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CORPOREIDADE* JOAO AUGUSTO POMPEIA Resumo Neste artigo a existéncia & considerada em sua indigéncia ¢ em sua poténcia de ser. Ambas caracterizam 0 humano € se apéiam nat corporeidade, um carter fundamental da existéncia — um existencial — na perspectiva heideggeriana. Integram a indigéncia: o sentimento da pequenez: a imposigio das necessidades: a limitagao; 0 suportar 0 peso da existéncias a dor; 0 s exposto:; a decadéncia; a morte, E a poténcia de ser diz respeito a todo realizar humano, ao poder transcender, ao poder ter prazer, a experién. cia do belo. Considera-se, por fim, que a corporeidade diz respeito homem, mas também ao mundo, pois € ela que possibilita que os entes se manifestem como se manifestam. Palavras-chave: existencial, indigénci transcendéncia, manifestagao dos entes, poténeia de se Abstract In this article existence is considered in its indigence and potentiality-to-be. Both characterize human being and are based on bodiness, a fundamental character of existence ~ an existential ~ in Heidegger's perspective. Indigence comprises: the feeling of smallness; the request of needs: limitation; bearing the weight of existence; pain; the exposed being: decadence; death. And potentiality-to-be regards all human achievements, the potentiality of transcending, the power of pleasure, the experienc of beauty. Bodiliness is seen not only as referred to man but also to the world, once itis through bodiliness that entities manifest themselves the way they do. ality tobe, transcendence, Key-words: existential, indigence, poten manifestation of entities. O ponto de vista filoséfico e epistemolégico que propde uma sepa- o entre sujeito e objeto, os quais, s6 num segundo momento, entra- riam em relagao, tem sido 0 predominante hd muito tempo. Partindo de tal modelo, vigora uma concepedo que separa, de um lado, algo que se pode chamar de mente ou psiquismo — que por per- tencer ao sujeito € interno, subjetivo — e, de outro lado, algo que & externo, 0 dado objetivo. Como decorréncia disso instaura-se a nogdo de que hi dois domi nios separados: o da subjetividade e 0 da objetividade. E 0 psicélogo, 30 aceitar essa divisio, transita ora por um, ora por outro desses dominios. ‘Com 0 modelo que supde uma tal separagdo vem a idéia de que ha © mundo ai fora, objetivo, cuja realidade nao se contesta; e hd um mun- do subjetivo, constituido pelo psicolégico: e das coisas que dizem res- peito a este ji ndo se tem tantas certezas, pois, por sua natureza, o pro prio conhecimento que se tem dele tem dificuldade para se estabelecer segundo as exigéncias de objetividade dos padries cientificos. Alguns estudiosos encontram maneiras de coneeber e de explicar a subjetividade, de compreender a mente humana, sua génese, sua estru- tura e elaboram as teorias de psicologia. ‘Outros, entretanto, descartam essa preocupacao com teorias psico~ Idgicas que expliquem a subjetividade. Consideram isso a que se chama mente como um epifenémeno, como algo que simplesmente resulta de condiges bioquimicas corporeas; ¢ 0 corpo humano, segundo eles, nada ‘mais é que um corpo, que, como todos os corpos, esti sujeito as leis da fisica, e como todos os animais compartitha aquilo tudo e s6 aquilo que diz respeito a vida dos animais. Seja na concepgo que supde um psiquismo com uma génese € uma estrutura distintas do corpo, seja na concepgao que supde a mente como um produto do corpo, o corpo humano tem sido considerado como algo que se situa no dominio da objetividade. E a idéia da separagao, entre 0 subjetivo e 0 objetivo, entre a mente e 0 corpo, foi to predomi ante nestes tiltimos séculos que acabou por gerar a necessidade do surgimento de uma diseiplina como a Psicossomitica, que esté af para tentar compreender como duas instancias tao distintas se interpenetram. Mas niés, como psicoterapeutas daseinsanalistas, trabalhamos numa perspectiva em que nao estdo presentes aquelas cisdes entre mente e mun- = — ——_—_——e—————eEe ddo,entre mentee corpo. Concebemos aexisténcia humana, ou seja,0 Dasein, ‘como uma estrutura que se caracteriza como ser-no-mundo, Dasein jf €, por prineipio, sempre junto As coisas: € um ente que s6 pode ter acesso a si ‘mesmo enquanto compartilha a presenga dos entes que si0 distintos dele mesmo. Ea maneira