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A construção dos Heróis e a luta de libertação em Moçambique (1975—2015).

Lutas pela
memória numa história de silêncios.

Albert Farré. CROME-CES.

Em 2015 foi publicada uma coletânea de discursos do presidente Armando Emílio Guebuza
intitulada Moçambique: Pátria de Heróis (Matusse et al. 2015). Ao longo de duas legislaturas
(2005-2014), os heróis tornaram-se uma peça fundamental para transmitir o projeto político
liderado por Guebuza (Posse 2015), e o livro referido pode ser entendido como o culminar de
uma estratégia comunicativa baseada nos heróis.

Este artigo analisa como a figura do herói tem sido publicamente representada desde a
independência até o fin da presidência de Armando Guebuza, em 2014. Com algumas
discontinuidades, os heróis têm sido um elemento importante da projeção pública de uma
narrativa oficial sobre a luta armada de libertação. Os dois primeiros líderes da Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo) tiveram uma morte prematura: Eduardo Mondlane foi
assassinado durante a luta de libertação nacional, a 3 de fevereiro de 1969; e Samora Machel
faleceu num estranho acidente de avião quando regressava de uma reunião internacional em
Lusaka, a 19 de outubro de 1986 (Douek 2017). Eles são os heróis com mais destaque no
espaço público, e a maneira como a sua heroicidade foi construída mostra as lutas pela
memória da luta armada em Moçambique. Assim, o primeiro objetivo do artigo é descrever
como estes dois dirigentes são representados como heróis.

O segundo objectivo é argumentar que a própria narrativa dos heróis cria uns silêncios, e a
análise destes silêncios pode ser tão interessante como a análise da narrativa.

A luta armada de libertação como palco da épica moçambicana.

“A luta de libertação nacional é a saga maior do povo moçambicano, e a proclamação


da independência é o momento em que Moçambique, como país, nasce para a
história.” (Honwana 2017:123)

1ª fase (1974-1981). Triumfalismo revolucionário e heroização de Eduardo Mondlane.

Os primeiros anos após a independência mostram uma grande atividade na construção da


categoria de heróis, especialmente para honrar àqueles que tinham morto durante os dez anos
de luta armada que, finalmente, conduziram à independência de Moçambique. São anos de
triunfalismo, onde a confiança no futuro é elevada, e a Frelimo se prepara para mudar a face
não só de Moçambique, mas da África Austral.

Neste contexto, Eduardo Mondlane, o primeiro presidente da Frelimo, tornou-se a


personificação da figura coletiva dos heróis. O 3 de Fevereiro, data do seu assassinato, foi
instituído feriado nacional entanto que dia dos Heróis da luta de armada de libertação. Num
contexto em que os nomes das ruas e cidades estavam sendo mudados, uma das principais
avenidas da capital moçambicana1 também recebeu o seu nome, e uma estátua dele foi
colocada num lugar destacado daquela avenida.

No próprio dia da independência, no 25 de Junho de 1975, o presidente Samora Machel


colocou a primeria pedra do monumento aos Heróis, que começou a ser erguido numa
rotunda próxima ao aeroporto internacional da capital moçambicana. Aquele local passou a
ser chamado Praça dos Heróis, e veio tornar-se um local de importante simbolismo para o
novo regime.

Foi precisamente ali, no discurso alusivo à comemoração do 3 dia de fevereiro de 1976, que
Samora Machel anunciou a nacionalização dos prédios de rendimento, de toda a rede escolar
e sanitária, e também dos serviços funerários. A seguir, no 1 de maio, o presidente também
aproveita o discurso do feriado nacional para anunciar que a Universidade de Maputo passará
a designar-se como Universidade Eduardo Mondlane. O discurso foi feito no próprio campus
universitário, e depois foi inaugurado um busto do primeiro presidente da Frelimo. O discurso
proferido levava o título de: “A classe trabalhadora deve conquistar e exercer o poder na
frente da ciência e da cultura”, e foi um discurso longo e profundo sobre a diferença entre a
educação colonial e a educação de tipo socialista, onde a ciência possui uma dimensão
eminentemente coletiva, e orientada às classes populares. Vale a pena citar o trecho onde se
justifica a escolha do novo nome da Universidade, pois é um dos documentos mais explícitos
da construção do herói Eduardo Mondlane:

“Ao dar nome de Eduardo Mondlane à nossa Universidade, nós queremos marcar, de
forma mais decidida e consciente, una nova fase na vida desta Instituição. Não se trata
aqui de homenagear Eduardo Mondlane, o universitário. Recordamos aqui o Eduardo
Mondlane que sempre soube permanecer, não somente fiel, mas sobretudo
profundamente ligado à sua origem popular que assumiu plenamente. O Eduardo
Mondlane que jamais procurou ocultar a sua origem trabalhadora, os seus parentes
analfabetos, as difíceis condições de vida. Não para daí tirar glória, através da
valorização do seu esforço próprio, mas para manter sempre bem presente a sua
identidade e fidelidade fundamental para com os pobres, os humilhados e os
explorados do seu país e do mundo.

Queremos recordar e homenagear o Eduardo Mondlane que tudo abandonou do que


realizara, para vir estruturar, organizar e dirigir os militantes que, exprimindo o
sentimento do povo, se ergueram contra o nacionalismo português. O Eduardo
Mondlane, primeiro Presidente da FRELIMO e organizador do desencadeamento da
luta armada, garante consciente do seu caracter popular e revolucionário” (p. 7).

