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Corr Saudaddd
Corr Saudaddd
A Glória em poesia,
romance, novela
é mulher, quem diria...
e casei-me com ela!
...
...
S A N T O S D UM O N T
Aratuba é uma mentira da ditadura
(Paulo Sarasate)
...
Não havendo mais o que eu ver nem dizer ali, despedi-me de Aratuba.
Desencantado, só me lembrava de minhas próprias palavras em defesa do
poeta Manuel Bandeira, acusado de haver esquecido o Recife. Tão criticada
foi a ausência dele que um longo duelo se travou entre Aníbal Fernandes,
do Diário de Pernambuco (a favor) e Mário Melo, do Jornal do Commércio
(contra). Bastou que o então deputado estadual Nilo Pereira desse a ideia
de um busto em homenagem ao poeta para se engalfinharem os dois
jornalistas em debate intermitente. Volta e meia o assunto retornava em
palavreado veemente e radical. Não é, pois, de admirar que um renomado
cronista local tenha sido influenciado por este clima. Tratando-se, porém,
de um querido amigo, esperei o tempo que pude por algum defensor até
que, na falta deste, atrevi-me: Caro Alex, terá, mesmo, o poeta Bandeira
esquecido sua cidade natal apenas porque não a visita? Como se sabe,
vistas com olhos adultos, as pessoas e as coisas de nossa infância deixam
de ser as mesmas. Também isto acontece com os lugares. Sendo, pois, as
pessoas, as coisas e as ruas do Recife de ele menino as fontes perenes de
inspiração e ternura do poeta, terá ele as querido longe do seu coração
adulto.
Mas são raros esses momentos. Na maior parte da sua obra chora
o poeta a dor que o desterro lhe causa: Por onde alongue o meu
olhar de moribundo - tudo a meus olhos toma um doloroso
aspecto - e erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
E por não lhe ser possível viver aqui nem estar bem em terra
estranha sonhou o poeta com um lugar onde não fosse
estrangeiro no mundo, Pasargada. É uma tentativa malograda
porque, embora o poeta seja amigo do rei e tenha tudo em
Pasargada, lá está o rio de suas lembranças, vivo e persistente: E
quando estiver cansado - deito na beira do rio - mando chamar a
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mãe d'água - pra me contar as histórias - que no tempo de eu
menino - Rosa vinha me contar.
...
Bom Moreno era, assim, Nelson chamado - por amigos e fãs inumeráveis -
que aplaudiam seu jeito variado - de tocar improvisos admiráveis - quando
era o cinema inda filmado - sem os sons só na hora musicáveis: - ao piano,
Ferreira deslumbrava - a plateia que então o consagrava.
Por fim, para marcar este Dia de Finados, data meio imprópria de se chegar
onde todos relembram entes queridos que partiram, este meu Recifense
sessentão:
Faz sessenta mais seis anos - que no Recife cheguei; - na mala com que
viajei - poucos livros, alguns panos - porém nenhuns desenganos. –
unicamente esperança - de crescença e de abastança; - fecho sequer nela
havia - porque o mais inexistia - e um cinto era a segurança - que me atava
o pouco havido - na verde vivência minha,- além de, numa entrelinha, -
sonhos de quem, indormido, - de gozo era carecido. - Agora não vale usar
- fechadura pra guardar - malas que tenho, ditoso, - porque guardados de
idoso – ninguém cogita violar...
O ELOGIO DA RISADA
Deu-me na telha copiar o aclamado Príncipe do Humanismo, Erasmo de
Roterdã (1466-1536), teólogo e escritor holandês celebrizado por seu
genial livro Elogio da Loucura.
Assim procedo a fim de exaltar na singela pessoa de Luís de França
Guilherme de Queiroga o gênio da risada. Ele, feito quem não queria nada
escrevia coisas que endoidavam a gente de rir. Tipos e situações hilariantes
como que saltavam da sua máquina de escrever e, a partir da sala de ensaio,
corriam os céus a caminho de receptores em torno dos quais os ouvintes
gargalhavam. Sem nenhum exagero, Lula fazia rir com a facilidade única
de um gênio do humor.
Difícil, porém, era tirar Luiz Queiroga do profundo sono que, às vezes, o
retinha na cama até minutos antes das Atrações do Meio Dia da Rádio
Tamandaré. Ainda bem que a sua pensão de solteiro era vizinha à emissora
e um mensageiro veloz podia arrancar da sua máquina de escrever e levar
para o Studio a pagina da vez de programa ao vivo com os atores já
improvisando à espera dela. O maravilhoso disso era que, nem de longe, os
ouvintes desconfiavam do que acontecia.
A fortuna biográfica de Lula faz dele uma legenda do folclore radiofônico e
televisivo brasileiro. Mesmo assim, sua modéstia era do tamanho
desmedida capacidade criativa dele. Como se inventasse o trivial, Lula
criou personagens ainda hoje famosos, entre os quais o coronel Ludugero.
Uma coisa, porém, Lula levou a sério: sua lealdade aos colegas. Por isso,
fez tantos amigos: aqueles que, feito eu, ainda não foram ao seu encontro, o
conservam amorosamente vivo na lembrança.
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***
CARTAS AVOENGAS
Sabemos que ainda se enviam, de favor, bolo de rolo, queijo de coalho,
carne de sol, doces e ... cartas. Os remetentes usam familiares, amigos e
mesmo conhecidos que se destinem a lugares de moradia de destinatários
com quem se relacionam. Eu mesmo transportei, do Recife ao Rio, carta a
pessoa residente na favela carioca da Rocinha. Claro que ao desembarcar
vali-me da agência postal do Aeroporto do Galeão: é que, na face frontal do
envelope não constava, como já foi de bom-tom, a sigla P.E.F. – abreviatura
de Por Especial Favor, seguida do nome de obsequioso portador. Mesmo
assim corri o risco de ( espero que não) estar citado no próprio texto da
carta...
Seja como for, entregues de favor por viajantes ou pelos Correios as cartas
familiares têm sido substituídas por telefonemas ou postagens eletrônicas.
Pagamos o preço da chamada evolução tecnológica. Somos todos
cibernautas. Quando muito, nos limitamos a mensagens abreviadas tipo “mi
vzs obg a vc amg de vdd abçs e bjs fui”.
É no que a comunicação interpessoal virou entre a moçada. Diversos dos de
antigamente, até os atuais avós tentam copiar modismos da juventude
privando seus netos da saudade vivenciada pelo poeta Manoel Bandeira
nestes versos:
Enternecido sorrio
do fervor desses carinhos
é que os conheci velhinhos
quando o fogo era já frio...
E eu bendigo, envergonhado
esse amor, avô do meu…
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do meu, fruto sem cuidado
que inda verde apodreceu.
- Amigos ouvinte da Raido Crube, por hoje é só. Muitcho obrigado, boa-
noite, amanhã tem mái e mió...
MAMHÃS DE “SABALOPES”…
O saudoso escritor Benito Araújo abriu-me as portas da chamada
Academia Sabalopes, na Rua Artur Muniz, em Boa Viagem. Ali se
reuniam, nas manhãs de sábado sem atividade em outra “coirmã”,
escritores e poetas admiradores do gênio de Waldemar Lopes. É dele este
Soneto para a doce Bem-Amada, datado de fevereiro de 2001:
O MALOGRO SEREPETE...
Igualmente não posso dizer que tenha me saído bem, mesmo em ajudâncias
mais leves. Num fim de tarde, era hora da Bênção do Santíssimo
Sacramento e, para ministrá-la, o padre acabara de tirar do sacrário a hóstia
consagrada posta no centro de um impressionante ostensório dourado. Mas
o padre não gostou do meu jeito de balançar o turíbulo, barulhento por
causa da tampa mal colocada por mim sobre a superfície de brasas e
incenso em combustão:
– Balance isso direito, seu idiota.
A VÍBORA DO RESSENTIMENTO...
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Ainda despreparado para o exercício da autocrítica deixei que os episódios
acima repercutissem livremente na minha vida de jovem em formação. De
uma hora para outra passei a dizer-me ateu, inclusive na presença de
terceiros. Isso motivou, do meu dileto colega Manuel Lima Soares, esta
observação:
– Você não é ateu. É apenas um ignorante religioso.
Embora momentaneamente ofendido, aprendi com o tempo a dar razão a
Néo, como era tratado na intimidade aquele brilhante líder estudantil
cearense, hoje nome de rua importante de Fortaleza. Mais que ignorância
religiosa, aquilo também era ressentimento, no dizer do escritor inglês
Oscar Wilde “essa víbora que alimentamos no coração com o nosso próprio
sangue”...
Desde então tenho sempre em mente essas duas lições preciosas: o pedido
de Jesus ao Pai, de perdão aos que O crucificavam, e o mandamento do
amor, por Ele considerado o mais importante dos dez mandamentos: Amai-
vos uns aos outros, como a vós mesmos.
Feliz da pessoa que, mesmo “sem pecado”, não se atreve a atirar a
primeira pedra...
“NÃO FURTRÁS”...
Enquanto eu era submetido a uma delicada angioplastia no bloco cirúrgico
do Hospital Esperança, na capela do oitavo andar Glória, minha mulher,
orava pelo bom êxito do procedimento.
Alguns após deixar a capela na reconfortante expectativa de que Deus
guiasse as mãos dos que me cuidavam, deu pela falta dos nossos celulares,
por ela esquecidos no mesmo banco onde estivera sentada ao lado de duas
companheiras de oração, também igualmente sumidas.
Não se é pecador porque peca, e sim porque é pecador. Portanto,
perdoemos, amemos e oremos inclusive por quem, ainda que numa capela,
tem a mente fechada até mesmo para um só mandamento divino, o oitavo...
PRESENÇA DE ESPÍRITO...
O locutor paulistano Luiz Noriega, meu companheiro na Rádio Tamandaré
do antigo Cine Politeama, juntava à sua excelente qualificação profissional
o inegável dom da presença de espírito. Assisti, em 1951, a uma
demonstração disso durante show noturno de cantores e cantoras que, até o
meio dia deram ao redator do programa seus respectivos números
musicais. Tudo bem nos ensaios de logo mais à tardinha com orquestra e
conjunto regional, à exceção da cantora cearense Tânia Maria que, sem o
aviso de praxe, trocou sua música. Foi aí que Noriega, na hora do show, de
roteiro desatualizado na mão e sem saber da mudança anunciou:
– E agora, a nossa querida bonequinha Tânia Maria canta o samba “Faz que
vai”.
Assim que ela sinalizou não, Noriega emendou prontamente:
– Mas não vai...
