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A AFRICA NA SALA DE AULA 59 gedgrafo com base na autoridade de Ledo, o Africano, ¢ do xerife de Edrissi, autor niibio, traga com mao hesitante uns poucos nomes de rios inexplorados ¢ de nebu- losas nagoes [...].!* Finalmente, tentando compreender a importancia dessas viagens exploraté- rias para os paises europeus, ¢ titil recordar que elas nao sé deram continuidade como aceleraram o processo de “roedura” do continente e tornaram acaloradas as discuss6es sobre a partilha, precipitadas pela forte crise do Império Otomano € pelo final do trato negreiro. O marco foi a Conferéncia de Berlim, cujas con- seqiiéncias para a Africa fazem-se presentes até os dias atuais. A Conferéncia de Berlim ea partilha Muito pouco se sabe acerca do ocorrido nos bastidores da diplomacia euro- péia, capaz de informar propésitos e resultados das negociagdes que culmina- ram em um dos perfodos mais violentos da época contemporanea. "> O que pa- rece consensual, no entanto, foram os quatro principais motivos que levaram & realizagio da Conferéncia. O primeiro deles, verificado na conjuntura de 1865 até a primeira metade dos anos de 1890, refere-se aos interesses do rei Leopoldo I da Bélgica em fundar um império ultramarino. Para viabilizar esse objetivo, a partir de 1865, Leopoldo II teve como uma de suas estratégias 0 estudo da ex- ploragao africana. Por isso promoveu, em 1875, a fundagao de uma cadeia de postos comerciais e cientificos que se estendiam pela Africa Central, de Zanzi- bar ao Adlantico, em nome do combate ao comércio de escravos, promovido pelos muculmanos, e da protegao das missdes cristas. Mas o que realmente estava em questao era 0 objetivo de fundar um impé- rio ultramarino subsumido numa imagem de missao filantrépica forjada pelo rei da Bélgica. Sob esse estratagema, Leopoldo patrocinou a realizagao de uma conferéncia de gedgrafos ¢ exploradores, a Conferéncia Internacional de Geo- grafia, mais conhecida como Conferéncia Geogréfica de Bruxelas, realizada em setembro de 1876. De acordo com seu projeto, na abertura da Conferéncia, Leopoldo declarou: 12. BOVILL, E. W. “Missions to the Niger”. Hakluyt Society, série II, vol. 123, p. 2. Jn: PRATT, Mary Louise. Os olhos do império.... op. cit, p. 128. 13. WESSELING, H. L. Dividir para dominar: a partilha da Africa: 1880-1990. Rio de Janeiro: Re- van/Ed. da UFRJ, 1998; HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do rei Leopoldo: uma historia de cobi- (4, terror e heroismo na Africa colonial. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1999. 60 LEILA LEITE HERNANDEZ Abrir para a civilizacao a tinica parte do globo ainda infensa a ela, penetrar na escuri- dio que paira sobre povos inteiros é, eu diria, uma cruzada digna deste século de pro- gresso [ . Pareceu-me que a Bélgica, um pais central ¢ neutro, seria o lugar adequa- do para um tal encontro [...]- Seré que preciso dizer que, ao trazer os senhores a Bruxelas, nao fui guiado por nenhum sentimento egoista? Nao, cavalheiros, a Bélgica pode ser um pais pequeno, mas esta feliz ¢ satisfeita com seus rumos; ¢ eu no tenho outra ambigao que nao seja a de servi-la bem."* O rei da Bélgica terminou o seu discurso informando que, entre as tarefas que esperava serem cumpridas pela Conferéncia, destacavam-se a “[...] localiza- gio de rotas a serem abertas com sucesso pelo interior do continente e a ins- talagao de postos hospitaleiros, cientificos e pacificadores, como forma de abolir 0 tréfico de escravos, estabelecer a paz entre os chefes tribais ¢ fornecer-lhes ar- bitragem justa e imparcial”.!” Ao término da Conferéncia foi aprovada a fundagao da Associagao Interna- cional Africana, com sede em Bruxelas, tendo Leopoldo sido eleito por aclama- 40 primeiro presidente do Comité Internacional. Em seguida foi fundado 0 Comité de Estudos do Alto Congo, tendo como acionistas um pequeno grupo formado por alguns empresitios britinicos ¢ holandeses ¢ um banqueiro belga que detinha um grande bloco de agdes em nome do rei da Bélgica Ao mesmo tempo o explorador Stanley, cumprindo ordens de Leopoldo, difundiu as idéias centrais para estabelecer uma “Confederacao de Repiblicas ido do futuro Estado Livre do Congo. A referida Con- federacéo teria como presidente Leopoldo que, da Europa, governaria as “tribos negras” do coragao do continente africano. O rei da Bélgica preparava-se, assim, para obter internacionalmente 0 reconhecimento de sua soberania sobre a bacia Livres” no Congo, embri do Congo, vale dizer, do seu dominio privado na Africa, com a condigao de manter 0 livre comércio da regio para todos os paises europeus. O ponto culminante dessas medidas foi, sem divida, a instituiggéo do Estado Livre do Congo, reconhecido imediatamente apés 0 término das delibe- ragdes da Conferéncia de Berlim, em 29 de maio de 1885. Reitera-se que esse conjunto de medidas tomadas entre 1876 € 1884, reveladoras dos interesses de Leopoldo 11, pode ser considerado o primeiro grande motivo para o desencadea- mento da partilha da Africa. O segundo, por sua vez, foi sem duivida a frustrada corrida de Portugal por seus interesses em torno do ja referido faro da conquista 14, HOCHSCHILD, op. ait., p. 54-5. 15. Ibidem, p. 55. A AFRICA NA SALA DE AULA 61 do “mapa cor-de-rosa”, anunciado em outubro de 1883 ¢ materializado em 1886. Esse projeto pressupunha a ligaga4o de Angola a Mogambique, do Adan- tico até o [ndico, abrangendo quase todo o territério das atuais Zambia e 0 Zimbabue numa s6 provincia “Angolomogambicana”. Acresca-se o fato de ter sido Portugal 0 tiltimo pais a ser convidado para a Conferéncia Geografica de Bruxelas, 0 que melindrou e alarmou sobremaneira os portugueses interessados na Africa. O terceiro grande motivo foi o expansionismo da politica francesa expresso na participagao da Franga com a Gra-Bretanha no controle do Egito, em 1879; no envio de expedic6es exploradoras ao Congo, como a do marqués de Com- piégne, que subiu o rio Ogue, no Gabao; na ratificagao de tratados com Mako- kko (chefe dos betekes) na bacia do Congo, érea onde eram intensos a pesca € 0 comércio de escravos, madeiras para tingimento e trafico regional de mandioca € peixe seco; e no estabelecimento de sua iniciativa colonial na Tunisia e em Madagascar. Por fim, quarto motivo foram os interesses em torno da livre navegagao e do livre comércio nas bacias do Niger e do Congo, manifestado de forma explicita, sobretudo pela Gra-Bretanha, que alimentava também o sonho de um dominio do Cabo ao Cairo, cada vez mais dificultado pelos interesses de outros paises europeus na Africa Central ¢ pelos béeres, seu grande obsticulo na Africa austral. Todos esses fatos indicam uma convergéncia de interesses econdmicos ¢ politicos em torno do continente africano, abrangendo 0 estabelecimento de pontos de ocupagao com a assinatura de intimeros tratados com os potenta- dos afticanos, tornando-os presas faceis para os colonialismos europeus dos fi- nais do século XIX. Entre os tratados destacam-se os que se referiam ao trafico de escravos e ao comércio, fontes de conflitos que ensejavam a intervencdo politica européia nos assuntos afticanos. Por sua vez, existiram os tratados predominantemente politicos, por meio dos quais os dirigentes africanos re- nunciavam & sua soberania em troca de proteso, comprometendo-se a nao assinar nenhum tratado com outras nagGes européias. $6 na década de 1880 a 1890, a Franga fez assinar 226 tratados com os chefes africanos, enquanto na atual Nigéria apenas 2 Companhia Real do Niger obteve, entre 1884 ¢ 1892, 389 tratados em proveito da Gra-Bretanha, Isso implicava permitir ao capita- lismo europeu extrair os produtos necessirios a industria, desequilibrar a eco- nomia doméstica ¢ influenciar o sistema politico africano. As principais forcas que criaram as relages econdmicas ¢ politicas entre representantes dos paises europeus e soberanos africanos eram semelhantes. 