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HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA

E MEDIEVAL
CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD

História da Igreja Antiga e Medieval – Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula

Sou Pe. Ronaldo Mazula. Sou mestre em História da Igreja


pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Bacharel em
Teologia pelo Studium Theologicum de Curitiba e graduado
em Filosofia pelo Curso Seminarístico de Rio Claro e Ribeirão
Preto. Atuei como Vice-Reitor e Pró-reitor de Extensão e Ação
Comunitária do Claretiano (Batatais-SP), como professor titular
do Studium Theologicum (Curitiba-PR) em outras instituições.
Sou assessor da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) de
vários jornais de abrangência regional. Além disso, participei de
eventos como: congressos e atividades nas áreas educativa e
religiosa no Brasil e em outros países – Áustria, Alemanha, México, Roma, Espanha, Bolívia,
Peru, Colômbia, República Dominicana etc. No curso de bacharelado em Teologia do
Claretiano, sou autor da disciplina História da Igreja Antiga e Medieval. Recentemente fui
elegido Vice-Provincial e coordenador das obras apostólicas dos Missionários Claretianos
do Brasil.
e-mail: ronaldomazula@hotmail.com

Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação


Ronaldo Mazula

HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA


E MEDIEVAL

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2010 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

270.4 R367e

Mazula, Ronaldo
História da igreja antiga e medieval / Ronaldo Mazula – Batatais, SP :
Claretiano, 2013.
276 p.

ISBN: 978-85-8377-022-0

1. Constituição e organização da Igreja. 2. Heresias antigas. 3. Concílios


ecumênicos. 4. Cristianismo. 5. Feudalismo. 6. Cisma de Oriente. 7. Islamismo
e Cruzadas. 8. Inquisição. 9. Idade Média e Moderna. 10. Período pré-luterano.
I. História da igreja antiga e medieval.

CDD 270.4

Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional


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Camila Maria Nardi Matos Felipe Aleixo
Carolina de Andrade Baviera Filipi Andrade de Deus Silveira
Cátia Aparecida Ribeiro Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz
Dandara Louise Vieira Matavelli Rodrigo Ferreira Daverni
Elaine Aparecida de Lima Moraes Sônia Galindo Melo
Josiane Marchiori Martins
Talita Cristina Bartolomeu
Lidiane Maria Magalini
Vanessa Vergani Machado
Luciana A. Mani Adami
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Luis Henrique de Souza Projeto gráfico, diagramação e capa
Patrícia Alves Veronez Montera Eduardo de Oliveira Azevedo
Raquel Baptista Meneses Frata Joice Cristina Micai
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Simone Rodrigues de Oliveira Luis Antônio Guimarães Toloi
Raphael Fantacini de Oliveira
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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9
2 ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO........................................................................... 11

Unidade 1 – HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA: TEMAS INTRODUTÓRIOS E


COMUNIDADE PRIMITIVA
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 25
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 25
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 26
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 28
5 HISTORICIDADE DA IGREJA.............................................................................. 28
6 ANTIGUIDADE CRISTÃ (DO ANO 1 A 692): SÍNTESE ....................................... 37
7 AMBIENTE DO NASCIMENTO DA IGREJA........................................................ 39
8 JESUS CRISTO..................................................................................................... 54
9 COMUNIDADE DE JERUSALÉM E EXPANSÃO INICIAL..................................... 61
10 E XPANSÃO DO CRISTIANISMO FORA DA PALESTINA..................................... 66
11 Q UESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 74
12 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 76
13 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 76

Unidade 2 – ORGANIZAÇÃO DO CRISTIANISMO ANTIGO, LITURGIA,


VIDA MONÁSTICA, HERESIAS, ESCRITORES CRISTÃOS E
CONCÍLIOS ECUMÊNICOS
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 79
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 80
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 80
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 81
5 ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA DA IGREJA ..................................................... 82
6 HIERARQUIA DA IGREJA .................................................................................. 86
7 DIOCESES, PROVÍNCIAS ECLESIÁSTICAS, PATRIARCADOS E PRIMADO DE
ROMA................................................................................................................. 91
8 SÍNODOS E CONCÍLIOS..................................................................................... 95
9 CULTO E SACRAMENTOS................................................................................... 96
10 F ESTAS CRISTÃS E MEIOS DE SANTIFICAÇÃO.................................................. 104
11 A SCETAS, VIRGENS E ORIGEM DA VIDA MONÁSTICA.................................... 106
12 C ISMAS E HERESIAS DOS PRIMEIROS SÉCULOS............................................. 115
13 H ERESIAS, CISMAS E CONCÍLIOS DOS SÉCULOS 4º AO 7º.............................. 124
14 PADRES APOSTÓLICOS E ESCRITORES ECLESIÁSTICOS (SÉCULOS 1º AO 3º)......... 129
15 PADRES DA IGREJA E ESCRITORES ECLESIÁSTICOS DOS SÉCULOS 4º AO 7º ......... 134
16 Q UESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 135
17 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 136
18 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 137
19 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 137

Unidade 3 – PERSEGUIÇÕES ROMANAS, OFICIALIZAÇÃO DO


CRISTIANISMO E ALIANÇA COM O ESTADO ROMANO
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 139
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 139
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 140
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 141
5 PERSEGUIÇÕES DO IMPÉRIO ROMANO AOS CRISTÃOS................................. 142
6 IGREJA NO IMPÉRIO ROMANO CRISTÃO ........................................................ 162
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 176
8 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 177
9 E-REFERÊNCIA................................................................................................... 177
10 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 177

Unidade 4 – CARACTERÍSTICAS DO MUNDO MEDIEVAL, QUEDA DE


ROMA E ASCENSÃO DO CRISTIANISMO
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 179
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 179
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 180
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 181
5 IDADE MÉDIA .................................................................................................... 181
6 QUEDA DE ROMA (476) E OS POVOS GERMÂNICOS E ESLAVOS (BÁRBAROS)..... 185
7 ASCENSÃO DA IGREJA, CRIAÇÃO DO ESTADO PONTIFÍCIO E FEUDALISMO.192
8 ESPIRITUALIDADE CRISTÃ................................................................................. 196
9 VIDA MONÁSTICA............................................................................................. 198
10 Q UESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 199
11 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 199
12 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 200

Unidade 5 – A CRISTANDADE MEDIEVAL: CISMA DO ORIENTE (1054),


IGREJAS ORTODOXAS, ISLAMISMO E CRUZADAS
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 201
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 201
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 201
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 202
5 CONTEXTO DESTE PERÍODO............................................................................. 202
6 ORGANIZAÇÃO ECLESIAL NA IDADE MÉDIA (A CRISTANDADE).................... 205
7 CISMA DO ORIENTE (1054) E AS IGREJAS ORTODOXAS................................. 213
8 ISLAMISMO E CRUZADAS ................................................................................ 217
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 225
10 CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 225
11 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 225

Unidade 6 – O AUGE E A CRISE DA CRISTANDADE A INQUISIÇÃO A


TRANSIÇÃO ENTRE A IDADE MÉDIA E A IDADE MODERNA
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 227
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 228
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 228
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 229
5 O AUGE E A CRISE DA CRISTANDADE (AS INVESTIDURAS)............................ 229
6 HERESIAS MEDIEVAIS (CÁTAROS, VALDENSES, APOCALÍPTICOS)................. 235
7 MOVIMENTOS DE RENOVAÇÃO ECLESIAL...................................................... 241
8 INQUISIÇÃO....................................................................................................... 245
9 TRANSIÇÃO ENTRE IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA................................. 254
10 C RISE DA CRISTANDADE E MOVIMENTOS PRÉ-LUTERANOS ........................ 262
11 M OVIMENTOS DE REFORMA ECLESIAL SÉCULOS 14–15................................ 268
12 Q UESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 274
13 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 274
14 R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 275
Claretiano - Centro Universitário
Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Temas introdutórios e comunidade primitiva. Constituição e organização da Igreja.
Heresias antigas, escritores cristãos e concílios ecumênicos. Perseguições roma-
nas e aliança com o Estado. Queda de Roma (476). Introdução ao Cristianismo
medieval e Cristandade, Feudalismo. Cisma de Oriente. Islamismo e Cruzadas.
Heresias Medievais e Inquisição. Cátaros, valdenses, apocalípticos. Ciência es-
colástica e a mística medieval. Movimentos de renovação eclesial (mendicantes).
Transição entre Idade Média e Idade Moderna Idade. Período pré-luterano.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Seja bem-vindo!
Você iniciará o estudo de História da Igreja Antiga e Medie-
val, que é um dos Cadernos de Referência de Conteúdos que com-
põem os Cursos de Graduação na modalidade EaD.
Inicialmente, este estudo nos permitirá refletir sobre os te-
mas introdutórios relacionados à história da Igreja antiga. Isso sig-
nifica que construiremos conhecimentos sobre a comunidade pri-
10 © História da Igreja Antiga e Medieval

mitiva da Igreja e estudaremos a constituição e a organização da


Igreja antiga e sua relação com o Estado. Como você verá, a Igreja
fundamenta-se na ação de Deus, bem como de homens e mulhe-
res, discípulos de Cristo. Dessa forma, ela é, simultaneamente, um
fato histórico e um fato revelado – é a "Igreja da fé" e a "Igreja da
história", a Igreja divina e humana.
Estudaremos que, como instituição salvífica, a Igreja perten-
ce a dois mundos: ao mundo terrestre e visível, porque está com-
posta de homens que atuam no contexto da história; e ao mundo
sobrenatural, porque a Igreja é também obra de Deus, efeito de
uma causa transcendente, situada além da história. Então, pode-
mos refletir sobre uma Igreja santa e pecadora, divina e humana,
espiritual e temporal etc.
Faremos, também, uma análise da atuação e do papel da
Igreja durante a Idade Média, desde a queda de Roma, no século
5º, até o período anterior à reforma protestante, no século 16.
Conheceremos a estrutura da Igreja medieval e o sistema de Cris-
tandade, passando pelo Cisma do Oriente, Islamismo e Cruzadas,
heresias medievais e Inquisição, para finalmente analisar o perío-
do da transição entre a Idade Média e a Idade Moderna.
Neste Caderno de Referência de Conteúdo, você encontrará
as informações práticas indispensáveis para o estudo dos conteú-
dos relacionados à História da Igreja Antiga e Medieval, o qual se
efetivará no Caderno de referência de conteúdo. Essas informações
ajudarão você a se programar e a se organizar.
Sugerimos, contudo, que não se limite aos conteúdos explici-
tados neste caderno, e, sim, interprete-o como um referencial por
meio do qual você possa expandir seus horizontes de conhecimen-
tos com o objetivo de uma especialização consistente, de maneira
especial no que se refere à história da Igreja antiga.
Lembre-se, ainda, de que as possibilidades são inúmeras.
Por isso, será imprescindível que você realize pesquisas, compar-
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

tilhando conhecimentos e reflexões para crescer no exercício de


interpretação histórica.
Desejamos êxitos na realização de seus estudos, pesquisas,
interatividades e atividades!

2. ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO

Abordagem Geral
Aqui, você entrará em contato com os assuntos principais deste
conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar
essas questões no estudo de cada unidade. Desse modo, essa Abor-
dagem Geral visa fornecer-lhe o conhecimento básico necessário a
partir do qual você possa construir um referencial teórico com base
sólida – científica e cultural – para que, no futuro exercício de sua pro-
fissão, você a exerça com competência cognitiva, ética e responsabi-
lidade social.
Desejamos que este estudo leve você a compreender a His-
tória da Igreja, seu desenvolvimento e caminhada ao longo do
tempo. Na História da Igreja, vamos enfatizar a Antiguidade e a
Medievalidade cristãs. A divisão do tempo recebe o nome e pe-
riodização clássica e divide a História em quatro grandes períodos:
1) Idade Antiga.
2) Idade Média.
3) Idade Moderna.
4) Idade Contemporânea.

Cronologia da História da Igreja


A Antiguidade compreende o período que vai do nascimento
de Jesus Cristo, no ano 1 d.C até o ano de 476 d.C., ano em que
Roma foi invadida pelos povos germânicos e eslavos, chamados
pelo romanos de bárbaros. Dessa maneira, foi um período que se
caracterizou pelo nascimento e expansão inicial do Cristianismo,

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12 © História da Igreja Antiga e Medieval

com as dificuldades, principalmente em torno de sua organização


interna, as rupturas com o judaísmo e as perseguições promovi-
das pelos romanos; a sociedade neste tempo estava marcada pela
existência de grandes impérios e pelo escravismo.
A Idade Média estende-se de 476 d.C., queda do Império Ro-
mano do Ocidente ou do ano 692, quando terminam as grandes con-
trovérsias doutrinais antigas, até 1453 com a queda de Constantino-
pla ou até o ano 1303, quando começou o declínio do poder temporal
dos papas ou ainda, até 1517, até o início da reforma protestante.
Neste período, o Cristianismo torna-se uma grande força no mundo
ocidental e se consolida o Sistema de Cristandade, no qual toda a vida
social girava em torno da vida cristã. Assim, não podemos esquecer
das características centrais, a fragmentação dos poderes político e
econômico, bem como do modo de produção feudal.
A Idade Moderna compreende os anos de 1303 ou 1453 ou
1517 até o ano de 1789, ano em que se deu a Revolução Francesa.
Período da crise eclesial no renascimento e do grande cisma lute-
rano e da Reforma da Igreja. É, também, o período de transforma-
ções paradigmáticas, a invenção da imprensa, o desenvolvimento
marítimo e pelo modo de produção capitalista.
A Idade Contemporânea teve início em 1789 e perdura, se-
gundo a periodização clássica, até nossos dias. Caracteriza-se pelas
tentativas de diálogo da Igreja Católica com a modernidade, ocorrido
especialmente a partir do Concílio Vaticano II e, também, pelas Gran-
des Revoluções, pelo liberalismo político, econômico e social, pelos
conflitos armados de grande proporção e pela nova ordem mundial.

Fundação do Cristianismo
O Cristianismo foi fundado por Jesus Cristo e teve continui-
dade com seus discípulos, com destaque inicial para Pedro, Paulo
e os apóstolos. A fundação ocorreu na Palestina, na época, domi-
nada política e militarmente pelos romanos, que estavam vivendo
o seu apojeu.
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

Surgiu como seita judaica surgida no século 1º, mas pouco


a pouco houve a ruptura com o Judaísmo. Nos primeiros séculos,
os romanos perseguiram o Cristianismo ocasionando a morte de
milhares de mártires e dificuldades para a expansão cristã.

A separação do Cristianismo e do Judaísmo


Inicialmente, os cristãos foram vistos como "judeus fervoro-
sos", mas, com o passar do tempo, a pregação cristã, que enfati-
zava Jesus Cristo, como filho de Deus, fez com que os judeus os
proibissem de pregar. Tal medida não foi suficiente e os cristãos
foram expulsos das sinagogas judaicas.
Os cristãos, diferentemente dos judeus, passaram a adotar
os livros do Novo Testamento, escritos após advento de Jesus Cris-
to por seus apóstolos e que relata a Sua vida e dos primeiros acon-
tecimentos da comunidade cristã nascente.

A aproximação entre a Igreja e o Estado


A aproximação entre os cristãos e o Estado, o Império Roma-
no, se deu por que o Cristianismo se propagou muito. Assim, per-
seguir os cristãos acabou por ser prejudicial ao próprio império,
que vivia uma crise religiosa e social e encontrou no Cristianismo
apoio e respostas.
No ano 311 foi publicado um Édito de Tolerância, pondo fim
às perseguições. O Édito de Milão (313 d.C.) declarava que o Impé-
rio Romano seria neutro em relação ao credo religioso e concedia
a liberdade de culto ao Cristianismo; ele foi emitido por Constanti-
no I e Licínio. Com o Imperador Teodósio, no fim do ano século 4º,
o Cristianismo tornou-se a religião oficial do império e teve a chan-
ce de se organizar melhor e expandir. Neste contexto, surgiram os
concílios ecumênicos que ajudaram na organização interna, na su-
peração dos problemas, especialmente no combate às heresias e
no diálogo com a sociedade e com o império. Esse acontecimento,
que em outras palavras foi a aproximação entre essas duas institui-

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14 © História da Igreja Antiga e Medieval

ções sociais e políticas, foi importante para ambos os lados. Para


o Cristianismo, ampliou a sua capacidade de influência sobre a so-
ciedade, pois a partir daquele momento a Igreja definiria e agiria
de acordo com seus valores e regras na condução da sociedade,
inclusive imporia seus dogmas a ela. Já para o Estado, a vantagem
foi o apoio da Igreja Católica em suas ações e o consequente au-
mento no número de súditos e servidores do Império.

Idade Média
O período medieval é extenso e vai do século 5º ao 15. É marcado
pela grande influência da Igreja Católica na política, economia e socie-
dade. É o período de maior e mais expressiva influência do Cristianis-
mo na sociedade com o chamado Sistema de Cristandade. Os valores
cristãos permeavam a vida de todos; as verdades eram as verdades da
Igreja; as doutrinas eram as defendidas e propagadas pelo Cristianismo.
Vejamos alguns acontecimentos da cristandade medieval.

União da Igreja com o Estado


O Sistema de Cristandade iniciou-se com a queda de Roma
em 476 e fortaleceu-se com a aliança entre os papas e os francos,
especialmente a partir da coroação de Carlos Magno, pelo papa
Leão III no ano de 800 d.C.. Este fato provocou a restauração do
Império Romano, que ficou reconhecido como Sagrado Império
Romano Germânico. Carlos Magno tentou restabelecer as frontei-
ra do extinto Império Romano contando com o apoio da Igreja. Sua
coroação deu origem a mais uma desavença entre a Igreja Católica
do Ocidente e a Igreja Católica do Oriente. O Patriarca de Constan-
tinopla não a aceitou, pois afirmava que os legítimos herdeiros do
Império Romano eram os católicos do Oriente e não um rei bárba-
ro. A consequência disto, em conjunto com outros fatos (heresias
monofisita e iconoclatismo; cisma fociano, liturgia, política etc.),
foi o "Cisma do Oriente", em 1054, com a separação entre a Igreja
do Ocidente, chefiada pelo Papa e a Igreja do Oriente ou Igreja
Ordotoxa, chefiada pelo Patriarca de Constantinopla.
© Caderno de Referência de Conteúdo 15

Cruzadas
As Cruzadas foram convocadas para reconquistar Jerusalém,
os "lugares santos" resgatar os cristãos que caíram em mãos mu-
çulmanas. A primeira foi convocada pelo Papa Urbano II, no ano
de 1095. Foram um total de nove Cruzadas, a última aconteceu no
ano de 1270. Os cristãos tiveram algumas vitórias, mas não conse-
guiram a reconquista total da região.

Inquisição
A Inquisição é a instituição cristã mais criticada em toda a Histó-
ria da Igreja. Em função do surgimento de algumas heresias medievais
e da crise no mundo feudal, o surgimento das cidades e pré-humanis-
mo e pré-modernismo, a Igreja e o Império tentaram manter as estru-
turas políticas, econômicas e sociais. O Papa Lúcio III e o Imperador
Frederico Barba-Roxa, em 1184 optaram pela excomunhão e punição
aos hereges. Em 1232, a Inquisição passou cometer muitos atos ilíci-
tos, que cresceram quando ela passou a ser dirigida e instrumentali-
zada pelas lideranças políticas medievais e modernas.

Filosofia Cristã – importante fundamento do pensamento


humano
O início da Idade Média deu-se com o apogeu da Patrologia
ou época dos Santos Padres, com grandes teólogos e filósofos que
organizaram a ortodoxia cristã. Destacam-se Atanásio, Gregório de
Nazianzo, Gregório de Nissa, Basílio de Cesareia, Ambrósio, João
Damasceno, Eusébio de Cesareia (primeiro historiador cristão) e
Santo Agostinho, com grande destaque.
Santo Agostinho de Hipona escreveu muitas obras, com desta-
que para Confissões e Cidade de Deus. Seus escritos se caracterizam
pela análise dos mais diferentes assuntos e temas que recobrem a hu-
manidade partindo da visão cristã. Ele foi influenciado pelo platonismo
e o neoplatonismo, particularmente por Plotino. Ele foi importante para
a retomada do pensamento grego e a sua entrada na tradição cristã.

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16 © História da Igreja Antiga e Medieval

Já no fim da Idade Média, no apogeu do Sistema de Cris-


tandade, desenvolveu-se a Ciência Escolástica com o domínio da
Teologia sobre as outras ciências. O método teológico-filosófico
do aristotelismo era ministrado nas escolas de conventos e cate-
drais e nas universidades medievais. A escolástica tentou resolver,
partindo do dogma religioso e mediante um método especulativo,
problemas como a relação entre fé e razão, desejo e pensamen-
to; a oposição entre realismo e nominalismo; e a probabilidade
da existência de Deus. Foi a época das grandes "sumas" ou sínte-
ses do conhecimento a partir da visão teológica. Destacaram-se
alguns pensadores: Abelardo; Alberto Magno; Pedro Lombardo;
Guilherme de Ockam e o grande destaque ficou com Santo Tomas
de Aquino, que escreveu a Suma Teológica, As cinco vias para a
demonstração racional da existência de Deus e muitas outras.
Como você pode notar, este caderno abarca dois períodos
intensos e extensos, pois englobam desde a Antiguidade cristã até
a perda de sua supremacia, que começou no final de Idade Média
e se concretizou com a Idade Moderna.
Portanto, sugerimos que você se dedique na elaboração
e construção de seu conhecimento e, mais, olhe para a História
como um processo humano e divino, pois a história da Igreja é fei-
ta por homens, mas cremos na ação de Deus sobre os fatos.
Bons estudos a todos!

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de
conhecimento dos temas tratados em História da Igreja Antiga e
Medieval. Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos:
1) Apócrifos: escritos cristãos dos primeiros séculos que
visavam dar notícias e einformações da vida de cristo,
apóstolos e comunidade cristã primitiva, mas que conti-
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

nham erros teológicos e históricos e lendas fantasiosas,


eles não fazem parte do escritos canônicos do novo tes-
tamento e, por isso, foram considerados falsos ou inade-
quados.
2) Apologias: conjunto de escritos cristãos, situados entre
os séculos 1º ao 4º, que tinham por objetivo defender
o Cristianismo primitivo dos ataques dos imperadores,
dos intelectuais e do povo que eram contrários à orto-
doxia e prática cristãs.
3) Arianismo: doutrina cristã que, na relação trinitária, ne-
gava a divindade de Jesus cristo, subordinando-o com-
pletamente a Deus Pai. Assim, Jesus seria unicamente
um homem que foi adotado pelo Pai.
4) Concílio Ecumênico: reunião dos representantes das
Igrejas cristãs em todo o mundo para tratar de temas
doutrinais, pastorais e disciplinares da Igreja. A Igreja
católica romana reconhece 21 concílios: o primeiro foi
realizado em Niceia, no ano 325 e o último foi o Concílio
Vaticano II, de 1962 a 1965.
5) Cristandade: sistema construído na Idade Média, com
forte união entre o Estado Romano e o Cristianismo,
com grande influência na vida social, cultural, econômi-
ca, política. O cristianismo influenciou outros estrututas.
6) Cristologia: é o tratado teológico que estuda sobre a
pessoa e a doutrina de Jesus Cristo, fundador do Cristia-
nismo. Vários temas fazem parte deste estudo: encarna-
ção e nascimento de Jesus, natureza humana e divina,
ressurreição etc.
7) Cruzadas: movimento militar-religioso iniciado na Euro-
pa ocidental sob os auspícios do Cristianismo, no fim do
século 11, que visava à reconquista da Terra Santa, ocu-
pada pelos muçulmanos desde o século 7º.
8) Donatismo: doutrina herética cristã do século 4º que
relativizava a identidade da Igreja enquanto instituição
de salvação e que negava a validade dos sacramentos,
fazendo-os depender da santidade ou integridade do
ministro.

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18 © História da Igreja Antiga e Medieval

9) Feudalismo: característica marcante das relações marcan-


tes na Idade Média (século 6º ao 13) em que era muito for-
te a predominância do mundo rural sobre o urbano. A eco-
nomia girava em torno da terra, a autoridade era do senhor
feudal e o Cristianismo influenciava a vida cotidiana.
10) Heresia: palavra que designa uma doutrina heterodoxa,
ou seja, que vai contra a ortodoxia ou doutrina correta.
11) Humanismo: movimento cultural iniciado com a crise do
mundo medieval a partir do século 12 e surgimento da
vida burguesa. Ele colocava o homem no centro do uni-
verso, e não Deus. Com isto, com o tempo, provocou a
separação entre Igreja cristã e Estado e entre razão e fé,
gerando o sistema político laical.
12) Inquisição: tribunal eclesiástico criado pelo Cristianis-
mo, a partir do fim do século 12 com o objetivo de julgar
e condenar as heresias medievais que assolavam a Cris-
tandade ocidental. Foram condenadas muitas pessoas
inocentes e, com o tempo, a Inquisição foi usada tam-
bém pelo poder político para eliminar seus inimigos.
13) Mendicantes: ordens religiosas (franciscanos, dominica-
nos, mercedários etc) que nasceram no século 13, numa
época em que a Igreja era muito rica e poderosa. A carac-
terística principal deste movimento era a volta à pobreza
e a uma espiritualidade mais encarnada e fiel ao Cristo.
14) Ortodoxia: doutrina correta ou fiel a uma tradição.
Quando se fala de igrejas ortodoxas se faz referência às
Igrejas que se separam da comunhão romana, seguindo
o rito grego e permanecendo fiéis a Constantinopla.
15) Monofisismo: doutrina herética cristã em torno das na-
turezas humana e divina de Jesus Cristo, que afirmava
que, após a união entre elas, a natureza divina dominava
e absorvia completamente a humana, gerando uma de-
sigualdade e desequilíbrio entre elas.
16) Padres Apostólicos: conjunto dos escritores cristãos,
discípulos dos apóstolos, situados nos séculos 1º e 2º
que ajudaram a construir a ortodoxia. Eles se caracte-
rizam por serem escritos pastorais e com forte acento
comunitário.
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

17) Patrologia: ciência teológica que tem por objetivo estu-


dar os escritores da antiguidade cristã, conhecidos como
Padres da Igreja ou Santos Padres.
18) Pelagianismo: doutrina herética cristã do início do sécu-
lo 5º que afirmava que o homem pode se santificar pelo
esforço pessoal e próprio e que não necessita da graça
divina. Negava também a o pecado original e a corrup-
ção da natureza humana.
19) Século de Ferro: período conturbado na história do pa-
pado e da igreja romana que caiu nas mãos de nobres,
nos século 9º e 10, em que os escândalos, golpes de Es-
tado, corrupção e mundanidades comprometeram a fi-
delidade e a comunhão eclesiais.
20) Santíssima Trindade: doutrina do Cristianismo que afir-
ma a união do pai, do filho e do espírito santo. São três
pessoas distintas, mas que formam um só deus.

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o
seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se
que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque-
mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen-
to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos
significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.

Claretiano - Centro Universitário


20 © História da Igreja Antiga e Medieval

Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-


colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem. 
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você
o principal agente da construção do próprio conhecimento, por
meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas
e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por objetivo tor-
nar significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhe-
cimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabele-
cendo uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com
o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do
site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/edutools/mapascon-
ceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11 mar. 2010).
Primeiras heresias:
Ambiente do nascimento
judaizantes, milenaristas,
da Igreja; expansão inicial,
monarquianos;
organização, dificuldades e
controvérsias .penitenciais
potencialidades.


I- Cristianismo no Império
Crise da Igreja e da Vida Apóstolos, Padres
 Romano pagão (séculos I-III) JESUS CRISTO: fonte
Religiosa beneditina Apostólicos, Apócrifos

Igreja Antiga e Medieval.


e origem do
(Cartuxa, Cistercienses)
 Perseguições: apologias
Cristianismo
Mendicantes e heresias.

Desejos de Reforma.
 Heresias trinitárias, cristológicas
II- Cristianismo no e soteriológicas. Concílios

 Império Romano cristão


IV- Igreja e a crise Ecumênicos: Niceia,
  (séculos IV-VII): união Constantinopla, Éfeso e
medieval. Início da
com Estado (Constantino Calcedônia
Modernidade  e  e Teodósio), expansão
mudanças...
  cristã, heresias concílios e
monacato. Padres gregos (Atanásio,

Eusébio de Cesareia, Cirilo de
 III- IDADE MÉDIA: introdução e
Alexandria, Gregório de Nissa,
cronologia. Ascensão do Papado e
 João Crisóstomo).
Estado Pontifício. Aliança com
 Francos. Padres Latinos ( Hilário de
Poitiers, Ambrósio, Jerônimo,

Agostinho, Leão Magno,
Espiritualidade
 medieval: Cisma do Oriente. Cruzadas e
Sistema de Cristandade e Gregório Magno).
eucaristia, mariologia, expansão muçulmana.
Feudalismo. Século de Ferro.
devoções, peregrinações, Inquisição. Heresias medievais
Reformas da Igreja
© Caderno de Referência de Conteúdo

monaquismo. (cátaros e albigenses).


(beneditinos e Gregório VII.
VIIVII).

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo História da

Claretiano - Centro Universitário


21
22 © História da Igreja Antiga e Medieval

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito e descobrir o caminho para construir o seu
processo de ensino-aprendizagem.
A questão da datação: existem algumas opções em torno da
escolha de algumas datas referenciais. Nós optamos por escolher
datas que fazem referência a eventos mais eclesiásticos, sem dei-
xar de lado datas de eventos históricos mais políticos ou civis. As-
sim, muitos historiadores usam para o fim da antiguidade cristã a
data de 692, quando ocorreu o II Concílio de Constantinopla que
pôs fim às controvérsias doutrinais antigas; outros já usam o ano
de 476, quando ocorreu a queda de Roma, ou ainda, a ano de 313,
quando com o Edito de Milão começou a aliança do Cristianismo
com o Império Romano.
Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente
virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles
relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presen-
cialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD, deve valer-se
da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com a prática do ensino de História da Igreja pode ser
uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a
resolução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além dis-
so, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimen-
tos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profissional.
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

As questões de múltipla escolha são as que têm como respos-


ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por
questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos
matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada,
inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res-
posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso,
normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito.
Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus
colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos, pois relacionar aquilo que está no campo visual com o con-
ceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
Este estudo convida você a olhar, de forma mais apurada,
a Educação como processo de emancipação do ser humano. É
importante que você se atente às explicações teóricas, práticas e
científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.

Claretiano - Centro Universitário


24 © História da Igreja Antiga e Medieval

Você, como aluno dos Cursos de Graduação na modalidade


EAD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em
seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta
a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este Caderno de Referência de Conteúdo, entre em contato com
seu tutor. Ele estará pronto para ajudar você.
EAD
História da Igreja Antiga:
Temas Introdutórios
e Comunidade
Primitiva
1
1. OBJETIVOS
• Apresentar conceitos e noções fundamentais acerca da histo-
ricidade da Igreja, bem como da historiografia eclesiástica.
• Identificar e analisar o ambiente em que se deu o advento
da Igreja (Mundo Romano e Judaico).
• Explorar fontes e cronologia fundamental relacionadas à
história de Jesus Cristo.
• Caracterizar e interpretar a comunidade de Jerusalém,
bem como sua expansão inicial.
• Abordar a expansão do Cristianismo além dos limites da Pa-
lestina (Damasco, Antioquia; o trabalho de Paulo, Pedro - em
Roma - e de outros apóstolos).

2. CONTEÚDOS
• Noções preliminares: historicidade da Igreja e historiogra-
fia eclesiástica.
• O nascimento da Igreja: Mundo Romano e Mundo Judaico.
26 © História da Igreja Antiga e Medieval

• Jesus Cristo: fontes e cronologia.


• Comunidade de Jerusalém: caracterização e expansão inicial.
• Expansão do Cristianismo além dos limites da Palestina:
Damasco, Antioquia e Roma; o trabalho de Paulo, Pedro –
em Roma - e de outros apóstolos.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am-
plie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre
com o material didático em mãos e discuta a unidade
com seus colegas e com o tutor.
2) Leia, também, os livros que compõem a Bíblia, dedican-
do especial atenção à leitura dos livros que abordam os
primórdios do desenvolvimento histórico do Cristianis-
mo sobretudo o livro dos Atos dos Apóstolos.
3) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos explicitados
no Glossário e suas ligações estabelecidas no Esquema de
Conceitos-Chave para o estudo de todas as unidades deste
CRC. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e desempenho.
4) Para a maior compreensão desta unidade, sugerimos
que você retome o tema "Introdução ao Cristianismo".
Nessa retomada, consulte as seguintes obras:
• História da Igreja, de P. PIERRARD, tradução de Álvaro
Cunha (São Paulo: Paulinas, 1982).
• Para ler a História da Igreja, de J. COMBY, tradução
de Maria Stela Gonçalves-Adail V. Sobral (São Paulo:
Loyola, 1994. v. 1.).
• Manual de Historia de La Iglesia, de H. JEDIN (Barcelo-
na: Herder, 1980. v. 1.).
• História da Igreja, de K. BIHLMEYER e H. TUECHLE, tradu-
ção de Ebion de Lima (São Paulo: Paulinas, 1964. v. 1.).
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 27

5) O conteúdo que expomos nesse livro-texto configura


uma porta de entrada. Ao longo do desenvolvimento
de seus estudos, você encontrará subsídios não somen-
te para ampliar seu conhecimento sobre os temas es-
pecíficos, mas também para transitar por outras áreas
do saber e fundamentar suas pesquisas.
6) Procure reconhecer o caráter dinâmico e atuante da
Igreja como um organismo vivo cuja ação cristã configu-
ra sua forma de ser. Além disso, considere as dimensões
terrena e sobrenatural da Igreja de forma a estabelecer
a reflexão sobre o seguinte questionamento: seria pos-
sível à Igreja estar voltada só para o mundo ou só para si
mesma? Anote suas reflexões para organizá-las melhor e
para valer-se delas em seus trabalhos acadêmicos.
7) Não se limite pelo conteúdo desse livro-texto. É impor-
tante expandir os horizontes das abordagens aqui pro-
cessadas abordando outras fontes de informação sobre
os temas estudados neste material, sobretudo no que
diz respeito à ação de Pedro e Paulo enquanto fundado-
res da Igreja de Roma. Para isso, consulte a bibliografia
indicada ou use a Internet como ferramenta de pesquisa.
Lembre-se de que o desenvolvimento desses conteúdos
está a seu alcance e integra o processo de construção
de sua autonomia, elemento fundamental na Educação
a Distância.
8) Para um maior aprofundamento da expansão cristã no
Império Romano (Roma e demais regiões da Itália; Gália;
Espanha; Alemanha; países danubianos - Récia, Nórico, Pa-
nônia, Mésia, Dácia; Britânia; África Norte-Ocidental; Egito;
Ásia Menor; Síria; Mesopotâmia; Adiabene - Assíria; Partia;
Pérsia; Palestina; Arábia e Índia), consulte a obra História da
Igreja, de K. BIHLMEYER e H. TUECHLE, tradução de Ebion
de Lima (São Paulo, Paulinas, 1964. v. 1.).
9) As traduções dos textos publicados originalmente em
língua estrangeira foram elaboradas pelo Professor Mes-
tre Ronaldo Mazula.

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28 © História da Igreja Antiga e Medieval

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nossos estudos se iniciam pela exploração de conceitos in-
trodutórios sobre a História da Igreja. Isso significa que você está
convidado a refletir sobre noções preliminares relacionadas à his-
tória da Igreja - definição, método, divisão, fontes, ciências auxilia-
res; à historicidade da Igreja e à historiografia eclesiástica.
Ao longo desta unidade, você será convidado também a res-
ponder às seguintes indagações:
1) Quando e como ocorreu o nascimento da Igreja?
2) Quais são as características fundamentais da Antiguida-
de Cristã e quais são suas fontes e cronologia fundamen-
tal?
3) Como era a comunidade de Jerusalém e como ocorreu a
expansão inicial da Igreja?
4) Como aconteceu a expansão do Cristianismo além dos
limites da Palestina?
Responder a tais questionamentos constituirá, portanto,
nosso primeiro desafio. E o primeiro passo em direção à superação
desse desafio consiste na abordagem do conceito da historicidade
da Igreja, abordagem essa que constitui o próximo tópico deste
material.

5. HISTORICIDADE DA IGREJA
O processo por meio do qual se estabelece a compreensão
e assimilação do conceito da historicidade da Igreja se inicia, fun-
damentalmente, pelo seguinte questionamento: qual a base de
sustentação em que se processa o desenvolvimento histórico da
Igreja?
Com efeito, a história da Igreja tem suas bases na revela-
ção divina, na manifestação das obras de Deus e na encarnação
de Jesus Cristo no mundo, evento no qual se materializa a ação de
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 29

Deus, que, fazendo-se homem e assumindo a natureza humana,


interfere na História.
Em Jesus Cristo, a propósito do transcurso de sua vida, da
sua presença e de seus ensinamentos no mundo, inicia-se a histó-
ria do Cristianismo e a de seus seguidores que desejam transfor-
mar a sua vida, seguidores esses que, por sua vez, se organizam
e tornam a Igreja presente no mundo, na qualidade de fiéis ao
mandato do próprio Cristo e de sujeitos que testemunham o Cristo
"em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da
Terra" (At 7, 8).
A Igreja fundamenta-se na ação de Deus e dos homens e mu-
lheres que se posicionam como discípulos de Cristo. Assim, ela é,
simultaneamente, um fato histórico e um fato revelado, configu-
rando, respectivamente, a "Igreja da história" e "Igreja da fé".
Com efeito, como instituição salvífica, a Igreja pertence a
dois mundos: ao mundo terrestre e visível, porque é composta de
homens que atuam no contexto da história; e ao mundo sobrena-
tural, porque a Igreja é também obra de Deus, efeito de uma causa
transcendente, situada além da história. Dessa forma, podemos
falar de uma Igreja santa e pecadora; divina e humana; espiritual
e temporal etc.
Jedin (1980, p. 28) afirma que o caráter histórico da Igreja se
apoia:
Na encarnação do Logos e na entrada deste na história humana;
mas, sobretudo, em que Cristo quis que a Igreja fosse comunidade
de homens (o povo de Deus) sob a direção e governo de homens (co-
légio apostólico, episcopado, primado papal) e a fez assim, depender
do trabalho humano e, também, da fraqueza humana. No entanto,
não a abandonou a si mesma. Sua enteléquia ou princípio vital, que
transcende a história, é o Espírito Santo que a preserva do erro, cria
e mantém nela a santidade e a pode tornar acreditável por milagres.
Sua presença e ação na Igreja pode, como a da graça na alma in-
dividual, deduzir-se por efeitos históricos comprováveis, mas em si
mesma é objeto de fé. Da ação conjunta deste fator divino com o
humano, no tempo e no espaço surge a história da Igreja.

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30 © História da Igreja Antiga e Medieval

A propósito do discurso de Jedin (1980), no trecho citado


anteriormente, impõem-se os seguintes questionamentos: existe
apenas uma definição da disciplina "História da Igreja"? E qual é
seu objeto, enquanto ciência da religião?
O item a seguir propõe-se a responder a essas questões.

História da Igreja: definição


A História da Igreja, enquanto disciplina, é definida de di-
versas maneiras. E as definições disponíveis variam de autor para
autor. No entanto, essas definições convergem quando afirmam
que a disciplina se trata da ciência que estuda, investiga e busca
explicações para o desenvolvimento interno e externo da comuni-
dade fundada por Jesus Cristo.
A essa definição genérica podemos acrescentar ainda que a
disciplina se trata também da história dos seguidores de Cristo que
atuam em todo o mundo, guiados pelo Espírito Santo, com o ob-
jetivo de testemunhar a proposta salvadora e redentora de Jesus
para toda a humanidade.
A esse respeito Jedin (1980, p. 27) afirma que:
O objeto da história da Igreja é o crescimento, no tempo e espaço,
da instituição de Cristo que leva esse nome. Pelo fato de receber
tal objeto da teologia e mantê-lo dentro da fé, a história da Igreja
é uma disciplina teológica e se distingue de uma mera história do
cristianismo. No entanto, seu ponto teológico de partida, o concei-
to da Igreja, não pode entender-se de maneira que a estrutura da
Igreja estabelecida pela dogmática possa assentar-se ou ficar bem
como esquema prévio da exposição histórica, nem demonstrar-se
sobre ela, pois isso limitaria ou impediria a comprovação históri-
coempírica baseada nas fontes, das manifestações de sua vida; o
conceito teológico da Igreja só implica sua origem divina pela obra
de Jesus Cristo, a ordem hierárquica e sacramental por Ele estabe-
lecida em seus fundamentos, a promessa da assistência do Espíri-
to Santo e seu direcionamento à consumação escatológica, isto é,
àqueles elementos sobre os quais se funda sua identidade essencial
ou continuidade através de todas as mudanças de forma em que se
manifesta. A imagem da 'nave da Igreja', que faz, perfeita e imutá-
vel, sua travessia pelo mar dos séculos, é menos adequada que a
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 31

comparação, usada já por VICENTE DE LERINS, do crescimento do


corpo humano e da sementeira, que "não afeta para nada a sua
propriedade nem traz mudança alguma em sua essência" (Commo-
nitorium, cap. 29). Do mesmo modo que o grão de trigo germina e
brota, gera o talo e a espiga, mas permanece sempre trigo, assim
a Igreja realiza a sua essência num processo histórico com formas
várias, mas permanece sempre igual a si mesma.

Aprofundando essa discussão, Jedin (1980) menciona a exis-


tência de duas vertentes importantes em se tratando dessa profu-
são de definições da disciplina História da Igreja: uma delas ligada
ao pensamento ilustrado e racionalista, que a definia com base
em uma visão antropocêntrica e uma outra proposta, como a de
Möhler e Erhard, ancorada em uma visão teocêntrica.
A propósito dessa menção, Jedin (1980, p. 28) define a Histó-
ria da Igreja da seguinte maneira:
A história da Igreja como 'a série de desenvolvimentos do princípio de
luz e vida comunicado por Cristo à humanidade, para uni-la de novo
com Deus e prepará-la para a bem-aventurança'. Quando o histori-
cismo do fim do século XIX tentou reduzir a história da Igreja à história
profana e fazer do historiador eclesiástico um historiador leigo, Albert
Erhard introduziu a denominação "teologia histórica" e definiu como
objeto da história geral da Igreja 'a indagação e exposição do curso efe-
tivo do cristianismo em sua manifestação organizada como Igreja, ao
longo de todos os séculos de seu passado, em toda a extensão de seus
elementos e em todos os aspectos de sua vida (JEDIN, 1980, p. 28).

Uma vez estabelecida a discussão sobre quais bases devem fun-


damentar a definição da disciplina, faz-se preciso delimitar o método
subjacente a ela conforme o que se apresenta no item a seguir.

Método
A configuração do método que fundamenta a História da
Igreja é ditada pelos mesmos princípios que regulam a investiga-
ção histórica de modo geral, levando-se em conta as peculiarida-
des que emanam da vertente da fé, muito embora estas especifi-
cidades não representem um impedimento na aplicação do rigor
metodológico.

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32 © História da Igreja Antiga e Medieval

Segundo essa perspectiva, Gómez (1995, p. 6-7), ao abordar


as características do método a ser utilizado, em se tratando da dis-
ciplina em questão, destaca que este deve ser:
a) crítico: deve examinar rigorosamente as fontes;

b) imparcial: precisa guiar-se unicamente pelo desejo de encontrar


a verdade;

c) pragmático-genético: precisa penetrar na evolução interna, nos moti-


vos e nas intenções ocultas, que guiaram a ação dos protagonistas;

d) religioso: a Igreja é obra divina e obra humana, por isso sua his-
tória precisa ser tratada com base em uma 'perspectiva religiosa',
sem que isso prejudique a vertente científica propriamente dita.

Jedin (1980, p.30-32), a propósito da questão metodológica


que envolve o estudo da disciplina, afirma que o estudo da História
da Igreja implica a utilização do método histórico, que, por sua vez,
compreende três momentos específicos:
1) Como qualquer outra história, a história da Igreja depen-
de também de suas fontes, e só pode afirmar ou negar a
respeito de acontecimentos e situações do passado ecle-
siástico o que encontra nas fontes retamente interpre-
tadas. As fontes (monumentais, restos escritos e fontes
literárias) devem ser buscadas (heurística); tem que se
examinar sua autenticidade, tem que se editar em textos
seguros e tem que se investigar seu fundo e valor históri-
co. O primeiro fim da investigação histórica assim prati-
cada é a fixação das datas e fatos históricos, que formam
o esqueleto de toda história, sem cujo conhecimento se
torna incerto todo passo seguinte [...]. Só pela indagação
e elaboração crítica das fontes a história da Igreja conse-
guiu alcançar, a partir do século XVI, categoria científica.
Nesse estágio da investigação, a história da Igreja deve
muitos resultados importantes a sábios que estão fora da
Igreja e não reconhecem seu caráter de disciplina teoló-
gica. O ponto de vista confessional é apenas perceptível.
2) Mas já o simples enlace causal dos atos averiguados,
a indagação dos motivos que impulsionam as pessoas
que atuam neles e o juízo das individualidades eclesi-
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 33

ásticas que desses motivos depende, a valorização de


movimentos religiosos e espirituais e de épocas inteiras,
tudo isso vai mais além da simples constância dos fatos
e se remonta acima deles as suposições e critérios va-
lorativos, que não podem ser tomados da própria his-
tória, mas que tampouco podem ser-lhe alheios. O re-
conhecimento da liberdade humana proíbe assentar leis
históricas determinantes. A causalidade histórica deve
permanecer aberta à intervenção e cooperação de fa-
tores transcendentes, e não pode tampouco se excluir a
priori a possibilidade de fenômenos extraordinários, por
exemplo, místicos, e até de milagres. Os conceitos his-
tóricos que formam ou tomam a história da Igreja para
sintetizar grupos de fatos e correntes religiosas ou espi-
rituais fundam-se pelo geral, não menos que a seleção
mesma da matéria, em juízos de valor, e estes determi-
nam, sobretudo, a aplicação de categorias como 'flores-
cimentos' e 'decadências', 'abusos' e 'reforma'. Os crité-
rios para julgar pessoas e acontecimentos não podem
ser tomados da atualidade, mas devem se ajustar ao
eventual estágio de desenvolvimento histórico da Igreja.
O que não quer dizer que se relativizem a falha e pecado
dos homens, nem se descarte a responsabilidade huma-
na: tem culpa histórica e mérito histórico. No entanto, o
juízo da história da Igreja não é um 'processo' sobre seu
passado. O critério filosófico, religioso e eclesiológico do
historiador se deixa sentir neste segundo estágio da ex-
posição histórica, ainda no caso de que aquele se esforce
para conseguir a máxima objetividade e imparcialidade.
A discussão de sistemas históricofilosóficos como o ma-
terialismo histórico ou a concepção biológica da história
de Spengler, ou de escolas historiográficas como a his-
tórico-cultural ou sociológica, não pertence aos temas
da história da Igreja. Mas é inevitável que aquela influa
não somente nos juízos, mas sim também na eleição da
matéria e na forma literária [...].
3) Em seu conjunto, a história da Igreja só pode ser compre-
endida dentro da história sagrada; seu sentido último só
pode se integrar na fé. A história da Igreja é a continuação

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34 © História da Igreja Antiga e Medieval

da presença do Logos no mundo (pela pregação da fé) e


a realização da comunhão com Cristo por parte do povo
de Deus no Novo Testamento (no sacrifício e sacramen-
to), realização em que cooperam, por sua vez, ministé-
rio e carisma. Ela nos apresenta o crescimento do 'corpo
de Cristo' não, como imaginou a 'teoria da decadência',
como um constante deslizar-se pendente para baixo do
ideal da Igreja primitiva; mas tampouco, como sonharam
os ilustrados dos séculos XVIII e XIX, como um progresso
contínuo. O crescimento da Igreja é temporalmente im-
pedido a partir de dentro e a partir de fora; a Igreja pas-
sa por enfermidade e sofre retrocessos e impulsos. Não
se apresenta como a esposa sem mácula nem rugas, tal
como a sonharam os espiritualistas de todos os tempos,
e sim coberta do pó e ainda do barro dos séculos, sofren-
do pelas deficiências dos homens e perseguida por seus
inimigos. Daí que a história da Igreja seja teologia da cruz.
Sem menosprezo de sua santidade essencial, a Igreja não
é o perfeito, e sim que necessita constantemente de reno-
vação (Ecclesia semper renovanda).
Definidos os contornos fundamentais do método utilizado
no estudo e pesquisa da História da Igreja, é igualmente indispen-
sável compreender como a disciplina está dividida.

Divisão
A divisão da História da Igreja, que também pode ser enten-
dida como a vida da comunidade cristã ou como o percurso da
Igreja na história, pode ser analisada com base em vários aspectos
e sob diversas perspectivas.
Entre essas perspectivas, destaca-se a que se baseia nas
ideias de Gómez (1987, p. 7), segundo o qual: "A história, como a
vida, não conhece pausas nem censuras, nem saltos no vazio. No
entanto, também na história existem épocas e períodos com ca-
racterísticas muito acentuadas que os diferenciam de outras épo-
cas e períodos".
Com efeito, sob essa perspectiva, a História da Igreja é vista
como um processo contínuo, na medida em que os eventos que
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 35

o constituem são interligados. Em contrapartida, esse caráter de


continuidade não invalida a possibilidade de se estabelecer uma
segmentação temporal desse processo em "períodos" e "épocas",
como afirma o autor.
Pierini (1998, p. 21-38), por sua vez, vislumbra a historiogra-
fia cristã como "reconstrução da aventura histórica" partindo das
suas fontes e situa a História da Igreja no contexto que se estende
"da pré-história à época axial", relacionando o advento de Jesus
Cristo com a história de outros povos, o que equivale a dizer que a
História da Igreja está inserida no contexto da História Universal.
A perspectiva adotada nesse material baseia-se no que di-
zem esses dois autores e se materializa na divisão histórica tam-
bém adotada por Gómez (1987), segundo a qual a história é seg-
mentada em três grandes períodos:
1) Antigo.
2) Médio ou Medieval.
3) Moderno.
Essa proposta de segmentação foi introduzida pelos huma-
nistas dos séculos 15 e 16 e, nos manuais de história universal,
essa divisão aparece, pela primeira vez, no século 17.

Informação complementar––––––––––––––––––––––––––––––
É a obra Antiquae, Mediae, Novae Nucleus de Cristóvão Keller (conhecido tam-
bém como Cellarius), publicada em 1675-1676 que inaugura a utilização dessa
proposta de divisão tripartite da história nos manuais.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Durante a vigência do romantismo, com destaque para Mo-
ehler – Haase, essa divisão também foi, propositalmente, aplicada
à história eclesiástica.
Desde o início do século 20, no entanto, difundiu-se uma di-
visão quadripartida e que comportava as seguintes épocas:
a) Antiga.
b) Média.

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36 © História da Igreja Antiga e Medieval

c) Nova ou Moderna.
d) Contemporânea.
A aplicação dessa divisão quadripartida à História da Igreja
gerou a seguinte configuração cronológica:
a) Idade Antiga
1º período (1-313): marcado pela atuação da Igreja no
Império Romano pagão (perseguições dos mártires).
2º período (313-692): marcado pela atuação da Igreja
no Império Romano cristão (oficialização do Cristia-
nismo e dos grandes concílios).
b) Idade Média
1º período (692-1073): marcado pela atuação da Igreja
na formação da Europa (cristandade medieval).
2º período (1073-1303): em que se deu o apogeu do po-
der temporal dos papas (auge da cristandade).
c) Idade Moderna
3º período (1303-1517): marcado pelo clamor pela re-
forma (crise eclesial pré-luterana).
4º período (1517-1648): marcado pelas Reformas Protes-
tante e Católica (renovação e fechamento tridentino).

