanismos teóricos que permitissem que o movimento da Terra fosse aceito
como um fato, visto que não o experimentamos na vida cotidiana. Dentro da cosmovisão
aristotélica e da astronomia de Ptolomeu, o fato inquestionável era o movimento do Sol – e
esse também é o único fato real que nossa experiência comum revela.
Pela teoria de Aristóteles, o movimento da Terra jamais poderia ser aceito como um
fato. A física aristotélica tinha razões convincentes para contradizer a hipótese do
deslocamento terrestre. Galileu construiu uma teoria do movimento diferente da de
Aristóteles que possibilitou a aceitação do giro da Terra como um fato. Isaac Newton foi o
responsável pela síntese teórica que fez a órbita dos planetas em torno do sol se enquadrar
na concepção comum e se tornar uma afirmação factual aceita por todos. Lembremos que a
teoria newtoniana foi saudada nos séculos XVIII e XIX como a verdade definitiva e o
triunfo da razão. No entanto, a física de Newton, a teoria que explicava a órbita dos
planetas até o início do século XX, não foi simplesmente posta em dúvida: em seus
aspectos mais gerais e elementares ela caiu completamente. Hoje é o conceito de gravidade
de Einstein que dá a explicação para o mesmo “fato”. Ou seja, pode-se mudar de teoria
mantendo-se a aceitação do fato.
Portanto, Dawkins acaba tendo razão, embora dizendo o que não queria. A evolução
é tida como um fato desde o século XVIII. A teoria que hoje explica a evolução não pode
ser identificada com o fato da evolução e, por conseguinte, pode, sim, ser posta em dúvida
tanto quanto o foi a teoria que explicava o giro da Terra em torno do Sol. Mudanças
teóricas não significam mudanças naquilo que temos como fatos bem estabelecidos. Uma
vez que a afirmação de que a Terra gira em torno do sol não se constitui, por si mesma, em
uma teoria, podemos fazer uns pequenos acréscimos à afirmação de Dawkins para iniciar a
reflexão deste capítulo: “hoje a teoria da evolução está tão sujeita à dúvida quanto [esteve]
a teoria [que explicou porque] a Terra gira à volta do sol”.
Essa dúvida, como já foi esclarecido na introdução, não se origina em crenças
religiosas. O problema de Deus não é objeto da ciência, seja para afirmar ou negar sua
existência. A fé subjetiva ou o status ontológico de divindades pertencem a outras áreas de
conhecimento. A sujeição à dúvida a que me refiro parte de reflexões internas à ciência. A
inadequação do paradigma darwinista ao estudo da origem e complexidade da vida tem
sido ressaltada por diversos biólogos e várias proposições têm decorrido desse fato. No
entanto, dentre os autores que apresentam abordagens que se distinguem do darwinismo,
73

poucos têm demonstrado interesse em destacar claramente as contradições de suas


reflexões com os princípios centrais da teoria hegemônica. Alguns chegam a enunciá-las,
mas sempre com grande cuidado, como se temessem acusações de heresia. É o caso, por
exemplo, de Stuart Kauffman:

Desde Darwin, passamos a acreditar que a seleção é a única fonte de ordem na


biologia. Os organismos, passamos a acreditar, são “engenhocas”, casamentos ad hoc
de princípios do projeto, acaso e necessidade. Considero esta visão inadequada.
Darwin não conhecia o poder da auto-organização. De fato, nós mesmos mal
vislumbramos esse poder. Tal auto-organização, desde a origem da vida até sua
dinâmica coerente, deve ter um papel essencial na história da vida e, na verdade, eu
argumentaria, em qualquer história da vida. Mas Darwin também estava certo. A
seleção natural encontra-se sempre em ação. Portanto, precisamos repensar a teoria
evolucionária. A história da vida é algum tipo de casamento entre auto-organização e
seleção. Precisamos ver a vida de uma maneira nova e interpretar novas leis para o
seu desdobramento (Kauffman, 1997, p 132-133. Grifos meus).

O aprofundamento dos estudos de Kauffman levou-o a conclusões diferentes da


teoria darwinista da evolução. Mas faltou-lhe coragem para declarar a inadequação do
darwinismo à complexidade da vida. A prova disso está no relato de John Horgan, segundo
o qual Kauffman havia escrito no original datilografado de seu livro At home in the
universe que o darwinismo estava errado, mas havia riscado o “errado” e substituído por
“incompleto”. A palavra “errado” voltou na primeira prova do livro, mas a versão final
acabou saindo impressa com a palavra “incompleto” (Horgan, 1999, p. 173).
Outros, no entanto, salientam abertamente sua insatisfação com o paradigma vigente
e fazem proposições alternativas em franca oposição aos dogmas darwinistas. Tratarei aqui
de três cientistas que se manifestam explicitamente contrários à possibilidade de que o
darwinismo seja capaz de se adequar aos dados atuais. A escolha foi baseada na postura
aberta de oposição ao paradigma neodarwinista e na clareza e consistência das críticas
apresentadas, mas não significa adesão às suas proposições. Afinal, teorias científicas
funcionam como paradigmas na orientação do trabalho científico. Não é questão para ser
decidida por filósofos. Assim como não faz sentido declarar-me newtoniano, eisteiniano,
lavoisieriano, boltzmanniano, etc. no exercício do pensamento filosófico, não faria sentido
optar por um ou outro paradigma nas ciências biológicas. Mas, por outro lado, isso não
impede a avaliação crítica das teorias e nem que uma ou outra visão de mundo influencie
na concepção geral de mundo que orienta o trabalho filosófico.
Os autores escolhidos foram o bioquímico Michael Behe (Universidade Lehigh,
Pensilvânia) e os biólogos Lynn Margulis (Universidade de Massachusetts) e Máximo
74

Sandín (Universidade Autônoma de Madri). Poderia, certamente, recorrer a outros autores


que têm procurado desenvolver abordagens de maior amplitude que a Teoria Sintética
Moderna, incorporando elementos da termodinâmica, das estruturas dissipativas de
Prigogine e das decorrentes reflexões sobre sistemas complexos, auto-organização e
autopoiese. Todas essas proposições que intentam compreender teoricamente o que os
dados experimentais têm revelado se afastam da simplicidade darwinista.
No entanto, nem todos os cientistas têm refletido sobre o conflito de seus estudos
com os princípios da Teoria Sintética. Enquanto os biólogos não se debruçarem sobre os
pontos conflitantes, a “síntese” corre o risco de perder sua coerência interna, pois
simplesmente tenta “incorporar” novas abordagens sem refletir sobre o impacto das novas
proposições para os princípios gerais que a sustentam.
Como diz Margulis, a maioria dos cientistas tende “a evitar a discussão sobre as
implicações evolucionárias de seu trabalho”. Reina um certo cuidado, zelo ou temor
quando se trata de reconhecer as insuficiências do darwinismo. O motivo, portanto, da
escolha dos três citados é a sua franca e aberta oposição ao paradigma predominante e o
fato de seus estudos estarem bem fundamentados e instruídos em dados científicos de
grande relevância e atualidade.

4.1. A CRÍTICA DE BEHE

A base da crítica
Qualquer comentário sobre Michael Behe encontra-se cercado de preconceitos. Ele
está no centro de uma polêmica que tornou seu nome quase proibido no debate científico,
dado sua vinculação com a idéia “filocriacionista” do Design Inteligente. É preciso muito
cuidado ao comentá-lo. A simples presença de seu nome em meu artigo40 já foi motivo de
rechaço, sem que os críticos se dessem ao trabalho de ler em que contexto se fazia a
referência. Mas uma análise desapaixonada pode ser bastante instrutiva para os propósitos
deste livro.
Behe apresentou suas reflexões em um único e polêmico livro, A caixa preta de
Darwin (Behe, 1997a) e em diversos artigos que giravam em torno do mesmo tema. Sua
crítica é bem fundamentada em análises científicas a partir de seu campo de estudo, a

40
Abdalla (2006).
75

bioquímica, mas encontra-se acompanhada da proposta de um “planejador (designer)


inteligente” como o responsável pela complexidade da vida. Desejo aproveitar aqui apenas
a crítica e não aprofundar a discussão acerca da proposição que ele apresenta. As
respostas dos darwinistas ao que Behe chamou de “desafio da bioquímica à teoria da
evolução” (subtítulo de sua obra) seguiram, entretanto, uma direção contrária. Em minha
pesquisa, encontrei apenas comentários sobre sua proposição do Design Inteligente. No
que diz respeito às críticas muito bem embasadas ao darwinismo, reina até hoje um
intrigante silêncio ou apenas comentários ligeiros, sem a profundidade que o debate
exigiria.
A precisão do relato de Behe sobre a complexidade bioquímica foi reconhecida até
mesmo por alguns de seus ferrenhos opositores. Allen Orr, biólogo e professor da
Universidade de Rochester, por exemplo, refere-se a A caixa preta de Darwin como um
livro “bem escrito, inteligentemente argumentado e biologicamente informado” (Orr,
1996-97).41 Por isso, suas objeções ao darwinismo não podem ser desconsideradas, pois
evocam questões que, de fato, se tornam um desafio à teoria da evolução. Diante dos
questionamentos cientificamente alicerçados de Behe, ou o darwinismo se mostra capaz de
respondê-los sem alterar os eixos fundamentais que o caracterizam como paradigma, ou
deve conformar-se com sua condição de paradigma em crise – ou como um “programa de
pesquisa degenerativo”, para usar a linguagem de Lakatos (1979).
Não é suficiente responder apenas à parte do livro que propõe o Design Inteligente. É
preciso responder à parte crítica, visto que está sustentada em uma avaliação científica do
darwinismo. Se tais respostas não forem dadas ou não se mostrarem satisfatórias, isso não
significará, certamente, a vitória da proposição de Behe, mas para todos ficará a impressão
de que se está confirmando a crise do darwinismo e a necessidade de uma nova teoria da
evolução.
Até onde pude analisar, a resposta dos darwinistas variaram entre três posições: 1) os
que vociferaram contra a simples atitude de questionar a teoria darwinista sem, no entanto,
discutir os questionamentos apresentados – estes apenas lançaram as críticas de Behe ao
forno crematório das idéias criacionistas tradicionais ou recorreram a estratégias retóricas
para contestá-las; 2) Os que ignoraram totalmente a parte crítica de A caixa preta de
Darwin e limitaram-se a questionar a sua proposição do Design Inteligente – ou seja,
atacaram só a parte “mais fraca”; e 3) Os que reconheceram as críticas, tentaram respondê-

41
O autor, porém, acrescenta a esses elogios a observação de que os argumentos de Behe estão “errados”.
76

las, mas apenas reafirmaram sua adesão quase “doutrinária” ao darwinismo, sem
apresentar novas proposições capazes de dirimir as dúvidas decorrentes das críticas de
Behe. Até que apareça alguma resposta que não possa ser enquadrada nesses três grupos,
resta a conclusão de que o darwinismo parece mesmo ser um paradigma com anomalias
capazes de gerar uma crise.
Vejamos quais são os problemas apontados por Behe. Ressalto, porém, que uma
visão mais adequada e completa dos detalhes bioquímicos é imprescindível para se
perceber o alcance das críticas – e isso apenas a leitura de sua obra proporciona. Embora
seja tentador, não creio que seja adequado para o presente livro reproduzir de forma
extensa as suas reflexões.
Behe, primeiramente, coloca o problema nos mesmos moldes de outros críticos da
ortodoxia darwinista: novos campos de fenômenos têm desafiado a capacidade explicativa
do paradigma darwinista:

Quase um século e meio após Darwin ter apresentado sua teoria, a biologia evolutiva
tem obtido muito sucesso na explicação dos padrões de vida que vemos ao nosso
redor. Para muitos, seu triunfo é completo. A verdadeira obra da vida, porém, não
acontece no nível do animal ou do órgão completos. As partes mais importantes dos
seres vivos são pequenas demais para serem vistas. A vida é vivida nos detalhes, e
cabe às moléculas se encarregarem desses detalhes. A idéia de Darwin pode explicar
cascos de cavalos, mas poderá explicar os alicerces da vida? (Behe, 1997a, p. 14).

Note-se que, ao contrário do que afirmam seus críticos, não há um questionamento


“de princípio” ou sobre a pertinência do darwinismo como descrição válida da realidade. O
que Behe afirma (e devemos permanecer restritos ao que é dito) é que a teoria darwinista
se mostra adequada a um nível da realidade. Desse ponto de vista, sua crítica identifica-se
com a reflexão sobre a crise de paradigma que fiz no capítulo 1 e não possui caráter de
questionamentos decorrentes de princípios religiosos ou que estão amparados em tais
princípios. O que está dito é que os biólogos evolucionistas voltaram a atenção ao mundo
macroscópico e à evolução dos mamíferos, mas não direcionaram a reflexão aos alicerces
da vida, que são microscópicos, moleculares. Trata-se de uma afirmação pertinente e
adequada à história das ciências.
Em um artigo, Behe sustenta que a relação dos biólogos evolucionistas com a
bioquímica é semelhante à do engenheiro mecânico com a física das partículas elementares
(Behe, 1997b). Isso significa tão somente que ele reconhece a validade do darwinismo,
mas nega sua extensão ao nível molecular e elementar – e disso resulta, evidentemente, que
o paradigma não serve para tal nível de fenômenos. Seus críticos, no entanto, parecem não
77

ter entendido isso ou, se entenderam, ignoraram deliberadamente para tornar o debate mais
fácil para seu lado.
No mundo da bioquímica, as coisas adquirem um grau de complexidade sem
nenhuma analogia possível no mundo macroscópico. Essa complexidade, para Behe, não
se pode ter formado por mutações aleatórias graduais nas sequências gênicas e por seleção
natural. Para sustentar sua afirmação, ele utiliza o conceito de complexidade irredutível,
expressão que se refere aos sistemas compostos de várias partes interatuantes cuja
funcionalidade depende da presença e atuação de todas as partes simultaneamente. Em
um sistema irredutivelmente complexo, a ausência de uma das partes, por definição,
elimina a funcionalidade do todo. Sua analogia, que se tornou tão famosa quanto
controversa, é a da ratoeira. Uma ratoeira só possui funcionalidade quando todas as partes
já se encontram unidas e funcionalmente relacionadas; caso falte uma peça, a ratoeira não
funciona.
Um sistema irredutivelmente complexo não pode ter fases intermediárias funcionais.
Se for produzido por algum ser inteligente, como no caso da ratoeira, a construção por
etapas será resultado da intencionalidade do produtor. Porém, na natureza não-intencional
da concepção darwinista, onde os eventos ocorrem ao acaso, as fases intermediárias não-
funcionais não teriam nenhuma razão para se perpetuar à espera de que o acaso as dotasse
do “toque final” que permitiria disparar sua funcionalidade. É preciso recordar que a
natureza só seleciona sistemas funcionais capazes de dotar o organismo de alguma
vantagem na sobrevivência (como discuti no capítulo 2). Ademais, as explicações
darwinistas costumam afirmar que a seleção natural tende a eliminar elementos sem função
por representar um custo maior para a manutenção do organismo; como, por exemplo, o
olho em peixes de regiões escuras das profundezas do oceano.
Behe afirma, portanto, que

Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se por acaso existir tal coisa, seria
um fortíssimo desafio à evolução darwiniana. Uma vez que a seleção natural só pode
escolher sistemas que já funcionam, então, se um sistema biológico não pudesse ser
produzido de forma gradual, ele teria que surgir como uma unidade integrada, de uma
única vez, para que a seleção natural tivesse algo com que trabalhar (Behe, 1997a, p.
48).

Com base nessa premissa, o autor passa a defender a idéia de que, analisados no
nível bioquímico, muitos dos principais processos que sustentam a vida (como a síntese de
proteínas, o sistema de coagulação sanguínea e o sistema imunológico) e os órgãos
78

complexos como o olho e o flagelo bacteriano, são processos e órgãos irredutivelmente


complexos e, portanto, não poderiam ser explicados por mutações aleatórias graduais
mantidas pela seleção natural.
Mas a característica mais relevante de sua crítica ao darwinismo é que nenhuma
dessas afirmações está legitimada apenas pela retórica ou por uma lógica formal abstrata.
Suas reflexões sobre tais processos e órgãos vitais são todas amparadas em dados
científicos de precisão até hoje não questionada. Essa é sua principal diferença com as
narrativas darwinistas (como a de Dawkins referida anteriormente), que, quando pretendem
explicar a evolução da complexidade bioquímica e microbiológica, se sustentam mais na
precisão lógica e retórica de seus relatos. Se os leitores se lembram da fábula a que fiz
referência na introdução, pode-se dizer que Behe perguntou concretamente como o sino
pode ter sido colocado no pescoço do gato.

Preenchendo as lacunas com ciência


Um dos processos que Behe analisa para caracterizá-lo como irredutivelmente
complexo é o sistema de coagulação sanguínea, que tomarei como exemplo de sua
argumentação. O sistema de coagulação funciona em forma de cascata: quando é acionado
por um corte ou outro caso que provoque sangramento, desencadeia-se um conjunto de
ações efetuadas por vários tipos de proteínas e enzimas, que ativam outras proteínas e
enzimas e, assim, sucessivamente, até que se produza, como resultado final, uma
coagulação controlada, que evita tanto a hemorragia (perda descontrolada de sangue)
quanto a trombose (coagulação do sangue dentro dos vasos sanguíneos que pode levar ao
entupimento das veias ou artérias e outras complicações). A falta de qualquer um dos
elementos dessa cascata pode levar ao sangramento contínuo ou a uma coagulação
generalizada.
A lógica darwinista nos levaria a imaginar que a aquisição ao acaso de um precursor
do sistema de coagulação conhecido atualmente foi ocasionada por pequenas mutações
aleatórias no DNA ou por uma duplicação de genes. Essa aquisição ofereceu vantagem
seletiva a um ancestral longínquo dos animais atuais e por isso foi mantida, garantindo a
vitória na luta pela sobrevivência aos que a possuíam. Afinal, parafraseando Dawkins, “5%
de um sistema de coagulação é melhor do que nenhum”.42 Após isso, sucessivas mutações

42
Dawkins diz isso a respeito da visão. Em resposta ao comentário de Gould sobre inutilidade de uma
mutação que gerasse apenas 5% da visão, o autor de O gene egoísta afirma: “5% de um olho é melhor do que
nenhum” (Dawkins, 2001).
79

ocasionais (sempre ao acaso) poderiam ter melhorado o sistema, através do acréscimo de


outras proteínas. A cada vez que uma mutação melhorasse o sistema em alguns indivíduos,
estes seriam os sobreviventes na competição pela vida e gerariam mais descendentes.
Assim, avançaríamos até chegar à complexidade do sistema atual.43 A lógica é
perfeitamente coerente e fácil de se imaginar. Qualquer aluno de biologia do ensino básico
a compreende e julga entender como a vida evoluiu.
Entretanto, Behe apresenta muitos motivos para não se aceitar, de maneira alguma,
essa narrativa. Ele gasta doze páginas para tentar explicar, de forma simplificada, o
funcionamento da cascata da coagulação sanguínea, buscando revelar aos leitores aquilo
que normalmente se oculta atrás de sentenças como “a aquisição de um sistema mais
simples”, “o acréscimo de uma proteína”, etc. Para que se tenha, pelo menos, uma vaga
idéia do que está envolvido no processo de coagulação sanguínea é necessário saber dos
dados abaixo.44 Os leitores não precisam entender todo o funcionamento do sistema e nem
se familiarizar com os termos técnicos. Basta, para os objetivos deste livro, perceber a
complexidade real que sustenta o sistema de coagulação.
A proteína responsável pela produção do coágulo é a fibrina. Uma fibrina se une a
outra para formar uma rede que captura células sanguíneas e produz um coágulo. Se as
fibrinas se encontrassem ativas no sangue, todo ele seria coagulado. Para que as fibrinas
não formem a rede sem que haja necessidade, elas se encontram no sangue na sua forma
inativa, chamada de fibrinogênio. O fibrinogênio é um complexo formado por mais de uma
proteína que flutua pelo sangue, diluído no plasma, sem atividade. Quando ocorre um corte
ou sangramento, uma proteína enzimática chamada trombina corta algumas partes do
fibrinogênio (algumas proteínas que formam o complexo inativo). Sem essas partes, o
fibrinogênio se transforma na proteína ativa (fibrina). Uma vez em sua forma ativada, as
fibrinas se juntam para formar a malha que forma o coágulo e evita o vazamento de
sangue, que poderia ser fatal.
Apenas iniciamos a descrição e já foram envolvidas mais de duas proteínas para a
formação do coágulo: fibrina, trombina e outras que entram na constituição do
fibrinogênio. Além disso, a atuação de todas elas deve ser conjunta para que haja

43
Carl Zimmer (2003, p. 513-516) descreve dessa maneira a evolução do sistema de coagulação e acredita
estar realmente explicando o fenômeno. O fato de Zimmer não ser cientista pode ser uma observação que
descredencie seu relato, mas é exatamente esse o modelo padrão das explicações darwinistas.
44
Como já observei anteriormente, é preciso ter uma visão completa do processo, seja através da leitura de
Behe ou através de livros de bioquímica, caso contrário, a narrativa de que “um sistema mais simples
adquiriu uma nova proteína” passa a fazer sentido, mas sem referir-se a um processo real.
80

funcionalidade. Em outras palavras, várias seqüências de DNA com conteúdo informativo