Note-se o interesse em frisar o compromisso revolucionário de Eduardo Mondlane, mesmo se


para tal era necessário desconsiderar os seus méritos académicos individuais, e o prestigio
internacional que tanto ajudou à Frelimo, especialmente no inicio, a ser ouvida nos fora
internacionais. Na verdade, a ênfase em assegurar o compromisso de Mondlane com a
revolução era algo que já Joaquim Chissano se viu obrigado a fazer no 3 de fevereiro do ano
anterior (1975), quando, entanto que primeiro ministro do governo de transição2, foi

1
Em fevereiro de 1976 Lourenço Marques passou a chamar-se Maputo, e outros nomes ligados ao
colonialismo foram mudados para nomes moçambicanos, ou da esquerda revolucionária internacional.
2
Governo instituído depois do Acordo de 7 de Setembro de 1974, e que fixava a data da independência
para o 25 de Junho de 1975. O governo de transição foi empossado a 20 de Setembro de 1974, e estava
entrevistado na Rádio Moçambique para falar da vida de Eduardo Mondlane. A julgar por
algumas das respostas que deu, Chissano encontrou um ambiente pouco propício a considerar
Eduardo Mondlane um verdadeiro revolucionário. Victor Igreja (2013) cita algumas dessas
respostas, tiradas do arquivo do Rádio Club de Moçambique e traduzidas ao inglês por ele
próprio:

“Joaquim Chissano spoke out in defence of Mondlane by stating that ‘the people were
alleging that he was too moderate, for others he was someone that liked an easy life
and so on’. He insisted that Mondlane ‘never compromised the revolution; in a wrong
way, many people thought that Mondlane was an individual with neither ideology nor
principles... we that worked with him, we saw him defending the revolutionary
positions at all times when it was necessary to make it explicit’.” (2013:334)

Vários autores reportam que, após o 25 de Abril em Portugal, os meios de comunicação social
em Moçambique sofreram uma transformação ideológica radical, passando a estar
controlados por jovens jornalistas de esquerda (Cardoso 2014; Machiana 2002; Passos 1977;
Saavedra 1975). A distância, e a desconexão, existente entre os meios anticoloniais e de
esquerda da capital, e as posições ideológicas da Frelimo elaboradas no exílio fez com que,
frequentemente, não fosse fácil encontrar pontos em comum (Machava 2015), e as diferentes
perceções de Mondlane devem entender-se neste contexto. Afinal, em 1974, Mondlane estava
na memória privada de poucos em Moçambique e, especialmente a camada mais jovem,
olhava para ele como um ser longínquo, ligado a igreja e aos Estados Unidos. Em contraste, os
lideres da Frelimo3 teimavam em frisar “nós que trabalhamos com ele…” para desativar o
ceticismo generalizado. Naquele contexto, a experência da luta armada foi usada pela Frelimo
como uma certidão de proximidade à verdade (Coelho 2013; Meneses 2015). Por outras
palavras, quem nao tivesse lutado pela independência de armas na mão estava errado (Souto,
2013).

Assim, a Frelimo continuou insistindo na promoção de Eduardo Mondlane como herói, e o


discurso de Samora no 1º de maio de 1976 deve entender-se como uma tentativa articulada
de defender que Mondlane sempre foi “um homem do povo”, consciente da necessidade da
revolução.

O monumento aos heróis, cuja construção foi iniciada no dia da independência, acabaria
adoptando uma forma de estrela que albergava uma cripta. No dia 3 de fevereiro de 1979,
aproveitando o décimo aniversário do assassinato de Eduardo Mondlane, os seus restos
mortais foram transferidos da Tanzânia para serem depositados no novo monumento-cripta
da Praça dos Heróis. Na mesma viagem vieram da Tanzânia os restos de mais cinco heróis:
Filipe Samuel Magaia; Paulo Samuel Kankhomba; Mateus S. Muthemba; Josina Machel e
Francisco Manyanga. Assim, a cerimônia do 3 de fevereiro de foi especialmente solene
naquele ano (Tempo nº 65: 26-27). A partir daquela data, os restos mortais de outros heróis da
luta armada têm sido depositados na Cripta dos Heróis, embora nem todos tiveram a mesma
pompa e circunstância da cerimônia de 1979, como veremos mais a frente.

composto por membros apontados desde Dar es Salam (Frelimo) e desde Lisboa.
3
Armando Guebuza, foi Ministro de Administração Interna durante o governo de transição, e fez um
breve discurso no dia 3 de fevereiro de 1975 onde, como Chissano, também lembrava os ensinamentos
do camarada Mondlane na importância da unidade nacional (Reis & Muiuane 1975).
Finalmente, em 1980, aparece a nova moeda moçambicana: o metical. Desta vez o lançamento
faz-se coincidir com outra data relevante 4: O 16 de Junho de 1980 era o 20 aniversário do
massacre de Mueda, que foi um precedente importante da luta armada de libertação (Cahen
1999). No conjunto de quatro notas produzidas (de 50; 100; 500 e 1.000 meticais) a nota de
cem meticais levava a face de Eduardo Mondlane, enquanto no verso aparecia a imagem da
Praça dos Heróis.

Assim, nos primeiros anos da independência, foi-se criando um sistema de referências


simbólicas nacionais onde Mondlane estava sempre presente, como fundador da Frelimo e da
nação moçambicana.