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
É importante ressaltar que a divisão historiográfica referida no texto principal
não corresponde à divisão da historiografia considerada oficial que data o fim
da Idade Antiga em 476, o da Idade Média em 1453 (ou 1492) e o da Moderna
em 1789. Importa ressaltar também que há quem conside o Concílio Vaticano II
(1962-1965) como um novo marco na divisão da História da Igreja Católica.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
d) Idade Contemporânea
5º período (1648-1789): estendeu-se até a Revolução
Francesa (silêncio eclesial e críticas modernistas).
6º período (período após 1789): marcado pelas revo-
luções sociais (intransigência católica, diálogo com
modernidade e abertura pós-vaticana) (BIHLMEYER-
TUECHLE, 1964, p. 16 - 17).
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 37

No contexto do debate acerca da cronologia da História da Igre-


ja, Jedin (1980, p. 29) situa os eventos que marcam essa sucessão cro-
nológica em duas categorias, definindo-as da seguinte maneira:
Manifestações externas, como sua propagação pelo orbe da terra
(missão ou evangelização), sua relação com religiões não-cristãs e
com as confissões cristãs eclesiásticas separadas dela (ecumenis-
mo) e sua relação com o Estado e a sociedade (política e sociologia
eclesiástica); manifestações internas, como a formação e fixação da
doutrina da fé por obra do magistério na luta com a heresia e com
ajuda da ciência teológica, anúncio da fé pela pregação e ensino,
realização de sua natureza sacramental pela celebração da liturgia
e administração dos sacramentos, preparação dessa mesma reali-
zação pela cura das almas e o exercício da beneficência cristã, ela-
boração da constituição da Igreja como armazenamento e sustento
para o exercício do magistério e ministério e, finalmente, irradiação
do trabalho eclesiástico sobre todos os ordenamentos da cultura e
vida social humana.

A propósito das bases em que se sustenta o estudo da His-


tória da Igreja, apresenta-se o momento de fazermos uma viagem
pela Antiguidade Cristã.

6. ANTIGUIDADE CRISTÃ (DO ANO 1 A 692): SÍNTESE


O Cristianismo, nesta época conhecida como Antiguidade
Cristã, desenvolveu-se em meio a civilizações maduras (romanos,
gregos e judeus), civilizações altamente evoluídas que cresceram
sem ele e antes dele. Essas civilizações, em seu complexo desen-
volvimento histórico, assumiram, uma posição de estranhamento,
chegando mesmo a perseguir os cristãos.
Consequência disso foi o fato de que, neste período, o Cris-
tianismo teve que se organizar internamente e enfrentar as dife-
renças e perseguições externas. Esse período é o da vida interior
da Igreja e da predominante ou exclusiva atividade religiosa.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Nesse tempo, a Igreja, com as bases lançadas por Jesus e pelos apóstolos,
elaborou as formas fundamentais da própria vida interna (piedade, liturgia, cons-

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38 © História da Igreja Antiga e Medieval

tituição), estabeleceu aspectos fundamentais concernentes ao âmbito e às ca-


racterísticas de seu patrimônio e atividade em consequência da sua missão (luta
contra o cristianismo judaico e a gnose, profissões escritas de fé ante o Estado
perseguidor, coleta dos escritos neotestamentários, símbolos de fé, lutas doutri-
nais trinitárias e cristológicas), e, com a pregação, assentou a vida e a definição
dos dogmas e doutrina.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O quadro externo é fundamentalmente diverso antes e de-
pois do ano 313. Antes dessa data, a Igreja, no que concerne ao
âmbito da vida externa, encontrava-se em uma posição, sobretu-
do, de defesa; devia sustentar uma luta sangrenta pelo seu direito
de existência e tentava definir as suas relações com a civilização.
Os cristãos representavam uma minoria.

Cristianismo: religião oficial do Estado


Depois de 313, o Cristianismo foi libertado (Edito de Milão
emitido em nome dos imperadores Constantino, Licínio e Galério)
e converteu-se em religião oficial de Estado (conversão consoli-
dada durante o governo do imperador Teodósio, a partir do ano
380). O método de ação da Igreja tornou-se positivo e as massas
aproximaram-se aderindo à Igreja.
A Igreja contraiu estreitas relações com o Estado e com a ci-
vilização, transformando-se em importante instituição no mundo.
As disputas espirituais, agora, situavam-se no interior da Igreja e
cresceram em importância (questões cristológicas, trinitárias, sote-
riológicas e concílios ecumênicos). A Antiguidade Cristã é, portanto,
a época do surgimento da Igreja; da sua primeira atividade missio-
nária e da consolidação de sua existência frente ao Estado, à cultu-
ra, à heresia e, depois, da estabilização da fundamental consciência
dogmática de si.
Jedin (1980, p. 34) chama este período de "propagação e de-
senvolvimento da Igreja no espaço helenístico-romano" e o des-
creve com as seguintes palavras:
Nascida na terra mãe judia, a Igreja se propaga, dentro do orbe cul-
tural helenístico-romano, sobretudo o império romano e no oriente,
mais além de suas fronteiras. Desconhecida juridicamente e reitera-
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 39

damente perseguida até Constantino o Grande é, a partir do século IV,


religião do império. A constituição metropolitana se apóia na divisão
imperial, os concílios ecumênicos são conselhos imperiais; a primazia
do bispo de Roma não atenta para nada ante a ampla autonomia dos
patriarcados orientais. A partir da aparição dos apologistas gregos no
século II, o cristianismo polemiza com a religião e cultura do oriente
romano helenizado; se vale da filosofia grega para formular os dogmas
trinitário e cristológico nos quatro primeiros concílios ecumênicos, e
de formas antigas de expressão em seu culto e arte. Como conseqü-
ência das controvérsias cristológicas, as igrejas nacionais surgidas mais
além das fronteiras orientais do imério se separam da Igreja imperial
de Bizâncio, enquanto sobre o solo do império do ocidente se consti-
tuem os reinos germânicos cristãos de abservância ariana (ostrogodos
e visigodos) ou romana (francos). A Igreja especificamente romana de
Gregório Magno e a invasão árabe do século VII marcam a linha divisó-
ria: as florescentes igrejas do norte da África enfraquecem ou morrem,
e o ocidente romano-germânico se distancia de Bizâncio.

Dando prosseguimento a esse esforço para determinar as


bases em que se desenvolveu a Igreja devemos abordar também o
ambiente em que ela nasceu, o que se faz no tópico a seguir.

7. AMBIENTE DO NASCIMENTO DA IGREJA


O ambiente em que nasceu a Igreja é, sobretudo, um am-
biente complexo, na medida em que é marcado por uma dinâmica
que envolve a ação de variados sujeitos em situações diversas.
As informações apresentadas e discutidas nos itens a seguir ob-
jetivam facilitar a compreensão e assimilação dessa complexidade.

Plenitude dos tempos


Compreender e assimilar a complexidade que marca o ambiente
em que nasceu a Igreja implica remontar aos textos bíblicos. Sob essa
perspectiva destacamos o que diz São Paulo, segundo o qual quando se
chegou à plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho (Gl 4, 4). Des-
sa forma, Jesus Cristo veio ao mundo quando a humanidade já estava
preparada para acolhê-lo. Conclui-se que esta "plenitude dos tempos"
se refere às circunstâncias ambientais (política, cultura, religião, socie-
dade) nas quais germinaria a semente do Cristianismo.

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40 © História da Igreja Antiga e Medieval

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Três povos se sobressaíam no contexto dessa época: romanos, gregos e judeus.
Como cultura e religião estão numa estreita relação, as características destes
povos irão convergir na expansão e consolidação da religião cristã.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O ambiente ao qual se refere o texto bíblico mencionado
trata-se do Império Romano, que, à época em questão, dominava
várias regiões, entre elas a Palestina, onde nasceu Jesus Cristo.

Império Romano e o nascimento de Cristo na Palestina


Sob o império de Otaviano Augusto (30 a.C. – 14 d.C.) e de
seus sucessores diretos, o Império Romano se expandiu, abrangen-
do os países do Mediterrâneo, a Gália e parte da Britânia, até os
rios Reno e Danúbio. Quando Jesus nasceu, o império vivia o que
se chamou de a 'pax romana' (conseguida com a vitória de Otavia-
no sobre Antônio no ano 31 a.C., pondo fim a vários anos de guer-
ras civis dentro da República), o que trouxe relativa tranquilidade
para toda a bacia mediterrânea, criou facilidades de comunicação
e ótimas condições para a circulação de mercadorias e ideias. O
primeiro século depois de Cristo é o apogeu do império e início da
sua lenta e gradual decadência, que teve seu acontecimento maior
na queda de Roma nas mãos dos bárbaros no ano 476.
A Palestina, nessa época, pertencia ao Império Romano. E depois
da tomada de Jerusalém por obra de Pompeu no ano 63 a.C., não exis-
tiu mais um Estado judaico independente. Depois da morte do idumeu
Herodes (37–4 a.C.), Augusto deixou o seu território aos filhos.
No grande Império Romano, o "ângulo palestinense", a terra
dos desprezados judeus, era só uma parte insignificante. O impe-
rador, por sua vez, possuía um poder ilimitado; o governo era mo-
derado, e as províncias tinham autonomia.
O grande e poderoso Império Romano foi o ambiente onde
os primeiros cristãos viveram e deram continuidade à obra de Je-
sus Cristo, estabelecendo a organização da Igreja e a expansão das
primeiras comunidades.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 41

Portanto, é importante conhecer um pouco da vida roma-


na para compreender o desenvolvimento do Cristianismo, pois ela
será, paradoxalmente, ponto de apoio para esse desenvolvimento
do Cristianismo, ao mesmo tempo em que representará muitas di-
ficuldades para a sua existência e expansão.
Pierini (1998, p. 50-52), referindo-se ao ambiente em que
se processa a atividade apostólica, assim descreve o grande Impé-
rio Romano:
[...] formado às vezes em condições inesperadas, recolhendo a he-
rança dos etruscos, itálicos e italiotas da Magna Grécia, superando
o imperialismo comercial cartaginês, vencendo e assimilando as
várias monarquias helenistas do Mediterrâneo oriental e, enfim,
levando as conquistas para o Noroeste, à Gália e à Britânia, para
o Nordeste, ao Reno e ao Danúbio, para o Sudoeste, até às mon-
tanhas de Atlas, e para o Sudeste, até as fronteiras do reino dos
partos. Desde o ano o ano 63.a.C., a Palestina encontra-se, direta
ou indiretamente, sob o domínio romano. [...] Esse império, que
no primeiro decênio da era vulgar media cerca de quatro milhões
de quilômetros quadrados e compreendia de setenta a oitenta mi-
lhões de habitantes, apóia a própria economia essencialmente na
agricultura, no artesanato, no pequeno comércio local e no comér-
cio mais robusto por via marítima. Um exército de cerca de qua-
trocentos mil homens mantém a ordem; uma estratificação social
rigorosamente observada, mas não rígida nem insuperável, divide
os homens em servos e livres; entre os livres, distinguem os "liber-
tos" (=escravos libertados) dos chamados "ingênuos" (=nascidos
livres), mas também os pobres dos ricos; estes, aliás, são os únicos
que podem ter aspirações a participar do grupo dirigente imperial,
como cavaleiros ou como senadores (desde que cidadãos roma-
nos), ou dos vários grupos dirigentes locais. No topo está o impera-
dor, que engloba em suas mãos vários poderes: antes de tudo, o de
comandante-chefe do exército (="imperador"), o de chefe do Sena-
do (="princeps senatus") e do povo romano (mediante a "tribunica
potestas"), agregando às vezes também os poderes de cônsul, pon-
tífice máximo, sensor, etc. [...] Embora a política imperial em rela-
ção às várias províncias seja sempre coerente, a tendência de base,
ela própria situação de fato, é chegar a uma unificação cada vez
maior. Tal tendência pode, porém, apresentar-se de forma centrí-
peta ou centrífuga, ou seja, conforme prevaleçam os interesses do
centro geográfico, ou seja, Roma e Itália, ou os interesses da perife-
ria. A primeira tendência é, em geral, de matriz elitista aristocrática
e defende a tradição; a segunda é aberta, democrática e promove,
pelo menos dentro de certos limites, a inovação. A primeira supõe-

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42 © História da Igreja Antiga e Medieval

se preconceituosamente hostil ao cristianismo, como a qualquer


movimento cultural ou religioso não estritamente romano-itálico; a
segunda, ao contrário, procura o sincretismo e não se opõe por isso
ao cristianismo, podendo até mesmo favorecê-lo. De fato, as duas
tendências são condicionadas pelas circunstâncias e pela perso-
nalidade dos imperadores, que nem sempre demonstram possuir
uma visão orgânica da situação. [...] No período que vai do primeiro
triunvirato a morte de Domiciano, isto é, do ano 60 a.C ao ano 96
d.C, colocam-se em movimento os fatores que, entre muitas vicissi-
tudes, levam ao equilíbrio típico do século dos Antoninos (de Nerva
a Marco Aurélio, 96-180), o século de ouro do império romano. Na
conjuntura de César a Domiciano a idéia imperial – essa dimensão
estrutural que vem de longe e irá, apesar de tudo, muito longe, re-
aliza uma decisiva caminhada: acumulam-se e perdem-se enormes
riquezas, através das guerras e de um rápido intercâmbio social,
que colocam em ação uma variedade de fermentos econômicos,
políticos, culturais, artísticos, religiosos. Um desses fermentos, o
mais importante não tanto do ponto de vista dos tempos breves
ou médios, e sim na perspectiva dos tempos longos (estruturais), é
justamente a nova fé proclamada pelos apóstolos.

Roma era o centro, capital e imagem de todo o império. Ci-


dade, fundada no ano 753 a.C., por Remo e Rômulo, reunia os as-
pectos mais diversos do império, que vivia o seu apogeu político e
expansionista. O seu culto espiritual não era unitário; Roma tinha
uma estrutura pagã e havia templos para dezenas de deuses lo-
cais e estrangeiros. Existiam palácios luxuosíssimos e refinados,
que então começaram, em medida crescente, a servir à vida de
prazer. A imoralidade penetrava mais profundamente em todas as
classes. O luxo excessivo e a vida pomposa eram acompanhados
de um espantoso desprezo pela vida humana, especialmente os
miseráveis e os escravos.
As alianças políticas com povos estrangeiros foram, aos pou-
cos, enfraquecendo as forças locais e com o tempo o exército e ou-
tros segmentos estavam ocupados em enfrentar povos bárbaros,
como os eslavos, que buscavam riquezas e espaço na vida e cultura
romanas. O império agrupava uma multidão de povos que conser-
vavam os seus costumes, suas línguas e suas culturas. No entanto,
no conjunto do império impunham-se duas línguas: o grego "koiné",
"comum", e o latim.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 43

Tendo em vista nossos objetivos, impõe-se, nesse momento, a


necessidade de conhecer um pouco da dinâmica religiosa de Roma.

A Dinâmica Religiosa de Roma


A pregação cristã encontrou no império sistemas religiosos
variados, pois os romanos eram tolerantes em matéria religiosa,
mas exigiam que todos os cidadãos e escravos prestassem culto aos
deuses imperiais, o que se tornou um problema para os cristãos,
que só prestavam culto ao seu Deus e não aceitavam o politeísmo.
Com efeito, muitos desses deuses oriundos das religiões e cultos do
império podiam opor-se à mensagem evangélica. Em contrapartida,
podiam ser também "escalas progressivas" para a revelação cristã.
A propósito dessa dinâmica geral no contexto do surgimento
do Cristianismo, podemos perceber quatro vertentes religiosas:
1) As religiões tradicionais (religiões rurais e citadinas em
que se destacavam as divindades: Zeus-Júpiter, Hermes-
Mercúrio, Possêidon-Netuno).
2) O culto ao soberano (trata-se de uma religião a serviço
da política).
3) A chamada segunda religiosidade (chama-se assim a
todo o conjunto de correntes espirituais definidas que
aparecem no começo da era cristã).
4) As religiões orientais mistéricas (oriundas de ambientes
populares, estes cultos respondem à angústia existencial
do homem; inquieto e desventurado no mistério, é o fiel
mesmo que morre e renasce para uma vida nova; princi-
pais divindades: Íris-Mitra, Cibelis-Attis etc.).
Pierini (1998, p. 36-37) descreve as religiões de mistério
como uma busca de resposta para os problemas do bem e do mal,
da dor, da vitória sobre a morte e a busca de salvação, o que se
pode observar quando diz o seguinte:
Para oferecer uma solução a esses problemas, apresentam-se, na
época helenista-romana, do século IV a.C. em diante, as chama-
das "religiões de mistério". Elas, na maioria dos casos, originam-se
de antigos ritos agrários destinados a renovar as forças da nature-

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44 © História da Igreja Antiga e Medieval

za através de cerimônias de valor sagrado e mágico. O significado


agrário do rito torna-se logo psicológico, porque o crente, ao parti-
cipar desses ritos secretos (daí a palavra "mistérios"), fica convenci-
do de que pode morrer e renascer, tal como faz a natureza, para ou-
tra vida melhor. Primeiramente, são pequenos grupos insatisfeitos
com a religião oficial, muito fria e formalista; depois, o movimento
de adesão aos "mistérios" se amplia, tornando-se fenômeno de
massa nos tempos do império romano.
Essas religiões, com os ritos de iniciação, os sacrifícios de animais ou os
simbolismos vegetais, com as preces, as cerimônias secretas bastante
sugestivas, seja prometendo a descida aos infernos, seja assegurando
a elevação aos céus, contribuem para quebrar os estreitos limites da
cidade, da nação; oferecem uma esperança interior aos indivíduos, in-
dependentemente da sua colocação geográfica, social ou cultural. A
religião de Ísis, deusa-mãe egípcia, e o culto de Mitra, deus-guerreiro
persa, aparecem, nos primeiros tempos do império romano, como os
mais temíveis concorrentes do cristianismo nascente.

Apresentar e discutir a configuração religiosa romana não


basta para compreender o ambiente em que nasceu a Igreja. Para
alcançar essa compreensão, em toda sua complexidade, é preciso
ampliar e aprofundar a reflexão para além dos limites da religião
abordando outras dimensões como é o caso da Filosofia Romana.

Filosofia no ambiente romano


Muitos partidários do chamado Paganismo Greco-Romano en-
contraram um substituto para sua orientação pagã na Religião e na
Filosofia. Nesse sentido, aqueles indivíduos mais inclinados e recep-
tivos à Filosofia encaminharam-se lentamente para o monoteísmo;
para uma religião do dever a cumprir e da paciência na adversidade.
Nesse contexto floresce o Estoicismo, sistema fundado no sé-
culo 4º a.C., por Zenão de Cicio. Essa filosofia exigia uma submissão
ante a ordem do universo e prometia a felicidade para todos os que
assumissem e aceitassem a própria condição e existência de modo
sereno e pacífico. Assim, com o esforço pessoal e com uma vida vir-
tuosa e ética, o homem viveria conforme a natureza e se liberta-
ria de todas as más paixões e influências mundanas, chegando ao
equilíbrio e domínio de si mesmo (o que eles chamavam de apatia,
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 45

impassibilidade ou ataraxia). O imperador Marco Aurélio e Epiteto


(50–125 d.C.) foram importantes representantes desta corrente.
Além disso, esta época também é marcada pela expansão do
gnosticismo ou gnose, assim descrito por Pierini (1998, p. 37-38):
[...] entre o II e o I século a.C., o dualismo social e metafísico bem
como a mensagem de salvação são interpretados também pelas filo-
sofias e religiões gnósticas (do grego "gnosis" = conhecimento), assim
denominadas porque, segundo tais doutrinas, só o verdadeiro co-
nhecimento é fonte de salvação. Partindo do dualismo ético (o bem
e o mal estão na consciência do homem), o gnosticismo elabora uma
visão do bem e do mal em luta entre si em escala universal (dualismo
metafísico): o bem é Deus; o mal é a matéria, entendida também em
sentido físico (daí, em geral, o desprezo pelas exigências do corpo e
o rigorismo puritano na vida moral, às vezes disfarçado em indife-
rentismo moral e em libertinismo); entre Deus e a matéria existe um
mundo intermediário de espíritos (chamados "eons" = seres), entre
os quais um é mau, o chamado "demiurgo", criador e organizador
do universo material com todos os seus defeitos, o outro é bom, o
salvador, que pode também revestir-se de matéria (mas só aparente-
mente = "docetismo") com a finalidade de salvar os homens, que são
feitos de matéria e espírito, levando cada um deles a conhecer (eis a
"gnose") a própria fagulha espiritual e ajudando-os a alçarem até o
mundo dos "eons" (dito "pleroma" = plenitude), até Deus.
A atitude gnóstica, considerada um pouco como o "parasita" de
todas as grandes religiões, desenvolve-se não só no mundo pagão
greco-romano, mas também no mundo judaico, exprimindo-se em
alguns apócrifos do Antigo Testamento, sobretudo de estilo apoca-
líptico, e, mais tarde, muito precocemente, no ambiente cristão.

Conhecer a maneira pela qual se estruturava a sociedade


romana, bem como sua dinâmica nesse período é mais um dos
elementos que contribuem para determinar as características do
ambiente em que a Igreja nasceu. O item a seguir consiste em ex-
plicitar, de forma geral, como estava constituída e como se proces-
savam as relações no interior da sociedade romana para justamen-
te alcançar esse objetivo.

Sociedade romana
A sociedade romana era chamada de "cooperativa da felici-
dade", felicidade que pertencia aos mais privilegiados (aristocra-

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46 © História da Igreja Antiga e Medieval

tas e comerciantes), pois quase um terço da população era formada


por escravos e pobres, excluídos do sistema político-econômico.
A sociedade romana era, portanto, dura para com os fracos.
A economia antiga baseava-se na escravidão, bem como no pre-
domínio masculino – a mulher era considerada inferior, apesar de,
em alguns segmentos, ter conseguido conquistar alguns direitos.
A tendência expansionista do Império Romano, bem como
a preocupação com a integração entre as regiões que eventual-
mente o constituíam, ambos objetos de análise do próximo item,
são elementos que também contribuem para a reflexão em que
consiste essa unidade.

Comunicação
No que diz respeito à integração entre as regiões que consti-
tuíam o Império Romano, observa-se que o império era entrecorta-
do por grandes estradas que levavam o nome dos seus respectivos
construtores, dentre as quais ganhavam relevância as seguintes:
• Via Ápia: que se estendia de Roma a Brindisi.
• Via Aurélia: de Roma a Genova.
• Via Domicia: que se estendia da Itália à Espanha, passan-
do pela Gália.
Como o império expandiu intensamente seus limites na ba-
cia mediterrânea, a navegação desenvolveu-se e o caminho do
mar tornou-se preferível em detrimento das rotas terrestres.
A propósito dessa configuração estrutural, o bispo cristão
Melitão de Sardes (+175) dizia, em síntese, que o Cristianismo e o
Império Romano tinham sido ordenados, pela Providência divina,
um para o outro (GÓMEZ, 1995, p. 18).
É verdade que o Império Romano foi benéfico ao Cristianismo
em certos aspectos por conta dos seguintes elementos: tolerância re-
ligiosa; unificação política (diversidade de povos dentro do mesmo Es-
tado); a unidade cultural helenística; intenso comércio e rápidas vias
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 47

de comunicação; organização em províncias. Mas, ao mesmo tempo,


o império constituiu um perigo para a Igreja nascente, o que se reflete
nas perseguições nos três primeiros séculos de existência e no fato
de que o Cristianismo foi muito combatido dentro e fora do império.

Judaísmo
Para compreender o ambiente em que nasceu a Igreja é es-
sencial, também, conhecer a dinâmica do Judaísmo, outra grande
religião muito presente no contexto em questão. E para alcançar
essa compreensão, abordaremos, nesse item do material, elemen-
tos básicos que compõem a história, a dinâmica social e geográfi-
ca, bem como o desenvolvimento da religiosidade judaica que se
desenvolveu em Israel.
Israel está localizada em uma pequena e estreita faixa de ter-
ra entre a África e a Ásia. Trata-se de uma região muito cobiçada
pelas potências antigas, posto que configurava uma área estrategi-
camente muito bem situada.
O povo judeu sofreu com várias invasões e exílios. Em mea-
dos do ano 200 a.C., por exemplo, toda a região foi dominada pelo
Império Selêucida da Síria, quando se iniciou o que foi chamado
de "helenização forçada" da região, que por sua vez gerou uma
resistência muito forte da parte dos Macabeus. Mais tarde, antes
mesmo do nascimento de Cristo, no ano 63 a.C., os romanos domi-
naram a região confiando o governo local aos idumeus Herodes e
Arquelau, líderes regionais nessa época.
Neste ambiente, proliferou o gênero literário apocalíptico,
bem como o desejo de libertação fundamentado na crença da vin-
da do Messias, daí o fortalecimento da expectativa messiânica.
Inicialmente, a sociedade judaica organizava-se em tribos
nômades que viviam no deserto. Já à época do nascimento de Je-
sus Cristo predominava, há séculos, uma organização baseada no
sedentarismo, em que a propriedade se submetia a um sistema
patriarcal, com evidente supremacia masculina.

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48 © História da Igreja Antiga e Medieval

As atividades econômicas fundamentais, nesse contexto,


eram a agricultura, baseada na produção de cereais (trigo, cevada,
centeio etc.), legumes e frutas; a pesca e a pecuária, que, por sua
vez, se concentrava na criação de bovinos, ovelhas e aves.
Na sociedade judaica, a família tinha valor e importância
muito marcantes, sendo que, em sua dinâmica, o pai tinha total
autoridade sobre esposa e filhos, daí o caráter patriarcal da socie-
dade judaica mencionado anteriormente.
A sociedade judaica era marcadamente dividida em dois seg-
mentos: os "ricos" (constituído pelos cortesões, latifundiários, co-
merciantes, nobreza sacerdotal etc.) e os "pobres" (formado por
escravos judeus, escravos pagãos, mendigos, diaristas etc.).
Na história do povo hebreu, que constituía a sociedade ju-
daica, a religião ocupava um espaço insubstituível. E o núcleo de
suas crenças era constituído pelos seguintes elementos:
• O monoteísmo.
• A fé no Messias, que nasceria em meio ao povo para eri-
gir, em Israel, o Reino de Deus.
• A observância da Lei expressa na Torá, tarefa que o ho-
mem piedoso se propõe a cumprir em sua vida diária.
Para os hebreus, o culto divino, tanto no templo como nas
sinagogas, mantinha vivo o conhecimento da Escritura e estimula-
va a prática e a valorização da pureza da Lei mosaica. No templo,
os judeus faziam o verdadeiro e único sacrifício. Durante o ano
existiam várias celebrações: os sacrifícios públicos (rituais que os
judeus faziam em suas visitas ao templo, com oferta e sacrifícios
de cordeiros, pombas etc.) , que eram diários; os sacrifícios pri-
vados (abluções, banhos, orações etc.) e as grandes festas (Pás-
coa ou Pessah, que celebra a saída e vitória sobre os egípcios e a
libertação da escravidão), Pentecostes (ou festa da colheita e a
celebração da aliança com Deus após o retorno do Egito), Tendas
(festa que recorda o tempo vivido no deserto), Yom Kippur (festa
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 49

do perdão e da purificação com forte jejum), Dedicação (consagra-


ção dos espaços e edifícios de culto, especialmente do Templo de
Salomão) etc.
Morin (1982, p. 13) expõe nove pontos que ocupavam o
núcleo da religiosidade judaica na época do nascimento de Jesus
Cristo:
1) As tribulações messiânicas: pestes, tremores de terra diversos
flagelos.
2) A volta de Elias.
3) A manifestação do Messias (cada um espera o Messias que cor-
responde à posição de seu grupo; o Messias atualmente escon-
dido pode desempenhar um papel essencial ou um papel secun-
dário, no conjunto).
4) A luta e a vitória contra as potências maléficas.
5) O Reino de Deus: restauração da teocracia em Israel, volta do
exílio, purificação de Jerusalém, transfiguração do templo, re-
novação no Espírito, reino político do Messias, participação das
nações.
6) A ressurreição dos mortos.
7) O juízo.
8) A idade de ouro: felicidade messiânica para os justos.
9) O castigo dos ímpios.

A propósito dessa perspectiva, existiam duas formas de pro-


fissão do judaísmo:
1) A da Palestina, caracterizada, sobretudo, pela extraordi-
nária imposição de restrições, pela rigidez e pelo extremo
senso de rivalidade frente a tudo o que não fosse judaico.
2) A dos judeus que viviam fora do contexto israelita (por
obra da diáspora ou dispersão), mais abertos ao mundo
helênico e às influências externas.
No contexto do judaísmo palestinense, destacavam-se al-
guns grupos, com características religiosas marcantes e proposta
política específica que configuravam, conforme alguns autores,
verdadeiros partidos político-religiosos que vamos conhecer ao
longo dos itens a seguir.

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50 © História da Igreja Antiga e Medieval

Hassidins
Os Hassidins constituíram uma comunidade de homens sé-
rios, que buscavam a última e mais profunda vontade de Deus,
expressa na Lei; eram fechados, não se envolviam com o povo e
representavam uma certa elite político-espiritual.
Saduceus
Os Saduceus constituíam um grupo de origem incerta que
teria surgido há pelo menos 120 anos antes de Cristo. O grupo
era composto pelos mais ricos e altos sacerdotes e, por isso, es-
tavam muito vinculados ao templo e eram rejeitados por fariseus
e zelotas. Tinham uma visão racionalista, mais aberta à cultura
helenística.
A respeito dos Saduceus, Morin (1982, p. 108-109), expli-
citando características relevantes desse segmento, afirma o se-
guinte:
[...] Herodes os tratou duramente. Do ano 6 ao ano 70, comanda-
ram uma política de conciliação com o invasor romano. A partir do
ano 6 o sumo sacerdote, Joazar, persuadia os judeus a declararem
seus bens. Acalmavam os movimentos populares. Entre eles é que
se deve procurar os responsáveis pela morte de Jesus.
Suas tendências doutrinais conservadoras são coerentes com sua
posição política. São defensores da ordem estabelecida. Em maté-
ria cultual, apegam-se à letra da Torá e, neste ponto, muitas vezes,
entram em conflito com os fariseus. Assim, a presença de Deus é
muito localizada no Santo dos Santos do templo.

Os saduceus privilegiam os Cinco livros, o Pentateuco, suposta-


mente legados por Moisés. Não rejeitam os livros proféticos. Mas
são compreensíveis suas resistências e sua reticência em empregá-
-los! A evolução doutrinal sem apoio no Pentateuco é descartada.
Assim, a idéia de uma retribuição individual e coletiva e extraterre-
na. Para eles, o que importa é a salvação atual da nação. A ressur-
reição dos mortos, a existência de anjos e demônios lhes parecem
dados bastante tardiamente acrescentados. Em matéria criminal,
rejeitam as mitigações inventadas pelos fariseus e as acomodações
financeiras. São partidários de uma estrita aplicação da lei do talião.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 51

Os saduceus constituíam o partido da ordem. Vivam presos à


sua fé. Eram arrogantes e duros com os pequenos. Não tinham
influência sobre o povo. Acredita-se que nem mesmo sobre as
próprias mulheres. É que eles não resistiram à tentação de todo
partido no poder: utilizar a religião.

Fariseus (Separados)
Os Fariseus constituíam o maior grupo na época de Jesus,
composto por uma classe média separada do povo e das elites
sacerdotais. Formavam um grupo bem organizado, que conhecia
profundamente a Lei mosaica, observando-a de modo incansável
e escrupuloso.
Nesse grupo, majoritariamente laical, existiam alguns escri-
bas e poucos sacerdotes.
Na época de Jesus, eles estavam separados do poder políti-
co, personificado em Herodes, antigo aliado deles. Em contrapar-
tida, tinham uma grande influência junto ao povo e isso lhes dava
um grande poder no contexto político, o que se explica, segundo
Morin (1982, p. 111-112), da seguinte maneira:
O segredo de sua influência é conseqüência de dupla oposição. Pri-
meiramente, diante da massa popular, afirmavam sua origem judaica
com uma piedade bastante desenvolvida. A interpretação escrupu-
losa da Lei os levava a uma observância rigorosa do sábado, a um
extremo cuidado com a pureza legal, ao pagamento integral dos dízi-
mos dos mínimos produtos. Com isso, pretendiam impor ao povo em
geral, em toda a sua vida, uma pureza totalmente semelhante àquela
que devia caracterizar o sacerdote oficiante do templo. Os saduceus
não exigiam tanto, pois tinham que manter as distinções. Os fariseus,
mais católicos que o papa, mostravam-se, assim, como exemplo ao
povo. Fascinavam a todos e a todos desprezavam.
Por outro lado, opunham-se à nobreza sacerdotal e leiga na área re-
ligiosa, constituindo-se uma nova casta de intérpretes da Escritura
com espírito renovador. Diante dos que se agarravam apenas ao livro
da Lei, os fariseus escribas combinavam a exegese da Lei escrita com
as contribuições da Tradição oral para a elaboração de uma teologia
mais aberta e mais espiritualista. Eles tinham uma idéia bastante ele-
vada das relações entre o homem e o Criador, da liberdade humana
e da providência. Manifestavam uma viva fé messiânica e afirmavam
a existência dos anjos, o julgamento depois da morte e a ressurrei-

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52 © História da Igreja Antiga e Medieval

ção dos justos. Ao contrário dos saduceus que desconfiavam de toda


abertura da história, os fariseus admitiam as crenças dos apocalípti-
cos e esperavam uma era verdadeiramente nova [...]
Os fariseus, irrepreensíveis aos olhos do povo, superavam, por sua
ciência e sua piedade, os chefes-saduceus pouco considerados nos
meios populares. Seu espírito comunitário e seu cuidado de purifi-
cação para todo Israel continham germes democráticos. Tudo isso
constituía excelentes trunfos para um partido de oposição que co-
lheu, no ano 70, os frutos de seu devotamento à Lei.

Zelotas (resistência combativa)


Os Zelotas eram judeus que se colocavam ao fiel serviço da
Lei, mas com atitude combativa e martirial. Eram chamados de si-
cários, pois carregavam um punhal com este nome e, quando po-
diam, matavam romanos e seus colaboradores. Muitos deles sur-
giram em meio aos fariseus, que eram considerados conciliadores
e menos combativos.
Morin (1982, p. 112-113) refere-se a eles da seguinte maneira:
[...] Durante a revolta dos anos 66 a 70, o fanatismo zelota atingiu
o paroxismo. Depois da queda de Jerusalém, eles ainda resistiram
e só cederam, no ano 73, em Massada. Mas Bar Koseba retomou a
resistência nos anos 132 a 135.
[...] Segundo Flávio Josefo, Judas o Galileu "censurava os judeus
por aceitarem o pagamento do tributo aos romanos e por admiti-
rem chefes mortais ao lado de Deus. E seus sequazes tinham um in-
vencível amor à liberdade, pois julgavam que Deus era o seu único
chefe e seu único soberano".
O programa dos zelotas continha uma reforma social, mas lutavam
pelo templo e, portanto, pela conservação das instituições judai-
cas. Eram os resistentes que queriam a expulsão dos romanos, mas
eram os reformistas que pretendiam, simplesmente, corrigir os
abusos do sistema em vigor sem questionar o modo de produção
vigente desde o século X antes de Cristo [...].

Essênios
Os Essênios tratavam-se de grupo formado por judeus que se
articulou no século 2º a.C. Repudiavam o culto do templo e os sa-
crifícios, levando uma vida de rigor ascético, ao estilo dos monges,
com celibato, vida comum, partilha dos bens etc. Não se permi-
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tiam a convivência nem com os pecadores do povo judaico e tam-


pouco com os pagãos. Eram extremamente radicais na fidelidade à
Lei, à observância ritual e na pureza da Aliança. Tornaram-se mais
conhecidos após e a propósito da descoberta dos Manuscritos de
Qumrã, no Mar Morto.
Apresentadas as características fundamentais dos principais gru-
pos de judeus palestinenses, abordaremos a seguir a dinâmica do even-
to que ficou conhecido como Diáspora ou Dispersão, mais um elemento
determinante para a compreensão da dinâmica do Judaísmo.
Diáspora/Dispersão
Após e por estímulo do cativeiro assírio (722) e babilônico
(597), o povo judeu dispersou-se pelos países limítrofes, muito
embora também tenham havido emigrações voluntárias.
Os judeus formaram mais de 150 comunidades, mais abertas
ao mundo greco-romano, sendo que muitos dos integrantes dessas
comunidades pertenciam à classe média. Foi nestas comunidades
derivadas da diáspora que os apóstolos e primeiros missionários
iniciaram seu trabalho anunciando a mensagem cristã e foi no in-
terior da dinâmica dessas comunidades que muitos se converte-
ram ao Cristianismo, especialmente os "tementes a Deus", pagãos
simpatizantes do judaísmo que não queriam assumir o judaísmo e
viram no Cristianismo uma proposta semelhante e menos exigente
em alguns aspectos.
Observe que o "monoteísmo" e a ideia de um "Messias" liber-
tador constituem os elementos positivos que o Judaísmo oferece
ao nascente Cristianismo, mas a Igreja encontrou dois obstáculos
profundos e difíceis de superar nesse processo de influência dou-
trinária: o "nacionalismo judaico", que considerava o Cristianismo
como algo exclusivo, contrariando o universalismo da mensagem
evangélica e a "piedade farisaica", que se expressava unicamente
no cumprimento exterior da Lei e não valorizava as exigências da
boa intenção interior, que é algo essencial no Cristianismo.

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54 © História da Igreja Antiga e Medieval

Pierini (1998, p. 50-51), aprofundando a consideração da re-


lação entre Cristianismo e Judaísmo, assevera o seguinte:
Nascendo na Palestina, a mensagem evangélica e a atividade apostóli-
ca têm que se confrontar com três ambientes estritamente ligados en-
tre si, mesmo onde estão em concorrência ou em conflito: o ambiente
judaico-palestinense propriamente dito; o judaico-helenista, que mes-
mo na "diáspora" gravita em torno de Jerusalém, encontrando-se e, às
vezes, conflitando com os judeus autóctones; e o pagão (ou "étnico",
"gentílico"), representado sobretudo pelos comerciantes, soldados ro-
manos, mas também pelas populações semíticas circunvizinhas [...]. A
unificação romana do Mediterrâneo geralmente preservava os interes-
ses das classes dirigentes locais, favorecendo suas atividades e autono-
mias não só econômicas e políticas, mas também culturais e religiosas.
A Palestina, nesse quadro, não é uma exceção. O povo judeu conserva
a própria fisionomia e as próprias tradições; os chefes do povo, espe-
cialmente os saduceus, são filo-romanos, ou pelo menos toleram a
imposição estrangeira. No entanto, dada a suscetibilidade religiosa e
nacional, típica de Israel, não se pode falar de verdadeira colaboração,
mas só de coexistência mais ou menos pacífica, interrompida de vez
em quando por lampejos de rebeldia.

Considerado o ambiente em que nasce a Igreja, abordemos,


agora, o seu fundamento maior.

8. JESUS CRISTO
Em Jesus de Nazaré está a origem da História da Igreja. A
Igreja apresenta-se a si mesma como fundada por Cristo. Mas Cris-
to existiu realmente? Para responder a esta pergunta, é preciso
remontar às "fontes históricas" da vida de Jesus, que podem ser
divididas em três categorias:
1) Fontes cristãs: Os "Evangelhos" (Mateus, Marcos, Lucas
e João) e as "Cartas" de Paulo. Infelizmente, Jesus não
deixou nada escrito, mas, por meio destas obras, pode-
mos conhecer bem a sua vida e seu ensinamento, apesar
de que essas fontes apresentam algumas lacunas.
2) Fontes não cristãs: "fontes judias" (Flávio Josefo, 37-100)
e a tradição talmúdica.
3) Fontes pagãs: Tácito (55-120), Suetônio (70-128) e Plí-
nio, "O Jovem" (61-114).
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 55

No campo das fontes históricas, além das fontes literárias,


como citamos anteriormente, existem ainda as fontes arqueológi-
cas, com destaque pra os "lugares santos" (Nazaré, Belém, Jerusa-
lém e Santo Sepulcro).
Muitos estudiosos quiseram provar que Jesus Cristo não
existiu enquanto personagem histórico e que sua figura se trata de
criação mitológica, sendo que a esse respeito Bihlmeyer e Tuechle
(1964, p. 52-53) dizem o seguinte:
A negação da existência histórica de Jesus feita por A. Kalthoff,
P. Jensen, A. Drews, P. L. Couchoud e outros, que consideram o
Redentor uma figura puramente mítica, proveniente das idéias
difundidas na Ásia Menor, de um Deus salvador, que morre e res-
surge e das visões imaginosas dos judeus sobre a vinda do Mes-
sias, é uma grave aberração da crítica radical. O testemunho do
Evangelho e do Apóstolo Paulo permanece solidíssimo. Um frag-
mento de papiro do Evangelho de João, descoberto há pouco e
que remonta ao princípio do século II, demonstra que nos tempos
do imperador Trajano já se escrevia de Jesus aquilo que nós lemos
hoje.
Por outra parte, possuímos também testemunhos seguríssimos de
fonte pagã e hebraica. Tácito (+120 d.C.) nos Anais V, 44, falando
da perseguição aos cristãos ordenada por Nero, alude também à
execução capital de Cristo ordenada pelo procurador Pôncio Pilatos
(auctor nominis eius [sic. Chrestianorum] Christus Tibério imperan-
te, per procuratorem Pontium Pilatum supplicio affectus erat. Cfr. E.
Panneels, Nova ET Vetera 1947, 43-55).
O procônsul Plínio, o Jovem, refere, pelo ano 112, numa carta ao impera-
dor Trajano (Ep. X, 96) que os cristãos da Bitínia costumavam cantar um
hino a "Christo quase Deo" durante suas funções religiosas.
O historiador hebreu Flávio Josefo [...] pelo ano 96, em suas "An-
tiquitates judaicae" XX, 9,1 chama Tiago Menor "irmão de Jesus,
que é chamado o Cristo". Duvidosa, porém, é a autenticidade do
seguinte texto que parece estranho às "Antiquitates" XVIII, 3,3.
"Naquele tempo viveu Jesus, um homem de grande valor [se, con-
tudo, pode ser chamado homem, pois ele era] um realizador de
obras maravilhosas, [um mestre dos homens, que acolhem com
alegria a verdade]. Ele conquistou muitos judeus para sua causa,
mas também muitos pagãos. Ele era [ou pelo menos parecia ser]
o Messias. Quando Pilatos em base a uma acusação movida con-
tra ele pelos nossos homens mais eminentes o condenou a mor-
rer na cruz, aqueles que antes o tinham seguido não se afastaram
dele [pois que ao terceiro dia apareceu-lhes novamente vivo já

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56 © História da Igreja Antiga e Medieval

que os santos profetas tinham predito dele estas e muitas outras


coisas maravilhosas]. Ainda hoje a gente dos cristãos, que toma o
nome dele não cessou de existir."
As palavras entre colchetes, que interrompem o sentido e se afas-
tam do estilo de Flávio Josefo, são provavelmente uma nota mar-
ginal já conhecida por Eusébio (H. E. I, 11, 7, 8), mas ainda não por
Orígenes; ou então trata-se de uma manipulação do texto original
por obra de cristãos. Todavia, encontramos ainda em tempos re-
centíssimos quem sustente sua autenticidade [...] enquanto outros
declaram todo o trecho interpolado mais tarde por mão cristã é
espúria.
As últimas comunicações (5 fragmentos) fornecidas pela versão
paleo-russa (séculos XI-XII) da "Guerra judaica" de Flávio Josefo so-
bre as aspirações de Jesus (Messianismo político) e a sua Paixão,
embora tenham encontrado defensores em R. Eisler e em outros,
são certamente lendárias [...]
São também apócrifas a pretensa relação de Pilatos ao imperador
Tibério sobe a morte e ressurreição de Jesus e a carta de Lentulo
(presumido antecessor de Pilatos) ao Senado sobre a personalida-
de física de Jesus; cfr. Dobschütz ZntW 1902, 29 ss; Christusbilder,
308ss. Uma falsificação recente é a chamada carta de Benan, que
dá notícias sobre Jesus e seus discípulos, a qual, conforme o editor
ou então inventor Ernesto, nobre de Lanitz (1910) teria sido escrita
no ano 83 d.C. pelo médico egípcio Benan; cfr. C. Schmidt e H. Kra-
pow em TU 44, 1,1921.

Cronologia de Jesus Cristo


Considerar a figura de Jesus Cristo como personagem histó-
rico e não como criação mítica implica considerar os eventos que
compõem essa história em sua cronologia básica, conforme o que
se expõe a seguir.
Nascimento
No ano 526, o monge Dionísio, o Exíguo, fez cálculos para
fixar a data de nascimento de Jesus, e assinalou o ano 753 da
fundação de Roma. Mas, segundo a cronologia moderna, Dioní-
sio equivocou-se em 4 anos. Dessa forma, o nascimento de Cristo
situar-se-ia no ano 749, o que configura um atraso de 4 anos no
calendário ocidental vigente.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 57

Vida pública
Alguns autores modernos como Van Beber, Belser, entre ou-
tros, fundamentando-se no testemunho de determinados Padres
da Igreja, restringem a vida pública de Jesus a um ano de dura-
ção. No entanto, a maioria dos autores inclina-se para dois anos
e meio.
Morte
Como Cristo começou sua atividade pública aos trinta anos
(Lc 3, 23), sua morte teria ocorrido nos anos 32-33, ou, 14 Nisan (1º
mês do ano judaico) de 783 de Roma, isto é, 7 de abril do ano 30.
Pierini (1998, p. 41-43), tratando deste tema, conceitua uma
"cronologia relativa da vida de Cristo" e uma "cronologia absoluta
da vida de Cristo". Na primeira, confrontam-se os quarto evange-
lhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e são colocadas algumas di-
ferenças de disposição e proporção (PIERINI, 1998). A respeito da
mencionada "cronologia absoluta", por sua vez, Pierini (1998, p.
43-45) diz o seguinte:
Todavia, além dos problemas da cronologia relativa existem os da
cronologia absoluta: isto é, trata-se de atribuir a cada etapa da
vida Cristo uma data, segundo um calendário que estabeleça anos,
meses e dias precisos e até, se possível, horas e minutos. Mas as
dificuldades que se encontram são consideráveis, às vezes até in-
superáveis.
A primeira questão refere-se ao ano e ao dia do nascimento de Cris-
to. A esse respeito, Mateus diz que Jesus nasceu "no tempo do rei
Herodes" (MT 2,1), e Lucas, que o evento se verificou durante o cen-
so realizado "enquanto Quirino era governador da Síria" (Lc 2,2). As
indicações, como se vê, são muito vagas, e devem ser completadas
com informações oferecidas por outros autores. Quanto a Herodes,
o escritor hebreu Flávio Josefo afirma que ele morreu antes da Pás-
coa (=11 de abril) do ano 750 da fundação de Roma. Deve-se deduzir,
então, que o nascimento de Jesus, ocorrido muito antes da morte de
Herodes, verificou-se necessariamente antes de 750, e que Dionísio,
o Pequeno, estabelecendo o ano do nascimento em 753 da fundação
de Roma, errou em três anos: Cristo, então, nasceu ao menos três
anos [...] antes de Cristo. Pelo menos três anos, mas provavelmente
também não mais do que sete anos. De fato, o censo a que Lucas se
refere deve ter sido, conforme indicam os dados arqueológicos, o se-

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gundo convocado por Augusto, promulgado no ano 746 da fundação


de Roma. Pode-se concluir, pois, que Jesus nasceu depois do ano 746
e antes de 750 "ab Urbe condita".
Quanto ao dia do nascimento de Cristo, a data de 25 de dezembro
(ou 7 de janeiro, segundo o calendário Juliano em uso nas Igrejas
orientais) nem entra em questão, porque, como se sabe, trata-se
de uma data litúrgica, introduzia no séc. IV para substituir as festas
pagãs do solstício de inverno.
A segunda questão da cronologia absoluta está ligada ao início da
vida pública e ao batismo de Jesus, feito por João Batista. Também
nesse caso, apesar dos detalhes solenemente proclamados por Lu-
cas (Lc 3,1-2), a data precisa foge do alcance da pesquisa histórica,
porque não consegue estabelecer qual o critério usado pelo evan-
gelista ao escrever "no ano décimo quinto do império de Tibério
César", que tanto pode ser 26-27 ou 28-29 d.C. Como Lucas diz
também que Pilatos já era procurador da Judéia e o início do exer-
cício desse cargo deve ser colocado entre os anos 26-27 d.C., está
claro que precisamos nos manter entre os 26 e 29, mais provavel-
mente 27, ou seja, no ano 780 da fundação de Roma (se as Páscoas
da vida pública de Jesus foram três). Quanto ao dia exato (do início
da vida pública), aqui também nada se sabe, a não ser que deve ter
sido antes da Páscoa, pelo que afirma Jo 2,13.
O terceiro e mais importante problema refere-se à data da sexta-
-feira. Como já dissemos, festa pascal judaica ia do pôr-do-sol do
dia 15 do mês de Nisan, que correspondia a uma parte dos nossos
meses de março e abril. Dado que é absolutamente improvável que
Cristo tenha sido condenado e crucificado na manhã ou na tarde de
um dia festivo e tão solene como a Páscoa, ou seja, a 15 de Nisan,
só resta aceitar a data de 14 de Nisan. Além disso, como pelas pes-
quisas astronômicas fica claro que no período em que Pilatos go-
vernou a Judéia, isto é, dos anos 26 a 36 d.C., apenas em dois anos
o dia 14 de Nisan coincidiu com a sexta-feira ou seja, nos anos 30 e
33; levando em conta, também, que o ministério público de Jesus
começou não ano 27 ou 28 e durou dois-três anos, pode-se deduzir
que o dia 14 de Nisan do ano 30 parece a data mais plausível: ela
corresponde ao dia 7 de abril do nosso calendário.
Pode-se afirmar, por isso, com suficiente segurança, que Jesus Cris-
to nasceu entre os anos 8 e 4 a.C., começou a vida pública no ano
27 ou 28, e morreu numa sexta-feira, no dia 7 de abril do ano 30
d.C. Esse quadro cronológico essencial da vida de Jesus pode pa-
recer um tanto pobre, mas é mais do que suficiente para situar o
Verbo encarnado na história dos homens.