PRODIGIOSA MEMÓRIA…
Não creio que haja outro perdedor de canetas igual a mim. Inclusive
trabalhando, muitas vezes tive de pedi-las emprestado. De repente, numa de
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minhas coberturas televisivas do Baile Municipal, cadê caneta pra anotar os
nomes dos integrantes da Comissão Julgadora. Felizmente, entre eles
estava o saudoso compositor Capiba, que me socorreu. Antes, porém, de
completada a cobertura eu já estava de novo sem caneta e, no calor da festa
arranjei outra e esqueci Capiba, até porque achei pequeno o prejuízo dele
por se tratar de um brinde do Diário de Pernambuco. Não contei, porém,
com a extraordinária memória de Capiba. Daí por diante, enquanto ele
viveu, toda vez que nos encontrávamos, independentemente do lugar, ele
me cobrava com aquela sua prosódia característica:
OS DERRAMADOS NO CHÃO…
Nunca imaginei um dia ver tão de perto João Cabral de Melo Neto. Mal
acreditei quando pude entrevistá-lo pela Fundação Joaquim Nabuco, no
ensejo de uma de suas visitas ao Recife. Entre outras coisas, perguntei-lhe a
certa altura da conversa:
– Pode ser, respondeu ele. O idoso tem muito mais passado do que futuro,
“pedeu”?
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Faz tempo que penso nisso para o meu próprio funeral. Porque assim vi,
menino, o enterro dos pobres da minha cidadezinha natal. Em quê, por
acaso, eu sou menos pobre do que eles? Que razões eu posso ter para, na
última viagem, pretender outro invólucro em vez de uma rede avarandada
de onde me derramem no chão? Espero em Deus o despojamento
necessário para guardar esta fidelidade às origens do meu povo...
OS VERMELHOS ALEMÃES…
Na primeira metade da década de 1940, assim como argentinos seguiam
seu presidente Juan Domingo Perón, havia brasileiros que acompanhavam
o ditador gaúcho Getúlio Vargas em mal disfarçada simpatia pelos
alemães. Posso, ainda hoje, ouvir o farmacêutico português José Dias
comentar com o telegrafista Braga o último boletim do “Repórter Esso”
sobre a marcha da Segunda Guerra, já quase no final: Amplia-se a vitória
dos vermelhos, em luta heroica dentro da cidade de Berlim.
DESENGANO E DESABAFO...
No escritório regional de Lundgren Tecidos S/A, em Fortaleza, meu birô
defrontava o de Josué, ex servidor da Marinha do Brasil. De vez em
quando ele chegava numa ressaca devastadora e, à espera da hora de
entrada, enaltecia o milagroso efeito restaurador de um copo de leite
gelado. Costumava tomá-lo numa lanchonete da Praça dos Mártires, o
popular Passeio Público, situado entre o nosso local de trabalho e o forte
que deu nome à capital. Certa manhã, depois de mais uma noitada de pinga,
Josué foi comigo às raias da eloquência concluída com esta pergunta:
– Albuquerque, tens 50 centavos aí?
No auge do constrangido sinalizei que não, e ele:
– Eu sabia. De onde não se espera é que não sai mesmo...
UM TRADUTOR LAUREADO
O saudoso médico e acadêmico cabense Milton Felipe de Albuquerque
Lins, foi contista e tradutor de importantes autores franceses e ingleses.
Teve, em vida, o reconhecimento da Academia Brasileira de Letras que o
galardoou com o Prêmio Odorico Mendes 2010 de melhor tradutor
brasileiro. Nessa ocasião pude homenageá-lo com estes versos:
- Que custa tentar uma saída? – ela esperançou mais que perguntou.
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FUGINDO DE LIMOEIRO...
Luís Guilherme Precht, meu outro companheiro no Cantinho do Céu,
apartamento de Fernando Luiz Cascudo, namorava a linda Lieselotte
Cornils, esta, feito Precht, descendente de alemães. Num certo fim de
semana ele foi atraído a Limoeiro, onde a namorada era recebida por
família amiga. Partiram os dois na sexta-feira e eu, também convidado, só
viajei no sábado ao meio-dia, por causa de participação em programa
matinal do cineasta Jota Soares, na Rádio Tamandaré.
Cheguei, pois, tardiamente em Limoeiro e estava com os namorados numa
lanchonete quando mocinha local começou a me olhar com insistência e
sinalizar para que eu me aproximasse dela. Tanto a gesticulação se repetiu
que me dispus a atendê-la.
- Sei quem é o senhor e imagino que acaba de chegar. Pois precisa saber
que, desde ontem seu amigo do jipe buzina sempre que passa pela casa de
um rapaz daqui, apaixonado por essa moça. Ele é da família importante e
tem gente de revolver engatilhado pra desforrar essa humilhação na bala.
Acho melhor vocês irem embora enquanto é tempo de sair vivo daqui...
Pra encurtar a história, quem buzinava não era ele, era ela. Desde então não
sei de ninguém que tenha escapado de um lugar mais depressa do que nós
três. O jipe quase voava...
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CORREIO DASAUDADE (15)
Outra parte linda foi levarmos Geraldo e Marta ao Arcada Bistrô para
assistirem ao show do nosso amigo Tito Madi, a partir de um inesquecível
“Chove lá fora”:
–Você anda lendo as revistas X-9 que eu guardo no meu baú. Vem escrito
nas capas. Leitura para acima de 18 anos e você só tem 12. Mas continue.
Pior é não ler nada.
– Seu ano?
– Segundo ginasial, respondi.
– Tire o ponto, mandou ele, mostrando-me uma sacola branca.
Tirei um papelote do qual ele se apossou e leu sem me dar tempo de falar
nada:
– Ginasiano que tira sete em matéria do científico merece pelo menos nota
nove!
UM “GASPAR” INESPERADO...
Era o lançamento publicitário, em Belém do Pará, do “Parque Residencial
Reis Magos”. A certa altura inquietou-me a reação de alguns belenenses ao
ouvirem os nomes dos edifícios Baltazar, Belchior e Gaspar. Descoberta a
causa troquei, imediatamente, as três majestades por seus presentes ao
Deus Menino: Ouro, Incenso e Mirra. Porque , no Pará, o pênis é também
conhecido por Gaspar...
I – IMENSIDÃO
Brasileiros, ainda impressentidos
noutros mundos detêm formidável
patrimônio, tesouros desmedidos
encontráveis em terra imensurável;
mas à soma de tantos possuídos
sobrepõem o jus inalienável
de fruir, livremente, a natureza
sem segunda em fartura e boniteza.
II – CULTURA
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Nas aldeias se veem, comumente
mais que fêmeas ornarem-se varões
pelo corpo trocando, mutuamente
tocamentos, fruindo sensações
de mãos dadas andando alegremente
sem libido aparente ou expressões
de lascívia, tampouco damaismo
mas costume de antanho e não modismo.
III – CRENDICES
Os “brasis” formam povos diferentes
entre si, inclusive nas crendices:
a duendes confessam-se tementes
por trazerem terríveis caiporices;
eis por quê se socorrem, reverentes
do pajé, afamado em curandices
desse inato entendido brasileiro
em mazelas até do corpo inteiro.
IV – RITUAIS
Singular e diverso ritual
é cumprido com pia reverência:
terra, sol, água, fogo, vendaval
e deidades resguardam concernência
com sazões de vivência comunal,
entre as quais a da fértil frutescência
extensiva ao carnal sazonamento
das donzelas de cada aldeamento.
V – INVASÃO
Intenção ou não mais que mero acaso
infeliz calmaria ou largo vento
diligência de nautas ou descaso
dominância ou simples rudimento
de oceano a singrar não vem ao caso;
de Cabral consumado o chegamento
cesse toda questão que se levanta:
impossível prever sangueira tanta..
VI – PRENÚNCIO
O gentio acompanha, impressionado
um batel conduzido à beira-mar;
arco e flecha repousa admirado
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com o jeito veloz de navegar
o invasor que, inda não desembarcado
quer, primeiro, saber o que enfrentar
nessa terra de porte imprevisível
com vitória completa, se possível.
VII – MANSIDÃO
Curioso e tranquilo é o nativo
predisposto à dispensa de atenção
ao vindiço; é, portanto, receptivo
e dá asas a imaginação
tal costuma fazer o primitivo
emprestando alta magnificação
ao estranho e garboso viajor,
de poder do outro mundo portador.
VIII – INOCÊNCIA
A Adão comparado em singeleza
o nativo (disposto e amistoso)
auxilia, com força e ligeireza,
a erigir um cruzeiro majestoso;
igualmente ele beija, com fineza,
pequeninos cruzeiros, respeitoso,
imitando os vigários mendicantes
e de missa primeira celebrantes.
IX – MATREIRICE
Lá pras tantas, inesperadamente,
português atenua a violência
contra o índio, conduta incoerente
com a própria lusíada premência
de extinção do elemento resistente;
é que assim se acautela a iminência
de um nativo rompante belicoso
em terreno ignoto e tortuoso.
X – FANTASIA
Na Europa se espalha fantasia
a partir da missiva do escrivão:
se misturam temor, afrodisia
e fascínio por solo de um milhão
de riquezas: imensa folharia,
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raiz, casca, meizinha em profusão
pra saúde do índio, flor baunilha,
copaíba, cacau, salsaparrilha.
XI – VERGONHA
Com frequência incomum se torna audível
fala índia em veleiro lusitano,
evidência da mais indiscutível
traficância no Atlântico oceano
rumo à Europa, o ofício indefensível
de trocar por dinheiro o ser humano
tal qual fora vulgar mercadoria,
sujeitar homem livre à escravaria.
XII – IMAGEM
O francês De Lery tem no gentio
exemplar vigoroso e apessoado:
vê semblante de exótico feitio
braços feitos pra lida com machado
e, no jeito de olhar, bicho arredio
de cabelo retinto e tosquiado
corpulência vistosa e besuntada
de silvestre resina perfumada.
XIII – BABEL
Tal ocorre com presos degredados
alguns nautas à Corte não regressam
com a selva deveras deslumbrados;
em ficar no Brasil se interessam
e, com pouco, novéis desembarcados
o comércio pirata já começam
de tintura, folhagem mais madeira
e outros frutos da terra brasileira.
XIV – DESCOMPAIXÃO
Do pendor fantasista da índia gente
alguns padres ladinos se utilizam
com o fim de torná-la mansa e crente:
sobranceiro a Monã idealizam
deus Tupã (das procelas) tendo em mente
consoá-la, porém mal profetizam
por causar, a deidade imaginada,
divisão na ambiência da indiada.
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XV - CAÇADA
Bons docentes os padres dão valia
à usança de vários atrativos:
colorida e vistosa rouparia
consonante ao talento dos nativos
que a envergam e dão-se autoria
a despeito de ainda primitivos
artesãos; os ofícios aprendidos
são diversos e muito requeridos.