Para além da aparição do metical, o ano de 1980 trouxe outros sinais que indicavam o
otimismo que se vivia: a primeira foi o lançamento do Plano Prospetivo Indicativo (PPI), um
plano integral de transformação acelerada da economia, destinado a erradicar o
subdesenvolvimento numa década. O segundo foi a independência do Zimbabwe, na qual o
governo moçambicano tanto se tinha empenhado, tanto militar como economicamente
(Monteiro 2001). Esperava-se que, com a derrota final do regime de Ian Smith, os ataques
ditos bandidos armados acabariam, e a economia voltaria a fluir com normalidade na zona
centro de Moçambique.

2º fase: 1982-1986. O fim do triunfalismo, e a abertura de uma nova categoria de heróis.

Pouco depois de 1980, a Frelimo vê-se na necessidade de revisar o otimismo, pois as grandes
expectativas de paz e desenvolvimento não estavam a concretizar-se. Começava assim uma
nova fase menos vocacionada a programar objetivos revolucionários, e mais a pensar reações
de urgência para solucionar problemas que iam aparecendo no horizonte, tanto na área da
planificação económica, como na área da desestabilização dos chamados “bandidos armados”.
4
Fazer coincidir datas de comemorações diferentes é uma prática recorrente da Frelimo. A data da
independência de Moçambique (25 de Junho), e a data do inicio da luta armada (25 de Setembro),
coincidem com a data da fundação e do 1º Congresso da Frelimo respetivamente. Aparentemente,
misturando a história do partido com a história de Moçambique se contribui a salientar a centralidade
da Frelimo na história de Moçambique.
Em 1982 houve duas reuniões, de vários dias cada uma, que assinalavam a mudança de
atitude. Em cada uma delas, o Presidente convocou a um coletivo considerado sensível para
garantir o sucesso da revolução: os antigos combatentes e os comprometidos. Os antigos
combatentes eram o coletivo de guerrilheiros que haviam sido desmobilizados após a
independência, ou pelo menos destinados a tarefas não militares. Os “comprometidos” eram
aqueles moçambicanos que aderiram às instituições coloniais, fosse nas fileiras do partido do
regime marcelista, na PIDE-DGS, no exército ou nos diversos grupos especiais que apareceram
para travar a luta armada libertação (Igreja 2010; Meneses 2015).

Nos dois casos eram coletivos onde se sabia que havia mal-estar, e por isso eram suspeitos de
engrossar as fileiras do “inimigo interno” (Meneses 2015; Feijó 2016), isto é, aqueles
moçambicanos que, ou por serem reacionários convictos, ou por não saber decodificar a
propaganda do inimigo, acabavam engrossando as fileiras dos bandidos armados 5 e dos
sabotadores da economia (Igreja 2010; 2013).

As duas reuniões tiveram uma dinâmica semelhante: primeiro Samora discursava, não
poupando aquela violência retórica (Darch & Hedges 2013) tão característica dos seus
discursos; depois animava as pessoas a reconhecer publicamente os seus erros passados.
Esperava-se que, a medida que as primeiras pessoas aderiam à dinâmica de arrependimento,
pouco a pouco ir-se-ia desencadeando uma espécie de catarse coletiva, até que a imensa
maioria dos visados renegassem publicamente dos erros passados. Uma vez libertados da
mentalidade colonial, aquela pessoas experientes podiam ser integrados nas posições
adequadas do partido-estado para contribuir a derrotar aos bandidos armados.

Victor Igreja (2010) tem analisado com certo pormenor a reunião dos comprometidos a partir
das gravações da reunião existentes no arquivo da Rádio Moçambique. A conclus ão dele é que
não foi muito bem-sucedida, pois muitos comprometidos alegavam terem sido forçadas a
aderir as estruturas coloniais, e não houve uma renúncia do seu passado suficientemente clara
para satisfazer a Samora Machel.

Não temos, para o caso da reunião com os antigos combatente, uma análise semelhante à que
Igreja fez para a reunião com os comprometidos. Através das informações aparecidas nos
jornais e revistas durante e após a reunião (por exemplo, no Notícias do 14 de junho), não se
percebe o nível de conflito que, com certeza, houve. Contudo, é bem provável que na reunião
com os antigos combatentes houvesse mais empatia, até porque os antigos combatentes eram
um coletivo mais próximo da Frelimo, e as suas queixas eram de sentir-se abandonados pela
própria Frelimo. O que sim sabemos, pela evolução posterior do coletivo de combatentes
veteranos, é que o mal-estar continuou crescendo durante a guerra da Renamo, e o coletivo
foi tornando-se de cada vez mais influente nos conflitos internos da Frelimo (Anónimo 1988).
A Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACLLN) foi criada em 1989 ,
mas foi sob a presidência de Armando Guebuza 6 que atingiu um nível de reconhecimento e
influência elevado (Matusse 2004).

Nos primeiros anos 80 o Presidente Samor Machel lançou uma Ofensiva Politica e
Organizacional onde o foco era denunciar o espiritu de vitória que prevalecia, e a necessidade
5
A dissidência foi uma das preocupações principais desde o início. Chissano, num comício em Mueda em
1975, avisou às próprias fileiras: “We just want to ask you one thing, you must never accept the enemy’s
propaganda, which has already initiated, but it did not initiate here in Cabo Delgado, it initiated in the
south: the enemy propaganda argues that the camaradas of the provinces that fought were forgotten”.
(apud Igreja 2013: 319).
6
Guebuza sempre manteve uma proximidades com o coletivo de combatentes (Matusse 2004).
extirpar o cancro do inimigo já no interior do partido-estado (Bragança & Depelchin 1986;
Meneses 2015). Contudo, a medida que os problemas se tornavam mais graves, e a situação
geral do pais piorava, o autoritarismo e os métodos violentos da Frelimo foram tornando-se
cada vez mais evidentes (Meneses 2015). Neste contexto, no Centro de Estudos Africanos se
constitui um grupo chamado Oficina de História que começa a argumentar a necessidade de
um novo olhar, mais científico e crítico, às zonas libertadas ( CEA 1987).