A cronologia básica da história de Jesus Cristo (nascimento,


vida pública e morte) complementa-se por intermédio da conside-
ração de sua ação, de acordo com o que se expõe a seguir.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 59

Atividade de Cristo
Jesus nasceu, milagrosamente, de acordo com textos ne-
otestamentários, de Maria Virgem em Belém. Até a idade de 30
anos levou uma vida oculta na pequena vila de Nazaré com seus
pais. Depois disso, começou sua atividade de Mestre, ensinando
uma mensagem de paz, amor e respeito; curando muitas pes-
soas de vários males e fazendo muitos milagres. Cristo não se
apresentou como um reformador da religião judaica, e sim como
o instaurador de um novo modo de viver a relação com Deus e
com o próximo.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
O Cristianismo afirma que "Jesus Cristo" é "Deus". E esta convicção de fé no
Cristo é sustentada pela própria consciência messiânica de Jesus, pelas profe-
cias que se cumprem n'Ele, pelos milagres (especialmente a ressurreição corpó-
rea), pela santidade e pureza de sua vida, pela sabedoria, pela verdade absoluta
de sua doutrina e pela divina sublimidade de sua pessoa.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Merece a máxima atenção o modo como Jesus proferia sua
fala com perfeita segurança, de ser inatingível para os homens,
que não perde nunca o próprio equilíbrio. O Reino de Deus anun-
ciado por Ele destina-se a todos os homens (universalismo) e não
só aos judeus.
A obra de Jesus volta-se, essencialmente, para a fundação da
Igreja. Jesus acentua, reiteradamente, o aspecto comunitário da
sua religião, o que se pode observar no uso reiterado da primeira
pessoa do plural (nós, nosso) no Pai nosso "Pai 'Nosso', venha a
'nós' o vosso reino, o pão 'nosso' de cada dia" [...]. Ele quer reunir
o "povo de Deus". E Ele fundou a sua Igreja como uma Igreja Mis-
sionária, o que se evidencia quando delega aos seus discípulos a
missão de anunciar a boa nova do Reino a todo o mundo.
Jesus fundou a Igreja também como sociedade visível e comu-
nidade histórica, o que se pode perceber na solene declaração: "tu
és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do
inferno nunca prevalecerão contra ela" (Mt 16, 18); na instituição dos

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60 © História da Igreja Antiga e Medieval

sacramentos; na constituição dos apóstolos como "sacerdotes da


Nova Aliança" (Lc 22, 19) e como "mestres dos povos" (Mt 28, 19).
Dessa forma, a Igreja apresenta-se como fundamento da
nova sociedade desejada por Jesus e, para realizar este fim, Ele
escolheu os 12 apóstolos, que, depois da morte-ressurreição-as-
censão, desenvolveram e expandiram a Igreja.
Pierini (1998, p. 46-47), a respeito do início e fim do ministério
de Jesus, de sua relação com discípulos e seguidores, bem como da
formação da primeira comunidade cristã, escreve o seguinte:
Essa massa de seguidores passou por uma gravíssima crise quando
a mensagem e a obra do "rabi" pareceram contrariadas pelos acon-
tecimentos que se sucederam de 2 a 7 de abril do ano 30 (783 da
fundação de Roma): entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, prisão,
processo diante do sinédrio sob a acusação de blasfêmia, condena-
ção à morte confirmada pelo procurador romano Pôncio Pilatos,
crucificação e morte.
A partir de 9 de abril, porém, a comunidade dos discípulos gradu-
almente se recompõe em torno da nova presença do "rabi", até 18
de maio, dia da sua definitiva glorificação (ascensão ao céu). Nasce,
então, a comunidade de Jerusalém, composta, como afirma Lucas
em At 1,15, de cento e vinte pessoas; nasce a comunidade cristã
primitiva propriamente dita, situada não só em Jerusalém mas
também em outras localidades da Palestina, pois o Cristo ressusci-
tado aparece em mais lugares, como em Emaús, (Mc 16,12; Lc 24,
13ss), no lago de Tiberíades (Jo 21,1-22), no monte da Galiléia, que
talvez corresponda à aparição a mais de quinhentas pessoas (Mt
28, 16-20; Mc 16, 15-18; 1Cor 15,6).

A Igreja-mãe de Jerusalém, dez dias depois, a 28 de maio, por oca-


sião da festa de Pentecostes, recebe o "batismo" no Espírito e pro-
clama publicamente, pela boca de Pedro, a própria fé. Os discípu-
los, que antes haviam reconhecido Jesus como um profeta, a partir
da confissão de Pedro em Cesaréia o reconheceram como um Mes-
sias, e depois da ressurreição, como um Messias divinizado, agora
o proclamam abertamente como "Senhor" (=Kyrios", cf. At 2,36).
Essa mensagem é dirigida antes de tudo aos povos da diáspora ju-
daica mas também aos "distantes" , isto é, aos pagãos (At 2,39).
Nesse dia, cerca de três mil pessoas se agregam ao grupo dos cren-
tes (At 2,41), que gradativamente chega a cinco mil (At 4,4).
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 61

9. COMUNIDADE DE JERUSALÉM E EXPANSÃO INICIAL


Como era a vida da Igreja-mãe de Jerusalém? Esse é o ques-
tionamento que perpassa essa unidade.
A propósito do referido questionamento, vejamos o que nos
diz Pierini (1998, p. 47):
A comunidade jerosolimitana, em contínuo crescimento, apresenta
as seguintes características (At 2, 42-47): adesão à mensagem de
Pedro e dos outros "apóstolos", especialmente dos "doze"; comu-
nhão fraterna através da solidariedade espiritual e material, levada
inclusive à comunhão de bens, celebração da refeição eucarística
nas casas, em memória da refeição feita pelo "Senhor" antes da
sua paixão; assiduidade às cerimônias do Templo. Essa comunida-
de, por isso, se apresenta como a realização do Israel teocrático-
messiânico descrito pelos profetas.

Considerando esse contexto jerosolimita, impõe-se a abor-


dagem das características principais da Igreja primitiva que são
apresentadas a seguir.
Foi em Jerusalém que Jesus foi condenado e crucificado
Em Jerusalém, o Cristo ressuscitado apareceu aos 11 apósto-
los (Lc 24, 33-34. 49; At 1, 4-12) e eles permaneceram "concordes
na oração, com as mulheres e com Maria, Mãe de Jesus e seus
irmãos" (At 1, 14). Todos juntos somavam cerca de 120 homens
(At 1, 15). Ali, depois de 50 dias, no Pentecostes (At 2, 1-13), expe-
rimentaram a descida do Espírito Santo (At 2, 1).
Os membros desta comunidade eram judeus
O livro Atos dos Apóstolos fornece informações sobre a ori-
gem judaica e a vida da primeira comunidade, bem como sua su-
cessiva propagação impelida pela força da verdade conquistadora
que se revela imediatamente. Pedro, chefe da comunidade, come-
çou a pregar Cristo ressuscitado com êxito e, no dia de Pentecos-
tes, converteram-se 3.000 indivíduos (At 2, 41) e, dias depois, mais
5.000 (At 4, 4).

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62 © História da Igreja Antiga e Medieval

A vida da primeira comunidade cristã constituía um belo ideal


São Lucas descreve a comunidade primitiva da seguinte ma-
neira: "tinham todos um só coração e uma só alma" (At 4, 32). Os
discípulos continuavam participando na vida coletiva dos israeli-
tas, mas, ao mesmo tempo, tinham consciência de que sua mis-
são era formar uma "comunidade" particular, uma "ecclesia", uma
"assembleia oficial" do povo de Deus, o que constitui o ideal que
caracteriza essa primeira comunidade.
A organização da referida comunidade é bem clara desde o
princípio; os membros estão divididos em dois grupos bem distin-
tos: os 12 e os demais. Os 12 têm Pedro como chefe, o que se pode
perceber em vários momentos: na eleição de Matias (At 1, 15-26),
na pregação do dia de Pentecostes (At 2, 14-36), diante do Sinédrio
(At 4, 8-12), na reprovação a Ananias e a Safira (At 5, 3) e no batismo
do centurião Cornélio (At 10, 48).
Neste momento, o que distingue os cristãos de todos os demais
judeus é o reconhecimento de Jesus de Nazaré como o Messias.
Vida religiosa e moral da primeira comunidade
A vida religiosa e moral da primeira comunidade foi marcada
pela fidelidade ao Templo de Jerusalém e à Lei mosaica. A despeito
disso, aos poucos, os seguidores de Cristo, chamados de "nazarenos"
ou "galileus" passam a desenvolver um culto próprio e isso é visto no
"Batismo", na "Oração em Comum", na "Fração do Pão" (At 2, 42), na
comunhão de bens, escatologismo ou espera do retorno eminente de
Cristo, no entusiasmo movido pela ação e presença do Espírito Santo
e pelas primeiras conversões e milagres.
Uma das características mais marcantes deste período é a
partilha ou comunhão de bens. Drane (1985, p. 77), aprofundando
a análise acerca da temática sobre o "comunismo" da primitiva
Igreja de Jerusalém, diz o seguinte:
A partilha dos bens não era coisa nova; era considerada como um
ideal pelos escritores gregos, ao passo que os judeus estavam bem
cônscios da necessidade de serem caridosos. A comunidade que
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 63

morava às margens do Mar Morto, em Qumrã, praticava uma se-


melhante partilha de recursos, embora nesse caso um convertido
não dispunha de todas as suas posses até completar um ano desde
sua admissão na seita.
A marca distintiva do "comunismo" cristão era sua espontaneida-
de. Em Qumrã, a partilha era cuidadosamente regida por normas,
como o era a distribuição das esmolas entre os judeus em geral.
Mas Jesus não tinha determinado nenhuma política inflexível para
seus discípulos seguirem. Ele próprio viveu, como todos sabiam,
em relativa pobreza, e seus seguidores imediatos deixaram tudo
quanto tinham para segui-lo. Quando certo homem rico desejou
tornar-se discípulo, foi-lhe dito: "Vai, vende o que tens e dá o di-
nheiro aos pobres" (Mc 10,21) – e é difícil não concluir que Jesus
acreditasse que um rico achasse mais duro segui-lo que um pobre
(MT 19,24). Mas mesmo os pobres podiam ter obsessão pelas ri-
quezas, e deles também se esperava que cedessem sua última mo-
eda para o serviço de Deus (Mc 12, 41-44).
Assim, não é difícil entender por que esses primeiros cristãos quiseram
partilhar seus bens com os outros. Contudo, parece que não foi uma
iniciativa de êxito completo, pois nada mais se ouve a respeito de tal
partilha generosa, quer em Jerusalém, quer em outros lugares. Confor-
me o historiador marxista Karl Kautsky, a razão é que, após ter come-
çado entre o proletariado humilde, a Igreja logo se instalou na classe
média da sociedade, e aí os ideais de vida comunística não eram tão
atraentes. Certamente é verdade que quando a Igreja se espalhou pelo
vasto mundo romano alguns de seus convertidos eram provenientes
das classes sociais mais elevadas. Mas tal não acontecia na Palestina.
Tudo que sabemos da igreja de Jerusalém sugere que ela continuou
sendo pobre enquanto existiu. A igreja de Antioquia mandou um do-
nativo para Jerusalém (At 11, 27-30), e as igrejas gentias de Paulo fize-
ram o mesmo (Rm 15, 22-29). Paulo duas vezes se refere à igreja de
Jerusalém qualificando-a de "pobre" (Rm 15,26; Gl 2,10), e mais tarde
os judeus cristãos da Palestina se autodenominam "ebionitas", o que
significa simplesmente "os pobres".

Separação da sinagoga
Os cristãos eram, desde o princípio, uma comunidade distinta,
mas continuavam observando a Lei mosaica e participavam das ceri-
mônias do Templo. As autoridades judaicas olhavam com bons olhos
e simpatia aquele grupo de "judeus fervorosos"; mas, ao crescer a ex-
pectativa dos povos com os milagres dos apóstolos, a simpatia trans-
formou-se em hostilidade: Pedro e João foram levados ao Sinédrio e
foram pressionados a não pregar, tendo sofrido ameaças caso não se-

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64 © História da Igreja Antiga e Medieval

guissem essa orientação (At 4, 1-23); todos os apóstolos foram presos


e libertados por intervenção de Gamaliel (At 5, 18-35).
As hostilidades evoluíram para a perseguição sangrenta. Com
efeito, entre os cristãos havia alguns provenientes da seita dos fari-
seus, muito ligados à Lei de Moisés e ao Templo, mas havia também
alguns oriundos da diáspora, que relativizavam os usos e costumes ju-
daicos, sendo que a perseguição em questão se mostrou mais aguda
contra esses indivíduos. Entre estes cristãos "helenistas", sobressaía o
diácono Estevão, primeiro mártir que, ironicamente, não defendia a
abolição da Lei e do Templo por obra de Cristo (At 7, 54-60).
Uma segunda fase de perseguição sangrenta, dirigida contra to-
dos os cristãos, ocorreu durante os anos 42-43 quando Herodes Agripa
mandou assassinar São Tiago, o Maior (At 12, 2). E a mesma sorte esta-
ria reservada a Pedro se, por ventura, um anjo não o tivesse libertado
da prisão (At 12, 7) e ele não tivesse fugido de Jerusalém (At 12, 17).
Primeira expansão do Cristianismo na Palestina
A origem da Igreja na Galileia (situada na região norte da
Samaria e constituída por Nazaré, Seforis, Naim, Corozaim e Mag-
dala) é desconhecida, mas considerando a informação de que a
maioria dos discípulos de Jesus provinha dali, é possível supor que
se deva a algum deles a evangelização da região.
A evangelização da Samaria (norte de Jerusalém), por sua vez,
está ligada à fuga dos cristãos helenistas de Jerusalém depois do martí-
rio de Estevão. Felipe, um dos sete diáconos, trabalhou nesta região.
A origem na Transjordânia está ligada, também, aos cristãos
helenistas fugidos de Jerusalém.
Ao iniciar-se a expansão da Igreja primitiva, começaram a sur-
gir grupos distintos dentro da comunidade de origem e opções igual-
mente diversas. Isto foi importante para a expansão, mas também
favoreceu divisões internas, dadas as diferenças entre as orientações
desses grupos. Pierini (1998, p. 52-54), a respeito dos grupos "judeu-
cristãos", "heleno-cristãos" e "étnico-cristãos", diz o seguinte:
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 65

A língua e a cultura constituem, desde o início, o primeiro elemento


de distinção no interior da comunidade dos novos crentes, mesmo
sem levar a uma divisão propriamente dita. De um lado, os judeu-
cristãos, isto é, os crentes de língua hebraica ou aramaica; de ou-
tro, os fiéis judeus de língua grega. Os judeu-cristãos são tolerados
pelas autoridades de Jerusalém, embora Pedro e os outros apósto-
los tenham sofrido duas prisões seguidas (cf. At 4, 1-3; 5,17). Mas
também os judeu-cristãos, a certa altura, são atingidos por uma
perseguição, no ano 44, desencadeada por Herodes Agripa II, com
a prisão e decapitação de Tiago de Zebedeu, irmão de João, e com
a prisão de Pedro (cf. At 12,1-2). Depois que Pedro foi libertado e
afastado de Jerusalém, a comunidade dos judeu-cristãos é confiada
a Tiago, "irmão do Senhor" (At 12,17; Gl 1,19).
Nesse contexto, a mensagem de Cristo é entendida e vivida cada
vez mais rigidamente, segundo a mentalidade do tardio judaísmo-
palestinense de tipo farisaico-rabínico: viva atenção aos tempos e
lugares sagrados (sobretudo o Templo); uma teologia arcaica ex-
pressa nas categorias de angelologia e mediante um simbolismo
rico e fantasioso; uma estrutura comunitária do tipo patriarcal.
Assim, a primeira versão da mensagem cristã é o judeu-cristianismo
ortodoxo, que se espalha não só pela Judéia e pela Galiléia, mas
também pela Samaria, por volta do ano 37, chegando muito cedo a
Roma, pois na capital do império a colônia judaica é numerosa, viva,
respeitada, mantendo relações freqüentes com a Palestina. A propa-
gação pela capital deve ter-se verificado durante os anos 40, dado
que o imperador Cláudio, por volta do ano 49, toma medidas contra
os judeus romanos, que estavam em briga por causa de certo "Cres-
to" (=Cristo?) (cf. Suetônio, Vida dos Césares, Cláudio, 25, 3-4).
Os judeus, porém, voltam a ser numerosos na capital do império,
e de suas fileiras saem certamente os primeiros colaboradores dos
apóstolos que chegaram a Roma: Pedro, talvez, pelo final do reina-
do de Cláudio ou no início do de Nero, entre os anos 53 e 54; Paulo,
mais tarde, em 61.
Ao mesmo tempo vem se firmando, junto com o judeu-cristianis-
mo, a tendência heleno-cristã. Judeus de língua grega e prosélitos
provenientes da diáspora constituem, desde o início, um grupo à
parte, manifestando uma desconcertante (para os judeu-cristãos)
liberdade de espírito em relação à lei mosaica e ao Templo e subli-
nhando as críticas que o próprio Jesus havia feito ao legalismo e ao
ritualismo exagerados.
Esse grupo é entregue a uma instituição nova, associada aos
"doze": a instituição dos "sete" (que não corresponde à ordem
sagrada do diaconato, que se delineou depois) (cf. At 6, 1-6). Jus-
tamente a pregação e a obra dos "sete", sobretudo, a de Estevão

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66 © História da Igreja Antiga e Medieval

e seu discurso perante o Sinédrio (cf. At 7,2-53), que é documento


mais importante do pensamento heleno-cristão, acarretam para
os judeu-helenos de Jerusalém uma perseguição no ano 35 ou
36, e Estevão é apedrejado, sob a acusação de blasfêmia (cf. At
6,8-8,1). Expulsos de Jerusalém, eles se dispersaram para o seten-
trião, até Antioquia da Síria, ampliando a pregação da mensagem
cristã e dando vida a uma ampla iniciativa missionária na Samaria
(cf. At 8,4-40), em Damasco (cf. At 9,10: Ananias, cristão de Da-
masco), na Fenícia (At 11,19), em Chipre (IBID.).
Os heleno-cristãos são uma ponte para o terceiro grupo de cren-
tes, o dos étnico-cristãos, provenientes do mundo dos não-circun-
cidados, ou seja, dos pagãos (embora simpatizantes do judaísmo =
"tementes a Deus"). Na realidade, o primeiro passo em direção aos
"gentios" é dado pelo próprio Pedro, entre os anos 40 e 41, quan-
do, enviado a Cesaréia Marítima, batiza o centurião Cornélio e os
de sua casa (cf. At 10, 1-11,18).
Ao mesmo tempo, porém, no ano 40 ou 41, comunidades étnico-
cristãs formam-se também em Antioquia, por obra justamente de
helenistas-cristãos oriundos de Chipre e de Cirene, que tinham fu-
gido de Jerusalém após a perseguição de 35-36 (cf. At 11,19-21).
Dado que os novos crentes vêm também do mundo dos não-circun-
cidados, torna-se fácil para os pagãos distingui-los dos demais ju-
deus: assim, justamente em Antioquia os seguidores dos apóstolos
de Cristo são chamados pela primeira vez "cristãos" (cf. At 11,26).
Para confirmar a validade do novo rumo intervém um emissário
da própria Igreja-mãe de Jerusalém, Barnabé, cipriota e helenista-
cristão (cf. At 11, 22-24).

Considerando todo este processo de expansão e a riqueza


de grupos que vão se formando no seio do Cristianismo, estudare-
mos, no próximo tópico desse material, como ocorreu sua expan-
são e como se deu a dinâmica de sua presença fora do contexto
geográfico da Palestina.

10. EXPANSÃO DO CRISTIANISMO FORA DA PALESTINA


O início da expansão cristã fora do contexto geográfico pa-
lestinense se deu em Antioquia. Vejamos, pois, os contornos fun-
damentais da Comunidade Cristã fundada nesta região.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 67

Comunidade cristã de Antioquia


Como se disse na abertura desta unidade, foi na cidade de
Antioquia que se instituiu o primeiro centro de expansão cristã fora
da Palestina. O livro Atos dos Apóstolos menciona duas comunida-
des cristãs importantes criadas nessa região: Damasco, por obra
Ananias (At 9, 10) e Antioquia, fundada por cristãos helenistas de
Jerusalém (At 11, 19), onde a evangelização dirigiu-se aos judeus,
bem como aos pagãos gregos (At 11, 20).
Em meados do ano 42, a comunidade cristã, nessa região,
já era numerosa e os apóstolos enviaram Barnabé para organizar
aquela Igreja, e este chamou Paulo (Atos 11, 21-26) para colaborar
na evangelização e nos trabalhos locais.
É importante observar que foi em Antioquia que se atribuiu,
pela primeira vez, o nome "cristãos" aos discípulos de Jesus. Antio-
quia foi, em última análise, o centro de irradiação do Cristianismo
por todo o Oriente.

São Paulo, apóstolo dos gentios


A primeira alusão à figura de Paulo, personagem principal do
Cristianismo primitivo, no transcurso da história do Cristianismo,
ocorre por ocasião da morte de Estevão (At 7, 58), episódio em
que Paulo é identificado como um opositor dos cristãos.
Considerando sua procedência familiar, Paulo é de origem
israelita, mais especificamente da tribo de Benjamim, mas, ao
mesmo tempo, é considerado cidadão de Roma por ter nascido
em Tarso da Cilícia, região que atualmente pertence ao território
da Turquia, mas que à época era dominada pelos romanos. Por
sua formação religiosa, foi discípulo de Gamaliel, fiel às tradições
judaicas, da seita dos fariseus e inimigo do Cristianismo, o qual
considerava como uma "seita herética" do judaísmo (At 9, 1). Des-
sa forma, por sua formação, conhecia a língua e cultura aramaica,
bem como a língua e cultura helenista, o que lhe facilitou muito
o acesso tanto às comunidades da diáspora, como às de outros

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68 © História da Igreja Antiga e Medieval

povos, chamados pelos judeus de gentios ou pagãos. Seu trabalho


missionário foi imenso, tendo feito várias viagens, passando por
dezenas de cidades e fundando novas comunidades ou animando
e reforçando a fé dos cristãos.
A seguir, enumeramos os principais eventos, cronologica-
mente organizados, da vida de Paulo:
1) Ano 36: morte de Estevão (At 7, 58).
2) Ano 38: conversão às portas de Damasco (At 9, 1-25).
3) Ano 41: viagem a Jerusalém com Barnabé (At 9, 26-27).
4) Anos 42-43: Paulo trabalha com Barnabé em Antioquia
(Atos 11, 25-26).
5) Anos 46-49: primeira viagem apostólica.
6) Ano 50: Concílio de Jerusalém - judeus versus gentios
(At 15, 1ss).
7) Ano 51: segunda viagem apostólica; Paulo leva Silas con-
sigo (At 15, 36–16, 1ss).
8) Anos 54-58: terceira viagem apostólica (Atos, 18: 23ss).
9) Anos 58-60: prisão em Cesareia; Paulo apela a César
(At 21, 27ss).
10) Anos 60-62: prisão em Roma. Liberdade.
11) Anos 62-67: viagem à Espanha (Atos 27; Romanos 15,
24-28).
12) Em 29 de junho de 67: segunda prisão e martírio em
Roma na Via Ostiense.

Pedro e a fundação da Igreja de Roma


A atividade apostólica de Pedro, até a sua libertação milagrosa
do cárcere no ano 43, está amplamente descrita em Atos 1, 12. Des-
ta data em diante, não se sabe nada a respeito de suas ações até sua
participação ativa e principal no Concílio dos Apóstolos, no ano 50.
Conhecemos sua presença em Antioquia pela carta de Paulo
aos Gálatas (Gl 2: 11-21). A estada de Pedro em Corinto, por sua vez,
está testemunhada por São Paulo, que faz alusão à presença de um
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 69

grupo de partidários de Pedro naquela cidade, o que se evidencia


na seguinte fala: "Eu sou de Apolo, eu sou de Pedro" (1Cor 1, 12).
Dionísio de Corinto (ano 170), por sua vez, diz que a sua Igreja foi
fundada pelos apóstolos Pedro e Paulo, de acordo com o que relata
Cesareia (2002, p. 49).
Origem da Igreja de Roma - Estadia de São Pedro em Roma
A fundação da Igreja romana remonta ao período logo após a
morte do Senhor. Com efeito, nos tempos do imperador Cláudio (41-
54) já havia judeu-cristãos em Roma. Em meados do ano 47 ou 49
Cláudio teria desterrado os judeus de Roma por conta dos tumultos
que organizavam impulsore Chresto (por causa de um "tal" Cresto).
A contribuição dada por São Pedro no advento da Igreja de
Roma, por sua vez, é testemunhada por São Jerônimo (século 4º),
que afirma que São Pedro: "pontificou em Roma pelo espaço de
25 anos", não sendo necessário entender estes 25 anos como uma
permanência contínua.
Testemunhos literários
Entende-se por testemunhos literários os documentos es-
critos que sustentam as pesquisas e estudos históricos. E em se
tratando do tema desenvolvido neste tópico, destaca-se a primeira
Carta de Pedro. Nesse documento, em que profere a expressão:
"vos saúda a Igreja da Babilônia" (5, 13), Pedro evidencia a concre-
ta instituição da Igreja em Roma, tendo em vista que o termo "Ba-
bilônia" se trata, na verdade, de expressão figurativa utilizada para
se referir ao nome real da cidade, no caso, "Roma", o que ocorre
inclusive em passagens da Bíblia, como no caso do Apocalipse, ca-
pítulo 17, versículo 5 e capítulo 18, versículo 2.
Outro testemunho literário importante, a propósito do que
se apresenta neste tópico, é o de Clemente Romano (95), que es-
creve à Igreja de Corinto, dizendo que Pedro e Paulo "foram entre
nós um belo exemplo", referindo-se ao martírio desses persona-
gens. Santo Inácio de Antioquia (110), por sua vez, a respeito da

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70 © História da Igreja Antiga e Medieval

autoridade dessas importantes figuras, escreve aos romanos: "não


vos mando como Pedro e Paulo [...]". Papias de Hierápolis (135)
fornece, também, uma importante evidência literária da presen-
ça e atuação marcantes de Pedro em Roma, quando afirma que
Marcos escreveu, a pedido dos fiéis, o evangelho que Pedro pre-
gava em Roma. Encerram essa listagem de testemunhos literários
acerca da atuação de Pedro em Roma o proferido por Dionísio de
Corinto (170), que afirma que Pedro e Paulo padeceram o martírio
em Roma; o de Irineu de Lyon (180), que afirma repetidamente
que Pedro e Paulo são os fundadores da Igreja de Roma; o de Ter-
tuliano (205), segundo o qual Pedro foi equiparado ao Senhor e
batizou no Tíber (rio de Roma) e os catálogos mais antigos dos
bispos de Roma, os quais são, recorrentemente, encabeçados pelo
nome de Pedro.
Testemunhos arqueológicos
Os testemunhos arqueológicos são, por sua vez, as fontes ma-
teriais por intermédio das quais se processa a pesquisa histórica.
No que diz respeito às fontes materiais que evidenciam a
atuação de Pedro em Roma, destacam-se as "Catacumbas de São
Sebastião e Basílica de São Pedro no Vaticano".
Considerando-se o que já se pôde descobrir, a propósito dos
testemunhos arqueológicos disponíveis, o mais provável a respei-
to da presença de Pedro em Roma é que teria chegado a Roma
no período entre os anos 43-44, permanecendo na cidade até a
expulsão dos judeus por ordem do Imperador Cláudio, motivada
pelas disputas frequentes e tumultuadas que a pregação do Cris-
tianismo causava entre os judeus (47-49). Quando Nero permitiu
o regresso dos judeus a Roma (56), Pedro regressou à cidade, ten-
do ali permanecido até sua morte em 29 de junho do ano 67, no
desfecho da perseguição que sofreu da parte daquele imperador.
Muito provavelmente a permanência de Pedro em Roma após esse
seu regresso não configurou período ininterrupto (BIHLMEYER-
TUECHLE, 1964, p. 62-65).
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 71

Atividade dos demais apóstolos


Uma tradição antiga e bastante fundada afirma que os após-
tolos permaneceram em Jerusalém 12 anos antes de espalharem-
se pelo mundo.
A respeito da vida e obra desses apóstolos, Debarros (1999,
p. 15-16) afirma que:
Uma vez incumbidos de anunciar a boa nova do Evangelho a toda a
criatura (MT 28,19, At 1,8), os apóstolos passaram por um processo
gradativo e, por vezes, penoso de ruptura com o típico sectarismo
judaico, que lhes imprime um forte sentimento de exclusividade
em relação ao Todo-Poderoso. A desafiadora perspectiva de evan-
gelizar os gentios impulsionou suas numerosas campanhas missio-
nárias, orientadas para um mundo que, embora ostentasse uma
atmosfera relativamente pacífica, apresentava muitas situações de
conflitos sociais localizados, típicas de uma sociedade que experi-
mentava o impacto de profundas transformações culturais, como
aquelas vividas no primeiro século. Essa conjuntura social ofereceu
às missões apostólicas horizontes tão atraentes quanto perigosas
[...]

As primeiras experiências de oposição enfrentadas pelos doze, no


exercício da propagação de sua fé, não vieram do estrangeiro, mas
de seu próprio ambiente, da sua própria casa: a Palestina. Ali, a
tenaz resistência das instituições judaicas sedimentou, aos poucos,
a realidade de que aqueles para os quais o Messias viera não o re-
ceberiam (MT 20,16, Jo 1,11). Embora a palavra tenha encontrado
solo fértil em muitos corações em Israel, tornava-se cada vez mais
clara a direção divina que os impelia ao encontro dos gentios e ju-
deus além-fronteiras, para um ministério em que o limite seria o
próprio mundo então conhecido.

A propósito do que se apresenta aqui, importa conhecer um


pouco da obra dos apóstolos.
São João
São João iniciou sua pregação em Jerusalém, tendo também
participado da missão na Samaria, a fim de confirmar aquela comu-
nidade, e estado presente no Concílio de Jerusalém (Jó 19, 26-27).
Depois de sua morte, São Paulo governou as Igrejas da Ásia,
tendo fixado residência em Éfeso.

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72 © História da Igreja Antiga e Medieval

No reinado de Domiciano (81-96), foi levado a Roma, onde,


segundo Tertuliano, sofreu a prova do "óleo fervente", da qual saiu
milagrosamente ileso. Esteve desterrado na Ilha de Patmos, onde
escreveu o Apocalipse. Depois da morte do perseguidor Domicia-
no, pôde regressar a Éfeso. Escreveu o 4º evangelho e três cartas.
Morreu por volta do ano 100.
Demais apóstolos
Há poucos dados disponíveis sobre os apóstolos não mencio-
nados até aqui, sendo que o essencial, das informações das quais
se têm notícia, é apresentado a seguir:
1) Tiago Menor - primeiro bispo de Jerusalém; escreveu
uma "Carta canônica"; no ano 62 morreu mártir, lançado
do topo do Templo; seus restos mortais são venerados
em Roma na Basílica dos 12 Apóstolos.
2) Mateus - trabalhou inicialmente na Palestina, onde com-
pôs o seu "Evangelho"; pregou o Evangelho na Etiópia
onde sofreu o martírio; é venerado em Salerno, na Itália.
3) Matias - pregou o Evangelho na Judeia e na Etiópia; foi
decapitado com um machado na Judeia e seus restos
mortais foram transladados, por Santa Helena, a Tréve-
ris, na Alemanha.
4) Judas Tadeu – era Irmão de Tiago Menor; pregou o Evan-
gelho na Mesopotâmia e escreveu uma "Carta canôni-
ca"; em Beirute foi martirizado e é venerado na Basílica
de São Pedro, em Roma.
5) Tomé - pregou o evangelho entre os partos e na Índia (ao
norte); padeceu o martírio em Calamina e seu sepulcro
está em Malabar (Índia); seus restos foram transladados
a Edessa, a Quíos e finalmente a Ortono (Itália).
6) Bartolomeu - trabalhou na Armênia e na Índia (ao nor-
te); foi martirizado na Armênia e suas relíquias foram
transladadas por Oto III a Roma no ano 983 e deixadas
na Ilha Tiberina.
7) Simão, o Zelota - pregou o evangelho na Pérsia; foi mar-
tirizado, mas não se conhece o lugar de seu sepulcro;
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 73

suas relíquias foram guardadas em vários lugares (Roma,


Colônia, Hersfeld etc.).
8) Felipe - evangelizou na Ásia Menor; em Hierápolis, na
Frígia, foi crucificado e apedrejado; seus restos são ve-
nerados na Basílica dos 12 Apóstolos em Roma.
9) André – era irmão de Pedro; trabalhou nos Bálcãs e no
sul da Rússia; morreu crucificado na cidade de Patrás
(Grécia) e seu sepulcro é venerado em Amalfi (Itália).
10) Tiago, o Maior - era irmão de João; foi o primeiro mártir
dos Apóstolos (no ano 43); teria pregado na Espanha e é
venerado em São Tiago de Compostela, na Espanha.
Considerações acerca do alcance da difusão do cristianismo –
aspectos facilitadores e inibidores
A difusão do Cristianismo é assim caracterizada por Bihl-
meyer e Tuechle (1964, p. 68-69):
A grande extensão das viagens missionárias de S. Paulo e dos ou-
tros apóstolos, faz pensar com razão que o Evangelho tenha lança-
do sólidas raízes na maior parte das províncias romanas ainda nos
tempos apostólicos (cfr. ROM 1,8; Col 1,16.23), enquanto somen-
te depois se propagou nas outras províncias e em outras regiões
não pertencentes ao Imperium Romanum. Nas cidades maiores
formaram-se logo comunidades notáveis. Por um espaço conside-
rável de tempo o cristianismo permaneceu substancialmente reli-
gião das cidades e penetrou mais lentamente nas zonas rurais (cfr.
§ 20,1). O primeiro entrosamento o ofereciam a diáspora judaica,
muito difundida e os pagãos "tementes a Deus". A nova religião
firmou-se sobretudo nas classes sociais médias e humildes (arte-
sãos, comerciantes, escravos) e no mundo feminino; contudo, des-
de o princípio encontramos nas fileiras dos crentes também ricos,
pessoas distintas e cultas, como se deduz nos Atos dos Apóstolos
e das cartas paulinas. No fim do século II o número de cristãos de
classe superior e culto, até mesmo da nobreza romana, dos solda-
dos e funcionários cristãos está em aumento contínuo. Por volta do
ano 250 o cristianismo já penetrara tão profundamente que nem as
mais ferozes perseguições, que então se desencadearam sobre ele,
puderam impedir-lhe a vitória final. No princípio do século IV, sobre
uma população global do império romano de cerca de 50 milhões,
o número dos cristãos era ao menos de 7 milhões, na maioria do
Oriente. Particularmente notável fora a penetração cristã na Ásia
Menor, na Macedônia, Síria, Armênia, no Egito, em algumas regi-
ões da Itália central e meridional, na África norte-ocidental, na Es-

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74 © História da Igreja Antiga e Medieval

panha e na Gália meridional. Já Clemente Alexandrino e Orígenes,


e mais ainda os Padres da Igreja do século IV e V, reconheceram e
com muita razão, na difusão sobremodo rápida e vasta da religião
cristã, apesar de todos os obstáculos (cfr. § 14) uma prova luminosa
da sua origem sobrenatural.

Debarros (1999, p. 18-35), por sua vez, considerando essa


propagação, afirma que:
É inegável a força de expansão que o Cristianismo foi adquirindo
com o decorrer dos anos. Muitos autores aprofundaram este tema
e buscaram explicação nas forças e fraquezas deste processo, tanto
dentro como fora do Cristianismo.

Debarros (1999) destaca ainda os aspectos facilitadores da


difusão da fé cristã no mundo greco-romano: o senso de unidade
e universalidade política do Império Romano; a relativa segurança
e facilidade de trânsito proporcionada por Roma; a universalidade
da língua grega e a expansão do latim; a expansão do judaísmo a
propósito da Dispersão (ou Diáspora); a decadência religiosa dos
povos conquistados por Roma e a contribuição da filosofia grega.
Debarros (1999) assinala, também, os fatores que atuaram
como inibidores da historicidade apostólica, quais sejam, a modés-
tia e a simplicidade dos apóstolos, que não os credenciava, para os
primeiros cristãos, a ser objeto de análise biográfica; a ausência de
uma perspectiva histórica duradoura, por parte da Igreja primiti-
va; o silêncio da história secular perante o cristianismo primitivo;
o advento da Sucessão Apostólica; a crescente rivalidade entre a
Igreja oriental e a ocidental e a corrida pelas relíquias apostólicas.

11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos, neste tópico, que você procure responder, discu-
tir com seus pares e elaborar comentários para serem comparti-
lhados, a propósito das questões / atividades a seguir, que tratam
da temática desenvolvida nesta unidade.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 75

Se encontrar dificuldades em responder a essas questões / ativi-


dades, procure revisar os conteúdos estudados para sanar suas dúvidas
e compartilhar essas dificuldades com seus parceiros (tutores, alunos
etc.). Lembre-se de que, em se tratando de Educação, não somente de
modalidade a distância, mas da educação como um todo, a construção
do conhecimento ocorre de forma cooperativa e colaborativa. Daí a ne-
cessidade de compartilhar descobertas e obstáculos com seus colegas.
Tenha sempre em mente, em especial durante a realização
das atividades que compõem esse item, que o conhecimento não
é algo estanque e compartimentado. Ao contrário, uma de suas
características mais marcantes é o caráter de integralidade.
Dessa forma, é imprescindível conduzir suas reflexões de
modo a buscar a interdisciplinaridade, ou seja, contemplando as
interconexões que existem entre todos os elementos que com-
põem o processo de construção do conhecimento, o que impli-
ca, inclusive, considerar as relações que existem entre esta e as
demais unidades e temáticas que compõem o curso como um
todo.
Confira, na sequência, as questões e atividades propostas para
verificar seu desempenho no estudo desta unidade, bem como para
sedimentar o processo de construção de seu conhecimento:
1) Produza um texto, com pelo menos 5 linhas ,em que se apresente uma sín-
tese da História da Igreja Antiga. Essa tarefa não se trata de reproduzir todo
o conteúdo abordado aqui, mas sim de captar e expor o fio condutor que
marca o desenvolvimento da Igreja Antiga exposto neste material.

2) De acordo com o que você estudou até aqui, de que modo as culturas roma-
na e judaica contribuíram para o desenvolvimento do Cristianismo?

3) Quais dificuldades apontadas, ao longo desta unidade, que o Cristianismo


teve de enfrentar no contato com a dinâmica do Império Romano e do Mun-
do Judaico durante o processo de seu desenvolvimento primitivo?

4) Quais elementos, característicos das comunidades cristãs antigas e assina-


lados na unidade, podem contribuir para o desenvolvimento da Igreja atual,
a propósito do estabelecimento de um processo de intercâmbio positivo de
práticas, fundamentos, dinâmicas doutrinais e estruturais etc.?

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76 © História da Igreja Antiga e Medieval

5) Liste as informações, expostas na unidade, que mais lhe chamaram a aten-


ção a respeito da historicidade de Jesus Cristo? Comente cada item listado.

6) Produza um breve texto analisando o processo da expansão cristã, conside-


rando suas possibilidades e fragilidades com base nas ideias expostas nos
textos da unidade.

7) Produza um texto no qual seja abordada a influência dos estudos da unidade


em sua vida acadêmica, profissional e pessoal.

12. CONSIDERAÇÕES
Ao longo do que se expôs nesta unidade, privilegiou-se a
aquisição de noções preliminares sobre a historicidade da Igreja
e a historiografia eclesiástica, as quais são imprescindíveis para a
compreensão da história da Igreja Antiga.
Além disso, estabeleceu-se a reflexão sobre o ambiente em
que nasceu a Igreja; sobre a historicidade e vida de Jesus Cristo;
sobre a comunidade de Jerusalém e sua expansão inicial e sobre a
expansão do Cristianismo para além dos limites da Palestina, bem
como sobre suas principais características.
Na Unidade 2, ampliaremos a perspectiva abordando a orga-
nização do Cristianismo antigo; as heresias e cismas dos três pri-
meiros séculos; os escritores eclesiásticos; os concílios e os Padres
da Igreja.

13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALMEIDA, A.J. O Ministério dos presbíteros-episcopos na igreja do novo testamento. São
Paulo: Paulus, 2001.
ARENS, E. Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João. Tradução de João Rezende
Costa. São Paulo: Paulus, 1998.
BIHLMEYER, K.; TUECHLE, H. História da igreja. Tradução de Ebion de Lima. São Paulo:
Paulinas, 1964. v.1.
BOGAZ, A. S.; COUTO, M.A.; HANSEN, J. H. Patrologia : caminhos da tradição cristã. São
Paulo: Paulus, 2008.
BOSCH, J. S. Nascido a tempo. Tradução de Mário Gonçalves. São Paulo: Ave Maria,
1997.
© U1 - História da Igreja Antiga: Temas Introdutórios e Comunidade Primitiva 77

COMBY, J. Para ler a História da igreja. Tradução de Maria Stela Gonçalves-Adail V. Sobral.
São Paulo: Loyola, 1994. v.2.
CESARÉIA, Eusébio de. História eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fischer. São Paulo:
Novo Século, 2002.
DEBARROS A. C. Doze homens, uma missão. Curitiba: Luz e Vida, 1999.
DRANE, J. A vida da Igreja primitiva. Tradução de José Raimundo Vidigal São Paulo:
Paulinas, 1985.
FIGUEIREDO, F. A. Introdução à patrística. Petrópolis: Vozes, 2009.
FREYNE, S. Jesus, um Judeu da Galiléia. Tradução de Élcio. V. Filho. São Paulo: Paulus,
2008.
GÓMEZ, J. A. Manual de historia de la iglesia. Madrid: Publicaciones Claretianas, 1987.
JEDIN, H. Manual de historia de la iglesia. Barcelona: Herder, 1980. v. 1.
KEE, H. C. As origens cristãs em perspectiva sociológica. Tradução de J. Rezende Costa.
São Paulo: Paulinas, 1983.
MORIN, E. Jesus e as estruturas de seu tempo. Tradução de Vicente R. de Souza. São
Paulo: Paulinas, 1982.
PIERINI, F. A Idade antiga I. Tradução de José M. Almeida. São Paulo: Paulus, 1998.
PIERRARD, P. História da igreja. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.
PRIETO, C. Cristianismo e paganismo. Tradução de Euclides M. Balancin. São Paulo:
Paulus, 2007.
SAULNIER, C-ROLLAND B. A Palestina no tempo e Jesus. São Paulo: Paulinas, 1979.

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EAD
Organização do Cristianismo
Antigo, Liturgia, Vida
Monástica, Heresias,
Escritores Cristãos e
Concílios Ecumênicos 2
1. OBJETIVOS
• Compreender a organização do Cristianismo Antigo (cons-
tituição, liturgia e vida monástica).
• Identificar as heresias e os cismas dos três primeiros sé-
culos (heresias judaizantes, gnosticismo, montanismo,
milenarismo, heresias antitrinitárias, controvérsias peni-
tenciais e cismas).
• Caracterizar e analisar as controvérsias trinitárias, cristo-
lógicas e soteriológicas, heresias, cismas e concílios, si-
tuados no contexto dos séculos 4º ao 7º.
• Reconhecer os escritores eclesiásticos (padres apostóli-
cos, apologistas, apócrifos e escritores eclesiásticos).
• Identificar os "Padres da Igreja" (escritores latinos e gre-
gos dos séculos 4º ao 8º).
80 © História da Igreja Antiga e Medieval

2. CONTEÚDOS
• Organização e constituição da Igreja - culto e liturgia; vida
monástica.
• Heresias e cismas dos três primeiros séculos - heresias
judaizantes, gnosticismo, montanismo, milenarismo, he-
resias antitrinitárias, controvérsias penitenciais e cismas.
• Escritores eclesiásticos - padres apostólicos, apologistas,
apócrifos e escritores eclesiásticos.
• Heresias, cismas e concílios - controvérsias trinitárias,
cristológicas e soteriológicas.
• "Padres da Igreja" - escritos latinos e gregos.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am-
plie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre
com o material didático em mãos e discuta as questões
relativas à unidade com seus colegas e com o tutor.
2) Não se limite aos textos deste material. Esteja sempre em
contato direto com os textos de referência eventualmen-
te citados, a fim de aprofundar e ampliar sua abordagem.
3) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos explici-
tados no Glossário e suas respectivas conexões detalha-
das no Esquema de Conceitos-Chave para o estudo de
todas as unidades deste CRC. Isso irá facilitar e potencia-
lizar sua aprendizagem e desempenho.
4) Consulte dicionários especializados para esclarecer o signifi-
cado de palavras desconhecidas. Quando isso não for possí-
vel, mantenham contato com o tutor e os colegas por meio da
Sala de Aula Virtual para solucionar dúvidas remanescentes.
5) Para uma maior compreensão dos temas e discussões
desta unidade, sugerimos que você retome a leitura da
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 81

bibliografia indicada na unidade anterior (História da Igre-


ja Antiga: temas introdutórios e Comunidade Primitiva).
6) Ao organizar e planejar seus estudos, pesquisas e ati-
vidades, você tem a oportunidade de ampliar seus co-
nhecimentos e mudar seu funcionamento cognitivo,
potencializando sua aprendizagem. Nesse contexto, a
dificuldade de se concentrar é um dos principais proble-
mas de muitos estudantes. As horas dedicadas ao estudo
podem prolongar-se, e os resultados nem sempre serão
satisfatórios. Dessa forma, sugerimos que você procure
realizar seu trabalho de estudo desta unidade em inter-
valos regulares de tempo (a cada 30, 40 ou 50 minutos).
Lembre-se de que, em caso de dúvidas ou sugestões, es-
tamos à sua inteira disposição. Acesse a Sala de Aula Vir-
tual para interagir conosco e com seus colegas de turma.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você teve a oportunidade de adquirir
noções preliminares sobre a historicidade da Igreja, a historiogra-
fia eclesiástica e o ambiente no qual se deu o nascimento da Igre-
ja. Estudamos, também, a cronologia fundamental e as principais
fontes disponíveis sobre a história de Jesus Cristo, a dinâmica da
chamada "comunidade de Jerusalém", bem como os eventos que
determinaram os contornos de sua expansão inicial e, finalmente,
a expansão do Cristianismo para além dos limites da Palestina.
Um domínio razoável desses temas credencia você a se aventu-
rar por outros domínios, quais sejam a organização e constituição do
Cristianismo, a instituição e expansão da vida monástica, o advento
das heresias e cismas dos primeiros séculos, o despontar da obra dos
pensadores cristãos (escritores eclesiásticos e Padres da Igreja) e a
convocação dos concílios ecumênicos a partir do século 4º.
Esse novo percurso que ora se inicia está fundamentado nos
seguintes questionamentos:

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82 © História da Igreja Antiga e Medieval

1) De que modo está organizada hierarquia da Igreja?


2) Quais são os sacramentos nos quais se sustenta a ação
da Igreja e como é organizado o seu culto?
3) Como se deu o surgimento e organização da vida monástica?
4) Esses questionamentos, bem como outros que se apre-
sentarão no decorrer do desenvolvimento da unidade
representarão a oportunidade de construir conhecimen-
tos imprescindíveis para a continuidade dos nossos es-
tudos neste curso, assim como para nossa caminhada
profissional.

5. ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA DA IGREJA


Quando iniciou seu movimento na Palestina, Jesus reuniu
apóstolos e discípulos, formou uma comunidade e, paulatinamen-
te, foram estruturadas regras de convivência específicas às quais
o grupo formado, assim como o que normalmente acontece com
qualquer grupamento social, deveria se submeter.
Após a Ressurreição e Ascensão de Jesus, o referido grupo
apostólico, sob a liderança de Pedro e Paulo, fundamentou sua
ação sobre três pilares apresentados a seguir:
• A formação de uma ortodoxia ou doutrina centrada no
"símbolo de fé".
• Uma liturgia organizada a partir do culto e da celebração
dos sacramentos (eucaristia, batismo, confirmação, ma-
trimônio, ordem, unção dos enfermos e penitência).
• A organização de um regime ou disciplina por meio da for-
mação de normas em todas as dimensões da vida cristã ex-
pressas no "Código de Direito Canônico", que foi concluído, da
maneira como o entendemos hoje, somente na Idade Média.
Ao longo da caminhada da Igreja e de sua consequente ex-
pansão para além dos limites da Palestina, sobretudo durante os
primeiros séculos e considerando-se as dificuldades e possibilida-
des que se apresentaram nessa trajetória, os referidos pilares que
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 83

sustentaram a ação apostólica se consolidaram, configurando uma


verdadeira "sociedade organizada", o que implica reconhecer a
instituição de uma estrutura social com hierarquia e dinâmica bem
definidas. Com efeito, a estruturação da Igreja como "sociedade
organizada" pode ser percebida em alguns elementos marcantes,
entre os quais destacam-se os seguintes:
1) Os textos bíblicos do Novo Testamento, com destaque
para as cartas apostólicas, cujo teor apresenta caráter
formativo, incentivador e organizativo.
2) As visitas e colaboração mútuas entre as diversas igrejas.
3) As coletas organizadas em favor de uma determinada
comunidade que demonstram que os cristãos formam
uma só Igreja.
4) A excomunhão e exclusão dos hereges e cismáticos
(aqueles que se separaram da comunhão da Igreja).
5) O testemunho crescente de que todas as comunidades cris-
tãs professam uma mesma fé, gravitam ao redor das mesmas
instituições e se submetem, em comunhão, à autoridade do
bispo de Roma considerando-se inclusive as articulações que
se processaram no decorrer da história da Igreja.
6) As próprias perseguições, às quais os cristãos foram sub-
metidos por força da ação do Império Romano, confir-
mam a organização e disciplina da Igreja, bem como sua
fidelidade doutrinal.
No contexto em que se consolidam as bases hierárquicas da Igre-
ja e conforme o que já se demonstrou na unidade anterior deste mate-
rial, instituíram-se diferentes categorias entre os cristãos, quais sejam:
• Os clérigos (episcopado, presbiterado, diaconato) com ativida-
des diversificadas, de modo especial ligadas aos sacramentos,
ensino da doutrina cristã e governo da comunidade.
• Os leigos consagrados, que optaram pela consagração a Deus
pela vida anacorética (vida recolhida, afastada do convívio so-
cial) e, mais tarde, pela vida monástica (relativo a monge ou à
vida em um convento) e comunitária.
• E sse processo de expansão e de transformações estruturais da
Igreja primitiva é descrito por Drane (1985, p. 76-77) da seguinte
maneira:

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84 © História da Igreja Antiga e Medieval

[...] Um dos traços mais impressionantes da Igreja primitiva é a es-


pantosa rapidez com que ela cresceu. Começando com um punha-
do de gente na Palestina rural, dentro de vinte anos ou menos ela
se espalhou por todo o mundo civilizado. Tudo isso foi realizado
com uma completa ausência de organização, e no entanto o pró-
prio sucesso dessa missão mundial espontânea haveria de exigir
algum esquema integrado de operação. A princípio ninguém se
importou com organização. Já tinham toda a organização de que
precisavam. Muitos daqueles que se tornaram cristãos no dia de
Pentecostes tinham sido judeus ou gentios convertidos ao judaís-
mo, e estes simplesmente aceitaram continuar com as formas de
culto que já conheciam e estimavam. Os primeiros capítulos dos
Atos contam como eles se encontravam com seus companheiros
que também acreditavam em Jesus, mas isso era um acréscimo,
pois também tomavam parte no culto da sinagoga local e até mes-
mo no próprio templo.
Mas não demorou muito e surgiu a necessidade de alguma espécie
de organização, por mais primitiva que fosse. Estêvão se tornou um
líder entre os cristãos helenistas de Jerusalém porque eles senti-
ram que estavam sendo prejudicados na distribuição dos bens da
Igreja. A natureza de sua queixa implica que os cristãos hebreus
não estavam sofrendo a mesma desvantagem – e o fato de que a
resposta a essa queixa foi a nomeação dum grupo de sete homens
para supervisionar a distribuição de fundos para os helenistas su-
gere mui fortemente que já existia um grupo semelhante cuidando
das necessidades dos cristãos hebreus.
Não devemos, talvez, ficar surpresos pelo fato de esses primeiros
"oficiais" da Igreja serem nomeados para tratar de um assunto tão
material, pois o único "ofício" que conhecemos no pequeno grupo
dos doze discípulos de Jesus era o de tesoureiro – função exercida
por Judas Iscariotes, às vezes com uma honestidade que deixava a
desejar. E não é por acaso que os primeiros esboços de "organiza-
ção" dentro da Igreja primitiva se relacionariam com esse mesmo
setor. Acaso Jesus não havia ensinado que depois do amor a Deus
o amor ao próximo era a coisa mais importante? Foi certamente
um aspecto de sua mensagem que a Igreja primitiva levou de fato
tão a sério.