de Dascin ser-no-mundo é sendo corpor Deixamos de lado o referencial dualista bem como aquele das ¢i- Jo, a mensuragio € éncias naturais, em que predominam a objetivag controle, Nosso referencial se assenta numa analitica do Dasein, segundo o pensamento de Heidegger. Descrevemos Dascin como marcado por de- “des essenciais, que fazem parte de sua constituigao. Si os cha~ mados existenciais, Assim, no dizemos, por exemplo, que Dasein ¢ ‘no espago ou no tempo fisicamente concebidos, tanto quanto tn ra ou tum galo estdio num certo espago fisico ou existe num certo tem- ‘po: tampouco dizemos que a diferenga af é porque © homem pode ter tuma vivéncia subjetiva dessas dimensdes. Nao é isto o que constitui o principal da diferenga. O que dizemos é que Dasein ¢ espacial, ¢ tempo- ral, Para Dasein, espacialidade, temporalidade, so existenciais, isto &, cconstituem, de modo fundamental, seu ser-no-mundo. ‘Quando abordamos ontologicamente © Dasein e compreendemos certos caracteres seus como existenciais, ou seja, como seus constitutivos: essenciais, essa compreensiio nos conta sobre quem é esse ente a quem ‘chamamos Dasein. Por exemplo, quando consideramos a espacialidade, isso nos diz.quue ‘o modo de ser de Dasein inclui sempre alguma experiéneia espacial, isto que diz respeito ao espago, e no a um espago objetivo fora dele, mas sempre a uma dimensio espacial que faz parte dele, J por principio ‘propria definigio que damos de Dascin insinua o seu cariter espacial: Dasein é 0 af em que hii mundo, ¢ € para ele que 0s outros entes esto perto ou longe, de um lado ou de outro, enfim, ele leva consigo 0 espago. ‘Quando consideramos a temporalidade, isso nos lembra de que Dasein é aquele ente que existe sempre vindo a ser, sempre num tornar- se, € isso implica tempo; ele, a cada momento (presente), penetra no que ainda nio é (futuro), ¢ carrega consigo 0 jf sido (passado). Pois bem, do mesmo modo, dizemos também que Dasein nio € apenas um corpo que a fisica estuda, nao é também algo que esta “den- tro” de um corpo, ele & corporal, e acrescentamos que, para Dasein, a esta intimamente relacionada c ripen! corporeidade & um existencial, tanto quanto 0 sio a espacialidade, temporalidade. Do ponto de vista de uma anélise existencial, € em corporeidade que solicita nossa atengo quando pensamos no ser corpo- ral de Dasein. {(Obviamente, como os outros entes,o homem vive também num espaco e num tempo fisicos, tem um corpo fisico que é objeto de estudo das ciéncias naturais; a mesma bactéria observada num laborat6rio pode ser encontrada danificando o corpo de um homer.) Queremos aqui tratar da corporeidade como um existencial. E ve~ remos que, como outros existenciais, este também se apresenta sempre imbricado nos demais. Eenquanto significa um existencial, o que essa palavra corporeidade 1nos conta sobre 0 Dasein’” ‘0 que primeiro deve ser lembrado & que, embora digamos “ corporeidade”, esta palavra nao designa uma coisa. Ela se origina de um adjetivo; significa uma qualidade, uma propriedade. Uma qualidade sem- pre diz respeito a algo. A corporeidade diz respeito ao corpo, ao ser corporal Mas precisamos fazer uma consideragdo. Em geral, quando nos referimos ao corpo, pensamos no corpo que temos; assim, temos um ‘corpo como temos um objeto que nos pertence. Nessa perspectiva, um pianista tem as mios maravilhosas que tocam o piano que ele tem. En- {retanto, queremos dizer aqui que concebemos a corporeidade como algo que diz respeito ao corpo que somos, Fazer uma fenomenologia da corporeidade no € descrever 0 cor- po, mas, de alguma forma, € buscar a qualidade de uma experiéncia que ‘a questio do corpo. (Encontramos reflexdes fenomenoldgicas sobre esse assunto em Minkowski, Binswanger, Jaspers.) as A corporeidade diz respeito ao corpo, mas diz respeito ao mesmo: tempo ao mundo; mundo que é 0 que & para nds humanos, porque so- mos este corpo que somos. Podemos compreender isso a partir de um exemplo simples da Visto de um objeto, ou da audigo de um de nado som, O objeto surge com caracteristicas de forma, de cor, que sio dele, 0 objeto, mas que $6 podem ser percebidas como tais, ou Seja, 86 siio aquelas, porque ha olhos humanos que as véem daquele jeito; ha ‘sons que s6 podem fazer parte do mundo em que vivemos porque ouvi- dos humanos os ouvem daquele jeito. Se nossos