A autocrítica do III Congresso, em 1983, foi acompanhada de maior intransigência ideológica,


e nos anos seguintes muitos intelectuais foram abandonando a primeira linha política
(Honwana 2017). Por outro lado, enquanto os apoios internacionais necessários para
confrontar a Renamo não chegavam, Samora agia cada vez mais de forma autoritária, e cada
vez mais em solitário (Ganhão 2001, Cardoso 2001). O Acordo de Nkomati, danificou o
prestígio internacional de Machel (Mosse 2001).

É neste contexto que Samora Machel fez, em outubro de 1983, a primeira viagem oficial a
Portugal, onde foi bem recebido e, a dado momento, levantará a questão dos restos mortais
de Ngungunyana7, o poderoso rei africano de Gaza vencido pelo exército colonial português
em 1895. Capturado, Ngungunyana foi forçado a viver os seus últimos anos na Ilha Terceira,
nas Açores, onde acabou por falecer. Finalmente, a pedido do presidente moçambicano estes
foram finalmente transferidos a Moçambique em 1985. Assim, no mesmo ano que se
celebrava o décimo aniversário da independência, Samora presidiu a cerimónia que abria
oficialmente uma nova linha de heróis moçambicanos. Era uma decisão que não era muito
consequente com a ideia de consolidar a unidade nacional defensada até então pela Frelimo, e
esta inconsequência não passaria desapercebida (Igreja 2013; MacGonagle 2008;).

Os restos de Gungunhana foram colocados num féretro de pedra, ornamentado com releves
desenhados pelo artista Malangatana, e ficou exibido na fortaleza de Maputo, onde também
estão exibidas algumas das estátuas do período colonial, entre elas a de quem prendeu
Ngungunyana. A razão de não colocar Ngungunyana na cripta dos heróis tem a ver com a
diferente natureza dos heróis moçambicanos estabelecida pela narrativa oficial da história da
libertação.

Tal como explicam os manuais de história editados após a independência (Frelimo 1978), o
colonialismo sempre suscitou resistências da parte moçambicana, e as lutas de resistência
colonial se prolongaram durante os famigerados 500 anos de colonialismo português.
Contudo, como os moçambicanos não estavam unidos, eram sempre derrotados pelos
portugueses. Esta situação de fraqueza só foi superada pela fundação da Frelimo, em 1962,
quem colocou a prioridade na unidade, e acabou por conseguir à independência após dez anos
de luta armada (1964-74). Assim, fica justificado que os heróis da luta de libertação tenham
um estatuto superior a todas as tentativas previas, que não passaram de resistências. Eduardo
Mondlane é considerado o precursor do grande salto qualitativo que levou à constituição da
Frelimo, e ao desencadeamento da luta armada que, finalmente, levou a vitória final 8.
Portanto, segundo a narrativa oficial, Mondlane, entanto que fundador da Frelimo e
responsável pelo início da luta armada, é imprescindível na genealogia da nação
Moçambicana. Contudo a presência de Mondlane nos discursos se foi apagando a medida
que, com o avançar da década de 80, o triunfalismo cedia o passo ao espírito da frustação.

7
Apesar de que em português está aceite a grafia Gungunhana, respeita-se aqui a maneira mais comum
de transcrever o nome em Moçambique: Ngungunyana.
8
Discurso de Guebuza no 3 de fevereiro de 1975 (Reis e Muiane 1975: 279-282).
John Saul (1987) refere o ambiente anímico que encontrou na comemoração do décimo ano
da independência. As cerimónias oficiais correram como previsto, e apesar das críticas
recebidas pelo Acordo de Nkomati, Samora estava acompanhado, na oferta de flores à praça
dos Heróis, de una comitiva de até cinco presidentes: da Tanzânia, Zâmbia, Cabo verde, Angola
e Botswana, e um primeiro ministro (Zimbabwe). Depois, houve um desfile impressionante de
estudantes e as organizações de massas. Finalmente, uma festa oficial no Hotel Polana onde
decorreu uma primícia: a estreia de um filme moçambicano que retratava a luta de libertação
com especial grandiloquência: O Tempo dos Leopardos9.

Contudo, Saul faz explícito que, a pesar dos esforços por fazer festa, no íntimo todos sabiam
que o ambiente não podia ser de celebração: no mesmo dia da independência um autocarro
foi atacado pela Renamo a menos de setenta quilómetros da capital, com um resultado 27
pessoas mortas, e aquela não era uma desgraça pontual:

“More prosaically though no less importantly, as we eat our fill at the Polana we know
that many people in Maputo will not have enough to eat this week. Beyond survival -
although under the circumstances, this is itself no small accomplishment- there
seemed little enough, in all conscience, to celebrate. A decade which had begun with
so much hope had become a long and very difficult one 10.” ( Saul 1987: 6-7)

A morte de Samora e a “conspiração de silêncio” (1986-2001).