Como se pode perceber na fala do autor, a Igreja submete-


-se, gradualmente, à demanda por uma estrutura e organização
formais mais elaboradas, a propósito do risco de se perder a qua-
lidade da vida espiritual cristã, temática que será abordada poste-
riormente.
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 85

Considerando essa percepção, interessa destacar o processo


em que a Igreja evolui de uma fase de expansão missionária inicial
para uma fase de consolidação eclesial, processo esse que é des-
crito por Almeida (2011, p.57-58) da seguinte maneira:
Após o desaparecimento das testemunhas diretas da vida e/ou
ressurreição de Jesus, os responsáveis pela Igreja vão concentrar
suas atenções na fidelidade ao ensinamento do Mestre e à unidade
da Igreja. A carta aos Efésios já assinala esta transição de época
"apostólica" para a época dos "evangelistas e pastores" (Ef 4,11).
Multiplicam-se as recomendações aos responsáveis pelas comu-
nidades locais: "Cuidai de vós mesmos e de todo o rebanho de
cuja guarda o Espírito Santo vos constituiu epískopos; apascentai
a Igreja de Deus que ele adquiriu para si com o seu próprio san-
gue" (At 20,28). "Apascentai o rebanho de Deus que vos confiado
[...]" (1Pd 5,2-3). Severas advertências deixam entrever que as co-
munidades deste período já experimentaram a conduta indigna de
alguns líderes e os discursos insensatos de certos pregadores (cf.
At 20,29-31; Tt 1,10-16). É neste contexto que são compostas as
cartas justamente chamadas "pastorais". As comunidades cristãs
precisam organizar-se: "Se eu te deixei em Creta, foi para que ali
concluas a organização e estabeleças presbíteros em cada cidade,
de acordo com minhas instruções" (Tt 1,5). Os "presbíteros-episco-
pos" assumem a presidência de cada comunidade: "Os anciãos que
exercem a presidência merecem ser duplamente honrados, sobre-
tudo aqueles que se afadigam no ministério da palavra e no ensino"
(1Tm 5,17). Definem-se com clareza os requisitos que os ocupantes
deste cargo devem possuir: "O epíscopo dever ser irrepreensível
[...]. Pois é preciso que o epíscopo seja irrepreensível na sua fun-
ção de ecônomo de Deus [...]" (Tt 1,6-9). Ao lado dos presbíteros,
também chamados de epískopos, aparecem também "diákonos":
embora suas funções sejam ainda pouco claras, seus portadores
devem preencher requisitos precisos, semelhantes aos dos pres-
bítereos-epíscopos (1Tm 3,8-13; cf. Fl 1,1). Na Didaqué, aliás – que
contém material tradicional muito antigo reelaborado pelo redator
final (em torno do ano 100) – encontramos um texto semelhante:
"Assim, pois, escolhei-vos epískopos e diákonos dignos do Senhor,
homens mansos e desinteressados verazes e experimentados, pois
também eles exercem em vosso favor o ministérios (leitourghía)
dos profetas e doutores" (Didaqué, XV, 1).

Apresentado esse processo de consolidação das bases for-


mais da Igreja enquanto instituição, impõe-se o questionamento:
como é organizada a hierarquia da Igreja?

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86 © História da Igreja Antiga e Medieval

Responder a esse questionamento implica considerar o que


se apresenta no item seguinte.

6. HIERARQUIA DA IGREJA
Nas primeiras décadas em que se desenvolveu o Cristianismo,
toda a autoridade eclesial foi centralizada na pessoa de Pedro (por
mandato do próprio Cristo) e dos apóstolos. Ao abordar este tema,
Debarros (1999, p. 32-33), escritor evangélico, esclarece que:
Em fins do primeiro século a Igreja presenciou o surgimento e a
expansão de seu mais sutil inimigo, o chamado gnosticismo cristão
[...]. Os gnósticos cristãos arrebanhavam inúmeros fiéis nas fileiras
da Igreja ao se apresentarem como possuidores de uma teologia
secreta – a verdadeira gnosis ou conhecimento – herdada direta-
mente dos apóstolos, que, por sua vez a teriam recebido de Cristo.
Como reação a essa corrente herética, a Igreja suscitou a chamada
Sucessão Apostólica, ou seja, um mecanismo de defesa da ortodo-
xia cristã, segundo o qual se afirmava que, se Jesus de fato passara
algum ensino secreto a alguém, teria de ser, necessariamente, aos
seus discípulos, isto é, àqueles aos quais confiara a direção de sua
Igreja. Estes, por sua vez, só poderiam ter perpetuado tal ensina-
mento passando-o aos líderes das comunidades que iam fundando,
e assim sucessivamente (conf. 2 Tm 2.2). Deste modo, desmasca-
rava-se os intentos obscuros daqueles hereges, cuja procedência
nada tinha de apostólica.
A Sucessão Apostólica, enquanto dispositivo teológico, teve, por-
tanto, seu mérito no que diz respeito a estratégia de defesa da fé
cristã naqueles dias, quando era grande a ameaça do gnosticismo.
De fato, para algumas comunidades cristãs como as de Roma, Éfe-
so, Antioquia e Corinto, não foi tarefa difícil rastrear suas origens
apostólicas. Muitas delas possuíam seus próprios registros episco-
pais, os quais documentavam a ligação do presente com seu pas-
sado apostólico. Por outro lado, como diversas congregações de
localidades menores não podiam reclamar para si qualquer base
apostólica sustentável para suas origens – já que em várias cidades
do Império o cristianismo tinha chegado por vias desconhecidas
– muitas delas trataram de criar suas próprias lendas e tradições
acerca de suas pretensas matrizes apostólicas.

A expansão cristã, expressa na fundação de centenas de co-


munidades, no entanto, fomentou a necessidade de descentralizar
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 87

a direção das comunidades, que já não tinham condições para se


submeter à direção somente dos apóstolos e seus auxiliares mais
diretos, muitos deles dotados de dons carismáticos (doutores, pro-
fetas e evangelistas) e que, segundo Bihlmeyer-Tuechle (1964, p.
105-106):
[...] tinham a incumbência de continuar entre os fiéis a obra de edi-
ficação e de instrução, ao passo que a verdadeira obra missionária
competia aos Apóstolos. Os carismáticos não exerciam um poder
local bem definido; sua influência, porém, nas comunidades era
grande.

Nesse contexto, foram criados novos cargos e ofícios ecle-


siásticos que, por sua vez, alcançaram posição de destaque na con-
figuração hierárquica da Igreja, inicialmente constituída por epís-
copos, presbíteros e diáconos.
Esses ofícios eram atribuídos mediante cerimonial específico
e sobreviveram ao longo do processo de propagação do Cristianis-
mo na medida em que sua posição se consolidou na dinâmica hie-
rárquica da Igreja, o que se evidencia quando Bihlmeyer-Tuechle
(1964, p. 106) afirma que esses ofícios:
[...] eram conferidos mediante uma consagração especial (imposi-
ção das mãos e oração) [...] perduraram também depois, ao passo
que os "carismáticos", passado o tempo da fundação da Igreja, isto
é, o período apostólico, em parte (isto é, os profetas e doutores),
desapareceram lentamente ou foram reabsorvidos nos ofícios
"conferidos mediante ordenação", outros (como os evangelistas),
foram desaparecendo à medida que progredia a difusão do cris-
tianismo.

A dinâmica e as características fundamentais desses cargos e


ofícios são detalhadas nos itens seguintes.

Bispos, presbíteros e epíscopos


Nos escritos do Novo Testamento, os ofícios de "presbítero"
e "bispo", cujos primeiros representantes teriam sido eleitos pelos
apóstolos, são apresentados como sinônimos. Com efeito, bispos
e presbíteros desempenham mais ou menos o mesmo ofício: pre-

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88 © História da Igreja Antiga e Medieval

gação, celebração da eucaristia e governo da comunidade cristã


local, competindo, especificamente ao bispo, a admissão do cate-
cúmeno e a expulsão dos indignos (excomunhão).
A diferenciação conceitual entre os ofícios mencionados ante-
riormente e o ofício de epíscopo também é bastante difusa, tendo em
vista que, na origem, os termos parecem indicar atribuições coinci-
dentes, o que pode ser observado na fala de Bihlmeyer-Tuechle (1964,
p. 106), que descreve o ofício de epíscopo da seguinte maneira:
Dos "episcopi" em particular está dito nos Atos dos Apóstolos 20,28,
que foram colocados pelo Espírito Santo para reger a Igreja de Deus.
Foi-se estruturando, assim, no Novo Testamento uma hierarquia
continuadora da missão eclesiástica recebida dos Apóstolos.
Isto é explicitamente atestado na carta de Clemente romano, discí-
pulo dos Apóstolos, escrita por volta do ano 96 aos coríntios. Nela
está dito (42, 4; 44,2) que nos vários lugares e nas diversas cidades,
os Apóstolos escolheram alguns entre os primeiros convertidos e,
depois de lhes ter experimentado o espírito, os constituíam bispos
e diáconos dos futuros crentes, deixando depois ordem para que
quando morressem, outros homens provados os substituíssem
no seu ofício. O mesmo Clemente revela também fortemente que
a missão deles vem de Cristo e de Deus, mediante os Apóstolos
(42,1s). Afirma ele, portanto, evidentemente, a idéia de um ofício
eclesiástico fundado em base jurídica e de caráter duradouro.

Observe que Bihlmeyer-Tuechle (1964) acrescenta à discus-


são uma terceira figura: a do diácono, cujas atribuições também
se aproximam daquelas ligadas aos ofícios mencionados até aqui
(bispos, presbíteros e epíscopos). No entanto, no caso do ofício de
diácono, há determinadas especificidades a serem consideradas,
as quais serão abordadas no próximo item.

Diáconos
Os diáconos assistiam ao bispo na celebração da eucaristia
e na administração do batismo. Ao seu cuidado estavam a distri-
buição das esmolas, a administração, sob a vigilância do bispo, dos
bens temporais da comunidade. Esse caráter de suporte ao traba-
lho do bispo, bem como seu status na hierarquia da Igreja são bas-
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 89

tante contundentes, o que se evidencia no discurso de Bihlmeyer-


-Tuechle (1964, p. 109) segundo os quais os diáconos eram "muito
mais influentes do que os presbíteros, embora de categoria a eles
inferior. A Didascália (II, 44) os chama 'ouvido e boca, coração e
alma' do bispo".

Sacerdotes
O ofício de sacerdote, por sua vez, também se submetia ao
de bispo. Sob essa perspectiva, os sacerdotes não podiam exercer
nenhum ministério sem sua aprovação e somente por encargo ou
delegação do bispo poderiam presidir a eucaristia e a administra-
ção dos sacramentos. Segundo Bihlmeyer–Tuechle (1964, p. 108),
os sacerdotes:
[...] formavam o seu conselho ("senado" segundo Inácio); no ensino
e no culto eram os seus assistentes [...] No conjunto, feita exceção
de algumas comunidades maiores, o seu cargo não os empenhava
muito; era antes honorífico [...] Somente no período sucessivo, com
a criação das paróquias, os presbíteros adquiriram maior importân-
cia (§ 62); contudo, em Roma e noutras cidades bastante grandes
esse desenvolvimento já se iniciara antes.

Observemos que Bihlmeyer–Tuechle (1964), também, se re-


ferem aos sacerdotes utilizando o termo presbítero, o que confir-
ma o caráter difuso da conceituação dos ofícios descritos.

Outros Ofícios (ordens menores)


Além dos ofícios mencionados nesses últimos itens, me-
recem destaque também, a despeito de seu status "menor" na
hierarquia da Igreja, os de subdiácono, acólito, leitor, exorcista e
ostiário ou porteiro, assim como aqueles que especificamente se
referiam aos serviços femininos como os de diaconisa (que presta-
va auxílio no batismo e na assistência aos doentes e pobres) e de
viúva (que se dedicada à oração).
Importa destacar que não era permitido aos neófitos (pa-
gãos recém-convertidos ao Cristianismo ou pessoas que vão rece-

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90 © História da Igreja Antiga e Medieval

ber o batismo ou foram recentemente batizadas); os penitentes


públicos; os clínicos (que receberam o chamado batismo clínico,
ou seja, que foram batizados na iminência da morte por conta do
acometimento de enfermidade grave) e os casados pela segunda
vez, ocupar esses ofícios e, consequentemente, não podiam ocu-
par também os ofícios procedentes do sacramento da ordem.
A propósito dos impedimentos listados no parágrafo ante-
rior, convém destacar que o casamento não configurava, em si,
naquele momento histórico, um impedimento à ocupação dos re-
feridos ofícios, mas sim um segundo casamento. Mesmo porque
o celibato eclesiástico nem sempre integrou a dinâmica da Igreja,
tendo sido instituído na Igreja latina paulatinamente. Com efeito,
o celibato eclesiástico ainda hoje subsiste na Igreja Católica Roma-
na, enquanto é facultativo nas igrejas ortodoxas.
A ideia subjacente a esse raciocínio confirma-se quando Bih-
lmeyer-Tuechle (1964, p.112-113) afirma que:
Os membros do clero não estavam obrigados ao celibato. Sobre
este assunto não existia, nos primeiros três séculos, nenhuma lei
eclesiástica e menos ainda uma prescrição apostólica. Quem abra-
çava o estado eclesiástico como casado, podia continuar a manter
relações matrimoniais.
Todavia, essa liberdade referia-se somente ao matrimônio contraí-
do antes da ordenação. Em conformidade com um costume muito
antigo, os membros do clero superior, isto é, os bispos, os presbíte-
ros e os diáconos, não podiam mais desposar-se depois da ordena-
ção; a menos que renunciassem ao cargo.
Como, todavia, segundo as palavras explícitas na Sagrada Escritura,
tanto do Senhor como do Apóstolo Paulo (1Cor 7,7-25ss), o celiba-
to é mais perfeito e oferece mais idoneidade ao serviço de Deus do
que o matrimônio, muitos cristãos abstinham-se dele voluntaria-
mente. Desde muito cedo, pois, começou-se a praticar frequente-
mente o celibato como sistema de vida mais adequado ao bispo e
ao sacerdote. Na Espanha, no fim deste período, foi prescrito por
lei: o sínodo de Elvira, pelo ano 306 (can. 33), proibiu [...] o matri-
mônio a todos os eclesiásticos (do diácono em diante) adidos ao
altar, sob pena de destituição.
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 91

A dinâmica hierárquica da Igreja expressou-se na constitui-


ção de comunidades organizadas em conformidade com essa di-
nâmica, ideia essa que é abordada de forma mais detalhada no
item seguinte.

7. DIOCESES, PROVÍNCIAS ECLESIÁSTICAS, PATRIAR-


CADOS E PRIMADO DE ROMA
No contexto da dinâmica hierárquica característica da Igre-
ja, conforme o que se apresentou no item anterior, os membros
das diversas igrejas que integravam a instituição como um todo,
a despeito de suas especificidades locais, tinham consciência de
que representavam parte de um todo hierarquicamente superior:
o Corpo Místico de Cristo, o que conferia à Igreja certa homoge-
neidade estrutural. A intensificação do processo de expansão do
Cristianismo, no entanto, tanto dentro dos limites do Império Ro-
mano quanto fora deles, materializou-se na fundação de inúmeras
comunidades com elementos locais e regionais muito mais con-
tundentes.
Bihlmeyer-Tuechle (1964, p. 112-114) evidencia essa intensa
expansão estrutural da seguinte maneira:
As primeiras comunidades cristãs foram fundadas nas cidades.
Chamavam-se paróquias, isto é, comunidade de peregrinos (cfr.
Hebr 11,13-16); seus chefes eram os bispos. Nas cidades maiores,
porém, com o passar do tempo as comunidades dividiram-se em
muitas igrejas. Em Roma, casas particulares passaram e ser posse
da Igreja, por doação ou por legado e foram sistematizados para ha-
bitação dos presbíteros (eventualmente com outros eclesiásticos) e
se tornaram centro de atividade pastoral. Pelo ano 300 existiam em
Roma de 16 a 20 dessas igrejas assim chamadas titulares (titulus,
na origem era a tabuleta que indicava o nome do proprietário da
casa, mais tarde o nome de um mártir ou santo famoso). Atribui-
-se ao Papa Fabiano (236-250) a divisão de Roma em sete distritos
administrativos, confiados aos sete diáconos.
A partir do século 3º encontramos igrejas também na zona rural. Te-
mos notícias de presbíteros e doutores nas aldeias do Egito (Eus. VII,
24,6), de um "diaconus regens plebem" na Espanha (concílio de Elvira,

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92 © História da Igreja Antiga e Medieval

cân. 77) e, pela primeira vez na Síria, também de bispos de zonas rurais
(Eus.VII, 30,10; concílio de Elvira [314] cân 13). Mas com essa evolução
não foi afetada em nada a autoridade do bispo da cidade. Ele conti-
nuou a ser o superior das diversas igrejas urbanas como também das
rurais, situadas dentro do território dependente da cidade.
2. Como os fiéis de uma cidade formavam uma "paróquia" assim
diversas "paróquias" constituíam, por sua vez, uma província
eclesiástica, cujos confins regularmente coincidiam com os das
províncias do império romano; igualmente, como chefes dessas
eparquias achavam-se os bispos das capitais de província, que
desde o século 4º tomaram o nome de metropolitas. A adequa-
ção da divisão eclesiástica com a política era sugerida por razões
geográficas e históricas, mas havia também um motivo religioso,
enquanto habitualmente as outras igrejas das províncias deviam
sua origem à igreja da capital e, portanto, se encontravam em
condição de igrejas filiais em confronto com a igreja matriz ou
igreja originária. No Oriente, exceto no Egito, a articulação da
Igreja em províncias concluiu-se essencialmente já no século 2º,
no Ocidente, ao invés um pouco mais tarde. Desde a metade do
século 2º os bispos de uma província costumavam reunir-se em
sínodos, para discutir assuntos de importância; os primeiros de
que se tem notícia foram os que se celebravam na Ásia Menor
pelas controvérsias montanistas. Também aqui se pode recordar
um modelo político, isto é, as dietas provinciais da Ásia Menor
(conventos). Os sínodos se demonstraram meio eficaz para man-
ter e consolidar a unidade da Igreja; mais tarde na Ásia Menor
tornaram-se anuais.
3. Acima das organizações provinciais existiam organizações ecle-
siásticas mais vastas. O concílio de Nicéia, de 325, fala destas
como de uma instituição já em ato havia muito e atribui de
modo explícito uma autoridade de supermetropolita – assim se
poderia chamar estes altos dignitários da Igreja - aos bispos de
Roma, Alexandria e Antioquia. As três jurisdições compreendiam
uma o Ocidente, outra o Egito e as províncias limítrofes, a ter-
ceira a diocese política do Oriente (Síria, Cilícia, Mesopotâmia,
Palestina). Neste ordenamento devem ser vistas as origens da
constituinte patriarcal sucessiva. Parece que o concílio aluda, no
mesmo cânon, à existência de outros metropolitas de grau supe-
rior e a este propósito cogitou-se, em primeiro lugar, nos bispos
de Éfeso (Ásia proconsular), Cesaréia de Capadócia, Cesaréia de
Palestina, Heracléia na Trácia. No mesmo plano se encontra tam-
bém, de fato, e não só juridicamente, o bispo de Cartago para a
África norte-ocidental. Em todos estes casos tinha valor decisivo
a relação entre igreja matrizes e igrejas filiais; os bispos daquelas
capitais faziam valer antigos direitos de consagração e eventual-
mente de deposição sobre os bispos das igrejas dependentes.
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 93

De fato, essa profusão de comunidades tornou a organização


estrutural da Igreja muito mais complexa e multifacetada.
Na defesa de sua unicidade, inclusive para proteger-se das
chamadas "seitas gnósticas" que destruíam a unidade eclesial, foi
necessário que a Igreja elencasse e determinasse o respeito a ele-
mentos estruturais comuns que legitimariam a filiação institucio-
nal de determinada comunidade à Igreja Ortodoxa.
O respeito a esses elementos comuns que configuravam
verdadeiras "regras de fé" converteram-se, ao mesmo tempo, em
"critérios de unidade eclesiástica". Entre esses elementos, desta-
cam-se os seguintes:
1) Dioceses - Em cada cidade havia um bispo que tinha ple-
no domínio sobre todas as paróquias (títulos) existentes
na mesma cidade e no campo circundante.
2) Províncias - O bispo que residia na capital da província
adquiriu certa autoridade em relação aos demais bispos
residentes na província civil.
3) Patriarcado - Os bispos residentes na capital da diocese ci-
vil (fundação apostólica) constituíram-se em patriarcas ou
metropolitas. O Concílio de Niceia (325) reconheceu os pa-
triarcados de Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
4) Primado do Papa - O "primado" que Cristo conferiu a Pe-
dro sobre os demais apóstolos foi estendido aos seus su-
cessores, configurando-se, dessa forma, o cargo de "bispo
de Roma". A partir do século 4º, as "controvérsias dogmá-
ticas", as intromissões do poder estatal na esfera eclesiás-
tica e as usurpações e deposições de alguns bispos deram
ao Bispo de Roma a oportunidade para exercitar o cha-
mado "Primado Universal", por meio do qual atuava na
qualidade de juiz supremo e guardião da Ortodoxia.
5) Outros cargos - Constituídos a partir do século 4º com a
expansão e liberdade da Igreja, os cargos discriminados
a seguir integravam a estrutura da Igreja que se preten-
dia unificada:
a) Cubiculários (conselheiros e companheiros do bispo).
b) Ecônomos (cuidavam da administração dos bens).

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94 © História da Igreja Antiga e Medieval

c) Defensores (encarregados de tutelar os direitos da


Igreja nos processos).
d) Notários (ajudavam o arquidiácono, sobretudo na
redação dos documentos).
e) Arquivistas (encarregados de cuidar dos documentos
da Igreja).
f) Fosseiros (cavavam as sepulturas e cuidavam dos
cemitérios).
g) Enfermeiros (encarregados dos doentes).
h) Apocrisiários (eram os núncios ou legados do Papa e
dos patriarcas na Corte Imperial).
Entre os elementos arrolados anteriormente, o Primado Pa-
pal assume posição de maior relevância no contexto da aborda-
gem da organização hierárquica e estrutural da Igreja, o que im-
plica considerar o que escreve Bihlmeyer-Tuechle (1964, p. 115)
aprofundando a análise acerca do referido elemento:
1. A tendência acentuada para unificar-se num organismo de
cunho monárquico, que já se encontra na formação da constitui-
ção diocesana e metropolitana, conclui-se na unidade de toda a
Igreja sob um guia supremo, o papado de Roma. Contudo esse
coroamento da constituição eclesiástica não é somente o resul-
tado de uma evolução puramente natural; o seu fundamento é
posto já na origem da Igreja. Como Cristo pregou um só Deus
e uma só fé (Ef 4,5), assim fundou também uma só Igreja e lhe
deu em Pedro, na qualidade de chefe dos Apóstolos, um centro
visível que a unisse (MT 16,18s; Jô 21,15ss). Mas essa disposição
não podia valer somente para os tempos apostólicos; ela con-
servava sua importância e seu caráter de necessidade também
para os tempos sucessivos. O grau hierárquico e a tarefa que ela
atribuía a Pedro deviam, pois, passar aos seus sucessores. Onde
se encontra o túmulo de Pedro, a sua herança foi administrada
pelos legítimos sucessores, pontífices romanos. Em Irineu (Adv.
Haer. III, 3,3) encontramos ainda a série dos bispos romanos des-
de Pedro até Eleutério, e é notável o fato de que também em
pesquisas recentíssimas feitas por não católicos reconheceram
na mais antiga lista dos bispos romanos um ´documento anti-
quíssimo de tradição autêntica´ (E. Caspar).
2. Naturalmente, porém, o primado da Igreja de Roma não se mani-
festou imediatamente em toda a sua plenitude e esplendor, mas
desenvolveu-se de modo orgânico e segundo as necessidades
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 95

do tempo. Os testemunhos dos três primeiros séculos ligam-se


numa cadeia de provas decisivas em favor da fé daquele tem-
po no primado petrino-romano. Uma confirmação indireta do
mesmo está já no fato de que os hereges e os cismáticos pro-
curavam obter sobretudo o reconhecimento de Roma, eviden-
temente porque, como observam Irineu e Tertuliano (Adv. Prax.
1), a comunhão com Roma era considerada igual à comunhão
com a Igreja Universal. Roma era precisamente 'desde o princí-
pio centro e fonte principal do movimento ortodoxo dentro da
Igreja' (W. Bauer).

Pelo que se expôs, a unicidade estrutural e hierárquica da


Igreja configurava ponto pacífico no desenvolvimento da instituição,
tendo a valorização do Primado Papal se constituído em elemento
fundamental na consecução do referido ideal de unicidade.

8. SÍNODOS E CONCÍLIOS
A instituição conciliar não era desconhecida na Igreja primi-
tiva, mas adquiriu importância após a conversão de Constantino.
A proliferação dos sínodos, por sua vez, ocorreu a propósito
do advento das heresias e também da consideração de que estes
constituíam uma instituição necessária para o exercício harmonio-
so e regular do governo da Igreja.
Os principais concílios ecumênicos da Antiguidade foram os
seguintes:
1) Niceia (325), em que se deliberou o posicionamento
contrário ao arianismo.
2) Constantinopla (381), em que se reafirmou a posição
contrária ao arianismo e a outras heresias.
3) Éfeso (431), em que se firmou posição contrária a Nestório.
4) Calcedônia (451), em que se firmou posição contrária ao
monofisismo.
5) II de Constantinopla (553), marcado pela negação dos
chamados "três capítulos".
6) III de Constantinopla (680-681), em que a Igreja marca
posição contra os monoteletas.

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96 © História da Igreja Antiga e Medieval

A propósito dessa listagem, merece ser destacado o cânon


quinto do Concílio de Niceia, que ordena a celebração, em cada
diocese, de dois sínodos por ano (diocesanos, provinciais, nacio-
nais, patriarcais e universais ou ecumênicos).
No prefácio de sua obra sobre os concílios ecumênicos, Albe-
rigo (1995, p. 5-6), abordando a importância desses eventos, sua
natureza e características fundamentais, bem como sua tendência
à ampla participação, afirma que:
A celebração de grandes assembléias conciliares constitui uma marca
que atravessa toda a secular história cristã. Nascidos espontaneamen-
te, sem que houvesse projeto preliminar, os concílios – influenciados
também pelos famosos "modelos" do Sinédrio hebraico e do Senado
romano - são uma das mais interessantes e significativas manifesta-
ções da dinâmica de comunicação no nível intereclesial que caracteri-
za o cristianismo dos primeiros séculos e que o anima constantemen-
te [...]. De um lado, os grandes concílios da antiguidade, reunidos por
iniciativa da autoridade imperial e celebrados à sombra do seu manto,
tiveram uma característica própria, dentro da tradição do cristianismo
oriental de língua grega. Aí sobressaem três elementos: a concentra-
ção primária na formulação de "profissões de fé" (oroi). Profissões
que nascem da vital necessidade de "prestar contas da fé", ainda que
em larga medida condicionadas pelo confronto com as correntes he-
réticas. Às profissões acrescentam-se disposições disciplinares para a
vida interna das comunidades (cânones). Em segundo lugar, a par-
ticipação nos trabalhos é "aberta" tanto a teólogos quanto a leigos,
embora essencial (mas não exclusiva) a intervenção de bispos e, aos
poucos se torne conditio sine qua non o envolvimento dos cinco pa-
triarcas apostólicos (pentarquia). Constitui também um fator bastante
destacado a participação de representantes dos ambientes monásti-
cos, dado seu crescente prestígio espiritual e social.

Os concílios podem, portanto, ser considerados uma verda-


deira instituição cristã, dada sua importância no desenvolvimento
da história da Igreja, bem como no favorecimento à participação
de diversos atores na dinâmica de sua realização.

9. CULTO E SACRAMENTOS
Para compreender a dinâmica do culto cristão, bem como o
lugar que os sacramentos ocupam nessa dinâmica, é fundamental
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 97

reconhecer que a identidade litúrgica e cultural cristã levou sécu-


los para se organizar e consolidar.
Além disso, como já afirmamos, Jesus e seus primeiros se-
guidores eram judeus. Essa assertiva implica reconhecer que o cul-
to cristão sofreu uma grande influência do culto judaico.
Essa filiação judaica, no entanto, não é irrestrita, tendo em
vista que a tradição cristã reivindica uma originalidade estrutural.
A respeito dessa busca pela originalidade do culto cristão, Borobio
(1990, p. 45) afirma o seguinte:
Dada a correspondência entre a fé e expressão cúltica, podemos
afirmar que a liturgia cristã se distingue da judaica à mesma me-
dida que o cristianismo se diferencia do judaísmo. A consideração
global do Novo Testamento nos revela um fato surpreendente: uma
espécie de ´anticulturalidade´, uma atitude de distanciamento ou
de ruptura com relação às categorias de culto do ambiente judeu
ou pagão, uma intencionalidade de fundo que procura exprimir
com vigor a presença de uma realidade nova. Isso se evidencia
na utilização deliberada de tempos e espaços não-sagrados para
as celebrações próprias da assembléia cristã e, sobretudo, no uso
especial e na aplicação de um vocabulário de culto; com efeito, há
uma atitude evidentemente intencional de evitar termos técnicos
do culto (como sacerdote, sacrifício, etc.) num âmbito propriamen-
te cristão, ou melhor, de usá-los num sentido novo e original.

Considerada essa originalidade reivindicada, o culto e os sa-


cramentos cristãos articularam-se sobre alguns elementos funda-
mentais expressos no livro dos Atos dos Apóstolos em seus primei-
ros capítulos (o ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna,
a fração do pão e as orações em comum: At 1,4). Com base nes-
ses fundamentos é que, paulatinamente, se desenvolveu o "modo
cristão" de viver e celebrar a fé e a vida em comunidade.
A partir do século 4º, considerando-se a conquista da liber-
dade de culto ao Cristianismo e a expansão eclesial, muitas mu-
danças ocorreram na vida da Igreja. Cessaram as perseguições,
o que, paradoxalmente, estimulou certa negligência da parte de
muitos cristãos em relação "à qualidade de vida cristã e à moral";
o Cristianismo tornou-se religião oficial e fundamentou sua ação

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98 © História da Igreja Antiga e Medieval

na obrigação de converter o Império Romano e reverter o paga-


nismo reinante; intensificaram-se as interferências do Estado nos
assuntos eclesiásticos; proliferaram-se as heresias e, em medida
semelhante, são instituídas grandes assembleias conciliares; con-
solidaram-se as diferenças entre a Igreja do Oriente e do Ociden-
te e isso se reflete de modo contundente na liturgia, e por conta
dessa situação, acirraram-se as diferenças regionais e litúrgicas,
estimulando-se a proliferação de diferentes liturgias com a roma-
na, ambrosiana, galicana, bizantina etc. e, com o surgimento do
monacato, proliferaram-se também os mosteiros, que se tornaram
grandes centros de produção e consolidação litúrgica.
Nesse contexto, processa-se uma grande evolução litúrgica,
assim descrita por Borobio (1990, p. 7-71):
No tocante a textos litúrgicos, o período de grande criatividade
situa-se entre a metade do século IV e o final do século VII. O uso
de composições escritas para o culto foi se generalizando. Essa ten-
dência à fixação escrita das orações litúrgicas decorre de diversas
causas: em primeiro lugar, o crescimento das comunidades, que
exigem uma maior organização e levam a uma concreção dos livros
de fórmulas, fazendo desaparecer paulatinamente o fenômeno da
'improvisação litúrgica' dos séculos precedentes; por outro lado,
a necessidade de um certo controle nas orações litúrgicas surge
devido à presença de orações compostas não apenas por autores
incompetentes (de que já se queixa Agostinho), como também por
autores heréticos. Com efeito, a nova heresia ariana e o sincretismo
gnóstico entre outros, ofereciam suas próprias fórmulas de oração
e seus cantos, que podiam ser introduzidos com facilidade nas pró-
prias reuniões litúrgicas. Diante dessa ameaça, os concílios locais
reagem, com cânones disciplinares. De outro ponto de vista, essa
fixação dos textos escritos fomenta a intercomunicação litúrgica
de Igreja a Igreja; textos de qualidade e de autores reconhecidos
são adaptados por outras comunidades, criando-se assim conjun-
tos unificados de fórmulas litúrgicas no interior de uma província
eclesiástica.

Considerada essa evolução, em que se impõe uma liturgia


fundamentada em registros escritos em detrimento da tradição
oral, chega o momento de abordarmos os principais elementos
que integram os cultos e os sacramentos.
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Batismo
O batismo, administrado pelos apóstolos aos convertidos
no momento imediatamente posterior em que estes realizavam a
profissão de fé em Cristo, configura a admissão à Igreja.
Até o século 2º, ao que tudo indica, o batismo era adminis-
trado somente aos adultos, muito embora o ato de se batizar as
crianças configure, para Irineu (180) e para Orígenes (254), uma
tradição apostólica.
O batismo podia ser administrado por qualquer cristão, mas,
geralmente, era conduzido pelo bispo. Ocorria, inicialmente, so-
mente por ocasião da vigília pascal, situação que se modificou pos-
teriormente, admitindo-se a realização da cerimônia em outros
momentos do ano litúrgico.

Catecumenato
O catecumenato é definido como o tempo destinado à pre-
paração que antecede o batismo do neófito, que por sua vez pode
ser definido da seguinte maneira: "pagão recém-convertido ao
cristianismo; cristão-novo [...] pessoa que vai receber o batismo
ou recentemente batizada" (HOUAISS, 2009).
Na verdade, não podemos falar de uma catequese propria-
mente dita nas primeiras décadas de existência do Cristianismo,
já que os primeiros convertidos eram judeus que eventualmente
tiveram acesso à pregação apostólica e se integraram à comunida-
de cristã primitiva em Jerusalém ou em comunidades oriundas da
Diáspora.
A despeito disso, a preparação para a profissão do Cristianismo,
de início, centrava-se nos ensinamentos de Jesus e na sua ressurrei-
ção. Posteriormente, com o advento de obras escritas, como os evan-
gelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, bem como outros escritos e
cartas neotestamentárias, enfatizava-se não somente os ensinamen-
tos de Jesus, mas também relatos sobre a vida de Jesus e das comu-

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100 © História da Igreja Antiga e Medieval

nidades primitivas, tendo a catequese se colocado a serviço da instru-


ção dos novos membros da comunidade cristã (judeus ou pagãos).
A expansão da conversão dos pagãos ou gentios ao Cristia-
nismo estimulou a necessidade de uma preparação mais elabora-
da. É nesse contexto que se organiza o catecumenato, que é des-
crito da seguinte maneira por Bollin e Gasparini (1998, p. 25-27):
A Igreja primitiva apenas admite aos sacramentos de iniciação cris-
tã pessoas cuja conversão se pode verificar e cujo estilo de vida pôs
à prova durante o período da catequese. Ninguém é acolhido sem
preparação, sem provas, sem garantias. A Carta aos Hebreus coloca
já a questão de etapas sucessivas na preparação para o batismo:
"Teríamos muitas coisas a dizer sobre isto e coisas difíceis de ex-
plicar, porque vos tornastes lentos em compreensão. Pois vós, que
há muito tempo devíeis ser mestres, necessitais ainda que alguém
vos ensine os primeiros rudimentos dos oráculos de Deus, e ficas-
tes de tal maneira que necessitais de leite em vez de uma comida
sólida. Ora, o que se alimenta de leite é incapaz de entender a dou-
trina da justiça, porque ainda é menino. A comida sólida, porém, é
para os adultos, para aqueles que se habituaram a ter os sentidos
exercitados para distinguir o bem do mal. Pelo que, deixando de
lado os primeiros rudimentos da doutrina de Cristo, elevemo-nos a
coisas mais perfeitas" (Hb 5,11-6,1). Essa passagem parece distin-
guir duas categorias de fiéis: 'os meninos' que recebem as verdades
elementares e 'os adultos' que são instruídos na renúncia às obras
da morte, na fé em Deus, na doutrina sobre os batismos, a impo-
sição das mãos, a ressurreição dos mortos e o juízo eterno, como
expõe a própria Carta aos Hebreus (cf. 6,1-2). No período seguinte,
o catecumenato estrutura-se em etapas precisas e com conteúdos
progressivos e tem como meta o batismo.
[...] Para formar os catecúmenos, mas também para que os cristãos
aprofundem a sua fé, aparecem as grandes escolas catequéticas. Em
Roma, o filósofo Justino (+ por volta de 165), depois da sua conversão
na época de Antonino Pio, funda uma escola onde explica a fé cristã a
fiéis e pagãos. É também seu discípulo Taciano, um famoso apologis-
ta. Esta é, no entanto, a única escola de um filósofo cristão.
Em Alexandria, no Egito, onde o Cristianismo se espalhou, surge
uma escola catequética, o mais antigo centro de ciência sacra da
história cristã. É dirigida por grandes mestres: Panteno (por volta de
180-200), Clemente Alexandrino (por volta de 150-215), Orígenes
(185-251/254), Heráculo. A princípio é uma escola destinada à ins-
trução dos catecúmenos, mas depois torna-se também uma escola
de teologia e de exegese bíblica para preparar os catequistas e os
mestres da fé.
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 101

O sistema filosófico que exerce maior influência nesta escola e que


é utilizado para explicar a fé aos contemporâneos é o platonismo,
pelo que esta escola acentua (por vezes excessivamente) a trans-
cendência de Deus e a utilização muito lata da alegoria para ex-
plicar a Sagrada Escritura. Essa escola, onde se ensina gramática,
filosofia, teologia, exegese bíblica, prestou um serviço excepcional
à Igreja, formando numerosos cristãos e assegurando um contato
frutuoso entre a filosofia grega e a mensagem da revelação.
Um século mais tarde, em Antioquia, na Síria, Luciano de Samósata
funda em 312 outra grande escola catequética, que utiliza méto-
dos muito diferentes da escola egípcia. Procura-se o diálogo com
a filosofia grega, mas privilegia-se Aristóteles. O aprofundamento
da Bíblia, na exegese, é feito pelo método histórico-crítico, usando
o sentido literal (só alguns episódios e certas passagens do Antigo
Testamento em que era clara a semelhança com o Novo Testamen-
to é que eram referidas a Cristo). Também aqui se formarão fileiras
de cristãos.

Conforme o que se pôde apreender da descrição de Bollin e


Gasparini (1998), é a expansão cristã que estimula o advento do
catecumenato, que por sua vez se consolida com a fundação das
escolas catequéticas que se prestam a garantir que a prática reli-
giosa, sobretudo dos recém-convertidos, seja homogênea, contex-
to em que se destaca a influência da filosofia grega na organização
dessas escolas.

Para aprofundar a abordagem da difusão; decadência, que se ini-


cia no final do século 4º; conteúdos e do caminho que se percorria
ao longo do catecumenato (o candidato era submetido a um exa-
me de admissão; o aprovado era submetido a uma catequese que
o introduzia na fé cristã; o catecúmeno passava por um exame
final e então se iniciava a preparação para o batismo, que nos
primeiros anos era celebrado, conforme o que já se mencionou,
somente durante a vigília pascal), consulte a obra Catequese na
Vida da Igreja, especialmente o conteúdo entre as páginas 42 e
49, de BOLLIN, A.; GASPARINI, F. A.

Eucaristia
A eucaristia ou "fração do pão", no tempo dos apóstolos, era
celebrada pela tarde, constituindo-se como uma "comida de frater-

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102 © História da Igreja Antiga e Medieval

nidade" ou ágape, termo que designa uma "festa dos primitivos cris-
tãos que consistia em uma refeição comum com a qual era celebra-
do o rito eucarístico" (HOUAISS, 2009) em recordação à última Ceia
do Senhor e que desapareceu definitivamente no século 4º.
Por ocasião da proibição das "eterias" por obra do imperador
Trajano (98-117), os cristãos passaram a celebrar a Eucaristia pela
manhã, afastando a cerimônia do conceito de "comida da fraterni-
dade", que, por sua vez, acabou por se converter, paulatinamente,
em mero evento beneficente em proveito aos pobres.

Informação complementar––––––––––––––––––––––––––––––
O termo "eterias" é de origem grega e designa as associações de modo geral. Os
cristãos constituíam que uma eteria, pelo menos sob a ótica do Império Romano,
representava uma ameaça ao equilíbrio do ordenamento social vigente, o que
certamente motivou perseguições da parte do Império.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O registro mais antigo de uma cerimônia eucarística orga-
nizada de modo semelhante ao que conhecemos hoje em dia é a
descrição da uma missa celebrada por São Justino (+165), cerimô-
nia em que se reconhece os seguintes momentos:
1) Recitação de algumas orações.
2) Leitura da Sagrada Escritura.
3) Homilia do bispo ou presidente da assembleia.
4) Oração em comum por todos os homens.
5) Apresentação das oferendas (pão e vinho misturado
com água).
6) Consagração mediante as palavras da Instituição.
7) Resposta dos assistentes ("amém") em sinal de adesão.
8) Distribuição do Corpo e Sangue de Cristo aos fiéis (essa
distribuição era feita pelos diáconos e após a comunhão
do presidente da assembleia).

Unção dos enfermos


Jesus Cristo desenvolveu uma atenção muito especial pelos
doentes e os escritos neotestamentários reforçam esta dimensão
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 103

eclesial. Assim, no Cristianismo antigo, quem cuidava mais dos


doentes eram os diáconos e diaconisas, juntamente com outras
obras de misericórdia, como a atenção aos órfãos, viúvas, escra-
vos, prisioneiros etc. Sobre este sacramento, Gómez (1995, p. 80.
Tradução de Ronaldo Mazula) afirma que: "o "Sacramentário gre-
goriano" contém prescrições especiais para a administração deste
sacramento e para a consagração dos óleos. "

Ordem
Os candidatos ao sacerdócio, inicialmente, eram escolhidos
pelos apóstolos e se exigia deles qualidades morais e intelectuais.
Podiam ser recrutados também entre homens casados, mas, com
o passar do tempo, foi se exigindo o celibato dos candidatos. Com
a expansão do Cristianismo, os bispos foram assumindo esta fun-
ção e cuidavam da preparação destes. A ordenação, ministrada
unicamente pelo bispo, essencialmente, acontecia mediante a im-
posição das mãos e oração consecratória. Posteriormente à admi-
nistração do sacramento da ordem, foram acrescentadas algumas
cerimônias simbólicas (entrega do cálice e patena, prostração, un-
ção com óleo etc.).

Matrimônio
A santidade do matrimônio é defendida pelos Santos Padres
desde o século 2º. A despeito disso, foi somente no século 4º que
se estabeleceu e clarificou as posições da Igreja em relação a esse
sacramento, bem como em relação à virgindade.
Paralelamente a esse processo, a legislação civil, que regu-
lava o matrimônio, conformou-se à legislação eclesiástica durante
os séculos 4º e 5º.
Muitas peculiaridades marcavam a dinâmica do matrimônio
no contexto desse momento da História da Igreja. Entre essas pe-
culiaridades merece destaque, em primeiro lugar, o fato de que,
no Ocidente, a bênção nupcial era celebrada durante o transcur-

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104 © História da Igreja Antiga e Medieval

so das missas, enquanto no Oriente admitia-se a celebração em


eventos desvinculados das missas e até em ambientes privados.
Em segundo lugar, destaque-se a proibição da contração de víncu-
lo matrimonial com hereges e infiéis.

Penitência
A propósito das conversões do século 4º, pessoas com pouco
espírito de fervor ingressaram na dinâmica da Igreja. Essa situação
promoveu a multiplicação de escândalos, cuja marca era a inob-
servância evidente da doutrina e dos mandamentos defendidos
pela Igreja (pecado), escândalos esses que estimularam a Igreja a
desenvolver e exercitar o seu "direito penal".
A pena mais grave, nesse contexto, era a "excomunhão",
por meio da qual o fiel ficava excluído da Igreja. A aplicação desta
pena se dava a propósito da incidência dos três pecados canôni-
cos: apostasia, adultério e homicídio.
Os clérigos, por sua vez, eram castigados mediante a "sus-
pensão" e "deposição" do cargo. Na Espanha, os bispos eram cas-
tigados mediante a privação da "comunhão fraterna" e do direito
de assistir aos sínodos.

Para aprofundar seus conhecimentos neste assunto, acesse o site


SACRAMENTOS. Home Page, Disponível em: <http://www.acidi-
gital.com/sacramentos/>. Acesso em: 04 mar. de 2011. Ampliando
e aprofundando seu universo de acesso à informação, você terá
a oportunidade de ampliar também o seu conhecimento e aguçar
seu senso crítico.

10. FESTAS CRISTÃS E MEIOS DE SANTIFICAÇÃO


Considerados os cultos e sacramentos cristãos, importa
abordar um outro viés do culto cristão, o das suas principais festi-
vidades, bem como os meios pelos quais se pode alcançar a san-
tificação.
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 105

A abordagem das festas cristãs se processa, nesse item, por


meio da seguinte enumeração:
1) Os cristãos solenizaram o primeiro dia da semana, em me-
mória da Ressurreição do Senhor (Dia do Senhor). Neste
dia, abstinham-se de trabalhos e assistiam à missa.
2) A Igreja incorporou à sua dinâmica, desde o princípio de
seu desenvolvimento histórico, as duas principais festi-
vidades do judaísmo, o Pentecostes ("vinda do Espírito
Santo") e a Páscoa (comemoração da Ressurreição do
Senhor), interpretando-as segundo o sentido cristão.
3) A partir do século 2º, introduziu-se na Igreja do Oriente
a chamada Festa da Epifania, na qual se comemorava o
batismo de Cristo e o milagre de Canaã. Esta festa foi
incorporada pela Igreja Ocidental no século 4º.
4) A festa do Natal é de origem Ocidental.
5) Na Espanha, celebrava-se, desde os princípios do século
4º, a Festa da Ascensão.
6) O advento das festas em culto à Virgem se dá no século
4º. Com efeito, a primeira festa mariana de que temos
notícia é a da Purificação.
7) A Assunção de Maria começou a ser celebrada em Jeru-
salém no século 5º; a Anunciação, por sua vez, na Ásia
Menor, no século 6º, e celebração do nascimento de
Maria foi introduzida em Roma no século 7º.
8) No século 5º, generalizam-se as duas festas ligadas à fi-
gura de São João Batista (a que festeja o seu nascimen-
to e a que celebra seu martírio), bem como à figura de
Santo Estevão. Nesse mesmo século, celebrava-se, em
Roma, a festa de São Pedro e São Paulo com vigília e oi-
tava, evento que foi incorporado no Oriente.
9) As festas consistiam na "participação da missa" e no des-
canso, sendo que o poder civil apoiou estas prescrições
eclesiásticas. A adesão à prescrição do descanso, por
exemplo, está expressa nas deliberações de Constanti-
no, que proibiu o trabalho nos tribunais e o trabalho mi-
litar aos domingos.

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106 © História da Igreja Antiga e Medieval

10) O culto dos mártires aumentou notavelmente depois de


terminadas as perseguições. Suas relíquias marcavam
presença em todos os altares. A dimensão da impor-
tância dada a essas relíquias pode ser visualizada nas
deliberações de um determinado Concílio realizado em
Cartago, em que se ordenava a destruição de todos os
altares que não abrigassem a relíquia de algum mártir.
Os meios de santificação, por sua vez, classificam-se em
meios objetivos (observância dos sacramentos) e meios subjetivos
(oração, jejum, esmola, caridade).

11. ASCETAS, VIRGENS E ORIGEM DA VIDA MONÁSTICA


Os cristãos não se distinguiam dos demais cidadãos em seu
gênero de vida exterior. Geralmente, desempenhavam os mesmos
ofícios que realizavam antes da conversão, não se apercebendo da
possibilidade de incorrerem na idolatria e de imoralidade, muito
embora, por conta da especial aversão aos teatros, os atores con-
vertidos ao Cristianismo tinham que abandonar seu ofício, situa-
ção que também se aplicava aos gladiadores.
Dentre a massa comum dos cristãos, no entanto, sobressaía,
em cada comunidade, um grupo de homens e de mulheres que
aspiravam à perfeição da vida cristã: os ascetas e as virgens.
O modo de vida característico dos ascetas, muito semelhan-
te ao das virgens, caracterizava-se pelos seguintes elementos fun-
damentais:
1) Não se caracterizavam por vestimenta específica.
2) Faziam voto de castidade perfeita.
3) Muitos ascetas distribuíam seus bens aos pobres.
4) Do ponto de vista de sua organização interna, os grupos
ascetas tendiam tanto à permanente ligação a suas famí-
lias quanto à reunião em comunidade.
5) Comprovadamente, alguns ascetas retiraram-se para o deser-
to para viver em solidão, como destaca São Paulo de Tebas.
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 107

Os primórdios dessa vida consagrada, de modo especial os


séculos 1º e 2º d.C., são descritos da seguinte maneira por Cabra
(2006, p. 16-17):
Desde o início, portanto, a partir da fase apostólica, o ideal supre-
mo do cristão é ser como Cristo em tudo. O Senhor Jesus, para o
cristão, é a "imagem de Deus invisível", o "Verbo feito carne" o "Fi-
lho de Deus", o "ser humano perfeito", a "luz do mundo", e então o
modelo supremo, principalmente no gesto de dar a vida. Ser como
ele é aproximar-se de Deus, da vida e da amizade com Deus, e da
perfeição.
Daí a alta consideração pelo martírio, isto é, o desejo de ser como
Cristo em tudo, também na hora heróica da doação: "Ele me amou
e deu a vida por mim", repetiam os mártires com Paulo. Simulta-
neamente, aparecem na comunidade cristã mulheres e homens
que renunciam ao casamento para consagrar-se a Deus, para se-
rem como Cristo em tudo - também em sua concreta forma de vida
virgem, pobre e orante - para serem, em suma, dedicados às coisas
do Senhor. São pessoas que vivem em contínua oração, em casti-
dade, sozinhos ou em grupos, e se põem a serviço dos pobres e da
comunidade ou se dedicam à evangelização.
A virgindade é valorizada e promovida desde as origens, porque
o Senhor Jesus escolheu e nobilitou essa forma de vida. Particu-
larmente apreciados eram os evangelizadores que levavam o
Evangelho aos irmãos, imitando desse modo o Cristo casto, pobre
e itinerante. Se em tempo de perseguição eram os mártires que
exprimiam a máxima proximidade com Cristo, em tempos de paz
eram as virgens, os ascetas e os evangelizadores itinerantes que
lembravam o radicalismo cristão.
A dupla maneira de seguir a Cristo está presente, portanto, des-
de os primeiros séculos: de um lado, está o grupo, mais ou menos
numeroso, das virgens e dos ascetas (ou continentes), tanto itine-
rantes quanto a serviço da comunidade local, cuja forma de vida é
percebida como sendo mais próxima à de Cristo, como uma manei-
ra significativa de viver a perfeição evangélica; de outro, estão os
cristãos comuns, normalmente casados, que dão testemunho de
sua fidelidade a Cristo com uma vida sóbria, guiada pela lei supre-
ma do amor fraterno.
Convém observar que os ministros - bispos, presbíteros e diáconos
- podem pertencer tanto a um quanto ao outro modo de viver a
vida cristã. Na Igreja primitiva, essas figuras de virgens e ascetas,
dedicadas inteiramente ao serviço da comunidade, eram conside-
radas modelos de vida cristã e, em tempos de perseguição, eram
olhadas como guias luminosos.