(genes) estão envolvidas no início da descrição.
Poder-se-ia acreditar que essas proteínas seriam as mais elementares do processo de
coagulação sangüínea e que, possivelmente, sua aquisição por mutações ao acaso na
seqüência gênica tenha formado um sistema precursor do atual. No entanto, se a trombina
circulasse na sua forma ativa e em grande quantidade pelo sangue junto com o
fibrinogênio, haveria constante ativação da fibrina e a formação de um coágulo maciço que
impediria a circulação de todo o sangue. Longe de apresentar uma vantagem na
sobrevivência, a aquisição de um suposto precursor do sistema de coagulação formado
apenas por essas proteínas mataria o animal. Logo, pode-se até imaginar um sistema
ancestral ocasionado por uma ou mais mutações aleatórias no DNA, mas, quando se
preenche a imaginação com proteínas reais, é preciso admitir que tal mutação seria letal.
De maneira alguma poderia ser uma vantagem a ser mantida pela seleção natural.
Para que o sistema funcione de maneira equilibrada, são necessários outros agentes.
A fim de evitar que o fibrinogênio seja ativado de foram desmesurada, a maior quantidade
de trombina se encontra em sua forma inativa, chamada de protrombina. Nessa forma, ela
não é capaz de cortar o fibrinogênio e, conseqüentemente, nenhum coágulo é formado. Por
outro lado, o sangramento também não é evitado e o sistema não seria funcional. A
protrombina também precisa ser ativada no momento certo, a fim de ser convertida em
trombina ativa. Para isso, outra proteína entra em ação, chamada fator Stuart-Prower.
Mas, ainda que o sistema pareça já bastante complicado, o problema persiste. Uma
imaginária aquisição ao acaso do fator Stuart-Prower provocaria a ativação descontrolada
da trombina. O resultado seria a transformação do fibrinogênio em fibrina ativa e a
coagulação generalizada que conduziria o animal à morte. Portanto, também o fator Stuart-
Prower deve permanecer em sua forma inativa até que sua ativação seja necessária em caso
de corte ou sangramento. Para ativá-lo, então, é preciso outro processo que envolve outras
proteínas.
Mesmo que o leitor esteja incomodado com a complicação do sistema, a descrição
acima está longe de ser completa. O fator Stuart-Prower, mesmo ativado, só adquire
capacidade de ativar a protrombina na presença da acelerina, outra proteína que aumenta a
atividade do fator Stuart-Prower. Certamente, a acelerina também se encontra em estado
inativo (proacelerina) e, surpreendentemente, sua ativação é feita também pela trombina,
que se encontra ativa, em pequenas quantidades, na corrente sanguínea (se existisse em
grandes quantidades, detonaria descontroladamente o processo de coagulação). Mais uma
81

vez, encontramos a mesma circularidade que aparece na síntese de proteínas descrita no


capítulo anterior: a trombina é necessária para possibilitar um processo que tem sua própria
ativação como um dos resultados.
Por incrível que possa parecer, isso ainda não descreve a complexidade da cascata do
sistema de coagulação. Em seu livro, Behe explica-a passo a passo. Aqui me detive no
ponto em que se enfrenta a circularidade. Mas, apenas por curiosidade, vejamos uma outra
parte da descrição do processo que leva à ativação do fator Stuart-Prower:

Quando um animal sofre um corte, uma proteína denominada fator de Hageman cola-
se à superfície das células próximas ao ferimento. O fator de Hageman é, em seguida,
dividido por uma proteína chamada HMK, a fim de gerar o fator Hageman ativado.
Imediatamente, esse fator converte uma outra proteína, denominada pré-calicreína, em
sua forma ativa, a calicreína. A calicreína ajuda a HMK a acelerar a conversão de mais
fator de Hageman em sua forma ativa. O fator de Hageman ativado e a HMK juntos
transformam em seguida uma outra proteína, denominada PTA, em sua forma ativa. A
PTA ativada, por seu lado, juntamente com a forma ativada de outra proteína (...),
chamada convertina, mudam uma proteína chamada fator de Christmas para sua forma
ativa. Por fim, o fator de Christmas ativado, juntamente com o fator anti-hemofílico
(que é ativado pela trombina de forma semelhante ao que acontece com a
proacelerina), muda o fator Stuart e lhe dá sua forma ativa (Behe, 1997a, p. 91).

Assim, o fator Stuart-Prower ativado, com ajuda da acelerina, consegue converter as


protrombinas em trombinas ativas de forma a fazer o processo acontecer apenas na
presença de sangramento. Reparem os leitores que nenhuma dessas proteínas cumprem
sozinhas uma função no sistema. Além disso, o único motivo que evita que a presença de
muitas delas não represente riscos ao organismo, ao invés de vantagens, é a interação com
outras. Se a aquisição de cada uma dessas proteínas fossem eventos isolados, seguidos uns
dos outros, decorrentes de pequenas e lentas mutações ao acaso na molécula de DNA
mantidas durante várias gerações de animais, enfrentaríamos um grande problema para
compreender como e por que esse sistema, compreendido como uma totalidade, se formou,
dado que a simulação de fases intermediárias através da utilização de proteínas reais
resulta em deformações letais.
Mas a coagulação não é a única questão. Ainda resta o seguinte problema: uma vez
disparado o processo de coagulação por um corte ou sangramento, o que impede que ele
continue até coagular todo o sangue do animal? O que o controla e o faz encerrar na hora
certa? Mais uma vez, outras proteínas que fazem a regulação do processo precisam entrar
em cena. Isso significa que um sistema de coagulação completo adquirido ao acaso,
mesmo com toda improbabilidade de tal acontecimento, ainda não seria vantajoso se não
fosse regulado.
82

Não é propósito deste livro enfadar os leitores com informações técnicas. Mas não
podemos limitar a argumentação simplesmente a afirmações como: “a complexidade não
pode ser explicada pelo darwinismo”. Se não se esclarece a quê complexidade se está
referindo, a afirmação pode ser facilmente respondida por outra do tipo: “pode sim, basta
um conjunto de mutações que se acumulam e se mantém através da seleção natural”. Essa
é a forma de argumentação que se mantém apenas no aspecto formal da explicação, sem
investigar os fatores reais que estão submetidos a uma tentativa de entendimento. Portanto,
se nos abstermos das informações científicas, criamos um “debate entre surdos”. Essa,
infelizmente, tem sido a forma habitual das discussões sobre o darwinismo, mesmo no
meio científico, o que, de fato, é surpreendente e às vezes desanimador.
Por isso, devemos evitar as respostas fáceis e, para isso, não se podem omitir os
detalhes reais. Esta é a razão pela qual reproduzirei abaixo outra parte do livro de Behe que
nos informa sobre o que é preciso para evitar que o processo de coagulação mate o animal
por trombose generalizada. O que espero é somente que se perceba a complexidade do
processo no nível bioquímico. A pergunta é: o que faz o processo de coagulação parar na
hora certa?

Em primeiro lugar, uma proteína plasmática denominada antitrombina liga-se às


formas ativas (mas não às inativas) da maioria das proteínas coagulantes e as desativa.
A antitrombina é em si relativamente inativa, a menos que se ligue a uma substância
chamada heparina. A heparina ocorre no interior das células e em vasos sanguíneos
não danificados. A segunda maneira pela qual os coágulos são localizados dá-se
através da ação da proteína C. Depois de ativada pela trombina, a proteína C destrói a
acelerina e o fator anti-hemofílico ativado. Finalmente uma proteína chamada
trombomodulina cobre as superfícies das células no lado interno dos vasos sanguíneos.
A trombomodulina prende a trombina, tornando-a menos capaz de cortar o
fibrinogênio e, ao mesmo tempo, aumentando sua capacidade de ativar a proteína C
(Behe, 1997a, p. 94-95).45

Com a ação desse outro conjunto de proteínas, o sistema pode começar e parar na
hora certa. Caso contrário, seu início e fim seriam descontrolados e só teriam como
resultado a morte do animal.
Com a ação dessas diversas proteínas, o sangramento é evitado pela formação
controlada de um coágulo. Mas ainda falta algo. Uma vez curado o ferimento, o coágulo
precisa ser dissolvido. Para isso, outra proteína entra em ação, a plasmina, responsável pela
dissolução da fibrina. Novamente, começa a ação em cascata. Se a plasmina se encontrasse

45
Outras proteínas ainda entram no processo e são citadas por Behe. Ou seja, o processo é ainda mais
complexo do que o que é retratado aqui.
83

na sua forma ativa, nenhum coágulo se formaria, pois sempre que a fibrina entrasse em
ação, a plasmina a desintegraria. Por isso, a plasmina se encontra no organismo na sua
forma inativa, o plasminogênio. O mecanismo exato de ativação da plasmina a partir do
plasminogênio não é totalmente conhecido, embora se saiba que ele exige um outro
conjunto complexo de proteínas que agem em cascata para se realizar (cf. Elias & Souza,
2005).

Qual é a questão?
Em função da interatuação das diversas proteínas, da dinâmica de cascata do sistema
de coagulação e da fina sintonia entre todos os elementos, qualquer ausência no sistema, ao
invés de apresentar uma vantagem em menores proporções, é letal. Com as proteínas que
formam o sistema atual, é impossível de se imaginar um sistema “mais simples” que se
tenha sofisticado gradativamente com a aquisição de melhorias ao acaso. É isso que Behe
chama de complexidade irredutível, pois, segundo ele, não há como se pensar em um
sistema de coagulação funcional e vantajoso retirando-se uma ou mais proteínas que agem
em cascata. O sistema só funciona quando está todo montado.
Considerando ainda que cada proteína é codificada por um gene específico presente
na longa cadeia de bases da molécula de DNA, a esse sistema corresponde um conjunto de
genes responsável por sua existência e funcionalidade. Como isso se formou? O que fez
com que o DNA adquirisse os genes necessários para cada proteína do sistema e
respondesse à demanda pela sua produção na quantidade e momento necessários?
Pequenas mutações ao acaso ou duplicações aleatórias de genes mantidas pela seleção
natural? Diante da complexidade do sistema, respostas como essa não estão muito longe da
defesa de um surgimento mágico ou miraculoso.
Além do sistema de coagulação, Behe também descreve outros de enorme
complexidade, organização e ação conjunta. Segundo o darwinismo, tudo deveria ter se
formado passo a passo, por pequenas mutações aleatórias nas sequências genicas mantidas
pela seleção natural. Behe pergunta: como isso é possível, se a funcionalidade desses
sistemas exige a atuação de todas as proteínas em conjunto? A probabilidade de uma
mutação conjunta ao acaso (uma “macromutação”) gerar um sistema complexo e funcional
é, para efeitos práticos, nula. Portanto, a partir desses dados, o darwinismo se encontra
realmente em uma difícil tarefa.
84

Dizer que a evolução darwiniana não pode explicar tudo na natureza não equivale a
dizer que a evolução, a mutação aleatória e a seleção natural não ocorram. Elas foram
observadas (...) em muitas ocasiões diferentes. (...) Acredito que a prova confirma
convincentemente a ascendência comum. Mas a pergunta fundamental permanece sem
resposta: o que teria levado sistemas complexos a se formar? Ninguém jamais
explicou de forma detalhada, científica, como a mutação e a seleção natural poderiam
construir as estruturas complexas, intricadas, discutidas neste livro (Behe, 1997a,
p.179).

Então, com base em suas reflexões, Behe ainda afirma categoricamente:

A evolução molecular não se baseia em autoridade científica. Não há publicação na


literatura científica (...) que descreva como a evolução molecular de qualquer sistema
bioquímico real, complexo, ocorreu ou poderia ter ocorrido. Há afirmações de que tal
evolução ocorreu, mas nenhuma delas com base em experimentos ou cálculos
pertinentes. Uma vez que ninguém conhece evolução molecular por experiência direta,
e também por não haver autoridade sobre a qual fundamentar alegações de
conhecimento, podemos dizer com convicção que (...) a afirmação da existência de
evolução molecular darwiniana é simplesmente bazófia (Behe, 1997a, p.179).

A resposta do darwinismo
darwinismo
Uma vez apontadas as deficiências da teoria hegemônica e feitas afirmações tão
categóricas e contundentes contra sua capacidade explicativa, é necessário analisar quais
respostas foram apresentadas pelos defensores do darwinismo que pudessem livrá-lo da
acusação de paradigma em crise. O livro de Behe foi amplamente divulgado em todo o
mundo e não poderia ficar sem resposta por parte dos darwinistas.
Porém, foi difícil selecionar no debate em torno de sua obra as questões mais
propriamente relacionadas à ciência. A maioria dos artigos que se referem a Behe apenas
sustenta o debate acalorado e apaixonado entre criacionismo e evolucionismo e não entra
nos detalhes científicos. Às vezes, a discussão chega a situações próximas à puerilidade.
Behe afirmou inúmeras vezes não ter problemas de ordem filosófica ou religiosa com o
darwinismo e que acredita tanto na evolução darwiniana para um nível da realidade, como
no fato de que descendemos de um ancestral comum. Dawkins e outros críticos negam a
própria declaração de Behe e afirmam que ele é um “criacionista disfarçado” (Dawkins,
1996), opositor do evolucionismo. Assim, encerram a questão, como se não precisassem
rebater os argumentos científicos de A caixa preta de Darwin.
Quando o debate assume tal caráter, chega-se ao ponto final de um possível
confronto frutuoso de idéias, pois se cai na infantil troca de rotulações. O filósofo Arthur
85

Schopenhauer cita essa prática como um dos estratagemas da erística para se vencer um
debate sem se ater aos conteúdos:

Um modo rápido de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do


adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja
pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança. Por exemplo: “isso é maniqueísmo”, “é
arianismo”, “é pelagianismo” (...), etc. Com isto, fazemos duas suposições: 1) que
aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou, ao menos, está
compreendida nela e estamos dizendo: “ah, isto nós já sabemos!”; e 2) que esta
categoria já está de toda refutada e não pode conter nenhuma palavra verdadeira
(Shopenhauer, 1997, p. 174).

A “erística” é a arte da argumentação que visa convencer apenas pela forma da


apresentação dos argumentos e não pela sua consistência ou capacidade de explicar o real.
É a arte de vencer um debate mesmo sem se ter razão acerca dos conteúdos, apenas pela
manipulação da lógica e pela retórica, muitas vezes com utilização de sofismas e de
estratégias que induzem os espectadores a acreditar que o outro está errado, mesmo sem
saber exatamente o porquê. O tipo de rotulação usado por muitos biólogos que comentaram
Behe é um estratagema erístico. Mas é importante também observar que isso revela um
patrulhamento ideológico velado que existe nos meios científicos: antes de se ter o direito
de falar e ser ouvido, é preciso mostrar um “atestado de crença”.
De certa forma, ao propor o planejador inteligente, Behe se alia às idéias
criacionistas, mesmo que de maneira distinta do fundamentalismo que acredita literalmente
na descrição do Gênesis. Mas o que deve estar em questão em um debate digno de ser
chamado de científico são suas críticas ao darwinismo, nenhuma delas baseada em
argumentos de ordem ideológica ou religiosa. Esse tipo de patrulhamento e o tom
inquisitorial de censura usado por alguns cientistas pode ser percebido nos termos da
resenha feita pelo escritor e professor de química da Universidade de Oxford, Peter Atkins,
para um sítio da Internet chamado The Secular Web (com o sugestivo endereço
www.infidels.org):

O perigo desse livro (...) é, em parte, porque é muito bem escrito (...). Eu aprendi um
monte de coisas com ele (…). Além disso, aqui nós temos um cientista real e muito
competente (mas profundamente desencaminhado [misguided]) fornecendo ciência
muito boa e pontuando algumas omissões muito importantes em nosso atual
conhecimento. Dr. Behe e seu livro devem ser como ouro em pó entre o lixo dos
criacionistas em geral e a sua, assim chamada, literatura. Os leitores em geral não
saberão das limitações do seu argumento ou não estarão informados sobre suas
distorções dos fatos, e serão facilmente seduzidos pelos seus argumentos. Além disso,
parece muito mais fácil, e certamente evita uma grande quantidade de esforço
intelectual, aceitar que Deus fez tudo, ainda que nós tenhamos que interpretar as
86

alusões cuidadosamente codificadas para esta ficção incompetente de imaginações


empobrecidas. (Atkins, 2004. Grifos meus).

As afirmações de Atkins revelam um certo padrão de reação ao livro de Behe:


reconhecimento de seus méritos científicos, rejeição em bloco das argumentações sem
apresentar a contraposição cientificamente embasada para as críticas levantadas e
dissolução de toda a argumentação nas idéias criacionistas. Mas o risco de que os “leitores
sejam facilmente seduzidos por seus argumentos” só pode ser evitado pela proposição de
uma explicação darwinista para a formação dos sistemas complexos mencionados por
Behe. Pois, se é “muito mais fácil, e certamente evita uma grande quantidade de esforço
intelectual, aceitar que Deus fez tudo”, o mesmo ocorre com a crença de que o acaso fez
tudo, com o auxílio da seleção natural – a não ser que se descreva com coerência científica
(teórica e experimental) como isso pode ter acontecido.
A recorrência a estratagemas retóricos e a reação que foge ao estrito debate racional
são sinais de que há algum problema com o conteúdo da discussão. Uma vez que as
críticas de Behe ao darwinismo foram publicadas e amplamente divulgadas, era de se
esperar que as suas considerações fossem rebatidas com argumentos científicos que
procurassem invalidar o questionamento e reafirmar a capacidade do darwinismo de ser um
relato suficiente para explicar também a complexidade da vida no nível bioquímico.
Pessoalmente, esperava encontrar muitas respostas, dado que a proposição do Design
Inteligente me fez desconfiar da precisão das críticas da primeira parte do livro.
Pesquisei, até onde me foi possível, as publicações de caráter científico que se
referiam diretamente aos questionamentos de Behe. O resultado foi surpreendente. O
debate limitou-se a considerações ideológicas, discussão não racional, troca de acusações e
até manipulação de dados científicos. Os poucos artigos que procuravam tratar o problema
no nível científico repetiam os problemas e as anomalias apontadas por Behe, como se ele
não tivesse apresentado dados que contestassem certas tentativas de explicação.46
A revista Boston Review, do Massachussets Institute of Technology (MIT), dedicou
um número para a discussão dos problemas levantados pelo livro de Michael Behe (Vol.
22, n.1, feb/mar, 1997). Nele, autores como Allen Orr, Russel Doolittle, Jerry Coyne,

46
Cito na bibliografia apenas as publicações que serviram de referência direta para este livro. O resultado
completo da busca não foi referenciado aqui, dado o fato de que a maioria dos textos não trazia questões que
exigissem uma análise mais detalhada. Há também uma enorme quantidade de documentos na Internet que
tratam a questão colocando-a no meio das disputas entre “criacionistas” e “evolucionistas”, “crentes” e
“céticos”, etc. Não me detive em nenhum desses documentos, por não considerar que o problema é de ordem
ideológica ou teológica.
87

Richard Dawkins e Douglas Futuyma, procuram analisar as críticas levantadas por A caixa
preta de Darwin.
O artigo de Jerry Coyne, professor e pesquisador do departamento de Ecologia e
Evolução da Universidade de Chicago, é repleto de adjetivos, a começar pelo título: More
crank science.47 Coyne refere-se aos “antievolucionistas acadêmicos” (colocando nessa
categoria todos os cientistas não-darwinistas) com o termo pejorativo “gadfly” (pessoa
irritante, chata) e diz que o que Behe faz “não é ciência”, que o editor do seu livro
“procurou lucro e não exatidão”, que Behe pretende ser um gênio como Einstein e Newton,
etc. No entanto, para fundamentar o que diz, faz apenas afirmações sem indicação de
pesquisas ou fontes científicas que possam corroborá-las, mesmo que essas afirmações
tenham sido, mais de uma vez, negadas com argumentos por Behe. Quando nos deparamos
com um artigo rico em adjetivos, temos motivos para suspeitar da pobreza de substantivos
de seu autor.
Concentrando-se na proposição do Design Inteligente, Coyne afirma: “Uma tal idéia
não pode ser falsificada porque a cada vez que uma via metabólica recebe uma explicação
evolucionista, Behe pode simplesmente estreitar o domínio do planejador para incluir as
vias ainda não explicadas” (Coyne, 1997). Acontece que Behe afirma em seu livro que não
há nenhuma publicação especializada que tenha editado sequer um artigo com uma
explicação evolucionista darwiniana à complexidade bioquímica de sistemas metabólicos.
Para que os leitores de Behe não acreditem nessa afirmação, são necessárias provas que a
contradigam. Mas Coyne, embora a negue, não indica nenhuma fonte científica que possa
ser consultada para que nos convençamos do contrário. Se ele conhece alguma, guardou-a
em segredo e perdeu a oportunidade de nos mostrar a nulidade das acusações de Behe
contra o darwinismo.
Quando se refere ao conceito de complexidade irredutível dos sistemas bioquímicos,
Coyne recorre à teoria de Karl Popper, e diz que “a teoria de Behe sobre a complexidade
bioquímica não é científica porque é intestável: não há observação ou experimento que
possa refutá-la”. Karl Popper foi um dos mais importantes filósofos da ciência do século
XX. Segundo ele, uma teoria, para ser científica, deve ser passível de falsificação pela
experiência, ou seja, deve apresentar as condições para ser submetida a testes que possam

47
Crank, na gíria estadunidense, significa “exêntrico”, “esquisito”.
88

refutá-la. Se resistir ao teste falsificador, a teoria se fortalece; caso contrário, é abandonada


e a ciência é forçada a procurar novas e melhores teorias (cf. Popper, 1980).48
Ao dizer que a tese da complexidade irredutível não é científica por não ser refutável,
Coyne revela concordar com o critério de falsificabilidade popperiano. O curioso, porém, é
que Popper fez a mesma observação de Coyne, só que em referência ao darwinismo,
embora não negue seu valor para a ciência:49

Cheguei à conclusão de que o darwinismo não é uma teoria científica passível de


prova, mas um programa de pesquisa metafísica – um possível sistema de referência
para teorias científicas comprováveis. (...) [O darwinismo] é metafísico por não ser
suscetível de prova. (...) Importa, pois, mostrar que o darwinismo não é uma teoria
científica, mas metafísica. Contudo seu valor para a Ciência, como programa de
pesquisa metafísica, é enorme (...) (Popper, 1986, p. 177, 180, 181).