No mês de fevereiro de 1986, Aquino de Bragança, diretor do CEA, apresentou um texto


escrito conjuntamente com Jacques Depelchin, que queria ser um revulsivo para retomar uma
análise crítica da História da Frelimo. Era necessário abandonar o hábito de focar no após
independência e iniciar uma análise que abrangesse a luta de libertação, seus conflitos, e sua
relação com a história mais abrangente do Moçambique sob controlo português. Era
necessário questionar os clichés sobre os triunfos da Frelimo, e ser capaces de aprofundar
porquê, apesar da autocritica, os erros identificados no papel não foram solucionados na
prática. A iniciativa se enquadrava nas tentativas do presidente Samora de retomar a iniciativa
politica, e o texto recolhe vários depoimentos do presidente nesse sentido. Aquino de
Bragança faleceu no acidente de avião presidencial, mas alguns jovens investigadores do CEA
continuaram as linhas de reflexão que el apontou (Coelho 1989, 2013; Silva 1990, 2015).

A morte trágica de Samora Machel, a 19 de outubro de 1986, propiciou um funeral de Estado


multitudinário, e o seu cadáver foi depositado com todas as honras na cripta que ele próprio
impulsou para os Heróis (numero especial da Tempo nº 837, 26 outubro de 1986). Contudo,
uma vez encerrado aquele funeral faraónico (Ngoenha 2009), se abriu o que algum autor tem
chamado uma “conspiração de silêncio” (Souto 2013; Rantala 2016) que afetou não só à
pessoa de Samora, como ao seu legado político.

O sucessor de Machel na presidência foi Joaquim Chissano. Dadas as estranhas circunstâncias


do acidente11 que vitimou ao presidente, e a boa parte do seu círculo de confiança, a nova
9
Para ver uma análise sobre como a luta de libertação é tratada na ficção cinematográfica ver o texto de
Raquel Schefer (2013).
10
Sulinhado meu.
11
Os discursos possteriores do Presidente Guebuza sobre Samora Machel já falam abertamente de
assassinato do apartheid (Matusse et al. 2015: 116-125), mas na altura Chissano devia ser mais
direção fez uma reavaliação do campo geopolítico onde Moçambique se encontrava, assim
como das possibilidades existentes para o futuro imediato. Nalgum momento Chissano
concluiu que a melhor maneira de confrontar a Renamo não era no acampo militar, onde as
Forças Populares de Libertação de Moçambique estavam enfraquecidas pela falta de meios, e
desanimadas pela ingerência de multitude de agentes assessores, e tropas estrangeiras
(Anónimo 1988; Cabrita 2000; Mosse 2001).

Chissano argumentava que a Frelimo só conseguia manter-se no poder se tomava a iniciativa


nas reformas para instaurar o multipartidarismo. Era a própria Frelimo quem devia preparar as
reformas, com o intuito de conseguir vantagens num campo institucional feito a medida, e
conseguir assim vencer no campo político aquilo que não podia ser ganho no campo militar
(Brito 2010). A Renamo tornar-se ia muito mais manejável num parlamento do que espalhada
no mato, pois uma vez as armas calassem, a Frelimo podia aproveitar todo o seu capital de
experiencia política para reduzir a margem de manobra da Renamo. Eventualmente, Chissano
conseguiu convencer a maioria do partido Frelimo e tomar a iniciativa num processo de paz,
longo e tortuoso, que finalmente foi assinado em Roma, no 4 de outubro de 1992.

Durante as negociações com a Renamo, a Frelimo nunca deixou de representar o Estado


moçambicano, e a estratégia adotada implicou alguns sacrifícios. A primeira foi o abandono
daquela retórica assertivamente revolucionária, tão característica de Samora, e sua
substituição por mostras de boa vontade em adotar o modelo de capitalismo multipartidário
exigido pelos atores internacionais. O segundo sacrifício foi o das FPLM, o exército de
libertação da Frelimo, que devia desaparecer para dar lugar a um novo exercito: as Forças
Armadas de Defensa de Moçambique (FADM).

Assim, os Heróis da luta armada, fortemente ligados à instituição das FPLM, perderam
centralidade nos discursos e no espaço público 12, embora não fossem removidos do sistema
simbólico oficial. As grandes cerimónias de Estado continuaram a ser feitas na Praça dos
Heróis, mas nenhum esforço foi feito para abir o leque de heróis em consonância como a nova
realidade política. Esta continuidade teve consequências, pois fez com que Afonso Dhlakama,
candidato à presidência da RENAMO, não assistisse às cerimônias de Estado por considerar
que aqueles heróis não são os seus13 (Brito 2010).

Após a assinatura dos Acordos de Paz, a reconcialição nacional era um objectivo


continuamente invocado, mas a Frelimo não fez nenhum esforço para reformular o sistema de
simbolos nacionais estabelecido nos primeiros anos da independência 14, e só o hino nacional
foi mudado, não sem dificuldades (Basto 2013; Pitcher 2006).
cauteloso. Mosse (2001) faz uma boa análise do dados conhecidos . Recentemente, nova documentação
tornou-se acessível na África do Sul (Douek 2017).
12
Só um herói ingressou na cripta: Sebastião Marcos Mabote, um dos principais lideres guerrilheiros da
Frelimo (Mateus & Mateus 2010), e um alto cargo das FPLM até 1986.
13
O uso do presente está justificado, porque Afonso Dhlakama continua a ser o candidato da Renamo às
eleições presidenciais de 2019, e continua a ser o principal lider da oposição. Nunca foi as cerimónias de
Estado na Praça dos Heróis.
14
Ja antes da assinatura dos Acordos de Paz, houve uma reformulação das notas de meticais que
respondia a dois objectivos: incluir a imagem do novo presidente, Joaquim Chissano, numa nota de
5000 meticais, junto a E. Mondlane (100mts) e S. Machel (1000mts); e pôr em circulaç ão notas de
10.000 e 20.000 para adaptar o metical à inflação existente (Morier-Genoud 2009). Ao longo da década
de noventa apareceram notas de 50.000, 100.000 e 200.000 meticais. Em todas as superiores ao valor
de 5.000 aparecia a imagem do Banco Central de Moçambique. Em nenhum caso houve tentativa de
representar a reconciliação nacional, nem incluir atores políticos diferentes à Frelimo.
O ressurgimento de Samora e a luta de memórias.