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108 © História da Igreja Antiga e Medieval

Esse fervor moral sofre, entretanto, um duro golpe por oca-


sião da concessão da liberdade de culto aos cristãos, por obra do
Imperador Constantino (Edito de Milão - ano 313). Essa concessão,
que produziu um tempo de paz para Igreja e configurou a adesão
do Império Romano ao caminho cristão, adesão essa que se con-
solida por meio da oficialização do Cristianismo no final do século
4º, ainda durante o governo do Imperador Teodósio, também pro-
duziu efeitos nocivos. Com efeito, a Igreja, segundo São Jerônimo:
"cresceu em riqueza e poder, mas se empobreceu em virtude".
(GÓMEZ, 1995, p. 82). Nesse momento, evidencia-se, paradoxal-
mente, um certo retrocesso dos cristãos em relação ao fervor reli-
gioso e à moralidade.
Essa decadência foi causada, entre outras, pelas seguintes
motivações:
1) Clima de negligência provocado pelo alívio das tensões a
propósito do fim das perseguições.
2) Os vícios oriundos do que se pode chamar de "conver-
são de conveniência", como o não abandono de vícios
pagãos da parte de alguns neoconvertidos.
3) A divisão da comunidade por conta das heresias.
4) A instrução precária do povo.
Mesmo com os percalços mencionados, a ação da Igreja fru-
tificou, o que fica evidenciado quando se observa a constituição de
famílias cristãs, das quais surgiram santos e santas, como é o caso
da família de São Basílio, o Grande; a proliferação das conversões
ao Cristianismo, a despeito das dificuldades enfrentadas para tor-
nar mais consistente o processo de catequização e formação dos
neoconvertidos; a expansão do monacato; a instituição de novas
liturgias fundadas no fortalecimento da espiritualidade cristã e a
conversão do Império Romano ao Cristianismo, que, por sua vez,
sanciona leis civis moralizadoras que adaptaram estruturas pagãs
à ética cristã, conforme o que se apresenta nos institutos jurídicos
listados a seguir:
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 109

1) A partir do ano 313, instituíram-se dispositivos que difi-


cultam o recurso ao divórcio.
2) 3.11.313 – A pena de morte passa a ser aplicada somen-
te quando o crime é comprovado e mediante confissão
de culpa.
3) 13.5.314 – Observação do princípio da igualdade na apli-
cação das leis e da justiça.
4) 21.3.315 - Proibição do costume de se marcar com fer-
ro quente a testa dos condenados a trabalhos forçados
(princípio fundamentado na ideia de que a face dos ho-
mens guarda semelhança em relação a Deus).
5) 13.5.315 - Estímulo à filantropia fundamentado na ideia
de que a ajuda aos pobres pudesse evitar a exposição
(abandono) dos neonatos.
6) 13.5.315 – Repasse de subvenção dos recursos privados
do imperador às igrejas católicas.
7) 13.8.315 – Instituição do impedimento da situação em
que o filho de um pai livre pudesse se tornar escravo.
8) 11.5.319 - Proibição do assassinato de escravos e impo-
sição de restrições à tortura.
9) 31.1.320 – Abolição da taxa do celibato.
10) 31.12.320 – Garantia de proteção aos prisioneiros con-
tra maus-tratos.
11) 3.5.321 - Determinação que classifica o Domingo como
dia de repouso.
12) 18.4.321 – Instituição de procedimentos institucionais
que, sob a administração da Igreja, atuassem como
meios facilitadores da emancipação dos escravos.
13) 6.7.322 - Proibição da venda de filhos.
14) 24.4.325 – Medidas de proteção aos pobres.
15) 1.10.325 - Proibição dos jogos em que se envolvia a ação
dos gladiadores.
16) 14.6.326 – Proibição da manutenção, da parte de cida-
dão esposado, de concubina em sua casa.
17) 13.5.329 - Assistência estatal a crianças de genitores pobres.

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110 © História da Igreja Antiga e Medieval

Informação complementar––––––––––––––––––––––––––––––
A nomenclatura utilizada na listagem (Ex. "3. XI. 313") são indicativos do me-
canismo de sequenciação de leis, artigos e acordos que integravam o código
jurídico romano vigente na época em questão.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
À semelhança dos ascetas e virgens, considerando-se a aus-
teridade com que se submetem à dinâmica da vida cristã, destaca-
-se o advento da vida monástica, cujo desenvolvimento histórico é
detalhado a seguir.

Desenvolvimento da vida monástica


A compreensão do processo por intermédio do qual se deu
o advento e desenvolvimento da vida monástica implica abordar a
vida anacorética.
Vida anacorética no Oriente
Por ocasião das perseguições sistemáticas contra o Cristianis-
mo, sobretudo da parte dos imperadores Décio, na segunda metade
do século 3º, e Diocleciano, no início do século 4º, muitos cristãos
abandonaram as cidades para viver no deserto, ali permanecendo e
levando uma vida solitária e de entrega à perfeição religiosa.
A vida anacorética, no entanto, não determinou a origem da
vida monástica. Os monges são herdeiros dos mártires, na medida
em que estes representam o ideal de imitação de Cristo. Com efei-
to, o mártir, inicialmente identificado como a imitação de Cristo,
passa a ser visto como aquele que se consagra ao exercício es-
piritual de devoção, mortificação e meditação religiosa (ascese),
como aquele que mais se aproxima das marcas do divino Mestre.
De fato, terminadas as perseguições sangrentas, a "vida mo-
nacal" converteu-se na "substituta do martírio"
Este desejo de imitação de Cristo povoou os desejos dos
anacoretas, entre os quais sobressaíram-se:
• São Paulo Ermitão (+341), ainda que não esteja compro-
vada plenamente a sua existência.
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 111

• Santo Antão Abade (+356), que inicialmente (desde o ano


270) aderiu à vida solitária, situação que se alterou após o
ano 290, quando alguns discípulos associaram-se a ele. O
grupo instituído estruturou um conjunto de celas para er-
mitões sob a direção de Santo Antão, ação que configurou
uma novidade no que diz respeito à dinâmica da vida cristã.
Este gênero de vida, anacorético em essência, por influên-
cia do próprio Santo Antão, propagou-se rapidamente.
Destacam-se também, nesse contexto, os chamados "reclu-
sos" (ou "reclusas"); os estilitas, que viviam sobre altas colunas; os
dendritas, que viviam sobre as árvores; os ruminantes, que viviam
de ervas ("pastando") e os adamitas, que usavam as vestes até que
elas se consumissem.
Vida cenobítica ou vida comum
São Pacômio (287-347) foi o mestre do cenobitismo ou da
"vida comum". No ano 310, fundou um mosteiro em Taberna (Egito)
e compôs a primeira regra monástica que se tem notícia. No Egito,
São Basílio (331-379), por sua vez, estudou a vida anacorética e ce-
nobítica e retirou-se à solidão em Cesareia da Capadócia, compon-
do uma outra regra que deu grande impulso ao monacato oriental.
Muitas outras regras monásticas foram instituídas tanto no
Oriente como no Ocidente, com destaque para as de Santo Agosti-
nho, Cassiano, São Leandro de Sevilha, São Cesário de Arles, entre
outros. É importante destacar também que a instituição dessas e
outras regras monásticas estimularam a fundação de dezenas de
mosteiros em várias regiões do império romano.
Vida cenobítica no Ocidente
No contexto do desenvolvimento da vida cenobítica no Oci-
dente, destaca-se a influência de Santo Atanásio (295-373), que,
no ano 340, esteve em Roma acompanhado de dois monges, Isido-
ro e Amon, que, por sua vez, causaram grande admiração a quem
teve a oportunidade de compartilhar de sua companhia.

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112 © História da Igreja Antiga e Medieval

Com efeito, esse grande destaque conferido à figura de Santo


Atanásio, no contexto da vida cenobítica do Ocidente, evidencia-
-se, por exemplo, no grande influxo da obra Vida de Santo Antão
escrita por ele.
Nesse âmbito, destaca-se também a ação de outros líderes
religiosos que contribuíram para a disseminação da vida monásti-
ca por diversas regiões:
1) Norte da Itália - Santo Ambrósio (339-397) e Santo Eusé-
bio de Verceli (265-339).
2) Roma - São Jerônimo (347-419).
3) África - Santo Agostinho, que fomentou, de diversos mo-
dos, a vida monástica (Regula ad servus Dei).
4) França - Santo Martinho de Tours (316-397), que fundou
os mosteiros de Tours e Poitiers.
5) Marselha - Nessa região, Cassiano fundou, em 410, o
mosteiro de São Vitor.
6) Espanha - No século 4º foram fundados os mosteiros de
São Vitoriano, de São Milão de Cogulla e de São Félix de
Toledo.
7) Galícia - São Martinho de Dumio teve seu centro insti-
tuído em Braga; São Frutuoso, no Berzo e São Turíbio de
Liébana, nas Astúrias.
No Monacato das Ilhas Britânicas, na Irlanda, destacou-se a
ação das seguintes lideranças:
1) São Patrício (385-461), que fundou Armagh e Bangor.
2) São Columbano (543-615), monge de Bangor que, em
590, fundou, na França, o mosteiro em Anegray e Lu-
xeuil, além do mosteiro de Bobbio, na Itália.
3) São Fridolin e São Galo (550-640), que fundaram mostei-
ros na Alemanha com as características similares às do
monaquismo irlandês.
4) Na Escócia, o mosteiro mais célebre foi o de Hy.
Considerando-se a regulamentação da vida monástica, desta-
cam-se a codificação Regula Monachorum e Regula Communis, de
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 113

São Frutuoso e a Regula Monachorum, inspirada nas ideias de São


Bento, de São Pacômio e de Santo Isidoro de Sevilha (560-636).
Beneditinos
O Patriarca dos monges do Ocidente é São Bento de Núrsia
(480-543). Muito jovem ainda, ele retirou-se à solidão de Subiaco
e, depois de governar por alguns anos o mosteiro Vicovaro, retirou-
-se para Montecassino em 529, onde fundou um mosteiro com o
mesmo nome. Encarregou sua irmã, Santa Escolástica, da direção
dos mosteiros femininos. São Bento estruturou um código regula-
mentar (Regra) monástico que se tornou referência, muito embora
tenha absorvido influências de outras códigos ao longo do tempo. A
Regra beneditina demonstra um grande equilíbrio entre a vida pes-
soal e comunitária e entre as atividades espirituais e o cotidiano da
comunidade; obriga os monges à pobreza, à obediência, à castidade
e, aqui se expressa seu caráter inovador, à estabilidade no mosteiro,
que é presidido por um abade assistido por um prior.
Abordando a teologia e espiritualidade subjacentes ao mo-
naquismo, sobretudo no que diz respeito ao primeiro milênio da
era cristã, Cabra (2006, p. 29-30) afirma que:
Os padres tiveram uma estima extraordinária pelo monaquismo: e
sendo eles próprios monges, o promoviam com convicção.
Os grandes doutores orientais do século IV, Basílio e Gregório Na-
zianzeno eram monges. Atanásio refugiava-se com freqüência en-
tre os monges, tornando-se um dos mais eficazes promotores da
vida monástica. Dos grandes doutores ocidentais, Agostinho, Jerô-
nimo e Gregório Magno levaram vida monástica. Ambrósio era um
cantor da virgindade. Os grandes Padres, também casados, como
Gregório de Nissa e Hiláiro de Poitiers, olhavam com predileção o
monaquismo. Gregório de Nissa é considerado o sumo mestre da
mística dos monges orientais.
Mesmo conhecendo as limitações de alguns aspectos dessa forma
de vida, tais como: o perigo do fanatismo, a tendência a um exces-
sivo pessimismo quanto à natureza humana, a desvalorização fre-
qüente do estudo e da cultura, os Padres promoveram a sua estima
porque viam que naquela forma de vida eram buscados, e estavam
presentes, os grandes valores cristãos que a sociedade costumava
esquecer. Era indubitável que no monaquismo se cultivava a pureza

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114 © História da Igreja Antiga e Medieval

do ideal evangélico e se preocupava seriamente em seguir a Cristo,


mesmo nas formas mais radicais. Do mesmo modo que era eviden-
te que dessa forma de vida vinha um forte sustento e um firme en-
corajamento para as grandes decisões exigidas dos cristãos, tanto
nos momentos de excepcional provação quanto nas dificuldades da
vida cotidiana. Para os Padres, pastores e almas, o monaquismo re-
presentava uma provocação de energias espirituais para o povo de
Deus e uma provocação a um mundo que, se estava tornando cris-
tão, "não conhecia a via dos santos". Enquanto a sociedade pagã
em geral abominava o monaquismo como inimigo da vida, salvo
estóicas exceções, os Padres o apresentavam como a afirmação da
verdade cristã contra o ceticismo e o desempenho pagão, e como
prova da superioridade do cristianismo contra a decadência pagã.
Do monaquismo os padres contribuíram, juntamente com os monges,
para elaborar uma rica reflexão, teológica e espiritual, sobretudo nos
primeiros cinco séculos. Da meditação assídua da Palavra do Senhor e
da experiência que daí derivava surgiram diferentes modos de inter-
pretar a vida monástica. Nesse contexto de fervor de vida e de busca
de significado, nascem aquelas que podem chamar-se, de modo ge-
nérico, as teologias, e conseqüentes espiritualidades do monaquismo.

É nesta fase de organização e expansão da vida monástica,


tanto no Oriente como no Ocidente, que surgiram e se aperfeiçoa-
ram as diversas teologias e espiritualidades do monacato.
Cabra (2006, p. 31-46) destaca, entre essas referidas teolo-
gias e espiritualidades, as que são listadas a seguir:
1) Teologia e espiritualidade do deserto.
2) Teologia e espiritualidade do martírio.
3) Teologia e espiritualidade da imitação dos apóstolos.
4) Teologia e espiritualidade do sinal.
5) Teologia e espiritualidade da profecia.
6) Teologia e espiritualidade da "vida angélica".
7) Teologia e espiritualidade do sinal escatológico do "mun-
do futuro".
8) Teologia e espiritualidade das duas vias ou da "via real".
Benefícios do monacato
A instituição da vida monástica, pelo menos inicialmente,
não tinha outra finalidade a não ser a busca pela perfeição espiri-
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 115

tual daqueles que a abraçavam. No entanto, produziu estupendos


frutos para a Igreja e para a humanidade.
O significado que se atribuía ao martírio enquanto fomen-
tador do fervor religioso passou a ser atribuído também ao mo-
nacato. De fato, a austeridade dos monges não produziam menor
admiração que a constância dos mártires diante dos tormentos.
No Oriente, por exemplo, os monges representaram uma
poderosa ajuda à hierarquia eclesiástica na luta contra as heresias.
Dos mosteiros saíram, no Oriente e Ocidente, os bispos mais
respeitados, os quais contribuíram, poderosamente, para a con-
versão dos bárbaros.
A importância dos mosteiros no contexto em questão tam-
bém se reflete na medida em que são considerados o refúgio da
ciência e cultura durante os séculos de ignorância e barbárie da alta
Idade Média. Além disso, considerando as dimensões econômica,
social e cultural, a fundação de um mosteiro, quase sempre em re-
giões inóspitas, seguia o estabelecimento das bases da civilização e
da agricultura em lugares abandonados em que a terra nunca fora
cultivada. Muitas cidades europeias e povos, inclusive, tiveram sua
origem e organização iniciais ligadas à fundação de um mosteiro.

12. CISMAS E HERESIAS DOS PRIMEIROS SÉCULOS


As heresias e cismas estabeleceram-se já no contexto em
que se deu o advento da Igreja, momento em que os mais relevan-
tes princípios da doutrina cristã eram o monoteísmo e a doutrina
da Trindade (Mt 28, 19). O próprio Cristo já previra a chegada de
falsos mestres e doutores (Mc 13, 6).
Inicialmente, as heresias ocorriam no mundo judaico, conside-
rando-se o ambiente em que se desenvolviam. Com a expansão cristã,
entretanto, expandiram seu universo de ocorrência para outros contex-
tos religiosos e culturais, de modo especial no contexto greco-romano.

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116 © História da Igreja Antiga e Medieval

Frangiotti (1995, p. 6) define o termo heresia da seguinte


maneira:
A palavra heresia é de origem grega háiresis e significa escolha,
partido tomado, "corrente de pensamento", seita. Originariamen-
te, heresia é a acentuação de um aspecto particular da verdade. No
âmbito do cristianismo primitivo, é a negação ou pregação de um
evangelho diferente daquele pregado pelas autoridades apostólicas
(cf. 2Pd 2,1; Gl 1,8). É a pregação dos falsos profetas, falsos mestres
que introduzem no seio da comunidade doutrinas danosas, dúbias
ou que não se compaginam com a doutrina dos apóstolos (Inácio
de Antioquia, Ad Trallanos 6,1; Irineu, Adv. Haer. III, 12, 11-13).

Ribeiro (1989, p. 20), por sua vez, destaca o que se segue,


quando propõe sua conceituação acerca da heresia:
[...] todas as religiões soçobram no hábito e acabam por cansar.
Cansam à medida que seus adeptos perdem fervor. A fé se enfra-
quece, perde dinamismo. Deixa de ser contagiosa como era na ori-
gem. O homem, pois, tem necessidade de ressuscitar-se a si mes-
mo, de morrer e de reviver; daí serem-lhe necessárias as pulsões da
novidade, o empurrão aos cumes da perfeição. Por isso, São Paulo
dizia que 'é preciso que haja heresias' (I Cor 11,19).
As heresias, que brotaram em todos os séculos, surgiram desde o
século II, quando a mensagem cristã se revestiu de formas mais ela-
boradas e se repartiu em numerosas versões dentro de um mesmo
quadro doutrinário fundamental. Mas as primeiras heresias distin-
guem-se das heresias modernas. As heresias da Igreja primitiva se
prendem a especulações filosóficas e teológicas em torno dos dog-
mas cristãos, principalmente no tocante à Trindade e à natureza
divina e humana de Cristo. As heresias da Baixa Idade Média são de
cunho popular, tendo por base uma nova visão ética da Igreja e do
cristianismo como religião dominante na sociedade ocidental. As
heresias modernas confiam na razão e nos instintos, preocupando-
-se em acomodar e conciliar e mesmo adaptar a verdade cristã imu-
tável ao espírito movediço dos séculos.

A análise das referidas propostas por meio das quais se busca


conceituar a heresia, bem como situá-la no contexto do desenvolvi-
mento da Igreja, revela uma relação paradoxal entre seus conteúdos.
De fato, se por um lado as heresias são vistas como "dano-
sas" ao desenvolvimento da Igreja, por outro se colocam como útil
ferramenta a esse mesmo progresso.
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 117

Prova disso está na percepção de que os hereges, muitas


vezes membros ativos das comunidades cristãs (leigos, sacerdo-
tes, monges, bispos, patriarcas, filósofos e teólogos), por um lado
provocaram cismas e divisões, com suas reflexões e investigações
filosóficas e teológicas, e por outro ajudaram muito na elaboração
da ortodoxia cristã, sendo que muitas dessas reflexões e investi-
gações se mantiveram no âmago exclusivo dos assuntos da fé, en-
quanto outras influenciaram também a vida política e cultural dos
ambientes em que o Cristianismo esteve ou está presente.
Somam-se a essa percepção as controvérsias que se origina-
ram no seio das comunidades jerosolimitanas apontadas por Fran-
giotti (1995, p. 7-8), conforme o que se descreve a seguir:
Uma leitura da história do cristianismo dos primeiros séculos, con-
duzida de modo tradicional, numa ótica dogmatizante, sem espírito
crítico, criou, na mente da maioria dos cristãos, uma imagem ir-
real da "Igreja primitiva". Essa imagem corresponde àquela de uma
Igreja que se fazia e vivia em harmonia, na mais intensa caridade e
fraternidade, uma espécie de Éden cuja astúcia e malícia veneno-
sas dos hereges corromperam.
Em primeiro lugar, é preciso observar que não havia, propriamen-
te, uma "Igreja" no sentido que se dá hoje a este termo. Segundo,
sempre existiram, desde os tempos da vida de Jesus com seus dis-
cípulos, controvérsias e desentendimentos tanto em nível doutri-
nário quanto em nível disciplinar. Não é verdade, portanto, o que
dizia Egesipo, pelos meados do século II, a respeito da pureza e da
perfeição da "Igreja apostólica": "No tempo dos apóstolos, a Igreja
permaneceu como uma virgem pura e sem manchas, mas, depois
da morte dos apóstolos, o erro ímpio recebeu um princípio de or-
ganização para o engano daqueles que ensinavam outra doutrina".
Ainda hoje, cristãos de todas as tendências se reportam à Igreja pri-
mitiva como a um "encanto", para encontrar nela uma forma de fé
fundamental, pura, exemplar. Basta uma leitura menos superficial
de alguns textos tidos como mais antigos do cristianismo, para se
desfazer esta concepção mítica, idílica da "Igreja primitiva". Tome-
mos, por exemplo, a situação da comunidade de Corinto, retratada
num dos documentos mais antigos, escrito no ano de 56: a comu-
nidade estava dividida; grupos brigavam entre si reivindicando cada
um a supremacia da pertença a este ou àquele apostolo (eu sou de
Pedro, eu sou de Paulo...); escândalos envergonhavam a comunida-
de: incesto, julgamento entre cristãos em tribunais pagãos e vários
tipos de imoralidade; desorganização e desordem nas assembléias

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118 © História da Igreja Antiga e Medieval

litúrgicas nas quais se refletiam as divisões de classes sociais. Mas,


já uns seis ou sete anos antes dessa época, foi necessária a rea-
lização de uma grande assembléia, conhecida como "concílio de
Jerusalém", para resolver problemas que afligiam as primeiras co-
munidades e que revelam as divisões e tendências opostas entre
helenistas e judaizantes. O livro dos Atos dos Apóstolos relata, no
capítulo 6, 1-7, os conflitos na organização interna da comunidade:
"[...] os fiéis de origem grega começaram a queixar-se contra os fiéis
de origem hebraica" (6,1). O diácono Estevão, do grupo dos hele-
nistas, é acusado, com muita probabilidade, não só por homens do
Templo e pelos chefes da sinagoga, mas também pelos judaizantes,
de blasfemar contra Moisés e contra Deus, isto é, de não seguir
as práticas judaicas, de ter compreendido o ensino de Jesus como
caminho de liberdade, subvertendo assim a Lei e os costumes ju-
daicos, criticando as instituições sagradas.

A apreciação das observações de Ribeiro (1989) e Frangiotti


(1995) desmistificam a abordagem da heresia enquanto prática,
na medida em que a apresentam como um "mal necessário" e
"inevitável", útil pela tendência de renovação que pode provocar
e esperada, tendo em vista a ideia de que uma época de profissão
perfeita do Cristianismo não é avalizada pela história registrada
inclusive nos relatos bíblicos.
Levadas em conta essas características que conceituam e si-
tuam as heresias no contexto e dinâmica em que se desenvolveu a
Igreja, é bastante conveniente apresentar as principais categorias
em que se classificam essas heresias.

Heresias judaizantes
As heresias judaizantes são definidas, de modo geral, como
a incidência, da parte dos chamados "judeus-cristãos" (século 1º),
que não aceitaram a universalidade do Cristianismo e defenderam
a vigência da Lei Mosaica, em erro caracterizado como a inobser-
vância à doutrina e regras vigentes.
As correntes ligadas a essa modalidade herética dividem-se
em duas categorias principais: a dos que se limitavam a perma-
necer fiéis à Lei de Moisés e os que ousaram impor a observân-
cia dessa lei, sobretudo a circuncisão, aos cristãos provenientes
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 119

do paganismo. Essas duas correntes principais abrigavam, em seu


interior, várias tendências judaizantes, cada uma com suas carac-
terísticas específicas e entre as quais se destacam as seguintes:
1) Tendência judaizante radical – A dinâmica dessa tendên-
cia era marcada pelo esforço em persuadir os cristãos
convertidos, advindos do paganismo e da gentilidade, a
assumir todas as obrigações da Lei Judaica, como a ob-
servância do sábado, a circuncisão, os jejuns etc.
2) Tendência judaizante moderada – Proveniente de gru-
pos mais tolerantes, cuja liderança esteve a cargo de
Pedro e Tiago; essa tendência não exigia a circuncisão,
mas recomendava a abstenção de carnes sufocadas ou
imoladas nos cultos pagãos.
3) Tendência judaizante helenista – Proveniente do grupo
liderado por Paulo e Barnabé, a tendência em questão
não se alinhava à ideia de submeter os cristãos converti-
dos, advindos do paganismo, às normas judaicas.
4) Tendência helenista radical – Os helenistas radicais rejei-
tavam toda tradição judaizante, chegando até a partici-
par de cultos pagãos.
Após a destruição de Jerusalém, no ano 70, e até meados
do século 2º, o número de cristãos de origem judaica foi supera-
do pelo de cristãos procedentes do paganismo do mundo greco-
-romano. Foi em meio à dinâmica deste grupo, ainda influenciado
por elementos e ideias pagãos, a despeito da conversão ao Cris-
tianismo, que nasceram as primeiras heresias, que por sua vez re-
sultaram do amálgama de elementos cristãos, judaicos e pagãos.
Entre os grupos pagãos convertidos mencionados anteriormente,
destacam-se os ebionitas (também chamados de "pobres"), que
reconheciam Jesus como Messias, mas não como Filho de Deus;
os cerintianos (seguidores de Cerinto), que acreditavam no Cristo,
mas não que ele fosse Filho de Deus; os elcessitas (seguidores de
Elxai), que só aceitavam algumas partes do Antigo Testamento e os
nicolaítas, grupo ligado a Nicolau, que fundou uma seita com ten-
dências gnósticas e libertinas, grupo que se estabeleceu na Ásia
Menor.

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120 © História da Igreja Antiga e Medieval

Gnosticismo
O termo "gnosticismo" refere-se a um movimento anterior
ao Cristianismo, cuja origem etimológica nos remete ao sentido do
termo gnosis (ciência). As primeiras influências desse movimen-
to na dinâmica do Cristianismo deram-se nas chamadas comuni-
dades paulinas, a despeito de que Paulo, nesse contexto, previne
seus fiéis da "falsa gnose" (Cl 2, 2).
A gnose, com efeito, é considerada, de acordo com Ribei-
ro (1989, p. 24): "[...] a heresia mais complexa, que compreende
elementos filosófico-religiosos orientais e cristãos", afirmação que
define o termo e, ao mesmo tempo, determina sua importância no
contexto do desenvolvimento do Cristianismo.
Ribeiro (1989, p. 24-25), em seu discurso sobre a gnose, ain-
da afirma o seguinte:
Os gnósticos não compunham uma seita, porém vários movimentos
sincréticos que absorviam todas as tradições religiosas da época: a
filosofia helênica (sobretudo Platão), o dualismo persa, as doutrinas
dos cultos de mistério (Elêusis e Dionísio), o judaísmo e o cristianis-
mo. Ao contrário das heresias judaicas, apegadas ainda às tradições
mosaicas, os gnósticos eram pagãos que, aceitando a fé cristã, que-
riam nela introduzir suas concepções pessoas e suas teorias filosó-
ficas. Esta heresia sempre esteve em contínua evolução, mas os di-
versos sistemas dela nascidos têm um ponto em comum, que é o
conceito de que entre Deus e a matéria existem uma série de seres
intermediários que tornam possível ao homem alcançar a divindade.

Dessa forma, o movimento ligado à prática da gnose carac-


terizava-se pela ação de filósofos convertidos ao Cristianismo que
pretendiam introduzir as verdades da fé no âmbito das especula-
ções filosófico-religiosas, na intenção de "elevar" o Cristianismo
do "plano inferior" da fé ao "plano superior" da gnose.
Com efeito, esse movimento gnóstico pré-cristãos prometia,
portanto, um conhecimento mais profundo da divindade; um ca-
minho seguro para libertar-se do pecado; a solução do problema
do mal; o dualismo e o problema da criação, o demiurgo.
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Entre as principais correntes do Gnosticismo, destacam-se


as seguintes:
1) Gnose oriental (Antioquia – Saturnil).
2) Gnose helenística (Alexandria – Basilides).
3) Gnose propriamente cristã (Marcião – Carpócrates).
4) Gnose persa ou maniqueísmo (Manes, +277).
Conhecidos os contornos fundamentais do Gnosticismo,
abordaremos no item seguinte outro movimento herético: o Mon-
tanismo ou milenarismo.

Montanismo ou milenarismo
O Milenarismo representou a esperança e crença em um
eventual e próximo retorno de Cristo ao mundo para fundar um
"reino milenar" com seus eleitos. Ao final do transcurso de mil
anos da fundação desse reino, ocorreria a ressurreição geral e o
juízo universal.
Seu advento está ligado à ação de Montano, sacerdote pa-
gão da deusa Cibeles que, convertido ao Cristianismo, se desviou
logo da fé ortodoxa, elaborando e introduzindo suas ideias heréti-
cas na Frígia, região da Ásia Menor, em torno do ano 150.
O sacerdote Montano considerava a si mesmo como instru-
mento do Espírito Santo para conduzir a Igreja à perfeição. Sua dou-
trina destacava o iminente retorno de Cristo, que, por sua vez, o teria
enviado por meio do Espírito Santo para estabelecer o reino milenário
na Terra. Essa doutrina baseava-se no rigorismo moral (inicialmente,
os montanistas pregavam a renúncia ao matrimônio, o jejum rigoroso
três dias por semana e proibiam que se fugisse diante de eventual
possibilidade de submissão ao martírio) e no rigorismo penitencial
(admitiam o poder da Igreja para perdoar os pecados, mas recomen-
davam que não se fizesse uso desse poder, pois entendiam que os
fiéis, contando com a alternativa de receber o perdão da Igreja, po-
deriam incorrer em negligência deliberada em relação à observância
das regras da Igreja às quais se submetiam). Os montanistas também

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122 © História da Igreja Antiga e Medieval

eram conhecidos pelo nome "pneumáticos" (espirituais) e, a despeito


de terem sido condenados, subsistiram até o século 8º.

Heresias antitrinitárias
Foi em meados do ano 180 d.C. que o escritor cristão Teófilo
de Antioquia utilizou pela primeira vez a palavra 'tríade' ou 'trinda-
de' para explicar a fé num só Deus em três pessoas que configura o
dogma da Santíssima Trindade. Com efeito, segundo esse dogma,
a Trindade Sagrada representa um só Deus (em outras palavras, o
Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus).
A oposição a esse dogma é o que define mencionada heresia
antitrinitária, cujas primeiras ocorrências caracterizaram-se pela
negação da divindade de Cristo a propósito da dificuldade encon-
trada pelos indivíduos que incorreram na prática dessas heresias
em conciliá-la com o monoteísmo.
A origem das heresias antitrinitárias está ligada aos seguin-
tes movimentos:
• Monarquianismo ou "unidade de Deus" – O fundamento
desse movimento consiste no sacrifício da divindade do
Verbo e do Espírito Santo ou na negação da distinção real
entre as três Pessoas Divinas em favor da ideia que no-
meia o movimento, qual seja a da unidade de Deus.
• Monarquianismo dinamista ou adocionista – Esse movi-
mento foi criado por Teodoto, Teodoto "O Jovem" e Paulo
de Samosata. O fundamento do movimento está ligado à
crença de que Cristo foi um homem puro que nasceu mi-
lagrosamente da Virgem Maria. Além disso, no batismo,
Deus infundiu a Cristo um poder (dynamis) sobrenatural e
o adotou por Filho (daí a nomenclatura adocionista). Teo-
doto foi condenado no ano 190 pelo papa Vítor, mas a he-
resia sobreviveu, tendo, inclusive, dado origem a outras.
• Monarquianismo modalista ou patripasiano - Movimento
criado por Noeto de Esmirna, Praxeas e Epígono que en-
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 123

sina que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo são
uma só e mesma Pessoa. Esta única Pessoa, existente em
Deus, manifesta-se de diversos modos (o que explica a
nomenclatura modalista): como Criador, como Redentor
(o Pai é quem padece = patripasianos), como Santificador
etc. Segundo essa perspectiva, foi o Pai que se encarnou
e que, ao nascer, toma o nome de Filho (que morre na
cruz), mas continua na condição de Pai.

Controvérsias penitenciais (Cismas)


A Igreja primitiva (séculos 2º ao 4º), entendida e organizada
como "comunidade dos santos", exigia de seus fiéis um alto rigor
moral. O ideal era conservar a inocência batismal até a "vinda do
Senhor". Consequência disso foi uma práxis penitencial rigorista e
uma disciplina muito exigente para a vida cotidiana dos cristãos.
A despeito disso, a falta de uma práxis penitencial uniforme
deu origem a muitos abusos como no caso de bispos que isentavam,
perpetuamente, os réus da penitência de pecados capitais (mortais),
sobretudo a idolatria, o homicídio e o adultério. Sob essa perspectiva,
houve até quem negasse à Igreja o poder de perdoar os pecados.
Foi neste contexto que se deu o advento das chamadas con-
trovérsias penitenciais, algumas das quais tendo provocado gran-
des cismas, como, por exemplo, os mencionados a seguir:
1) Cisma de Hipólito, caracterizado por um intenso "rigoris-
mo penitencial".
2) Cisma de Novaciano e a chamada "questão da readmis-
são dos apóstatas", em que alguns dos indivíduos que
padeceram pela fé se opuseram à reconciliação.
3) Cisma de Nova e Felicíssimo em Cartago (250).
4) Cisma de Melécio (306), em que também esteve presen-
te um excessivo rigorismo.
5) Cisma de Heráclio em Roma (308).
6) Outros eventos em que se pretendeu a reconciliação
com a Igreja negligenciando a penitência.

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13. HERESIAS, CISMAS E CONCÍLIOS DOS SÉCULOS 4º


AO 7º
As lutas dogmáticas estiveram presentes na dinâmica da
Igreja durante o período entre os séculos 4º e 7º, situação essa
que se explica pelo fato de que muito embora o Cristianismo tenha
se expandido por todas as esferas do Império Romano, os novos
cristãos não deixaram seus costumes pagãos nem abandonaram
seu modo de pensar anterior à conversão.
Nesse item do material, conduziremos a discussão acerca do
advento e desenvolvimento dos cismas e concílios ocorridos entre
os séculos 4º e 7º, além de revisitarmos a abordagem das heresias,
tais como as heresias monarquianas dos séculos 2º e 4º, que deram
origem a várias heresias trinitárias e a questões que colocaram em
xeque a identidade da Igreja, bem como as heresias soteriológicas,
originárias do contexto marcado pela tensão entre esses conceitos
tão caros à dinâmica da igreja: os da liberdade e os da disciplina.

Controvérsias trinitárias: o arianismo


Para compreender a essência das chamadas controvérsias
trinitárias, em especial o arianismo, é fundamental conhecer a fi-
gura de Ário, personagem importante no contexto do desenrolar
dessas controvérsias.
Ário nasceu na Líbia, em 256. Foi presbítero em Alexandria.
Tinha influência sobre o clero e sobre as virgens por conta de seu
ascetismo e oratória. Influenciado pela heresia subordinacionista
(segundo a qual o Filho é inferior ao Pai), negava a eternidade do
Verbo, a consubstancialidade do Filho com o Pai e a divindade do
Filho. Afirmava que o Filho é uma criatura do Pai e que o Filho é o
instrumento de que se serviu o Pai para a criação do mundo, he-
resia esta que atacava o núcleo da doutrina cristã, pois ao afirmar
que Jesus, o Verbo, não era Deus, comprometia a obra da reden-
ção realizada por Jesus Cristo.
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Ário foi condenado no Concílio de Alexandria (321), mas foi so-


mente no Concílio de Niceia (325) que a Igreja tomou posição oficial
sobre a principal questão relacionada às ações do líder. Esse posicio-
namento, a propósito de intensa e prolongada discussão, refletiu-se
na adoção do termo homousios (consubstancial) para expressar a
doutrina ortodoxa, segundo a qual o Filho é consubstancial ao Pai,
ou seja, é da mesma natureza do Pai (símbolo de Niceia).
O Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) confirmou a
fé nicena (símbolo niceno-constantinopolitano) e a divindade do
Espírito Santo, além de condenar várias heresias como as relacio-
nadas à ação dos arianos, macedonianos, fotinianos, apolinaristas,
sabelianos etc.
Apesar das condenações, os arianos ainda continuaram
atuando por vários séculos, inclusive mediante as heresias cristo-
lógicas, tema que abordamos no próximo item.

Controvérsias cristológicas: controvérsias a respeito de Cristo


No Concílio de Niceia, foi combatido, conforme o que se dis-
se anteriormente, o chamado "erro ariano", que questionava a di-
vindade do Filho de Deus. Essa heresia, no entanto, não detinha a
exclusividade do questionamento da figura do Cristo, na medida
em que outras heresias foram criadas para abordar, por exemplo, e
em especial, a questão da natureza humana e divina de Jesus Cris-
to. Entre essas heresias que se desenvolveram no Oriente cristão,
destacam-se as seguintes:
1) Apolinarismo - Apolinário de Laodiceia, que fora ad-
versário do arianismo, comprometeu a humanidade de
Cristo para colocar a salvo a sua divindade, afirmando
que a natureza humana de Cristo era incompleta e que
o Verbo habitava na humanidade de Jesus como num
templo. Entre a natureza humana e a divina, em Jesus,
existia, segundo o apolinarismo, só uma união moral.
Esta heresia foi condenada no Concílio de Constantino-
pla, em 381.

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126 © História da Igreja Antiga e Medieval

2) Nestorianismo – Heresia que acentua o caráter humano


de Cristo em contraposição aos teólogos de Alexandria
que acentuavam o seu caráter divino e que se funda-
mentou na obra de Nestório, monge antioqueno e Pa-
triarca de Constantinopla em 428. A doutrina nestoriana
negava à Virgem o título de "Mãe de Deus". Segundo
o Nestorianismo, a Virgem é, meramente, mãe do "ho-
mem Jesus", o que implica reconhecer que o Verbo se
serviu de Jesus como um "instrumento". Como já se dis-
se aqui, a divindade do Verbo habitava em Jesus como
num "templo". Jesus e o Filho de Deus seriam, portanto,
duas pessoas distintas. Nestório foi condenado no Con-
cílio de Éfeso no ano 431. Esta heresia expandiu-se pela
África, Índia e vários outros países e hoje ainda subsiste
no Iraque, Síria, Egito, na Igreja Copta e na Índia junto
aos melusianos.
3) Monofisismo - O Monofisismo se refere à heresia segun-
do a qual no Cristo havia uma só natureza e se filia à ação
de Eutiques, monge de Constantinopla, que combatera
o nestorianismo. O Monofismo defende a idéia de que,
em Cristo, existem duas naturezas antes do processo em
que se dá a união da divindade com a humanidade. Após
essa união, subsiste uma "só natureza", o que configura
a doutrina monofisista, segundo a qual Cristo não tem a
mesma natureza que os demais homens. Esse "erro" foi
condenado no Concílio de Calcedônia (451) por meio da
"Carta Dogmática" (Tomus ad Flavianum) de Leão I. No
Egito, os monofisistas receberam o nome de coptas, e os
ortodoxos, melquistas (fiéis ao imperador). Na Síria, os
monofisistas tomaram o nome de seu principal repre-
sentante, Jacó Baradais, daí a denominação "jacobitas".
Atualmente, o grupo dos monofisistas subsiste e conta
com pelo menos 15 milhões de adeptos.
4) Monotelismo – Heresia cujo fundamento, que se opõe à
ortodoxia cristã, reconhecia no Cristo duas vontades, que
por sua vez correspondem às suas duas naturezas: a divi-
na e a humana. A criação do Monotelismo é atribuída a
Sérgio, patriarca de Constantinopla entre os anos de 610
e 638, que, para atrair os monofisistas, redigiu uma nova
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 127

fórmula de fé que pudesse ser aceita pelos católicos e


pelos monofisistas. Essa fórmula configura a doutrina do
movimento pela qual, em linhas gerais, se defende que,
em consequência da união pessoal existente em Cristo,
deveria existir também uma só energia e uma só vontade,
daí a denominação "monotelismo". O patriarca Sérgio foi
condenado por ocasião do Concílio Ecumênico III de Cons-
tantinopla, realizado entre os anos 680 e 681.
Observadas as controvérsias cristológicas, abordaremos no
item seguinte um outro conjunto de contestações da doutrina cris-
tã ortodoxa: as chamadas controvérsias soteriológicas.

Controvérsias soteriológicas
Enquanto no Oriente desenvolviam-se as lutas trinitárias e
cristológicas, no Ocidente ventilavam-se questões prático-religio-
sas que tinham por objeto a Igreja como instituição salvífica (dona-
tismo), a condição originária do homem e as relações entre a graça
e a liberdade humana (pelagianismo e semipelagianismo).
Essas discussões remetem a reflexão ao conceito da Sote-
riologia, bem como às doutrinas que, no contexto mencionado,
se filiaram a esse conceito. Com efeito, a Soteriologia, segundo o
Dicionário Houaiss (2009), refere-se à "parte da teologia que trata
da salvação do homem" ou à "doutrina da salvação da humanida-
de por Jesus Cristo". E entre as doutrinas criadas sob esse funda-
mento, destacam-se o Donatismo e o Pelagianismo, cuja natureza
é detalhada nos itens seguintes.
Donatismo
O Donatismo expressou-se em doutrinas rigoristas, rebatiza-
ção dos hereges e novacionismo, que faziam depender a eficácia
dos Sacramentos não somente da fé ortodoxa, mas também da
moralidade da autoridade que os ministra (dispensa). Os adeptos
dessas doutrinas erravam também no que diz respeito à organiza-
ção da Igreja, a qual não admite pecadores em seu seio. O cisma

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128 © História da Igreja Antiga e Medieval

donatista foi solucionado definitivamente a propósito de sua con-


denação por ocasião do Sínodo de Cartago (411).
Pelagianismo
O Pelagianismo refere-se à doutrina elaborada contra os
cristãos que se desculpavam pela vida pouco fervorosa na debili-
dade da natureza humana; deve sua denominação à obra de Pelá-
gio (354-437), monge inglês que viveu em Roma.
Pelágio foi um asceta com vida austera, que, ao perceber o
estilo de vida mundana e imoral de muitos cristãos, propôs uma
doutrina segundo a qual o homem, com esforço próprio, pode
praticar as virtudes e fugir de todo pecado, prescindindo da ajuda
divina. Dessa forma, pregava uma doutrina extremista, pela qual
se nega a existência do pecado original e se reconhece somente a
existência dos pecados pessoais.
Outras posições marcam a configuração dessa doutrina, a
saber: as crianças recém-nascidas encontram-se no mesmo esta-
do em que se encontrava Adão antes de pecar; o pecado original
afetou intrinsecamente Adão e seus descendentes somente como
"mau exemplo"; a graça não é necessária para a salvação; o ho-
mem pode salvar-se por suas próprias forças e a redenção de Cris-
to consiste no "bom exemplo" que deu aos homens.
Segundo Ribeiro (1989, p. 117- 118):
A questão pelagiana passou para a história como uma questão so-
bre o pecado original. Na realidade, é uma questão sobre o modo de
conceber a pessoa humana, uma questão antropológica. Tratava-se
de movimento de idéias e práticas que atravessavam a cristandade
na primeira metade do século V. Um movimento de coerência com
o evangelho que recolocava a ascese e o empenho pessoal em to-
dos os setores da vida humana, não os deixando relegados como
privilégio dos que viviam nos mosteiros. Isso pode-se verificar num
texto do próprio Pelágio no qual aparece com evidência sua ver-
dadeira preocupação: "Em vez de considerar como privilégio os
mandamentos de nosso Rei, [...] bradamos a Deus, na indolência
de nossos corações: 'Isso é difícil de duro demais. Não podemos
fazê-lo. Não passamos de pobres homens dominados pela fraque-
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 129

za da carne'. Desvario cego e blasfêmia presunçosa! Imputamos a


Deus onisciente a culpa de ser duas vezes ignorante: de ignorar sua
própria criação, e de ignorar seus próprios mandamentos. Como se
Deus, esquecido da fraqueza dos homens que são obras suas, lhes
impusesse mandamentos que não podem obedecer. Ao mesmo
tempo (perdoa-nos Deus) imputamos injustiça ao Justo, e cruelda-
de ao Santo - injustiça, queixando-nos de que manda o impossível;
crueldade, imaginando que alguém possa ser condenado por causa
de um mandamento que não podia observar. Assim, Deus se nos
afigura (blasfêmia enorme!) mais preocupado com o nosso castigo
do que com a nossa salvação [...]. Ninguém conhece o tamanho de
nossa força melhor do que aquele que nos deu tal força [...]. Ele não
pretende exigir nada impossível, pois ele é justo; nem condenará
a ninguém por faltas que não podia evitar, pois Ele é santo". Em
vez de se lamentar e ficar aguardando graças especiais, o homem
deve assumir corajosamente a prática das virtudes, é o que Pelágio
parece querer dizer.

O Pelagianismo, cujo teor é descrito por Ribeiro (1989) no


trecho citado, foi combatido por vários Padres e papas da Igreja
e condenado no Sínodo de Cartago de 411, bem como em outros
sínodos posteriores.

14. PADRES APOSTÓLICOS E ESCRITORES ECLESIÁS-


TICOS (SÉCULOS 1º AO 3º)
O conteúdo desse item consiste, como o seu próprio título
sugere, na abordagem das linhas gerais que configuram a obra dos
chamados Padres Apostólicos, bem como de outros escritos pro-
duzidos no período em questão.

Padres apostólicos
Os chamados Padres Apostólicos foram discípulos dos após-
tolos que atuaram como escritores, tendo sido os seus escritos
produzidos e divulgados após o advento do Novo Testamento, em
especial no período que se estende do final do século 1º até a
primeira metade do século 2º. A obra inclui importantes escritos
de tipo pastoral para edificação e instrução (Koiné, em grego vul-
gar), importância essa que é reconhecida por Bihlmeyer e Tuechle
(1962, p. 172), segundo os quais essa obra constitui:

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130 © História da Igreja Antiga e Medieval

[...] a fonte mais antiga depois dos escritos neotestamentários, as-


sumem para a história do Cristianismo primordial, da sua doutrina,
da sua constituição, da piedade e dos costumes, uma importância
absolutamente singular.

A produção dos Padres Apostólicos compreende inúmeros


escritos produzidos por escritores também diversos, conforme o
que se enumera a seguir:
1) Didaké (90-100) – Também conhecida como a "Doctri-
na apostolorum", essa obra foi redigida em Antioquia e
se trata de uma espécie de manual de religião que con-
tém um catecismo moral (capítulos de 1 a 6), a chamada
doutrina das duas vias (a da vida e a da morte), além de
especificações rituais.
2) Clemente Romano (95) – Esse escritor é autor da "Carta
à Igreja de Corinto", em que se relata a relação entre os
dois testamentos, o conceito de "Igreja Povo de Deus",
a composição da assembleia e a distinção entre presbí-
teros-leigos. A obra foi redigida em nome da Igreja de
Roma e dirigiu-se contra infiéis que se recusavam a pres-
tar obediência aos presbíteros.
3) Pseudo-Barnabé (140) – Carta redigida em Alexandria
que marca posição contrária às "objeções judaicas" em
relação ao Cristianismo.
4) Inácio de Antioquia (+110) - Terceiro bispo de Antioquia, foi
levado a Roma para o martírio. Durante sua viagem de An-
tioquia a Roma, escreveu sete cartas endereçadas a igrejas
pelas quais haveria de passar (Éfeso, Magnésia, Tralle, Fila-
délfia, Esmirna, Roma) e uma dirigida a Policarpo de Esmirna.
5) Policarpo de Esmirna (130) - Discípulo de João, escreveu
uma epístola pastoral à comunidade de Filipos da Mace-
dônia, documento que representou uma exortação moral
da doutrina, da organização eclesial e da caridade cristã.
6) Papias (135) – Foi bispo de Hierápolis, na Frígia e discípu-
lo de São João. Compôs a obra "Explicação das sentenças
do Senhor", coleção de escritos que discriminavam tra-
dições orais que encerravam palavras de Cristo.
7) Hermas (140) - Judeu de origem, escreveu uma espécie
de "apocalipse" intitulado "Pastor".
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 131

8) Carta a Diogneto (séculos 2 – 3 d.C.) – Documento em


que se descreve a vida dos cristãos. A ideia que se tem
da figura do cristão se evidencia nesse documento no
trecho em que se diz o seguinte: "o que é a alma no cor-
po, isso são os cristãos no mundo".
Além da obra dos Padres Apostólicos, as chamadas apologias
também marcaram a produção escrita desse contexto.

Apologistas
Os cristãos, durante os três primeiros séculos, foram objeto
de ódio da parte do Estado, dos intelectuais e do povo.
As apologias, produzidas ao longo do período entre os séculos
2º e 4º, após a morte de Juliano, o Apóstata, em 363, não configura-
ram obras sistemáticas ou tratados de religião, mas obras polêmicas
produzidas para refutar as objeções de seus adversários e, por isso,
dirigiam-se contra e hereges oponentes do Cristianismo.
Os principais apologistas foram:
• Gregos: Quadrato (123-124), Aristides (136-161), Tacia-
no (170), Aristo de Pela (140), Teófilo de Antioquia (180),
Melitão de Sardes (170), Atenágoras (177) e Justino (165).
• Latinos: Minúcio Félix (200), Tertuliano, Arnóbio de Sicca
(300) e Lactâncio (+317).

Apócrifos (séculos 2º ao 4º)


O termo "apócrifos" ("escondidos" ou "falsos") refere-se aos
escritos, heréticos ou ortodoxos (alguns dos quais suprem as lacu-
nas da Bíblia sobre temas como a infância de Jesus e a morte de
Maria Santíssima), que se apresentam, falsamente, como sendo
de origem bíblica ou canônica. A maioria desses escritos, na verda-
de, é de origem gnóstica.
Os principais escritos apócrifos conhecidos são os seguintes:
1) Símbolo dos Apóstolos ou Credo.

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2) Proto-Evangelho de São Tiago.


3) Evangelho segundo os Hebreus.
4) Atos de Paulo e Tecla.
5) Atos de Tomé.
6) Apocalipse de Pedro.