62 LEILA LEITE HERNANDEZ Denotavam uma coincidéncia de interesses, tendendo ao conflito entre as po- téncias européias mais atuantes. E concebivel, portanto, que no inicio dos anos 1880 Portugal renha proposto a convocagéo de uma conferéncia interna- cional para resolver as disputas territoriais na Africa Central. Pouco tempo depois, Bismarck, demonstrando 0 interesse da Alemanha pelo continente africano, formulou a declaragao de 24 de abril de 1884, segundo a qual todo 0 sudoeste, do rio Orange ao rio Cunene, foi proclamado protetorado alemao, gerando um litigio que s6 terminou com o resultado da Primeira Grande Guerra. Dessa maneira, impunham-se negociagées diplométicas capazes de arbi- trar todos esses conflitos de interesses. Para tanto, coube a Bismarck organizar a Conferéncia de Berlim, ocorrida entre 15 de novembro de 1884 ¢ 26 de fe- vereiro de 1885, reunindo como paises signatérios da Ata Geral: Franca, Gra-Bretanha, Portugal, Alemanha, Bélgica, Itélia, Espanha, Austria-Hun- gtia, Pafses Baixos, Dinamarca, Russia, Suécia e Noruega, Turquia e Estados Unidos da América. A Ata Geral da Conferéncia de Berlim, assinada em 23 de fevereiro de 1885, era composta por seis pontos fundamentais formalizados em capitulos. Os principais objetivos cram assegurar as vantagens de livre navegagio e livre comércio sobre os dois principais rios africanos que desdguam no Atlantico, 0 Niger e o Congo. Visavam também regulamentar as novas ocupagbes de territé- rios afri ‘anos, em particular da costa ocidental do continente. O Capitulo 1 prescreve a execugio do livre comércio da bacia do Congo, suas embocaduras e os paises circunvizinhos, incluindo o lago Tanganica e os seus afluentes orientais. Significa dizer que regulamentava a livre navegacéo ¢ 0 livre comércio da zona maritima atlntica até 0 oceano [ndico, incluindo a isen- ao de direitos de entrada ou transito por um perfodo de vinte anos. Previa também excluir do livre transito e da liberdade comercial os territérios que, na altura da Conferéncia, ja pertenciam a algum Estado independente ¢ soberano, a nao ser com 0 consentimento deste, como no caso especifico dos governos es- tabelecidos na costa oriental. No Capitulo II, destacavam-se as “Disposigées relativas & protegao dos in- digenas, dos missionérios ¢ dos viajantes, assim como da liberdade religiosa”. Nele se sobressaia 0 artigo VI, pelo qual os paises signatarios do Ato Geral da Conferéncia, uma vez exercendo os direitos de soberania ou mesmo tendo in- fluéncia nos territérios que estavam sendo regulamentados, comprometiam-se a 16. DE CLERQ, Recueil. “Des traitérs de la Prance”, Jn: BRUNSCHWIG, Henti. A partitha da Aftica negra. Sio Paulo: Perspectiva, 1974. t. 14. p. 78-91. A AFRICA NA SALA DE AULA 63 conservar as “populagées indigenas”, melhorar as suas condigdes morais e mate- riais de existéncia ¢ colaborar para suprimir 0 comércio de escravos. Também teriam de envidar esforgos para proteger e favorecer todas as insti- tuigdes e os empreendimentos religiosos, cientificos ou de caridade, voltados para “instruir os indigenas” e fazé-los “compreender e apreciar as vantagens da civilizagao”. Ja o Capitulo III referia-se 4 “Declaragao relativa 4 neutralidade dos territé- rios compreendidos na bacia convencional do Congo”, incluindo 0 caso de ha- ver guerra, quando, tanto a poténcia que exercia direitos de soberania como os protetorados dessas regides colocadas sob o regime de liberdade comercial, se comprometiam a respeitar a livre circulacao, inclusive dos comerciantes de na- goes “inimigas”, desde que nao transportassem munigées ou “contrabando de guerra’, conforme o artigo 25 do Capitulo Iv. Vale registrar que € no Capitulo IV, a “Ata de Navegagio do Congo”, que se faz referéncia 2 livre navegagao de todas as nacées, sem “[...] nenhum privilégio exclusivo de navegagio a quaisquer sociedades ou corporagées ou a particulares”. J& no Capitulo V, a “Ata de Navegacao do Niger” assegurava os principios da livre navegacao e do livre comércio nas aguas do Niger, seus afluentes, rami- ficagGes ¢ saidas, que j4 estavam ou viriam a estar sob a soberania ou 0 proteto- rado da Franga e da Gra-Bretanha ou de qualquer outra das poténcias signatarias da Ata Geral da Conferéncia de Berlim. Essas disposig6es deveriam valer tam- bém em tempo de guerra. Por sua vez, 0 Capitulo VI dizia respeito & “Declaracao referente as condi- Ges essenciais a serem preenchidas para que as novas ocupagées nas costas do continente africano fossem consideradas efetivas”. Composto por apenas dois artigos que pressupunham a partilha, referia-se 4 ocupacao de territérios como condigao bésica para sua efetividade, contando para isso com a existéncia de uma autoridade capaz de respeitar nao s6 os direitos adquiridos como a liberda- de de transito e de comércio. Finalmente, 0 Capitulo Vil, “Disposig6es Gerais”, por meio do qual, “de comum acordo”, eram previstas “modificagdes ou melhoramentos cuja utilida- de seja demonstrada pela experiéncia”. Essa mesma idéia, explicitada no artigo 36, abria espacgo para que a ocupacao efetiva dos territérios africanos fosse completada por um conjunto de tratados de delimitagao das grandes zonas do continente, em um processo que se estendeu até depois da Primeira Guerra Mundial, mesmo que, no interior de cada uma delas, as fronteiras sofressem deslocamentos em decorréncia de forgas centrifugas e centrfpetas. 64 LEILA LEITE HERNANDEZ A carta geopolitica da Africa estava basicamente pronta, sendo boa parte das fronteiras conservada, no seu conjunto, até os dias atuais. Com isso foram desconsiderados os direitos dos povos africanos ¢ as suas especificidades histéri- cas, religiosas ¢ lingiiisticas. Em outras palavras, as fronteiras da nova carta geo- politica da Africa, aprovada na Conferéncia de Berlim, raramente coincidiram com as da Africa antes dos portugueses. Mas cerca de trinta anos depois, por volta de 1920, quase todo o continente estava sob administragao, prote¢ao colo- nial ou ainda era reivindicado por outra poténcia européia. A partir da conferéncia, a corrida ao continente africano foi acelerada, num gesto inequivoco de violéncia geogréfica por meio da qual quase todo 0 espago recortado ganhou um mapa para ser explorado e submetido a controle. A demar- cacao das fronteiras prosseguiu, estendendo-se até depois da Primeira Grande Guerra, A Conferéncia de Berlim seguiram-se os tratados bilaterais europeus para efetivar alguns acertos complementares a grande partilha. Foi 0 caso do tratado anglo-alemao de 1885, que definia determinadas regides da Africa como “zonas de intervengao” da Inglaterra e da Alemanha (veja mapa 2.7).'” Ainda entre os mais importantes cabe registrar o tratado anglo-alemao de 12 de outubro de 1886, cujo objetivo foi estabelecer que Zanzibar e a maior parte de suas dependéncias pertencessem a esfera de influéncia britinica. Ao mesmo tempo, oficialmente se punha fim ao monopélio da Gra-Bretanha na Africa Oriental, que passou a ter também um territério reconhecidamente de influéncia polftica alema. Vale registrar que, por carecer de preciso, tanto esse acordo como o de 1887 acabaram dando ensejo ao Tratado de Heligolandia, de 1890, que definiu a divisio da Africa Oriental, reservou Uganda para a Gra-Bretanha e restituiu Heligolandia 4 Alemanha, além de pér fim a indepen- déncia de Zanzibar. Assim, esse acordo acabou com o grande projeto britanico de estabelecer uma rota Cidade do Cabo-Cairo. Foram ainda de grande importincia os tratados anglo-alemaes de 1890, 1891 ¢ 1893, que acabaram colocando de modo oficial o Alto Nilo sob a esfera de influéncia britanica (veja mapa 2.8). Por sua vez, 0 tratado anglo-portugués, de 1891, reconheceu a influéncia portuguesa em Angola e Mogambique, a0 mesmo tempo que delimitou a esfera de influéncia britanica na Africa Central. Também da maior relevancia foi o tra- tado de 1894 entre o Estado Livre do Congo ¢ a Gra-Bretanha, tornando este territério africano limitado, definindo os territérios franceses ¢ 0 vale do Nilo. 17. UZOIGWE, G. N. “Partilha européia e conquista da Africa: apanhado geral”. Jn: BOAHEN, Adu A. (coord.) Histéria geral da Africa. v. 7. A Africa sob dominagio colonial: 1880-1935. Sao Paulo: Atica; Paris: Unesco, 1985, p. 56-59. A AFRICA NA SALA DE AULA 65 OCEANO see ATLANTICO wueen WADAGASCAR OCEANO INDICO 2.7 - Os primérdios da partilha, 1887, quando os paises signatarios das resolugdes da Conferéncia de Berlim aceleram a efetiva ocupacao deseus territ6rios. ==> Britinicos Belgas ———> Franceses smeeee Italianos =<» Alemies > Expansio colonial espanhola sama Portugueses Fronteiras em 1887 (onde aplicaveis) [OLIVER, 1994] 66 LEILA LEITE HERNANDEZ \é PORTUGUESA chaae SrrraT ROYAL NIGER OCEANO wavs pay ATLANTICO accnvaninoet N a aan 2.8 - A ocupacao da Africa em 1891, fruto dos varios tratados, acordos e convengdes entre 0s paises europeus ¢ destes com soberanos ou chefias locais africanas. Soberania francesa =| Soberania espanhola ] fstaco Livre do congo FE) soberania tatiana FEF coco Limites da Zona de Comercio Livre instituida na Conferéncia de Berlim, 1885 [FAGE, 1978] A AFRICA NA SALA DE AULA 67 Pelo menos nas suas linhas principais, cabe ainda registrar os acordos na Africa Ocidental, de 1890, de aceitacao da linha Say-Barrwa e o da Convengio do Niger, em 1898, encerrando a partilha entre Franca ¢ Gra-Bretanha nessa regiao. Por fim, a Convengao Anglo-Francesa de marco de 1889 regulamentou a questio egipcia, e a paz de Vereeniging, de 1902, pds fim a guerra dos ingle- ses com os béeres, confirmando a supremacia britanica na Unido Sul Africana. Dessa forma, quase todo o continente ficou sob 0 dominio europeu, com excecéo da Libéria e da Etidpia. A Libéria teve sua independéncia proclamada em 1847 com um estatuto particular de “semicolénia” ou de “neocolénia” dos Estados Unidos da América, que controlavam o pais. Jd na Eti6pia o exército de Menelik II derrotou as tropas italianas em 1896. Sé bem mais tarde, em 1935-1936, os italianos sob Mussolini conseguiram se introduzir no pais e pro- clamar o rei Victor Emanuel Ill imperador da Etiépia (veja mapa 2.9).'