Se Coyne aplicasse ao darwinismo o mesmo critério popperiano de cientificidade que


usou para contestar a complexidade irredutível de Behe, certamente seria obrigado a
abandonar seu próprio referencial teórico. Mesmo assim, a resposta de Behe é mais
interessante: diz que sua proposta é, sim, refutável; basta alguém apresentar uma descrição
viável de como pode ter evoluído passo a passo tais sistemas apenas como obra do acaso e
da seleção natural. Pesa a favor de seu argumento o fato de que ninguém, até o momento,
conseguiu apresentar ao público uma tal descrição.
A propósito da ausência de explicações darwinistas para a complexidade bioquímica,
não é raro alguns biólogos afirmarem que o entendimento da evolução das vias
metabólicas com base na Teoria Sintética exige muita matemática e que, por isso, os
leitores comuns e os não cientistas não conseguiriam entendê-la. Esse tipo de argumento,
porém, não faz jus ao caráter público que a ciência possui (com exceção, é claro, dos
trabalhos mais específicos do cotidiano da ciência, chamados de esotéricos). Não creio que
exista ciência mais matemática e com equações mais complicadas do que a física. No
entanto, os físicos conseguem fazer divulgação científica (sem muita matemática ou com
uma matemática compreensível), explicando aos não-cientistas como o universo pode ter
evoluído e qual pode ser a estrutura da matéria, fornecendo aos leitores um entendimento
razoável de sua ciência em uma narrativa bastante lógica. Deveria ser diferente com as
ciências da vida? Estariam seus segredos restritos a grupos fechados incapazes de torná-los

48
A filosofia da ciência de Thomas Kuhn, que serve de apoio metodológico para este livro, se contrapõe à de
Popper. Para quem desejar entender as discordâncias a partir dos próprios autores, ver Lakatos & Musgrave,
1979.
89

conhecidos dos mortais comuns? Os não-cientistas devemos apenas crer que há uma
explicação darwinista que, contudo, não nos pode ser revelada?
Coyne usa o mesmo tom e a mesma base argumentativa em uma resenha sobre o
livro de Behe para a prestigiosa revista Nature. Seguindo o estratagema denunciado por
Schopenhauer, escreve:

A meta dos criacionistas sempre foi substituir o ensino da evolução pela narrativa
fornecida pelos primeiros onze capítulos do Gênesis. Quando a Justiça frustrou seus
esforços, 50 os criacionistas tentaram uma nova estratégia: disfarçarem-se sob o manto
da ciência. (...) A alternativa científica de Behe à evolução vem a ser, no final das
contas, uma confusa e intestável miscelânea de idéias contraditórias (Coyne, 1996).

Note-se aqui uma sutileza que é uma poderosa estratégia para desmontar a tese
adversária. Não se pode afirmar se fruto de uma confusão ou de deliberada malícia, mas a
identificação da evolução (afirmação factual, amplamente registrada) com a teoria
darwinista da evolução (que já comentei acima) é uma ação recorrente – diversos cientistas
que pesquisei acusam Behe de negar a evolução e baseiam seus argumentos nessa
acusação inventada. Na citação acima, por exemplo, Coyne fala de uma “alternativa de
Behe à evolução” e não à teoria darwinista. Mas a verdade é que Behe não nega o fato da
evolução e, sim, sua descrição pela teoria darwinista. É difícil acreditar que cientistas tão
preparados não consigam interpretar textos simples direcionados ao público em geral.
Repetirei parte de uma citação de Behe feita acima para que os leitores tenham noção de
que não é apenas ciência o que está em jogo nesse debate:

Dizer que a evolução darwiniana não pode explicar tudo na natureza não equivale a
dizer que a evolução, a mutação aleatória e a seleção natural não ocorram. Elas
foram observadas (...) em muitas ocasiões diferentes. (...) Acredito que a prova
confirma convincentemente a ascendência comum (Behe, 1997a, p. 179. Grifos meus).

Insistir que Behe nega um fato (a evolução) e não uma teoria (o darwinismo) –
mesmo que tenha sido dito exatamente o contrário – ou é um estratagema desonesto com
objetivo deliberado de confundir o público para ganhar o debate, sem se ter conteúdo
suficiente para isso, ou mostra que há algum problema com a capacidade de interpretação

49
E o próprio filósofo esclarece que quando fala em darwinismo ele se refere à síntese moderna, ou seja, ao
neodarwinismo.
50
Coyne aqui se refere aos esforços dos evangélicos dos EUA para tornar lei o ensino do criacionismo nas
escolas e proibir as explicações evolucionistas.
90

de texto e raciocínio de grandes figuras da biologia contemporânea. Quero insistir: negar o


darwinismo não é negar a evolução.
Porém, desconsideremos as acusações de Coyne e concentremo-nos nas suas
respostas às críticas de Behe baseadas na teoria darwinista. Que conteúdos científicos
Coyne traz ao debate, além de adjetivos e estratégias erísticas? Entre suas respostas,
encontra-se a de que, de fato, as vias metabólicas descritas por Behe são
“assustadoramente complexas" e que talvez nós sejamos “eternamente incapazes de
imaginar” o caminho de sua evolução. Mas, diz Coyne, o fato de não podermos imaginar
tal via evolutiva não significa que ela não tenha existido. “Nós enfrentamos não só a
carência de dados, mas também o terrível fato de que nós mesmos somos criaturas
evoluídas com limites de cognição e imaginação” (Coyne, 1996). Ou seja, de repente, o
autor assume que não tem as respostas.
Esse repentino espírito de humildade e o reconhecimento de limites para explicar a
evolução de sistemas complexos a partir do darwinismo não deveriam refletir-se também
no teor das suas críticas? Sobre quais evidências científicas Coyne baseia a virulência de
seu ataque? Nos artigos aqui referidos as evidências não são mencionadas e nem há
referências a publicações em que possamos encontrá-las. O artigo, no fim, é apenas uma
reafirmação de crença nos princípios do paradigma hegemônico.
O que Coyne não percebe é que seus argumentos, tão agressivos quanto fracos,
acabam por fortalecer o discurso criacionista que pretendem combater. Basta um
criacionista parafraseá-lo: “o fato de não termos evidências do Criador e nem podermos
explicar como Ele agiu no mundo, não significa que Ele não tenha agido”. Como
afirmação teológica ou de fé, é perfeitamente cabível, mas, como ciência, não é adequada.
Porém, ela segue a mesma estrutura da argumentação pretensamente científica de Coyne.
Mas Coyne também tenta apontar pistas para se responder ao desafio da formação
dos sistemas complexos dentro da lógica darwinista. Diz, por exemplo, que os sistemas
complexos (como o sistema de coagulação sanguínea) podem não ter evoluído passo a
passo, por adição gradativa das proteínas que os compõem. As proteínas que atualmente
agem nesses sistemas poderiam ter outras funções em organismos ancestrais e, por isso,
foram mantidas pela seleção natural. Posteriormente, elas podem ter sido “cooptadas” para
atuar em um sistema complexo. A trombina, peça chave do sistema de coagulação, cumpre
também uma função na divisão celular. Essas proteínas já existentes teriam formado, de
repente, um sistema integrado com inúmeras proteínas que se desenvolveram
paralelamente cumprindo outras funções.
91

O mesmo argumento é também utilizado pelo biólogo David Ussery, da Technical


University da Dinamarca, e pelo biotecnólogo Richard Thornhill. Segundo eles, há quatro
tipos de caminhos de acessibilidade para uma explicação darwinista da evolução: 1)
Evolução serial direta: a que ocorre pelo acúmulo de pequenas mutações mantidas pela
seleção natural, até chegar a um resultado maior, como o pescoço da girafa; 2) Evolução
paralela direta: modificações paralelas que ocorrem em dois componentes que,
posteriormente, adquirem juntos uma funcionalidade vantajosa; os autores exemplificam
com a retina e a cavidade dos olhos.51 3) Eliminação de redundância funcional: nesse caso,
quando alguns elementos sofrem mutação e passam a ter outra função, outros que faziam
parte do sistema perdem sua utilidade e é vantajoso para o organismo eliminá-los. A
evolução do resultado final (o novo sistema com uma nova funcionalidade) não pode ser
entendida apenas pelos seus componentes atuais, sem a intermediação dos componentes
eliminados. Nesse caso, os passos para a formação do sistema final foram “apagados”.52 4)
Adoção de função diferente: quando proteínas cumpriam outras funções e, de repente,
foram cooptadas por um outro conjunto de proteínas e passaram a constituir um novo
sistema funcional. Os autores começam com exemplos de órgãos completos em animais
pré-históricos e estendem esses exemplos ao mundo molecular, sobre o qual fazem apenas
indicações de que certas proteínas de sistemas complexos cumprem também outra função
no metabolismo (Thornhill & Ussery, 2000).
Para Thornhill e Ussery a complexidade irredutível é apenas uma ilusão, resultado
dos caminhos 3 e 4 (Coyne, como vimos, faz referência ao 4).

Tais respostas são


são satisfatórias?
Quais os problemas dessas respostas? Não seria, de fato, possível que os sistemas
complexos dos organismos vivos atuais tenham evoluído pelos caminhos 3 e 4 e apagado

51
Behe aponta os problemas dessa explicação do olho, mostrando a quantidade de moléculas envolvidas no
seu funcionamento, e conclui: “Agora que a caixa preta da visão foi aberta, não é mais aceitável que uma
explicação evolutiva dessa capacidade leve em conta apenas as estruturas anatômicas de olhos completos,
como fez Darwin no século XIX (e como continuam a fazer hoje os popularizadores da evolução). Todas as
etapas e estruturas anatômicas que Darwin julgou tão simples implicam, na verdade, processos biológicos
imensamente complicados que não podem ser disfarçados por retórica” (Behe 1997a, p 25-32). Thornhill &
Ussery, mesmo escrevendo quatro anos depois de Behe ter tecido suas críticas, simplesmente ignoram seus
argumentos e reafirmam a simplicidade da evolução do olho.
52
Dawkins (2001) dá o exemplo dos arcos de Stonehenge: sua estrutura final pode ser resultado do apoio dos
arcos superiores sobre pedras que foram posteriormente retiradas. Sem referência a essas pedras, fica o
mistério de como ele pode ter sido construído.
92

suas pegadas? Isso não responde aos questionamentos de Behe e dá uma explicação
darwinista para a evolução dos sistemas complexos?
Em minha opinião, tais respostas só são satisfatórias do ponto de vista formal. Elas
preservam a lógica do darwinismo quando afirmam que é possível adequar a constatação
da complexidade à perspectiva darwinista. No entanto, uma explicação científica exige
mais do que o esforço formal de se preservar uma teoria. A “forma”, em ciência natural,
deve ser preenchida com “conteúdo”. É nesse ponto que as explicações acima deixam de
ser convincentes.
É certo que recompor todo o passado evolutivo pela via empírica direta é tarefa
impossível e, nesse caso, é preciso esforço imaginativo e especulativo. Mas não é apenas a
biologia evolutiva que enfrenta esse problema. A cosmologia física também lida com a
evolução do universo tentando recompor os passos que precederam e formaram o universo
atual, passos que foram apagados quase em sua totalidade. No entanto, mesmo que a
cosmologia se caracterize pela especulação, seu formalismo é preenchido com elementos
reais, sejam partículas elementares conhecidas, átomos e moléculas, agindo em processos
resultantes de leis conhecidas e passíveis de serem realizados por imaginação e calculados.
Se se descobre que a interação entre duas partículas prevista em um modelo cosmológico
provocaria uma catástrofe universal ou impediria desenvolvimentos ulteriores do universo,
a hipótese dessa interação tem que ser descartada. Se for uma hipótese central da teoria, a
própria base teórica está comprometida.
Mas o mesmo não ocorre com as explicações darwinistas. O caminho 3 descrito por
Thornhill e Ussery tem como único critério a “imaginabilidade” e não a imaginação
concreta, composta por elementos reais conhecidos pela ciência. Ou seja, apenas se supõe
um processo possível, mas ninguém o reproduz preenchendo-o com elementos possíveis
dentro de um quadro científico imaginável e que preserve os princípios fundamentais do
darwinismo. Um artigo de Keith Robison, biólogo da Universidade de Harvard, (Robison,
1996) é citado por Thornhill e Ussery por traçar um quadro evolutivo darwinista provável
da formação do sistema de coagulação sanguínea. Mas Robison descreve um quadro
usando incógnitas como X e Y e não elementos químicos reais. Incógnitas não provocam
efeitos em organismos. A pergunta que deve ser feita é: o que aconteceria ao organismo
que adquiriu X se X fosse a fibrina (uma proteína real e não uma incógnita)? Ou Y, se Y
fosse a plasmina?
Pode-se supor, como faz Robison, que mudanças em “X” são neutras, mas a presença
de fibrina ativa no sangue não é neutra! Ela levaria a uma coagulação descontrolada. Ou
93

seja, a imaginação só é possível se não considerarmos as proteínas reais e os seus reais


efeitos para o organismo. Novamente os ratos insistem na idéia do sino... E continuamos
sem entender como o darwinismo poderia explicar a formação de sistemas complexos. O
que aconteceria se a cosmologia trabalhasse com partículas imaginárias X, Y, ou Z para
explicar o universo, ao invés de referir-se a mésons, fótons, elétrons, prótons, nêutrons,
píons, glúons, etc. – cujas interações são relativamente bem conhecidas?
Em muitas explicações vemos que o preenchimento do formalismo deixa de lado
também um aspecto fundamental da teoria darwinista (já comentado no capítulo 2): a
vantagem oferecida por cada mutação para que fosse preservada pela seleção natural. Ao
final, mesmo que Robison fale às vezes em “possível vantagem”, o seu quadro descreve
apenas os passos virtuais, sem esclarecer como eles poderiam ter sido direcionados apenas
pela seleção natural (Robison, 2003).53 Além do mais, apelar para o neutralismo de muitas
mutações (o que dispensaria o papel da seleção natural para a manutenção de todas as
mudanças) gera uma contradição com o que é enunciado no caminho 3 da explicação de
Thornhill e Ussery, a “eliminação de redundância funcional”: se é vantajoso para o
organismo eliminar os elementos que não têm função, por que as mutações neutras teriam
sido mantidas e se espalhado na população até que se lhes fosse atribuído um papel em um
sistema complexo?
Com relação ao caminho 4, descrito acima e mencionado por Coyne, enfrenta-se um
problema relacionado à probabilidade. É possível, embora difícil, imaginar o aparecimento
(com baixíssima probabilidade) de sistemas complexos altamente funcionais e equilibrados
apenas como resultado da interação repentina e fortuita de dezenas ou centenas de
proteínas que cumpriam antes outra função no organismo. Mas, com isso, explicar a
formação de praticamente todos os sistemas bioquímicos complexos é quase como admitir
uma intencionalidade oculta no acaso, ou uma lei natural que deveria ser explorada. A
regularidade de um acontecimento improvável deve indicar, em ciência, a existência de um
fator causador (de ordem natural) e não uma mera “coincidência”. Imaginar algo tão
improvável em defesa de uma teoria, parece depor contra uma ciência que se pretende
factual.
Apelar para o fator tempo também não torna esse acontecimento mais provável. Há
probabilidade para tudo em termos estatísticos, mas nem sempre os números envolvidos
nos cálculos de probabilidades representam situações reais. Lembremos que aqui a seleção

53
Behe responde a essas e outras críticas em Behe (2000b).
94

natural não age na formação dos sistemas. Eles têm que se formar instantaneamente ao
acaso para depois serem selecionados em função das vantagens que apresentam. Além
disso, está-se falando em inúmeros sistemas que compõem o mundo vivo e não apenas em
um ou outro órgão. Atribuir toda a responsabilidade ao acaso não seria dotá-lo de poderes
quase sobrenaturais?
Os exemplos de mudança de função (caminho 4) mencionados no artigo de Thornhill
e Ussery são retirados do mundo macroscópico e referem-se a estruturas anatômicas já
formadas e a sistemas bem mais simples e com menos elementos. Não é o caso dos
sistemas bioquímicos complexos que envolvem dezenas ou centenas de proteínas em
interações coordenadas, sincronizadas, auto-reguladas e interdependentes.
Em outro artigo, Ussery concorda que ainda não há um modelo teórico satisfatório
para explicar a complexidade bioquímica e afirma que essa é uma importante questão em
aberto (Ussery, 1997). Ao tentar explicar a formação dos sistemas que Behe chama de
irredutivelmente complexos, utiliza termos como “eu posso facilmente imaginar um
cenário...” e segue listando passos virtuais na formação do flagelo bacteriano, sem, no
entanto, fazer referência à seleção natural e à complexidade desse órgão explicada
detalhadamente por Behe (Behe 1997a, p. 77-79). Nas palavras de Ussery, “uma ‘bactéria
primitiva’ podia ter um anel, depois você teria um flagelo com dois anéis, depois três e
assim por diante” (Ussery, 1997).
Conforme já afirmei, esse tipo de explicação serviria também para automóveis,
aviões e computadores. O que surpreendentemente os cientistas parecem esquecer é que
não basta uma explicação de como uma coisa pode ser montada passo a passo, mas como
cada passo pode ter acontecido ao acaso e sido selecionado pela natureza a partir da
vantagem de cada um deles. O darwinismo não é apenas uma explicação da sucessão passo
a passo de mudanças, mas também da perpetuação e direcionamento dessas mudanças pela
seleção natural.

Engano ou desespero?
Comentar outros artigos sobre esse tema seria redundante, pois todos apresentam o
mesmo padrão de argumentação. Mas há um episódio digno de ser narrado que pode ser
um sintoma (embora periférico) de crise de paradigma. No volume da Boston Review
mencionado acima, o bioquímico Russel Doolittle, da Universidade da Califórnia, citado
por Behe como um dos maiores especialistas em coagulação sanguínea, também escreve
95

um artigo criticando A caixa preta de Darwin (Doolittle, 1997). Esse artigo pode ser
submetido a praticamente todos os comentários já feitos até aqui, mas chama a atenção por
citar uma pesquisa publicada na revista Cell que colocaria abaixo o argumento da
complexidade irredutível.
Segundo Doolittle, uma pesquisa teria provado ser possível a exclusão de algumas
proteínas chaves do sistema de coagulação sem que sua funcionalidade fosse
comprometida. Conforme o relato de Doolittle, pesquisadores constataram que a retirada
dos genes que produzem o plasminogênio em ratos provocaram trombose, como era de se
esperar.54 Posteriormente, retiraram de outros ratos o gene responsável pela síntese de
fibrinogênio e tiveram também o esperado resultado de complicações hemorrágicas.55
Depois, cruzaram as duas linhagens de ratos e – diz Doolittle – a prole com deficiência
tanto de plasminogênio como de fibrinogênio (duas proteínas que compõem o sistema de
coagulação) era normal. A conclusão de Doolittle é que a pesquisa prova que os
argumentos de Behe em defesa da complexidade irredutível foram derrubados, pois dois
elementos fundamentais do sistema foram retirados e nada aconteceu. Com um toque de
elegância, ele conclui, triunfante e categoricamente: “Ao contrário do que prega a
complexidade irredutível, o conjunto completo de proteínas não é necessário. Música e
harmonia podem surgir de uma orquestra menor” (Doolittle, 1997).
A leitura do artigo de Doolittle me fez acreditar que alguém finalmente estava
apresentando dados reais, frutos de pesquisa científica, que poderiam abalar os argumentos
de Behe. Isso me levou à leitura do artigo citado, para não me limitar à referência indireta.
Para minha surpresa, Doolittle citou as conclusões da pesquisa de forma equivocada. Os
autores dizem, na verdade, que

Ratos deficientes em plasminogênio e fibrinogênio são fenotipicamente indistinguíveis


dos ratos deficientes em fibrinogênio. Estes dados sugerem que a fundamental e
possivelmente única função fisiológica essencial do plasminogênio é a fibrinólise
(BUGGE et. al, 1996).

