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RESENHA

Bruno Oliveira
Mariana da Silva
Pedro Thiago da Cruz Costa

Bacharelandos em Teologia pela Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis/RJ

A IGREJA DO DIABO

PALAVRAS-CHAVE

Deus. – Diabo. – Igreja. – Mundo. – Homem.

O AUTOR

Joaquim Maria Machado de Assis, nascido no Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839,


e falecido em 29 de setembro de 1908, foi escritor brasileiro, amplamente considerado
como o maior nome da literatura nacional. Escreveu em praticamente todos os gêneros
literários, sendo poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista,
e crítico literário. Sua extensa obra constitui-se de nove romances e peças teatrais,
duzentos contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos, e mais de seiscentas crônicas.

O CONTO

Em linguagem rebuscada, repleta de simbolismos, com menções mais ou menos


claras de passagens bíblicas, estilo parabólico e irônico, o conto A Igreja do Diabo foi
publicado em 1884, e integra o livro Histórias Sem Data. É peculiar do Movimento
Realista, em oposição ao Romantismo, o qual Machado de Assis representa, sobrexaltar
a crítica à humanidade e à sociedade.
O capítulo 1 é intitulado “De uma ideia mirífica”. Ao referir o conto a um
“manuscrito beneditino”, sem detalhes temporais, Machado parece já situá-lo dentro de
uma esfera religiosa, embora sua intenção a transcenda, objetivando propor a clássica
“moral da história” aos leitores.
Como diz o antigo adágio, o diabo é o “macaco de Deus”. Por macaquice, ele
decidiu fundar uma igreja. O papel marginal e desorganizado – ou, em outras palavras,
não institucional – de seus intentos milenares o humilhava; o diabo estava incomodado
com a ausência de cânones e rituais, como aqueles que via existir na igreja de Deus. A
universalidade religiosa às avessas que ele propunha aos homens – a tenda de Abraão que
decidira armar – não teria rival algum, porque se Lutero e Maomé se achavam paralelos
à Igreja, no intento de afirmar Deus, tais quais outras religiões a se apresentarem como
vias de acesso ao divino, o credo do diabo não teria nada que ver com elas, e poderia
seguir com desembaraço sua proposta revolucionária. A sua religião estranha e macabra
daria fim a todas as outras.
Já no capítulo 2, em um cenário idêntico ao do Livro de Jó, posta-se na presença
de Deus e seus anjos “o espírito que nega”. Palavras semelhantes às bíblicas são ditas ao
diabo quanto ao ancião recebido no céu, no mesmo instante de sua incômoda chegada.
Aqui o acusador, com ar de escárnio, encontra ocasião de expor a Deus o projeto que o
fez crer superior a Deus, em um “breve instante de eternidade”. A retórica do diabo
causou mais tédio nos anjos que em Deus. A cena é cômica pelos contrastes. O inimigo,
interrompido por Deus, é censurado por ser o seu discurso clichê, em nada diferente do
dos moralistas do mundo. A figura de Deus parece ser guardada por Machado com certa
reverência; a paciência daquele em relação às novidades satânicas, longe de significa re m
inércia, despreocupação ou impotência, dão, pelo contrário, um antegozo da sabedoria
com que o autor finalizará o conto, pondo-a na boca do próprio Deus.
Sobre “A boa-nova aos homens”, trata o capítulo 3. Ao vestir o diabo com o
hábito beneditino, por causa da “boa fama”, Machado parece destacar o prestígio de que
os religiosos desfrutam na sociedade. O diabo, para chegar mais facilmente aos homens,
se serve do crédito estético ao qual nem sempre acompanham os devidos princíp ios
morais. Dizer à turba ser o próprio diabo não era um problema para ele, uma vez que
pleiteava desconstruir a imagem tenebrosa com a qual fora pintado. Começando com um
discurso carismático, fiado em promessas, o diabo inaugurou a novidade de sua doutrina,
que consistia, essencialmente, em negar todas as virtudes e substituí-las por aquelas outras
às quais ele chamou “naturais e legítimas”; assim “foram reabilitadas” soberba, gula,
luxúria, preguiça... e o elenco tradicionalmente conhecido.
O capítulo 4 finaliza o conto. Consolidada no tempo e entre as nações, a igreja do
diabo já possuía o prestígio que seu fundador previra. Um dia, no entanto, todo perplexo,
“notou o diabo que muitos de seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes.
Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas por partes”, e às ocultas. Com
humor excepcional, Machado acrescenta: “A descoberta assombrou o diabo”. O próprio
autor do mal o desconhecia a fundo: eis a contradição machadiana, o cenário do humor,
o vértice do problema que ele sublinha nesta obra.
O diabo conheceu o droguista, que envenenava e remediava; o ladrão de camelos,
que roubava e dava esmola; o calabrês que fraudava e dava gratificações aos empregados,
além de se benzer e confessar com um cônego. Pasmo com o espetáculo humano, o diabo
nem mesmo conseguiu buscar precedentes históricos, que lhe conferissem condições de
compreender aquilo que vira. Trêmulo de raiva, sobe a Deus para descobrir a causa desse
terrível fenômeno. Paciente e soberano, Deus não exulta com aquela “agonia satânica”,
apenas olha o triste diabo e lhe diz: “É a eterna contradição humana”.