* Apesar desse conjunto de tratados, algumas faixas limitrofes permaneceram mal conhecidas durante todo o perfodo colonial, uma vez que as poténcias eu- ropéias nao tinham interesse em fomentar ou mesmo alimentar conflitos fron- teirigos. Ainda hoje, ha fronteiras que nao foram demarcadas, em especial as maritimas, onde quase tudo esté para ser resolvido.'” Mas essa observacao nao impede reconhecer que uma das conseqiiéncias politicas do processo de parti- Iha, estabelecido na Conferéncia de Berlim, e da formulacao de tratados que a complementaram foi criar as condigdes necessdtias para que a conquista do continente africano tivesse uma base legal para se efetivar. Como bem se sabe, em nome da lei e da ordem, utilizando-se de mecanismos ¢ instrumentos admi- nistrativo-juridicos, as poténcias européias mantiveram fronteiras impostas. Quase um século depois, as elites polfticas 4 frente dos movimentos de in- dependéncia africanos, por sua prépria natureza, suas condigdes de formagio e desenvolvimento, poucas vezes colocaram em discussio 0 desmantelamento das fronteiras coloniais, mesmo cientes de que estas nao correspondiam & racionali- dade das culturas africanas, abrindo espagos para vagas migratérias decorrentes de catdstrofes naturais, conflitos armados ou mesmo como conseqiiéncia de perseguicdes politicas € religiosas. Assim, confirmados pelos Estados nacionais, os tragados das fronteiras coloniais permanecem, no seu conjunto, até os dias de hoje, por vezes potencializando uma série de conflitos de intensidade varid- vel que, rompendo os limites territoriais de cada pafs, encontram condigées 18. A Etiépia foi o mai acordo com A gloria dos reis, livro que parece ter sido escrito no século XIV, sua génese estaria no nascimento de Mandik (0 primeiro negus da Etiépia), filho do rei Salomao ¢ da rainha de Saba. 19. AMARAL, Ilidio do. “Fronteiras internacionais africanas”. Jn: HESPANHA, op. cit. antigo dos reinos askum. Remonta aos primeiros anos da era crista ¢, de 68 LEILA LEITE HERNANDEZ OCEANO ee SS ATLANTICO ‘SUAZILANDIA BS SS sasurovanora OCEANO iNDICO LN eamne) eq? = mG "MAR MEDITERRANEO "= CEUTA (Espanta) i agen = nas caniaas, MY vee TRiPOu one “ARGELIA (ono) | D 2.9-O mapa definido no ano de 1902 mostrando que, com excegao da Libéria e da Etidpia, o restante do continente estava sob dominioeuropeu. S e britanic Controle francés SS Controle britanico ‘ontrole francés Controle belga \\\ Controle alemao Controle portugues Sénteoleitaliano : | Controle espanhol Libéria e Btiépia [Baseado em OLIVER, 1994] A AFRICA NA SALA DE AULA 69 propicias para se regionalizar. E preciso sublinhar que a “questao étnica”, apon- tada como causa de praticamente todas as “guerras internas” na Africa, é fruto da manipulagao politica, em grande parte das vezes segundo interesses econd- micos politicos de alguns setores das elites afticanas, associados as empresas sos dos sérios conflitos na Serra curopéias ¢ norte-americanas. Sao classicos os «: Leoa, na Libéria, em Angola, em Ruanda, na Republica Democratica do Congo eno Sudao, para mencionar apenas alguns. Em resumo, é muito dificil discordar que a Europa tem uma enorme divi- da para com a Africa pela escravidao atlantica, pela partilha do continente ¢ pelo colonialismo e suas herangas, que constituem obsticulos para a construcio de uma longa estrada de combate & miséria ¢ as extremas desigualdades, assim como de enfrentamento dos varios conflitos presentes no continente. 2 O “NOVO IMPERIALISMO” E A PERSPECTIVA AFRICANA DA PARTILHA Os significados de imperialismo Historicamente, cabe lembrar que entre o estabeleci- mento do protetorado francés na Tunfsia (1881), a ocu- pacao britanica do Egito (1882) e a sujeicao do Marrocos a Franca (1912) o continente afticano foi quase comple- tamente dividido, ficando de fora da partilha apenas a Li- béria, a Etidpia, parte do Egito e do Condominio Anglo-Egipcio (veja mapa 3.1). Tanto a partilha como a ocupacao efetiva foram im- pulsionadas pela concorréncia entre varias economias industriais, buscando obter ¢ preservar mercados, e pela pressio econdmica de 1880 que desencadeou o expansionismo europeu. Como conseqiiéncia da articulagao desses processos assistimos ao imperialismo que agressivamente conquista dreas de influéncia, protetorados e colénias, em parti- cular no continente africano. Nao é dificil compreender que esse imperialismo de fins do século XIX este- ve ligado ao desenvolvimento do sistema capitalista em uma fase cuja inovacao €a forma como se articula polftica e economia na qual o Estado assumiu, deci- sivamente, o papel de parceiro ¢ interventor econdmico. O termo imperialismo foi utilizado pela primeira vez na década de 1870, na Inglaterra vitoriana, dando nome a uma politica orientada para criar uma fede- racZo imperial baseada no fortalecimento da unidade dos Estados auténomos do império. Vinte anos depois, em 1890, no decorrer das discussées sobre a conquista colonial, integrando a dimensdo econémica que permanece até os dias atuais, passou a fazer parte do vocabulirio politico e jornalistico. Se acompanharmos as exposigdes sobre o tema, podemos verificar que tan- to a palavra como a idéia sao carregadas de um conjunto de questées, além de conter uma série de premissas ideolégicas que animam intimeras polémicas. 72 LEILA LEITE HERNANDEZ » re? O MARROCOS ESPANHO! sel wen 3 Madeira® (Port) S Js. Canarias (Esp.) et, r ARGELIA, LIBIA a ron Za cierd & Ocup. brit.) ; eniTREia s SUDAO s OH ANGLO- MALIALANDIA| &. AFRICA OC:DENTAL FRANCESANZ" 77 EGIPCIO FR Bet ir SN 'z Zf(Condominio|: cunt RON CORRE PNS J sul port. 7 \ NIGERIAA $2 IMPERION senna . x Tha Ss DA ETIOPIA icon” muir SNS $ © wast cst 2 Ege MNS Zee Spt S/O | CONGO CR TAN oe eS ’ “oe 3S |BeLGa| | ies a ORIENTAL zanziBaR (Brit ° - ALEMALI GUINE ESPANHOLA 3 fe NIASSALANDIA - ANGOLA’ 5 « < Oo cans f CAN 3 CANO ECHUANGAG WALVIS ANDIA ‘S I OCEANO ae Jz ATLANTICO . UNIAO DA OCEANO PsERICA INDICO 00 SUL SUAZILANDIA (Prot. briténicos) I BASUTOLANDIA 3.1-Omapa da Africa em 1914. Rteriterio portugues Y7frerritorio [Qtertsiotrances 7 reritsriowrtinico FFF frersitorio atemio, FE) rersitsriotatiano [Diver ee [FAGE, 1978] A AFRICA NA SALA DE AULA 73 Mas é necessdrio destacar que os fendmenos ligados 20 termo imperialismo tem em comum 0 fato de se referirem a uma expansao, por parte dos Estados, carac- terizada por forte assimetria ¢ violenta dominagio, que se manifesta de formas divétéas, como: nas relagSes de preponderancia das metrépoles sobre as dreds de influéncia, protetorados ¢ colénias; no pés-1945, entre os Estados Unidos da América, a Unido Soviética e os Estados integrantes dos dois blocos hegeméni- cos liderados por cssas poténcias; ou, ainda, nas diversas facetas da politica de dominagao e explorago praticada em diferentes proporgées pelos Estados ricos em relagao aos pobres. Para explicar esses fendmenos procurou-se identificar 0 feixe de condi- goes econdmicas, politicas e ideoldgicas, segundo o qual surgiu o expansio- nismo territorial como elemento bdsico do imperialismo de fins do século XIX. Daf a origem de teorias sobre esse fendmeno que trazem consigo uma série de quest6es acerca de sua natureza, causas e extensao, bem como pro- Ppostas para a sua superacao. Do primeiro grupo fazem parte as teorias de inspiragdo marxista, predomi- nantemente econdmicas, que se dividem em classicas, tendo como representan- tes Lénin e Rosa Luxemburgo, e as formuladas no pés-Segunda Guerra Mun- dial, desenvolvidas por Baran, Sweezy, Gunder Frank e Samir Amin. Elaborada durante a Primeira Guerra Mundial, a teoria de Lénin bascia-se na tese central do primado do econémico, tendo como fundamental o pressu- posto de que o imperialismo decorre da tendéncia para a queda das taxas de lu- cro, explicada, grosso modo, como conseqiiéncia do constante aumento da con- corréncia entre os capitalistas. Para superar esse desafio haveria um crescente, concentrado e continuo investimento em maquinaria, cada vez mais aperfeigoa- da, e que, em curto espaco de tempo se torna obsoleta. Os monopélios financeiros, resultados da fusdo entre capital industrial e capital bancdrio, excedem os limites de um Estado. Para o referido autor, na tentativa de garantir o lucro, os Estados nos quais o sistema capitalista é considerado mais desenvolvido voltam-se para assegurar 0 controle de maté- rias-primas, partindo para a conquista de novos mercados do “mundo sub- desenvolvido”, dividindo entre si dreas de influéncia, o que inclui a obten- do de colénias. Com pequenas modificag6es, a andlise de Lénin foi aplicada no pés-Segun- da Guerra Mundial pelas liderangas intelectuais ¢ politicas africanas, tanto para explicar 0 colonialismo como 0 neocolonialismo, isto ¢, as relagdes entre os paf- ses formalmente independentes ¢ os Estados que continuaram a explord-los, em grande parte das vezes as prdprias ex-metrdpoles européias. 