XVI - REVOLTA
O invasor se presume, de repente,
senhorio das terras e de tudo
o que nelas existe, sua gente
inclusive; apesar de corajudo
o nativo sofreia ante o evidente
exagero do branco façanhudo
e prefere estudar o que fazer
contra abuso tamanho de poder.
XVII – CARNAGEM
Criancinhas de peito separadas
das mamães, assassínios sem motivo,
endemias mortais disseminadas,
aviltantes ofensas ao nativo
são as causas de tribos rebeladas:
cada índio se torna um fugitivo
ou guerreiro de intentos vingadores
contra o jugo cruel dos invasores.
XVIII – TRÉGUA
Silencia Anchieta ao escutar
este amargo queixume de um guerreiro:
“Antes mesmo de um dia se passar
da chegada do branco marinheiro
já o índio dispõe-se a o aceitar
respeitoso e de jeito hospitaleiro;
entretanto a maligna falsidade
os coloca em frontal hostilidade”.
XIX- CORAGEM
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A empreitada da Confederação
dos Tamoios provém do sentimento
de revolta das gentes, sedição
remidora do imenso detrimento
perpetrado depois da ocupação
do Brasil, indizível sofrimento
imperado no modo português,
diferente, decerto, do francês.
XX – CONFRONTO
Do setor de combate faz sair
Mem de Sá sua frota: os comandados
assim ficam sem meio de fugir;
a matar ou morrer sendo obrigados
só lhes resta a saída de infligir
a derrota aos locais confederados;
flecha e fogo produzem mortandade
desmedida em sangueira e feridade.
XXI – CILADAS
Valiosos produtos naturais
intocados, colheitas impensáveis
são recursos capazes de inda mais
enricar Portugal; indisfarçáveis
ambições digladiam-se entre as quais
possessão de terrenos infindáveis
e o trabalho forçado de nações
incontáveis de índios alazões...
XXII – DISSENSÃO
Alto preço ao nativo é reclamado
por tratado enganoso de amizade
com o luso; também é defraudado
pela inata intestina inimizade
que o colono aprofunda, calculado,
acirrando a malsã rivalidade
entre clãs desde antanho estremecidos
por si mesmos, destarte, consumidos.
XXIII – REPRESSÃO
Ao nativo reprime por igual
senhoril mão de ferro do invasor
extensiva a qualquer grupo tribal
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inclusive do mais brando pendor;
cuide este, por bem, senão por mal,
de tornar-se do branco servidor
obrigando-se a tudo e sem medida
se quiser preservar a própria vida.
XXIV – DESFORRA
Traições só instigam mais vingança
de gentios que até donatarias
incendeiam; perdida a confiança
nos acordos de paz daqueles dias
se malogra o programa de aliança
entre lusas e índias senhorias,
natural consequência da patranha
de ocupantes reinóis de bruta sanha.
XXV – DIFERENÇA
O rancor contra o luso, na verdade,
transparece na voz de um fugitivo,
que descreve a extremada crueldade
desse branco de humor incompassivo:
Pernambuco, excedente em brutidade,
origina a escapada de um nativo
pra lugar sem pavor nem servidão
como sói o tranquilo Maranhão.
XXVI – PRUDÊNCIA
Holandeses, sensatos, consideram
importante o cultivo da amizade
com gentios; por isso perseveram
na oblação, honraria e lenidade;
para além da justiça eles ponderam
os princípios pilares da bondade,
e dizendo-se apenas estrangeiros
de regalos cumulam brasileiros.
XXVII – FICÇÃO
Parciais escritores instituem
enganosos modelos de heroísmo:
a ladrões e assassinos atribuem
alteados motivos de ufanismo
com os quais inda hoje alguns anuem
vendo pia nobreza e altruísmo
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nesses tais “do sertão desbravadores
e do pátrio rincão alargadores”.
XXVIII – SISTEMA
Jesuíta, conquanto a vida inteira
missionário da catequização
salvador da indiada brasileira
compartilha, porém, a devoção
com perô e dispõe na dianteira
o país donde vem; a conversão
do gentio é mais para amansá-lo
e, em seguida, ao lusíada entregá-lo.
XXIX – ESCRAVISMO
A memória amazônica reflete
a tragédia nativa dos cercados
Urubus por soldados numa brete:
quatrocentos e tantos apresados
e, tombados, uns mais cem vezes sete
desses índios à espada trespassados
represália de branco revoltado
por haver-se, essa tribo, rebelado.
XXX – ESBULHO
À nação Potiguara todo o mal:
“Da reserva ninguém deve escapar”,
grita a insana opressão colonial
decidida a, sem dó, assediar
esse povo do elísio litoral
da louçã Paraíba preamar;
Pernambuco também dá contributo
ao esbulho brutal e absoluto.
XXXI – EXEMPLO
Revestidas de certa relevância
se sucedem inúmeras chibanças
tendo algumas, em dada circunstância,
renovado perdidas esperanças
libertárias do índio; manigância
dos rivais traz derrotas e ganhanças
aos dois lados em luta espicaçada
por notáveis da Corte conflagrada.
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XXXII – REBANHOS
O colono, sem carnes pra comer,
solicita da Corte bois de corte
e cavalos, também, com que prover
de tração e de meio de transporte
suas forças terrestres; pra manter
esses bichos se valem do suporte
de água farta e ubérrima pastagem
das herdades tomadas ao selvagem.
XXXIII – ESCARAMUÇAS
Apesar da total destruição
da família tapuia, inda resistem
outras tribos na determinação
de enxotar invasores que persistem
na extinção ou na índia servidão;
assassinos paulistas coexistem
com ataques provindos de repente
da guerrilha veloz e intermitente.
XXXIV – MISSÕES
Homilias se pregam aos nativos
sobre o Cristo Jesus ressuscitado
e assustoso é que, embora primitivos,
se demonstrem de siso equilibrado,
portadores de dons intuitivos
adequáveis a vário aprendizado:
fundição, pecuária, agricultura,
tecelagem ornada de pintura.
XXXV - INSUBMISSÃO
Acredita Lisboa que, afinal,
de uma vez já se acham dirimidas
discussões entre Espanha e Portugal
sobre a posse de glebas requeridas
no Brasil; de importância crucial
é, pois, vê-las agora definidas
legalmente na forma de um tratado
em Madrid por consenso pactuado.
XXXVI – CANONIZAÇÃO
“Esta terra é da gente, doação
de Deus Pai, mais o arcanjo São Miguel”
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eis a pronta e valente reação
do bravio Sepé, índio revel,
ao reinol general de divisão
Gomes Freire, alteado em seu corcel;
diz Sepé desaforo de mão cheia,
o que a noiva Jussara mais receia.
XXXVII – REFÚGIO
Guaranis são por brancos atacados
apesar de quietos sonhadores
com a terra de um deus onde, assentados
sejam livres de tantos dissabores;
de erva-mate seus sítios cultivados
querem salvos de brancos invasores;
desses bens buscadores incansáveis
só anseiam eventos amoráveis.
XXXVIII - PROTESTO
Corre o mundo notícia da opressão
infligida ao nativo brasileiro:
portugueses de nobre coração
reivindicam governo justiceiro
com o índio igualmente cidadão
e, portanto, senhor do seu terreiro;
tal postura é motivo de acrimônia
muita vez entre a Corte e a Colônia.
XXXIX – VIOLÊNCIA
Se cruento demonstra-se o colono
com demais invasores europeus
é de ver-se em quão grande desabono
ele tem o gentio, sabe-o Deus,
por sentir-se, inclusive, o próprio dono
de país e de povos servos seus;
assim sendo, se danem Renascença
e ideias de aos índios benquerença.
XL – DECADÊNCIA
Carajás, antes uns trinta milheiros,
são ao longo do tempo consumidos
pela sanha letal de forasteiros;
uns restantes trezentos desvalidos
escravizam-se a ricos fazendeiros
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opressores de índios malsofridos
que em barrancas de rios arranchados
se estiolam de tudo espoliados.
XLI – MORTICÍNIO
As lavouras em broto comburidas
as famílias dos troncos apartadas
as mulheres à força possuídas,
as crendices vetustas afrontadas
cruelmente ceifadas muitas vidas
por moléstias letais disseminadas
enfraquecem o ânimo valente
do indígena dantes resistente.
XLII – CONSUMIÇÃO
Alto preço na selva é reclamado
por indígena avesso a seringueiro;
porém este em cizânia confiado
não desiste do múnus borracheiro
e, afinal, de sucesso é coroado
com apoio de índio alcoviteiro;
sobre o rio Madeira impondo jus
se aventura a mais dois, Negro e Purus.
XLIII – LEMA
Incendido de espírito humanista
abandona a ensinança militar
em favor do ideal indigenista;
quer em ínvios rincões realizar
memorável cruzada pacifista
de grandeza impossível de negar;
para sempre dos sinos venham dobres
por Rondon, cidadão de feitos nobres.
XLIV – PRECONCEITO
Os Xoklengs, em bandos divididos
rivalizam terrenos de pinhais
com cultores forâneos atraídos
por empresas privadas e estatais;
sendo estes com índios prevenidos
se arreceiam dos ditos “animais”
e, rixosos, também nestes atiram
ou, medrosos, da lida se retiram.
61
XLV – ASSOMBRAÇÃO
É lembrança do século dezoito
grande assombro, no Parque do Araguaia,
motivado por índio muito afoito
contra o qual vivem brancos de atalaia;
inda hoje o receiam lá no soito
onde está quase sempre de tocaia,
um temor extensivo ao Tocantins,
Goiás Norte e paragens mais afins.
XLVI – LASTIMEIRA
No Brasil amazônico se ostenta
tronco estrada, caminho da abusão
de agressores de índole briguenta,
predatória e insana; da invasão
de caterva grileira violenta
reunida em temível arrastão
jamais visto ajuntando garimpeiro
a empresário, bandido e caloteiro.
XLVII – ULTRAJE
XLVIII - “INTEGRAÇÃO”
Tentativas de plena aceitação
de convívio com brancos são debalde;
certas tribos sustentam rejeição
às “frentes” malsãs de branquidade
inventoras de falsa integração
renegada por só malignidade
aos costumes tribais, grave ameaça
à existência, afinal, da própria raça.
61
IL – DESENGANO
Sem remédio se instala o desengano
do gentio com branco predador:
equipado de chumbo, adorno, pano
e aço frio, é este um contendor
invencível, audaz e soberano
sobre aquele iludido e perdedor
da família, da terra e seu domínio
e da vida, à qual dá autoextermínio.
L – FARSA
Nos quinhentos janeiros da invasão
o nativo dispõe-se a protestar
contra a era sem fim de enganação
e domínio do branco; quer gritar
seu desgosto represo e dizer não
ao ridículo prestes a estrear
na Bahia, a reprise do achamento
do Brasil, deslavado forjamento.