A estratégia de Chissano acabou resultando, e a Frelimo conseguiu superar a difícil transiç ão a


um regime multipartidário, sem abandonar nunca o poder (Pitcher 2006). Ora, este sucesso da
Frelimo em permanecer ocupando a centralidade da vida política e económica de
Moçambique teve uma consequência imprevista pela elite: o ressurgimento de Samora Machel
no espaço público de Moçambique.

No seu artigo, publicado em 2006, Pitcher já avançava que os discursos de Samora, editados
no período revolucionário, estavam a circular de novo através de circuitos informais: no novo
contexto socioeconómico de início de século XXI, as críticas de Samora ao capitalismo e à
exploração do homem pelo homem eram objeto de um renovado interesse. Mais tarde, Janne
Rantala (2016) tem feito uma análise da recuperação da figura de Samora em ambientes
populares que, como a música rap, promovem a crítica social. Segundo esta autora, Samora
começa a aparecer como referente que questiona a moralidade da elite moçambicana no ano
2000, coincidindo com assassinato do jornalista Carlos Cardoso 15, num momento em que ele
estava a investigar as teias de corrupção decorrentes da privatização dos bancos
moçambicanos.

Na mesma altura, também os ambientes mais intelectuais sentiam a necessidade de recuperar


o legado de Samora. No ano 2000 foram editados dois livros sobre Samora Machel, com títulos
como Samora Vive (Muge el al. 2000) ou Samora: O destino da memória (Duarte Tembe 2000).
Finalmente, no ano de 2001, aproveitando o 15 aniversário da morte de Samora Machel, foi
publicado uma coletânea intitulada Samora. Homem do Povo (Sopa 2001), que recolhia o
testemunho de uma série de pessoas que trabalharam perto do anterior presidente em
diversas áreas de atividade. O livro tinha um prefácio de Graça Machel, ministra de Educação e
Cultura no primeiro governo independente de Moçambique, além de viúva de Samora. No
prefácio, intitulado “É hora de olharmos para trás”, ela reivindicava a necessidade de lembrar
Samora Machel como uma pessoa que, como qualquer ser humano, tinha virtudes e defeitos
(Machel 2001). Na verdade, o livro oferecia uma leitura amável do legado de Samora, focando
especialmente nos seus méritos, assim como nos valores que ele encarnou, e que os autores
mostravam, mais ou menos explicitamente, que sentiam em falta quinze anos depois da sua
morte.

Este ressurgimento espontâneo da figura de Samora em diferentes sectores da sociedade


moçambicana, coincidiu, naqueles primeiros anos do século XXI, com uma perceção da crise
do partido Frelimo. Os fracos resultados eleitorais de Joaquim Chissano nas eleições
presidências de dezembro de 1999, junto com outras mostras de perda de centralidade social,
provocaram uma reação no partido Frelimo. Armando Guebuza lançou a sua candidatura para
substituir a Joaquim Chissano na presidência do partido, e no Congresso seguinte conseguiu
atrair a confiança das estruturas do partido (Brito 2010; Morier-Genoud 2009). Ele foi,
portanto, o candidato à presidência de Moçambique nas eleições de 2004.

Na sua campanha à presidência, Guebuza marcou uma forte distância com o legado de
Chissano, e instava a recuperar a capacidade organizativa do partido Frelimo para acompanhar
às instituições do Estado, nomeadamente através da revitalização das células do partido no
15
Carlos Cardoso era uma dos jornalistas que acompanhavam a revolução desde a independência
(Machiana 2002), e chegou a ter uma certa proximidade com Samora (Cardoso 2001), e durante a
transição ao multipartidarismo foi um dos mais ativos dos jornalistas independentes.
aparelho do Estado. Este reforço do papel do partido ia acompanhada de uma dupla ofensiva
narrativa. Por um lado, assumia-se plenamente o discurso canônico do desenvolvimento
business friendly, da luta contra a pobreza e da importância dos cidadãos tornarem-se
empreendedores (Posse 2015). Por outro, se recuperava o simbolismo dos heróis da luta
armada de libertação, com Samora Machel como grande ícone que presidia os esforços do
governo para lutar contra a pobreza (Ngoenha 2009).

Assim, enquanto Samora era usado, por um lado, como bandeira de idealismo e honestidade
por parte de sectores críticos, por outro lado, os discursos do Chefe de Estado povoaram-se de
exemplos de heróis que, a pesar das condições coloniais, conseguiram erguer-se, com orgulho
e determinação, para manter uma luta armada durante dez anos. E então chegava à pergunta
retórica: quanto mais não conseguiriam hoje, contando que já não é preciso derrotar ao
inimigo, e poderiam concentrar-se na educação e na produção? (Matusse et al. 2015). Ao
mesmo tempo, a imagem de Samora multiplicava-se no espaço público, fosse nas novas notas
de metical16, fosse nas estátuas de grandes dimensões que presidiam as praças mais nobres
das diferentes capitais de província.