74 LEILA LEITE HERNANDEZ J& Rosa Luxemburgo explica, basicamente, que 0 imperialismo se insere num pensamento mais amplo, a teoria do subconsumo. Em resumo, ela consi- dera que, devido ao baixo poder aquisitivo da classe trabalhadora ¢ & miserabil dade do seu nfvel de vida, a produgdo corrente do mundo capitalista nado pode ser absorvida. Assim, como conseqiiéncia das “leis objetivas da acumulagao ca- pitalista”, faz-se necessdrio um mundo que absorva grande parte do que foi pro- duzido, para que o crescimento econdmico nao seja interrompido. Esses merca- dos externos seriam obtidos com a conquista de colénias. Por sua vez, os economistas americanos Baran e Sweezy, diante dos fatos histéricos surgidos no pés-Segunda Guerta, buscam superar as teorias de Lénin ede Rosa Luxemburgo, construindo um modelo tebrico capaz de identificar os elementos préprios de uma economia claramente configurada como monopéli- ca, considerada o principal fator de estimulo para o imperialismo, em particular © norte-americano. O mais inovador nessa teoria & a hipétese relativa 3 existén- cia de um surplus (conceito que substituiria 0 classico da mais-valia) referente a despesas em pesquisa e desenvolvimento tecnoldgico no setor militar, caracte- ristica considerada fundamental no ambito de um mundo bipolarizado, como 0 do pés-1945, entre Estados Unidos e Uniio Sovietica e com a presenca politi- co-militar destes no “Terceito Mundo”. No que se refere 4 questao do imperialismo, essa teoria sustenta que os paf- ses atrasados, mesmo conquistando a independéncia, continuam a ser explora- dos, como conseqiiéncia do expansionismo impulsionado pela busca de lucro crescente por parte dos pafses desenvolvidos e pelas grandes empresas multicon- tinentais. Além disso, organicamente, 0 sistema capitalista gera grandes dese- quilibrios territoriais ¢ sociais, acarretando um processo de pobreza crescente nos paises periféricos. Para 0 “capitalismo monopdlico” de Baran e Sweezy, essa situagao sé poderia ser alterada por uma guerra revoluciondria que implemen- tasse uma economia socialista. Vale observar que as andlises marxistas estabelecem uma conexao especifi- ca entre o imperialismo de fins do século XIX e inicio do XX e o capitalismo em geral ou uma sua etapa particular, Consideram que o imperialismo tem rafzes econdmicas fundamentais ¢ estabelece relagdes assimétricas de domina- Gao entre os paises, que implicam a exploragao das zonas “atrasadas” em bene- ficio dos paises capitalistas “desenvolvidos”. Do segundo grupo, composto pelos representantes da “interpretacao social de- mocrata do imperialismo”, destaca-se 0 texto bisico de Hobson, que nao & mar- xista, a despeito de ser predominantemente econémico ¢ ter como central a idéia de que o subconsumo das classes populares impulsiona a busca por merca- A AFRICA NA SALA DE AULA 75 idéia de que o subconsumo das classes populares impulsiona a busca por merca- dos externos. Além disso, associa os elementos econémicos a um importante papel da “politica de poder”,’ negando a existéncia de um nexo orginico entre capitalismo e imperialismo e, portanto, a necessidade de um processo revoluciond- rio para elimind-los. De outro lado, afirma que as tendéncias imperialistas exis- tentes no 4mbito do sistema capitalista podem ser suprimidas mediante reformas econémico-sociais e democraticas eficazes para o aumento de consumo dos traba- Ihadores e, por conseqiiéncia, favorecer o crescimento e¢ regular a absorcao da producao, rompendo com a necessidade do expansionismo imperialista. Incluem-se nessa tendéncia outros escritos tedricos como os de Kautsky ¢ Hilferding que, embora de variada orientacio politica, desenvolvem a idéia de que o imperialismo nao é uma fase necessdria do capitalismo, constituindo-se apenas uma de suas politicas, podendo ser substitufda por outra que institua uma colaboragao pacifica entre as poténcias capitalistas, no sentido de adminis- trar o subconsumo no ambito de um mercado mundial organizado. Isso signifi- ca admitir pafses até entao dele exclufdos, o que, no entanto, nao eliminaria a explorag4o estrutural nem mesmo a assimetria entre as poténcias capitalistas e os pafses atrasados, sobretudo os produtores de matérias-primas. Superar essa situagao implicaria um conjunto de reformas socialistas com a introdug’o de um controle politico do desenvolvimento econémico orientando © crescimento para o interesse geral, tanto dos paises “capitalistas” como dos paises “atrasados”. Esse “ultra-imperialismo”, portanto, ordenaria e administraria as profundas diferengas que garantem a dominagio e a exploracao entre os pai- ses € a reparticao dos territérios transformados em colénias, eliminando os conflitos das poténcias capitalistas entre si, a corrida armamentista e a guerra. No que se refere ao terceiro grupo, seus integrantes elaboraram uma “inter- pretacao liberal do imperialismo”. Significa dizer que J. A. Schumpeter, seu principal representante, apresenta um ensaio, datado de 1919, que propée ser uma andlise sociolégica do imperialismo, cujas idéias s40 totalmente opostas & tradicao marxista. Analisando com erudi¢ao os imperialismos desde a Antigui- dade, conclui que o imperialismo moderno nao decorre do modo capitalista de produgio; é o resultado de condigdes econdmicas, sociais, politicas, culturais ¢ psicolégicas préprias do pré-capitalismo, portanto, fora do dominio do desen- volvimento capitalista. Assim, o que leva & expansio imperialista sio atitudes 1. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola ¢ PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Diciondrio de politi- ca. 2. ed. Brastlia: Editora da UNB, 1986. Vale destacar que esse é um texto de leitura obrigatéria sobre o tema do imperialismo. 76 LEILA LEITE HERNANDEZ Nessa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo, segundo ele, de natureza pacifica, porquanto baseado na racionalizagao imanente que permeia todos os aspectos da vida social, seria o meio de levar 0 mundo & competi¢ao pacffica de mercado e fomentar a instituigao de procedimentos democraticos pelas préprias estruturas politicas internas dos Estados capitalistas centrai Por fim, 0 quarto grupo é composto por estudiosos como Orto Hinwzer ¢ Max Weber, que apresentam uma interpretacdo do imperialismo baseada na “Teoria da Razao de Estado”. Sua tese fundamental é que o imperialismo deri- va, em ultima andlise, de uma estrutura andrquica das relagdes internacionais, fundada no exercicio da forga, estabelecendo uma relagao desigual de poder entre os Estados, que possibilita 0 dominio dos mais fortes sobre os mais fracos, criando as condigdes necessdrias para a exploragao econdmica de uns sobre os outros. Assim sendo, a eliminagao do imperialismo dependeria da superacao do estado de anarquia internacional por meio de uma “Constituigao Federal Mun- dial”, capaz de institucionalizar os limites da soberania externa e defender juri- dicamente a independéncia das nagoes. Se na perspectiva marxista a énfase recai sobre a economia, nas perspectivas social-democrata e liberal os elementos condicionantes s4o de ordem politica, sa- lientando-se o papel das forgas democraticas e progressistas capazes de encampar reformas, nas quais o intervencionismo estatal surge como dado imprescindivel. Seja como for, um ponto une todas as explicagées tedricas, qual seja, 0 de- safio de compreender e sugerir modos de superar a perversa desigualdade cons- titutiva do imperialismo. ns imperialismo As relagées entre 0 expansionismo territorial ¢ 0 imperialismo, nas concep- O “novo ges apresentadas, nao incorporam a dimensio das relagGes histéricas especifi- cas, que cria quest6es para as teorias de cardter geral, impondo ao pesquisador estabelecer um didlogo dos textos com a realidade social em que se inserem, pressuposto basico para verificar sua adequagio. Hobsbawm, enfrentando o desafio, efetua uma pesquisa na qual analisa a conjuntura dos anos 1890 a 1914, considerando um conjunto de fatores hist6- ricos. Significa dizer que reconhece que a divisio do globo tem uma dimensio econémica, mas destaca a importancia do poder politico ¢ dos aglutinantes ideo- ldgicos préprios do “novo” imperialismo. Feita essa observagao, € necessdrio ter clareza sobre a conexao intrinseca entre 0 expansionismo