ouvidos fossem seme- Ihantes aos do cao e nossos olhos semelhantes aos da aranha, 0 ouvido © © visto do mundo seriam outros. ‘Ao falar sobre isso eu me lembro de um exemplo dado por Medard Boss. Suponhamos que um astronauta num espago totalmente vazio, de repente, se depara com um objeto, uns culos, por exemplo. Nesse mo- mento, 0 homem reconhece trés informagdes: primeira - hd um objeto, ‘culos, & sua frente: segunda - hi uma luz que ilumina esse objeto; ter- ceira - ele pode ver. Mas se no momento seguinte o objeto desaparecer, ‘como o homem vai saber se foi o objeto que sumiu, se foi a luz que se apagou ou se ele ficou cego? Se nao supusermos nenhuma outra condi- 40 complementar, se tivermos apenas essa experiéncia para considera- 80, no hd como responder Esse exemplo mostra que © homem sabe do que diz respeito ao seu corpo, ou seja, sabe da sua corporeidade, no caso, « sua possibilidade de ver, no contato com as coisas, quando ele as enxerga. Sabemos da expe- rigncia do nosso olho nao quando 0 sentimos, mas quando, no 0 sentin- do, enxergamos as coisas. Ao enxergar, a plenitude do olhar se faz pre sente, no siléncio do olho. Pois quando sentimos nosso olho, no senti- mos aquilo que constitui a esséncia dele, mas sim 0 que constitui 0 aci- dente, no sentido aristotélico, 0 ocasional do olho, que € 0 fato de ele poder estar doente, estar com algum problema. ‘Acesséncia do olho se manifesta quando os entes se mostram em sit condigo de visiveis. E na experiéncia de enxergar, 0 sujeito, 0 objeto e a condigio da manifestagio so tio imbricados que nao admitem separaga. Mas agora, deixando de lado essa questao que tem mais a ver com 1 6rgios dos sentidos, e, pensando na corporeidade como uma totalida- de, o que mais essa palavra nos conta? Em primeiro lugar, devemos explicitar do que estamos falando quando usamos esta palayra corporeidade, Nao estamos dizendo o b- vio, isto é, que 0s homens tém corpo; no estamos também simplesmen- te relembrando que hi uma experiéneia prépria, subjetiva de corpo. Ao uusarmos essa palavra queremos pensar, ontologicamente, no ser corpo- ral.como.um constitutivo essencial do Dasein, ou seja, da existénciar € fazer isto quer dizer perguntar: 0 que significa ser corporal? O que plica ser corporal? ischisbefiabtsibviiest seats = indy 4 fol ser corporal de Dasein & 0 existencial que, mais de perto, nos conta que existir é, ao mesmo tempo, indigéneia e poténcia — _Dascin, por ser corporal, ¢ porsua corporeidade ser exatamente como um ente que muda e produz mudangas, e isto pode significar tanto indigéncia quanto poténcia. J4 por principio, ele nao pode escolher ser ou nao dessa forma, isto &, ser ou nao sempre em mudanga. Estar submetido a mudangas implica ndo poder reter nada como posse, implica falta, réncia, perda, todos os “ainda ndo posso”, todos os “ji ndo posso mai isso significa indigéncia, Mas por aquelas mesmas razGes, 0 poder mu- dar possibilita 0 crescimento, o desenvolvimento, os ganhos, todos 0s “ago- 1a poxso”, todos 0s “posso cata vez mais” — e isso significa poténcia Se consideramos a corporeidade como um existencial, ese ser cor- poral implica indigéncia e poténcia, entio, Dasein, onticamente, deve ter experiéneias dessa natureza. Os seres humanos, coneretamente, experienciam o que & caréncia e o que & poder. ce E disso quetialaremonagocs,, (2 a pensar o que significa indigéncia. De imediato, identificamos aqui a experiéncia da pequenez, Quan- do digo “eu sou pequeno”, ndo estou dizendo que meu corpo é pequeno: estou falando de algo que eu sou. O pequeno e o grande sao experiéncias que vivo no meu corpo, mas a pequenez do meu corpo me aponta a condigao geral do ser pequeno, O se sentir pequeno talvez comece na experiéneia infantil de se sentir fisicamente pequeno diante das pessoas grandes. Mas o sentimen- to da pequenez permanece como possibilidade no resto da vida, depen- dendo das citcunstancias, nas relagdes do homem consigo mesmo, com: 08 outros, com as coisas, com Deus. A experiéncia da pequenez esté presente naquilo que designamos como impoténcia diante da vida, ou como “esta tarefa é grande demais para mim’ © pequeno nao se refere apenas a uma questo espacial. O peque- no se refere também ao curto, no sentido de breve. E nessa perspeetiva

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