APRECIAÇÃO CRÍTICA DO CONTO

Machado de Assis, segundo os comentadores literários, tinha uma concepção


pessimista quer cosmológica, quer antropológica. O ser humano, radicado na contradição,
está gravemente subordinado a mil mazelas, e é uma entre tantas engrenagens de um
mundo não saudável. A “máquina do universo”, para Camões, está com defeito, para o
Bruxo do Cosme Velho. Nas obras deste, aquilo que se espera como final feliz não tem a
palavra final, e o mal, contra o costume, muitas vezes, prevalece sobre o bem.
A sentença com a qual Machado conclui a sua obra, surpreende o leitor: “É a
eterna contradição humana”. Ao desejo de encontrar uma resposta sucede a insatisfação
de não se encontrar na resposta dada por Deus a solução para o problema suscitado ao
longo do conto: Que é o homem? O escritor se limita a não responder a essa questão. A
sua pretensão, com este conto, é assentar a sua própria concepção antropológica, não a
aparente religiosidade com que ilustra suas ideias.
Fazer derivar de Deus a sentença que deixa em suspenso o problema do homem
pode significar, para o autor, que, se ele é autoridade a quem se deve prestar ouvidos,
então Deus mesmo, como o diabo, assistem perplexos ao drama de um homem que não
possui explicação. Pode significar, ainda, que, se Deus o entende, então legitima a visão
machadiana que permeia todo o conto, aquela antropologia pessimista que não possui
qualquer relação com o transcendente, com o numinoso.
Quando seus intentos malignos chocam com o drama do homem, lê-se que essa
“descoberta assombrou o diabo”. Machado não poderia ter sido mais irônico do que pôr
na boca do diabo – radical e eternamente mal – a sua própria perplexidade a respeito de
um ser que, enquanto estiver neste mundo, não pode ser categorizado como “bom” ou
“mau”, o homem; e isso exatamente porque a condição terrena deste é a causa daquilo a
que intitulou “a eterna contradição humana”. O escritor fez parecer que, para o diabo,
mais ruim é a flutuação humana em suas decisões que a sólida obstinação naquilo que é
essencialmente ruim, o mal. O desdém do diabo para com o ancião que Deus recolhe no
céu, cujo nome é Fausto, faz uma intertextualidade com uma obra de Goethe, na qual
Fausto vende a alma ao diabo em troca de um saber supremo. A palavra do acusador põe
às claras a crítica de Machado: o mal seduz o homem e o engole sem dificuldades; Deus
não tinha razões para o salvar.
A presunção do diabo para com o homem, no início deste conto, é semelhante ao
do candidato político para com o eleitor: ambos julgam conhecer os destinatários de suas
propostas, mas, no fim das contas, os eleitores os podem surpreender. A pretensão dos
projetos que lhe deram sucesso temporário contou com a fraqueza humana para a
maldade, que Machado em diversos trechos do conto deixa assinalado. Embora critique
o catolicismo, o escritor faz o diabo não se incomodar com a doutrina de Maomé e de
Lutero, como se lhe parecessem desprezíveis. Por outro lado, Machado frisa a tendência
humana de ser convencida pelo prestígio estético, e veste o diabo com o hábito beneditino,
como que significando não importar aquilo que alguém é internamente – ainda que seja
o diabo – se, externamente, ele guardar com reverência aquilo a que os homens respeitam,
mesmo na aparência. Outro aspecto, enfim, e justamente aquele que migra para o ápice
da história, é a incapacidade do homem de ser completo no bem ou no mal. Tanto é que,
mesmo podendo praticar o mal como preceito religioso, o homem nunca está privado da
possibilidade de escolher o bem. Os fiéis da igreja do diabo praticavam as virtudes, mas
nem todas, nem por inteiro e não à vista dos outros.
Se é verdade que, antigamente, “o vício pagava tributo à virtude” em nome dos
bons costumes sociais, apesar de atualmente “a virtude pagar tributo ao vício”, tudo se
trata de generalizações que, na opinião de Machado, não contemplam a verdade acerca
do homem. O seu pessimismo antropológico não está na mesma perspectiva adotada pela
teologia. O homem é, por natureza, bom e, por causa da ferida do pecado, capaz de mal;
ao contrário, Machado, com uma antropologia que em nada considera o ultraterreno, diz
que o homem é mal, mas capaz de bem. No entanto, é preciso concordar com o escritor
que o homem está dividido em si mesmo, e nenhum discurso moralizante pode enquadrá -
lo na fila dos bons ou dos maus, rigidamente.
Podemos, a propósito, sublinhar o princípio de que somente o bem enxerga bem
aquilo que é mal. O mal não enxerga com olhos saudáveis a realidade mesma; falta-lhe a
precisão de juízo. Em O Auto da Compadecida, na cena do julgamento de João Grilo, o
Juiz – o Cristo negro – lhe dá a palavra; aquele reconhece o seu pecado e se dirige para o
inferno. O acusador vibra. Acontece que, sem uma intervenção dos céus, simbolizada na
defesa de Nossa Senhora, o pecador não conseguiria alcançar a verdade acerca de si