e a conquista do mundo nao-ocidental, reconhecendo a A AFRICA NA SALA DE AULA 7 dimensao econémica desse processo. Nesse sentido, é importante registrar os elementos préprios de um nitido quadro de crescimento econémico como ates- tam alguns indicadores. Como é sabido, entre 1870 ¢ 1914, as exportagées eu- ropéias duplicaram; a navegacio mercante mundial passou de 16 para 32 mi- Ih6es de toneladas e a rede ferrovidria mundial aumentou de 200 mil para 1 milhao de quilometros as vésperas da Primeira Guerra Mundial.” Também ¢ importante observar o crescimento de uma rede cada vez mais densa de transagdes econémicas ¢ comunicagées, além do movimento de bens, dinheiro e pessoas, ligando nao s6 os paises desenvolvidos entre si ¢ estes a0 mundo nio desenvolyido como, por exemplo, 2 bacia do rio Congo e a regizo do Cabo, na Africa austral. Esse nitido quadro de crescimento econémico cria possibilidades, ao mes- mo tempo que gera novas necessidades que levam ao expansionismo territori- al. A economia internacional caracteriza-se pela concorréncia entre varias eco- jiownilas tnd astriali, rodas apoiadasveni Un désenval vinienite teenolOpied -Guie necesita de matérias-primas como o petrdleo ¢ a borracha, enconuados fora do continente europeu. Basta lembrar que o petrélea, que vinha predominan- temente dos Estados Unidos e da Ruissia, passa a ser buscado nos campos petro- liferos do Oriente Médio, regiéo que se torna, cada vez mais, objeto de intenso confronto e conchavo diplomatico. Quanto a borracha, produto exclusiva- mente tropical, era extraida com uma exploragéo atroz de nativos nas florestas equatoriais do Congo e da Amazénia e, mais tarde, extensamente cultivada na Malasia. Também é preciso ter em conta que as novas induistrias elétrica e de moto- res precisavam de cobre, sendo seus maiores produtores pafses aos quais se con- vencionou chamar no final de 1950 “Terceiro Mundo”, como o Congo belga, a Rodésia do Norte, o Chile ¢ o Peru. Por sua vez, os metais preciosos como o ouro ¢ os diamantes passam a ser explorados na Republica da Africa do Sul. Em contrapartida, algumas teorias sobre o imperialismo apdiam-se no pres- suposto do subconsumo. No entanto, 0 que se verifica empiricamente é que 0 proprio desenvolvimento desigual do sistema capitalista propiciou um consumo de massas nas metrépoles, criando um mercado em rdpida expans4o para os “bens coloniais”, isto é, para o cha, o café, 0 agticar, 0 cacau e derivados e os dleos vegetais, que se tornaram dispontveis gragas as técnicas de conservacio ¢ & 2. HOBSBAWM, Eric, J. “A era dos impérios”, fu: A era dos impérios: 1875-1914, Rio de Janciro: Paz ¢ Terra, 1988. p. 87-124. A leitura cuidadosa desse capitulo é essencial para 0 necessério aprofundamento das iddias aqui apresentadas. 78 LEILA LEITE HERNANDEZ acticar, cacau e derivados e dleos vegetais que se tornaram dispontveis gracas &s técnicas de conservacio e 4 maior rapidez nos transportes. Como conseqiiéncia, as plantations e os comerciantes e financistas tornaram-se importantes pilares das economias imperiais. Por sua vez, também o pressuposto genérico da pressao do capital por in- vestimentos mais rentveis fora do territério europeu merece reparos quando consideradas algumas particularidades histéricas. Em outras palavras, é verdadeiro que houve um fluxo de capital aplicado nas colénias. Mas nao é menos verda- deiro que ele se concentrou apenas em alguns territérios ultramarinos. Conside- remos, por exemplo, o que ocorreu com a Gra-Bretanha que destinou a maior parte do seu montante de capital as colénias de povoamento branco ¢ com ré- pido desenvolvimento como Canada, Austrélia, Nova Zelandia e, no caso do continente africano, a Africa do Sul. Cumpre observar, no entanto, que se fizermos uma avaliagao relativa a0 conjunto de elementos econdmicos considerados ser4 possivel reconhecer que 0 ponto crucial da situagao econémica global foi que certo ntimero de economias desenvolvidas se deu conta, simultaneamente, da necessidade de novos merca- dos. obtendo algumas “portas abertas” no mundo subdesenvolvido. ou procu- rando conquistar e dominar territérios que garantissem as economias nacionais ¢ européias uma posicao monopolista ou, ao menos, vantagens bastante subs- tanciais. E evidente que estas foram fortes razSes para que se promovesse a re- particao das regides nao ocupadas do “Terceiro Mundo”, processo, sobretudo apés 1879, francamente reforgado por um conjunto de politicas protecionistas. As colénias nesse contexto representavam pontos estratégicos em espa¢os geopoliticos, como as Africas ocidental e central, necessdrios para a penetragio européia. De fato, os interesses econédmicos passaram a operar articulados a agées politicas concretamente voltadas para o recorte do mapa da Africa. Ambos integram um projeto de forte significado simbdlico que, justificando e legitimando a exploragao e a dominagao européias, pde em curso o glorioso e herdico empreendimento de conquistar terras exdticas habitadas por gentes sel- vagens, de pele negra, carentes de civilizagao.’ As experiéncias histéricas efetivas demonstraram que 0 “novo” imperialis- mo dispunha de mecanismos ideolégicos como as exposicdes universais, verda- deiras “vitrines do progresso” que levavam as massas a se identificar com o Estado ¢ a na¢io imperiais, conferindo justificagao e reconhecendo legitimidade A missio civilizatéria européia na Africa. 3. HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios, op. cit, pp. 105-6. A AFRICA NA SALA DE AULA 79 A Exposigao Universal de 1889 em Paris. Cartao-postal da Brasserie d’Arcueil, Paris. Contudo, essas consideragées referem-se a0 protagonismo europeu no im- perialismo do final do século XIX, colocando em relevo os temas da partilha e da conquista. Mas ignoram o protagonismo africano do inicio de um dos perio- q 18) go! dos mais violentos da histéria recente. Impde-se portanto registrar a perspectiva ip Ps i Persp africana, uma perspectiva que entreolha a européia, mas dela est4 certamente Pi separada pelas acentuadas diferengas de suas posigées polftico-ideoldgicas. A partilha ea conquista na perspectiva africana O pensamento africano sobre a partilha e a conquista apresenta uma composi¢ao de idéias fiel & pratica politica de negar a do- minagao da civilizagéo branca, ocidental, sobre 0 mundo ne- gto, o “inferno tenebroso”, isto é, a Africa, Ciosas de seu prota- gonismo na histéria, se por um lado as elites culturais afticanas aceitam o conjunto de elementos econdmicos como eixo impulsionador do expansionis- mo territorial europeu, acrescentam a esse discurso dois elementos fundamen- tais, a critica ao etnocentrismo europeu € ao racismo ¢, por outro lado, 0 tema da resisténcia africana. Assumindo um “racismo anti-racista’,* estudiosos africanos como o nige- tiano Godfrey N. Uzoigwe sao responséveis pela historiografia mais recente 4. A expressio “racismo anti-racista” foi cunhada por Jean-Paul Sartre em Reflesdes sobre 0 racismo. Sao Paulo: Difusio Européia do Livro, 1960. p. 111. 80 LEILA LEITE HERNANDEZ sobre a partilha e a conquista, comprometidos com a preocupa¢ao em nao se deixarem levar pelas representagdes construidas pelos ocidentais.” Nesse quadro de discusséo ¢ fundamental ressaltar a importancia histérica da postura de criti- ca contundente com que os pesquisadores africanos se debrugam ao examinar a historiografia ocidental sobre 0 tema. Nao é outra a razdo de destacarem as principais teorias psicolégicas, quais sejam, o darwinismo social, o cristianismo evangélico ¢ 0 atavismo social, evidenciando sua conivéncia com uma dispo- sigio para 0 dominio ¢ a exploragio, articuladas a um imagindrio coletivo apri- sionado pela crenga em uma supetioridade racial e cultural. Em relagéo ao “darwinismo social”, os africanistas ressaltam que a luta pela existéncia nada mais € do que a dominagao da “raga sujeita” ou “nao evoluida” pela “raga superior”, segundo o processo de “selegao natural”, no qual o “mais fraco” é submetido pelo “mais forte”. O simplismo da explicacao deriva de uma leitura que se pretendia social da obra de Darwin, A origem das espécies por meio da selecéo natural ou a conservacao das ragas favorecidas na luta pela vida, publi- cada em lingua inglesa em 1859. Assim, a classificagao das ragas em “superiores” ¢ “inferiores”, recorrente desde o século XVII, ganha uma falsa legitimidade baseada no mito iluminista do saber cientifico, coincidindo com a necesséria justificativa de que a domina- cao ¢ a exploragao da Africa, mais do que “naturais” ¢ inevitéveis, eram “neces- sdrias” para desenvolver os “selvagens” africanos, de acordo com as normas € os valores da civilizagao ocidental. Portanto, essa “teoria” articula a questao politi- ca ao etnocentrismo, apresentando-os como simultaneos dada a correspondén- cia