LI – PAINEL
É o índio há séculos refém
de uma incrível história mal contada
sobre os primos brasis e que ninguém
até hoje emendou; e, se emendada
sua saga será bastante aquém
da tragédia sem fim vivenciada
a partir do caudal avermelhado
pelo sangue inda hoje derramado.
LII – MEMORIAL
Certamente o Brasil resgatará
algum dia a memória muito cara
dos seus povos primevos,Tuxaná,
Warekena, Tuyúra, Tsuva, Arara,
empolgante epopeia que será
cinzelada em sagrada pedra (ara)
de um altar reservado ao sacrifício
de nações condenadas ao flagício.
LIII – LENDAS
Sem igual é, decerto, a coleção
61
de legendas correntes do Chuí
ao cimeiro Oiapoque: evocação
desde o mico feroz Mapinguari
à Peitica, ave mestra em predição;
de duende travesso até sagui
a memória, pungente ou engraçada,
sobrevive na boca da indiada.
LIV – UTOPIA
Outra vez a pergunta perdurante:
vale ainda nutrir a utopia
sustentada por gente confiante
numa paz que, altaneira, se imporia
sobre tanto interesse conflitante
entre índio e colono em tropelia?
Só porque foi o sonho interrompido
não se pode dizê-lo já perdido
UM ESTOPIM NO “TRIBUNAL”
Para “julgar” os artistas da Ceará Rádio Clube, onde também escrevi
programas, criei o Tribunal da Fama, cujo texto era rimado em versos
pares. Na noite de estreia, cenário montado diante de auditório
superlotado, eu esperava tudo menos que o “juiz” Aderson Braz,
solenemente vestido de beca e capelo fosse, antes da sua fala de abertura -
que eu julgava importantíssima – “desembaçar” os óculos com um enorme
lenço branco enfiado por dentro da armação sem lentes.
61
A fala de Aderson não saía porque o auditório rolava de rir, enquanto eu,
“promotor” indignado, assistia ao que me pareceu uma total avacalhação do
programa.
Foi preciso que João Ramos, o “advogado defensor”, me convencesse de
que, naquele exato momento, se acendia o estopim de um enorme sucesso
de audiência...
MINHA PARENTELA
Nasci prematuro em irmãos e irmãs unilaterais já, por sua vez, mães de
meios sobrinhos meus que fui conhecendo a partir de quando vim à luz em
oito de março de 1930. Eram dezoito filhos e filhas da primeira geração
direta de meu pai, João José Pereira, por este sobrenomeada Colares
Pereira. Aos 59 anos de idade viúvo de Maria Júlia Colares meu pai
apaixonou-se por minha mãe, Maria Nazaré Cavalcanti de Albuquerque, de
apenas 19.
Contou-me, meu saudoso e longevo tio materno João (Ginja), de passagem
pelo Recife, num cruzeiro marítimo:
- Seu pai, viúvo com dezoito filhos, ameaçou suicidar-se caso nossa família
não aprovasse o casamento dele com a Nazaré…
Último de dez filhos desse segundo matrimônio, convivi com alguns
desses meios-irmãos entre os quais o agrimensor Moacir, cujo lema era
dormir o menos possível porque somente acordado poderia fruir a beleza
que é estar vivo; a contabilização que ele fazia do sono ainda hoje me
impressiona: digamos, argumentava ele, que alguém durma oito horas por
dia; a multiplicação dessa dormida de um terço de cada dia totalizará 30
anos de sono de quem pensa que viveu 90; isto é sono demais pro meu
gosto; já tenho a eternidade inteira pra dormir.
A primogênita Francisca, professora estadual, foi uma das que me passaram
preciosos saberes primários no Grupo Escolar Santos Dumont, ex Coité e
jamais “uma mentira da Ditadura de Getúlio Vargas” porque Aratuba
desapareceria para que se restaurasse a homenagem ao glorioso Pai da
Aviação, segundo promessa, em 1945, do governador Paulo Sarasate.
Gutemberg (Gugu), mecânico de rotativas dos “jornais associados” de
Fortaleza Correio do Ceará e Unitário, foi contemporâneo do celebrado
executivo e político capixaba João de Medeiros Calmon, meu futuro
empregador por 27 anos nos Diários Associados. Além de xará do inventor
da imprensa, Gugu também me marcou por dois motivos: primeiro, os
dedos mutilados pela efetiva periculosidade do seu ofício; segundo, o flã
que, às vezes, ele me dava - aquele papelão especial próprio para a fervente
reprodução de estereotipia do conteúdo dos chamados “jornais quentes”.
Daquele flã eu recortava resistentes palmilhas para os sapatos que eu podia
continuar usando, mesmo depois de o solado se furar…
TRAÇO-DE-UNIÃO
Fui uma espécie de traço-de-união entre duas famílias que, mesmo não
sendo rivais, estendiam o frio do clima aratubense ao seu relacionamento:
os Pereira e os afins Lima/Silveira. Por estes fui criado, na seguinte
circunstância. Tia Deolinda, irmã de minha mãe, Nazaré, era casada com
Francisco Silveira. Caindo minha mãe doente, Deolinda foi visitá-la no
sítio Anhingas, a uns três quilômetros de Aratuba. Sabendo-me com apenas
seis meses de idade, ao despedir-se, ela se ofereceu para me cuidar até que
a irmã sarasse. Justo no dia em que ela foi me levar de volta, minha mãe
teve uma recaída, da qual nunca se recuperou a contento. Aconteceu, então,
o que todo mundo achou muito natural: de um casamento de vinte anos,
tornei-me o filho que tia Deolinda ainda não tivera. Isso continuou mesmo
depois que a minha verdadeira filiação não pôde mais ser ocultada. Encarei
a nova situação com uma naturalidade que divertiu minhas tias Mariquinha,
Atenas e Elvira, irmãs do meu pai adotivo: um dia, deliciadas, elas leram,
no meu caderno escolar: “Tenho dois pais – Francisco Silveira e João José
Pereira”.
RASPA DE TACHO
Aqui, acolá, eu ia ver meu outro pai no seu sítio Anhingas onde o engenho,
geminado à casa grande era movido a parelhos bois de canga. Em enormes
tachos de bronze refervia o caldo de cana que, depois de engrossado ao
ponto, era posto a esfriar em formas quadradas de madeira. Eu raspava
61
então os tachos em busca de resíduos ainda mornos que me deliciavam.
Meu pai apenas me olhava, sem poder participar daquele banquete porque
era diabético. Tratava-o, o jovem Lourival Pereira, sucessor do
farmacêutico português José Dias. Levei alguns anos para entender direito
a dedicação tamanha dele. Lourival era uma versão camoniana atualizada
do pastor Jacob aquele que sete anos de pastor serviu Labão, pai de Raquel,
serrana bela, mas não servia ao pai e sim a ela, pois só a ela por prêmio
pretendia. Aquele futuro cunhado não servia ao meu pai, servia à Marivette,
que por esposa tencionava...
USUCAPIÃO
Em 1944 a diabete sepultou meu pai biológico. O choro familiar foi
abreviado pelo interesse no espólio: havia muito a ser partilhado
principalmente em terras. A prole de primeira geração arguiu em juízo, e
com sucesso, herança em dobro pelo fato de meu pai haver contraído
segundas núpcias sem prévio inventário de seus bens. Mas nem por isso o
reparte andou com celeridade: faltava consenso na irmandade dos Colares
Pereira.
Deserdada a viúva, a cada um dos três Albuquerque Pereira coube metade
da herança de cada meio-irmão. Sem nenhuma previsão sobre o inventário,
resolvi ir à luta em Fortaleza e depois no Recife. Ainda bem, porque, longe
da cena do inventário, fui usurpado pela usucapião. Sendo, porém, a
existência o maior de todos os bens, sinto-me recompensado: a longevidade
tem me tornado, pelo menos até os 92, sobrevivente único das duas
gerações diretas de meu pai...
QUÍMICO INDUSTRIAL
A faceta de químico industrial também atestava a polivalência do notável
Arlindo Cunha. Ele mantinha em casa produção artesanal de bebidas
alcoólicas, entre as quais um vinho à bacool, xarope de uva e essências que
me ensinou a manipular. Disso decorria o que Arlindo chamava de meu
emprego. Certa feita eu estava pronto para engarrafar o conteúdo de mais
uma grande bacia de bronze quando surgiu um debochado amigo dele,
Loiola, admirador da famosa dupla do cinema norte-americano Oliver
Hardy (o Gordo) e Stan Laurel (o Magro). Fazendo, com perfeição, a cara
do magro Stan Laurel com quem, aliás, era muito parecido, Loiola
desabotoou a braguilha e, às gargalhadas, urinou abundantemente dentro da
bacia sem que eu pudesse fazer qualquer coisa para contê-lo.
- Agora engarrafe tudo. Se abrir a boca, digo que é sua mentira,
ATÉ QUANDO?
61
Enquanto eu caminhava entre seis e sete horas da manhã, percebi a
paulatina chegada de meninos e meninas que foram formando uma turma
considerável. Imaginei-a composta de trombadinhas. E era. A turma vinha,
em praça de igreja católica de Aracaju, prestar contas dos seus “ganhos” do
dia anterior, pensei. E achei que devia sair dali depressa, mas a curiosidade
me reteve assim que vi chegar quem me pareceu o intrujão. Sem me dar a
mínima, ele começou a atender, um a um, aos seus “clientes”. Avaliava,
rapidamente, cada objeto furtado, “pagava” por ele o que lhe parecia justo,
e devia sê-lo, porque não presenciei reclamação de ninguém.
Voltei para o hotel, quase na praça da igreja, matutando no seguinte. Se
qualquer forasteiro pode, ao acaso, ficar sabendo da evidentemente
rotineira ação criminosa que eu acabara de testemunhar, o que pensar da
lei?
Nossos menores de 18 anos são intocáveis. Até esta idade eles podem
delinquir à vontade. Podem, inclusive, alugar, a mandantes de maioridade,
sua imunidade temporária para cometer também assassinatos. Aos adultos
de bem apenas resta viver em permanente situação de risco da qual não
podem se defender nem têm quem os resguarde.
Pior: é como se essa aberração não bastasse. Enquanto esses menores
renegam a escola da vida e optam pela do crime, inclusive nas suas
modalidades mais graves, ativistas dos chamados direitos humanos os
dizem vítimas da sociedade.
Até quando?
61
CORREIO DA SAUDADE (29)
LUZ DA MEIA-NOITE...
O gosto pelo trabalho e o desejo de ganhar mais, sempre me moveram para
além das obrigações funcionais de rotina. Já nos meus começos na Rádio
Iracema de Fortaleza dei de preencher meu tempo ocioso escrevendo
radionovela. Aquela iniciativa ficcional me surpreendeu com este episódio
real. Certa manhã ouvi do diretor, José Pessoa de Queiroz, o seguinte:
- Passando por aqui quase meia-noite de ontem vi luz acesa no terceiro
andar. Estacionei onde pude e, de revólver em punho, subi as escadas para
ver o que era. Só desativei a arma depois que vi você na máquina de
escrever da minha secretária...