Ou seja, o que a pesquisa mostra, realmente, é que a prole deficiente nas duas
referidas proteínas não é normal! O artigo diz que a ausência de ambas provoca o mesmo
mal que a ausência apenas do fibrinogênio. Ou seja, a prole sem os genes que sintetizam o
fibrinogênio e o plasminogênio sofre de problemas hemorrágicos. O motivo é que, na

54
O plasminogênio, como já foi visto, é a forma inativa da plasmina, proteína responsável por desfazer os
coágulos.
55
O fibrinogênio é a forma inativa da proteína fibrina, responsável pela formação dos coágulos.
96

ausência da fibrina, não há coagulação e, portanto, não há coágulo para a plasmina


desfazer. Assim, os ratos sem as duas proteínas sofrem apenas os males da ausência de
coagulação. A conclusão da pesquisa é de que o plasminogênio pode não possuir outra
função a não ser fazer a dissolução da fibrina (fibrinólise). De maneira nenhuma os
autores afirmam (e nem a pesquisa indica) que as proteínas são dispensáveis ou que os
ratos deficientes nas duas são normais.56
Os motivos que levaram um especialista como Doolittle a se equivocar de forma tão
primária e a citar erradamente o resultado de uma pesquisa como prova de seus argumentos
não são possíveis de ser identificados sem prejulgamentos. Mas não me parece que uma
alegação de ignorância ou engano seja a primeira hipótese. Parece ser uma comprovação
da afirmação de Kuhn de que a adesão a um paradigma não é justificada racionalmente.

A crítica mais sensata a Behe


Por fim, cabe comentar o artigo de Niall Shanks, dos departamentos de Filosofia e de
Ciências Biológicas, e Karl H. Joplin, do departamento de Ciências Biológicas, ambos da
Universidade Estadual do Tenessee Leste. Entre os artigos que pesquisei, é o único que,
em minha opinião, trata o problema de maneira adequada, faz a análise de forma
equilibrada e sem adjetivos e aponta os verdadeiros problemas de Behe (Shanks & Joplin,
1999). Os autores tocam na questão que considero realmente científica e filosófica: se é
possível ou não uma causa natural para a formação e evolução dos sistemas vivos
complexos.
Conforme já mencionei, da constatação da incapacidade de se dar uma explicação
darwinista para a evolução da vida em nível molecular, Behe concluiu pela inviabilidade
de uma explicação natural para o fenômeno e recorreu ao conceito de Design Inteligente.
Do ponto de vista lógico, não se trata, certamente, de uma conclusão necessária. Ou seja, a
prova da insuficiência do darwinismo (que é uma teoria dentro da ciência e não a ciência)
não é prova de uma ação sobrenatural.
Shanks e Joplin comentam:

O argumento central de Behe concentra-se em afirmar que sistemas que satisfazem


certas condições – sistemas que consistem de vários componentes chaves, todos
contribuindo para a(s) função(ões) final(is) do sistema como um todo e todos
essenciais para a realização dessas funções do sistema – não podem ser originados por

56
Isso não passou despercebido de Behe, que comenta detalhadamente esse mau entendimento de Doolittle
em Behe (2000b).
97

processos não intencionais, naturais. Tais sistemas requerem um planejador


inteligente, sobrenatural. Conseqüentemente, se nós pudermos formular uma
explicação naturalista plausível (sem recorrência a planejadores de qualquer tipo), para
alguns sistemas que satisfaçam os critérios de Behe, nós teremos motivos para
questionar a validade geral de sua proposição.

Os autores refletem, então, sobre a possibilidade da ciência encontrar uma explicação


naturalista para a evolução da complexidade bioquímica dos seres vivos. No entanto, suas
reflexões baseiam-se nas modernas teorias da complexidade, como a de Kauffman (cf.
Kauffman, 1997):

Em resumo, a teoria da complexidade prediz, e os experimentos confirmam, que os


sistemas irredutivelmente complexos de Behe podem resultar do fenômeno dinâmico
da auto-organização. A auto-organização, resultante do que Kauffman chama de
“order for free”, pode ser explorada com proveito pela evolução de sistemas
biológicos (Shanks & Joplin, 1999).

Recordemos, a propósito, que Kauffman não pode ser incluído entre os defensores da
ortodoxia darwinista. Sua teoria da complexidade é incompatível com os princípios
centrais da Teoria Sintética Moderna, fato que o levou a sugerir que “precisamos repensar
a teoria evolucionária (...). Precisamos ver a vida de uma maneira nova e interpretar novas
leis para o seu desdobramento” (Kauffman, 1997, p. 132-133). Ou seja, é possível uma
explicação naturalista para a evolução, desde que haja um deslocamento dos princípios de
mutação aleatória e seleção natural para a idéia de auto-organização ou outras que
trabalhem com a noção de complexidade.
Shanks e Joplin tratam o ponto central da questão levantada pelo livro de Behe e
defendem a capacidade da ciência para explicar a evolução sem recorrer a causas
sobrenaturais. Mas os autores não ousaram reconhecer, no referido artigo, a insuficiência
do darwinismo para responder ao “desafio da bioquímica”. A auto-organização é um
fenômeno em contradição com o gradualismo das mutações buriladas pela competição
seletiva na natureza selvagem.
Defender o naturalismo científico não significa defender o darwinismo, dado que ele
não é a única teoria naturalista possível. Torna-se claro que a busca por uma explicação
naturalista da evolução, face às novas descobertas das ciências biológicas, deve ser feita a
partir de teorias alternativas fora da ortodoxia darwinista hegemônica. Este parece ser o
ponto central do debate em uma filosofia das ciências biológicas.
Embora Behe tenha feito um excelente trabalho apontando os limites do darwinismo
e tenha municiado o debate com elementos até então não discutidos, sua contribuição se
98

restringe, em minha opinião, à parte negativa. Ele mostra a insuficiência e a inadequação


do darwinismo para a compreensão da evolução de sistemas complexos. Seu estudo revela
algo já constatado por outros cientistas: é preciso uma nova teoria para se entender a
complexidade do mundo biológico e explicar o motivo de sua organização.
Mas a passagem da constatação de um aparente planejamento para a afirmação da
intervenção direta de um planejador não é uma alternativa científica viável. A ciência, por
razões puramente metodológicas, deve abster-se de colocar elementos sobrenaturais em
suas explicações. Diante de algo que não pode explicar, a ciência deve silenciar-se
enquanto busca respostas. Quando a busca a leva a questões que extrapolam seus limites, o
silêncio deve ser definitivo. É o que se faz, por exemplo, com relação ao “antes” do Big
Bang, ao sentido profundo da vida, a ética e a estética, etc.
O fato de que outras formas de saber, como a filosofia e a teologia, procurem
especular sobre dimensões da realidade não explicáveis pela ciência é apenas uma mostra
de que o mundo é multidimensional e que o conhecimento humano possui horizontes
interpretativos que não são abarcados pela ciência. Por isso, o universo não tem apenas
explicações científicas. À ciência cabe somente investigar e tentar explicar um dos
horizontes do mundo: as causas naturais dos fenômenos naturais. Ela não pode ser um
dogma totalizante que silencia outros saberes e nem pode pretender imiscuir-se em
horizontes que estão fora de sua capacidade de compreensão.
Ao propor o Design Inteligente, Behe mistura campos do saber que, embora possam
ser complementares, não podem se sobrepor.57 Dado o problema do aparente planejamento
que não é explicado pelo darwinismo, acredito que a própria ciência possa explicar suas
causas, mas somente se assumir o desafio da mudança de paradigma. Caso contrário,
qualquer forma de “criacionismo científico” aparece como uma alternativa viável e
sedutora.
Behe, portanto, levanta o problema, mas não o resolve de forma científica. Os seus
contestadores darwinistas não perceberam o alcance das suas críticas e se limitaram a
atacar sua solução, como se isso fosse suficiente para reabilitar a capacidade explicativa do
darwinismo. A questão, porém, fica no ar: se não é obra de um planejador inteligente que
age de forma direta e imediata no mundo, como se originaram, se mantiveram e evoluíram
os sistemas vivos, caracterizados por estruturas extremamente complexas que não se

57
Conforme refleti na introdução, na seção “Naturalismo científico e naturalismo metafísico”.
99

submetem aos princípios de mutação aleatória e seleção natural? Esse é o verdadeiro


desafio atual da biologia teórica.
Veremos nas próximas seções como alguns cientistas têm buscado fugir da ortodoxia
e buscar alternativas possíveis dentro da ciência, através da análise dos trabalhos de Lynn
Margulis (que se diz darwinista, mas não neodarwinista) e Máximo Sandín (crítico aberto
do darwinismo em todas as suas versões).

4.2. A CRÍTICA DE MARGULIS

A base da crítica
Lynn Margulis é pesquisadora do mundo microbiológico e crítica mordaz do
neodarwinismo. Seu trabalho é respeitado inclusive por aqueles que defendem a concepção
que ela critica.58 A importância de suas pesquisas rendeu-lhe uma vaga na Academia
Nacional de Ciências dos EUA e a Presidential Medal of Science. Seus livros são
geralmente em co-autoria com Dorion Sagan, filho de seu casamento com o conhecido
astrônomo Carl Sagan. Seu campo de estudo é o mundo vivo invisível aos nossos olhos, o
mundo das bactérias, dos protistas, dos fungos e das organelas que compõem a estrutura
celular. Margulis é responsável pela descoberta da origem bacteriana das mitocôndrias,
cloroplastos e outras organelas que desempenham funções indispensáveis no mecanismo
celular, tanto animal quanto vegetal.
Atenta a um mundo outrora não explorado, Margulis também percebeu a
insuficiência e inadequação dos princípios neodarwinistas quando aplicados à vida no nível
microbiológico. Mais do que isso, intuiu que, se não se pode aplicá-los ao mundo vivo em
suas dimensões mais elementares, tais princípios não seriam adequados à compreensão
geral da vida, sua origem e evolução. Seu comentário crítico aos neodarwinistas segue,
portanto, o padrão já comentado anteriormente: novos campos de investigação revelaram
realidades que não se enquadram na explicação hegemônica, em função de sua
complexidade e organização e por causa de inúmeras descobertas que estão em contradição
com certos princípios consagrados do neodarwinismo. Segundo Margulis, os pesquisadores
evitam relacionar essas descobertas com a Teoria Sintética e, por isso, não percebem a
contradição:

58
O prefácio de seu livro Acquiring genomes, por exemplo, é assinado pelo famoso e respeitado
neodarwinista Ernst Mayr, que, no entanto, faz algumas ressalvas às idéias mais provocativas do livro.
100

Geneticistas, ecologistas, microbiologistas, fisiologistas e outros habitantes de


laboratório e experimentalistas tendem a evitar a discussão sobre as implicações
evolucionárias de seu trabalho. A maioria deles simplesmente não faz idéia de como a
complexidade da vida evoluiu, ou, de qualquer forma, não escrevem sobre isso
(Margulis & Sagan, 2002a, p. 37).

Para a autora, os princípios básicos do darwinismo em sua versão sintética moderna


limitam-se ao estudo dos mamíferos e, quando muito, servem apenas para descrever
mudanças intra-específicas (ou seja, variações no interior de uma espécie), mas não a
transformação de uma espécie em outra. Os mamíferos, a propósito, junto com outras
classes de animais e plantas macroscópicos eram os únicos seres vivos conhecidos pela
biologia até certo momento da história. Não é de se surpreender que a teoria predominante,
elaborada no século XIX, focalizasse apenas grandes animais e plantas e não se estendesse
ao mundo microbiológico. Para os novos níveis de realidade descobertos, novas teorias se
tornam necessárias:

No lugar dos formalismos idealizados da “moderna síntese” darwinista, os princípios


organizados para o entendimento da vida requerem um novo conhecimento de química
e metabolismo. Descobertas no interior do funcionamento das células clarificaram o
modo de evolução desde que Darwin e seus seguidores imediatos escreveram suas
análises. Os resultados da nova ciência de laboratório e de campo contradizem,
ignoram ou marginalizam o formalismo do neodarwinismo, exceto para variações
dentro de populações de mamíferos e outros organismos que se reproduzem
sexualmente. Os mamíferos constituem provavelmente apenas um décimo
milionésimo de todas as espécies vivas na atualidade (Margulis & Sagan, 2002a, p.
38-39).

A proposição de Margulis segue o seguinte raciocínio. Sabe-se que a Terra foi


habitada exclusivamente por bactérias por cerca de 2 bilhões de anos (praticamente a
metade da existência de vida no planeta, estimada entre 3,8 a 4 bilhões de anos). As
bactérias são organismos unicelulares e sem núcleo.59 Seu material genético fica “solto”
dentro do espaço delimitado pela membrana e há constante troca desse material com outras
bactérias. Muitas vezes elas adquirem conjuntos inteiros de genes, obtendo novas
características por aquisição de genomas e não por mutações aleatórias.
O passo principal que possibilitou a complexidade atual e a variedade da vida foi o
aparecimento do núcleo celular, evento que ela denomina eukaryosis. Os passos seguintes,
também fundamentais, porém exclusivos dos eucariontes (seres formados por células
nucleadas), foram a reprodução sexuada, a incorporação de organelas – como as

59
Os seres formados por apenas uma célula sem núcleo são chamados de procariontes.
101

mitocôndrias e os cloroplastos – e a aquisição dos órgãos de locomoção de algumas


células, os cílios.
O aparecimento do sexo como fator de reprodução permitiu combinações
diferenciadas de genomas e a multiplicidade de resultados que disso pode decorrer. As
mitocôndrias são as chamadas “usinas de força” das células e cumprem uma função
essencial na forma como conhecemos a vida atualmente. Os cloroplastos são os
responsáveis pela fotossíntese nos vegetais. Os órgãos de locomoção transformaram a
dinâmica de vida e alimentação das células e lhes concederam maior mobilidade. Ou seja,
todos esses foram passos que definiram a evolução e o surgimento das espécies. Qualquer
que tenha sido a causa desses acontecimentos, deverá ocupar um lugar decisivo em uma
teoria da evolução. Foi a partir desses eventos que se formaram os outros quatro reinos
(além daquele que inclui as bactérias) nos quais se divide a vida na Terra.60
Margulis argumenta que os acontecimentos decisivos para a evolução não podem ser
explicados por pequenas mutações aleatórias nas sequências gênicas, mantidas por seleção
natural, conforme exige a explicação neodarwinista. Suas pesquisas revelaram que diversas
organelas são, na verdade, fruto de um processo de simbiose: bactérias que se juntaram e,
por tirarem proveito da integração, acabaram decisivamente fundidas. A seu favor pesam
as diversas descobertas de segmentos próprios de DNA em organelas como as
mitocôndrias e cloroplastos (além de outras) e incontáveis semelhanças bioquímicas
(principalmente as seqüências de nucleotídeos que formam os seus DNA’s) entre as
organelas e bactérias existentes, o que evidencia uma descendência comum entre ambas.
Mutações ao acaso jamais poderiam gerar uma “coincidência” nas seqüências do
DNA de organelas e bactérias, o que prova que a célula possui elementos fundamentais
que não são resultado de mutações aleatórias, erros de cópia ou duplicação de genes, mas
bactérias incorporadas a outras bactérias ou a outros organismos.
Para Margulis, a própria eukaryosis foi resultado de uma combinação simbiogênica,
em que bactérias fundiram permanentemente o seu genoma. A célula nucleada seria,
portanto, uma bactéria fundida à outra. Diversos outros processos fundamentais para a vida
podem ser explicados por fusão de bactérias. A incorporação de genomas ou a aquisição de
conjuntos completos de genes por um organismo, e não as pequenas mutações aleatórias no
DNA, seriam, então, os eventos capazes de explicar o surgimento de novas espécies e a

60
Os cinco reinos, segundo Marguilis, são Monera (que inclui todos os tipos de bactérias e as cianobactérias
–também conhecidas como algas verde-azuladas), Protoctista (que inclui os seres unicelulares eucariontes –
102

complexidade da vida. Em seu livro com Dorion Sagan, Acquiring Genomes (ainda sem
tradução para o português), Margulis nos fornece uma ampla série de exemplos de
simbiose ocorridas no mundo natural.
As bactérias cumpririam, portanto, o mais importante papel na evolução das
espécies. Se os leitores quiserem apenas um exemplo simples para perceber a simbiose em
ação na natureza (em nível macroscópico), basta observar uma vaca. O organismo dos
ruminantes não tem capacidade para digerir o capim que comem. Quem faz a digestão são
as bactérias presentes no rume. Só depois do trabalho das bactérias é que o animal pode
engolir o alimento. Sem as bactérias, os ruminantes morreriam de fome.

Confronto
Confronto com o darwinismo
A conclusão de Margulis afeta os eixos básicos do neodarwinismo e alguns
princípios decorrentes. As grandes mutações verdadeiramente responsáveis pela evolução
(e não simplesmente pelas diferenças entre seres da mesma espécie) não são fruto de
pequenas variações moleculares casuais que se acumulam nos organismos:

A visão corriqueira é que a vida evolui através da mudança genética aleatória, a qual,
além disso, não raro é prejudicial. As mutações ao acaso, cegas e sem direção, são
enaltecidas como a principal fonte da novidade evolutiva. Nós (e um contingente cada
vez maior de estudiosos da vida com orientação semelhante) não concordamos
totalmente. Enormes lacunas na evolução foram saltadas pela incorporação simbiótica
de componentes previamente aprimorados – componentes burilados em linhagens
separadas. A evolução não começa do zero a cada vez que surge uma nova forma de
vida (Margulis & Sagan, 2002b, p. 23).

Esta afirmação coloca em xeque também algumas conseqüências dos eixos


darwinistas, como o gradualismo das mudanças e a luta competitiva pela sobrevivência. A
simbiose, compreendida como força evolutiva central, proporciona grandes saltos na
evolução através da herança de genomas adquiridos. Essa idéia refuta a tese das mutações
pacientes e gradativas da teoria darwinista predominante. Além disso, a idéia popularizada
de uma natureza exclusivamente competitiva também se revela inadequada. Os incontáveis
exemplos de fusão na natureza demonstram os “consideráveis poderes da sinergia e
convergência da vida. Os seres vivos não só competem e lutam, mas também se associam e
trabalham em conjunto” (Margulis & Sagan, 2002b).

os protistas – e os pequenos multicelulares), Fungi (todas as espécies de fungos), Plantae (plantas) e


Animalia (os animais).
103

Apesar de contradizer os princípios fundamentais da explicação darwinista, Margulis


afirma, no entanto, não rejeitar o darwinismo, mas só o neodarwinismo. Ela não rejeita o
papel da seleção natural, princípio que considera o único central e adequado da teoria de
Darwin:

Módulos preexistentes, que revelam ser primordialmente bactérias, já gerados pela


mutação e conservados pela seleção natural, unem-se e interagem. Eles formam
alianças, fusões ou novos organismos – complexos inteiramente novos, que agem
através da seleção natural e sofrem sua ação (Margulis & Sagan, 2002b, p. 23. Grifo
meu).

Sua visão é apresentada, conforme suas palavras, não como uma “alternativa ao
darwinismo clássico”, mas como “uma extensão, um refinamento e amplificação da idéia
de Darwin”. Para Margulis, o núcleo central da teoria de Darwin que possui validade
inquestionável é o papel da seleção natural, por isso ela reivindica-se “darwinista e não
neodarwinista” (este é o título do primeiro capítulo de Acquiring genomes).
Mas, se considerarmos que o darwinismo só se estabeleceu como paradigma
hegemônico a partir do neodarwinismo, seus questionamentos não deixam de representar
uma crítica ao paradigma predominante. Além disso, embora reconheça o papel da seleção
natural, a teoria de Margulis, compreendida como uma síntese explicativa e não apenas
como um conjunto de proposições isoladas, parece conceder-lhe apenas um papel óbvio: o
de manter os organismos que são bem acoplados a seu entorno. Isso me parece apenas o
reconhecimento de uma evidência trivial: se a manutenção de um organismo vivo depende
de uma relação sintônica entre sua estrutura interna e o meio circundante – com o qual
realiza trocas vitais através do metabolismo –, só serão mantidos os seres que apresentarem
essa sintonia, perecendo todos os outros que, por algum motivo, não conseguirem se
acoplar ao meio.
Concebendo-a dessa maneira, a seleção natural perde o lugar que ocupa no
darwinismo, ou seja, o de conceito teórico central que explica o mecanismo da evolução e
que é responsável tanto pela complexidade e diversidade dos seres vivos, como pelas
mudanças de espécie.
Portanto, em uma análise mais acurada, a proposta de Margulis atinge não só o
neodarwinismo, mas o darwinismo em si mesmo, embora a autora, por razões não muito
claras, não admita tal conclusão. É difícil perceber o que resta do darwinismo quando se
aceita a simbiogênese em todas suas conseqüências. Apenas aceitar que a seleção natural
104

cumpre um papel – e principalmente quando esse papel é apenas óbvio e não o de


mecanismo capaz de explicar a evolução – não torna ninguém darwinista.
Já os defensores do neodarwinismo dizem ser possível “incorporar” a simbiose como
um caso particular, um acessório que “contribui” com a evolução, sem prejuízos para a
estrutura fundamental da teoria. Mas Margulis e outros cientistas revelam que os genes de
origem bacteriana estão presentes nos passos mais fundamentais que constituíram os
processos básicos da vida e possibilitaram a evolução. Como isso pode ser apenas “um
caso particular” que não coloca em risco a “regra” darwinista? Confesso que tenho sérias
dificuldades para entender como juntar idéias tão diferentes, com tantos pontos de
contradição, e ainda manter uma estrutura explicativa coerente consigo mesma.