Os anos de 2009 e de 2011, foram declarados ano Eduardo Mondlane e ano Samora Machel
respetivamente, prolongando assim as actividades comemorativas dos 40 e os 25 anos das
suas mortes a tudo um ano. Entretanto, no ano de 2010 foram comemorados os 35 anos da
independência nacional, e uma chama que representava a unidade nacional atravessou
novamente o território nacional desde a fronteira com a Tanzânia, e seguindo o mesmo
percurso que Samora Machel fez, em 1975, para chegar à capital de Moçambique e proclamar
a independência no 25 de junho dauqele ano.

Contudo, o esforço comemorativo não se restringiu aos dois heróis mais renomados. Na
verdade, a actividade começou em 2006, com o aniversário dos 40 anos da morte de Filipe
Samuel Magaia, primeiro responsável do Departamento da Defesa da Frelimo, assassinado em
1966 por um infiltrado. A partir desta data, o ARPAC 17 começou uma pesquisa sistemática de
cada um dos heróis enterrados na Cripta dos Heróis, com o intuito de preparar as respetivas
comemorações das suas mortes. Nos discursos proferidos pelo Chefe de Estado em cada uma
destas comemoraçoes, ele sublinhava as lições a tirar daquelas vidas passadas para os desafios
presentes (Matusse et al. 2015). Esto propiciou uma descoberta surpreendente: não havia
qualquer informação sobre a identidade de alguns dos heróis da cripta, pois foram inscritos
com os nomes clandestinos, e também não havia referências de parentes que pudessem ser

16
Armando Guebuza promoveu uma mudança das notas de metical que uniformizou as imagens de
todas as notas: na parte frontal aparece sempre a imagem de Samora; no verso, imagens de fauna
bravia de Moçambique.
17
Arquivo do Patrimônio Cultural, instituição dependente do Ministério de Cultura.
identificáveis. Assim, a tentativa de divulgar as vidas dos heróis, mesmo nos casos de falta de
informação confiável, levantou algumas críticas metodológicas sobre a maneira como os heróis
estavam a ser reconstruídos para servir a agenda do presidente (Souto 2013).

Durante estes anos de promoção da figura dos heróis, se abriu a possibilidade que aqueles
que não tiveram experiência na luta armada também pudessem ser considerados heróis, se
assim era decidido pelo governo. Por exemplo, dois artistas foram honrados com o estatuto de
herói nacional: o poeta José Craveirinha e o pintor Malangatana Valente Ngwenya. Contudo,
esta abertura não se manifestou na hora de reconhecer heróis que não fossem próximos do
partido Frelimo (Igreja 2013). Assim, os representantes dos principais partidos da oposição
continuaram a não assistirem às cerimónias oficiais dos feriados nacionais.

A produção de silêncios.

A Renamo, inicialmente, mostrou a sua aceitação de Eduardo Mondlane como herói nacional,
enquanto rejeitava os outros heróis da luta armada por motivos ideológicos ( Coelho 2013).
Esta posição tentava, talvez, responder àquele esforço pela reconciliação, assinalando um
possível herói em comum que facilitasse um consenso nos símbolos da nação. Só que as
dinâmicas políticas em que se foram envolvendo os dois partidos assinantes do Acordo Geral
de Paz (AGP), não ajudavam a promover a reconcialição (Igreja 2008, 2015).

Em 2007, aconteceram dois episódios relativos aos heróis que indicavam que a reconciliação
nacional, se alguma vez foi um objetivo singelo, já não estava a ser visada por nenhum dos dois
partidos assinantes do AGP. Em 20 de Junho 2007 a Fundação Eduardo Mondlane, criada
pelos parentes próximos do primeiro presidente da Frelimo, aproveitou o dia do que seria o
seu 87 aniversário para lançar um memorial na aldeia onde ele nasceu, Nwadjahane. O partido
Frelimo não só marcou presença naquele evento privado, senão que aproveitou a data e o
local para também celebrar o 35 aniversário da criação da Frelimo, embora ainda faltassem 5
dias para o 25 de Junho18 (Inguane 2007).

Uma apropriação tão evidente da figura de Eduardo Mondlane, que podia considerar-se
consensual, foi amplamente criticada nos meios de comunicação sociais. Ora, na mesmo mês
de junho de 2007, a Renamo, que governava o município da Beira desde 2003, presentou uma
proposta também polémica no concelho municipal beirense: atribuir o nome de André
Matsangaíssa a uma rotunda do bairro da Munhava. Victor Igreja, no seu artigo sobre as
políticas da memória e o processo de descentralização (2013), documenta a polémica que
suscitou esta iniciativa, e cita ao chefe da bancada da Renamo-União Eleitoral da Autarquia da
Beira.

“Frelimo will never accept the name of André Matsangaíssa for a public square,
because in their understanding the national heroes are emphatically only from
Frelimo. For these reason, they are making use of all stratagems for impending the
locals to nominate their own heroes”. (apud Igreja 2013: 325).

18
Ver nota 4.
Este episódio mostra o silenciamento dos heróis que não pertencem à linhagem da Frelimo 19.
Contudo, o argumento que quero avançar neste artigo é que este silenciamento explícito, não
é a única maneira de produzir silêncios.