UM SONHO TETRALÓGICO...
Gilberto Gil estava ministro da Cultura no primeiro governo Lula quando,
animado pelo prefácio encorajador de Marcus Vinícius Vilaça, então
presidente da ABL, busquei apoio para publicar “Oração pelo Índio”. Uma
assessora de Gil em Brasília me aconselhou a privilegiar os negros,
segundo ela “muito mais resistentes que os índios contra a opressão
colonialista dos portugueses”.
Embora o tempo tenha confirmado o insucesso da minha busca de apoio,
este só não foi completo porque aproveitei o conselho da assessora e já vim
escrevendo a “Oração pelo negro” no avião de volta ao Recife. Consolou-
me a conclusão de que, pelo menos para isso, servira minha ida à capital
federal. E mais: o que era apenas um livro poderia agora virar dois, e quem
sabe, quatro se minha ousadia fosse bastante para também cantar romeiro e
retirante da seca, segmentos populacionais igualmente deserdados pelo
país.
(Continua)
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´´
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61
SUMÁRIO
I - ORIGEM
Ambição de riqueza dá motivo
à guinada do luso navegante
para o negro, filão mais produtivo
que o do flavo metal, pois inconstante
é o lucro do múnus extrativo
comparado ao proveito resultante
de prender com o fim de escravizar
africano capaz de trabalhar.
II - CAMINHADA,
Concluída mais uma vendição
de africanos, porteira escancarada
de curral facilita a introdução
do magote seguinte de negrada
para mais uma infame transação
a dinheiro em geral realizada
logo após terem sido arrebanhados
os brigantes da morte resguardados.
III - TRAVESSIA
Em Benguela, Benim, Congo, Loanda
são os negros jogados no porão
61
de navios e quase sem vianda
se sujeitam a ingente provação
sublinhada de açoites de parranda
mercadora da negra escravidão;
sem cessar, maldições dos condenados
se propagam nos ares infectados.
IV - CHEGADA
Ao saírem os negros dos veleiros
pós viagem tangida pelos ventos
investigam os ares brasileiros
na esperança de fim dos sofrimentos
indizíveis impostos por negreiros
desde a África mãe; entre lamentos
mal se firmam nos pés, o ventre pando
com visível esforço carregando.
V - BRASIL
Trinta anos passados do achamento
do Brasil, se inicia a importação
de africanos, porquanto arreliento
o nativo se opõe à escravidão
com borduna, arco, flecha e ardimento;
sendo assim só existe sujeição
quando tribo rival vitoriosa
faz com branco permuta injuriosa.
VI - NEGÓCIO
Africanos sem conta amontoados
em imundos currais ou barracões
se sujeitam, ainda agrilhoados,
à humilhante rotina dos leilões;
entre eles, ex sobas arrancados
de seus tronos à força de facões
dos imbôs a quem deram negro irmão
por nonada, vileza sem perdão.
VII - RECRUDESCÊNCIA
Há vestígios de tráfico negreiro
no Brasil desde o pré-povoamento
presumindo-se escravo pioneiro
tenha estado no próprio chegamento
de Cabral, dado o fato costumeiro
61
de se achar servidão em crescimento
no país lusitano, mediatário
desse trato vicissitudinário.
VIII - AVEZAMENTO
Se sucedem as ondas de africanos:
os novatos (boçais) recém-chegados
e os ladinos (escravos veteranos)
assimilam costumes imperados
pelos brancos senhores soberanos
incluindo-se os métodos usados
no plantio da cana e produção
de um dulçor amargoso à escravidão.
IX - INFRINGÊNCIA
Eminências da Igreja arrazoam
a favor da ousadia de negreiros
que diplomas legais amaldiçoam;
esses lobos vestidos de cordeiros
traficantes vorazes apregoam
africanos trazidos por tumbeiros
e os repassam (servis ambicionados)
a senhores, de escravos precisados.
X - MALTRATO
Ao trabalho tangido à chicotada
é o negro sujeito comumente,
avania na história registrada
e em poemas notáveis, igualmente;
negritude da pátria desterrada
é, de insanos castigos, padecente
em “novenas” que brancos impassíveis
acrescentam de horrores indizíveis.
XI - OPRESSÃO
É o negro oprimido e vigiado:
atitudes, costumes, vestuário
que perturbem o branco ensimesmado
dão motivo a ditame autoritário
do governo, de pronto decretado
e arguido de modo temerário:
proibidos são gritos, vozeria,
alaridos, batuques, cantorias.
61
XII - QUILOMBOS
Quilombolas se opõem com braveza
aos pretensos senhores do poder;
desconhecem a força e a riqueza
de opressores dispostos a render
os fugidos da branca malvadeza
pois vigor eles têm pra suster
uma guerra pra além de centenária
apoiada na ardência libertária.
XIII - ZUMBI
Sendo o índio ferido no seu brio
e feroz oponente à escravidão
o colono recorre à importação
de africano trazido de navio
em regime de horrível passadio
onde a Morte também é passageira
e a caminho da costa brasileira
aniquila, de modo impenitente,
grande parte daquela negra gente
nos porões recobertos de sujeira.
XIV - INSURREIÇÕES
De Zumbi dos Palmares o levante
a despeito de ser o mais famoso
entrevero não é predominante
sobre os outros; o grito corajoso
do servil reproduz-se, estridulante
afrontando senhor imperioso
contra o qual se propaga a insurreição
carregada de ingente vexação.
XV - LEIS
Raça branca, da negra castradora
sobre esta se impõe tão sobranceira
que lhe aplica (deslavada ditadora)
61
punição “adequada e justiceira”
“ necessária doutrina inibidora
de revolta iminente e traiçoeira”;
assim, vivas à branca repressão
“pelo bem” da brasília salvação.
XVI - IDEIAS
Pai Tomás, personagem consagrada
ultrapassa as barreiras da ficção:
sua saga, tão bem romanceada
faz pensar o pior da escravidão
no Brasil e é aqui utilizada
feito arma a favor da Abolição
que, entretanto, precisa inda avançar
e o de então Parlamento conquistar.
XVII - ABOLICIONISMO
O litígio abolicionista
quatro séculos, quase, em discussão
tem um padre, dublê de economista
nos começos do exame da questão:
abomina ele a sanha do escravista
liberdade apregoa, compaixão
e o amor do divino mandamento
no vazio do branco entendimento.
XVIII - ABOLICIONISTAS
A Nabuco, Joaquim, o negro deve
denodado combate libertário
que inda hoje na história se descreve
feito heroico, um sucesso temerário;
de justiça é, portanto, que se eleve
seu amor ao servil, muito ao contrário
de escravistas por quem é desprezado
salvo o braço, por todos disputado.
XIX - ESCRAVAGISTAS
Reivindicam, alguns escravagistas
pareceres de doutas eminências
contra ideias abolicionistas
sumidades notáveis, excelências
cujas falas, sem laivos altruístas
adormecem algumas consciências
61
inquietas com tanta iniquidade
praticada em total impunidade.
XX - RELIGIÕES
Em um ano e, por vez, tempo menor
negros viram também recitadores
do Pai Nosso – oração dita de cor
secundada de harmônicos louvores
entoados diante do altar-mor
por alguns afinados cantadores
cujos dons, exibidos a contento
lhes creditam direito a sacramento.
XXI – ESTÓRIAS
Tem Xangô – orixá da tempestade –
senhorio do raio e do trovão
lança pedras com grande habilidade
e dá nome, afinal, à devoção
iorubana; temida divindade
faz Xangô, sem parar, malinação
possuído de afã destruidor
e do mais poderoso resplendor.
XXII - INTELECTUALIDADE
Há na história do negro uma viagem
inda hoje maldita, infelizmente,
61
pela costa escolhida de ancoragem
onde aguarda-o, inexoravelmente,
a pior, dentre todas, vassalagem
que à animália reduz a afro gente
são centúrias de cego preconceito
e repúdio à cessão de algum direito.
XXIII – DISCRIMINAÇÃO
Apesar do desejo de encobrir
seu racismo o alvadio discrimina
o negroide inda que superior
no intelecto e, por isso, mais ferina
é a pecha de gente inferior
que lhe atira – boçal e tamanina
renegando-lhe feitos valorosos
demandantes de esforços melindrosos.
XXIV - DISSENSÃO
Quando o branco, enlutado pela morte
sem remédio da esposa benquerente
(duros tempos) se dá nova consorte
tendo prole, portanto, diferente:
filho branco ou mestiço, vária sorte
de crianças que, ordinariamente
coabitam, compondo uma mistura
causadora de até grave ruptura.
XXV - PRECONCEITO
Cultivado prossegue o preconceito,
malsão joio comum nalgumas hortas,
desafio frontal ao bom Direito
lido, ás vezes, por linhas mais que tortas
sendo o negro ao pior inda sujeito
pois perduram as regras natimortas:
Lei de Arinos (Afonso) batizada,
Carta Magna igualmente ignorada.
XXVI - PARIDADE
Retratista do povo brasileiro
é Gilberto o escritor da paridade
racial, em conceito pioneiro
ideado num texto sem idade;
do Recife viaja o mundo inteiro
61
esse livro de só brasilidade
Casa Grande & Senzala, panorama
dessa eterna e amada Pindorama.
XXVII - MOBILIZAÇÃO
Um a um vão os negros escritores
e confrades de negros descendentes
assumindo o papel de defensores
da etnia em casos evidentes
de injustiça partida de opressores
ou pessoas com estes coniventes;
seus escritos em prosa e poesia
cobram paz e disparam ironia.
XXVIII - CONCLUSÕES
Modifica, decerto, a abolição
dos escravos a cor semifeudal
do Brasil; dá-lhe outra carnação:
a de novo país do capital
onde o negro prossegue em servidão
excluído e explorado (tudo igual
ou pior) pois se do amo libertado
é agora um liberto abandonado.
XXIX - APOTEOSE
Há de vir, algum dia, a gratidão
do Brasil ao seu negro, construtor
de um país que a partir da escravidão
tem se havido insolvente devedor
desse herói devotado à plantação
de riqueza na terra do senhor
laborando no eito, na moagem
na feitura de casas, na açudagem.
De autor desconhecido:
Cedilha é barba do C,
B com I é bê-i-bi,
o 3 é o bucho do B,
o pingo é o boné do I,
o til é um S deitado
(sem valor estando só )
e o resfriado do som
torna fanhos A e O.
Uma obra poética é boa ou não; ela pode surgir para permanecer falante ou,
de repente, sumir calada. Que o diga Machado de Assis, autor deste
imortal soneto À Carolina.