DNA: programa ou dados?


dados?
Outro ponto de desacordo entre Margulis e o neodarwinismo refere-se ao papel do
genoma para a vida. Na visão hegemônica, o DNA é visto como o “programa” no qual
estão inscritas todas as informações acerca do desenvolvimento de um organismo e os
genes são tidos como unidades mínimas de informação desse programa. Pequenas
alterações na disposição das bases que constituem os genes, mantidas pela seleção natural e
acumuladas no tempo, modificariam o programa e produziriam resultados diferentes.
Apenas modificações no programa podem gerar mudanças hereditárias. A evolução seria
conseqüência de sucessivas alterações no programa mantidas pela seleção natural.
Margulis e outros autores rejeitam essa interpretação, sem contudo – e obviamente –
negar o papel central do DNA no armazenamento de informações sobre a constituição dos
organismos vivos. Eric D. Schneider e James J. Kay atribuem aos genes o papel de
armazenamento das informações úteis geradas pelo processo de auto-organização e não o
de mecanismo gerador do desenvolvimento e variedade da vida: “[Os genes] são o registro
da auto-organização bem sucedida. Os genes não são o mecanismo do desenvolvimento; a
auto-organização é o mecanismo. (...) [O papel do gene é] agir como um banco de dados da
informação para estratégias de auto-organização que funcionam” (Schneider & Kay, 1997,
p. 198).
Tal noção é compartilhada por Margulis e Sagan quando afirmam que “a molécula de
DNA, como discos de computador, armazena informações evolucionárias, mas não as cria”
(Margulis & Sagan 2002a, p. XVI). Segundo os autores, mudanças aleatórias no DNA ou
induzidas artificialmente em laboratório são geralmente nocivas. Exercem um pequeno
105

papel na saga evolucionária, mas são incapazes de explicar o processo evolutivo como um
todo.
Henri Atlan também propõe a revisão da abordagem do DNA como “programa” e
sugere a sua compreensão como “dados armazenados” interpretados pelo conjunto
complexo constituído pela rede de reações metabólicas do organismo – esse sim uma
espécie de “programa” distribuído pelo corpo vivo (Atlan, 2002). Ou seja, o DNA entra
apenas com os dados, mas não define, em última instância, como esses dados serão
processados. O processamento da informação depende de inúmeras condições às quais as
células ou o organismo estão submetidos. Ou seja, a estrutura final de um organismo, e não
sua forma eventual, é definida pelo meio em interação com os dados do genoma. Não há,
portanto, uma relação direta e mecânica entre o genótipo (estrutura genética) e o fenótipo
(as características reais dos organismos viventes). O processo é muito mais complicado e
dependente de inúmeros fatores além da simples disposição de bases no DNA. A interação
com o meio, responsável pelo “contexto” da célula, provoca respostas distintas no
funcionamento do genoma.
Esse não é um detalhe superficial e deve ser compreendido em seu verdadeiro
impacto para a teoria darwinista. Note-se que, segundo os autores mencionados, o meio
(em interação com o genoma) define a estrutura do organismo e não apenas o seleciona.61

O mistério da origem da vida


Até aqui se falou em evolução das espécies. Mas, e quanto à origem da vida? Muitos
darwinistas acreditam ser possível explicar também a origem da vida através de sua teoria.
Mas, nesse aspecto, Margulis também sustenta uma visão diferente, embora não seja sua
autora. Ela concebe a organização da vida como uma resposta aos gradientes de
temperatura entre a Terra e o espaço circundante, seguindo o trilho das proposições de
Schneider e Kay, que interpretam a vida a partir das leis da termodinâmica e das estruturas
dissipativas de Ilya Prigogine.62 Isso significa que a vida não é um acontecimento casual,
acidental, improvável e sem propósito, como a concebe o darwinismo, mas um
comportamento esperado da natureza a partir das leis conhecidas da termodinâmica. Ou
seja, a estrutura organizada da vida tem um “propósito”, tal qual o dos tornados ou dos

61
Essa questão voltará a ser abordada mais adiante, quando tratarmos das idéias de Sandín.
62
Para se entender melhor a interpretação da vida como um fenômeno termodinâmico, como a emergência de
“ordem a partir da desordem”, ver Margulis & Sagan (2002a, p.42-50) ou a exposição de rara clareza de
Schneider & Kay (1997).
106

padrões organizados que emergem na experiência das “células de Bénard”, estruturas


organizadas que aceleram a redução de gradientes de temperatura.63 O surgimento da vida
seria uma resposta peculiar da natureza a certas condições às quais se encontrava
submetida. O acaso perde seus inauditos poderes semidivinos e, em seu lugar, entra uma
causa natural, observável em vários fenômenos, que pode ser suposta também para o
surgimento da vida.
Além disso, Margulis compartilha com os biólogos chilenos Humberto Maturana e
Francisco Varela a noção de “autopoiese”, que, aplicada à origem da célula, exclui
totalmente o relato darwinista como explicação possível, embora também mantenha um
papel para a seleção natural no que tange à evolução (um papel questionável, como já
observei).
Para Maturana e Varela, uma célula pode ser descrita, em sua complexidade e
funcionamento, como uma “máquina autopoiética”. Tal conceito refere-se a um sistema
autônomo que tem como finalidade constante a produção de si mesmo – ou seja, uma
fábrica cujo produto é ela própria, que existe para fabricar e manter-se a si mesma. A
evolução é por eles explicada como um processo de “acoplamento estrutural” de um
sistema autopoiético às condições do ambiente, onde os organismos procuram perpetuar a
sua autopoiese adaptando sua estrutura ao meio em que vivem. Não há nenhuma
intencionalidade na adaptação, mas é apenas uma condição para que a autopoiese
permaneça. Nesse sentido, os que conseguem manter um acoplamento estrutural diante de
mudanças no ambiente, são os aptos a permanecerem vivos.
Para Maturana e Varela, não existe a sobrevivência do “mais apto”, mas
simplesmente a “sobrevivência do apto” (Maturana & Varela, 2001). A “competição” pela
sobrevivência não faz parte da natureza, mas apenas da descrição do observador. Os
autores, porém, também não negam a seleção darwiniana e afirmam que o próprio papel
atribuído por Darwin à seleção natural deve ser entendido como uma metáfora para o
acoplamento estrutural.
Há, neste caso, uma mudança do foco do processo evolutivo: o agente da evolução
deixa de ser a seleção natural e, em seu lugar, entra o próprio organismo que tende a

63
Em poucas palavras, as células de Bénard são estruturas organizadas, com certa estabilidade, que se
formam em um líquido em um determinado momento quando colocado no meio entre uma fonte de calor e
outra de resfriamento. As diferenças de temperatura geram um gradiente alto. As estruturas organizadas que
se formam no líquido facilitam o movimento de calor de uma fonte para a outra, acelerando a redução do
gradiente. O progressivo equilíbrio entre temperaturas é uma regra natural.
107

reestruturar-se para manter a sua autopoiese em distintas condições ambientais.64 De


qualquer forma, cabe aqui o mesmo questionamento que apresentei acima sobre o papel
desempenhado pela seleção natural como motor da evolução, junto com as mudanças
aleatórias no DNA, eixos essenciais do neodarwinismo. Acoplamento estrutural não são
mudanças lentas e ao acaso e a sintonia com o meio é apenas uma necessidade óbvia, não
um princípio selecionador que pode explicar a evolução. Não vejo o que sobrevive do
darwinismo quando se aceitam tais idéias.
Já para a origem dos sistemas autopoiéticos, o darwinismo é completamente
excluído. A seleção natural só pode ser aplicada a organismos complexos “já existentes”.
Embora os autores não expressem uma rejeição explícita à teoria darwinista, é o que se
pode compreender quando um deles afirma: “A constituição de identidade de um indivíduo
antecede, empírica e logicamente, o processo de evolução” (Varela in Maturana & Varela,
1997, p. 47). Ou mais claramente:

O estabelecimento de um sistema autopoiético não pode ser um processo gradativo: o


sistema autopoiético ou existe, ou não existe. De fato, seu estabelecimento não pode
ser um processo gradativo porque um sistema autopoiético é definido como sistema
(...) pela sua organização. Portanto, uma unidade topológica ou está conformada por
sua organização autopoiética e o sistema autopoiético existe e permanece, ou não há
unidade topológica, ou existe conformada de maneira diferente, e não existe um
sistema autopoiético (...). Em conseqüência, não há e nem pode haver sistemas
intermediários (Maturana & Varela, 1997, p. 88).

Ou seja, para o surgimento da complexidade do sistema vivo, no nível da célula (uma


complexidade formada pela interação bioquímica de moléculas específicas) o darwinismo
não oferece explicação, visto que esta complexidade não pode surgir gradualmente, ou por
pequenas modificações mantidas pela seleção natural. Ao contrário de uma unidade auto-
replicadora pré-celular, submetida às leis darwinistas, ter dado origem à célula – como
pretende Dawkins – a evolução só pode acontecer com a célula já formada.
Contudo, Maturana e Varela não oferecem nessa obra nenhuma pista que possa
auxiliar na compreensão de como a célula, um sistema autopoiético, pode ter-se
organizado. Apenas aludem ao fato, problematizam-no e concluem: “Não nos deteremos
nas circunstâncias particulares de nenhuma dessas materializações [dos sistemas
autopoiéticos em sua origem]. Deixaremos este assunto por aqui e tomaremos a existência

64
Segundo Maturana e Varela, o peso no papel da natureza como agente selecionador foi uma interpretação
equivocada da seleção natural (2001, p. 113). A compreensão equivocada da seleção natural acabava
provocando a impressão de que o meio instrui as mudanças nos organismos.
108

dos sistemas vivos como prova existencial da factibilidade da organização autopoiética”


(Maturana & Varela, 1997, p. 89).
Isso significa que não importa como se originaram os sistemas autopoiéticos, mas tal
processo é possível pela simples prova de que estão aí. Para os autores, na obra aqui
referida, a prova da possibilidade do aparecimento instantâneo, sem passos intermediários,
de sistemas altamente complexos e organizados é que eles de fato existem. De qualquer
maneira, o darwinismo (já sem sua força tradicional) fica limitado à interpretação da
evolução dos organismos vivos já existentes, mas não da sua origem.
Se o darwinismo não puder se estender a esse nível, a questão fica em aberto para
novas proposições. Mais ainda, é preciso perguntar: seria possível traçar uma ruptura tão
profunda entre a origem e evolução da vida a ponto de ser necessário ter duas teorias
diferentes para explicar os dois processos? Ou seria possível uma síntese explicativa que –
com diferentes formas de abordagem que levassem em conta as diferenças entre origem e
evolução – abarcasse ambos? Ou seja, as forças que agiram na origem da vida não
continuariam agindo também na evolução?

As anomalias se multiplicam
Todas essas questões – a complexidade e organização da vida em níveis
microscópicos, as implicações reais da mudança e evolução das espécies, o problema da
origem da vida e até mesmo as recentes descobertas do Projeto Genoma – têm-se tornado
anomalias que parecem não ser adequáveis ao paradigma hegemônico.65 As proposições de
Margulis (e as reflexões de outros autores mencionado nesta seção) reforçam ainda mais a
idéia de que o darwinismo chegou ao seu limite de produtividade e as anomalias estão se
tornando intoleráveis para o avanço da compreensão da vida – mesmo que os autores
citados possam talvez não aceitar minha conclusão.
Ainda que Margulis tente dizer que o darwinismo “original” se preserva em suas
reflexões, é difícil perceber quê papel ele pode ter no quadro geral de uma teoria da
evolução baseada nas idéias por ela apresentadas.
Há, como se pode notar, a necessidade de uma nova interpretação da evolução que se
contraponha ao darwinismo moderno, uma vez que os conhecimentos da biologia se
ampliam com grande rapidez e fogem às possibilidades de explicação nos limites da visão
dominante. Para resolver as contradições, não tem sido suficiente reinterpretar, ampliar ou

65
Ver Sandín (2002a) a respeito das descobertas do Projeto Genoma e sua inadequação ao neodarwinismo.
109

fazer uma releitura de Darwin. Tampouco vejo sentido em modificar totalmente o


significado do darwinismo, mas preservar-lhe o nome.
O “darwinismo” de Margulis, segundo ela, não é o dos neodarwinistas. Mas, em
minha opinião, tampouco é o de Darwin. Este ficou completamente desfigurado quando a
seleção natural (único conceito sobrevivente na teoria da evolução por simbiose e
aquisição de genomas) perdeu sua força como explicação da evolução e foi mantido como
um acessório que não acrescenta muita coisa à base da teoria. Sem contar que a agência do
meio na definição da estrutura dos sistemas (explicada por Atlan e fartamente
documentada em artigos especializados) causa um profundo impacto na idéia sobre o papel
do ambiente na evolução.
Além disso, se não há o “mais apto” e a competição ocorre tanto quanto a simbiose e
a cooperação, o que a natureza “seleciona”? Não sendo sobrevivência dos “mais aptos”,
nem necessariamente resultado de uma luta competitiva para sobreviver, o que resta é a
afirmação da “sobrevivência de todos que conseguem sobreviver”, dos que não são
defeituosos, dos que conseguem manter seu acoplamento estrutural, dos que não têm
problemas de sintonia na sua relação com o meio. Seria isso capaz de explicar a evolução
ou ao menos nos ajudaria em sua compreensão?

4.3. A CRÍTICA DE MÁXIMO SANDÍN

A base
base da crítica
Se Lynn Margulis recusa-se a abandonar o rótulo de darwinista (ainda que as
conseqüências de suas reflexões conduzam a uma posição distante do núcleo do
darwinismo) e Michael Behe propõe uma alternativa não naturalista à teoria da evolução
de Darwin, Máximo Sandín, biólogo da Universidad Autónoma de Madrid, rejeita
veementemente a teoria darwinista em qualquer de suas versões e, ao mesmo tempo,
propõe uma explicação naturalista alternativa para o fenômeno da evolução, sem recorrer a
princípios sobrenaturais.
Destaca-se em seu trabalho uma incansável luta para demonstrar que o sucesso do
darwinismo não tem razões científicas, mas sociológicas e ideológicas. A aceitação do
darwinismo, para ele, é decorrente de sua assimilação pela sociedade como ideologia e não
como teoria científica. Sandín afirma que o que Darwin fez foi aplicar à natureza as regras
de convívio social propostas pelo liberalismo – mais especificamente, as idéias de Malthus
110

e Spencer.66 A elite industrial e colonialista da Europa do século XIX (principalmente da


Inglaterra), ao ver sua ação exploratória e desumana justificada por argumentos
naturalistas, saudou o darwinismo como verdade suprema (Sandín, 2000).67
Mas Sandín não limita sua reflexão aos aspectos sociológicos do darwinismo e nem
são esses os fatores que motivam e fundamentam sua crítica. Esta seria apenas a explicação
dos motivos que fizeram uma teoria com tantas deficiências científicas ter conquistado
tamanha hegemonia. O que mais caracteriza seu trabalho, na verdade, é a abundância de
dados científicos e referências a pesquisas diversas que, em sua opinião, seriam suficientes
para que o darwinismo fosse completamente abandonado. No entanto, a adesão cega ao
paradigma hegemônico impede que os biólogos percebam ou admitam a inadequação da
Teoria Sintética aos dados mais recentes da ciência. O resultado é a perda da base
científica, factual, da biologia, sacrificada em nome da manutenção da teoria dominante.
“Se a Nova Biologia quer recuperar sua base científica, terá que se libertar da ‘visão vazia
da realidade’ que tem deformado as interpretações dos descobrimentos produzidos nos
últimos 150 anos” (Sandín, 2002a).
Conforme foi visto acima, as tentativas de salvar o darwinismo têm demonstrado ser
mais retóricas e formais do que científicas e factuais, em função da ausência de dados ou
amparo em pesquisas reais que lhes acrescentem conteúdo. Sandín, pelo contrário, faz
reaparecer o aspecto científico do estudo sobre evolução ao amparar sua proposição em
incontáveis dados (impossíveis de serem reproduzidos aqui) e apresentar uma alternativa
complexa para um problema complexo.
Independente do julgamento que outros biólogos possam fazer de sua proposição, o
fato é que Sandín procura discutir os detalhes reais implicados nos processos vitais e na
evolução, tentando entendê-los dentro de uma teoria que lhes dê sentido. É como se
analisasse a exeqüibilidade da proposta de se pendurar o sino no pescoço do gato e, ao
percebê-la inviável em função dos limites reais, procurasse elaborar uma outra solução que
se adaptasse à situação conhecida.
Alguns dados citados em seus artigos podem contribuir para que se perceba a
dificuldade de adequação das novas descobertas das ciências aos postulados fundamentais
do darwinismo. A primeira e mais básica constatação é a de que a vida é um fenômeno da

66
Conforme foi visto no capítulo 2, o próprio Darwin admite que sua idéia de luta pela sobrevivência é uma
“aplicação da doutrina de Malthus à totalidade dos reinos animal e vegetal”.
67
As referências a Sandín neste livro utilizam a data de publicação original de seus artigos em revistas
especializadas, mas seus trabalhos podem ser encontrados no livro Pensando la evolución, pensando la vida
(Sandín, 2006) ou em sua página pessoal na Internet: www.uam.es/personal_pdi/ciencias/msandin.
111

mais alta complexidade. E isso não significa simplesmente reconhecer as intrincadas


relações entre os incontáveis elementos que compõem os organismos vivos, mas o fato de
que só se pode falar em vida, mesmo em sua forma mais elementar, quando todos esses
elementos já estão em interação coordenada e fazendo o sistema funcionar.
Não se trata de reconhecer a vida como algo “complicado”, mas como um fenômeno
complexo (no sentido do que foi refletido aqui no capítulo 1). É o mesmo que Behe fala ao
enunciar o conceito de complexidade irredutível e o que dizem Maturana e Varela a
respeito dos sistemas autopoiéticos. Por isso, Sandín afirma:

A aparição e ensamblamento de todos esses componentes de uma forma independente,


gradual e aleatória é uma especulação difícil de apoiar e impossível de demonstrar
(...). A repentina presença das bactérias em condições que tornavam impossível a vida
como a conhecemos resulta tão desconcertante para a concepção tradicional que já se
está cogitando “oficialmente” a possibilidade de que sua origem seja exterior à Terra
(ver Ball, 2001). Sua demonstrada participação [das bactérias] na origem das células
de que estão compostos todos os seres vivos acentua seu caráter especial, e é o
primeiro “salto evolutivo” produzido pela integração de vários sistemas complexos em
outro de maior complexidade (Sandín, 2006).

A complexidade envolvida no funcionamento da vida, mesmo nas aparentemente


mais simples funções como a codificação de uma proteína por um gene (que, conforme
vimos, parece ser algo trivial para Dawkins), choca-se com a simplicidade das mutações
lentas, graduais e ao acaso do darwinismo. Nenhuma pessoa que conheça o funcionamento
da célula, as relações bioquímicas entre as moléculas da vida e o enorme equilíbrio entre as
funções celulares deixa de se impressionar com a intrincada cadeia de relações que faz a
vida existir. E não é pela quantidade de elementos e funções envolvidos – com suas
respectivas nomenclaturas que os estudantes se esforçam para dominar – mas pelo
funcionamento global dessa infinidade de moléculas.
No entanto, a maioria dos pesquisadores que lidam cotidianamente com tal
complexidade, conforme diz Margulis, não reflete sobre as implicações evolucionárias de
seu trabalho e os que se dedicam a ensinar e escrever sobre evolução muitas vezes deixam-
na de lado, como se falassem de outra coisa que não o que se revela nos laboratórios.
Sandín, contudo, não se conforma com esta contradição entre os dados reais e a
teoria que os explica:

A enorme complexidade e sincronia que se encontram dentro de uma célula, na qual


centenas de milhares de moléculas, cada uma com umas propriedades, no mínimo,
surpreendentes, interagem com grande precisão para formar um sistema com uma
capacidade de integração e processamento de dados em relação com o ambiente
112

interno e externo, com os ciclos de divisão, com auto-reparação... resultam


inconcebíveis para a tecnologia mais avançada. É lógico, é sequer racional crer que
sucessos aleatórios e “erros” ocasionais tenham podido ensamblar estes “sistemas
operativos” que são, precisamente, a antítese do acaso? (Sandín, 2002a).

Os avançados estudos de genética e as descobertas surpreendentes da investigação do


genoma de diversos seres vivos têm revelado que o funcionamento dos processos
biológicos envolve muito mais fatores do que a simples relação mecânica gene-proteína ou
genótipo-fenótipo que caracteriza a concepção tradicional defendida por muitos biólogos.68

Com efeito, são cada vez mais os mecanismos e processos biológicos que têm um
enquadramento difícil dentro da Teoria Sintética. Os elementos móveis, as seqüências
repetidas, os genes homeóticos, as seqüências reguladoras... Tudo isso submetido, no
nível celular, a um complexíssimo controle de proteínas que “revisam” e “reparam” os
erros de duplicação, que controlam o correto funcionamento celular e que se auto-
regulam entre si. No nível do desenvolvimento embrionário, a campos morfogenéticos
que controlam com incrível precisão o progresso espacial e temporal da formação dos
tecidos e órgãos e que são capazes de corrigir acidentes e reconduzir o processo. E no
nível orgânico, a sistemas neuro-endócrinos de regulação que relacionam tecidos e
órgãos entre si, sob a proteção de um complexo sistema imunológico com uma
surpreendente capacidade de resposta a agentes estranhos.
A grande precisão com que funciona cada um desses mecanismos e a estreita
interconexão entre todos eles, ou seja, sua qualidade de sistemas complexos, cujos
elementos não podem atuar como partes independentes, concede pouca margem de
atuação aos erros aleatórios como mecanismo da evolução. Ainda, se além disso
levarmos em conta sua capacidade de auto-reparação, tanto no nível celular como
embriológico, que campo de ação resta para a Seleção Natural para as mudanças nos
organismos que impliquem realmente evolução? (Sandín, 1997).