construfda entre ambos. No caso do “cristianismo evangélico”, a partilha da Africa era explicada como conseqiiéncia de um impulso “missionario” e “humanitario”, orientado para “regenerar” os povos africanos. O movimento missionario, sobretudo dos luteranos alemaes ¢ da diversidade de calvinistas evangélicos a servigo da Socie- dade Missiondria de Londres, atuantes na Serra Leoa, na Costa do Ouro, na Nigéria e na Libéria, e das misses catdlicas na bordadura do Senegal, clamava a conquista da Africa pela Europa como um meio de pér fim & escravatura € a0 massacre dos negros, ao mesmo tempo que pretendia instaurar as condigdes necessdrias para “regenerd-los”, isto é, tornd-los cristaos e civilizados. Por fim, a teoria do “atavismo social”, E uma leitura especifica de uma das conclusdes apresentadas por Joseph Schumpeter de que “o imperialismo é um 5. Godfrey N. Uzoigwe € especialista em historia da Africa Oriental, tendo como seu principal ob- jeto de estudo o reino bunyoro de Uganda. Ver: “Partilha européia ¢ conquista da Africa: apa- nhado geral”, In: BOAHEN, op. cit. p. 25-42. A AFRICA NA SALA DE AULA 81 atavismo”, centrado em uma pratica politica na qual o individuo tem 0 desejo natural de dominar 0 préximo pelo simples prazer da dominasio. Estendida escala de um povo, essa idéia se transforma no argumento bdsico para explicar o imperialismo como resultado de um egofsmo nacional coletivo préprio, coman- dado por um Estado pré-capitalista, que se expande ilimitadamente pela forga. Schumpeter ressalta que o capitalismo, por sua vez, seria “antiimperialista”, um sistema de natureza benevolente “dirigido por empresérios inovadores”. O darwinismo social e 0 cristianismo evangélico, cada qual a seu modo, ex- plicam o expansionismo territorial utilizando-se do racismo e do etnocentrismo, baseados no espirito de catequese ¢ de missfo ¢ na crenga numa tarefa civiliza~ téria, capazes de converter os africanos ao cristianismo e A civilizacio ocidental. J& Schumpeter, numa abordagem aistérica, deixa transparecer grandes dificul- dades. A primeira é identificar em quais circunstancias seriam alterados “as vontades” ¢ os “vinculos psicoldgico-culturais” responsdveis pelo imperialismo. A segunda, por sua vez, é distinguir 0 “ponto de ruptura’”, isto é, 0 momento no qual o pré-capitalismo se transforma em capitalismo, superando sua faceta imperialista. Portanto, as idéias contidas nas teorias apresentadas mostram-se suficiente- mente preconceituosas e equivocadas, sendo, por isso, deixadas de lado no pro- cesso de construgao de uma “teoria da dimensao africana”. No que se refere as teorias diplomaticas sustentadas pelo primado da politi- ca, a “teoria do prestigio nacional”, a “teoria do equilibrio de forga” e a “teoria da estratégia global” apresentam interpretagées tao discutfveis como as das “teo- rias psicoldgicas”, embora se apdiem em alguns fatos que nao podem ser des- considerados. A “teoria do prestigio nacional” explicava os diferentes expansionismos da Franga, da Gra-Bretanha, da Russia, da Alemanha, da Itélia, de Portugal e da Ho- landa como compensagao de perdas dentro do préprio continente europeu ou ainda como forma de manter ou restaurar o prestigio nacional com ganhos no ultramar. Seu principal mentor, Carlton Hayes, argumenta: A Franga procurava uma compensacao para as perdas na Europa em ganhos no ulera- mar, O Reino Unido aspirava compensar seu isolamento na Europa engrandecendo ¢ exaltando o Império Britanico. A Russia, bloqueada nos Balcas, voltava-se de novo para a Asia, Quanto & Alemanha e & Itdlia, queriam mostrar ao mundo que tinham 0 direito de realgar seu prestigio, obtido & forga na Europa por facanhas imperiais em outros continentes. As poténcias de menor importancia, que nao tinham prestigio a defender, If conseguiram viver sem se langarem na aventura imperialista, a nao ser 82 LEILA LEITE HERNANDEZ Portugal ¢ Holanda, que demonstraram renovado interesse pelos impérios que ja pos- suiam, esta tiltima principalmente, administrando o seu com redobrado vigor. ° Se esses exemplos pecam por equivocos advindos de nao serem levadas em conta as particularidades do expansionismo de cada um desses paises, anun- ciam, no entanto, um argumento pragmaticamente valido para alguns casos como a Espanha e a Alemanha, cujas conquistas nao tiveram importancia eco- némica, muito menos estratégica, podendo ser explicadas como uma busca por prestigio nacional. Ha de se registrar também a “teoria do equilibrio de forgas” que tem como principal representante F. H. Hinsley ¢ é calcada no “primado da politica exter- na”. O pressuposto é de que, no ambito internacional, a relagao entre os paises € caracterizada pelo dominio dos mais fortes sobre os mais fracos, com a predo- minancia absoluta da forga. Assim, nao haveria um real espaco para uma politi- ca de limitagéo da soberania, podendo as atribuigdes as rivalidades levar a conflitos generalizados. Buscando uma convivéncia calcada na gestao pacifica das fricgdes e dos conflitos de diversos graus de intensidade para garantir uma “verdadeira e au- téntica” ordem internacional estavel, a safda apontada seria 0 reforco do pode- rio de cada pais mediante a conquista territorial. Esse argumento autojustifica- dor explicaria o imperialismo préprio de fins do século XIX. Ora, essas duas “teorias diplomédticas” tornam algumas observagées necess4- rias. A primeira é que restringem o imperialismo a um protagonismo exclusiva- mente europeu, ignorando a totalidade que envolve o expansionismo territorial, sobretudo com a conquista de coldnias. Por sua vez, desconsidera 0 processo histérico de “roedura” e a desestabilizagao progressiva do continente africano provocada pelos paises europeus desde o século XV, limitando temporalmente 0 expansionismo ao seu apogeu, isto é, 4 conjuntura entre os anos de 1875 a 1914, que configura o “novo” imperialismo. Quanto a terceira observagao, diz respeito ao fato de as referidas “teorias” reduzirem o imperialismo a partilha eu- ropéia, ignorando o lugar que as lutas de resisténcia tém na hist6ria do imperia- lismo de fins do século XIX, na Africa. Por fim, € necessdrio tornar explicita a “teoria da estratégia global”, cujos principais elaboradores, Ronald Robinson e John Gallagher, tem como hipéte- se central o fato de que a partilha e a conquista sao respostas aos “protonaciona- 6. HAYES, C. J. H. “A generation of materialism, 1871-1900". Jn: UZOIG' Es op. cit, p. 48. A AFRICA NA SALA DE AULA 83 lismos” africanos, apresentados como “lutas romanticas e reaciondrias” que co- locavam em risco os interesses estratégicos globais dos paises europeus. Ora, essa idéia ¢ historicamente equivocada, em primeiro lugar porque as exploragdes do continente africano foram cont{nuas desde o século XV, atin- gindo um significativo crescimento a partir do final do século XVIII, com a aco de exploradores que buscavam rasgar 0 desconhecido interior do conti- nente A procura do curso dos rios das principais bacias hidrograficas como as do Niger, Nilo, Congo ¢ Zambeze. Em segundo lugar, a partilha que se segue 4 Conferéncia de Berlim atende as disputas de Estados europeus e nao surge como resposta de protonacionalismos africanos. Em terceiro lugar, as resistén- cias ocorreram a comegar pela partilha e pela conquista, precipitando a con- quista militar efetiva. E importante ressaltar que, de uma ou outra forma, as “teorias diplomati- cas” atribuem & Africa um papel de mero apéndice da histéria da civilizagao ocidental. E bem verdade que algumas pesquisas constituiram-se importantes excegoes a essas tendéncias, como as obras de J. S. Keltie, em 1893, ¢ a de George Hardy, em 1930, por considerarem a partilha parte de um lento proceso de conquista de cerca de quatrocentos anos, acentuado pela crescente concorréncia econémica entre os paises europeus. Também reconhecem a importancia das lutas de resisténcia para 0 processo de conquista o que implica a efetividade da burocracia colonial como instituigao politica. Nessa esteira de pensamento, em 1956 foi publicado o livro Trade and politics in the Niger Delta, de K. Onwuka Dike, que passou a ser uma obra clissica sobre a partilha e a conquista, por consideré-las decorréncia do conta- to entre civilizac6es e culturas diferentes. Coube entretanto a A. G. Hopkins apresentar uma “interpretacao africana” mais histérica do tema, na medida em que propés suma articulagao entre as componentes externas e internas do continente africano. Com efeito, em uma de suas passagens mais explicitas, Hopkins afirma que: Por um lado, é possivel conceber regises onde 0 abandono do comércio de escravos se deu sem choques nem perda de rendimentos ¢ onde as tensdes internas foram controladas. Em casos tais, a explicaggo do retalhamento colonial deverd salientar os fatores