Outros escritos dos séculos 2º e 3º


Outros autores, além dos listados anteriormente, merecem
destaque no contexto em questão, quais sejam:
• Gregos: Panteno, Clemente Alexandrino, Orígenes, Dioní-
sio de Alexandria, Gregório Taumaturgo, Hipólito e Irineu.
• Latinos: Tertuliano, Minúcio, Arnóbio, Lactâncio e Cipriano.
Foi nesse mesmo contexto em que se deu a produção escrita
abordada até aqui, a qual desenvolveu a organização e a definição
dos contornos do chamado Novo Testamento, temática essa que é
abordada no próximo item.

A formação do Novo Testamento


A propósito do processo de construção do Novo Testamen-
to, Drane (1985, p. 86-87) propõe um esquema cronológico (com
datas aproximadas) que detalha a evolução desse processo, bem
como do uso que se faz dos escritos bíblicos do Novo Testamento,
esquema esse que é apresentado a seguir:
1) Ano 100 d.C. - Diversas partes do Novo Testamento fo-
ram escritas neste tempo, mas não estavam ainda reuni-
das, nem eram definidas como "Escritura". Autores cris-
tãos primitivos, como Policarpo e Inácio, fazem citações
dos evangelhos e das Cartas de Paulo do mesmo modo
que o fazem em relação a outros escritos e fontes orais.
As Cartas de Paulo foram reunidas definitivamente no
final do século 1º. Os escritos de Marcos e Lucas, por sua
vez, foram reunidos em meados do ano 150 d.C.
2) Ano 200 d.C. - Nesse momento, o Novo Testamento,
usado na igreja de Roma (o "Cânon de Muratori"), com-
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 133

preende os seguintes escritos: os quatro evangelhos; os


Atos; as Cartas de Paulo (Romanos; Coríntios, I e II; Gá-
latas; Efésios; Colossenses, I e II; Tessalonicenses, I e II;
Timóteo, Tito e Filêmon); Tiago, I e II; João; Judas; o Apo-
calipse de João; o Apocalipse de Pedro; a Sabedoria de
Salomão e O Pastor de Hermas (para ser usado no culto
particular, mas não no culto público).
3) Ano 250 d.C. - Nesse contexto, o Novo Testamento, uti-
lizado por Orígenes, compreende as seguintes obras: os
quatro evangelhos; Atos; Cartas de Paulo (Romanos, I e
II; Coríntios; Gálatas; Efésios; Colossenses, I e II; Tessalo-
nicenses, I e II; Timóteo; Tito e Filêmon); Pedro I; João I;
Apocalipse de João. Outras obras que configuraram alvo
de discussão no período e também merecem ser desta-
cadas são as seguintes: Hebreus, Tiago, Pedro II, João II
e III, Judas, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Dou-
trina dos Doze Apóstolos (Didaqué) e Evangelho dos He-
breus.
4) Ano 300 d.C. - O Novo Testamento, usado por Eusébio
nesse período, era composto das seguintes obras: os
quatro evangelhos; Atos; Cartas de Paulo (Romanos, I e
II; Coríntios; Gálatas; Efésios; Colossenses, I e II; Tessalo-
nicenses, I e II; Timóteo; Tito e Filêmon); Pedro I; João I;
Apocalipse de João (de autoria duvidosa). As obras Tia-
go, Pedro II, João II e III e Judas são discutidas, mas bem
conhecidas. O Pastor de Hermas, a Carta de Barnabé, o
Evangelho dos Hebreus, o Apocalipse de Pedro, os Atos
de Pedro e a Didaqué, por sua vez, devem ser excluídos.
5) Ano 400 d.C. – O Novo Testamento, recomendado para
o Ocidente pelo Concílio de Cartago, era composto pelos
quatro evangelhos; Atos; Cartas de Paulo (Romanos, I e
II; Coríntios; Gálatas; Efésios; Colossenses, I e II; Tessalo-
nicenses, I e II; Timóteo; Tito e Filêmon); Hebreus; Tiago;
Pedro I e II; João I, II e III; Judas e Apocalipse.

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134 © História da Igreja Antiga e Medieval

15. PADRES DA IGREJA E ESCRITORES ECLESIÁSTICOS


DOS SÉCULOS 4º AO 7º
Os Padres da Igreja ou Santos Padres foram escritores que a
Igreja reconhecia, no período indicado no título desse item, como
representantes da tradição ortodoxa, mesmo que não ocupassem
a posição de bispos. Integrava esse grupo os escritores que preen-
chiam as seguintes condições: defesa da doutrina ortodoxa; santi-
dade; aprovação da Igreja; antiguidade.
Os Padres da Igreja ou Santos Padres de maior destaque no
período foram os seguintes:
• Escritores gregos ou orientais (intensamente especulati-
vos) - Eusébio de Cesareia (265-340), considerado o pai
da História Eclesiástica; Santo Atanásio (295-373), consi-
derado, por sua vez, o pai da ciência teológica; São Cirilo
de Jerusalém (313-387); São Basílio, o Grande (331-379);
São Gregório Nazianzeno (330-390); São Gregório de Nis-
sa (334-394); Dídimo, o Cego (+395); Teodoro de Mop-
suéstia (+428); São João Crisóstomo (+407); São Cirilo de
Alexandria (+444) e Sofrônio de Jerusalém (+638).
• Escritores latinos ou ocidentais (menos especulativos que
os orientais; eram mais voltados para as questões práti-
cas e disciplinares) - Santo Hilário de Poitiers (315-366), o
grande exegeta "Atanásio do Ocidente"; Santo Ambrósio
(339-397); Prudêncio (348-405), maior poeta cristão la-
tino; São Paulino de Nola (353-431); São Jerônimo (347-
420), que estudou a Bíblia Vulgata; Santo Agostinho (354-
430), um dos maiores gênios de todos os tempos, cuja
produção inclui obras importantes como Confissões, A
Cidade de Deus, Enchiridion ad Laurentium (exposição sis-
temática do dogma cristão) e De Doctrina christiana e De
Trinitate; Cassiano (+435), cujas obras, entre as quais se
destacam Collationes Patrum (conferências dos padres do
deserto) e Sobre as instituições dos cenóbios, que abor-
© U2 - Organização do Cristianismo Antigo, Liturgia, Vida Monástica,Heresias,
Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 135

dam a vida monástica, o credenciam como autor clássico;


São Leão, o Grande (+461), um dos papas mais ilustres
da Antiguidade Cristã; São Gregório Magno (540-604) e
Santo Isidoro de Sevilha (+636).
Considerados os tópicos abordados nesta unidade, impõe-
-se a necessidade de avaliar a assimilação dos conceitos discutidos,
bem como o desenvolvimento das competências fundamentais para
o prosseguimento dos estudos, o que se faz mediante os instrumen-
tos de autoavaliação propostos no item a seguir.

16. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às
questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta uni-
dade.
Confira, na sequência, as questões propostas para direcionar
a autoavaliação mencionada:
1) No contexto delineado nesta unidade, filósofos conver-
tidos ao Cristianismo quiseram introduzir as verdades
da fé no âmbito das especulações filosófico-religiosas
do gnosticismo. Esses filósofos desejavam, conforme
a perspectiva que defendiam, elevar o Cristianismo do
"plano inferior" da fé ao "plano superior" da gnose (ciên-
cia). Esse ideal teria sido factível naquelas circunstâncias,
tendo em vista o que você estudou sobre a temática? E
hoje em dia, um projeto dessa natureza seria exequível,
tendo em vista o que você conhece do contexto atual?
Justifique sua resposta.
2) Construa um texto com pelo menos um parágrafo que
conceitue e descreva o montanismo ou milenarismo?
3) Como você explica o surgimento e desenvolvimento das
heresias monarquianas?
4) Construa um texto com pelo menos um parágrafo que
conceitue e descreva as heresias contrárias à Santíssima
Trindade?

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136 © História da Igreja Antiga e Medieval

5) Como se deu a organização e constituição da Igreja, em


especial de seu culto e liturgia?
6) Como se originou e quais motivações fundamentaram a
vida monástica?
7) Produza um texto analítico em que se explique o surgi-
mento das heresias e cismas no interior da dinâmica do
Cristianismo, tais como as Heresias Judaizantes; o Gnos-
ticismo; o Montanismo ou Milenarismo; as Heresias An-
titrinitárias; as Controvérsias Penitenciais e as Contro-
vérsias Trinitárias, Cristológicas e Soteriológicas?
8) Quais as principais características da obra dos chamados
Escritores Eclesiásticos Antigos (Padres Apostólicos; Apo-
logistas; Apócrifos e Padres da Igreja latinos e gregos)?
9) Sob a perspectiva da autocrítica e da valorização das
próprias origens, de que aspectos importantes, caracte-
rísticos da organização e dinâmica do Cristianismo An-
tigo, a Igreja atual pode fazer uso para aperfeiçoar sua
própria organização e dinâmica?
10) Assista ao filme Agostinho (Editora Paulus) e estabeleça
pontos de aproximação entre as ideias, eventos e refle-
xões que o filme apresenta em seu enredo e as informa-
ções apresentadas nesta unidade.

17. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde construir conhecimentos sobre a
organização e constituição da Igreja, tendo em vista os cultos que a
caracterizam, tais como o batismo, o catecumenato e a eucaristia.
Você também teve a oportunidade de estudar, em se tratando da
dinâmica cristã, a liturgia, os sacramentos, as festas e a origem e
o desenvolvimento da vida monástica no Oriente e no Ocidente,
além das heresias e cismas que marcaram os três primeiros sécu-
los da Era Cristã, bem como a obra dos escritores eclesiásticos, os
concílios e a atuação dos Padres da Igreja.
Na perspectiva da continuidade dos estudos em História da
Igreja Antiga e Medieval, abordaremos, na próxima unidade, as
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Escritores Cristãos e Concílios Ecumênicos 137

perseguições impostas ao Cristianismo e seus seguidores, bem


como a sua aliança com o Império Romano, que culminou com a
oficialização de seu culto no século 4º.

18. E-REFERÊNCIAS

Sites pesquisados
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Acesso em: 10 mar. 2011.
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SAULNIER, C-ROLLAND B. A Palestina no tempo e Jesus. São Paulo: Paulinas, 1979.
VICENZO, B.O. História da paróquia. São Paulo: Paulus, 1990.
VV.AA. Patrística: padres apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
________. Patrística : apologistas. São Paulo: Paulus, 1995.
EAD
Perseguições Romanas,
Oficialização do Cristianismo
e Aliança com o
Estado Romano
3
1. OBJETIVOS
• Analisar as causas, o fundamento jurídico, a cronologia, o
significado e os escritos anticristãos relacionados às per-
seguições do Império Romano aos cristãos.
• Identificar as características da Igreja no Império Romano
Cristão: a expansão do Cristianismo nos primeiros sécu-
los, a conversão de Constantino, sua política religiosa e
seus sucessores até Teodósio.
• Interpretar a Igreja no Império Romano Cristão: expansão do
Cristianismo nos três primeiros séculos, conversão de Cons-
tantino, sua política religiosa e seus sucessores até Teodósio
e a oficialização do Cristianismo no Império Romano.

2. CONTEÚDOS
• Perseguições do Império Romano aos cristãos.
• Igreja no Império Romano Cristão.
140 © História da Igreja Antiga e Medieval

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) O conteúdo que expomos neste material é a "porta de
entrada" para novos conhecimentos. Durante o estudo,
você terá todos os subsídios necessários para realizar
pesquisas e aprofundar seu conhecimento sobre o as-
sunto. Por isso, contamos com sua participação e dedi-
cação para alcançarmos mais esse objetivo.
2) Para a maior compreensão desta unidade, sugerimos
que você leia as seguintes obras:
• PIERRARD, P. História da Igreja. São Paulo: Paulinas,
1982. Tradução de Álvaro Cunha.
• COMBY, J. Para ler a História da Igreja. Tradução de
Maria Stela Gonçalves-Adail V. Sobral. São Paulo: Lo-
yola, 1994. v. 2.
• GIBBON, E. Declínio e queda do Império Romano. São
Paulo: Companhia das Letras, 1980.
• MARKUS, R. A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo:
Paulus, 1997.
3) Observe a atitude dos primeiros cristãos: sua coerência
e firmeza de fé os levavam a afrontar o império. O que
você pensa sobre os cristãos do mundo de hoje? Quais
são os obstáculos que enfrentam? Têm eles menos fé
que os homens da Antiguidade?
4) Os cristãos eram acusados de ateus por não participa-
rem dos cultos romanos.
5) Reflita sobre as acusações enfrentadas pelos cristãos da
época, relacionando-as àquelas de outras épocas.
6) Para conhecer melhor o contexto dessa perseguição,
sugerimos que você assista aos filmes: QUO VADIS. Di-
reção Leroy. Intérpretes: Robert Laylor; Deborah Kerr;
Leo Genn; Peter Ustinov e outros. Roteiro: S.N Behr-
man. Estados Unidos da América, 1951. DVD (171 min.),
Wides Creen, color.; CONSTANTINO E A CRUZ. Direção:
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 141

Lionello de Felice. Produção: Beaver Champion Attrac-


tions, Jardran Film. Intérpretes: Cornel Wilde, Belinda
Lee, Massino Serato, Christine Kaufmann, Fausto Tozzi,
Tino Carraro, Carlo Ninchi, Vittorio Sanipoli e outros. Ro-
teristas: Michel Audley, Fulvio Palmieri, Franco Rossetti,
Guglielmo Santangelo. Longa Metragem. [S.l.]. Classic
Line, colorido.
7) Releia pontos considerados mais difíceis para poder es-
clarecê-los. Caso permaneçam dúvidas, utilize a SAV e,
em contato com o tutor e os colegas, solucione-as.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na Unidade 2, você pôde compreender a organização e a
constituição da Igreja. Nesta unidade, focalizaremos a relação de
poder estabelecida pelo Império Romano contra os cristãos. Fo-
ram diversas as frentes de hostilidades levantadas contra os cris-
tãos: as judaicas, as dos pagãos, as calúnias populares e as dos
intelectuais.
Veremos, também, a expansão do Cristianismo nos três pri-
meiros séculos, a conversão de Constantino, sua política religiosa
e seus sucessores até Teodósio.
Vamos, então, aos acontecimentos no mundo cristão daque-
la época!

Informação ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Quando se trata o tema das perseguições sofridas pelos cristãos, é preciso es-
clarecer alguns pontos importantes:
• Nesta unidade, ponderaremos as perseguições sofridas pelos cristãos no perío-
do que vai do século 1º ao 4º. No decorrer da História do Cristianismo, houve
muitas perseguições contra os seguidores de Cristo e, ainda hoje, ocorrem
perseguições contra cristãos.
• Outras religiões também sofreram perseguições em outros momentos da his-
tória humana.
• Os primeiros séculos da história cristã são chamados da época das persegui-
ções. Também se fala da época da Igreja das catacumbas, ou ainda, da Igre-
ja das perseguições, ou Igreja dos mártires. Estas expressões são oportunas,
mas historicamente apresentam limitações. Nem todos os cristãos dos primeiros

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142 © História da Igreja Antiga e Medieval

séculos foram martirizados, ou seja, morreram em nome da fé. Nem todos os


cristãos deste período viveram escondidos nas catacumbas ou cemitérios sub-
terrâneos (só no início do século 3º é que os cristãos adquiriram cemitérios).
• As perseguições foram iniciadas pelos judeus e, depois, mais organizadas e
sistematizadas pelos romanos, a partir do ano 64 com Nero.
• Asssim, as perseguições que mencionamos aqui são aquelas promovidas pelo
Império Romano, de Nero (64 d.C) a Constantino e Licínio (311) d.C.
• Muitas perseguições foram locais (a de Nero só ficou em Roma), outras regio-
nais e outras, em todo o Império (como foi a de Diocleciano).
• Sabendo que as perseguições não duraram anos ininterruptos; muitos imperadores
deste período protegeram ou não perseguiram os cristãos: entre a paz de Galieno
(260-268) e a perseguição de Diocleciano (303) tivemos uns quarenta anos de paz.
• Número dos mártires: é impossível estabelecer um consenso. Há autores que
falam de 100 mil e aqueles que falam de mais de 1 milhão.
• Espiritualidade martirial: modelo para os cristãos dos primeiros séculos que acre-
ditavam que o melhor caminho para se chegar à santidade seria pelo martírio.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

5. PERSEGUIÇÕES DO IMPÉRIO ROMANO AOS CRIS-


TÃOS
O Cristianismo, desde suas origens, precisou fortalecer sua
identidade e conquistar seu espaço religioso e social num ambien-
te marcado pela forte presença da cultura judaica onde nasceu e,
também, pela influência política, social e religiosa das culturas ro-
mana e grega.

Hostilidades judaicas
Desde as primeiras décadas do Cristianismo, os judeus hosti-
lizaram os cristãos (morte de Jesus, de Estevão, prisão de Pedro e
dos apóstolos etc.), e muitos escritores cristãos falam que as sina-
gogas judaicas eram "mananciais das perseguições".
Assim, o primeiro desafio do Cristianismo foi libertar-se das
influências judaicas, pois tanto Jesus como seus discípulos eram
todos judeus. Tanto que, inicialmente, os cristãos conviviam har-
monicamente com os costumes sociais e religiosos judaicos, e só
com o decorrer de algumas décadas, é que foram se separando da
tradição judaica.
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 143

A diferença estava, inicialmente, no fato de que os cristãos


acreditavam em Jesus como o Messias, e os judeus ainda aguar-
davam o seu advento. Quando ficou nítida essa diferença e os
cristãos insistiam na messianidade, ressurreição e novos ensina-
mentos trazidos por Jesus Cristo, foi difícil manter a unidade. Não
podemos esquecer que naquela época o Judaísmo estava dividido
em vários grupos ou seitas; assim, muitos consideravam o Cristia-
nismo uma seita entre tantas outras.
A cisão aumentou a conversão de judeus ao Cristianismo e,
principalmente, de pagãos ou gentios. Também, com a destruição
de Jerusalém no ano 70 d.C, e com a consequente dispersão judai-
ca a separação entre Judaismo e Cristianismo teve seu golpe final.
É claro que essa ruptura foi no plano mais disciplinar e institucio-
nal, pois a liturgia, os escritos e os hábitos judaicos permaneceram
presentes na vida dos cristãos.
Após escrever a expansão da comunidade cristã jerosomili-
tana e o início de um grande ciúme por parte dos judeus, González
assim descreve a primeira perseguição sofrida pelos primeiros cris-
tãos, quando fala do ocaso da Igreja judaica:
Logo, entretanto, aumentou a perseguição contra todos os cristãos
em Jerusalém. O imperador Calígula havia dado o título de rei a
Herodes Agripa, neto de Herodes o Grande. Segundo At. 12,1-3,
Herodes fez matar Tiago, o irmão de João – que não deve ser con-
fundido com Tiago, irmão de Jesus – e a o ver que Ito agradou a
seus súditos fez encarcerar também Pedro, que escapou milagrosa-
mente. No ano 62, Tiago, chefe da igreja, foi morto por iniciativa do
sumo sacerote e ainda contra a oposição de alguns fariseus.
Ante tais circunstâncias, os chefes da igreja de Jerusalém decidi-
ram transladar-se a Pela, uma cidade em sua maioria gentia ao ou-
tro lado do Jordão. Ao que parece, parte de seu propósito nessa
mudança, era não só fugir da perseguição por judeus, mas tam-
bém evitar as suspeitas por parte dos romanos. Com efeito, nessa
época o nacionalismo judeu estava em ebulição, e logo eclodiria a
rebelião que culminaria a destruição de Jerusalém pelos romanos
no ano 70. Os cristãos confessavam-se seguidores de alguém que
havia sido morto e curcificado pelos romanos, e que pertencia à
linhagem de Davi. Ainda mais, depois da morte de Tiago, o irmão
do Senhor, aquela antiga igreja continuou sendo dirigida pelos pa-

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144 © História da Igreja Antiga e Medieval

rentes de Jesus, e a chefia passou a Simeão, que pertencia à mes-


ma linhagem. Diante do nacionalismo que florescia na Palestina,
os romanos suspeitavam de qualquer judeu que pretendesse ser
descendente de Davi. Portanto, este movimento judeu, que seguia
a um homem condenado como malfeitor, e dirigido por pessoas
da linhagem de Davi, tinha de parecer suspeito diante dos olhos
romanos. Pouco tempo depois alguém acusou Simeão como des-
cendente de Davi e como cristão, e este novo dirigente da igreja
judaica sofreu martírio. Diante dos escassos dados que sobrevive-
ram à passagem dos séculos, nos é impossível saber até que ponto
os romanos condenaram Simeão por ser cristão, e até que ponto
condenaram por pretender pertencer à casa de Davi. Mas, em todo
caso, o resultado de tudo isto foi que a velha igreja de origem ju-
daica, rejeitada tanto por judeus como por gentios, viu-se relegada
cada vez mais às regiões recônditas e desoladas.
Naquelas paragens distantes, o cristianismo judeu entrou em con-
tato com vários grupos que, em datas anteriores, haviam abando-
nado o judaísmo ortodoxo e se haviam refugiado além do Jordão.
Carente de relações como resto do cristianismo, aquela igreja de
origem judaica seguiu seu próprio curso, e em muitos casos sofreu
o influxo de diversas seitas entre as quais ela existia. Quando, em
ocasiões posteriores, os cristãos de origem gentia nos oferecem
algum traço daquela comunidade esquecida, nos falam de seus
hereges e de seus estranhos costumes, mas raramente nos ofere-
cem dados de valor positivo sobre a fé e a vida daquela igreja que
perdurou pelo menos até o século V (GONZÁLEZ, 1995, p.35-36).

Império Romano e Cristianismo


Os romanos, que dominavam a Palestina no tempo de Jesus,
evitavam se intrometer nas questões religiosas dos povos por eles
conquistados e eram tolerantes em matéria religiosa.
Inicialmente, os romanos consideravam os cristãos um gru-
po judaico com suas características próprias como tantos outros
grupos da Palestina e eles preferiam que os judeus resolvessem
internamente suas questões religiosas. Eles só interviam em ques-
tões delicadas, e isto se percebe quando o Imperador Cláudio de-
cide expulsar os judeus de Roma. Como afirma González:
Um caso que ilustra esta situação é a expulsão dos judeus de Roma
pelo imperador Cláudio, por volta do ano 51. At 18:2 menciona ETA
expulsão, ainda que sem explicar suas razões. Mas o historiador ro-
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 145

mano Suetônio nos oferece um dado intrigante, ao nos dizer que os


judeus foram expulsos de Roma porque estavam causando distúr-
bios constantes "por causa de Cresto". A maioria dos historiadores
concorda em que "Cresto" é o próprio Cristo, cujo nome teria sido
mal escrito. Portanto, o que sucedeu em Roma parece ter sido que,
como em tantos outros lugares, a pregação cristã causou tantas de-
sordens entre os judeus, que o imperador decidiu expulsar todos
eles. Em Roma, nestes tempos, a disputa entre judeus e cristãos
parecia ser uma questão interna dentro do judaísmo (1995, p. 51).

Na relação com o Império Romano, a dificuldade em rela-


ção aos cristãos surgiu quando estes propuseram um estilo de vida
distinto do dos romanos e quando evitaram adorar os deuses do
império, pois, no contexto daquele tempo, adorar os deuses do
império era um gesto de fidelidade política ao imperador, que, em
alguns momentos, também era visto como divindade. Assim, ao
não adorar os deuses do império, os cristãos atraiam a ira destes
que mandavam muitas desgraças para o povo.
É nesse contexto que, já no século 1º, surgiram as persegui-
ções. As primeiras foram motivadas pelos próprios judeus, e com
o imperador romano Nero, no ano 64, inicia as perseguições ro-
manas propriamente ditas. De Nero (ano 64) até Constantino (ano
313), o Cristianismo foi uma religião ilícita, por isso foram crescen-
do as hostilidades e calúnias dos romanos contra os cristãos.

Hostilidades dos pagãos


As chamadas "hostilidades pagãs" eram despertadas pelo
modo de viver dos cristãos (as acusações iam desde as calúnias
mais grosseiras até as objeções mais intelectuais) e também pela
fé monoteísta. Estas calúnias provocaram o surgimento das apolo-
gias cristãs, escritos que visavam justificar e explicar o Cristianis-
mo. Entre os apologistas, podemos destacar:
1) Aristides de Atenas (um dos primeiros a defender a fé
cristã com a sua Apologia).
2) Pápias (bispo de Hierápolis que escreveu uma Exposição
das Palavras do Senhor).

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146 © História da Igreja Antiga e Medieval

3) Justino (convertido do paganismo, escreveu duas Apolo-


gias e o Diálogo de Trifão).
4) Teófilo (bispo de Antioquia que escreveu Ad Autolico).
5) Melitão de Sardes (bispo que escreveu uma Apologia).
6) Atenágoras de Atenas (escreveu Súplica pelos cristãos).
7) Irineu de Lyon (grande intelectual, escreveu Contra as
heresias), e temos muitos outros apologistas que defen-
deram a religião cristã dos ataques do Império Romano,
dos intelectuais e do povo.

Calúnias populares
O povo das várias cidades onde os cristãos fundavam suas
comunidades não tinha acesso ao culto cristão e isso deixava vá-
rias interrogantes ou dívidas sobre o que era e como se desenvol-
viam os ritos cristãos. Por outro lado, os cristãos não participavam
dos cultos públicos. Assim, os cristãos foram acusados de ateísmo
(negavam-se a participar dos cultos tradicionais, do culto imperial
e das religiões orientais) – o povo supunha que os cristãos não ti-
nham religião. Para a mentalidade antiga, isso era uma aberração
que ameaçava o equilíbrio social, com ofensas aos deuses que, por
isso, enviavam calamidades (inundações, terremotos, epidemias,
povos bárbaros) ao império, atingindo toda a população.
Muitos romanos acreditavam que os cristãos tinham um culto
abominável, o culto ao asno crucificado ou a um bandido condenado
à cruz. Deturpando a celebração da ceia eucarística, o povo acusava
os cristãos de prática do incesto, já que se amavam com os irmãos e
isto levava a crer que o culto tinha muitas orgias; também afirmavam
que a eucaristia tinha como momento mais importante um "banque-
te infanticida", em que se comia o corpo de Cristo e se bebia o seu
sangue (isso podia ocorrer com o sacrifício de uma criança).
Aprofundando esta questão, Jedin (1980, p. 204-205) afirma:
As comunidades cristãs que, como fruto do trabalho missionário,
surgiram por várias cidades do império, dado sua separação de tudo
o que tinha relação com o culto pagão, tinham que atrair sobre si,
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 147

tarde ou cedo, a atenção do paganismo circunstante. Mas o interes-


se pagão pelo Cristianismo teve desde o princípio uma tendência
negativa e até hostil, que é tanto mais surpreendente, quanto que,
se prescinde de estalidos isolados de hostilidade contra o judaísmo,
não era comum semelhante reação das massas gentias contra os
novos cultos religiosos vindos do oriente. Estes cultos orientais não
cristãos desenvolviam, além do mais, uma viva propaganda que,
em casos isolados, conseguiu êxitos consideráveis. As causas, pois,
da atitude de repulsa por parte pagã frente aos seguidores da nova
religião devem ser buscadas nela mesma. A causa radicava na pre-
tensão de absolutez com que aparecia a fé cristã; tal e como essa Fé
se entendia a si mesma, não podia ser tolerante com respeito a ne-
nhum outro culto religioso, e veio assim a se enfrentar, por princí-
pio com a religião estatal romana. Com isso, aparecia pela primeira
vez no império romano um movimento que não considerava a seu
Deus com o um deus particular; e sim como único verdadeiro Deus
e o só salvador do mundo, cujo culto não podia se compadecer com
a existência de qualquer outro culto. Os cristãos em sua vida diá-
ria eram conseqüentes com suas convicções e se fechavam numa
separação absoluta: por isso tinham que parecer pouco a pouco
ao paganismo circundante, inimigos declarados da antiga civiliza-
ção, muito marcada de manifestações religiosas. A atmosfera hostil
que assim se criava, foi além do mais, como se pode demonstrar,
alimentada pelo judaísmo da diáspora, que não podia perdoar aos
judeu-cristãos sua apostasia da fé de seus pais. Esse isolamento dos
cristãos fomentava além do mais, e até podiam ser semelhantes
aos obscuros rumores que lhes atribuíam atos dissolutos em seus
encontros noturnos com suspeitas de degeneração no culto religio-
so. Tudo isto constituía terra fértil da qual brotaria pouca estima pe-
los cristãos; estes eram para o pagão vulgar um grupo de canalhas,
que tinham bons motivos para temer a luz da publicidade. Bastava
qualquer fútil pretexto para que o povo pagão descarregasse sua
desconfiança e rancor represado e fizesse justiça com suas próprias
mãos sobre os partidários da nova fé, ou os arrastasse ante as auto-
ridades civis pedindo tumultuosamente seu castigo.

Calúnias dos intelectuais


Celso, no século 2º, e Porfírio, no século 3º, foram filóso-
fos pagãos que estudaram o Cristianismo para melhor orientar
suas acusações contra esta nova religião que crescia. As acusações
eram feitas em três direções:
1) Os cristãos são pobres homens ignorantes e pretensio-
sos: ambos afirmavam que os cristãos saíam entre as

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148 © História da Igreja Antiga e Medieval

classes sociais inferiores, entre os escravos e trabalha-


dores braçais explorados e excluídos do sistema. Diri-
giam-se às mulheres, às crianças e aos escravos, apro-
veitando-se de sua credulidade e minavam as tradições
patriarcais e a família. Para eles, o Cristianismo, com sua
doutrina fechada e ambiciosa, contradizia os valores da
civilização romana.
2) Os cristãos eram maus cidadãos: pois não participa-
vam dos cultos da cidade e nem do culto imperial; não
aceitavam os "costumes dos antepassados"; rejeitavam
o serviço militar e não queriam fazer parte do exército
romano e de suas conquistas e, finalmente, não tinham
interesse nos assuntos políticos nem na salvação do im-
pério.
3) A doutrina cristã era opositora da razão: vários pontos
da doutrina cristã eram vistos com desdém e contrários
aos sistemas religiosas da época. A encarnação era en-
tendida como um grande absurdo e loucura. Deus, per-
feito e imutável, não podia, como aconteceu na encar-
nação de Jesus, se rebaixar a ponto de se tornar uma
criança pequena; Jesus, para eles, não foi mais que um
pobre homem, incapaz de ter uma morte de sábio como
Sócrates. A doutrina de Jesus não é mais que uma cópia
imperfeita das doutrinas egípcias mais antigas. A ressur-
reição dos corpos é outra grande mentira. Os ritos dos
cristãos são imorais, pois incentivam a pessoa na perma-
nência dos vícios e erros.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Celso foi um filósofo platônico do século 2º que escreveu um tratado contra os
cristãos chamado "Discurso Verdadeiro". O tratado não chegou até nós, mas
conhecemos partes de seu conteúdo porque ele foi objeto de uma refutação por
Orígenes, um dos padres da Igreja, em seu tratado "Contra Celso", escrito 70 ou
80 anos depois de Celso (SUBSOLO, 2007).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Faz-se, então, necessário conhecer um pouco mais esses es-
critores anticristãos. Como temos mais informações de Porfírio
(nascido em 233, na cidade de Tiro, na Fenícia), vamos nos deter
em sua vida. Ele viveu numa época em que alguns imperadores per-
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 149

seguiam os cristãos e outros lhes ofereciam privilégios e tempos de


paz. Um dos imperadores que mais protegeu os cristãos foi Galieno
(260-268), filho de Aureliano, imperador que perseguiu os cristãos.
Galieno emanou um rescrito, documento imperial, que protegia os
cristãos, oferecendo a eles liberdade de confissão, de culto e de pre-
gação; isso não quer dizer que a situação dos cristãos era segura,
mas eles tiveram uns 40 anos de paz e tranquilidade, bem como
relativas expansões . É neste contexto que viveu Porfírio. Alguns
afirmam que por conhecer tão bem a doutrina cristã, ele teria sido
cristão e depois apostatou. Foi discípulo do filósofo Plotino, que não
era cristão, mas também não combateu a nova religião.
Segundo Jedin (1980, p. 552-554):
Em Porfírio se percebe uma atitude hostil ao Cristianismo já nos
seus primeiros escritos. Em sua Filosofia dos oráculos faz que um
oráculo de Apolo qualifique a uma cristã de inconvertível e incor-
rigível; a infeliz chorava a um deus morto, a quem, não obstante,
juízes retos condenaram à pior morte; os judeus são colocados aci-
ma dos cristãos. Os quinze livros Contra os Cristãos, em que Por-
fírio trabalhava desde 168, representam indubitavelmente a mais
importante contribuição ao grandioso ensaio do neoplatonismo
de renovar a sabedoria e religiosidade grega, e conservar para ela,
frente ao avanço vitorioso do cristianismo, sobretudo, a classe culta
do paganismo. Realizar com êxito a tarefa que se impunha Porfírio,
supunha neste tempo, muito mais que o propósito de Celso cem
anos antes. O cristianismo produzira obras literárias que impunham
respeito aos próprios pagãos instruídos Agora era, sobretudo, ne-
cessária uma ampla discussão da Bíblia que, a mercê do trabalho
de Orígenes, alcançara um amplo influxo. Para conseguir realizar
seu plano de impugnação geral do Cristianismo, Porfírio dispunha,
como o provam os fragmentos conservados, de um conhecimento
cabal das escrituras dos cristãos, de uma inteligência crítica, com
formação filológica completa e de uma notável arte de exposição.
Ao contrário do ´Alethes logos´ de Celso, a obra de Porfírio provo-
cou imediatamente a refutação do lado cristão [...]
Ainda quando Porfírio não condena a figura de Cristo tão acremente
como, por exemplo, aos evangelistas, apóstolos e cristãos em geral,
no entanto, se dão nela muitos traços que, a seu juízo, são incompa-
tíveis com uma personalidade realmente religiosa e heróica.
Cristo, sobretudo, não demonstra possuir o poder divino que pre-
tende; se nega, por medo, a se atirar do pináculo do tempo abaixo,
não é senhor dos demônios, desfalece lamentavelmente ante os su-

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150 © História da Igreja Antiga e Medieval

mos sacerdotes e Pilatos; toda sua paixão é indigna de um ser divino.


Comparado com ele, o taumaturgo Apolônio de Tiana, do século I,
oferece uma figura mais impressionante. Depois de sua ressurreição,
em vez de aparecer a mulheres simples e desconhecidas, Cristo de-
via ter ido se apresentar vivo a Pilatos e Herodes, e até ao senado
romano, e deveria ter dado à sua ascensão aos céus um marco muito
mais grandioso; com isto teria economizado a seus seguidores duras
perseguições, pois ante tais demonstrações de poder teria emude-
cido qualquer dúvida sobre sua missão divina. Os evangelistas, com
sua exposição dos fatos e ditos de Jesus, são objeto de viva repulsa,
porque os inventam eles mesmos e, por fim, não os presenciaram.
Seus relatos estão cheios de contradições, inexatidões e absurdos
que não merecem fé alguma. As figuras principais da Igreja primitiva,
Pedro e Paulo, merecem de Porfírio uma grande antipatia. Pedro não
esteve, de modo algum, à altura do alto ofício a que foi chamado
e sua eleição foi um dos mais graves erros de Cristo. Paulo é apre-
sentado por ele como um caráter repelente: é duplo, trambiqueiro,
em perpétua contradição consigo mesmo; se corrige uma e outra
vez, prega em sua escatologia a doutrina do fim do mundo, do juízo
final e da ressurreição dos mortos, que provoca ao neoplatônico a
mais áspera contradição. O contraste entre Pedro e Paulo a respeito
da obrigatoriedade da lei mosaica para judeu-cristãos e cristãos da
gentilidade, tão pouco escapou a Porfírio; segundo ele, um e outro
aparecem nesta questão como tristes figuras. Também as doutrinas
centrais da fé cristã e os traços essenciais do culto são fortemente
rejeitados. A doutrina de Cristo exigiria uma fé irracional o que é um
atentado contra todo pensamento e toda formação filosófica. O mo-
noteísmo cristão é, no fundo, um politeísmo mal dissimulado, pois
os anjos aparecem igualmente como seres divinos. A doutrina da en-
carnação enche de espanto a todo grego, e mais ainda, a eucaristia
cristã, na qual Porfírio vê um rito que não tem igual nem entre as
tribos mais selvagens.

Em suma, podemos sintetizar os motivos que promoveram


as perseguições contra os cristãos.
a) Motivos pelos quais os judeus perseguiram a Jesus e
seus discípulos:
1) dificuldade em aceitar a divindade e messianidade
de Jesus Cristo;
2) rejeitar o caráter de renovação da Lei e das tradições
que Jesus Cristo tanto pregou;
3) rejeitar o caráter universa­lista do Cristianismo;
4) tratar os cristãos traidores da pátria e da religião judaica.
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 151

b) Motivos pelos quais os romanos perseguiram os cristãos:


1) desprezo dos romanos pela Palestina e tudo o que
viesse de lá;
2) cristãos valorizavam a mulher, a criança, o doente,
o pobre, o escravo, os excluídos. Na cultura gre-
co‑romana, estes segmentos eram menosprezados
e marginalizados;
3) cristãos tinham discurso evangélico marcado pelo paci-
fismo, humildade, solidariedade e fraternidade, virtudes
estas pouco cultivadas pelos romanos, que acreditavam
na força, no poder, na prepotência e no orgulho;
4) o pacifismo fazia com que os cristãos não se inte-
grassem ao exército, o que era visto como traição e
sinal de pouco amor ao império;
5) cristãos não praticavam o "culto do Imperador", que
ajudava a reforçar a integração imperial por meio da
veneração a o mesmo;
6) os cristãos, ao não praticar o culto ao Imperador,
eram considerados traidores da pátria e opositores
do regime: deveriam ser punidos;
7) atitude monoteístas dos cristãos que só adoravam ao
Deus de Jesus Cristo. Segundo a crença romana, os deu-
ses do Império ficavam descontentes, irados e manda-
vam desgraças (secas, inundações, perda das safras, in-
vasão dos bárbaros, derrotas militares) sobre o Império;
8) cristãos eram considerados ateus e maus cida­dãos
por não adorar os deuses e, por isso, deveriam se
retificar ou ser condenados.
Vejamos, a seguir, a cronologia das perseguições movidas
pelos imperadores romanos.

Cronologia das perseguições movidas pelos imperadores romanos


As perseguições contra o Cristianismo foram muitas, porém as da
época antiga ocorreram nos três primeiros séculos e levaram o nome
dos imperadores romanos da época. Houve imperadores que não per-
seguiram os cristãos, e alguns até simpatizaram com o Cristianismo.

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152 © História da Igreja Antiga e Medieval

Outros promoveram perseguições que levam seus nomes e


nem sempre as perseguições duravam todo o período de reinado
dos imperadores, pois havia tempos de paz, seguidos de tempos
de perseguição.
Vamos conhecer, agora, alguns imperadores:
Nero (54-68): foi o primeiro imperador a perseguir os cris-
tãos, provavelmente por instigação de judeus que tinham acesso à
corte imperial. A perseguição ocorreu nos anos 54-55 e foi gerada
em torno de um incêndio que durou sete dias e teria sido provoca-
do pelo próprio Nero, que desejava reformar uns bairros antigos e
pobres do centro de Roma. Diante da insatisfação do povo que se
revoltou contra Nero, ele acusou os cristãos e muitos foram cruel-
mente torturados e martirizados, entre eles, Pedro e Paulo. Esta
perseguição, ao que tudo indica, ocorreu só na cidade de Roma e
não teve incidência em outras regiões do império, o que poderia
ter ocorrido posteriormente, pois suspeita-se que Nero queria es-
tender a perseguição antes de sua morte (suicídio), no ano 68 d.C.
A partir desse momento, o ódio popular cresceu contra os cris-
tãos e ocorreram muitas outras perseguições contra aquela que
foi chamada de uma "nova e maléfica superstição". O historiador
romano Tácito na obra Anais, 15:44, refere-se a este fato e deixa
entrever que os cristãos eram inocentes e que foram acusados,
principalmente, pelo estilo de vida que levavam, que era distinto
da maioria das pessoas do império. Em contrapartida, percebe-se
também o que se pensava e falava dos cristãos, que já não eram
mais identificados como judeus, mas sim como membros de uma
outra seita palestinense, fundada por Cristo. Assim escreve ele:
Apesar de todos os esforços humanos, da liberalidade do impera-
dor e dos sacrifícios oferecidos aos deuses, nada bastava para apar-
tar as suspeitas nem para destruir a crença de que o fogo havia sido
ordenado. Portanto, para destruir esse rumor, Nero fez aparecer
como culpados os cristãos, uma gente odiada por todos por suas
abominações, e os castigou com mui refinada crueldade. Cristo, de
quem tomam o nome, foi executado por Pôncio Pilatos durante o
reinado de Tibério. Detida por um instante, esta superstição dani-
nha apareceu de novo, não somente na Judéia, onde estava a raiz
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 153

do mal, mas também em Roma, esse lugar onde se narra e encon-


tram seguidores de todas as coisas atrozes e abomináveis que che-
gam desde todos os rincões do mundo. Portanto, primeiro foram
presos os que confessaram (ser cristãos), e baseadas nas provas
que eles deram foi condenada grande multidão, ainda que não os
condenaram tanto pelo incêndio mas sim pelo seu ódio à raça hu-
mana ( GONZÁLES, 1994, p. 55).

Domiciano (81-96): após a morte Galba, houve um tempo


de paz para os cristãos nos reinados de Vespasiano e Tito, entre
os anos 65 a 94. Nessa época, no ano 70 a cidade de Jerusalém
foi destruída pelo general romano Tito e a cisão entre cristãos e
judeus foi definitiva. Por outro lado, muitos romanos ainda iden-
tificavam os cristãos como nacionalistas judeus. Também foi um
período no qual houve uma grande produção de escritos cristãos:
evangelhos de Marcos, Lucas e João, várias cartas paulinas, as car-
tas de Tiago, Pedro e Judas e a carta aos Hebreus; isso demonstra
um clima de segurança e estabilidade, que só foi rompido com a
perseguição de Domiciano:
No ano 81 Domiciano sucedeu ao imperador Tito. A princípio, seu reino
foi tão benigno à nova fé como o haviam sido os de seus antecessores.
Mas, no final de seu domínio desatou-se novamente a perseguição.
Não sabemos com certeza por que Domiciano perseguiu os cristãos.
Sabemos sim que Domiciano amava e respeitava as velhas tradições
romanas, e que boa parte de sua política imperial consistiu em res-
taurar essas tradições. Portanto, era de se esperar que se opusesse
ao cristianismo, que em algumas regiões do Império havia ganho
muitíssimos adeptos, e que em todo caso se opunha tenazmente à
antiga religião romana. Além disso, agora que já não existia o Templo
de Jerusalém, Domiciano decidiu que todos os judeus deviam enviar
às arcas imperiais a oferta anual que antes mandavam a Jerusalém.
Quando alguns judeus negaram a fazê-lo ou mandavam o dinheiro
ao mesmo tempo que deixavam claro que Roma não havia ocupado
o lugar de Jerusalém, Domiciano começou persegui-los e a exigir o
pagamento da oferta. Já que ainda não estava totalmente delimitada
a relação do judaísmo com o cristianismo, os funcionários imperiais
começaram a pressionar todos os que praticavam "costumes judai-
cos". Assim se desatou uma nova perseguição que parece haver sido
dirigida, não somente contra os cristãos, mas também contra os ju-
deus. Como no caso de Nero, parece que a perseguição não foi igual-
mente severa em todo o Império. De fato, é só de Roma e da Ásia
Menor que temos notícias fidedignas acerca da perseguição.

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154 © História da Igreja Antiga e Medieval

Em Roma, o imperador fez executar ao seu parente Flavio Clemtne e a


sua esposa Flávia Domitila. Foram acusados de "ateísmo" e de "costu-
mes judaicos". Já que os cristãos adoravam um Deus invisível, em geral
os pagãos os acusavam de serem ateus. Portanto, é muito provável
que Flávio Clemente e sua esposa tenham sido mortos por serem cris-
tãos. Estes são os únicos dois mártires romanos no tempo de Domicia-
no que conhecemos pelo nome. Mas vários escritores antigos afirmam
que foram muitos, e uma carta escrita pela igreja de Roma à de Corinto
pouco depois da perseguição se refere a "os males e provas inespera-
das e seguidas que sobrevieram a nós" (I Clemente 1).
Da perseguição na Ásia Menor sabemos mais, graças ao Apocalipse,
que foi escrito em meio a essa dura prova. João, o autor do Apocalipse
havia sido deportado à ilha de Patmos e, portanto, sabemos que nem
todos os cristãos eram condenados à morte. Mas há muitas outras pro-
vas de que foram muitos os que sofreram e morreram em tal ocasião...
Felizmente, quando se desatou a perseguição o reino de Domiciano
chegava ao fim. Com Nero, Domiciano havia recebido fama de tirano e
por fim foi assassinado em seu próprio palácio e o senado romano fez
com que se apagasse o seu nome de todas as inscrições e monumen-
tos em sua honra. Uma vez mais, o Império parece ter esquecido os
cristãos. Assim, a nova fé pode continuar se espalhando pelo Império,
gozando de um período de relativa paz (GONZÁLEZ, 1995, p. 58-60).

Trajano (97-117): com este imperador houve uma retomada


do expansionismo político e comercial romano e o imperador não
se ocupou tanto com as questões religiosas. O problema cristão
vem à tona quando surge uma questão de jurisprudência levanta-
da pelo governador da Bitínia, Plínio o Jovem, que tinha dúvidas
sobre o perseguir ou não os cristãos e busca o conselho do impe-
rador. Pierini (1998, p.64-66) assim relata este assunto, após falar
dos conflitos entre romanos e judeus:
A novidade da época é, porém, o início da polêmica entre pagãos e
cristãos. Sob o reinado de Trajano, o primeiro a levantar a questão é
Plínio, o Jovem. Exercendo o cargo de procônsul na Bitínia, vê-se dian-
te da necessidade de julgar indivíduos acusados simplesmente de ser
cristãos. Ele sabe que os cristãos devem ser perseguidos (é o rastro
deixado pelas perseguições de Nero e Domiciano), mas não sabe como
comportar-se em relação ao processo e ao mérito das acusações; toda-
via, procede da maneira costumeira, interrogando-os e condenando-
-os, quando obstinados. Ocorrendo dúvidas, escreve ao imperador em
112 confessando a própria ignorância ("não sei o que se deve fazer ou
até que ponto se deve punir ou persegui-los") a respeito da substância
mesma da questão ("se se deve unir o próprio nome de cristão, ainda
que isento de crimes, ou os crimes independentemente do nome").
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 155

A resposta de Trajano exprime não só as anomalias típicas do direito


penal romano, mas também a incerteza frente a um fenômeno (o
delito de opinião) totalmente fora das categorias ordinárias: "Não
se pode estabelecer - escreve o imperador- uma regra geral, que
possa funcionar com o uma fórmula fixa. Não é o caso de persegui-
-los. Se forem denunciados e houver culpa, devem ser punidos,
mas com esta restrição: quem negar ser cristão e o provar com fa-
tos, adorando os nossos deuses, poderá com seu arrependimento
obter o perdão, ainda que seu passado seja suspeito. As denúncias
anônimas não devem ter nenhum valor, e, nenhum tipo de denún-
cia, porque são um exemplo deplorável e indigno do nosso tempo".
Os mesmos conceitos, substancialmente, são reafirmados por
Adriano, por volta do ano 128, num rescrito ao procônsul da Ásia
Minúcio Fundano, acrescentando, porém, que a condenação deve
decorrer de uma culpa específica: Se o acusador demonstrar que
(os cristãos) infringiram as leis, então determina a pena segundo a
gravidade da culpa". Também aqui, na falta de conceitos jurídicos
precisos, apela-se para o critério do "caso a caso!".
Uma outra carta, esta bem mais favorável aos cristãos atribuída a An-
tonino Pio e endereçada a uma assembléia federal na Ásia, não espe-
lha a situação real e é considerada totalmente apócrifa. As atitudes
das autoridades imperiais em relação aos cristãos tornam-se mais
precisas com o crescimento da polêmcia, que deixa cada vez mais
claros os termos da questão. Por volta da metade do século II acumu-
lam-se as censuras de Epíteto, Frontão de Cirta, Hélio Aristides, do
filósofo cínico Crescente, até que se chaga ao juízo pessoal de Marco
Aurélio a respeito dos cristãos, que neles destaca depreciativamente
a "obstinação da vontade", e à sátira que lhes reserva Luciano de
Samosata, zombando dos dois elementos que mais impressionavam
os pagãos: o amor fraterno e o desprezo pela morte.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Mas houve momentos de perseguição contra os cristãos e aqui se destaca o
mártir Santo Inácio de Antioquia, que foi levado a Roma para ser morto e neste
contexto, escreveu sete belas cartas nas quais não renuncia à sua fé cristã e faz
uma grande apologia do Cristianismo e da santificação por meio do martírio. Es-
creveu carta aos cristãos de Roma, Éfeso, Magnésia, Filadélfia, Esmirna, Trales,
e uma pessoal a São Policarpo de Esmirna, também martirizado no ano 154.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Adriano (117-138): em seu reinado e após as conquistas de
Trajano, o Império Romano chegou à sua maior extensão, mas já
se iniciavam várias revoltas e problemas em muitas regiões, o que
fez com que tivesse que reforçar as fronteiras e centralizar o poder.

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156 © História da Igreja Antiga e Medieval

De 132 a 135 ocorreu a rebelião dos judeus e Jerusalém foi des-


truída e chamada de Aélia Capitolina. Adriano exigiu julgamento
mais correto para inibir a ação de alguns fanáticos que perseguiam
os cristãos sem motivos sérios. Mas, em seu reinado, houve tam-
bém perseguição contra os cristãos e muitos foram martirizados,
com destaque para: o Papa Telésforo, Sinforosa, Eustóquio.
Antonino Pio (138-161): com ele o Império Romano vive um
período de equilíbrio e paz dentro e fora de seus domínios. Contudo,
aumentam alguns problemas, especialmente com a crise agrícola e
com a pressão em várias fronteiras do grande império. Ele também
evita perseguir os cristãos que ainda sofriam acusações sem funda-
mentos. Nessa época, São Justino escreve sua Apologia ao imperador,
intercedendo em favor dos cristãos e expondo várias provas sobre a
divindade de Cristo. Mesmo assim, tivemos vários martírios: Lúcio e
Ptolomeu em Roma e São Policarpo de Esmirna e 11 companheiros.
Marco Aurélio (161-180): no tempo do imperador filósofo,
adepto do estoicismo, foram estourando vários problemas que
afetaram o equilíbrio do grande Império Romano: revoltas em vá-
rias fronteiras imperiais, pestes, fome e carestias em várias partes.
Para resolver os problemas e aplacar a ira dos deuses, ordenou-
-se a todos os cidadãos do império que prestassem sacrifícios e
ritos expiatórios. A ausência dos cristãos fez com que surgissem
muitos mártires: os mártires de Lyon na França (Fotino, Blandina
e outros mártires), São Justino e Santa Cecília em Roma, a Legião
Fulmínea composta por soldados cristãos, seis mártires de Cílio na
África do Norte, o bispo Públio de Atenas etc. Nesta época, des-
tacam-se dois apologistas: Melitão de Sardes, que defendia uma
união entre império e Cristianismo e Atenágoras de Atenas, que
suplica o favor imperial em prol dos cristãos. Neste período surgiu
o platônico Celso, um dos principais críticos do Cristianismo, com
sua obra Verdadeiro Logos ou Discurso verdadeiro: ele aproveita
as críticas judaicas ao cristianismo e também, aprofunda vários te-
mas da doutrina cristã para combatê-los: a encarnação, divindade
e ressurreição de Jesus e várias questões bíblicas.
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 157

Cômodo (180-192): contrariando o estilo de seu pai Marco


Aurélio, Cômodo fez um governo desastroso. Porém, por influên-
cia de Márcia, sua concubina que era cristã, protegeu os cristãos.
Mas, mesmo assim, tivemos muitos mártires: seis mártires de Car-
tago, Apolônio em Roma, Esperâncio, Nazário e companheiros etc.
Sétimo Severo (192-211): o período desastroso de Cômodo
faz com que seja escolhido um membro do exército. Assim, é re-
forçada a militarização do grande Império Romano, com forte cen-
tralização do poder e autoritarismo do imperador. Em relação aos
cristãos, ele tem atitude inicial de benevolência, mas posterior-
mente também autoriza a perseguição em função de alguns mo-
tins judaicos, também preocupado com o crescimento do número
dos cristãos; assim, proíbe a conversão ao Cristianismo, atingindo
especialmente os catecúmenos e neófitos. Entre os mártires des-
te período, citamos Leônidas de Alexandria, Perpétua e Felicidade
em Cartago.
Nesta época, surge um dos grandes apologistas cristãos, Ter-
tuliano:
Jurista e retórico de Cartago, depois de sua conversão, escreve uma
defesa do cristianismo (o "Apologeticum"), destinada aos gover-
nantes do Império. Ataca as violações do direito dos processos con-
tra os cristãos: ausência de advogado, uso da tortura não para ob-
ter confissões, mas para fazer abjurar; condenação não por causa
de crime, mas por causa de nome ("nomen christianum"); de outro
lado, os filósofos pagãos podem impunemente negar a existência
dos deuses. E contudo: as execuções não aniquilam a fé, mas a es-
palham ("semen est sanguis christianorum' – o sangue dos cristãos
é semente) (FRÖHLICH, 1987, p. 17).