Um retorno à ciência empírica


As referências factuais das quais Sandín lança mão para demonstrar a complexidade
dos mecanismos biológicos no nível genético e embrionário são estonteantes. Há uma
infinidade de informações, ainda sem uma conexão teórica adequada, capaz de provocar,
ao mesmo tempo, um deslumbramento frente ao refinamento e complexidade dos
processos biológicos e um desânimo frente ao desafio de se tentar explicá-los por uma
teoria naturalista.

68
Acredito, inclusive, que foi a descoberta dessa complexidade e o fracasso na identificação dos genes
responsáveis por cada tipo de doença ou característica humana (fracasso gerado pela expectativa de uma
relação mecânica entre o DNA e as funções vitais) que fez o Projeto Genoma Humano perder o encanto e não
ser mais tão atrativo para indústria farmacêutica que o ajudava a financiar. Os leitores devem ter reparado a
diferença abismal entre as promessas do Projeto Genoma, exaustivamente expostas pela mídia, e o que foi
realmente apresentado publicamente como resultado.
113

Sandín enfrenta o desafio ao propor uma alternativa de interpretação completamente


heterodoxa e, como é de se esperar, acaba enfrentando a resistência de seus pares em
aceitar suas proposições. Nem todos estão dispostos a ver seus dogmas abalados. Muitos
sequer se colocam à disposição para o questionamento.
Uma das surpresas do genoma humano é a constatação de que grande parte de nossos
genes é de origem bacteriana (o que corrobora a reflexão de Margulis sobre a integração de
bactérias). Conjuntos inteiros de genes bacterianos se fundiram e deixaram suas seqüências
(com pequenas modificações) no DNA humano (e de outros animais e plantas). A outra
surpresa é que uma outra parte de nosso genoma possui origem viral.
Diversas seqüências com funções importantíssimas no desenvolvimento humano são
derivadas de vírus. Segundo dados recentes citados por Sandín,69 no genoma do ser
humano a parte codificadora de proteínas corresponde apenas a cerca de 1,5% da totalidade
do DNA. Dessa parte, a fração que não é derivada de genes bacterianos é constituída de
vírus endógenos (vírus que se inserem no DNA e permanecem nele – representam mais de
10% dos genes), elementos móveis (partes que se destacam da molécula de DNA e se
inserem em outro local da mesma molécula – representam cerca de 45%) e seqüências
repetidas. Sandín atesta que os elementos móveis e as seqüências repetidas também
possuem origem viral. Ou seja, a porção codificadora do genoma humano (e de outros
seres vivos) seria formada por uma parte de seqüências de DNA de bactérias e outra parte
de vírus.
Além disso, a parcela do genoma que não codifica proteínas, que representa 98,5%
do total, demonstrou ter incontáveis funções e não pode mais ser interpretada como DNA
“lixo” ou “egoísta”, como ainda é designada em alguns livros de biologia. Isolados do
“contexto” do DNA (com seqüências codificadoras e não-codificadoras), os genes não
cumprem a mesma função que quando estão inseridos na totalidade. Isso significa que o
que foi interpretado como DNA “lixo” ou “egoísta” é, na verdade, parte integrante e
atuante da totalidade e que cada gene em particular só tem função caso inserido nessa
totalidade auto-reguladora. O genoma é um caso de totalidade na qual a função específica
de cada parte isolada não informa sobre o funcionamento do todo. É um sistema complexo
cujas partes só podem ser entendidas em função do todo.70

69
Há uma ampla referência bibliográfica acompanhando principalmente um de seus últimos artigos (Sandín,
2005) que remete às mais recentes descobertas do estudo do genoma humano. Os leitores interessados na
precisão e origem dos dados citados podem recorrer a essas referências.
70
Uma tentativa de redefinição do próprio conceito de gene pode ser encontrada, em publicação
especializada, em Gerstein, et. al. (2007).
114

As pesquisas informam que essa importante parcela de 98,5% do DNA,

responsável pelo controle da expressão dos genes codificadores de proteínas e da


regulação em geral, ou seja, que exerce função fundamental na evolução (...), está
constituída por sequências altamente repetidas como as SINE (short interpersed
elements) entre elas, as ALU (elementos repetidos específicos de primatas), as LINE
(long interpersed elements), íntrons e elementos ultraconservados, assim como um
notável número de vírus endógenos (Sandín 2005).

Isso quer dizer que a parte não-codificadora, mas com função essencial, também está
formada por vírus ou seqüências derivadas de vírus. Sandín contesta a interpretação de que
essa conformação do genoma possa ter sido resultado de mutações aleatórias e seleção
natural. Também recusa a anedótica explicação de Dawkins que atribui aos genes um
comportamento “moral”, o egoísmo, que justificaria a presença da parte não-codificadora
no genoma.
Segundo Dawkins, genes sem função, mas “interesseiros” e com a idéia fixa de se
replicar a todo custo, “pegaram carona” com os genes realmente funcionais que
conseguiam se multiplicar pelas suas vantagens na luta pela sobrevivência. Esses genes
egoístas e oportunistas garantiam sua replicação grudando-se nos genes funcionais – o
resultado da ação desses aproveitadores é um DNA com uma parte funcional e outra não.71
Para Sandín, a hipótese mais razoável seria a de que os vírus se inseriram (por sua
capacidade de “contaminação”) em genomas mais simples, acrescentaram informação
genética, provocaram duplicações e rearranjos de genes e, conseqüentemente, modificaram
a estrutura do organismo. Ou seja, um determinado conjunto de genes, responsável por
certos organismos com uma configuração específica, foi modificado por inserção de novas
seqüências provindas de vírus que conseguiram inserir-se nas células germinais
(responsáveis pela reprodução e hereditariedade) ou pela ativação de vírus endógenos (já
inseridos no DNA) a partir de pressões do meio, gerando um organismo novo, diferente do
anterior.

A diferença fundamental entre ambas explicações é que a primeira [decorrente da


concepção do DNA egoísta] baseia-se em uma “hipótese” que atribui à molécula de
DNA umas capacidades onipotentes e uma condição “moralmente depreciável”, já
desqualificadas pelos dados reais, ao passo que a segunda não parte de preconceitos e

71
A terminologia de Dawkins é usada em artigos especializados e livros de biologia. Ou seja, não se trata
simplesmente de uma metáfora divertida visando o melhor entendimento do público leigo. É realmente a
explicação que muitos cientistas aceitam.
115

sim de um fato comprovado: a capacidade dos vírus para integrar-se nos genomas
(Sandín, 2005).

Uma nova teoria da evolução


Portanto, o mecanismo fundamental da evolução não seria, para Sandín, a mutação
aleatória e a seleção natural, mas a integração de vírus em genomas já existentes. Os vírus
são constituídos basicamente de ácido nucléico (DNA ou RNA) envolvido em uma camada
de proteína (chamada capsídio). A inserção de vírus no genoma de um ser vivo acrescenta
mais um pedaço de DNA, com novas seqüências de nucleotídeos. Isso ocasiona um novo
arranjo genômico com muitas conseqüências possíveis. A regressão à origem do processo
nos leva às bactérias, primeira forma de vida no planeta e a base a partir da qual os vírus
foram se integrando.
Conforme referências de Sandín, as pesquisas de Radhey Gupta e William Ford
Doolittle revelam que, nos eucariontes, o conjunto de genes responsáveis pela transmissão
de informações genéticas e pelo metabolismo tem sua origem nos organismos procariontes:
arqueobactérias e eubactérias. Estes dados foram obtidos através do seqüenciamento
genético e comparação de eucariontes e procariontes.
Sandín observa que essas pesquisas mostram duas coisas relacionadas e com impacto
muito grande para uma teoria da evolução. A primeira é a extremada conservação das
funções celulares básicas: os genes que atuam nos seres vivos há bilhões de anos
mantiveram suas funções inalteradas durante todos esses anos e ainda guardam as
semelhanças com as bactérias de onde se originaram. Isso revela a grande resistência às
mutações ao acaso, dada a existência de mecanismos de correção de erros de cópia que
evitou que mutações viessem a gerar seqüências com funções diferentes.
A segunda coisa é que as funções celulares básicas dos organismos multicelulares,
responsáveis pela existência da vida como a conhecemos, não foram resultantes de
mutações aleatórias, mas herdadas das bactérias, pela incorporação de conjuntos
completos de genes. Doolittle afirma que as outras funções celulares não têm origem
conhecida. Para ele, deve ter existido um outro domínio de organismos capazes de
transmitir seus genes horizontalmente (como fazem as bactérias, isto é, através de trocas de
material genético e não por reprodução sexuada) e que transmitiu ao núcleo dos
eucariontes os genes responsáveis por essas funções. Para Doolittle, esse domínio estaria
extinto. Sandín propõe que, na verdade, não se trata de um outro domínio de seres vivos,
116

mas que os responsáveis pela inserção dos genes que respondem pelas outras funções
celulares foram os vírus: “Atualmente, sabemos que existe na natureza algo que não é
exatamente um quarto domínio de seres vivos, que não está extinto, mas que tem a
capacidade de ‘transferência horizontal de genes’: os vírus” (Sandín, 2006).

O papel dos vírus na evolução


Sabe-se que os vírus são organismos de definição incerta. Embora sejam constituídos
de material genético envolvido em uma capa protéica, não se pode considerá-los seres
“vivos”. Eles não crescem, nem se alimentam e só podem realizar atividades quando se
inserem em uma célula de um organismo vivo qualquer. Introduzem seu material genético
na célula e fazem cópias de si mesmos. Essas cópias penetram outras células e podem até
produzir um efeito danoso a todo o organismo. Esse é o aspecto patogênico mais
conhecido dos vírus, o que faz com que sempre evoquem a idéia de enfermidades.
No entanto, os vírus também se inserem em locais específicos do genoma de um
hospedeiro e ali ficam, às vezes sem atividade ou produzindo suas próprias proteínas.
Inserção de vírus, portanto, não é sinônimo de doença.
Os retrovírus (um tipo de vírus formado por RNA) entram na célula e, para poder
inserir-se no DNA do hospedeiro, criam uma cópia DNA de si mesmo (através de uma
enzima chamada transcriptase reversa que ele mesmo codifica). Essa cópia se insere no
genoma. Como nesse processo de transcrição não existe o mecanismo de correção de erros
na duplicação (como há na duplicação celular ou na síntese de proteínas), as cópias
inseridas contêm freqüentes mutações em relação ao molde original (o retrovírus).
As seqüências virais inseridas que não exercem atividade podem ser ativadas por
fatores externos de indução de atividade conhecidos através de pesquisas de laboratório:
carência ou excesso de nutrientes, radiações e substâncias químicas estranhas à célula.
Uma vez ativadas, essas sequências se destacam de sua zona de inserção, reconstituem o
capsídio e recuperam sua capacidade de infecção.
Seqüências de origem viral também podem mover-se na molécula de DNA ou inserir
cópias de si mesmas em outras regiões do genoma (algumas são regiões “preferenciais” o
que mostra que não é um processo verdadeiramente aleatório). O resultado dessa
capacidade dos vírus de inserir cópias de si mesmos são as seqüências repetidas
117

encontradas nos genomas, algumas com funções vitais para o organismo como o controle
do desenvolvimento embrionário e funcionamento de órgãos importantes (Sandín, 1997).72
Essas características tornam os vírus responsáveis pela inserção de novas seqüências
com conteúdo informativo no DNA e pela reorganização de genomas já existentes. Se o
material genético trazido pelos vírus fosse apenas apêndices sem importância no genoma
ou se a reorganização provocada pela sua mobilidade, duplicação e inserção não estivesse
implicada em funções vitais, o fenômeno não teria importância a ser considerada no estudo
da evolução. No entanto, a presença massiva de seqüências virais no DNA de animais e
plantas, a função reguladora (dentro de uma totalidade complexa) e as funções específicas
no desenvolvimento embrionário e em características importantes dos organismos fizeram
Sandín atribuir aos vírus não só uma grande importância na evolução da vida, mas um
papel determinante.
O interesse pelo seqüenciamento de genomas nos últimos anos revelou que
seqüências de origem viral estão envolvidas de forma determinante no surgimento da
placenta nos mamíferos; em partes constituintes do cérebro, embrião, pulmão, e outras; na
morfogênese (processo pelo qual a divisão da célula fecundada é direcionada para a
formação de um determinado ser vivo); na codificação de proteínas essenciais de
organismos eucariontes (inclusive do ser humano); no sistema imunológico; etc. (Sandín,
1997; 2005).73

Lamarck tinha razão?


Outro fato constatado por inúmeras experiências e observações é a influência do
meio tanto na adaptação ao entorno quanto na organização estrutural de um ser vivo. Não
se tratam de respostas apenas fenotípicas, como pregam os manuais e livros didáticos de
biologia, mas de transformações no próprio funcionamento da estrutura genética
resultantes de pressões do meio. Aqui há um dado curioso, totalmente negado pelo
neodarwinismo por evocar idéias lamarckistas: o meio afeta o genótipo.
Sandín reflete que as complexas adaptações fisiológicas e anatômicas que se
observam na natureza não foram produto de mutações aleatórias em um só indivíduo, mas
da capacidade de comunicação entre os organismos e o meio. Henri Atlan (2002) menciona
que a ciência tem documentado exemplos de respostas do DNA às condições do meio (sem

72
A importância das sequências repetidas tem sido amplamente documentada. Um exemplo recente de sua
função na diferenciação dos primatas pode ser encontrado em Marques-Bonet, et.al. (2009).
118

mutação em sua estrutura) que são hereditárias. Ou seja, o ambiente produz mudanças no
contexto da célula que, por sua vez, induzem a respostas diferentes do genoma. O resultado
são manifestações fenotípicas bem diferentes a partir de um mesmo genoma, que
dependem das condições do ambiente. Alguns organismos podem ter diferenças tão
visíveis, apenas em função do meio, que chegam a dar a impressão de que pertencem a
espécies diferentes, embora compartilhem uma mesma constituição genética. Essas
mudanças estão amplamente documentadas e recebem o nome de mudanças
“epigenéticas”.
Segundo Atlan, algumas respostas do DNA às condições do ambiente são
suficientemente estáveis para serem transmitidas aos descendentes. Daí sua conclusão de
que o DNA não é um “programa” genético, mas um conjunto de “dados” interpretados pela
totalidade da célula em sua relação com o ambiente através do metabolismo.
Sandín também menciona elementos que indicam a importância dessa interação com
o meio na configuração dos organismos. Há determinadas plantas de uma mesma espécie
que, crescendo em condições diferentes, acabam parecendo pertencer a espécies distintas.
Curioso também é o fato de que pesquisas com os tentilhões (aves estudadas por Darwin
nos Galápagos) revelaram que as diferenças em seus bicos são decorrentes do tipo de
alimentação e de condições ambientais e não de diferenças no genoma (cf. Werner &
Sherry, 1987; Grant, et. al. 2003).
Um exemplo incontestável da ação do meio é o splicing alternativo (cf. capítulo 3,
acima). Estudos comprovam que as diferentes cópias RNA resultantes de um mesmo gene
(com a conseqüente produção de proteínas diferentes a partir de uma mesma seqüência
genética) não são frutos de uma combinação ao acaso de éxons, mas envolvem um
conjunto de ações coordenadas, determinadas pelo ambiente no qual a célula está inserida
(Sandín, 2005). Em outras palavras, o processo de transcrição das informações contidas no
DNA, que resultará na produção de proteínas, depende das condições ambientais e não
pode ser entendido isoladamente.
Tudo isso se afasta da concepção darwinista, segundo a qual o meio apenas trabalha
com o que já está disponível através de mutações ao acaso, mas não produz mutações
como resultado de uma interação.

73
Para quem se interessar por um quadro com referências mais técnicas sobre o papel dos vírus no
funcionamento do genoma, com citações abundantes, ver Sandín, 2005.
119

Evolução é diferente de adaptação


Com base nesses e em inúmeros outros dados documentados pelos meios científicos
reconhecidos, Sandín interpreta que há dois tipos diferentes de fenômenos envolvendo a
mudança e diferenciação dos seres vivos: a adaptação e a evolução. A adaptação é um
ajuste do organismo vivo ao seu entorno, sem mudanças qualitativas para sua estrutura
genética característica. Evolução refere-se a uma mudança qualitativa na própria
organização estrutural e genética desse organismo. Para o autor, a adaptação não conduz à
evolução, como é proposto pelo darwinismo.
As recentes descobertas acerca da interação entre organismo e meio (algumas citadas
nos parágrafos anteriores) dão suporte à proposição de Sandín de que a adaptação é um
fenômeno do tipo lamarckiano. O meio faz com que determinados grupos de seres vivos
assumam certas características. Mas os ajustes ao meio não resultam em mudanças de
organização (evolução), por não gerar mudanças genéticas estruturais, mas respostas
diferentes às pressões do meio.

Quanto aos ajustes a diferentes condições ambientais (um fenômeno diferente das
mudanças de organização), os sistemas de controle e regulação da informação genética
mostraram uma variada gama de mecanismos de resposta ao ambiente, tanto
epigenéticos: metilação, imprinting, RNA de interferência, silenciamento transgênico
(Mattick y Gagen, 2001; Elgin y Grewal, 2003; True et al., 2004); como genéticos:
splicing alternativo, retrogenes e retropseudogenes (Vitali, et al., 2003), transposições
e inserções de elementos móveis (Schramke y Allshire, 2003). Inclusive o
desenvolvimento embrionário responde, comprovadamente, às condições ambientais
(Rutherford y Lindquist, 1998; Hall, 2003) (Sandín, 2005).74

A distinção entre adaptação e evolução questiona a tese darwinista de que as


diferenças nos organismos de uma mesma espécie são frutos de diferenças nas sequências
gênicas, que dotariam alguns indivíduos de vantagens na luta pela sobrevivência e as
manteriam pela seleção natural – fenômeno que se acumularia na população até o
surgimento de uma nova espécie.
Sandín (assim como Maturana & Varela, 2001) nega o conceito de que um
organismo pode ser classificado como “mais apto” que outro e de que essa suposta maior
aptidão seja a razão da evolução.

Com isso, chegamos ao conceito axial da doutrina prevalecente: o termo “mais apto”
(ou em sua versão “populacional”, a “eficácia biológica”). Os conhecimentos atuais

74
Mantive as referências entre parêntesis do artigo original para reafirmar o suporte que as afirmações de
Sandín têm em pesquisas reais.
120

sobre o controle da informação genética (Herbert, 2004) nos informam de um modo


incontestável que esse é um conceito espúrio. Não existem indivíduos geneticamente
“mais aptos” que outros ou que tenham uma “vantagem genética” sobre seus
congêneres. E não é algo que seja suscetível a distintas interpretações: o pool genético
de uma espécie é essencialmente o mesmo (Mattick, 2004) e o significado da
variabilidade populacional é adaptativo (no sentido de resposta ao ambiente), mas não
evolutivo. (...) As diferenças em vigor, saúde, capacidade reprodutiva, etc. dos
membros de uma espécie vêm determinada fundamentalmente pelas condições
ambientais em que se desenvolvem (Hall, 2003). Os indivíduos normais, saudáveis,
não são geneticamente mais ou menos aptos e as mutações (quando não são inócuas)
não concedem vantagens hereditárias, mas patologias hereditárias, porque são
desorganizações produzidas por algum fator ambiental suficientemente grave para
superar os eficazes mecanismos de reparação dos genomas (Kafri et al., 2005; Hirano,
2005) (Sandín, 2005).

Com relação à evolução, Sandín possui uma hipótese totalmente heterodoxa. Como
já disse acima, o conceito de evolução refere-se a mudanças de organização estrutural de
um organismo. Esse tipo de mudança, segundo o autor, não pode ser gradual, por ser um
fenômeno extremamente coordenado que afeta simultaneamente todo o organismo. A
organização estrutural de um ser vivo é determinada em etapas muito precoces do
desenvolvimento embrionário e está pouco sujeita a mutações aleatórias. Sandín defende a
idéia de mudanças bruscas de organização em determinados momentos da história da vida
e advoga o termo “transformação” para esses episódios (Sandín, 2005). Portanto, não há
uma evolução gradual a partir de pequenas modificações nos seres vivos, mas mudanças
bruscas e episódicas na estrutura dos organismos, que caracterizam o surgimento de novas
espécies.
Se, por um lado, tal idéia se distancia enormemente do paradigma darwinista, por
outro, aproxima-se dos registros fósseis disponíveis (umas das principais bases empíricas
de qualquer teoria da evolução). Como vimos no capítulo 2, a paleontologia não fornece
uma base fática para o gradualismo darwinista, o que levou Eldredge e Gould a elaborarem
um modelo específico (o equilíbrio pontuado) para adequar a teoria aos fatos. Sandín, por
sua vez, utiliza os dados da paleontologia para confirmar sua hipótese de que a evolução
ocorreu tal qual o registro fóssil nos revela: mudanças bruscas, em episódios específicos e
sem fases intermediárias (Sandín, 2006). Mas, com um detalhe importante: as mudanças na
organização de seres vivos que caracterizaram a evolução das espécies foram
acompanhadas por transformações bruscas nas condições ambientais. A pressão do meio
provoca reações diversas nos organismos, que podem gerar mudanças de caráter evolutivo.
Mas qual seria, para Sandín, o mecanismo das “transformações”?
121

Sustentado em inúmeras pesquisas (todas devidamente referenciadas em seus


artigos), Sandín acredita que os vírus são a resposta para o enigma da evolução. A
quantidade de vírus endógenos, elementos móveis e seqüências repetidas (de comprovada
origem viral) identificados no genoma de animais e plantas (inclusive do ser humano) leva
Sandín a concluir pelo seu papel fundamental na transformação das espécies.