externos, como as consideragées mercantis e as rivalidades anglo-france- sas. No outro extremo, é possivel imaginar casos em que os chefes indigenas adota- ram atitudes de reag4o, nao hesitando em recorrer a métodos predatérios, na tenta- tiva de manter os rendimentos, e em que os conflitos internos eram pronunciados. Nesses casos peso maior deve ser dado, na andlise do imperialismo, as forgas de de- 84 LEILA LEITE HERNANDEZ sintegragao ativas no seio das sociedades africanas, sem negligenciar, todavia, os fa- 7 tores externos. Em sua versio mais explicita da perspectiva africana, o nigeriano Godfrey Uzoigwe pretende conferir dinamismo sociopolitico ao continente africano. Reafirma como fundamental a énfase dada a esfera econdmica; nega que a partilha e a conquista tenham sido inevitaveis para a Africa; enfatiza que a partilha ¢ 0 marco no processo de “roedura” do continente; e ressalta as especifi- cidades do processo histérico registrando o papel desestabilizador dos entrepos- tos comerciais, dos estabelecimentos missionarios, da instalagao de colénias e protetorados e da ocupacao de zonas estratégicas. Além disso, confere importancia fundamental as formas de resisténcia, iden- tificando-as como de “confronto, alianga, ¢ aceitagao ¢ submissao”. Sobretudo quanto as duas iltimas, Uzoigwe explica que se constituem respostas a tratados comerciais ¢ politicos, os quais exerceram uma influéncia decisiva para a deses- tabilizacao de varios espacos geopolfticos do continente. Por isso, realga tanto 0 papel dos Estados europeus acerca da partilha da Africa como a importancia para a conquista dos tratados entre os dirigentes europeus e os soberanos africa- nos, af incluidos os tratados comerciais com as sociedades drabes, a obtencio de garantias diplomaticas e a politica de melhoramento das comunicagées mariti- ma, fluvial ou terrestre. E importante observar que esse conjunto de instrumentos permite ao capi- talismo europeu extrait produtos necessérios & induistria, desequilibrar as econo- mias domésticas ¢ influenciar os sistemas politicos africanos. Em particular, os dois tiltimos aspectos sao estratégicos para a transformagao dos espacos africa- nos em 4reas de influéncia, protetorados e colénias européias. Tendo em vista os tratados firmados por dirigentes europeus e africanos na fase imediatamente posterior & Conferéncia de Berlim, é possfvel distinguir entre os que se referiam & regulaco de atividades econémicas e aqueles que ti- nham um cardter predominantemente politico. Exemplo significativo de trata- do econdmico foi o realizado por Cecil Rhodes que, pela carta da British South Africa Co., de 1888, passou a ter plenos poderes do Transvaal ao Congo e de ‘Angola a Mocambique. Sua estratégia teve inicio com a obtengio do reconheci- mento pelo chefe ndebele, Lobengula, do privilégio de explorar as minas de ouro do seu pequeno territério. Em troca, Rhodes empenhou sua palavra em dar prote¢ao ao povo ndebele diante dos béeres do Transvaal. Mas, enquanto 7. HOPKINS, A. G. “An economic history of West Afric’, In: UZOIGWE, op. cit., p. 51. A AFRICA NA SALA DE AULA 85 durou o controle dos ingleses, ou seja, até 1923, foram intimeros e sangrentos os confrontos entre europeus ¢ povos africanos dessa extensa regiao. Havia, simultaneamente, os tratados politicos celebrados por representan- tes de governos europeus ou por organizacées privadas, pouco depois repassa- dos aos seus respectivos governos. Quanto aos mandatérios africanos, estes se submetiam a exclusividade do tratado assinado, por meio do qual renunciavam a soberania do territério sob seu governo, em troca de prote¢ao de determinada nagao européia da qual passavam a ser protetorados. Resguardadas as diferencas de tempo e lugar, é possivel considerar basica- mente trés razdes que levavam os africanos a firmar tratados politicos, traduzi- dos em aliancas, dando ensejo para que fossem registrados exemplos de estratégias de “alianga e aceitagao” perante a conquista. A primeira é instituir relagdes com os europeus buscando obter vantagens politicas em relagdo aos seus vizinhos. Na Africa Oriental Alema (atual Tanzania), os mareales e os kibangas, grupos que habitavam a regiao préxima dos montes Usambra ¢ Kilimanjaro, firmaram tratados com os alemies na expectativa de, com a alianga destes, derrotar povos inhos, seus inimigos. Jé a segunda razio revela que o aspecto doméstico ¢ sig- icativo, e os tratados e as aliangas com os europeus tornam-se um recurso usual para o soberano manter a obediéncia de seus stiditos. Um exemplo escla- recedor foi o de Ahmadou Seku, que estabeleceu uma alianga com os franceses, mantendo o controle dos bambaras, mandingas ¢ fulanis, em troca do forneci- mento de armas. Tendo reconhecida sua soberania, os franceses obtiveram re- galias comerciais. No entanto, firmado 0 acordo, os franceses nao sé apoiaram uma insurreigao bambara como, em 1889, atacaram o soberano, obrigando-o a recorrer 4 forga das armas. Dois anos depois, dominado, Seku passou a fazer parte do império francés. Por fim, a terceira razao é a obtengao da salvaguarda da soberania, ameagada por outras nagées européias. Um exemplo é 0 de Lo- bengula, rei dos ndebeles, que estabeleceu relagdes amistosas com os ingleses em detrimento de uma alianga com os africinderes, os portugueses ¢ os ale- mi§aes, visando salvaguardar a soberania e a independéncia de seu “reino”, que hoje corresponde a grande parte do Zimbabue. Pode-se argumentar muito bem que o resultado dos tratados, obtidos ou nao fraudulentamente, convergiu para a perda da soberania dos espagos geopo- Ifticos africanos. E importante registrar também os tratados bilaterais europeus, na medida em que as circunstancias nas quais sao feitos constituem-se em uma das razdes centrais para a eclosao das lutas de resisténcia africanas. Conforme se referiu no capitulo anterior, o século XIX encerrou-se com a partilha da Africa, prati- 86 LEILA LEITE HERNANDEZ camente concluida gracas a um conjunto de tratados, acordos e convencées bilaterais, realizados nas capitais curopéias, regulamentando as esferas de in- fluéncia no continente africano. No seu conjunto, os tratados delimitavam as grandes zonas de influéncia, embora no interior de cada uma delas as frontei- ras tivessem sofrido deslocamentos em razio de tendéncias centrifugas e cen- tripetas. Evidentemente, os estadistas europeus estavam perfeitamente cénscios de que a definico de uma es- fera de influencia em um tratado subscrito por duas nagées européias nao podia legi- timamente atingir os direitos dos soberanos africanos da regito afetada. Na medida em que a influéncia constituia mais um conceito politico do que juridico, determina- da poténcia amiga podia optar por respeitar esse conceito, enquanto outra, inimiga, nio o levaria a sério.® No que se refere ao entendimento contraditorio que afticanos ¢ curopeus tinham dos tratados, acrescido da preciria efetividade da resolugo da Confe- réncia de Berlim sobre a ocupagao territorial, era clara a tendéncia entre 1885 1902 de potencializar as situagdes de conflito. Significa dizer que houve reacio de confronto & conquista, ou seja, que os afticanos nao se resignaram pacifica- ali- mente a ela, defendendo seus costumes e interesses vitais como a soberani berdade e a independéncia. Essa observagio, basica para a interpretacao africana da partilha e da conquista, vale tanto para as estruturas politicas centralizadas (“Estados” centralizados), como na maior parte da Africa Ocidental, por exem- plo, quanto para as sociedades cujas estruturas politicas sao descentralizadas, como foi o caso dos khoi-khois, que nem por isso deixaram de reagir contra os béeres na Africa do Sul, durante os séculos XVII ¢ XVIIL Some-se o fato de algu- mas sociedades nao “estatizadas” (cujas estruturas politicas cram organizadas, mas nao complexas) como a dos agnis, dos haules ¢ dos ibos, terem marcado a sua presenga nesse capitulo da histéria africana pela guerra de guerrilha.’ A re- sisténcia africana, por sua vez, precipitou a conquista militar que esteve, em graus variados, marcada pelo despropésito e pela itracionalidade do exercicio da violéncia. Para a efetividade da conquista concorreu a supremacia européia, de- corrente do conhecimento geofisico, econémico e militar dos diferentes territé- rios do continente afticano, gracas as atividades dos missiondrios ¢ exploradores; o desenvolvimento da tecnologia médica, oferecendo drogas de uso profilitico 8. UZOIGWE, op. cit. p. 58. 