61
Querida, ao pé do leito derradeiro
em que descansas dessa longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração do companheiro.
A cascavel se confia
no veneno que conduz.
Quem por ela for picado
pode rezar pra Jesus,
e encomendar quatro coisas:
caixão, cova, vela e cruz
Eis o que, a todos nós, cabe ver. Divina, a poesia é ornamento da casa de
Deus, onde há muitas moradas, tanto para os antigos quanto para os novos
bardos que têm, verdadeiramente, muito a dizer e contar. Destes, sim, as
inovações serão sempre bem-vindas.
61
CORREIO DA SAUDADE (38)
I – PRÓLOGO
A República, mal recém-chegada,
canhoneio dispara sobre gente
a Antônio dos Mares reverente,
multidão pela pátria deserdada
desde outrora e ainda descuidada
mais que fora durante o findo Império
todavia menor em revertério
que o regime novel de impopulares
leis contrárias ao jeito de milhares
de inditosos sem voz nem salvatério.
II – PRESSÁGIO
Dito graça dos céus é um “cometa”
ideado por Deus, que, de infinito
bem-querer a Canudos, chão bendito,
61
acha bom realçá-lo no Planeta
ativando, em pessoa, a espoleta
de um projétil mortal contra a estiagem
ressecante de safra, de pastagem,
de pessoas e bichos do lugar
onde a água, impossível de tragar,
é sal puro existente até na aragem.
III – CONSELHEIRO
Desde a infância sofrida o Conselheiro
desconhece o que seja refrigério
e inda sofre a desdita de adultério
da mulher com meganha aventureiro,
– par de amantes em jogo traiçoeiro;
a partir desse amargo desenlace
jamais houve outra fêmea que ele amasse,
nem sequer tal “Joana Imaginária”,
escultora de bela estatuária,
artesã reputada multiface.
IV – PRESTÍGIO
O prestígio de Antônio, a olhos vistos
é crescente perante seguidores
que ele próprio recobre de louvores,
santa gente os dizendo, novos Cristos
explorados por déspotas malquistos;
dons excelsos lhe são testemunhados
por devotos enfim esperançados
com aquele divino Aparecido,
Santo Antônio dos Mares condoído,
61
Bom Jesus, protetor dos maltratados.
V – CANUDOS
Ideada entre morros circundantes
antevê, o Profeta, deslumbrado,
a Canudos que tem imaginado;
são seus sonhos voltados aos migrantes
e sermões como nunca feitos antes
transparecem amor à prima vista
por aquele lugar, cuja conquista
dá sentido maior a sua vida,
cidadela por ele instituída
fortaleza da fé conselheirista.
VI – PROFECIA
É Canudos sinônimo do mal
na visão radical de opositor
do beato, convincente pregador
e pivô de querela nacional
a partir de notícia de jornal
reclamando severas providências
repressoras das “graves insolências”
e uma turba disposta a defendê-lo
pelas armas, tamanho é seu desvelo
por aquele abridor de consciências.
VII – PRÉDICAS
Ao invés de eremita alienado
é Antônio dos Mares orador
talentoso, inspirado pensador,
61
taumaturgo e profeta respeitado
pelo vário saber amealhado
em leitura constante; a destemida
posição de viril republicida
o transmuda em imigo declarado
do Governo e, por isso, destinado
a morrer num conflito fratricida.
VIII – REBELDIA
Manifestos ousados do beato
de repulsa à República nascente
o transformam em réu reincidente
no “delito de aberto desacato
ao Governo”, pivô de desbarato
do regime recém-inaugurado
no país, de repente ameaçado
de retorno iminente à Monarquia,
pois, decerto, esse “louco” pretendia
ver Dom Pedro de novo entronizado.
IX – PERSEGUIÇÃO
Cada vez mais benquisto e acreditado
por crescente caudal de seguidores
o beato provoca opositores
desejosos de vê-lo censurado
pela Igreja e por ela excomungado,
proibido inclusive de homilias
exclusivas dos padres, primazias
que, entretanto, ele quer exercitar,
inclusive o direito de expressar
61
seu desgosto ante leis daqueles dias.
X – NÃO
Uma vez as, de então, prerrogativas
dos prelados tornadas sem efeito
pelo novo regime sobra o jeito
de implorar aos poderes decisivas
providências, medidas repressivas
contra estes romeiros rebelados;
à espera da vinda de soldados
se resolve eleger um delegado
capuchinho, preposto encarregado
de, em Canudos, conter os sublevados.
XI – ESTOPIM
Não se entrega o pré-pago madeirame
de novíssima igreja: tratantada
por juiz desonesto coonestada
em favor de um compadre; o ato infame
atribula o beato e tal vexame
se transforma, depressa, em estopim
de vindouro e medonho torvelim
culminado com fogo e danação
em Canudos, total destruição
da cidade sagrada, amargo fim.
XII – CONFRONTOS
Maceté é cenário do primeiro
entrevero mortal entre soldados
da Bahia e crentes aliados
61
do beato: fiel ao Conselheiro
o rebelde magote guerrilheiro
toca fogo em cobranças da “mal vinda
e maldita República”; e ainda:
põe soldados em fuga disparada.
Para a tropa atacante derrotada
mal começa a peleja e já está finda...
XIII - GUERRA
Um Febrônio de Brito, convencido
da vitória, reúne em Monte Santo
sua tropa fadada, no entretanto,
ao malogro a despeito de ter sido
adestrada a capricho e recebido
o de mais avançado em armamento;
esse grupo, julgado no momento,
o maior – se ao primeiro comparado –
não cogita jamais ser derrotado
e daí o otimista açodamento.
XIV – DEFESA
De manhã é rendido pelotão
noite adentro de olho bem aberto
pra inimigo, de escuro recoberto,
que intente possível incursão
com audácia temível de espião
equipado pra muitos abater;
e, por isso, depois do amanhecer
a vigília prossegue redobrada
até ser, outra vez, hora chegada
61
de o alerta seguir-se ao sol morrer.
XV – DESASTRE
Por romeiros de novo subjugada
a República vê-se compelida
a levar Belo Monte de vencida
na terceira ofensiva preparada
contra Antônio dos Mares; comandada
por bravio soldado de carreira,
vingaria não só Pires Ferreira
e Febrônio de Brito, derrotados,
mas a honra ofendida de alteados
paladinos da pátria brasileira.
XVI – REPERCUSSÃO
Os jornais do Brasil mais engravecem
a derrota da terça expedição
incitando extremada comoção:
violentos protestos estremecem
capitais do país e se emudecem
porta-vozes da imprensa monarquista;
se propaga tal fúria revanchista
que assassínios ocorrem de apontados
partidários dos “loucos rebelados
do maldito arraial conselheirista”.
XVII – VINGANÇA
É urgente vingar aquela “afronta
ao Brasil, desonrado e envilecido
por um louco beato enfurecido,
61
desordeiro insolente além da conta”;
assim sendo depressa fica pronta
nova tropa que, então, Artur Oscar
e colegas aceitam comandar:
generais Savaget e João Barbosa
que, irmanados na alma belicosa,
querem tantas derrotas desforrar.
XVIII – ADEUS
Em Canudos já quase não se avista,
do Beato, a imagem agoureira;
por detrás da cortina de poeira
dos combates Antônio, belicista,
se recolhe e escreve, biblicista,
sua fala final de despedida,
se sentindo saído desta vida
para outra – a eterna – na esperança
de gozar toda a bem-aventurança
por Jesus no Evangelho prometida.
XIX – FIM
Iminente é o fim dos guerrilheiros:
a Antônio Beato um general
determina que volte ao Arraial
pra conter de uma vez seus companheiros
inda em luta; os “fanáticos guerreiros”
suas vidas teriam preservadas
pelas tropas legais vitoriadas;
numa hora se sabe o resultado:
Beatinho retorna acompanhado
61
de trezentas pessoas esfaimadas.
XX - CRÍTICAS
A notáveis figuras do Direito
associam-se vários jornalistas
pra evitar que inda mais conselheiristas
se consumam no ódio e preconceito
de agressores sem mínimo respeito
pelos pobres romeiros de Canudos
derrotados, famintos e desnudos;
agregados às tropas que se vão
canudenses padecem danação
sejam estes adultos ou miúdos.
(Continua)
XXI – CONTESTADO
Quinze anos depois a mortandade
volta em tudo análoga à primeira
Contestado inundando de sangueira:
morrem gentes que, por ingenuidade,
atribuem excelsa santidade
a beatos; ao passo que predicam
Zé Maria e João as certificam
da importância de crer na promissão
61
de um regime, afinal, de redenção
tal qual muitos carentes reivindicam.
XXII – MONGES
Diz a história que estranho viajor
pioneiro penetra a região:
João Maria Agostinho, profissão
eremita, esforçado construtor
de cruzeiro e capela, preletor
dos demais do seu tempo diferente:
nutrientes consome frugalmente,
martiriza-se (um santo!) todo dia
e tem própria ideal teologia
pra exemplar humildade a toda gente.
XXIII – TAUMATURGO
Zé Maria demonstra propensão
para o bem; monge alegre e amigável
de curar tem o dom incontestável
e até causa uma enorme agitação
ao obrar, de um rapaz, ressurreição;
tempos antes de dar ao “falecido”
nova vida, havia resolvido
a questão da gravíssima doença
de uma dama; daí a benquerença
conquistada de esposo agradecido.
XXIV – REVOLTA
Gota d’água do caso Contestado
é o ponto final da construção
de uma estrada de ferro, a demissão
61
coletiva do mal remunerado
operário que fora contratado
para as obras agora terminadas:
mais de dez mil pessoas atiradas
na penúria, iguais a cães sem dono
no aviltante vexame do abandono
enfermiças e ao léu, esfomeadas.
XXV - SANTIFICAÇÃO
Pouco tempo depois é deflagrado
um combate feroz e sanguinoso
entre mílite e monge opinioso,
para ambos de triste resultado:
brava gente se vai de cada lado,
inclusive o raivoso comandante
da milícia, bem como o pervagante
Zé Maria, em cuja sepultura
se coloca, de tábua, cobertura
pra mais fácil livrança do ocupante.
XXVI – EMBOSCADA
Antevê Manuel, moço “vidente”,
que hão de as armas possantes dos soldados
enguiçar e, portanto, derrotados
os “peludos” serão, completamente,
pelo bando “pelado” combatente;
entretanto se abala toda a crença
no profeta caído em malquerença
por levar para o leito dos amores
duas virgens meninas, grave ofensa!
XXVII – FOGUEIRA
61
Militares nos brios ofendidos
deliberam agora retornar
ao teatro da guerra e derrotar
(vingativos, irados e munidos
de efetivo maior) esses “bandidos”
desta vez sujeitados a um poder
combativo impossível de conter;
a caminho, de ódio envenenados,
carbonizam romeiros encontrados
de atalaia, em furor de estarrecer.