[Uma] nova espécie surgiria repentinamente, mediante uma mudança substancial (tal
como se observa no registro fóssil) e comum a um considerável número de indivíduos
“infectados”, o que tornaria possível sua interfecundidade. A Seleção Natural já não
seria a “força impulsora” da evolução. Simplesmente seria o mecanismo de eliminação
dos desenhos defeituosos durante os longuíssimos períodos de estase evolutiva,
durante a qual, os indivíduos aptos (não os “mais aptos”) se reproduziriam sem
maiores problemas e com variações em aspectos não essenciais (em cuja origem, por
outra parte, não se pode descartar os “erros de cópia” dos retrovírus) (Sandín, 1997).

O que a natureza seleciona?


Assim, não haveria nenhum processo de seleção natural, pois o que surge desses
episódios de transformação, nas palavras de Sandín, “ou é viável ou não é nada”. Mais uma
vez, a seleção natural é apenas o nome dado a um processo trivial e lógico: se a vida
depende da sintonia com o meio no qual está inserida, só se manterá mediante o
acoplamento da estrutura do organismo ao ambiente no qual vive. Já comentei acima que o
mesmo acontece com o conceito de seleção natural em Margulis. Além disso, a
competição, conceito caro ao darwinismo, deixa de ser um componente da evolução e o
mero acaso também perde seu status de misteriosa e onipotente razão da complexidade da
vida.

Nesse contexto, a Seleção Natural (...) ficaria relegada a um papel não só secundário
no processo evolutivo, senão que ocasional e vazio de conteúdo como mecanismo de
evolução. A competição não seria a força impulsora da evolução, já que novas
espécies surgiriam e amadureceriam em conjunto. O acaso, quer seja biológico ou
estatístico, ficaria ainda mais interditado pelo determinismo, o conteúdo teleológico
que implica a existência de uns “componentes da vida”, qualquer que seja sua origem
(...) (Sandín, 1997).

A rejeição do acaso não significa a admissão de forças sobrenaturais que agem na


condução do processo, mas a afirmação da existência de um mecanismo natural capaz de
ser compreendido e teorizado cientificamente.
122

Síntese da proposta evolutiva de Sandín


Em síntese, a idéia de Máximo Sandín acerca da evolução pode ser resumida na
exposição a seguir.75
As bactérias seriam “a semente da vida”. Sua atividade principal foi a de preparar as
condições para a vida (como a conhecemos hoje, com sua diversidade e complexidade). A
formação das células nucleadas (eucariontes), conforme afirma Margulis, foi resultado da
fusão de bactérias. Sandín recusa a hipótese de que o surgimento das bactérias (e mesmo a
formação do núcleo celular por simbiose) tenha sido um acontecimento fortuito ou que
tenha ocorrido uma só vez em um único organismo e que, por apresentar vantagem, foi
mantido pela seleção natural. Para ele, a formação das bactérias (primeira forma de célula)
e das células nucleadas aconteceram como fenômenos coletivos e de forma “rápida”, como
uma resposta da natureza a certas condições ambientais.
Por conceber a vida não como acidente, mas como fenômeno resultante de leis
naturais que permanece submetido a tais leis – tal qual os metais ou os gases –, Sandín
defende seu surgimento e evolução como resposta ubiqüitária da natureza a condições
ambientais específicas e não como resultado de sucessos individuais e locais, fruto de
sucessivos passos que se acumularam lentamente e se espalharam por todo o planeta.
Em defesa de sua concepção, o autor evoca inúmeros estudos sobre as condições
fortemente improváveis para o surgimento gradual de alguma célula na Terra pré-biótica,
além de referir-se à “rapidez” do aparecimento da vida em comparação com a idade da
Terra.76 Alguns cientistas, como Francis Crick (um dos responsáveis pela descoberta da
estrutura do DNA), chegaram a afirmar que o aparecimento de uma célula estável em
condições tão adversas como as da Terra há 4 bilhões de anos e em um espaço
relativamente curto de tempo é um fenômeno praticamente impossível de haver ocorrido
por acaso. Por isso, sugeriram que a semente da vida deve ter vindo do espaço, seja através
da queda de um meteoro ou pela ação de possíveis civilizações extraterrestres.
Hipóteses desse tipo apenas afastam o problema e lançam-no para além do que se
pode investigar nos limites da ciência. Por conseguinte, não são alternativas satisfatórias
para explicar o que realmente se quer entender. Sandín rejeita essa solução. A única forma
de se resolver o dilema da origem da vida sem cair nesse tipo de tergiversação é admitir

75
A síntese que segue reproduz quase que textualmente o resumo apresentado a mim pelo autor, em
comunicação por correio eletrônico.
76
Nosso planeta tem cerca de 4,5 bilhões de anos e a vida surgiu entre 3,8 e 4 bilhões e anos.
123

que o surgimento das primeiras células na Terra (as bactérias) nem foi obra do acaso, nem
de extraterrestres, senão que resultado de leis naturais ainda não totalmente conhecidas.77
As bactérias contribuíram com os processo celulares básicos e que se mantém até a
atualidade. As pesquisas de Gupta e Doolittle, citadas acima, revelam que os genes
responsáveis pelos processos básicos da vida (transmissão de informações genéticas e
metabolismo) são de origem bacteriana. Os vírus teriam se incorporado ao genoma das
bactérias, trazendo os programas embrionários e os processos de regulação genética dos
eucariontes, visto que essas funções são controladas atualmente por genes de origem viral.
O processo teria sido a formação e evolução do genoma como num jogo de montar, com
módulos pré-prontos, ou seja, conjuntos completo de genes que se combinaram e
provocaram modificações e recombinações.
No genoma dos seres vivos encontram-se muitos vírus endógenos com seqüências
completas e muitos outros elementos de origem viral, com pequenas modificações. Sandín
afirma que todos os genes que não são de origem bacteriana são de origem viral. Mais de
95% do genoma humano é formado por vírus endógenos, elementos móveis e seqüências
repetidas. Estes dois últimos (elementos móveis e seqüências repetidas) são derivados de
vírus que perderam (alguns não) as seqüências de bases que codificam o capsídio (a
camada que os envolve).
Os transposons (sequências de nucleotídeos que mudam de posição no genoma) são
78
derivados de vírus DNA e os retrotransposons (responsáveis pela formação das
seqüências repetidas) são derivados de retrovírus (vírus RNA).79 Os genes que controlam o
desenvolvimento embrionário são seqüências repetidas, resultado da ação de
retrotransposons e, portanto, são de origem viral.
Acreditava-se que a maior parte do genoma era inativa, pelo fato de não codificar
proteínas. Hoje se sabe que essa parte não-codificadora tem um papel essencial para as
funções celulares (além de ter função reguladora no genoma ela compõe uma totalidade
interagente; ver GERSTEIN et. al., 2007).
Conforme explica Sandín, todos os elementos de origem viral que compõem essa
parte do DNA também podem ser ativados mediante agressões ambientais, radiação,
deficiência ou excesso de nutrientes e até estresse emocional (como o vírus do herpes). A
ativação de vírus por fatores externos é um fenômeno constatado por experiências (ver

77
Margulis & Sagan (2002a), Schneider & Kay (1997) e De Duve (1997) afirmam exatamente o mesmo.
78
Para especialistas que querem conhecer o papel dos transposons em funções vitais importantes nos
mamíferos ver Van de Lagemaat, et. al. (2003).
124

Sandín, 1997). Ou seja, fatores externos podem ativar sequências virais, ocasionando um
rearranjo genômico por acréscimo, transposições ou duplicações de sequências inteiras de
bases e, consequentemente, novos organismos.
Curiosamente, há registros de distúrbios ambientais acompanhando a aparição de
novas espécies na história da vida. As diferenças genéticas de grandes grupos de seres
vivos que surgiram em episódios de mudanças ambientais drásticas são caracterizadas por
duplicação de genes (em maior ou menor escala) e reorganização genômica, ou seja,
resultado típico da ação dos transposons e retrotransposons – características que se
adaptam bem à hipótese de Sandín, mas de difícil encaixe nas mutações lentas e ao acaso
da teoria darwinista.
As bactérias e os vírus, portanto, deixam de ser concebidos como “microorganismos
patógenos que buscam reproduzir-se a todo custo” e que “competem entre si e com os
demais seres vivos”, para se tornarem os componentes fundamentais da vida. Para Sandín,
a ação patogênica freqüentemente ressaltada das bactérias e vírus seria uma resposta a
agressões no ecossistema que alteram seu equilíbrio natural.
Os vírus têm capacidades dinâmicas peculiares. As principais são as de: “infectar”
organismos – o que permite a transmissão horizontal de material genético –; inserir-se em
genomas, permanecer inativos e posteriormente recuperar a atividade; fazer cópias de si
mesmos e inseri-las em certos locais do DNA; e mover-se de posição no genoma. Tais
capacidades proporcionam a reorganização do genoma, com o conseqüente surgimento de
novos organismos através da transformação dos já existentes. Na idéia de Sandín, isso
explicaria a evolução (mudanças de organização) a partir de uma nova concepção,
radicalmente diferente da concepção darwinista. E, o mais importante, completamente
sustentada em dados reais e capaz de explicar inúmeros fenômenos que não são explicados
pela simplicidade das mutações aleatórias e seleção natural.
Adequada ou não para direcionar a pesquisa biológica (não me cabe definir tal
questão, nem defender teorias no campo da biologia), o certo é que a teoria proposta por
Sandín tem todas as características de um programa de pesquisa científico que pode se
candidatar a paradigma para a biologia evolutiva. Seu problema é ser por demais
heterodoxa e, por isso, pode enfrentar os “obstáculos epistemológicos” de que nos fala

79
Sobre os retrotransposons e seu papel no genoma humano ver Bannert & Kurth (2004).
125

Gastón Bachelard (1996).80 Para aceitá-la é preciso reconhecer a completa incapacidade do


darwinismo para explicar o fenômeno da vida e substituir sua visão de mundo por outra,
baseada tanto nos dados como em outra concepção geral sobre a natureza.
Sabemos que isso não é algo fácil ou que aconteça de uma hora para outra. Mas, uma
vez que o darwinismo aparenta ter sérias dificuldades para explicar a vida, não seria hora
de se ensaiar mudanças nas concepções de base para que a ciência avance? 81

4.4. PEQUENO BALANÇO DO DEBATE

Thomas Kuhn estava correto em sua afirmação de que a adesão a um paradigma não
tem motivação racional, mas é um processo de “conversão”. As idéias de Sandín sofrem a
resistência que as impedem de ser colocadas em debate.
A despeito do que afirmou Lakatos (1979), a escolha de um programa de pesquisa
não é uma escolha consciente a partir da constatação da degenerescência de um programa
anterior e da proficuidade de um novo. A adesão ao darwinismo, mesmo diante de tantas
anomalias, envolve questões doutrinárias e de crenças, muito mais do que certezas
científicas e racionais. Por isso, veremos ainda por muito tempo as idéias heterodoxas
serem ignoradas, rejeitadas sem análise ou lançadas no fogo da nova Inquisição (cujos
protagonistas não são mais os agentes da Igreja, mas das próprias universidades e
instituições científicas).
É mais provável que testemunhemos, durante ainda algum tempo, uma abundante
produção literária e científica que busque “salvar” o darwinismo, ao invés de vermos as
propostas discordantes serem colocadas em discussão e estudo – por melhores que se
apresentem e mesmo que resolvam uma quantidade maior de problemas empíricos. Novas
propostas só se tornam paradigmas após muito tempo, durante o qual a formação dos
novos cientistas ocupa um papel fundamental.
Uma coisa, porém, é certa: as reflexões de Sandín, Margulis e Behe (e outras
mencionadas de passagem neste livro), dão o necessário apoio para que se admita, pelo
menos, a pertinência da pergunta da introdução deste livro. De todas as reflexões decorre

80
Em poucas palavras, obstáculo epistemológico é um conjunto de fatores de diversas ordens, entre os quais
a linguagem e teorias prévias, que dificultam a aproximação ao objeto em função da formação de pré-
conceitos que configuram a subjetividade. Cf. Bachelard (1996).
81
O avanço a que me refiro é em termos de compreensão do mundo e não de manipulação do mundo. A
ciência é uma forma de conhecimento e não pode ser confundida com a tecnologia. Avanços tecnológicos e
manipulação genética não significam avanços na ciência como forma de compreensão do mundo.
126

uma forte suspeita, quase uma certeza, de que o século XXI irá presenciar o lento declínio
do darwinismo como paradigma científico.
127

CONCLUSÃO

Ciência dialógica
Conforme afirmei na introdução, a ciência é uma construção permanente de
conhecimentos acerca da natureza, resultante do diálogo dinâmico entre a consciência
humana e o mundo natural. As teorias não são descobertas – pois não estão prontas, à
nossa espera, em algum recanto ainda não explorado da natureza – mas, sim, criadas pelo
sujeito para dar inteligibilidade aos dados da experiência. Os fatos é que são descobertos,
mas não trazem consigo as teorias que os explicam.
A função da elaboração teórica é englobar os fatos conhecidos em uma síntese
racional e dar-lhes explicações coerentes, utilizando, para tanto, os conceitos possíveis em
cada época – conceitos já existentes ou novos, mas somente os que são possíveis em cada
estágio do conhecimento da humanidade. Os conceitos da teoria de Einstein não seriam
apenas estranhos e incompreendidos na Idade Média: seriam simplesmente impossíveis.
Os novos fatos que são descobertos pelo trabalho de pesquisa guiada por uma teoria
podem ou não se enquadrar no referencial teórico utilizado para se entendê-los. É natural
que a acumulação de novos dados desafie a teoria. Em um diálogo, os dois pólos
envolvidos são ativos na comunicação. Se a ciência é um diálogo do ser humano com a
natureza, não podemos reivindicar o monopólio da fala. Ou seja, podemos até querer que
os fatos se enquadrem nas teorias para que possamos entendê-los mais facilmente, mas tal
desejo deve ter um limite: a natureza também precisa “falar” ser “ouvida”.
Para que o diálogo se torne inteligível e intercomunicável, estabelecemos certos
“protocolos” a partir dos quais as informações do mundo real (a “fala” da natureza) são
interpretadas e entendidas por uma coletividade de cientistas e pela sociedade. Criamos,
em outras palavras, sistemas (compostos de teorias, leis, instrumentos de medida e regras
experimentais, etc.) a partir dos quais a “linguagem” da natureza é traduzida.
Na ausência desses sistemas, a “fala” da natureza é incompreensível. As chapas
radiográficas só se comunicam com o médico (e não com o paciente); as trajetórias das
partículas elementares em aceleradores de partículas só falam ao físico; os sinais de rádio
provenientes do espaço só dialogam com o astrofísico; a mudança de coloração resultante
da mistura de elementos químicos só se comunica com o químico; as seqüências do
genoma só falam aos biólogos e geneticistas, etc. Ou àqueles que, embora não sejam das
128

áreas mencionadas, tiveram o preparo adequado para entender os dados experimentais.


Sem a formação teórica os dados são ininteligíveis. Mais ainda, a comunicação do cientista
com o mundo natural não é “face-a-face”: sem o auxílio de computadores, laboratórios,
cálculos, equações e teorias adequados, nem os especialistas conseguem escutar a “fala” da
natureza.
Por isso afirmei que as teorias científicas não são “descobertas”, mas sínteses
racionais que orientam e, ao mesmo tempo, se alimentam do trabalho experimental. A
pesquisa empírica fornece tanto a base factual quanto o contexto problemático que põem a
ciência em movimento. A ciência é, por isso, a atividade de interpretação conceitual do
mundo natural a partir de sínteses teóricas.

Ciência dinâmica e dialética


É por ser uma relação dinâmica e dialética com a natureza (e não um registro
cumulativo e catalográfico de dados experimentais) que a ciência trabalha com base em
paradigmas, conceito introduzido na epistemologia por Thomas Kuhn.
A relação é dinâmica por estar sempre em movimento – as teorias científicas não são
estáticas – e poder ser alterada pelo conjunto de fatores que envolvem a produção
científica: história, interesse social, tecnologia, ampliação da base fática e “insights”
emblemáticos do gênio humano (sobre os quais discorrei abaixo).
É dialética por envolver, em uma relação de determinação reflexiva, dois pólos que,
sob o aspecto ontológico (ou seja, da realidade em si de cada um deles), não se reduzem
um ao outro: a subjetividade humana e o comportamento em si da natureza. Esses dois
pólos se unem em estreita relação no plano gnosiológico (ou seja, do conhecimento) e, ao
mesmo tempo, mantêm uma autonomia relativa. Não sustento a concepção de que a
subjetividade humana é uma “mera” expressão da natureza, como se fosse possível reduzir
toda atividade da mente a um conjunto de regras naturais. Portanto, a ciência é também
uma relação dialética entre dois pólos irredutíveis no plano ontológico, mas que se
encontram em unidade indelével no plano gnosiológico. Nessa perspectiva não há
dicotomia, mas tampouco identificação total entre a subjetividade e a natureza.
Por ser dialética, a ciência necessita tanto das teorias quanto das experiências. Dados
sem teoria não formam ciência. O Renascimento, por exemplo, foi profícuo na produção de
dados, mas não criou ciência por não ter criado sínteses teóricas de grande alcance. Só
podemos falar em nova ciência a partir do século XVII, a partir das elaborações teóricas de
129

Galileu e outros. Por outro lado, as teorias deixam de ser científicas quando perdem o
apoio ou o controle dos dados, seja por carência de base factual, por flagrante contradição
com os dados disponíveis ou por incapacidade de explicar os fatos conhecidos.
Os cinco fatores supracitados que põem a ciência em movimento e a tornam
dinâmica (história, interesse social, tecnologia, ampliação da base fática e “insights”
emblemáticos do gênio humano), mereceriam uma análise à parte. Mas podemos
mencioná-los em uma breve reflexão.
A história se caracteriza pela predominância de determinados processos
civilizatórios em distintas épocas. Os grandes períodos históricos são caracterizados pela
hegemonia de uma forma de produção, de padrões mais ou menos fixos de sociabilidade,
de uma ética e, no nível mais fundamental, de uma ontologia (idéia sobre o ser da
realidade) a partir da qual se conformam as concepções gerais acerca da natureza, do
universo e do ser humano. Em cada época da história, a relação do ser humano com o
mundo é fundamentada nessas “matrizes interpretativas” (ou “racionalidade”). Suas
realizações, como literatura, arte, religião, filosofia, ciência, cultura, etc. refletem-nas de
alguma maneira.
Contudo, a relação entre as matrizes interpretativas predominantes e as realizações
espirituais do ser humano não é de determinação mecânica. Ainda que haja um fundamento
comum, é possível identificar uma grande variabilidade na forma concreta de expressão da
racionalidade que distingue cada período histórico e mesmo divergências profundas que
coexistem com o padrão hegemônico. Em outras palavras, o fundamento se manifesta de
diferentes maneiras, ao mesmo tempo em que existem formas de pensamento e ação
minoritárias não-hegemônicas, ou até contra-hegemônicas. Daí a pluralidade das
expressões espirituais em datas e locais distintos dentro de um mesmo período histórico em
que predominam matrizes interpretativas comuns.
Ou seja, a existência das matrizes predominantes não uniformiza a arte, a filosofia, a
ciência, etc. No entanto, todas essas expressões compartilham um fundamento comum. As
divergências existentes (manifestações não-hegemônicas ou contra-hegemônicas) não
possuem extensão e força necessárias para impedir a identificação da forma geral que
caracteriza a presença subjetiva do ser humano no mundo nos diversos períodos históricos.
É por esses motivos que a historiografia pode usar o recurso da periodização que,
embora passível de discussões em suas fronteiras, torna possível a identificação de
matrizes que caracterizaram o Ocidente na Antiguidade Clássica, nos impérios Helenístico
e Romano, na Idade Média e na Modernidade. Além disso, é possível também identificar a
130

característica de transição de racionalidade em certos períodos da história, como o


intervalo entre a queda do Império Romano e a alta Idade Média e o Renascimento.
Portanto, as matrizes que orientam nosso modo de ser e pensar constituem uma
racionalidade geral que influencia a interpretação do mundo e concede determinada
configuração ao conhecimento em todas as suas expressões: filosófica, científica, artística,
religiosa, do senso comum, etc.
A ciência também traz a marca da racionalidade hegemônica e constitui-se sua
manifestação no âmbito da investigação da natureza. As teorias científicas carregam
consigo a historicidade essencial do ser humano. A atividade científica será sempre uma
realização histórica, justamente por ser uma atividade humana.82 Como se trata de um
diálogo, o ser humano (situado historicamente) também “fala” com a natureza. Suas
palavras (possíveis dentro de determinada época) dão sentido ao mundo natural. Porém, tal
sentido é tão cambiante quanto o são as “formas de se falar” que se sucedem na história.
O outro fator mencionado, o interesse social, direciona a aplicação de verbas
(públicas e, principalmente, privadas) e o interesse da comunidade científica por certas
áreas de pesquisa e também contribui para a aceitação de paradigmas (cf. Kuhn, 1997). 83
Podemos citar como exemplos as relações da física newtoniana com a Revolução
Industrial, da física nuclear com as guerras mundiais e a genética com as indústrias
farmacêutica, agroquímica e de criação de animais. A ciência não está acima das relações
de poder na sociedade, senão que, ao contrário, sofre os efeitos dessa relação.
Comenta-se, aqui e ali, o patrulhamento da Rússia stalinista sobre a produção
científica que não legitimava ou que negava os princípios da filosofia oficial, o
materialismo dialético (ou melhor, a forma como o interpretavam). Seria ingenuidade
acreditar que o mesmo patrulhamento não ocorre, de diferentes formas, com relação aos
princípios do liberalismo e do mercado nas sociedades capitalistas. Basta ver o que se
investe em “ciência aplicada” (que serve às grandes corporações que dominam o mercado)
e como se divulga de forma massiva, quase doutrinária, qualquer proposição científica que
vise transformar a competição em lei natural e apresentar as diferenças sociais e o

82
Sobre as concepções gerais que orientaram o nascimento da ciência moderna e a vinculação da ciência com
concepções gerais de mundo (metafísicas e teológicas) que caracterizaram períodos históricos, ver Koyré,
1991; Rossi, 1992; Thuillier, 1994; Burtt, 1991 e Harré, 1988.
83
Interesse social aqui não se refere aos interesses da maioria, mas aos que advêm das relações de poder e
hegemonia em uma sociedade.
131

comportamento exploratório do ser humano como resultados de um determinismo


biológico.84
Stephen Jay Gould afirmou, em um comentário à sociobiologia:

O prolongado e intenso debate em torno do determinismo biológico surgiu em função


de sua mensagem política e social. (...) O determinismo biológico sempre foi usado
para defender situações sociais já existentes, qualificando-as de biologicamente
inevitáveis. Por que mais um conjunto de opiniões tão desprovida de evidências
diretas teria obtido uma cobertura tão consistente e favorável dos meios de
comunicação “estabelecidos”, através dos séculos? (Gould, 1999. p. 256).