9, THORNTON, J. “The state in African historiography: a reassessment”. Ufahamu, vol. IV, 197. p. 20, A AFRICA NA SALA DE AULA 87 contra varias doencas, como a maléria; ¢ os seus recursos materiais, sobretudo bélicos e financeiros. Vale a pena apresentar um sumério com alguns exemplos que conferem contetido histérico a essas afirmagées, destacando a alternancia dos tipos de resisténcia, com os africanos utilizando-se da diplomacia, respondendo com luta armada 4 invasao militar reagindo com a combinacao de ambas as estraté- gias, o que, alids, caracterizou a grande maioria das resisténcias no continente. Sob a fora das circunstancias, a diplomacia foi um tipo de resistencia pouco encontrado na sua forma pura. Um dos raros exemplos ocorreu no oeste do Quénia, onde Munia, o “rei” dos wangas, para se fortalecer no conflito com 08 povos vizinhos, itesos e luos, fez um acordo diplomatico com os ingleses. Como resultado, os povos africanos foram divididos, possibilitando que os eu- ropeus alargassem a sua influéncia em toda a regio, criando as condigées necessdrias para o estabelecimento de seu poder colonial em Uganda. De um ponto de vista comparativo, parece haver poucos motives para du- vidar da hipdtese de que foram em muito maior mimero as conquistas que deram ensejo a uma “luta militar efetiva”, em particular no nordeste do conti- nente, onde sudaneses, egipcios ¢ somalis, morreram em grande ntimero em sangrentas lutas contra tropas coloniais britanicas. Islamizados, os povos dessa regido lutavam ao mesmo tempo pela soberania de seus territérios ¢ pela sua fé, j4 que acreditavam ser inaceitével que mugulmanos se submetessem politica- mente a uma poténcia crista. Também a ocupagéo dos espacos geopoliticos da Africa Ocidental, entre os anos 1880 ¢ 1900, foi marcada por lutas sangrentas, destacando-se tanto as campanhas francesas no Sudao Ocidental (hoje, Mali), na Costa do Marfim e no Daomé (atual Benin), como as campanhas britanicas no Ashanti (atual Gana), na regiao do delta do Niger (atual Nigéria) e no norte da Nigéria, entre 1895 e 1903. E possivel afirmar que, no geral, houve uma tendéncia de a reagio africana contra a Franca ser mais violenta, uma vez que esse pais europeu optou por conquistar territérios predominantemente pela forga. A esta faceta militar asso- ciava-se 0 fato de as regides ocidental e equatorial africanas terem sofrido um processo de islamizacao, rejeitando fortemente o dominio branco dos “infiéis”, considerando-o como uma imposicéo intolerdvel. O exemplo mais classico de resisténcia armada 4 Franga foi o da Senegambia. Os africanos do império uni- ficado mandinga, sob a lideranga de Samori Touré, em 1882, contavam com um poderoso exército, cuja homogeneidade ¢ coesio permitiram que ganhasse um caréter praticamente nacional. Era também um exército bem-equipado, de 88 LEILA LEITE HERNANDEZ acordo com os moldes europeus, com armas modernas, adquiridas com a venda de marfim e ouro do sul da Costa do Marfim, e com cavalos, obtidos pela troca de escravos na regiao do Sael. Mas o poderio francés extingiiiu a luta quando capturou, em 1892, Samori Touré, deportando-o para o Gabao. Dessa forma, pés fim a resisténcia armada, conhecida como a mais duradoura das campanhas contra um mesmo adversdrio em toda a histéria da conquista do Sudao francés. Em contraste com os franceses, é consensual que a a¢ao britanica nao foi, no seu conjunto, basicamente militarizada. Os seus processos de conquista, em niimero considerdvel, foram advindos de negociago pacifica, da “diplo- macia”, sendo concluidos com tratados de protecio, como foram os casos do norte de Serra Leoa e do norte da Costa do Ouro, além de diversos pontos do pais Ioruba. Apesar disso, nao faltaram campanhas britanicas com 0 emprego da forga, como no pafs Ashanti, onde os conflitos surgiram em torno de 1760, culmi- nando, em 1824, com um violento choque militar. Ainda assim, os ashantis sé foram decisivamente derrotados cingiienta anos mais tarde, o que, alids, levou o seu “império” a desintegracao. Um segundo exemplo é 0 do “reino” do Benin que, embora tenha como marco de sua conquista a assinatura de um tratado de protetorado, em 1892, ainda assim procurava resguardar parte de sua soberania. A forcada submissao do “reino” se deu em 1897, quando os britanicos, sob o pretexto da morte do seu consul interino e de mais cinco compatriotas, enviaram contra 0 “reino” do Benin uma expedigéo de cerca de 1.500 homens, que pilharam os preciosos bronzes dos iorubds e incendiaram a capital. Processo semelhante ocorreu no delta do Niger, onde foram efetuados trata- dos de protetorado com a maioria dos chefes. Houve, no entanto, os que mani- festaram um descontentamento radical, desafiando as autoridades britanicas. Foi © caso de Jaja de Opdbo, cuja luta implicou um confronto em torno do paga- mento de impostos cobrados por uma empresa britanica. A medida que 0 proces- so de polarizacao avangava, a represilia tornou-se violenta € o seu alvo mais defi- nido. Atraido para uma emboscada, Jaja de Opdbo foi preso, julgado e deportado para as Antilhas. A dimensao simbélica desse ato teve a particularidade de ser usada pelos ingleses para persuadir os outros “Estados” do delta do Niger a se submeterem pacificamente as condigdes administrativas impostas. Também na Africa oriental, no Quénia, os nandis ofereceram uma oposi- ao militar 4 construcao de uma estrada de ferro em seu territério. Foi a mais prolongada das resistencias ao Império Britanico nessa regiao, estendendo-se de 1890 a 1905, quando seu chefe, atraido para negociacées, foi traigoeiramente A AFRICA NA SALA DE AULA 89 assassinado. Enfraquecida, a resisténcia dos nandis acabou vencida apés quinze anos de encarnicada luta, que reuniu diversos clas divididos em unidades terri- toriais, aproximando-os da organizagio de um exército regular europeu. Por sua vez, na Africa Oriental Alema, a reacao contra a conquista contou com o emprego da forca de aliangas diplomaticas com varios povos, tanto no interior quanto no litoral. Jé no Congo, na regiao fronteiriga com Angola, entre outros povos, os combativos chokwes, até sucumbirem ao dominio belga, resis- tiram com tenacidade por cerca de vinte anos, isto é, de 1890 a 1910, infligin- do pesadas perdas & Force Publique. Quanto ao sul de Angola, os luandas ¢ os diversos grupos da regiéo de Gambo aperfeigoaram suas técnicas de guerrilha, utilizando-as com freqiiéncia e vigor contra 0 colonizador portugués. De certo modo, esses embates assemelham-se ao que havia sucedido, na Africa do Sul, mais de dois séculos antes da Conferéncia de Berlim. Desde 1652 ja havia sido fundada a Colénia do Cabo pela Companhia Holandesa das Indias Orientais, visando estabelecer na regido uma estagio de reabastecimento para 0s seus navios. No século XVIII, os béeres (sobretudo migrantes holandeses) adentraram o interior, cacando e comerciando gado com os khoi-khois ¢, por vezes, tornando-se eles prd- prios criadores de gado. Seus descendentes vieram a chamar-se africinderes. Nos seus deslocamentos para leste em diregdo 4 zona de maior pluviosidade, onde fun- daram Natal, entraram em confronto com povos africanos locais, expulsando os boschimanes, dominando ou dispersando os khoi-khois (hotentotes para o coloni- zador) e, em 1779, guerreando com os bantos nas conhecidas “guerras cafres”, as- sim chamadas porque pela jurisprudéncia islamica os bantos eram considerados pa- gaos, nao tendo direitos em um “Estado” islamico. Entre 1793 e 1815, durante as guerras anglo-francesas, a Cidade do Cabo, apreciada por sua posicao estratégica de entrada para 0 oceano Indico, passou do dominio holandés para o inglés (1795). Esse acontecimento marcou o inicio de uma série de embates violentos entre béeres ¢ ingleses e béeres e povos afri- canos, como os khoi-khois, os sans, os xhosas, os upondos, os tembus € os mfengus e, mais tarde, os zulus. Em 1852 e 1854 a Gra-Bretanha reconheceu duas colénias de povoamento branco de lingua holandesa, a Reptiblica do Transvaal e¢ 0 Estado Livre de Orange, como independentes. Mas, pouco mais tarde, com a descoberta do ouro ¢ dos diamantes, os britanicos impuseram o seu dominio com uma politi- ca de confronto, tanto aos africinderes como aos zulus, ndebeles, bembas ¢ yaos, até 1947, quando ocorreu a independéncia da Uniao Sul Africana, que passou a se chamar Reptiblica da Africa do Sul. 90 LEILA LEITE HERNANDEZ Concluindo, € possivel afirmar que todos esses exemplos, embora em pe- queno niimero, sio suficientes para indicar que tanto a violéncia como as formas de resisténcia diante da perda de soberania, independéncia e liberdade desvendam 0 protagonismo africano perante a partilha e a conquista. Mas os exemplos evidenciam também a impoténcia bélica dos afticanos ante a supre- macia européia. Como bem resumiu o poeta inglés Hilaire Belloc: “Acontega 0 que acontecer, nés temos a metralhadora, ¢ eles nao”." A dominagio fundada no exercicio da violéncia fisica. Arte afro-portuguesa encontrada no Benin, no século XVI. 10. Apud BOAHEN, op. cit., p. 30.

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