XXVIII – REFORÇO
Fortalecem-se as hostes resistentes
quanto mais valorosos se apresentam
seus guerreiros; forâneos se acrescentam
toda hora às fileiras combatentes
sob chefes romeiros diligentes,
entre os quais se destacam as figuras
temerárias de audazes criaturas
feito Elias Morais e o implacável
Chico Paes comandante formidável,
lutador sem recuos nem tremuras.
XXIX – REAÇÃO
Vaqueanos a dedo recrutados
entre os mais atilados do lugar
se encarregam, servis, de encaminhar
umas quinze centenas de soldados
aos redutos rebeldes destinados
à extinção; liquidar a “resistência
monarquista” transforma-se em premência
do governo, empenhado em destruir
61
o “inimigo” de modo a reduzir
duração dessa guerra de inclemência.
XXX – SIMBOLISMO
Os “pelados” opõem resistência
a qualquer candidato a habitante
do Arraial que pratique a degradante
profissão do comércio; é exigência
para ali ter a sua residência
declarar-se a favor da monarquia
posto que sem demora Zé Maria
voltará com reinado, inda que sangue
se derrame do povo quase exangue
porém crente na aurora desse dia.
XXXI – REFORÇO
Não se abate a República afrontada
pelo tosco guerreiro monarquista
e recruta afamado estrategista,
general de perícia comprovada
para, à frente de tropa reforçada,
destruir, finalmente, os rebelados;
contingente de sete mil soldados
pressiona o lugar Santa Maria
onde a gente crendeira se homizia
preparada pra ataques esperados.
XXXII – ANIQUILAMENTO
“Quadro Santo” se faz Santa Maria
sem igual em valente resistência
61
aos ataques de extrema violência
do governo; mas nada há de restar
do reduto rebelde: é de chorar
ver milhares de crédulas moradas
por incêndios contínuos destroçadas,
ver famílias inteiras consumidas
pais crendeiros doando suas vidas
pelas proles em tudo desvalidas.
XXI – CONTESTADO
Quinze anos depois a mortandade
volta em tudo análoga à primeira
Contestado inundando de sangueira:
morrem gentes que, por ingenuidade,
atribuem excelsa santidade
a beatos; ao passo que predicam
Zé Maria e João as certificam
da importância de crer na promissão
de um regime, afinal, de redenção
tal qual muitos carentes reivindicam.
XXII – MONGES
Diz a história que estranho viajor
pioneiro penetra a região:
João Maria Agostinho, profissão
eremita, esforçado construtor
de cruzeiro e capela, preletor
dos demais do seu tempo diferente:
nutrientes consome frugalmente,
martiriza-se (um santo!) todo dia
61
e tem própria ideal teologia
pra exemplar humildade a toda gente.
XXIII – TAUMATURGO
Zé Maria demonstra propensão
para o bem; monge alegre e amigável
de curar tem o dom incontestável
e até causa uma enorme agitação
ao obrar, de um rapaz, ressurreição;
tempos antes de dar ao “falecido”
nova vida, havia resolvido
a questão da gravíssima doença
de uma dama; daí a benquerença
conquistada de esposo agradecido.
XXIV – REVOLTA
Gota d’água do caso Contestado
é o ponto final da construção
de uma estrada de ferro, a demissão
coletiva do mal remunerado
operário que fora contratado
para as obras agora terminadas:
mais de dez mil pessoas atiradas
na penúria, iguais a cães sem dono
no aviltante vexame do abandono
enfermiças e ao léu, esfomeadas.
XXV - SANTIFICAÇÃO
Pouco tempo depois é deflagrado
um combate feroz e sanguinoso
61
entre mílite e monge opinioso,
para ambos de triste resultado:
brava gente se vai de cada lado,
inclusive o raivoso comandante
da milícia, bem como o pervagante
Zé Maria, em cuja sepultura
se coloca, de tábua, cobertura
pra mais fácil livrança do ocupante.
XXVI – EMBOSCADA
Antevê Manuel, moço “vidente”,
que hão de as armas possantes dos soldados
enguiçar e, portanto, derrotados
os “peludos” serão, completamente,
pelo bando “pelado” combatente;
entretanto se abala toda a crença
no profeta caído em malquerença
por levar para o leito dos amores
duas virgens meninas, grave ofensa!
XXVII – FOGUEIRA
Militares nos brios ofendidos
deliberam agora retornar
ao teatro da guerra e derrotar
(vingativos, irados e munidos
de efetivo maior) esses “bandidos”
desta vez sujeitados a um poder
combativo impossível de conter;
a caminho, de ódio envenenados,
carbonizam romeiros encontrados
61
de atalaia, em furor de estarrecer.
XXVIII – REFORÇO
Fortalecem-se as hostes resistentes
quanto mais valorosos se apresentam
seus guerreiros; forâneos se acrescentam
toda hora às fileiras combatentes
sob chefes romeiros diligentes,
entre os quais se destacam as figuras
temerárias de audazes criaturas
feito Elias Morais e o implacável
Chico Paes comandante formidável,
lutador sem recuos nem tremuras.
XXIX – REAÇÃO
Vaqueanos a dedo recrutados
entre os mais atilados do lugar
se encarregam, servis, de encaminhar
umas quinze centenas de soldados
aos redutos rebeldes destinados
à extinção; liquidar a “resistência
monarquista” transforma-se em premência
do governo, empenhado em destruir
o “inimigo” de modo a reduzir
duração dessa guerra de inclemência.
XXX – SIMBOLISMO
Os “pelados” opõem resistência
a qualquer candidato a habitante
do Arraial que pratique a degradante
61
profissão do comércio; é exigência
para ali ter a sua residência
declarar-se a favor da monarquia
posto que sem demora Zé Maria
voltará com reinado, inda que sangue
se derrame do povo quase exangue
porém crente na aurora desse dia.
XXXI – REFORÇO
Não se abate a República afrontada
pelo tosco guerreiro monarquista
e recruta afamado estrategista,
general de perícia comprovada
para, à frente de tropa reforçada,
destruir, finalmente, os rebelados;
contingente de sete mil soldados
pressiona o lugar Santa Maria
onde a gente crendeira se homizia
preparada pra ataques esperados.
XXXII – ANIQUILAMENTO
“Quadro Santo” se faz Santa Maria
sem igual em valente resistência
aos ataques de extrema violência
do governo; mas nada há de restar
do reduto rebelde: é de chorar
ver milhares de crédulas moradas
por incêndios contínuos destroçadas,
ver famílias inteiras consumidas
pais crendeiros doando suas vidas
61
pelas proles em tudo desvalidas.
XXXIII – CALDEIRÃO
Vinte e um anos apenas são passados
e é também destruído o Caldeirão
do beato Lourenço; nesse então
padre Cícero é santo popular
“em viagem” da qual há de voltar
ressurreto causando formidáveis
viravoltas, mudanças memoráveis
para espanto do incréu pois a pobreza
será bênção de Deus mais que a riqueza
de nababos de fato miseráveis.
XXXIV – PRECOCIDADE
Estimada pessoa especial
padre novo se instala em Juazeiro
e, depressa, é bem-vindo pioneiro:
sua simples igreja de arraial
habilita fiéis a um rural
afazer, de maneira a evitar
que dependam, um dia, de esmolar;
exclusivo pendente de oblações
resta Cícero, pois celebrações
que oficia recusa-se a cobrar.
XXXV – MILAGRE?
Juazeiro transborda peregrino
após hóstia sangrar na comunhão
da beata Mocinha; multidão
61
de repente aparece e é destino
da cidade-oratório nordestino
se afamar feito terra abençoada
e, por isso, querida e procurada
pelas gentes que, de alma e coração,
a creditam lugar de Promissão
pela Santa Trindade assinalada.
XXXVI – LOURENÇO
Aos quatorze ele cuida de escapar
de seu pai por quem é ameaçado
de sofrer chicotaço reforçado;
dá, portanto, asa aos pés para voar
de Pilões ao abrigo de um lugar
confiável de nome Serraria
onde, escravo, trabalha noite e dia
amansando cavalo e burro brabo;
quando dá de voltar ao fim e ao cabo
já paterna morada não havia
XXXVII – “MANSINHO”
Padre Cícero é presenteado
com um belo exemplar de guzerá
melhor touro zebu do Ceará,
vigoroso animal bem-comportado
e, por isso, “Mansinho” apelidado
pelo povo do sítio Baixa d’Anta;
portador natural de “calma santa”
é o bicho ofertado ao bom “Padim”
e assim sendo não quer comer “capim
61
pecador”, para o qual tranca a garganta...
XXXVIII – SUCESSOR
Não pretende, Lourenço, do “Padim”
o lugar, mesmo sendo o mais capaz
de assumi-lo, silente quão loquaz
quando é hora de usar o seu latim
haja vento suave ou torvelim;
faz-se, pois, o suplente natural
desse padre de jeito sem igual;
quanto mais abatido lhe aparece
o beato Lourenço fortalece
com o pão, também espiritual.
XXXIX – INVASÃO
Quatrocentos casebres devassados
dão motivo a bravíssimo protesto
de velhinha ante dano tão molesto;
do profundo dos olhos marejados,
mãos trementes e lábios ressecados
admoesta tenente imperioso
para a força de um Deus judicioso
muito acima do injusto ser humano
suscetível, até por ledo engano,
de causar malefício abominoso.
XL - EPÍLOGO
Resumindo a romeira maldição:
no princípio, Canudos destroçado;
quinze anos depois o Contestado;
61
vinte e um, explodido o Caldeirão
no furor da maior descompaixão:
na verdade massacre mascarado
de defesa do Estado ameaçado
por perigos de fato inexistentes
pois apenas desejam, pobres gentes,
derreter os grilhões dos potentados.
A PROPÓSITO DE PESQUISAS...
Acostumei-me a uma ressalva feita, religiosamente,
pelo antropólogo Gilberto Freyre antes de declarar a
qualquer de seus entrevistadores quais autores
preferia em determinados gêneros do multiface
âmbito do saber. Ele sempre respondia a partir deste
proverbial começo: “Entre os autores que
conheço...”
Longe de presumir-me um gilbertiano a mais, apenas
me atrevo a arriscar que essa talvez fosse a maneira
de o Mestre de Apipucos ter em mente aquele
suposto dizer socrático “só sei que nada sei”.
Honro-me de ter podido absorver, ao vivo, este
precioso ensinamento, que agora utilizo para
responder pergunta do irmão-eletivo Jorge José B.
de Santana, meu colega na classe ministrada em
61
pessoa pelo autor de Casa Grande &Senzala, “O que
você está achando dessas pesquisas?”