No entanto, a quantidade de artigos científicos sobre o comportamento social dos


humanos em publicações especializadas de renome mostra que esse não é um fenômeno
exclusivo “dos meios de comunicação ‘estabelecidos’”, mas um fator que influencia a
própria produção científica. No mesmo livro, Gould menciona um artigo de sociobiólogos
sobre a “mendicância”, publicado na conceituada revista Science. Artigos científicos que
tentam entender o altruísmo humano dentro da “lógica competitiva da evolução” e usam
argumentos científicos para submeter a cooperação à essa lógica podem ser encontrados
em diversas publicações importantes (ver, por exemplo, Danielson 2002; Kurzban &
Houser, 2005;).85
A tecnologia é um fator que aumenta o alcance da capacidade de “enxergar”
fenômenos que antes estavam ocultos aos sentidos humanos. Na maioria das vezes, os
avanços tecnológicos aplicados à ciência abrem um novo campo fenomênico que força as
interpretações correntes a uma adequação, o que produz movimento nas teorias científicas
e pode até mesmo gerar crises de paradigmas. Instrumentos como os radiotelescópios e os
telescópios de raios-X, o espectrômetro, o microscópio eletrônico, a cristalografia de raios-
X, os aceleradores de partículas, etc., ampliaram significativamente o campo fenomênico
com que a ciência trabalha e revelaram partes da realidade que se ocultavam aos sentidos e
que nem sempre eram previstas pelas teorias em voga.

84
A excessiva exposição de Darwin na mídia por ocasião do bicentenário de seu nascimento é algo
absolutamente inédito com relação a qualquer personagem da ciência. O centenário do nascimento de
Einstein, em 1979, não teve sequer uma pequena fração de toda essa publicidade, nem os 100 anos da sua
teoria da relatividade, em 2005.
85
Kurzban & Houser (2005), em artigo publicado nas Atas da Academia Nacional de Ciências dos EUA,
afirmam que a existência da cooperação em larga escala entre seres humanos não aparentados é “um dos
maiores enigmas da biologia”. Seu artigo tenta, através de experimentos com humanos baseados na teoria dos
jogos e recorrendo a uma matemática complexa, contribuir para a interpretação de um fenômeno “estranho”
aos princípios evolutivos: a cooperação. Resta saber se o comportamento cooperativo “em larga escala entre
não aparentados” é um enigma para a biologia ou para uma determinada concepção de sociedade fundada na
doutrina liberal. Relações sociais humanas são problemas “científicos” ou regras de relacionamento
decorrentes da forma como o ser humano cria suas sociedades?
132

A ampliação da base fática da ciência é resultado tanto do avanço da tecnologia


como do alcance de ferramentas teóricas. A matemática, por exemplo, é capaz de trazer
dimensões espaciais e fenômenos virtuais que antes não pertenciam ao âmbito das ciências
naturais por não serem acessíveis nem aos sentidos, nem à imaginação humana. A função
de onda na mecânica quântica e as inúmeras dimensões espaciais da Teoria das
Supercordas (Greene, 2001) são exemplos desse fator.
Além disso, teorias que pertenciam a uma só área da ciência tiveram que se ampliar
com a contribuição de teorias de outras áreas, em função da inter-relação entre os campos
fenomênicos estudados. Isso ocorreu, por exemplo, com a biologia em relação à química e
à física; com a química em relação à física, etc. As teorias também se modificam quando o
campo de objetos de que trata se amplia e quando se relacionam com teorias de outros
campos de pesquisa.
Os insights emblemáticos do gênio humano referem-se ao papel da inventividade e
criatividade de determinados cientistas que, com suas proposições, não raro insólitas,
contribuíram com idéias notáveis, a ponto de influenciar as teorias e colocar a ciência em
movimento. A história das ciências nos fornece tantos exemplos dessa inventividade que
nos dispensa de mencioná-los.

A teoria da evolução é imutável?


A teoria da evolução de Darwin é uma teoria científica. Em que pese a afirmação de
Popper (citada na seção 4.1 acima) e as críticas de cientistas, o darwinismo foi aceito como
ciência pela comunidade científica e firmou-se como paradigma para a biologia. Como
teoria científica, o evolucionismo darwiniano está sujeito a todos os fatores mencionados
nos parágrafos anteriores, que agem sobre as teorias na ciência, põem-nas em movimento
e, muitas vezes, as derrubam. Não é razoável pensar que alguma teoria esteja imune às
vicissitudes às quais todas as demais se submetem. Portanto, a teoria da evolução não
precisa ser sempre darwinista.
O darwinismo, como qualquer teoria científica, está subordinado ao seu aspecto
histórico, ao interesse social, aos avanços da tecnologia e à ampliação da base fática da
biologia. Novos insights poderão também colocar a biologia em movimento – e não
necessariamente no sentido de reforçar o paradigma hegemônico. A vinculação do
darwinismo à racionalidade predominante na modernidade, claramente de orientação
133

liberal, pode ser confirmada a partir da leitura do próprio Darwin.86 Esse é um aspecto a ser
pensado seriamente para percebermos o caráter histórico e de interesse social da teoria da
evolução hegemônica.
Vimos, através das reflexões de Behe, Margulis e Sandín, os sérios problemas que o
darwinismo tem encontrado no campo científico em função de seus conflitos com o que se
conhece hoje sobre a vida. Esse conhecimento deve-se tanto aos avanços da tecnologia
(que trouxeram novos aportes empíricos à pesquisa), como às novas abordagens teóricas
provenientes de outras ciências que ampliaram a maneira de se interpretar os fatos.

Um obstáculo epistemológico
Por outro lado, vimos também a conotação ideológica e doutrinária que a teoria da
evolução de Darwin assumiu no ataque perpetrado por seus expoentes às críticas de Behe e
na rápida menção que fiz sobre a resistência a, pelo menos, considerar com imparcialidade
a proposição de Sandín (ainda que seja para negá-la com argumentos científicos). Isso
significa que embora a ciência, considerada como uma atividade humana, seja dinâmica e
dialética, não é necessariamente dessa forma que aparece na cabeça dos cientistas.
Bachelard refletiu filosoficamente sobre esse tipo de contradição e cunhou, para explicá-lo,
o conceito de “obstáculo epistemológico” (Bachelard, 1996). Thomas Kuhn também
aborda o problema e afirma que a adesão a um paradigma não tem motivações racionais
(Kuhn 1979a;1979b). Esse tipo de resistência aos novos conhecimentos e o apego às idéias
já conhecidas já estava presente, no século XVII, nas reflexões de Francis Bacon sobre os
ídolos que impedem o avanço do conhecimento (Bacon, 1973).87
O que se pode concluir da reação de certos darwinistas (alguns da “elite” do
darwinismo) a qualquer tipo de crítica ou a elaborações fora de sua ortodoxia é que o
darwinismo está se transformando em um obstáculo epistemológico, pois não consegue
mais explicar o que a realidade nos mostra e impede que outras proposições o façam.
Bachelard afirma que o problema das teorias que se cristalizam na história e se fecham às
críticas é justamente esse: se, de início, contribuem com o entendimento do mundo real, o

86
Dizem alguns biólogos que a maioria esmagadora de seus colegas de profissão jamais leram sequer uma
obra de Darwin, mas somente as publicações posteriores da biologia e os livros técnicos utilizados na sua
formação acadêmica. Esse fato, se verdadeiro, dificulta a percepção da historicidade do darwinismo.
87
A peculiaridade de Bacon, que hoje, afastados de seu tempo, podemos julgar ingênua, é que ele acreditava
ser possível livrar-se totalmente dos ídolos. A ciência, para ele, seria uma atividade totalmente imparcial em
virtude da purgação dos obstáculos da subjetividade humana. Mas Bacon também percebia a dificuldade que
o ser humano tem para fazer uma transição de pensamento.
134

mesmo não o fazem quando se tornam estáticas frente a uma realidade e um conhecimento
sempre dinâmicos.

O futuro do darwinismo
Tenho, portanto, fortes razões para suspeitar que a pergunta da introdução (Darwin
será para o século XXI o que Newton foi para o século XX?) terá uma resposta afirmativa,
a partir da solidez e consistência das críticas que se podem dirigir ao paradigma dominante
na biologia e pela própria dinâmica histórica do conhecimento. Seria sensato acreditar que
todas as ciências passam por transições de paradigmas, mas que a biologia descobriu a
verdade final e imutável sobre a evolução? A biologia evolutiva chegou ao fim da história
logo que deu o primeiro passo – e justamente um passo no escuro, ou seja, quando ainda
não se conheciam os mecanismos básicos do desenvolvimento da vida?
Imaginar, no entanto, que um processo de crise e revolução será facilmente digerido
pelos cientistas é uma enorme ingenuidade. Às novas gerações de cientistas
(especificamente do campo das ciências biológicas, mas não excluindo outras áreas como a
física e a química) está colocado o desafio de manter a cientificidade da ciência na
explicação dos fenômenos que envolvem a vida. Isso implica um duplo desafio, um de
ordem científica e outro de caráter filosófico.
O desafio científico é manter as teorias adequadas ao âmbito factual que pretendem
explicar, sem abandonar o naturalismo científico. Ao mesmo tempo, é necessário cultivar a
concepção de que o empreendimento científico é algo dinâmico e dialético, abandonando a
visão que o trata como “descoberta” e “revelação da verdade” sobre a natureza – este é o
desafio de ordem filosófica. Para enfrentar ambos, é preciso disposição para superar os
dogmas científicos e a ideologia positivista que ainda prevalece no senso comum. Mais
ainda, faz-se necessário, igualmente, romper com a ideologia social dominante que
pretende ver a natureza como o espelho das relações sócio-econômicas criadas
artificialmente.
É preciso, também, deixar claro que a crise do darwinismo não é um assunto
doutrinário ou religioso, mas um tema de investigação da filosofia das ciências e um
problema científico. Sendo assim, não se pode afirmar que a derrocada do darwinismo
significará a vitória dos diversos tipos de criacionismo ou de alguma corrente filosófica ou
concepção social em particular. Mas, sem dúvida, a perda de justificação científica para
um modelo de relação social e econômica (o liberalismo) traz implicações enormes para o
135

debate filosófico e social. Sandín também reflete sobre isso de forma bastante interessante
em artigo com o sugestivo título Uma nova biologia para uma nova sociedade (Sandín,
2002b; 2006, p. 21-95).
A conhecida arrogância de Dawkins e sua constante exposição na mídia como uma
espécie de profeta do ateísmo e do egoísmo universal sustentam-se na crença de que o
darwinismo é uma teoria “cientificamente comprovada” e, conseqüentemente, eternamente
verdadeira e impassível de dúvidas ou de questionamento de qualquer ordem. Com uma
crise do paradigma darwinista, o caráter de “verdades inquestionáveis” que algumas
proposições metafísicas e sociais adquirem por estarem supostamente amparadas nas
“verdades científicas” do darwinismo, pode, finalmente, ruir. Dawkins e outros serão
obrigados a defender suas posições metafísicas e sociais a partir de argumentos filosóficos
e sociológicos e deixar de levar esse tipo de discussão para a ciência. Terão que convencer
baseados em argumentos e enfrentar o debate abertamente sem a proteção do “manto
sagrado” da ciência, que lhes confere autoridade sacerdotal e maior poder de predicação.
A ciência, como já afirmei mais de uma vez neste livro, limita-se à busca de causas
naturais para fenômenos naturais. Nenhuma religião, crença ou pressuposições metafísicas
e de ordem social podem ser empecilhos para o conhecimento da natureza ou para quem
quer adquiri-lo sem partilhar tais pressupostos. Embora pressuposições de diversas ordens
influenciem o trabalho da ciência, elas não podem tornar-se critérios de censura para a
investigação. E quando digo nenhuma religião, crença ou pressuposições metafísicas e de
ordem social, estou mesmo querendo dizer nenhuma: nem a de grupos fundamentalistas de
diferentes religiões, nem as de Dawkins e demais darwinistas ortodoxos.

Darwinismo e sociedade
Não podemos também separar a reflexão sobre os impactos da crise do darwinismo
da discussão sobre a crise geral da sociedade moderna e sua racionalidade – assim como
não se pôde separar o surgimento da teoria da evolução de Darwin das suas implicações
filosóficas e sociais.
A origem das espécies é citada insistentemente como um marco do desencantamento
do mundo e do ser humano que caracterizou o espírito da modernidade. São conhecidas as
influências de Darwin no anti-humanismo de Nietzsche e nas diversas doutrinas de
superioridade racial. Além disso, o liberalismo tornou-se um darwinismo social e não são
poucos os que acreditam, com convicção quase absoluta, que os conflitos sociais do
136

capitalismo e a competição desenfreada entre os seres humanos são regras naturais que
vigoram na natureza e fazem a vida evoluir. Se são naturais, acabam por não dever nada
aos sistemas econômicos e, dessa maneira, o Estado e as classes sociais dominantes
(interpretadas como “superioras”) estão isentos de qualquer culpa na configuração atual
das relações humanas. A exclusão social de populações inteiras seria simplesmente um
produto dessa regra natural. A situação social dos países periféricos, ainda que indesejada,
seria imutável porque são reflexos de leis da natureza, às quais o ser humano não pode
fugir.
Qualquer elaboração ou movimento social que pretendam reformular os parâmetros
que definem as relações humanas na atualidade, frente à crise global da sociedade
moderna, torna-se apenas um “ideal romântico”, sem possibilidade de concretização, já que
“as regras implacáveis” da competição, da luta pela sobrevivência e da vitória do mais apto
não são “invenções humanas”, mas “regras irrevogáveis da natureza”. Poucos parecem
saber que Darwin afirma textualmente que não as descobriu na natureza, mas conheceu-as
através de Spencer e Malthus (teóricos sociais) e as aplicou ao mundo natural.
Que impactos para o pensamento decorreriam de uma crise no paradigma
hegemônico das ciências biológicas que foi usado como fundamentação das idéias sociais
hegemônicas? Que novas reflexões a crise poderia trazer para as relações dos seres
humanos em sociedade?
Pessoalmente, não acredito que devamos estabelecer nossos padrões de
relacionamentos a partir de supostas “regras naturais” (sejam elas de competição ou
cooperação). O ser humano é livre para definir que tipo de sociedade vai construir para sua
própria sobrevivência.88 O que caracterizou a “humanidade” do ser humano foi
principalmente a capacidade de transcender às leis naturais e montar as suas próprias
regras de sobrevivência (cf. Abdalla, 2005).
Mas, se as leis naturais (ou melhor, a forma como se compreende tais leis a partir da
ciência) não podem servir de parâmetros para a organização da sociedade humana, pelo
menos não mais poderão ser aduzidas como argumentos “científicos” contra uma
sociedade diferente da que é montada sob os princípios do liberalismo econômico. Ou seja,
o darwinismo, uma vez tendo perdido seu status de verdade final sobre a vida, não poderá
mais ser empecilho para que o ser humano possa pensar livremente acerca de sua própria
sociedade e de seu comportamento.

88
Pude refletir sobre isso em Abdalla (2002, p. 130-139).
137

Darwinismo e naturalismo científico


Uma crise do darwinismo, a despeito do que muitos afirmam, não significaria um
retorno às concepções que precederam o naturalismo científico. Até porque, Darwin não
responde pela paternidade do naturalismo na biologia: cientistas anteriores a ele também
buscaram causas naturais para a evolução, como Buffon, Cuvier, Lamarck e muitos outros
(cf. Sandín, 2002a). Ninguém precisa temer que a crise do paradigma darwinista possa
derrubar o naturalismo na ciência. O que pode estar em questão a partir da constatação
dessa crise é o reducionismo, mecanicismo e o tipo de determinismo que caracterizaram a
ciência moderna. Isso, no entanto, é apenas um reforço às mudanças já trazidas pela física
do século XX.
O que parece configurar-se no cenário da ciência é uma mudança radical de foco na
investigação, fruto da constatação da complexidade estrutural da vida referida neste livro
no capítulo 3. Ao invés de focalizar a estrutura molecular das partes que compõem a célula
(seguindo o reducionismo neodarwinista), as novas abordagens canalizam a análise para o
comportamento coletivo dessas partes. Em outras palavras, ao invés da matéria constituinte
da vida, dá-se importância à relação entre os elementos. É essa relação que constitui a
totalidade organizada da vida e, embora dependa da materialidade das moléculas básicas
que formam os organismos vivos, não se explica pelas características individuais das partes
constituintes.
Efetivamente, todo o trabalho que busca compreender a vida por outra ótica, a partir
das informações advindas das novas descobertas da bioquímica, da microbiologia e da
genética, recorre a idéias de complexidade e auto-organização, criando as condições para o
estabelecimento de um novo paradigma e até mesmo de novas matrizes interpretativas
para os fenômenos naturais.
Excetuando Michael Behe, os trabalhos de cientistas que se colocam como críticos
(parciais ou totais) do darwinismo mostram que é possível a criação de uma teoria
naturalista da evolução alternativa à de Darwin. A síntese do trabalho de Sandín que fiz
neste livro teve o objetivo de demonstrar essa possibilidade, a fim de inviabilizar as críticas
doutrinárias que não cessam de afirmar que a crítica ao darwinismo é sempre, e
necessariamente, uma fuga da ciência ou um apelo ao criacionismo.
Conforme já mencionei, Schopenhauer denuncia esses tipos de estratégias
discursivas quando expõe os estratagemas da erística, arte de vencer um debate pela
retórica, sem se ater aos conteúdos (Schopenhauer, 1997). As alternativas científicas à
138

crise do darwinismo são não só possíveis, como já se configuram lentamente no cenário


das ciências.

Novos desafios
Para aqueles que serão testemunhas do século XXI, é bastante provável que uma
nova revolução aconteça nas ciências. Desta vez, ao invés da física, a grande protagonista
será a biologia. Mudanças assim já ocorreram outras vezes na história e não significaram
“correção de erros”, mas transição de paradigmas.
Porém, a história das ciências, da mesma maneira que registra as revoluções, também
nos lembra da resistência dos setores mais conservadores a essas mudanças. Os
responsáveis pela Inquisição, em nome de princípios religiosos fundados mais na física
aristotélica do que na Bíblia, cometeram atos que até hoje nos repugnam. Os homens e
mulheres da ciência de hoje (e também da filosofia) devem refletir sobre se a sua maneira
de tratar a ciência não os está conduzindo ao apego a princípios transformados em
“sagrados” e se esse possível apego não os farão cumprir o papel de inquisidores do século
XXI. A capacidade de resgatar o espírito naturalista não dogmático e de entender a eterna
transitoriedade dos paradigmas será certamente o principal motor de uma nova ciência.
No momento, a crise do darwinismo é ainda latente e, por isso, as idéias heterodoxas
são repelidas e ridicularizadas, antes mesmo de serem debatidas. Quando, porém, essa crise
se tornar patente; quando os biólogos e biólogas das novas gerações começarem a se
questionar sobre a validade de seu paradigma frente aos enormes avanços no conhecimento
experimental e de outras disciplinas; quando, enfim, o peso da “doutrina” darwinista e da
visão social que ela carrega não for mais um obstáculo para a compreensão do mundo e
para a ousadia dos cientistas, será, então, o início da revolução científica.
Aí, os ratos se convencerão de que para se livrar do gato é preciso uma idéia factível
e não apenas convincente.
139

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