Maximino Trácio (235-238): após a morte de Sétimo Severo,


tivemos vários imperadores que foram benevolentes com os cris-
tãos (Caracala, Heliogábulo e Alexandre Severo). Maximimo foi o
"primeiro bárbaro" a ser imperador e mandou assassinar Alexan-
dre Severo e, com isso, perseguiu seus protegidos e decretou per-
seguição especial contra os membros da hierarquia cristã e mor-
reram alguns bispos: Papas Antero e Ponciano, antipapa Hipólito.

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158 © História da Igreja Antiga e Medieval

Mas a perseguição não atingiu muitas regiões do império e Maxi-


mino mesmo pôs fim à perseguição. Após sua morte, volta a reinar
uma paz relativa para os cristãos com Gordiano II e Filipe o Árabe,
que para muitos era cristão, mas não o assumiu publicamente por
causa da relação com o exército e com os setores imperiais que
eram anticristãos. Neste período, a Igreja vai crescendo e se orga-
nizando, inclusive, internamente já se fala de certo relaxamento
dos cristãos. É neste contexto que teremos uma das piores perse-
guições com o Imperador Décio.
Décio (249-251): com vários problemas internos e ameaças
externas nas fronteiras, Décio quis unificar o império e centralizar
o poder com a lealdade dos súditos. Para isso, decretou que todos
os cidadãos deveriam sacrificar aos deuses imperiais, mediante as-
sinatura de um documento chamado libelo. Muitos testemunha-
ram sua fé com os martírios, mas muitos sacrificaram aos deuses
e renegaram a fé cristã. Bihlmeyer assim relata esta perseguição:
Como observa São Cipriano, "para provar a sua família" Deus mandou
outra perseguição. Foi de breve duração, mas violentíssima e perigosa.
É devida a Décio (249-51), um dos imperadores militares pouco cul-
tos, mas cheios de energia, de origem panônico-ilírica, que realizaram
uma política de restauração em grande estilo. Ele queria dar ao im-
pério, quase em ruínas pela corrupção e a invasão sufocante do cos-
tume oriental, maior força de resistência contra os inimigos externos
e internos e recolocá-lo no esplendor de outros tempos; julgava por-
tanto, seu dever submeter à antiga religião nacional unitária, em pri-
meiro lugar, os cristãos, a seu ver os inimigos mais perigosos do Estado
Romano. Procedeu om tal decisão e tão sistematicamente que a sua
perseguição tem uma importância superior a todas as precedentes e
inaugura um novo período na história das mesmas. Um edito do fim
de 249 ou do início de 250 ordenava a todos os súditos oferecerem
aos deuses, juntamente com mulheres e devia-se proceder recorrendo
a todos os meios próprios de uma justiça cruel: cárcere, confiscação
dos bens, exílio, trabalhos forçados; depois, aumentando a aspereza, a
tortura e, finalmente, em certas circunstâncias – não em muitos casos
- também a pena de morte. Os bispos eram visados de modo especial
(tyrannus infestus sacerdotibus, Cipr. Ep. 55,9). Décio dizia tolerar mais
facilmente um rival no império do que um bispo cristão em Roma. Vis-
to que o golpe desabou como um raio em céu sereno, grande foi o
espanto dos cristãos. Infelizmente, em muitos casos, eles deram prova
de pouca força de resistência: nas grandes cidades como Alexandria,
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 159

Cartago, Esmirna e Roma, verificou-se uma defecção em massa; até


alguns bispos traíram a fé. Uma parte dos cristãos apóstatas (lapsi) ofe-
receu sacrifícios de animais ou de incenso aos deuses (sacrificati, turifi-
cati), outros, ao invés, sem oferecer sacrifícios, souberam proceder de
tal modo, seja com astúcia, seja com corrupção, que conseguiram da
autoridade o certificado prescrito de sacrifício realizado (libellus) e o
registro nas listas oficiais (libellatici, acta ou accepta facientes).
Mas houve também "uma multidão" (Cipr. De lapsis 2) de confes-
sores de mártires de todas as idades e sexo, firmes na sua fé; entre
outros o Papa Fabiano, uma das primeiras vítimas da perseguição
(a sua sede permaneceu vacante mais de um ano), o presbítero
Piônio de Esmirna, que foi queimado, os bispos Babila de Antioquia
e Alexandre de Jerusalém, os quais morreram no cárcere, o velho
Orígenes, que sofreu graves torturas, mas depois foi libertado. Mui-
tos, como os bispos Cipriano de Cartago, Dionísio de Alexandria e
Gregório, o Taumaturgo, de Neocesaréia, se salvaram a custos de
graves fadigas com a fuga (BIHLMEYER-TUECHLE, 1964, p. 92-93).

A perseguição terminou no ano 251, com a morte de Décio na


batalha contra os godos. Fruto desta perseguição foi a frustração com
tantos que abandonaram a fé. Por outro lado, muitos que sacrifica-
ram aos deuses ou compraram o libelo quiseram voltar para o seio
da comunidade cristã e isto gerou sérias discussões no seio da comu-
nidade. Surgiram as chamadas "controvérsias penitenciais", com um
grupo dos chamados "laxistas" que queriam a volta de todos ao seio
da comunidade e os "rigoristas", que ou não aceitavam o retorno dos
lapsos, ou que negaram a fé, ou que aceitavam o retorno mediante
grandes e pesadas penitências. Surgiram, inclusive, vários cismas que
provocaram grandes divisões em várias cidades do império.
Com o Imperador Galo (251-253), houve um tempo de paz,
mas depois um momento breve de perseguição; foram exilados os
papas Cornélio e Lúcio.
Valeriano (253-260): no início de seu governo protegeu os
cristãos, mas a partir de 257 os perseguiu, de modo especial, a
hierarquia, minando a organização eclesial; proibiu também as vi-
sitas e culto nos cemitérios. Entre os mártires, destacamos o Papa
Sisto II, São Lourenço, São Cipriano, São Frutuoso de Tarragona,
Augúrio, Eulógio e muitos outros.

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160 © História da Igreja Antiga e Medieval

O Imperador Galieno (260-268) deixou os cristãos em paz e


restituiu os cemitérios e lugares de culto. Aureliano (270-275) ten-
tou fortalecer o culto do sol, mas não perseguiu os cristãos.
Diocleciano (284-305): inicialmente ele manteve a política im-
perial anterior E não incomodou os cristãos. Ele promoveu a tetrar-
quia, dividindo o grande Império Romano em quatro regiões admi-
nistrativas, com forte acento militar; esse projeto fez com que anos
mais tarde Constantino chegasse ao poder imperial e, entre tantas
ações, promovesse a liberdade aos cristãos. Houve um grande cres-
cimento do número de cristãos com muitas conversões, inclusive a
própria esposa de Diocleciano e sua filha eram cristãs. Ocorreram
muitas construções de igrejas em várias regiões. Galério, um dos im-
peradores, era adepto do culto ao imperador e induziu Diocleciano
à perseguição que teve seu início no ano 303 e foi muito forte e in-
tensa, exigindo destruição das igrejas e entrega dos livros sagrados.
Houve muitos mártires: Papa Marcelino, o bispo Antimo, Vítor, Mau-
ricio, Cândido, Legião de Tebas, Santa Úrsula, Pânfilo de Cesareia,
Luciano de Antioquia, Pedro de Alexandria etc. A situação começou
a mudar quando Diocleciano abdicou, no ano 305, e, depois, quan-
do as resistências foram sendo amainadas.
As perseguições cessaram com o Edito de Tolerância, dos Im­
pe­radores Constantino, Galério e Licínio, no ano de 311. Neste edi-
to, os imperadores recriminam os cristãos pela desobediência dian-
te das lideranças romanas; permitem a prática da religião e pedem
as orações cristãs para os imperadores e prosperidade imperial.
Nem todos os imperadores perseguiram os cristãos, havia
relativa paz nas comunidades cristãs. Segundo alguns cálculos, so-
mados os anos de perseguições aos cristãos, chega-se a um total
de 129 anos.
É impossível calcular o número de vítimas, alguns afirmam
que foi em torno de 100 mil e outros 10 milhões, o que é impensá-
vel. É claro que não devemos falar só dos mártires (testemunhas)
que morreram pela fé, mas também dos que foram torturados,
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 161

desterrados, dos que tiveram seus bens confiscados etc. Entre as


vítimas das perseguições, citamos grandes santos e santas da Igre-
ja: Pedro, Paulo, Flávia Domitila, Inácio de Antioquia, Simeão de
Jerusalém, Policarpo de Esmirna, Justino, Blandina, Cecília, Inês,
Perpétua e Felicidade, Ponciano, Antero, Fabiano, Lourenço, Eulá-
lia, Sebastião etc.
As perseguições tiveram consequências negativas para a
Igreja: dificultou a organização e expansão eclesial; os apóstatas e
lapsos deram maus exemplos; os cristãos foram menosprezados e
marginalizados.
O lado positivo: os mártires são considerados uma riqueza
eclesial; as perseguições fizeram com que aumentasse o fervor e
a piedade cristã; o mar­tírio tornou-se ideal de santidade para os
cristãos; os mártires eram admirados pelos pagãos, gerando mui-
tas conversões para a Igreja.
A Igreja sempre se orgulhou e valorizou seus mártires, pois
eles testemunham a fé cristã e o compromisso da construção do
Reino. São sinais de que o Evan­gelho do Reino ainda não é uma
realidade palpável no mundo e que a justiça, a solidariedade, a
fraternidade, a verdade e o amor ainda estão longe da vida huma-
na. Os mártires acenam para o valor da verdadeira vida e incomo-
dam todos aqueles e todas as estruturas que não valorizam nem
respeitam a dignidade do ser humano, imagem de Deus. Eles nos
recordam que a vida celestial futura deve ser o ideal a ser buscado
no "aqui e agora" da história humana.
O Cristianismo teve Mártires da fé, do amor e da justiça na
história antiga, medieval, moderna e contem­porânea. O mundo
precisa desses profetas, ainda mais agora em que os ideais neo-
liberais e pós‑moder­nos geram tanta exclusão, margi­nalização,
violência, sofrimento e morte. Cito aqui alguns mártires da atuali-
dade, muitos dos quais ainda não estão nos altares da Igreja, mas
que, em pleno século 20, foram capazes de dar a vida pelo Reino e
pelo pró­ximo, testemunhando a virtude do amor e da justiça: Ma-

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162 © História da Igreja Antiga e Medieval

ximiliano Kolbe; Edith Stein; Rutílio Grande; Oscar Arnulto e Ro-


mero. No Brasil, podemos citar: João Bosco Penido Burnier; Eze­
quiel Ramin; Pe. Josimo Santo Dias da Silva; Ir. Adelaide Molinari;
Ir. Cleusa Carolina Rody Coelho, Ir. Doroty Stang e tantos outros.
As perseguições terminaram com o Édito de Tolerância, as-
sinado pelos Imperadores Constantino, Galério e Licínio, no dia 30
de abril de 311.
Com o Édito de Milão, no ano 313, os cristãos ganharam a li-
berdade de culto e, no final do século 4º, com o Imperador Teodó-
sio, o Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano.
Vejamos, agora, como foi a aproximação entre a Igreja e o
Império Romano.

6. IGREJA NO IMPÉRIO ROMANO CRISTÃO


O século 4º provocou grandes reviravoltas no Cristianismo:
de religião perseguida até o ano 311, passou a ser religião livre
no ano 313 e, já no final do século, com vários éditos imperiais de
Teodósio, entre 390 e 395, ano de sua morte, tornou-se a religião
oficial do Império Romano.
A atitude favorável do Imperador Constantino para os cristãos
trouxe como consequência uma mudança profunda no curso dos acon-
tecimentos da Igreja. O "Édito de Milão" do ano 313 admitia a liberda-
de dos cidadãos adorarem ao Deus em quem acreditavam: inúmeros
historiadores admitem que a mudança introduzida por Constantino nas
relações entre a Igreja e o Império Romano foi um acontecimento de
consequências incalculáveis na relação entre Estado e Religião.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Há várias posições sobre a relação entre Cristianismo e Estado. Existem os que
consideram que a aliança entre a Igreja e o Estado, até chegar a converter-se o
Cristianismo em religião oficial do império (390), colocou os cristãos e a hierar-
quia eclesiástica numa dependência diante do Estado (cesaropapismo). Outros a
veem como uma situação de privilégio, porque a "liberdade religiosa" decretada
em Milão foi substituída a favor da Igreja e contra o paganismo, o que provocou
muitos equívocos até nossos dias. Inclusive, houve momentos, especialmente
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 163

na Idade Média, em que o Cristianismo assumiu o poder político e temporal,


muitas vezes afastando-se do Evangelho e da justiça social, e praticando atos
de nepotismo, corrupção e abuso de poder. Mas, isto veremos em outra unidade.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A situação criada com a conversão de Constantino favoreceu
muito a expansão do Cristianismo, que penetrou nas classes supe-
riores do império e chegou até as regiões mais distantes e isoladas.
Mas também deu lugar a conversões menos sinceras e por moti-
vos menos nobres. Podemos afirmar que houve luzes e sombras,
pontos positivos e negativos para ambos.
Assinalo aqui elementos positivos da aproximação entre
Igreja e Estado:
• a liberdade da Igreja, com a qual esta conseguiu expandir
todas as suas forças internas;
• a organização eclesial alcançou um grande desenvolvi-
mento: hierarquia, liturgia, concílios, catequese, ações
beneficentes etc.;
• a expansão missionária teve, também, um extraordinário
incremento e foi possível evangelizar as regiões monta-
nhosas e os lugares mais afastados das cidades.
Enquanto, no início do século 4º, apenas a décima parte do
Império Romano era cristã, um século depois pode-se dizer que
quase todo o império fora batizado; mérito não pequeno da Igreja
desse tempo é a sistematização teológica da mensagem evangéli-
ca por obra dos grandes padres e doutores da Igreja, como Ataná-
sio, Basílio, Gregório, Agostinho e Jerônimo.
Existem também espessas trevas na Igreja desse segundo
período da Idade Antiga:
• a excessiva dependência do poder político, que chegou a
se degenerar em autêntico cesaropapismo;
• a decadência alarmante do altíssimo nível de moralidade
e de exigências da vida cristã, que havia caracterizado os
cristãos dos primeiros três séculos.

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164 © História da Igreja Antiga e Medieval

Pode-se afirmar, desse modo, que o mundo romano estava


batizado, mas não convertido.

Império Romano cristão: expansão do Cristianismo durante os


três primeiros séculos
Os primeiros cristãos exerceram grande atividade missioná-
ria (Mt 24, 10): as viagens dos apóstolos e de São Paulo por di-
versas regiões do Império Romano, a fundação de comunidades
cristãs nas principais cidades do império, embora houvesse pouca
penetração cristã nas regiões rurais.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Segundo cálculos aproximativos, sobre uma população de 50 milhões de habi-
tantes no Império Romano, eram cristãos uns 6 ou 7 milhões no início do século
4º. Os cristãos eram, em sua maioria, procedentes das classes inferiores; mas
também existiam cristãos vindos das classes altas (nobres e intelectuais).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Existiam, no século 4º, em torno de 1500 sedes episcopais, sendo


umas 800 na parte oriental do império e 700 no ocidente.

Estudiosos apontam vários motivos que favoreceram a ex-


pansão cristã e elencamos aqui alguns deles: o desejo da verdade
explícita nos Evangelhos; respostas para vários temas (desejo da
libertação da fatalidade e do pecado, imortalidade da alma, esco-
po da vida terrena, justiça distributiva etc.); desejo da santidade
interior; milagres e carismas; curas e expulsão de demônios; amor
fraterno e ação caritativa; firmeza dos mártires e fervor dos cris-
tãos. Temos, também, os motivos que impediam a conversão ao
Cristianismo: preconceitos contra os cristãos; renúncia ao passado
(família, sociedade, profissões pagãs, religião dos grandes); mo-
noteísmo cristão em face ao politeísmo romano e ateísmo cristão;
adesão a dogmas misteriosos; culto esotérico e misterioso; rigo-
rismo moral; rejeição dos cristãos ao serviço militar e à guerra;
perigo constante de morte na época das perseguições. Sobre este
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 165

tema, BIHLMEYER-TUECHLE o aprofunda quando fala dos motivos


que favoreceram a rápida difusão do Cristianismo e dos obstá-
culos à propagação e causas da perseguição do Cristianismo. O
processo contra os cristãos (1964, I, p. 76-84).

Conversão e política religiosa de Constantino


O tema da conversão de Constantino foi e continua sen-
do discutido por muitos estudiosos, pois há os que afirmam que
Constantino se converteu ao Cristianismo por interesses políticos
e há os que dizem que foi em razão de um processo gradativo de
simpatia pela doutrina e pelo testemunho dos cristãos que o levou
a privilegiar o Cristianismo e a se batizar antes de sua morte, no
ano 337.
Além disso, pode-se acrescentar que seu pai, Constâncio
Cloro, evitou perseguir os cristãos; que ele teria parentes cristãos,
que se admirou muito com a convicção dos mártires cristãos etc.
Além de tudo isso, há o fato de ele ter assinado o Édito de
Tolerância (311) e o Édito de Milão (313) e, depois disso, ter ajuda-
do muito o Cristianismo na construção de igrejas, no apoio ao cle-
ro e na eliminação da legislação pagã e adaptação das leis romanas
de acordo com a moral cristã.

O Édito de Milão (313 d.C.) declarava que o Império Romano se-


ria neutro em relação ao credo religioso, acabando, oficialmente,
com toda perseguição sancionada, especialmente contra o Cris-
tianismo.

Acrescente-se o episódio da batalha contra Maxêncio, na


ponte Milvia, quando, com estandartes e com a cruz cristã, Cons-
tantino venceu a batalha, segundo afirmam vários historiadores,
com destaque para Eusébio de Cesareia, com a ajuda do Deus dos
cristãos, e o fato de ele se colocar contra os imperadores que se
posicionaram contra os cristãos (Galério, Maxêncio, Licínio).

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166 © História da Igreja Antiga e Medieval

Constantino não se contentou em deixar em liberdade a


Igreja, mas passou a fazer inúmeros favores a ela e foi adequando
a vida do Império Romano aos hábitos e à moral cristã:
1) exonerou o clero dos encargos municipais (313);
2) concedeu aos bispos jurisdição, inclusive em causas civis
(318);
3) reconheceu a Igreja como sociedade civil, com capacida-
de para receber legados (321);
4) elevou o domingo a dia de repouso obrigatório (321);
5) confiou a cristãos os postos mais elevados do Estado;
6) construiu, por sua conta, várias basílicas: São Pedro no
Vaticano, São Paulo na Via Ostiense, Santo Sepulcro, Be-
lém etc.;
7) transladou a residência imperial para Constantinopla,
fundando uma cidade inteiramente cristã (330);
8) publicou um Édito no qual manifestava seu desejo de
que todos os súditos do império abraçassem o Cristia-
nismo (324);
9) proibiu que alguém fosse incomodado por suas crenças
religiosas.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Constantino morreu no dia de Pentecostes de 337, dois meses depois de receber
o batismo. A Igreja grega o venera como santo, juntamente com sua mãe, Santa
Helena. A Igreja Ocidental não rendeu culto a Constantino, mas atribuiu-o à sua
mãe.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Pierini, sintetizando a obra de Constantino, assim escreve:
[...] como bom militar e astuto político herda as reformas da te-
trarquia, mas as corrige, livrando avante só as mais seguras: assim,
acentua a autocracia do poder imperial, mantendo contempora-
neamente a divisão administrativa do Império introduzida por Dio-
cleciano; concentra em suas mãos o poder militar, mas ao mesmo
tempo aperfeiçoa a já iniciada distinção entre tropas de fronteira e
tropas de manobra interna, incrementando e privilegiando parti-
cularmente as últimas; aperfeiçoa a burocracia palaciana, mas ao
mesmo tempo procura tornar cada vez mais articulada e estável
a burocracia subalterna; mostra-se respeitoso em relação à an-
tiga Roma, mas ao mesmo tempo funda uma nova, em Bizâncio,
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 167

dando-lhe seu próprio nome (Constantinopla, 11 de maio de 330);


renuncia à defesa do poder de compra das classes inferiores, mas
ao mesmo tempo procura garantir a solidariedade dos segmentos
mais abastados, favorecendo-os com a monetização áurea (o "soli-
dus"); respeita o velho paganismo, mas ao mesmo tempo favorece
os cristãos, até fazer-se batizar, no leito de morte.
Esse tipo de política mostra-se "revolucionário" apenas o suficiente
para manter o 'status quo': com esse critério, que se deduz de todo o
comportamento de Constantino, deve ser julgada também a atitude
religiosa do imperador. Constantino, como bom militar, tinha sido,
na juventude (até por volta de 306), seguidor da religião de Mitra e
do "Sol invictus", ou seja, do enoteísmo solar introduzido no Império
por Aureliano, de 306 a 310, casando-se com Fausta, filha de Maxi-
miano Augusto, passou a participar da família imperial "hercúlea" e,
portanto, da concepção religiosa que estava na raiz da tetrarquia; de
310 a 312, depois da ruptura com o sogro Maximiano, voltou ao eno-
teísmo solar, a partir de 312, quando começa a luta contra Maxêncio,
interessa-se cada vez mais pelo cristianismo, não tanto por influência
da mãe, a cristã Helena, e mais por uma visão política e religiosa dos
acontecimentos, algo que lhe era congenial.
Nessas circunstâncias, em 312, antes do confronto decisivo com
Maxêncio, acontece a famosa "visão" da cruz e das palavras "Com
este sinal vencerás", ou um mero sonho, ou uma simples prece de
Constantino ao Deus dos cristãos. Seja como for, trata-se de um
começo de conversão. De fato, Constatino, ao entrar em Roma em
outubro de 312, logo depois da vitória contra Maxêncio, não vai
ao Capitólio para oferecer o sacrifício a Júpiter; recebe a homena-
gem de uma estátua erigida na Basílica de Maxêncio, que trazia um
"salutare sgnum", provavelmente igual àquele que mandou colo-
car nos estandartes e nos escudos dos soldados (monograma de
Cristo?); cruz monogramática?, sinal-da-cruz propriamente dito?);
em 315, recebe homenagem do arco do triunfo, perto do Coliseu
(atual arco de Constantino), com uma inscrição que atribui a vitó-
ria constantiniana à " inspiração da divindade", sem precisar qual
(enoteísmo solar, monoteísmo cristão?).
É só o começo da conversão ao Cristianismo, além do mais por
razões políticas, que se manifestará de maneira bastante ambígua
(mas sempre levando em conta o interesse político) nos anos se-
guintes, concluindo-se enfim, como já acenamos, com o batismo
cristão, recebido no leito de morte das mãos de Eusébio de Nico-
média, bispo da corte e semi-ariano. (PIERINI, 1986, p. 127-129)

Após a morte de Constantino, com seus filhos (Constâncio


que ficou com a Ásia e Egito; Constante, que ficou com Ilíria, Itália
e África e Constantino, que II ficou com a Gália, Península Ibérica

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168 © História da Igreja Antiga e Medieval

e Britânia) e com seus sucessores, o Cristianismo continuou tendo


privilégios, mas foram surgindo e se fortalecendo algumas heresias
(arianismo com suas várias facções e o donatismo) que provocaram
cismas e divisões, assim como várias intervenções imperiais, muitas
delas motivadas mais por interesses políticos que religiosos. Neste
mesmo período, o paganismo não estava exterminado e conseguiu
importante reabilitação com o poder imperial, quando Juliano, o
Apóstata (361-363), sobrinho de Constantino, chegou ao trono im-
perial e com sua morte chegou ao fim a dinastia constantiniana
Após um período de grande instabilidade política, chegou ao
trono o Imperador Teodósio (378-395). Com ele as restrições ao
paganismo aumentaram e o Cristianismo foi elevado à religião ofi-
cial do Império Romano. Teodósio, na parte ocidental, mostrou-se
ainda mais severo com os pagãos e apóstatas:
1) declarou que "é sua vontade que todos os povos sub-
metidos a seu império abracem a fé que a Igreja romana
recebera de Pedro" (380);
2) por diferentes leis, tirou dos apóstatas da religião cristã
o direito de chefia;
3) proibiu os sacrifícios pagãos (381-383);
4) instituiu lei pela qual se ordenava o fechamento de to-
dos os templos pagãos, que deveriam ser convertidos
em templos cristãos (386);
5) o auge de sua legislação antipagã foi alcançado com uma
lei pela qual se considera como "crime de lesa-majesta-
de" os cultos pagãos. O Édito de liberdade religiosa de
Milão de 313 ficava, assim, anulado, indo contra o pa-
ganismo. O Cristianismo permaneceria como "religião
oficial do Império Romano" (392).
Pierini assim descreve a chegada de Teodósio ao poder e
seus primeiros atos:
[...] morto Valente, no dia 9 de agosto de 378, em Adrianópolis, quan-
do tentava conter a invasão gótica, e tendo-lhe sucedido no Império
do Oriente Teodósio, este e Graciano publicaram em Tessalônica, no
dia 27 de fevereiro de 380, o edito Cunctos populos, com o pqual
prescrevem a todos os súditos do Império romano a religião "trans-
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 169

mitida pelo apóstolo Pedro aos romanos" e agora ensinada pelo bis-
po de Roma, Damaso, e pelo de Alexandria, Pedro. Em 391, enfim, é
proibido completamente o culto pagão, sob todas as formas.
A união da causa imperial com a cristã caminha, pois, para se tornar
integral: isso, no entanto, não consegue afasar a ameaça que pesa
sobre o Império, inclusive porque, dado que os seculares inimigos
persas, no Oriente, ressuscitaram o zoroatrismo para opor-se me-
lhor às religiões do Império romano, assim os bárbaros ou são pa-
gãos ou são cristãos de confissão ariana, pregada a eles pelo bispo
godo Ulfila, entre os anos 341 e 383.
A divisão religiosa, porém, não é a única nem a mais importante:
a causa imperial, pelo menos no Ocidente, está definitivamente
arruinada, porque as inflitrações e as invasões bárbaras, cada vez
mais freqüentes, recebem apoio dos escravos fugitivos, dos colo-
nos que não suportavam os laços com a terra, dos artesãos prole-
tarizados e de todos os outros segmentos que haviam encontrado
um momento de fusão logo após a batalha de Adrianópolis, quan-
do os godos vitoriosos saqueiam a Trácia, e se reencontram quando
os godos de Alarico, subindo a Ilíria e descendo pela Itália, chegam
às portas de Roma. (1986, p. 131-132).

Teodósio morreu em 395. O império dividiu-se definitiva-


mente em duas partes entre os filhos de Teodósio, o Grande: Arcá-
dio (395-408), no Oriente; Honório (395-423), no Ocidente, que le-
vou a capital para a cidade de Ravenna, deixando Roma nas mãos
dos bárbaros em 410, o que fez com que crescesse a desagregação
do Império Romano no Ocidente até sua queda em mãos dos bár-
baros, em 476.
No fim do século 4º, com o Imperador Teodósio, a aliança
com o Império Romano aumentou, e o Cristianismo passou a ser a
religião oficial do Estado. Dessa maneira, ele passou a ter mais pri-
vilégios e a correr o risco do cesaropapismo, ou seja, a influência
do poder temporal nos assuntos eclesiásticos. Cessando as perse-
guições e com os privilégios conseguidos, para muitos o Cristianis-
mo tornou-se uma religião fácil e de busca de interesses com um
consequente descuido. As grandes massas chegaram à Igreja e à
obra missionária intensamente, mas muitos neoconvertidos esta-
vam marcados pela superstição e pelos cultos pagãos, interessa-
dos, apenas, em pertencer à religião oficial do Estado.

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170 © História da Igreja Antiga e Medieval

Assim, concomitante ao crescimento do Cristianismo, con-


solidaram-se as heresias Trinitárias (Arianismo e Subordinacio-
nismo), Cristológicas (Apolinarismo, Nestorianismo, Docetismo,
Monofisismo e Monotelismo) e Soteriológicas (Donatismo e Pe-
lagianismo), que provocaram grandes cismas. Nesse contexto de
expansão do Cristianismo, a necessidade de uma maior organiza-
ção pastoral e o combate às heresias geraram a necessidade de se
convocar os primeiros concílios ecumênicos:
1) Concílio de Niceia (325).
2) três em Constantinopla (381, 553 e 681).
3) Éfeso (431).
4) Calcedônia (451).
Desse modo, este período foi marcado pela organização das ati-
vidades missionárias, pelo surgimento do monacato e o trabalho mis-
sionário ingente de centenas de monges em várias partes do império;
pelas invasões bárbaras, pela queda do Império Romano do Ocidente
no ano 476 e a consequente ascensão do Cristianismo como liderança
da Europa continental. Outro acontecimento marcante deste período
foi o surgimento do Islamismo, com Maomé, em 622, o que provocou
grande instabilidade na parte oriental do Império em áreas que eram
predominantemente dominadas pelo Cristianismo.
Nesse contexto de tantas mudanças, a obra de organização
eclesial e de sistematização da ortodoxia cristã foi grande a tarefa
exigida às lideranças cristãs, especialmente, aos Padres da Igreja,
que fomentaram a ciência eclesiástica a partir do século 4º. As di-
ferentes ciências teológicas adquiriram sua expressão própria. As
escolas teológico-catequéticas de Alexandria, de Antioquia, de Ce-
sareia, de Roma e de Constantinopla se consolidaram.
Na segunda metade do século 5º, começou a decadência
da ciência eclesiástica. Não por que faltassem escritores, mas por
não haver entre eles, com exceção de Gregório Magno (+604) no
Ocidente e de São João Damasceno (+749) no Oriente, nenhuma
estrela de grande magnitude. Na verdade, as circunstâncias exte-
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 171

riores não permitiam entrega absoluta às ciências eclesiásticas;


os transtornos econômicos e sociais, produzidos pelas invasões
bárbaras, paralisaram o florescimento teológico e literário da épo-
ca anterior. Nesse contexto, a antiguidade foi cedendo espaço ao
mundo medieval, com todas as suas novas características.
O estudioso de Patrologia, Hamman, contextualiza as mu-
danças ocorridas no século 4º e o contexto eclesial e social dos
Santos Padres dos séculos 4º e 5º, deste modo:
As coisas mudaram com a ascensão progressiva de Constantino,
que se tornou finalmente o único senhor do Império. Depois de
dois séculos de perseguição, a Igreja foi legalizada, passando logo
depois a ser religião do Estado. O imperador, preocupado em res-
tabelecer a unidade e a força sobre bases novas, percebeu o bom
aliado que o cristianismo poderia tornar-se para ele. A mudança
era inaudita, a ponto de os contemporâneos acreditarem estar as-
sistindo à realização do reino de Deus na terra.
A realidade, porém, ia ser bem outra. A Igreja, libertada da opres-
são, conheceria uma provação mais terrível talvez do que a hostili-
dade: a proteção facilmente onerosa do Estado. As grandes perso-
nalidades da Igreja não tardarão a perceber a ameaça e a opor-se
aos sucessores de Constantino. Para avaliar isto, basta lembrar-se
de que o imperador, - e não o Papa - foi quem tomou a iniciativa de
convocar o concílio ecumênico de Nicéia, o qual se realizou no seu
palácio. O príncipe em pessoa fez o discurso de abertura (mais ou
menos como se John Kennedy ou Charles de Gaulle tivesse aberto
o concílio Vaticano II). O imperador nem era batizado.
A intromissão política do governo da Igreja ameaçará gravemente
a ortodoxia. Os imperadores estão à mercê dos bispos cortesãos.
Metem-se a legislar em teologia como legislam em política. Os
bispos, como Atanásio e Hilário, acham-se à altura dos aconteci-
mentos. Nem a intriga nem o exílio porão fim à sua resistência. O
Império é que é obrigado a ceder.
Ao longo deste quarto século, os grandes doutores terão de lutar
contra as seqüelas da heresia e consertar as brechas que ela pro-
vocou na Igreja. Os três capadócios ocupam a maior parte do seu
tempo e de seus estudos para refutar o erro. Quando Gregório de
Nazianzo foi feito bispo de Constantinopla, a Igreja ortodoxa com-
preendia apenas um punhado de homens. Graças a o esforço dos
Padres, a ortodoxia e a unidade hão de ter a última palavra.
A segunda metade do século vê florescer o que os historiadores
chamaram de idade e ouro dos Padres da Igreja. Os maiores nomes

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172 © História da Igreja Antiga e Medieval

da antiguidade cristã, pastores e teólogos, tanto do Oriente como


do Ocidente, situam-se nesta época de intensa fermentação inte-
lectual. Formaram-se nas escolas da cultura pagã. Esta é colocada
por eles a serviço do Evangelho.
´Os Padres do século IV e o início do século V representam um mo-
mento de equilíbrio particularmente precioso entre uma herança
antiga, ainda bem pouco atingida pela decadência e perfeitamente
assimilada, e, por outro lado, uma inspiração cristã que já chegou à
maturidade´, escreve H. Marrou.
A maioria deles só recebeu o batismo na idade adulta, embora
oriundos de famílias profundamente cristãs. Depois dos estudos,
exerceram uma profissão profana. Todos os padres gregos fizeram
uma espécie de noviciado com os Padres do deserto, e depois in-
gressaram no grupo deles. Eram eles os candidatos designados
para os cargos; primeiro padres, em seguida bispos. É uma era de
grandes bispos para a Igreja.
O ensino cristão é ministrado através da catequese e da pregação.
Trata-se de esclarecer o espírito e de formar os costumes. Os Padres,
intelectualmente formados pelas escolas de seu tempo, tomam po-
sição nas controvérsias teológicas. Servem à fé com os recursos da
cultura filosófica. Longe de limitar sua ação à elite, permanecem jun-
to de seu povo, da multidão dos pobres e humildes. Jamais pactuam
com os poderosos e ricos, mas recordam-lhes os grandes temas da
justiça e do respeito ao homem, e estabelecem os fundamentos de
uma ordem social cristã. Os Padres enriquecem a Igreja com todos os
recursos do patrimônio grego. Sua atuação e suas obras abrem uma
nova era e lançam as bases da civilização cristã (1980, p.105-106).

Assim, concluindo este período, podemos salientar alguns


aspectos principais:
O Cristianismo nasceu e desenvolveu-se dentro da estrutura
do antigo Império Romano. Já vimos o tema das perseguições nos
primeiros séculos, época muito difícil para os cristãos, mas que, ao
mesmo tempo, provocou um amor radical a Cristo e uma adesão e
fidelidade inquebrantáveis à Igreja.
Com o Edito de Tolerância, em 311, os cristãos passaram a ser
aceitos, mas a emancipação completa ocorreu com a assinatura do Edi-
to de Milão, em 313. Desse documento imperial, assinado pelos Impe-
radores Constantino e Licí­nio, o Cristianismo passou a ser uma "religião
lícita". Mais tarde, com o Imperador Teodósio, no final do século 4º,
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 173

tornou-se a religião oficial do Império Romano, e os cultos e as religiões


pagãs deixaram de ser reconhecidos e tolerados em todo o Império Ro-
mano. Esse fato provocou grande mudança na estrutura eclesial cristã.
No século 4º, os cristãos representavam uns 12% da popu-
lação imperial, ou seja, em torno de 5 a 7 milhões. No final do sé-
culo, quase toda a população imperial estava batizada, quase que
obrigatoriamente, pois muitos se convertiam ao Cristianismo por
interesse ou em busca de status e poder social.
Como afirmam muitos Santos Padres deste período, a Igreja
"cresceu em número, mas diminuiu em santidade".
Com essa mudança, a Igreja teve de se organizar:
1) grandes igrejas foram cons­truí­das;
2) liturgia tornou-se muito mais rica, surgiram novos ritos e
a espiritualidade cristã foi cada vez mais conhecida;
3) iniciaram-se os grandes concílios ecumênicos (Nice­ia,
Cons­tantinopla, Éfeso, Calcedônia), convocados para re-
solver problemas ligados à organização e vida eclesial e,
principalmente, para solucionar o grave problema das
heresias que dividiram a Igreja e a vida imperial;
4) a reflexão teológica desenvolveu-se, fortalecendo o dog-
ma e sua sistematização;
5) cresceu a atividade missio­nária, principalmente diante
da possibilidade de se evangelizar os povos bárbaros;
6) a estrutura social e a política romana foram absorvendo os
valores da ética cristã, fazendo com que os valores do Evan-
gelho fossem assumidos por toda a população imperial.
O grande defensor e interces­sor do povo, principalmente na
época das invasões, foi o bispo de Roma, sucessor de São Pedro.
Ao Papa dirigiam-se os pedidos de proteção da parte do povo ro-
mano. Assim, pouco a pouco, o Papa que já tinha uma liderança
eclesial muito grande, tornou-se um "senhor temporal", pois era
tratado com respeito pelos chefes políticos da época, passando a
administrar um território cada vez maior.

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174 © História da Igreja Antiga e Medieval

Na Idade Média, com a criação do Sagrado Império Romano-


-Germânico, o poder papal cresceu muito, e a partir do século 11,
chegou-se àquela situação em que o poder temporal dos papas
era muito grande e ficou conhecido como o período do "apogeu
do papado". Esse período foi de muitas luzes, mas, também, de
muitas trevas, pois muitos papas estavam mais preocupados com
a manutenção do poder e das riquezas da Igreja que com o bem
espiritual dos cristãos. Muitas vezes, infelizmente, usaram até da
força para conseguir seus objetivos, relegando para o segundo pla-
no os mandamentos do amor e da caridade.

Os povos bárbaros
A partir do Edito de Milão, os cristãos tiveram mais liberdade
de ação. É claro que, mesmo no primeiro século, os cristãos já che-
gavam a várias regiões que não eram dominadas pelos romanos.
O Império Romano era o grande fascínio dos povos germâ­
nicos e eslavos, conhecidos como bárbaros, por serem rudes e não
terem alcançado o progresso dos romanos. Por isso, vários povos
do norte e leste europeu ameaçam as fronteiras do império, que
vai se debilitando, até a queda em 476.
Vários destes povos eram pagãos, alguns já conheciam rudi-
mentos da fé cristã e outros já conheciam várias heresias. Tanto os
que já estavam dentro das fronteiras do império como os que esta-
vam fora precisavam ser evan­ge­lizados. Foi necessário um trabalho
intenso e árduo, que durou vários séculos. Os missionários, em sua
grande maioria, monges, percorreram toda a Europa, evangeli­zando
godos, visi­godos, lombar­dos, os­trogados, frí­sios, francos etc.
Um destaque especial ao povo franco, que se converteu di-
retamente do paganismo ao Cristianismo, quando o rei Clóvis foi
batizado em 496. Na Idade Média, foi este povo que dominou to-
dos os outros povos e, pelo fato de ser cristão, levou e, em alguns
momentos, impôs a religião cristã aos povos submetidos militar e
politicamente ao Império Franco.
© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 175

Esse povo se tornou uma potência e a aliança entre eles e a


Igreja fez com que nascesse o Sagrado Império Romano-Ger­­mâ­nico,
no ano 800, quando Carlos Magno foi coroado pelo Papa Leão III.

O Papado fortalecido
Quando os povos bárbaros começaram a invadir as frontei-
ras do Império Romano, este começou a entrar em crise, a qual
teve seu ponto alto na deposição do Imperador Rômulo Augústu-
lo, no ano de 476.
A queda do Império Romano não se deu só por causa dessas
invasões, outros mo­tivos contribuíram para isso: a depravação dos
costumes, as imoralidades, a falta de seriedade e espírito de sa-
crifício e de trabalho dos cidadãos do império, as lutas pelo poder
que geravam muitas mortes, golpes militares e deses­tabilização
política, a crise econômica, a manutenção de um grande exército
etc. Era, pois, inevitável a queda.
Estejamos atentos, porque esta queda do Império Romano só
se deu na parte Ocidental do império. A parte Oriental só caiu no ano
de 1453, quando os turcos otomanos do­­minaram Cons­tantinopla.

O MONACATO CRISTÃO
No primeiro século, já existiam no seio da Igreja primitiva
os ascetas, ermitães ou anacoretas (homens que deixam tudo e
retiravam-se à solidão dos desertos, das florestas e dos lugares
mais distantes para se dedicar à vida espiritual) e as virgens (mu-
lheres que, embora vivendo com suas famílias, consagravam-se
totalmente a Deus e viviam em oração e pres­tando serviços cari-
tativos em suas comunidades). Esses homens e mulheres viviam
sozinhos e com poucos vínculos com a comunidade eclesial e não
muito preocupados em organizar mosteiros ou casas de vida co-
mum. Muitos deles ajudavam os iniciantes na introdução da vida
anacorética e ascética como Santo Hilarião, Santo Antão etc.

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176 © História da Igreja Antiga e Medieval

Com as perseguições, muitos fugiam e retiravam-se para o


deserto, consagrando-see a Deus. A partir do século 4º, foi se de-
senvolvendo o cenobitismo, ou seja, a vida comum. Era muito di-
fícil, para os que queriam se retirar para servir a Cristo, viver nos
desertos e florestas sem uma estrutura capaz de dar estabilida-
de. São Pacômio deu os primeiros passos para essa organização
da vida em comum seguido por vários outros grandes expoentes
e incen­tivadores como São Basílio, Santo Agostinho, São Bento (o
pai do monacato ocidental) etc.
O mona­cato gerou grande número de santos e santas, mis-
sionários, teólogos, filósofos e bispos. Em torno dos mosteiros,
surgiram cidades, bibliotecas, escolas e técnicas agrícolas. Foi um
período fecundo em que a Igreja se desenvolveu em to­dos os seto-
res e adquiriu uma consistência inques­tionável, dando-lhe forças
para cumprir com di­gnidade, apesar dos seus erros históricos, a
missão evangelizadora, que lhe fora confiada por Cristo.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
1) Como era a relação dos cristãos com o mundo romano e quais as principais
causas das perseguições?

2) Quais os principais aspectos da doutrina cristã foram questionados pelos


intelectuais e imperadores romanos?

3) Quais foram os benefícios e malefícios das perseguições contra os cristãos?

4) Quais as razões pelas quais se fortaleceu a relação entre o Império Romano


e o Cristianismo?

5) Como você vê a atuação dos Imperadores Constantino e Teodósio com o


Cristianismo?

6) Qual a importância deste estudo para sua vida acadêmica e profissional?


© U3 - Perseguições Romanas, Oficialização do Cristianismo e Aliança com o Estado Romano 177

8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você foi convidado a compreender o proces-
so histórico de perseguição sofrido pelos cristãos na antiguidade,
bem como as diversas frentes de hostilidades judaicas e pagãs
contra a fé cristã, por meio das calúnias populares e intelectuais
articuladas contra os seguidores de Cristo. Mas o Cristianismo re-
sistiu a tudo isso e foi se estruturando internamente e conquistan-
do espaços externamente. Precisamos, contudo, refletir sobre isto:
a religião cristã, vítima de tamanha perseguição, tornou-se livre e,
posteriormente, veio a ser a religião oficial do Império Romano.
Na proxima unidade, veremos as características do mundo
medieval, queda de Roma e ascensão do Cristianismo.
Até lá!

9. E-REFERÊNCIA
Celso – Texto: SUBSOLO. Celso. Disponível em: <http://www.subsolo.org/hermenauta/
archives/2007/01/eterno_retorno.html>. Acesso em: 13 maio 2011.

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FRÖHLICH, R. Curso básico de história da igreja. São Paulo: Paulinas, 1987.
GONZÁLEZ, J. L. A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1995. v. 1.
PIERRARD, P. História da igreja. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.
COMBY, J. Para ler a história da igreja. Tradução de Maria Stela Gonçalves-Adail V. Sobral.
São Paulo: Loyola, 1994. v. 2.
JEDIN, H. Manual de historia de la iglesia. Barcelona: Herder, 1980. v. 1.
BIHLMEYER, K.-TUECHLE, H. História da igreja. Tradução de Ebion de Lima. São Paulo:
Paulinas, 1964. v. 1.
GÓMEZ, J. A. Manual de historia de la iglesia. Madrid: Publicaciones Claretianas, 1987.
PIERINI, F. A idade antiga I. Tradução de José M. Almeida. São Paulo: Paulus, 1998.
MEEKS, W. A. O mundo moral dos primeiros cristãos. São Paulo: Paulus, 1996.
GIBBON, E. Declínio e queda do império romano. São Paulo: Companhia das Letras, 1980.
MARKUS, R. A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997.
SORDI, M. I Cristiani e l´Impero Romano. Milano: Jaka Book, 1980.

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EAD
Características do Mundo
Medieval, Queda de Roma
e Ascensão do
Cristianismo 4
1. OBJETIVOS
• Reconhecer a terminologia e as características do mundo
medieval.
• Identificar e interpretar a queda de Roma (476) e as ca-
racterísticas dos povos germânicos e eslavos (bárbaros).
• Analisar a ascensão da Igreja, o Estado Pontifício e o Feu-
dalismo.

2. CONTEÚDOS
• Idade Média.
• Queda de Roma (476), povos germânicos e eslavos (bár-
baros).
• Ascensão da Igreja, o Estado Pontifício e o Feudalismo.
• Espiritualidade Cristã .
• Vida monástica.
180 © História da Igreja Antiga e Medieval

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para a maior compreensão desta unidade, sugerimos
que você retome as segunites obras:
• PIERRARD, P. História da igreja. Tradução de Álvaro
Cunha. São Paulo: Paulinas, 1982.
• COMBY, J. Para ler a história da igreja. Tradução de
Maria Stela. São Paulo: Loyola, 1994. v. 1-2.
2) Renove suas ideias sobre a Idade Média. Para tanto, leia
as páginas de 9 a 14 da obra: DEL ROIO, J. L. Igreja me-
dieval, a cristandade latina. São Paulo: Ática, 1997.
3) Amplie seus conhecimentos! Realize pesquisas em si-
tes de busca, utilizando o termo "Idade Média" como
palavra-chave. Sugerimos, também, a consulta ao se-
guinte site: SUA PESQUISA. Idade Média. Disponível em:
<http://www.suapesquisa.com/idademedia/>. Acesso
em: 18 maio 2011.
4) Quem foram os francos? Os lombardos? Os burgúndios?
Os ostrogodos? Os vândalos? Os anglo-saxões? Para res-
ponder a essas questões, é muito importante que não se
limite ao conteúdo do texto principal, complemente-o
por meio de pesquisas às obras referenciadas ao térmi-
no desta unidade, ou em sites de busca, nos quais pode-
rá utilizar a denominação do povo como palavra-chave
para sua busca.
5) O que é piedade eucarística? O que é a festa de Corpus
Christi? O que é Via-Sacra? Há inúmeros termos citados
no texto principal que você pode pesquisar para ampliar
sua compreensão sobre os conteúdos estudados. Saiba
mais, você é o protagonista de sua aprendizagem!
6) Se houver dúvidas, não desanime! Procure ajuda com
seus colegas de curso ou com seu tutor. Lembre-se de
que o entendimento do conteúdo é fundamental para
que possa prosseguir com o seu estudo. Acesse a Sala de
Aula Virtual e interaja!
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 181

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na Unidade 3, você foi convidado a compreender a relação
de poder estabelecida pelo Império Romano contra os cristãos.
Nesta unidade, vamos reconhecer a terminologia e as ca-
racterísticas do mundo medieval, estudar a queda de Roma (476),
as características dos povos germânicos e eslavos (bárbaros), a as-
censão da Igreja e a organização do Cristianismo medieval.
Bom estudo!

5. IDADE MÉDIA
A Idade Média é um dos períodos mais interessantes de se
estudar, seja no âmbito social, seja no âmbito eclesial.
Quando se fala em Idade Média, pensa-se no "século de ferro"
da Igreja, na papisa Joana, no Feudalismo, na Cristandade e no auge
do papado, no surgimento do Islamismo, nas Cruzadas, na Inquisição,
na perseguição aos hereges e às mulheres acusadas de bruxaria, no
Humanismo e no início do Renascimento (porque o Renascimento
continua até o século 16), temas que até hoje são discutidos com evi-
dência e nem sempre analisados criticamente.
Para entender melhor, vejamos alguns esclarecimentos in-
trodutórios para nos situar no contexto da Idade Média:
1) A Idade Média está inserida no período entre os séculos
8º e 13. Porém, para alguns historiadores eclesiásticos,
a Idade Média já começa com o Edito de Milão, em 313;
para outros, inicia-se com a derrocada do Império Roma-
no do Ocidente, ocorrida no ano 476, ou com o fim das
controvérsias doutrinais antigas, no 3º Concílio de Cons-
tantinopla, em 681. E ela se estenderia até o início da
crise eclesial do século 13, ou até a queda de Constanti-
nopla, em 1453; ou ainda, até a descoberta da América e
a vitória espanhola contra os muçulmanos, em 1492; ou
até o início da reforma luterana, em 1517.