mesmo. O Realismo francês, que influenciou no Naturalismo da literatura brasileira, traz
consigo a deficiência que Machado identificou, ao evidenciar que o homem não pode ser
explicado integralmente pelo homem; a religião, à qual ele acudiu – ao menos na
simbólica católica com a qual ilustrou inteligentemente o seu conto –, ainda que lhe
pudesse propor as bases estáveis para responder aos problemas suscitados na história, foi
considerada insuficiente neste intento.
A concepção de instituição, e em especial naquilo com que se relaciona com a
perspectiva antropológica de Machado, também foi criticada neste conto. Curioso é que
o espírito de confusão faz uma opção pela ordem, a organização clássica, com cânones e
rituais, por exemplo. O autor escreve em um período histórico-social do Brasil em que
era evidente a decadência do Império, a iminência da República e as instituições, como a
Igreja Católica, eram criticadas abertamente pelos positivistas. Repensar o valor de uma
instituição religiosa era, nesse contexto, no mínimo um escárnio. Há quem considere a
simbólica do conto até carnavalesca. Em um primeiro momento, Machado ressalta não
tanto a qualidade moral – quer da igreja de Deus, quer da igreja do diabo –, quanto, e
sobretudo, a influência que uma instituição exerce sobre os indivíduos. A frustração dessa
lógica é a contradição machadiana, o paradoxo que arremata a ideia do autor acerca do
problema do homem: a instituição não faz o indivíduo.
O que se espera de um indivíduo da igreja de Deus é a idoneidade no bem, como
a idoneidade no mal daquele que está na igreja do diabo. Interessante é que, no conto, o
próprio autor do mal o desconhecia a fundo. O diabo, também ele era ingênuo quanto ao
mal: fica assombrado com as possibilidades humanas, estranhas à sua condição angélica
– ou melhor, diabólica. Mas o que tinha sido uma descoberta, algo inédito para o diabo,
não o era para Deus e seus anjos. Alistar-se, pertencer a uma instituição não é garantia de
que um indivíduo esteja plenamente conforme com os seus princípios.
O escritor mulato já critica a igreja de Deus, enquanto instituição, ao pôr na boca
do diabo a comparação dela com uma loja vazia, quando o sucesso de sua instituição às
avessas se implantasse no mundo. Indiretamente também ele a critica, ao sugerir que
mesmo “o preço mais barato” de sua instituição não é o suficiente para uma freguesia tão
complexa como o homem; ou seja, por mais idônea que seja uma instituição naquilo a
que se propõe, o homem a turba e a corrompe. A causa do tumulto é a mesma em ambas
as igrejas, a inconstância do homem. É falho o seu compromisso. Contudo, a indifere nça
entre qual instituição religiosa é válida para o homem, a fim de alcançar a ética por ele
desejada, lança, ao mesmo tempo, o papel da instituição e da religião na imprecisão de
uma escolha. A instituição não é capaz de manter o homem em ideais comuns, ainda que
estes sejam religiosos – e, quem sabe, ainda que estes sejam os verdadeiros. O tédio dos
anjos, na nossa opinião, situado no início do conto, fez o próprio Machado cair, de certo
modo, em uma contradição. Aqueles se aborreceram com uma inverdade e que foi
corroborada no fato de Deus mesmo ter recebido a Fausto no céu. Ora, a instituição não
encaminhou um homem para uma sorte escatológica precisa, o céu? Talvez o erro de
Machado nesse ponto, chegando já ao fim do conto, tenha sido acreditar mais no “espírito
que nega” – e nega tudo, como disse a Deus – que no Senhor.
A Igreja do Diabo apresenta um produto literário de riquíssimo conteúdo, no qual,
entre os muitos aspectos que merecem ser destacados nesta resenha, quisemos destacar,
especialmente, a perspectiva de antropologia e de instituição que o autor nos propõe. A
antropologia machadiana não contempla o homem a partir da bondade originária que a fé
na criação, a propósito, professa. E a sua concepção de instituição demonstra a descrença
do escritor em relação à habilitação real – moralmente falando – que ela produz nos
indivíduos que a integram. Uma coisa atrelada à outra sustentou a crítica que Machado
de Assis levanta neste conto. No entanto, ele identificou o problema do mal e tateou, em
sua antropologia, a inerência deste problema à situação em que o homem se encontra.
Identificar no homem o mal não quer dizer que ele seja, por natureza, mal. Também ele
não poderia ser bom e mau, concomitantemente, porque uma coisa não pode ser duas, e
ainda mais o seu contrário, segundo o parecer de Aristóteles. Além disso, a instituição
possui uma interligação com o indivíduo, porque é modelada pelo homem e o modela.
Machado identificou isso também. Àquilo, porém, que ele percebeu como prejudicial – a
capacidade de escolher algo diverso de uma decisão tomada –, na realidade é a mesma
força que, sem responsabilidade, torna o homem, de fato, muito limitado na realização de
seu potencial: a liberdade.

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