Os Heróis e as sombras que projetam: outra forma de produzir silêncios.

Temos visto como o resurgimento de Samora como herói se deu num contexto de luta de
memórias, onde diferentes coletivos lembravam publicamente o antigo presidente pela sua
atitude honesta e pela sua proximidade ao povo (Sopa 2001; Ngoenha 2009; Rantala 2016)
enquanto o Presidente Armando Guebuza começou a difundir a imagem de Samora
embrulhada num discurso muito mais afastado dos valores do socialismo (Matusse et al. 2015;
Posse 2015). Eventualmente, a força e os meios do Estado conseguiram silenciar a lembrança
de Samora Machel como homem do povo. Machel foi esvaziado de conteúdo ideológico para
melhor legitimar a Frelimo à frente do Estado (Souto 2013).

Mas também a construção de Mondlane como herói revolucionário nos anos após a
independência é um exemplo interessante, e talvez menos evidente. Promovendo uma
imagem de Mondlane tão revolucionária como a própria Frelimo só chegou a ser depois da sua
morte20, tentou-se legitimar uma revolução e um regime político que pretendia falar em nome
do povo21.

Em simultâneo à construção do herói Eduardo Mondlane, o seu antigo vice-presidente na


Frelimo, Urias Simango, era condenado, e posteriormente executado de maneira sumária e
secreta, junto com a esposa e outros dissidentes (Cabrita 2000; Ncomo 2003). Assim, a
construção do herói Mondlane teve uma razão legitimadora evidente, na medida em que ele
foi o “arquiteto da unidade” (Matusse et al. 2005), e até a Renamo podia concordar nisso. Mas
existe outra dimensão menos evidente, e mais truculenta, na heroização de Mondlane: um
Mondlane revolucionário projetava uma imagem da Frelimo como se esta Frente sempre
tivesse sido revolucionária, e esta imagem servia para silenciar Urias Simango (Trouillot, 1995).

Portanto, a construção tanto de Mondlane como de Machel, podem ser analisadas como um
processo histórico explicável pelas evidências factuais ao nosso alcance, como tentei fazer ao
longo deste artigo. Mas ficar por aqui seria deixar de ver que estas construções também
criaram umas zonas de sombra de grandes dimensões (Winter 2010).

Assim, os imperativos da construção dos heróis em Moçambique não só têm a ver com
constante necessidade de legitimação de qualquer Estado, também com a necessidade de
impedir a articulação de outras narrativas, de silenciar outros heróis possíveis, de impedir o
desenvolvimento normal da disciplina acadêmica da história (Coelho 2013; Souto 2013).

19
Como já foi referido, há uma outra linhagem oficial de heróis, que Samora Machel abriu em 1985 com
a chegada dos restos mortais de Gungunhana. Esta abriu uma série de polémicas relativas à hegemonia
dos povos do sul e sua vontade marginalizar do poder outros povos (Ribeiro 2005, Igreja 2013). Para n ão
perder o foco nos heróis da luta armada de libertação, a evolução desta outra linhagem de heróis nao
foi tratada neste artigo.
20
Victor Igreja reproduz estas palavras de Samora, gravadas durante reunião dos comprometidos “but
from 1971 onwards, prontos [that was it], the war transformed into a revolution”. (2013:334)
21
Neste processo a própria categoria de povo foi também construída à medida do partido (Israel 2013;
Bastos 2013; Meneses 2015).
As memórias relativas à Uria Simango pertencem àquele tipo de memória que não é
publicamente articulada, permanecendo restrita no âmbito privado dos seus parentes
(Ashplant et al. 2009). Poderia parecer que as memórias que habitam nas sombras projetadas
pela construção dos heróis, se referem sempre a este tipo de memórias privadas, afundadas
no íntimo das pessoas e sem canais para a sua projeção pública (West 2003), mas proponho
que não é sempre assim.

Há coletivos, e mesmo coletivos próximos do partido no poder, como os veteranos da luta


armada, ou os ex-presos políticos, que também estão afetados pelas sombras dos heróis. Por
exemplo, o reconhecimento da condição de herói a figuras de realce artístico, como José
Craveirinha ou Malantana Valente Ngwenha. Para além do mérito artístico, nas biografias dos
dois novos heróis foi frisada a sua passagem pela cadeia colonial, acusados que foram de
pertencerem ou apoiarem à Frelimo. Contudo, a sua fama e relações sociais fez com que o seu
tempo na cadeia fosse breve. A sua elevação à herói, mesmo se merecida, contribui a silenciar
ainda mais a maioria de aqueles presos políticos mais anônimos, que sofreram umas condições
mais difíceis.

No mesmo sentido, encontramos outros exemplos de produção de silêncios não explícitos. A


promoção oficial da narrativa de Aurélio Le Bon (2015) sobre as violências do sete de setembro
contribui a silenciar o magma de atividade nacionalista que existia em Lourenço Marques
(Machava 2015) e, finalmente, a perspectiva elitista que é comum à maioria de memórias
escritas por grandes nomes do partido no poder, e que todas mantém um foco especial nas
suas lembranças da luta da libertação, contribui também a silenciar as múltiplas experiências
da luta de libertação de tantos coletivos de combatentes veteranos que, por estarem
afastados dos círculos de poder, não podem ver as suas memórias escritas nem publicadas
(Katto 2014). Por isso, a análise da produção dos silêncios abre-se como um campo de estudo
profícuo das memórias da luta de libertação.

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