Nada, caro Jorge. Até aqui não participei delas
sequer na condição de pesquisado o que, decerto, me
desautoriza a avaliar qualquer uma. Posso, portanto,
apenas falar das que conheci no passado, três das
quais guardo na lembrança. A primeira delas, data de
1949. Aos 19 anos de idade eu começava na
radiofonia cearense. Os donos da minha singela
emissora ansiavam por índices que os posicionassem
no mercado. Como sobreviver sem o apoio dos
senhores anunciantes tão ávidos de números?
Resolveram, então, contratar pesquisa de opinião na
esperança de uma comprovação que, de alguma
forma, inibisse a prepotência da sua concorrente
única, pretensa dona do equivalente a 90% da
audiência estadual.
O batimento de martelo nesse gênero de negócio
depende , muitas vezes, da colocação em prática de
ideias inerentes a experimentados mercadólogos. Só
eles têm competência para favorecer clientes, pelo
menos durante o período das pesquisas. Isso pode
ser pouco, mas é melhor do que nada. Pensando
assim, minha emissora cumpriu o ardiloso dever de
casa que lhe foi aconselhado pela empresa
pesquisadora. Outubro começava. Entre outras
iniciativas, havia tempo para a formação de uma
espécie de consórcio de anunciantes que, a custo
simbólico, patrocinassem “Semana do Ouvinte
Premiado” a ser realizada no entorno de 4 de
61
dezembro, a pretexto de comemoração do Dia
Mundial da Propaganda. Cada patrocinador
terminava todos os seus anúncios dessa semana com
uma palavra-chave exclusiva para anotação e envio
pelos ouvintes no fim da promoção. Conforme o
grau de acerto das suas anotações os ouvintes
poderiam comprar - do brinquedo ao automóvel de
verdade - com descontos proporcionais até 25%. A
promoção influiu fortemente na audiência, claro.
Minha segunda lembrança de pesquisa vem de l965,
quando a Rádio Tamandaré deu de tornar-se
exclusivamente musical em vez de continuar
concorrente da sua então coirmã “associada” Rádio
Clube, inclusive em cobertura de futebol.
O primeiro passo nessa direção foi testar a ideia.
Durante quatro domingos à tarde preencheu o
horário esportivo com música, preferencialmente
dançante. Era o tempo do rádio baile, quando as
pessoas ainda costumavam arrastar os móveis e
dançar na sala de visitas. Rareavam os prédios de
apartamento e a abordagem residencial porta-a-porta
era comum. Uma equipe de pesquisadores muniu-se
de rigorosa listagem musical onde figuravam títulos,
intérpretes e horários aproximados de cada tocata.
Donos de casa admitiram que, realmente, dançavam
ao som da Tamandaré, mas o Rádio Jornal era a sua
emissora preferida...
Minha terceira lembrança é de quando cuidei da
conta publicitária da Caderneta de Poupança Apepe.
61
Até então nunca anunciei na Globo, porque o
patrocínio de uma quota do Miss Pernambuco na TV
Clube me dava, por ano, comerciais que eu
distribuía mensalmente com bastante folga. A
propósito, surpreendi meu cliente com o curioso
resultado de pesquisa de boca de caixa a qual ele
concordou. Enquanto o poupador(a) sacava ou
depositava na sua caderneta de poupança, tinha
tempo suficiente para marcar quadradinhos
respondendo se via ou não via TV, qual a TV que
mais via, de quais dos nossos comerciais ele(a) se
lembrava de ter visto: 1- O do automóvel acelerado
ensinando a chegar na loja; 2- O das
“recepcionistas” distribuindo cofrinhos com
bandeira do Brasil; 3- O do “economista” explicando
a Apepe, além de um comercial da Caixa Econômica
e outro do Bamerindus.
Do começo ao fim da pesquisa os resultados se
equivaleram: pouquíssimas pessoas confundiram os
comerciais, porém vistos pela grande maioria delas
na TV Globo, nunca veiculada.
É possível que não tenhamos dado resposta objetiva.
Mas, pelo menos sugerimos duvidar-se de pesquisa
isenta, sujeita que ela é a tantas imprecisões
inimagináveis. Enfim, vale parodiar o genial
Shakespeare: há muito mais coisas entre a pesquisa e
o mercado do que supõe o nosso vão
conhecimento...
61
CORREIO DA SAUDADE (42)
II - ESTIGMA
Sequer a Colônia assinala a estiagem,
61
tampouco a conhece, de fato, o Império;
somente a República, enfim, leva a sério
o assunto saindo de obras à margem
do cerne do drama: sabida voragem
de verbas de ajuda só torna aumentada,
de secas em secas, gastança pra nada
porque ninharia se faz, na verdade,
o muito a obrar ante a necessidade
da gente sofrida e, pior, dizimada.
III - SIMPATIAS
Aposta o campônio na própria ciência,
primária noção baseada em sabença
de longe provinda; fiado, dispensa
diploma erudito pois antevidência
também lhe confere invulgar competência
pra ler na caatinga e nalguns animais
de inverno ou de seca distintos sinais
mandados de graça por quem tudo sabe,
um Deus cuja excelsa mestria não cabe
no siso terral de doutores formais.
IV - PROFECIAS
Da mais transparente religiosidade
o homem do campo transporta-se ao Alto
em busca de todos os bens de que é falto:
transmuda os receios à calamidade
do estio mal vindo em chuvada à vontade;
entrega-se a Deus que lhe põe profecias
na boca incapaz de charlatanarias
61
pois vêm dos céus, afinal, predições
de, em vez de sequeiros, só aluviões
enchentes saudadas com Ave-Marias.
V – TRAGÉDIA
De súbito chega a tragédia sabida
por quem já conhece o seu ciclo infalível
de imenso flagelo, tortura indizível;
no entanto demora, retarda a partida
o bravo habitante da terra incendida
por limbo candente que, presto, a invade;
não foge às carreiras pois mais ninguém há de
amar, mesmo seco, seu chão natalício,
torrão merecido de até sacrifício
da amara existência em necessidade.
VI - FOME
Razão de desordem na sociedade
e causa maior de finança falida,
a seca destrói os sustentos da vida:
esgotam-se as águas ainda bebíveis,
pastagens se crestam, calores terríveis
requeimam lavouras; no povo faminto,
sedento e exaurido prorrompe o instinto
de sobrevivência; pedintes ao léu
fiados imploram de olhos no céu
a volta do verde ao terreno destinto.
VII – CURRAIS
61
Costumam histórias de grande estiagem
partir do sertão para até Fortaleza,
enfim terminal do migrante: a fraqueza
de tantos governos de má arbitragem
é causa de caos, perversão, ladroagem
e ardor de um cenário geral de miséria
que torna a secura inda mais deletéria:
abarracamentos – currais humilhantes –
mantêm cercados novéis retirantes
que sempre aparecem sem hora de féria.
VIII - LITERATURA
A arte da escrita influi para dar-se,
embora tardia, a importância devida
a tanta secura malsã repetida
e desse fenômeno a sério tratar-se,
expor-lhe as mazelas terríveis, cunhar-se
moderna palavra – caatinga – inventada
pra identificar a folhagem crestada,
fazerem-se estudos, discursos tocantes,
denúncias penosas, relatos chocantes
falando de angústia jamais aplacada.
IX - MÚSICA
No seu centenário é rememorada
a seca impiedosa de setenta e sete
dos mil e oitocentos; de volta à manchete
é como se ela queimasse o jornal
voltasse a matar o caboclo ancestral
61
porque Fenelon, jornalista disposto
ao pleno resgate daquele desgosto
de lágrima inunda os olhos do povo
em dez reportagens que trazem de novo
calor escaldante até no sol-posto.
X – AMAZÔNIA
Meditam na volta mal partem migrantes:
que ela se dê o mais breve possível
porque para eles não há mais horrível
castigo que irem a plagas distantes
e, à força, virarem pessoas errantes
no inferno verdeal do Amazonas sem fim
onde hão de enfrentar mil doenças e enfim
viver sob o medo a lendário animal
saído das águas, da mata letal
ou seringalista ladino e ruim.
XI – BORRACHA
A seca de Quinze destrói no braseiro
as roças que pode encontrar no Nordeste
e espalha por lá todo tipo de peste
que mais agudiza o pavor do sequeiro
e aquele que escapa dispõe-se ligeiro
a, embora temendo o desconhecido,
partir para um mundo no Norte escondido
em densa floresta onde mora a riqueza:
borracha abundante que cobra destreza
de quem a colhê-la se mostre aguerrido.
61
XII - SOLDADOS
Após o seu auge durante uns trint’anos
ressurge a borracha inda mais importante
pra Guerra Segunda, ação demandante
do dito produto: norte-americanos
na Grande Amazônia concentram humanos
recursos em busca da urgente extração
do que é, nessa hora, de mais precisão
e, assim, seringueiros mal improvisados
engrossam fileiras dos Três Aliados
varando a floresta no seu coração.
XIII - ESTUDO
A seca inda é um fenômeno eleito
por estudiosos notáveis em várias
ciências humanas e auxiliárias
de doutos juízos e autoridades
em vastos saberes e habilidades
inclusas sabenças em engenharia,
pesquisa bem como meteorologia
em busca de como melhor entendê-la
se não pelo menos, talvez, antevê-la
a fim de evitar inda mais latomia.
XIV - EPÍLOGO
Enquanto mendigam a pele enegrece
grudada nos ossos; finada a energia
aos montes falecem de hidropisia,
de fome e de sede outro tanto enlouquece;
porém nem assim quem escapa esmorece
61
tampouco maldiz o sertão ressequido
pois há de voltar logo esteja chovido
seu chão tão amado; depois do martírio
a chama da fé bruxuleia no círio
e tudo renasce a partir do perdido.
PRÓLOGO
Há na história do negro uma viagem
que ele ainda maldiz, infelizmente,
rumo a costa-destino de ancoragem
onde espera-o, inexoravelmente,
61
a pior - dentre todas - vassalagem
redutora de a bicho a afro gente
a centúrias de cego preconceito
e desdém criminoso ao bom Direito.
(Continua)
61
(Continua)
JOHANN-MORITZ RUGENDAS
(Augsburg-ALM, 1802-1858, Weilheim an
der Teck-ALM)
Fala Moritz Rugendas, sem mentir:
pode o artista, no Rio de Janeiro,
resultados melhores atingir
se vier explorá-lo, sim, primeiro
do que a África a fim de conseguir
pintar negro africano por inteiro:
dois cadernos de rostos diferentes
de diversas etnias concorrentes.
(Continua)
59
60
Dramaturgo de criatividade
“Felizberta” ideou, industriosa:
ela escapa, com grande habilidade,
das ciladas de dona rancorosa
e “Direito” vai em docilidade
calculada, ladina e ardilosa
caminhando por “Linhas” mesmo “Tortas”
até ver se lhe abrirem novas portas...
61