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182 © História da Igreja Antiga e Medieval

Sobre a questão da datação ou periodização da Idade Média,


Del Roio escreve:
Muitos estudiosos da história da Igreja consideram o ano 313 como
o marco terminal do período heróico, da Igreja-testemunho, e o
início da era da Igreja-poder. Como se sabe, naquele ano os impe-
radores Constantino e Licínio promulgaram o Edito de Milão, pelo
qual o cristianismo foi declarado religião oficial de todo o Império
Romano. Esses historiadores situam aí o início da Idade Média.
Mais conhecido, porém, é o ano de 476, quando o chefe germano
Odoacro destrona o último imperador romano do Ocidente, Rômulo
Augústulo, e envia as insígnias imperiais a Zenão, imperador de Cons-
tantinopla, significando que o Império deixara de existir no Ocidente.
No entanto, melhor ainda seria deslocar essa data para o ano 800,
quando o papa Leão III coroa Carlos Magno imperador do renasci-
do Império Romano do Ocidente. Só a partir de então, basicamen-
te, é que começa a existir a ‘cristandade latina’. Anteriormente, o
eixo da cristandade espraiava-se pelo Mediterrâneo e mantinha
profundas relações com o Oriente. Era uma Igreja que, poder-se-
-ia dizer, ainda ‘falava’ o idioma grego. A partir dos anos oitocen-
tos – também por conta da ocupação paulatina do Mediterrâneo
pelo Islã – esse eixo desloca-se para o mundo franco-germânico,
onde se desenvolverá uma Igreja que ‘fala’ o idioma latino. Roma
deixará de ser a encruzilhada do mundo, ponto de convergência,
para se tornar sempre mais um centro diretor e impositivo. Inicia
a sua marcha para a autocracia, vértice de um poder concreto e ao
mesmo tempo simbólico do Ocidente em gestação.
As divergências a respeito do momento inicial do medievo se re-
petem em relação a qual seria o marco de seu fim, demarcando
os albores do mundo moderno. O grande historiador R. Morghen,
de acordo com toda uma visão religiosa, situa esse momento em
torno da figura do pregador popular Bernardino de Siena (1383-
1444), herdeiro das melhores tradições franciscanas. Siena soube
ligar perfeitamente o ideal da salvação coletiva, intrínseco aos últi-
mos séculos medievais, com o da salvação individual e, sobretudo,
com a possibilidade de uma existência feliz também em terra, este
um ideal típico da modernidade.
De forma menos densa em riqueza interior, a maior parte da his-
toriografia prefere localizar esta transição alegórica na queda do
Império Romano do Oriente, em 1453, ou ainda no fatídico 1492,
quando as velas de Castela comandadas por Colombo atingiram as
ilhas antilhanas.
Seria, contudo, mais adequado deslocar-se essa passagem para o
momento da eclosão do movimento da reforma protestante, na
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 183

segunda década do século XVI. Isso porque esse momento repre-


senta a divisão irreversível no núcleo central da ‘cristandade latina’.
Roma já não será mais aquele centro onde, para o bem ou para o
mal, os estados buscavam legitimidade para a sua existência e para
as suas políticas.
Além disso, trata-se do momento através do qual começamos a
compreender o significado do transbordamento da ‘cristandade la-
tina’ para terras externas às suas fronteiras, de África, Ásia e Améri-
ca, que se tornariam ‘periféricas’ ( 1997, p. 10-13).

Um tema a ser aprofundado é o da divisão interna da Ida-


de Média, considerando que esse período pode ter mais de 1000
anos, dependendo da divisão que se faz. Para tanto, vejamos o que
nos fala Pierini:
Mais discutível, naturalmente, é a periodização da própria Idade
Média. Em geral se falava, no passado, de ‘alta Idade Média’ e de
‘baixa Idade Média’, mais ou menos divididos pelo ano 1000. Acres-
centou-se depois o conceito de ‘antigo tardio’ (mais ou menos de
200 a 600 d.C.) e de ‘transição ao mundo moderno’ (1300-1520),
equivale à ‘época nova’.
Hoje torna-se cada vez mais comum uma periodização oriunda, so-
bretudo, da área alemã e inglesa, que fala de uma ‘primeira Idade
Média’ (da metade do século 5º à metade do século 10 aproxima-
damente), de uma ‘alta Idade Média’ (da metade do século 10 à
metade do século 13) e, enfim, de uma ‘baixa Idade Média’ (da
metade do século 13 a todo ou quase todo o século 15).
Em toda essa obra de periodização parece particularmente signifi-
cativa a primeira época, que vai do século V ao século X. Nela, de
fato, verificaram-se os mais importantes deslocamentos de povos,
as invasões mais decisivas para os três principais continentes (Ásia,
África, Europa). Depois dessa época, o mundo, um pouco por toda
parte já não era mais o mesmo; caminhava agora com idéias e pers-
pectivas radicalmente novas (1998, p. 12-13).
2) O termo Idade Média foi usado, pela primeira vez, por
Cristóvão Cellario (1638-1707), monge e historiador ale-
mão, no final do século 17. Mas, antes dele, Jorge Horn
(1620-1670), em meados do século 17, já escrevia sobre
a história antiga, que duraria até 476, e a partir daí se
iniciaria a Idade Média, com duração até 1453, ano da
queda de Constantinopla.

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184 © História da Igreja Antiga e Medieval

3) Em termos de história ocidental, podemos afirmar que


a Idade Média, geográfica e culturalmente, está dividida
em três grandes esferas: a latino-ocidental, com os po-
vos romanos e germânicos que se convertem ao Cristia-
nismo; a muçulmana, organizada no início do século 7º
e a greco-bizantina, que vai se separando de Roma e vai
durar até meados do século 15.
4) As principais características da Idade Média são: a estrutu-
ra social é do tipo piramidal, com forte autoritarismo mas-
culino dos senhores feudais; sua base é feudal com forte
acento na terra e na agricultura; com as invasões bárbaras
e a desarticulação das cidades e escolas, foi gerada uma
sociedade carente de sistemas racionais, o que provocou
o surgi­mento de grandes líderes governamentais, quase
todos militares. Ademais, todas as pessoas estavam sub-
metidas à religião cristã, que penetra em todos os setores
da vida e se torna a base de toda a vida pública e privada,
com a implantação do "sistema de Cristandade".
5) A Idade Média, em síntese, tem três fatores essenciais:
• a cultura romana, que se mostra ainda superior às
outras;
• a força jovem da cultura germânica, que foi se impon-
do com a expansão e domínio dos "povos bárbaros";
• a religião cristã, favorecida pelos impérios e, muitas
vezes, dona do poder político-temporal.
A história do medievo – já intuía F. Melanchton, amigo e cor-
religionário de Lutero – é, sobretudo, a história da Igreja. Há um exa-
gero nesta colocação, mas é inegável, como afirmou F. Braudel, que
o Cristianismo é uma realidade essencial na vida do Ocidente, tão
forte que condiciona até mesmo os ateus (DEL ROIO, 1997, p. 13).

Segundo Jedin, no período medieval:


A Igreja como enteléquia ou princípio vital da comunidade de po-
vos cristãos do ocidente (ca. 700-1300). Enquanto a Igreja grega se
concentra em salvaguardar as antigas tradições cristãs, os francos e
anglosaxões aceitam a fé romana católica, o que tem por conseqüên-
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 185

cia a germanização do cristianismo e a aliança do pontificado com o


grande império franco do século VIII. Estes fatos brindam a possibi-
lidade singular de penetração do espírito cristão na comunidade de
povos romano-germânicos, cercada pelo anel islâmico, debilmente
unida com Bizâncio e que logo se dilata graças aos povos eslavos
orientais; e a possibilidade de transmitir-lhes a herança da cultura an-
tiga (renascimento carolíngio e otônico). No feudalismo com o qual a
Igreja se encontra, mas que ela não cria, domina a monarquia teocrá-
tica ou cesarismo ocidental renovado (‘domínio dos leigos’), até que,
desde a metade do século XI, o pontificado renovado pela reforma
gregoriana, em reiterados conflitos com o poder leigo (questão das
investiduras, os Hohenstaufen Frederico I e Frederico II), se erige em
força ordenadora dominante do ocidente e se cria na cúria romana o
instrumento para o governo centralizado da Igreja; mas, por sua vez,
se complica em medida crescente na política e na luta pelo poder,
isto é, no 'mundo'. Uma piedade mais individual e de tom mais sub-
jetivo vai deixando num segundo plano a piedade objetiva e litúrgica;
a escolástica e o direito canônico traçam um sistema de pensamento
e ordem eclesiástica, se não uniforme, sim perfeitamente concluso
em seus traços principais, que se estrutura ou constrói nas universi-
dades. As ordens mendicantes aceitam a idéia da pobreza, e se con-
sagram principalmente na cura das almas nas cidades. A adesão da
Rússia a Bizâncio e o cisma do oriente fortalecem o isolamento, as
cruzadas dilatam o horizonte visual, a invasão mongólica torna pos-
sível a ruptura temporal com os cinturão islâmico e os ensaios de
evangelização do distante oriente. Bonifácio VIII, em luta com Felipe
o Belo, formula a teoria papal, filha do momento, mas sucumbe na
catástrofe de Anagni (1980, p. 34-35).

Agora, vamos aprofundar alguns temas básicos da "primei-


ra Idade Média", cronologicamente situados entre os séculos 5º e
10. Assim, poderemos descobrir vários aspectos essenciais deste
apaixonante período!

6. QUEDA DE ROMA (476) E OS POVOS GERMÂNICOS


E ESLAVOS (BÁRBAROS)

Queda de Roma
A partir do século 2º, o grande Império Romano passou por vá-
rias crises e, de modo especial, sofreu com o processo migratório de
vários povos do norte e leste europeu que ameaçavam as fronteiras.

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186 © História da Igreja Antiga e Medieval

Estes, em sua maioria, já não se contentavam em fazer acor-


dos com os romanos, invadiram o império e foram se impondo tan-
to, a ponto de saquear várias cidades, inclusive, Roma. O auge desta
triste situação foi a queda de Roma no ano 476, quando Odoacro,
guerreiro germânico ostro­godo, depôs o Imperador Rômulo Augús-
tulo. Muitos se questionam sobre as razões que levaram à queda do
Império Romano. Dentre as causas, destacam-se:
1) lutas internas pelo poder no Império Romano, golpes de
Estado e consequente enfraquecimento do imperador;
2) altos custos de manutenção da estrutura militar e do
exército, cada vez mais potente;
3) processo inflacionário e crise agrícola;
4) acordos, tratados e conchavos com os invasores que não
levaram à estabilidade política, mas a guerras, lutas que
provocaram instabilidades e destruição;
5) vida fácil, corrupta, luxuosa e sedentária da maioria dos
cidadãos romanos, que não estavam mais aptos para o
trabalho e para a luta;
6) invasões dos povos bárbaros e acordos que enfraquece-
ram o poder romano.
Gibbon, aprofundando a questão da queda de Roma, assim
escreve, após falar da força militar romana e suas conquistas:
A ascensão de uma cidade que se avantajou num império bem me-
rece, por singular prodígio, ser tema de reflexão para um espíri-
to filosófico. Todavia, o declínio de Roma foi a natural e inevitável
conseqüência da grandeza imoderada. A prosperidade fez com que
amadurecesse o princípio da decadência; as causas de destruição
se multiplicaram com a extensão das conquistas; e tão logo o tem-
po ou os acidentes removeram os sustentáculos artificiais, a estu-
penda estrutura desabou sob seu próprio peso. A história de sua
ruína é simples e óbvia; em vez de perguntar por que o império
romano foi destruído, devemos antes surpreender-nos de ele ter
durado tanto. As legiões vitoriosas, que em guerras remotas adqui-
riram os vícios de estrangeiros e mercenários, primeiro tiranizaram
a liberdade pública e mais tarde violaram a majestade da púrpura
Os imperadores, preocupados com sua segurança pessoal e com
a ordem pública, viram-se reduzidos ao vil expediente de corrom-
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 187

per a disciplina que as tinham tornado temíveis ao seu soberano e


ao inimigo; relaxou-se a energia do governo militar, e finalmente
dissolveu-se com as instituições facciosas de Constantino; e eis que
o mundo romano foi engolfado por um dilúvio de bárbaros.
A decadência de Roma tem sido frequentemente atribuída à trans-
ferência da sede do império; esta história já mostrou contudo que
os poderes de governo foram divididos, mais que transferidos. O
trono de Constantinopla ergueu-se no Oriente enquanto o Ociden-
te ainda era dominado por uma série de imperadores que tinham
sua residência na Itália e que igualmente reclamavam a herança
das legiões e das províncias. Essa perigosa novidade debilitava o
vigor e fomentava os vícios de um duplo reinado; multiplicaram-
-se os instrumentos de um sistema opressivo e arbitrário; e uma
fátua emulação de luxo, não de mérito, iniciou-se e se manteve en-
tre os degenerados sucessores de Teodósio. A extrema angústia,
que unifica as virtudes de um povo livre, exacerba as facções de
uma monarquia em declínio. Os favoritos antagônicos de Arcádio
e de Honório traíram a república e seus inimigos comuns, e a corte
bizantina assistiu com indiferença, talvez com prazer, à desonra de
Roma, aos infortúnios da Itália e à perda do Ocidente [...] A funda-
ção de Constantinopla contribui mais decisivamente para a preser-
vação do Oriente do que para a ruína do Ocidente.
Como a felicidade de uma vida futura é o grande objetivo da re-
ligião, quiçá não nos cause surpresa ou escândalo saber que a
introdução, ou pelo menos o abuso, do cristianismo teve alguma
influência no declínio e na queda do império romano. O clero pre-
gava com êxito as doutrinas da paciência e da pusilanimidade; as
virtudes ativas da sociedade eram desencorajadas, e os últimos
vestígios do espírito militar foram sepultados nos claustros. Grande
parte da riqueza pública e privada se consagrou às especiosas exi-
gências da caridade e da devoção, e a soldada era esbanjada com
turbas inúteis de ambos os sexos que só podiam alegar os méritos
da abstinência e da castidade. A fé, o ardor, a curiosidade e as pai-
xões terrenas da maldade e da ambição acenderam a chama da
discórdia teológica; a Igreja e mesmo o estado foram divididos por
facções religiosas cujos conflitos se demonstravam por vezes san-
grentos e sempre implacáveis; a atenção ao imperador se desviou
dos acampamentos para os sínodos; uma nova tirania oprimia o
mundo romano, e as seitas perseguidas se tornaram inimigas secre-
tas de seu país [...] Se o declínio do império romano foi apressado
pela conversão de Constantino, sua religião vitoriosa amorteceu a
violência da queda e abrandou a índole violenta dos conquistado-
res (1989, p. 442-444).

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188 © História da Igreja Antiga e Medieval

Evangelização dos povos germânicos e eslavos


Os povos que chegaram às fronteiras do império eram nô-
mades, jovens, com grande vitalidade e não tinham nada a perder.
Atraídos, porém, pela cultura romana e por suas riquezas, após
chegarem aos domínios do Im­pério Romano, foram se tornando
sedentários, deixando de lado o estilo de vida nômade. Observe
que a maior parte desses povos se integrou à cultura romana, ao
passo que outra foi derrotada e dominada, como foi o caso dos
vândalos. Entre os povos germânicos que migraram para o impé-
rio, destacamos:
1) Francos: viviam na foz do rio Reno, na Alemanha e Fran-
ça. Em 496, eles se tornaram cristãos por meio do batis-
mo do rei Clóvis. Este povo foi importante para a expan-
são e crescimento da Igreja, pois dominou outros povos
e se tornou uma potência, restaurando com Carlos Mag-
no, o Império Romano, chamado na época de Sagrado e
Germânico.
2) Lombardos: vindos do Rio Danúbio, fixaram-se ao norte
da Itália e maltrataram os cristãos até a con­versão do rei
Authasis, no ano 585.
3) Burgúndios: ocupavam a região do mar Báltico, migra-
ram para a França e tornaram-se cristãos no ano 524.
4) Ostrogodos: vindos do norte, fixaram-se no norte da Itá-
lia e seu chefe, Odoacro, destronou o último imperador
romano do Ocidente, Rômulo Augústulo. Na metade do
século 6º, foram dominados pelo Imperador do Oriente,
Justiniano.
5) Ostrogodos: vindos do norte da Europa, fixaram-se na
Espanha. Tornaram-se cristãos com a conversão do rei
Recaredo, em 589, por obra de São Leandro de Sevilha.
Estavam ligados à Igreja e o reino deste povo terminou
com a invasão muçulmana ocorrida a partir do ano 711.
6) Vândalos: um dos povos mais violentos, passando pela
Espanha, chegou ao norte da África e tomou Cartago.
Dali invadiu Roma e maltratou os cristãos, pois eram
adeptos da heresia ariana. Foi dominado na metade do
século 6º pelo Imperador Justiniano.
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 189

7) Anglo-saxões: os povos das Ilhas Britânicas (irlandeses,


ingleses, escoceses e píctos, provenientes da Noruega),
desde o século 2º, já conheciam o Cristianismo, que en-
trou em crise com a retirada das tropas romanas no sé-
culo 5º. Os pa­pas, porém, enviaram vários missionários
para reevangelizar estas regiões. Por essa razão, foram
fundados vários mosteiros dos quais saíram dezenas de
mon­ges que evangelizaram os povos germânicos na Eu-
ropa Continental.
Gibbon, após falar da força militar romana e suas conquistas,
aprofunda a questão da queda de Roma, ao tratar das ameaças
dos bárbaros:
Os romanos ignoravam a extensão dos perigos e o número dos ini-
migos que os ameaçavam. Além do Danúbio e do Reno, os países
setentrionais da Europa e da Ásia estavam cheios de inúmeras tri-
bos de caçadores e pastores pobres, vorazes e turbulentos, auda-
zes nas armas e sôfregos de arrebatar os frutos da operosidade. O
mundo bárbaro foi agitado pelo rápido impulso da guerra, e a paz
da Gália ou da Itália sacudida pelas distantes revoluções da China.
Os hunos, que fugiam de um inimigo vitorioso, orientaram sua mar-
cha para o Ocidente; e a torrente cresceu com a gradual incorpora-
ção de cativos e aliados. As tribos em fuga que cederam aos hunos
assumiram, por sua vez, o espírito de conquista; as infindas colunas
bárbaras pressionaram o império romano com peso multiplicado,
e se a vanguarda era aniquilada, nossos assaltantes ocupavam o
espaço vago. Tais formidáveis emigrações não mais provinham do
norte; e o longo período de tranqüilidade, atribuído ao decréscimo
populacional, é a ditosa conseqüência do progresso das artes e da
agricultura [...]. Mas essa aparente segurança não nos deve levar a
esquecer que novos inimigos e perigos ignorados podem possivel-
mente surgir de algum povo obscuro, mal visível ainda no mapa do
mundo. Os árabes ou os sarracenos que disseminaram suas con-
quistas desde a Índia até a Espanha, haviam enlanguescido na po-
breza e na desonra até Maomé infundir naqueles mesmos corpos o
sopro do entusiasmo. O império de Roma se firmou pela singular e
perfeita coalizão dos seus membros. As nações vassalas, renuncian-
do à esperança e mesmo ao desejo de independência, aceitaram a
condição de cidadãs romanas, e as províncias do Ocidente foram
com relutância arrancadas do seio da mãe-pátria. Mas essa união
custou a perda da liberdade nacional e do espírito militar, e as pro-
víncias servis, destituídas de vida e de ação, esperavam ter sua se-
gurança garantida pelas tropas mercenárias e pelos governadores
que recebiam ordens de uma corte distante. A felicidade de cente-

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190 © História da Igreja Antiga e Medieval

nas de milhões dependia do mérito pessoal de um ou dois homens,


talvez crianças, cuja mente havia sido corrompida pela educação,
pelo luxo e pelo poder despótico. Os ferimentos mais profundos
foram infligidos ao império durante a minoridade dos filhos e netos
de Teodósio; depois de terem atingido a idade viril, esses príncipes
incapazes deixaram a Igreja entregue aos bispos, o Estado aos eu-
nucos, e as províncias aos bárbaros (1989, p. 445-446).

Islamismo
Igualmente importante, é ressaltar neste momento o sur-
gimento do Islamismo (nome que significa "submetido à vontade
divina"), com Maomé. Após uma vida de comerciante, Maomé foi
aos poucos articulando a nova religião surgida na Península Arábi-
ca, com uma profissão de fé simples: fé e adoração só em Alá, o
Deus único; obediência ao Corão como livro sagrado; e o respeito e
obediência a Maomé, o profeta. A partir do ano 622, começou-se a
sua expansão religiosa e militar, fenômeno conhecido como "Égira
muçulmana". Nos séculos 7º e 8º, os muçulmanos conquistaram o
Oriente Médio, chegaram às portas de Constantinopla em 718 e to-
maram todo o norte africano, de onde chegaram na Espanha no ano
711, sendo barrados na França, na famosa batalha de Poitiers, pelo
franco Carlos Martelo.

Posteriormente, quando abordarmos as Cruzadas, voltaremos a


tratar do Islamismo.

Cristianismo diante dos povos bárbaros


Outro aspecto importante foi o processo de evan­ge­lização
dos povos bárbaros. Inicialmente, os cristãos, como os romanos,
tiveram dificuldades em aceitar a presença e a convivência com
esses povos, considerados 'bárbaros', invasores e sem cul­tura.
Aos poucos, porém, os cris­tãos perceberam que eles deveriam ser
evange­lizados, pois eram possuidores de um potencial muito gran-
de para assimilar as verdades cristãs. A partir desta constatação,
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 191

surgiu um grande número de missionários, monges na sua grande


maioria, que se dedicaram a evangelizar os povos que chegaram às
fron­teiras do império. É importante notar, também, que a ação dos
mis­sionários teve um grande apoio dos papas e dos reis que, ao se
converterem, exigiam dos seus súditos a conversão ao Cristianis-
mo. Muitos deles fundaram mosteiros, fundaram cidades e leva-
ram novas técnicas agrícolas, bem como a cultura romana para as
regiões povoadas pelos povos bárbaros.
Destacamos vários missionários que se dedicaram à obra
evangelizadora desses povos, muitos inclusive martirizados:
1) São Bo­nifácio, que trabalhou na Alemanha e em vários
países vizinhos.
2) São Columbano, que trabalhou na Itália, na Suíça e em
outras regiões.
3) São Gallo, que trabalhou na Suíça.
4) São Ruperto, que trabalhou na Ale­manha.
5) São Severino, que tra­balhou na Baviera e na Áustria.
6) Santo Oscar, que trabalhou na Dina­marca e na Suécia.
7) Santos Willibordo e Wilfrido, que trabalharam na Dina-
marca.
8) Santos Metódio e Cirilo, que trabalharam na Morávia e
na Bulgária.
9) Santos Remígio, Avito e Casário de Arles, que trabalha-
ram na evangelização dos francos.
10) São Bibiano, que trabalhou na Escócia.
11) Santo Agostinho, que trabalhou na Inglaterra e conse-
guiu a conversão do rei Etelberto em 597.
12) São Patrí­cio, um dos maiores mis­sionários deste perío-
do, que trabalhou na Irlanda etc.
O trabalho de tais missionários foi extraordinário e, graças
a eles, a Igreja pôde se expandir e se fazer presente junto a vários
povos que não conheciam o Evangelho de Jesus Cristo.

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192 © História da Igreja Antiga e Medieval

7. ASCENSÃO DA IGREJA, CRIAÇÃO DO ESTADO


PONTIFÍCIO E FEUDALISMO

Formação do Estado Pontifício


Após a queda do lmpério Romano do Ocidente, ocorrida no ano
476, foi se tornando cada vez mais forte a influência do papado nos
assuntos internos da Igreja e, de modo especial, nos assuntos admi-
nistrativos e políticos do antigo Império Romano. Além dos pedidos
de ajuda dirigidos ao papa, o povo dirigia seus pedidos, também, para
os bispos, pois a grande maioria deles se distinguia pela santidade,
pela sabedoria e ciência, e pelas benfeitorias em favor do povo.
Com o crescimento das invasões bárbaras, a crueldade e a cor-
rupção dos príncipes e governantes, os bispos e os papas tornaram-se
os defensores do povo, construtores de hospitais, asilos, locais de ajuda
aos pobres etc. O povo reconheceu e, apreciando a dedicação das au-
toridades eclesiais, passou a fazer doações para a Igreja. Tais doações
cresceram e, pouco a pouco, os bispos passaram a ter terras e bens
imóveis. O bispo de Roma já aparece, no início do século 7º, como o so-
berano do Ducado Romano. O termo "papa", inicialmente, era utilizado
pelos clérigos, mas depois ficou restrito aos bispos e, na Idade Média,
exclusivamente ao bispo de Roma, "pai de toda a Cristandade".
Nesse período, o papa continuou sendo submisso ao im-
perador do Oriente, que morava em Constantinopla. Mas, com o
tempo, foi se tornando independente, passando a fazer alianças
e acordos com os dirigentes do Ocidente. Como afirma Del Roio:
A luta do bispo de Roma pela supremacia processou-se longa e tor-
tuosamente. Iniciou-se com Damaso I (366-384), que reivindicava a
condição de sucessor direto de Pedro apóstolo, martirizado no ano
64 e, segundo a tradição, primeiro bispo daquela cidade. A reivindi-
cação de primazia baseava-se nestas palavras de Jesus, transcritas
no Novo Testamento: "Pedro, tu és pedra, sobre a qual construi-
rei a minha Igreja. E nem a potência da morte poderá destruí-la"
(Mt, 16,18). A promoção da Igreja romana, agora sede apostólica,
constituiu-se num acontecimento fundamental para a conquis-
ta seguinte: a elevação do cristianismo a religião de Estado, pelo
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 193

imperador Teodósio I. Outra personalidade marcante seria Leão I,


Magno (440-461). Homem culto e experimentado no exercício do
governo, ele codificou a ortodoxia, combatendo com dureza as he-
resias. Reafirmou as teses de Damaso I mas, sobretudo, reformou
a estrutura da Igreja, que de uma espécie de federação de bispos
assumiu a forma de uma estrutura verticalizada. Saudado como "vi-
cário de Cristo", Gelásio I (492-496) destacou-se como outra figura
proeminente desse período histórico. Era dele a teoria segundo a
qual dois poderes governariam o mundo: a autoridade consagrada
dos bispos e o poder real, uma centralizada em Roma, o outro, no
imperador. A primeira, superior, porque delegada por Deus (sumus
et verus imperator) para tratar dos assuntos espirituais, com poder
de submissão sobre o próprio imperador (1997, p. 22-23).

Contemporaneamente, aumentava a influência e o poderio


do povo franco em todo o Ocidente. O papa Estevão II (752-757),
então, faz um acordo com o rei Pepino, o Breve, que, se vencesse
a guerra contra os lombardos, ofereceria os territórios reconquis-
tados ao papa. Carlos Magno, filho de Pepino, fortaleceu a aliança
com o papa e lhe doou mais cidades.
Assim, no ano 800, o papa Leão III (795-816) coroou Carlos
Magno, que fundou a dinastia carolíngia e restaurou o antigo Im-
pério Romano, que, a partir de então, se chamaria Sagrado Impé-
rio Ro­mano - Germânico. Inicia-se um processo de alianças entre o
poder temporal e o espiritual:
• ao imperador competia a jurisdição suprema, o controle
do governo papal, a proteção da Igreja e ser coroado pelo
Sumo Pontífice;
• ao papa competia o zelo da Igreja e o exercício dos pode-
res administrativo e judiciário. Com Carlos Magno e seu
filho Ludo­vico, o Pio, esse sistema funcionou bem, porém,
partindo de seus netos, a relação foi se deteriorando.
Após falar das relações iniciais entre o Cristianismo e o povo
franco, Del Roio aprofunda a questão sobre Carlos Magno:
A ascensão de Carlos, que será intitulado Magno, filho de Pepino,
ao trono (768-814) dará continuidade e reforçará a aliança franco-
-romana. Quem sofrerá as conseqüências serão os lombardos: em
virtude de invasão à sua capital, Pavia, por Carlos, todo o reino será

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194 © História da Igreja Antiga e Medieval

anexado. Durante seu longo reinado, Carlos promoveu numerosas


guerras, estendendo seu reino por toda a Gália, terras germânicas e
parte da Itália. Deparou-se com barreiras intransponíveis na Ibéria,
onde os muçulmanos o bloquearam, e nos reinos dos povos nórdi-
cos. Rapidamente Carlos organizou o Estado, onde fundiu a tradi-
ção clássica com os costumes e energia dos povos bárbaros, cimen-
tado com o ideal cristão. Sentia-se responsável diretamente pela
propagação e pureza da fé, criando um sistema que ficou conhe-
cido como o "agostinismo político". Daí nasciam suas freqüentes
divergências com o papado, retratadas nos livros "carolíngios", que
fez escrever [...]. No ano 800 Carlos encontrava-se em Roma para
defender o papa Leão III (795-816) de uma sublevação de patrícios
romanos. Durante a missa de Natal, diante da tumba que seria de
Pedro apóstolo, o papa colocou sobre sua cabeça a coroa imperial,
e o público presente o aclamou como imperador do Ocidente. Logo
depois Leão III ajoelhou-se diante de Carlos Magno como sinal de
respeito e de submissão. Seria a última vez na história que um papa
se curvaria diante de um imperador (1997, p. 30-31).

Essa aliança fez com que, muitas vezes, os imperadores se


intrometessem nos assuntos eclesiásticos (cesaropapismo) e os
ecle­siásticos, por sua vez, nos assuntos políticos. Essa situação
provocou muitos desvios na hierarquia eclesial, muitas vezes vol-
tada para os bens deste mundo e deixando-se corromper.
Com isso, aprendemos que o poder eclesial não deve se aliar
aos poderes deste mundo, pois o Evangelho e a prática de Jesus
não podem aceitar o pacto com o poder dominador, opressor, ex-
cludente e discriminador.
É necessário, portanto, que a Igreja testemunhe o Evange-
lho, pactuando sempre com a justiça, a igualdade, a fraternidade
e a solidariedade. A sua autoridade no mundo deve ser respeitada
pelo compromisso com o amor e a verdade.
Século de ferro
Com a morte do Imperador Carlos Magno, seus filhos não
conseguiram dar continuidade à ótima administração articulada
por ele. Em 814, o império é dividido entre seus três netos, que
lutaram entre si, enfraqueceram o poder imperial e provocaram
o fortalecimento do poder eclesial. Em Roma, após o assassinato
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 195

do papa João VI, iniciou-se o "século de ferro", período em que o


pa­pa­do se converteu praticamente em objeto de interesses e lutas
de algumas inescrupulosas famílias romanas.
Del Roio assim descreve este momento lamentável do Cris-
tianismo, a partir do papado de Nicolau I (papa de 858-867):
Nicolau proclamava o seu poder, mas de fato a estrutura eclesiásti-
ca estava em processo de dissolução, por conta principalmente da
simonia. A fórmula que determinava a eleição dos bispos pelo clero
e pelos fiéis se constituía numa afirmação vazia, já que quem preen-
chia esses cargos, de forma cada vez mais decisiva, eram os grandes
senhores feudais ou os reis. Em geral eles nomeavam seus próprios
parentes, com o objetivo de se apossarem dos bens da Igreja. O
bispado, com as suas terras, foi se transformando em proprieda-
de familiar transmitida hereditariamente, hierárquica do clero. Os
próprios templos, construídos pelos poderosos, eram convertidos
em propriedade pessoal, devendo os sacerdotes que ministravam
serviço prestar reverência a seus patrões. Era difícil falar em voca-
ção em se tratando de homens que entravam para as estruturas da
Igreja somente por interesse econômico e que sonhavam com uma
vida dissoluta. A lama chegou até o trono pontifical. Nas últimas
décadas do século IX, a escolha dos papas passou a se dar como
resultante das lutas internas ao patriciado romano. Fatos terríveis
viriam a ocorrer. Recordemos, a título de exemplo, o caso do papa
Formoso (891-896): seu sucessor, Estéfano VI (896-897), originário
das fileiras de seus inimigos, exumou o corpo de Formoso e, depois
de um processo com todas as pompas, condenou-o à pena de corte
de três dedos de seu cadáver e a ter seus restos mortais jogados ao
rio. Nos primeiros lustros do século X, quem praticamente coman-
dou o Vaticano foi uma rica patrícia, Marózia, que fazia e desfazia
dos papas como bem desejasse. Não foram poucos os pontífices
assassinados durante o período (1997, p. 33-34).

Esse é um período lamentável, pois vários papas serão as-


sassinados, depostos e colocados no trono pontifício por seus
familiares. Muitos desses papas ou seus parentes não eram dig-
nos e cometeram atos arbitrários. Note, também, que é grande a
influência de algumas mulheres ambiciosas da nobreza romana,
como é o caso de Teo­dora e suas filhas Marózia e Teodora Jovem,
da família dos Teofilato. É nesse contexto que surge a lenda da
"papisa Joana", que teria governado a Igreja durante dois anos e
sete meses, em meados do século 9º.

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196 © História da Igreja Antiga e Medieval

Surgiram alguns papas que tentaram conduzir a Igreja com


seriedade e queriam reformá-la. Mas, é difícil administrá-la nessas
condições. A crise só seria superada com o fortalecimento do tro-
no imperial alemão, que, com o Imperador Oto I (936-973), alcan-
çou um novo vigor.
O imperador intervém nos assuntos da Igreja, foi várias vezes
a Roma e tentou colocar ordem na Igreja, cuja atividade apresen-
tou sucesso relativo, pois, com a morte de seus filhos (Oto II e Oto
III), o papado cai novamente nas mãos da ambiciosa e interesseira
nobreza romana, a partir do ano 1002. Foi com o papa Leão IX
(1049-1054) que se iniciou um período de reforma na Igreja, que
teve o seu ápice na pessoa e ação do papa Gregório VII.
Essa fase vivida pela Igreja no "século de ferro" confirma a
ideia de que a Igreja não deve fundamentar suas forças nos pode-
res deste mundo. Todo ministério eclesial é um "dom de Deus",
um "carisma", isto é, é um presente gratuito de Deus. Portanto,
nada na Igreja pode ser conseguido por dinheiro ou con­chavos
com os esquemas. Ela deve ser livre para poder, com liberdade,
anunciar as verdades evangélicas, questionando todas as estrutu-
ras de pecado deste mundo.

8. ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
A Idade Média marca o ro­bustecimento da espiritualidade
cristã, o qual, com as bases na antiguidade cristã e com os novos
dogmas, adquiriu estabilidade. Nesse período, destacamos os se-
guintes aspectos:
1) Cresceu a piedade eucarística e a instituição da festa de
Corpus Christi, em 1264.
2) Desenvolveu as imagens de Cristo: ícones, vitrais, pinturas etc.
3) Criou-se a Via-Sacra, a partir do ano 1150.
4) Verificou-se o aumento da devoção mariana: orações,
dedicação de Igrejas a Maria. O sábado torna-se o dia
mariano e formula-se a Ave Maria (a saudação do anjo
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 197

e a exclamação de Isabel já se encontram em textos e


inscrições do século 5º; no ano 1000 se ajuntam "Jesus
e Amém"; a forma "Santa Maria, Mãe de Deus, roga por
nós pecadores" já se encontra no século 14; e "agora e
na hora de nossa morte", no século 16.
5) Cresceu o culto dos mártires junto às tumbas e às suas
relíquias, apesar do crescente tráfico destas e de objetos
sacros.
6) Aumentou a devoção à Terra Santa com muitas peregri-
nações.
Como você pôde verificar, na Idade Média, a Igreja se forta-
leceu e encontra uma consistência maior.
Aos poucos, os cristãos e os neocon­vertidos ao Cristianismo
foram assimilando as verdades de fé e expressando-as na liturgia
e na espiritualidade. O importante é que os cristãos conseguiam,
sempre, ex­primir a sua relação com o sagrado.
A vida eclesial e religiosa precisavam se basear numa espi-
ritualidade consistente e sadia, que manifestasse a união do fiel
cristão com o Deus de Jesus Cristo.
No final do primeiro milênio, quando surgiram tantas espi­
ritualidades, os cristãos precisavam ser autênticos e profes­sar a
sua fé em Deus.
Dos séculos 6º ao 8º, os mosteiros ocuparam o centro da
vida litúrgica e da educação cultural do ocidente cristão. A espiri-
tualidade tornou-se muito individual e a relação com o divino um
vínculo de fidelidade mútua e as orações eram dirigidas a Cristo.
Já nos séculos 9º e 10, há um grande florescimento espiritual
seguido de uma grave crise. Dos séculos 11 ao 14, verifica-se uma
tentativa de superar a crise do século 10: o ideal era: "Remodelar
a criação, desfigurada pelo pecado, à imagem e segundo a visão de
Deus, e de instaurar desde já o reino de Cristo" (MONDONI, 2000,
p. 46-57).

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198 © História da Igreja Antiga e Medieval

9. VIDA MONÁSTICA
O desenvolvimento e a expansão do Cristianismo, nos primei-
ros séculos, foram muito enriquecidos com o testemunho de muitos
de seus seguidores, com especial destaque para os mártires. Um dos
grupos que mais se desenvolveu e ajudou na sua consolidação foi a
vida monástica. Já nos primeiros séculos, surgiram ascetas, anacore-
tas e virgens, homens e mulheres que se consagravam ao seguimento
de Jesus Cristo e abandonavam tudo para viver o ideal do deserto.
Com o tempo, este estilo de vida foi se organizando e deu origem à
vida comum ou cenobitismo, com o surgimento de várias regras mo-
násticas (Pacômio, Agostinho, Basílio, Isidoro de Sevilha etc.) e com
a construção de grandes mosteiros no Oriente e no Ocidente. No
Ocidente, uma figura de grande destaque foi São Bento de Núrsia, a
partir do início do século 6º, considerado o pai do monacato do Oci-
dente: a partir de Subíaco e Montecassino (mosteiro fundado no ano
529), seus monges percorreram toda a Europa, fundando mosteiros,
convertendo povos bárbaros e romanos, construindo cidades e con-
servando a ciência. Com o tempo, os mosteiros tornaram-se muito
ricos e fontes de grande poder, também eles nas mãos dos senho-
res feudais e reis. Houve um processo de grande decadência que só
foi superado com as reformas monásticas medievais, com destaque
para a de São Bento de Aniane, no início do século 9º e a reforma de
Cluny, a partir do ano 909, na Borgonha francesa. Este mosteiro tinha
vínculos com Roma e ficou livre da ingerência das autoridades locais
e também dos bispos; com abades íntegros e firmes, foram fundados
centenas de mosteiros reformados que conduziram o Cristianismo a
viver uma das suas maiores reformas até a sua consolidação medieval
com o apogeu da Cristandade, representada especialmente por um
papa saído do movimento reformístico de Cluny: papa Gregório VII
(1073-1085). Sobre Cluny, Del Roio assim escreve:
Uma inovação que teria inúmeras conseqüências se daria com a mu-
dança da antiga regra beneditina do ora et labora. O trabalho manual
seria reservado aos leigos, para que os monges se concentrassem
plenamente na oração. Esta deveria ser vista não mais como súplica
para alcançar graças, mas como glorificação de Deus, através da qual
© U4 - Características do Mundo Medieval, Queda de Roma e Ascensão do Cristianismo 199

os cluniacenses se proporiam a representar toda a comunidade cris-


tã. Se a oração devia tornar-se glória, gloriosa deveria ser a liturgia,
com gestos lentos e misteriosos, envolvidos por cantos profundos
e elaborados. Com paramentos recobertos de cores e metáforas e
templos grandiosos, ricos de esculturas e afrescos. Ao participar do
culto, o fiel deveria sentir-se na ante-sala do paraíso. Com toda a ale-
gria e temor que o evento poderia despertar. O servo do Senhor – o
clero e, acima de todos, aqueles que se intitula o ‘servo dos servos’,
o bispo de Roma - deveriam afastar-se da carne e do mundo, para o
melhor serviço da Igreja. Construir uma hierarquia rígida, combater a
simonia e o concubinato clerical e suprimir a tradição de intervenção
laical nos assuntos internos da Igreja tornaram-se os parâmetros bá-
sicos do movimento reformista ( 1997, p. 41).

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
1) Quais são as características do ambiente cristão na Idade Média?

2) Quais foram as principais causas da queda de Roma e como você interpreta


o papel do Cristianismo diante da queda de Roma?

3) Como você vê a espiritualidade cristã medieval e a vida monástica?

4) Como você analisa a posição cristã diante da invasão dos povos germânicos
e eslavos?

5) Qual a importância deste estudo para minha vida acadêmica e profissional?

11. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você teve a oportunidade de compreender a
terminologia e as características do mundo medieval, bem como
a queda de Roma (476) e as particularidades dos povos germâni-
cos e eslavos (bárbaros). Com esses conhecimentos, foi possível
analisar a ascensão da Igreja, o Estado Pontifício, o feudalismo e a
organização eclesial na Idade Média.
Na Unidade 5, vamos estudar o Cisma do Oriente (1054), as
Igrejas ortodoxas, o Islamismo e as Cruzadas.
Claretiano - Centro Universitário
200 © História da Igreja Antiga e Medieval

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DEL ROIO, J. L. Igreja medieval: a cristandade latina. São Paulo: Ática, 1997.
FRÖHLICH, R. Curso básico de história da igreja. São Paulo: Paulinas, 1987.
GIBBON, E. Declínio e queda do império romano. São Paulo: Cia. Letras, 1989.
LE GOFF, J. Por amor às cidades. São Paulo: Editora Unesp, 1997
LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Bauru: Edusc, 2005.
______.; SCHMITT, J-C. Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru: Edusc, 2002.
MONDONI, D. Teologia da espiritualidade cristã. São Paulo: Loyola, 2000.
PIERINI, F. A idade média. São Paulo: Paulus, 1998.
SOUTHERN, R. W. A igreja medieval. Lisboa: Ulisséia, 1970.
EAD
A Cristandade Medieval:
Cisma do Oriente (1054),
Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e
Cruzadas 5
1. OBJETIVOS
• Reconhecer a organização eclesial na Idade Média (a Cris-
tandade).
• Compreender o Cisma do Oriente (1054).
• Analisar as características do Islamismo.
• Interpretar as Cruzadas (ordens militares).

2. CONTEÚDOS
• Cisma do Oriente (1054) e as Igrejas Ortodoxas.
• Islamismo.
• Cruzadas (as ordens militares).

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
202 © História da Igreja Antiga e Medieval

1) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você am-


plie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre
com o material didático em mãos e discuta a unidade
com seus colegas e com o tutor.
2) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos expli-
citados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de
Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades
deste CRC. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu
desempenho.
3) Ao ler obras, você tem a oportunidade de conhecer as
experiências narradas pelos escritores e de comparar o
seu ponto de vista com os deles, recriando ideias e re-
vendo conceitos.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na Unidade 4, você pôde estudar e refletir sobre os concei-
tos relacionados às terminologias e às características do mundo
medieval, especialmente da "primeira Idade Média".
Agora, na Unidade 5, você terá a oportunidade de refletir
sobre a situação do Cristianismo entre os séculos 10 e 13, tendo
como temas principais o Cisma do Oriente (1054), as Igrejas Orto-
doxas e o Islamismo. Compreenderemos, ainda, os objetivos e as
estratégias das Cruzadas.
Está pronto para o desafio?
Bom estudo!

5. CONTEXTO DESTE PERÍODO


O período que estudaremos agora é chamado de "Alta Idade
Média" e se situa, cronologicamente, entre os séculos 10 e 13. É
marcado por grandes movimentações dos povos de vários conti-
nentes, com destaque para as conquistas árabes dos muçulmanos
em várias regiões e a continuidade de invasões na Europa pelos
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 203

húngaros, vikings e normandos. Dentro deste contexto, as próprias


Cruzadas podem ser vistas como processo de movimentação de
povos, com suas características próprias.
Uma das causas desta grande movimentação ou mudança é
aprofundada por Pierini, quando ele fala da explosão demográfica:
Em geral, pode se afirmar com boa chance de acerto que a popu-
lação européia aumenta de 46 milhões, em 1050, para 48 milhões
em 1100, para 61 milhões em 1200, e para 73 milhões em 1300.
Aumentos demográficos análogos podem ser registrados, por ou-
tro lado, tanto no Império Bizantino quanto no mundo islâmico. O
progresso demográfico acarreta grande povoamento da área rural
e também o renascimento definitivo das cidades. Essa melhora ge-
neralizada não enfrenta grandes obstáculos, nesse período, nem
por parte das várias epidemias, que persistem e se modificam [...]
nem de certos condicionamentos de caráter espiritual, como o re-
lativo ao fim do mundo, que supostamente se disseminaram na en-
trada no ano 1000 (1998, p. 87-88).

Segundo Del Roio (1997), entre os séculos 8º e 11, a Europa


sofreu um lento crescimento demográfico, pois a população pas-
sou dos 18 milhões do ano 600 aos 38,5 milhões, no ano 1000.
Outra característica importante deste período é o "feudalis-
mo". Seguindo a mesma linha de pensamento, Pierini (1998, p.
88-89) assim escreve:
O fenômeno mais significativo que acompanha todo o movimento
de renascimento é, ao invés, a feudalização da sociedade européia
ocidental e também a oriental (excluído o império bizantino). Esse
fenômeno, já em gestação no mundo tardio-antigo e que depois se
desenvolveu de maneira relativamente rápida com a chegada dos
bárbaros, já tinha se manifestado na época carolíngia, através da
difusão da vassalagem, da concessão de benefícios (num primei-
ro momento só funcionais, depois também territoriais) e de imu-
nidades. Agora os poderes locais se transformam em verdadeiros
senhorios, o que fica cada vez mais evidente pela multiplicação de
residências senhoriais fortificadas (castelos). E assim tudo, ou qua-
se tudo, na sociedade da época se torna privado e tudo, ao mesmo
tempo, se torna público. Essa fragmentação do poder consegue
defender e regenerar o mundo de então, levando ao renascimento
das zonas rurais e das cidades. O mundo feudal – favorecido no
Ocidente pela Constituição sobre os feudos, do imperador Conrado
II (1037), que garante a herança também dos feudos menores –

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204 © História da Igreja Antiga e Medieval

espalha-se logo da sua zona de origem, a França setentrional, para


o resto da Europa ocidental, abrangendo inclusive a Europa oriental
eslava e afetando até os cruzados, na síria e na Palestina. Acompa-
nha esse sistema complexo – de caráter econômico, social, político
e cultural – a instituição da "cavalaria" e o nascimento das primei-
ras linhagens de nobreza, que permanecem até hoje. A sociedade
acaba sendo estratificada de uma forma singularmente "trinitária".
Enquanto em 816 o imperador Ludovico, o Piedoso, falava das três
categorias sociais: dos clérigos, dos monges e dos leigos, agora, a
partir do início do século XI, o trinômio é composto por clérigos,
guerreiros e trabalhadores. Há, também, naturalmente, os excluí-
dos, que são, sobretudo, os judeus e os hereges. Os resultados po-
líticos do período 950-1250 aparecem já desde o início: os grandes
imperialismos, tanto na Europa ocidental quanto alhures, nascem
e renascem, mas afinal são obrigados a ceder espaço frente às rea-
lidades locais (como os municípios e as repúblicas marinhas), re-
gionais (como os senhorios feudais, grandes e pequenos) ou até
mesmo nacionais (como reinos em processo de desenvolvimento e
de afirmação, apesar de todas as dificuldades).

É neste contexto de feudalização com as forças próprias do


mundo rural, cavalheiresco e eclesial, que o mundo antigo foi de-
saparecendo e dando espaço a uma nova sociedade, com a cha-
mada cultura da corte, cortês ou cortesã, própria dos castelos e
cidades. Isto provocou mudanças no sistema de "educação", assim
descrito por Pierini (1998, p. 91):
Já no período pós-carolíngio, junto às escolas monásticas e episco-
pais nascem, no Ocidente, as escolas urbanas promovidas por reis
como Alfredo, o Grande (871-901), na Inglaterra, ou por imperado-
res como Otão I (936-973). Nessas escolas, passa-se do ensino ele-
mentar ao superior cultivando as habituais disciplinas do trívio e do
quadrívio. Paralelamente, porém, existe um currículo formativo to-
talmente diferente para os pajens ou escudeiros destinados a se tor-
narem cavalheiros. A educação cavalheiresca, dada, sobretudo, nos
castelos e nas cortes senhoriais, prescinde da instrução intelectual
e tende a transmitir um certo código de honra que, ao menos em
teoria, deveria colocar o futuro cavalheiro ao serviço da sociedade,
especialmente dos seus segmentos mais pobres. Esse duplo tipo de
educação – intelectual nas escolas, militarizado nas cortes e nos cas-
telos – é um fenômeno que se pode constatar em todas as partes
do mundo então conhecido: é praticado no mundo bizantino, no is-
lâmico, no Extremo Oriente, sobretudo, no Japão, onde justamente
nesse período delineia-se uma espécie de "Idade Média" semelhan-
te à Europa ocidental, com elementos feudais e cavalheirescos que
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 205

se encontram nas instituições do xogunato e da casta dos chamados


samurais. O aspecto inovador e revolucionário, nos vários ambientes
culturais, é representado, porém, pelo nascimento e pela afirmação
daquelas instituições educativas superiores que, com significado ge-
nérico, podem ser chamadas de "universitárias".
Na Europa ocidental, entre o final do século XI e o início do século
XII, junto com o renascimento das cidades delineia-se um despertar
cultural devido seja à evolução mesma das escolas já existentes, seja
a razões de prestígio político local, seja aos encontros ocasionais e
depois cada vez mais sistemáticos com outros ambientes intelec-
tuais, como o árabe (que leva ao conhecimento de muitos autores
gregos traduzidos) ou como o bizantino (que leva ao reaprendizado
do grego). Às sete artes liberais e à teologia acrescentam-se, em
geral, disciplinas científicas como a medicina e o estudo do direito
- canônic­o e civil - com o renascimento do direito romano. As mais
importantes dessas escolas, constituídas por associações de estu-
dantes e mestres, conseguem logo reconhecimentos e privilégios
que dão lugar, justamente, às "universidades". A de Bolonha surge
já por volta de 1088; a de Oxford, em 1167; a de Paris, em 1170; e
depois, cada vez mais com mais freqüência, todas as demais.
Mas também em Bizâncio, em 1045, o Imperador Constantino IX
Monômaco dá um novo desenvolvimento à universidade já exis-
tente, garantindo-lhe uma sobrevivência relativamente próspera,
pelo menos até o início do século XIII, quando a constituição do
império latino do Oriente faz entrar em crise irreversível o sistema
escolástico, em todos os níveis.

Como você pode notar, é por meio deste contexto, com mui-
tas mudanças e transformações, que é preciso analisar a vida do
Cristianismo e suas mudanças, que pouco a pouco o inseriram no
mundo da modernidade com suas rupturas e desafios.

6. ORGANIZAÇÃO ECLESIAL NA IDADE MÉDIA (A


CRISTANDADE)

Fortalecimento do Cristianismo Medieval


Quando os muçulmanos, a partir do ano 622, começaram
o seu pro­cesso de expansão e conquistaram o norte da África e o
Oriente Médio, a atenção da Igreja voltou-se mais para o centro
e o norte da Europa. Este processo fez com que fossem cortadas

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206 © História da Igreja Antiga e Medieval

as relações comerciais com o Oriente e se fortalecesse a estrutura


feudal na Europa, na qual os que possuíam terras tinham um gran-
de poder e domínio sobre a grande maioria da população.
Os grandes latifundiários, nobres, príncipes e a Igreja assu-
miram o poder e direcionaram os destinos da sociedade para o
famoso sistema de Cristandade, no qual tudo se organizava e se
fundava com base nas verdades cristãs e da autoridade eclesial,
apoiada, em grande parte, na atividade missionária dos monges e
no poderio econômico e agrícola dos mosteiros.
Neste período aconteceram muitas mudanças na Europa e,
para Del Roio, essas transformações ocorreram, especialmente,
devido ao crescimento demográfico entre os séculos 8º e 11, que,
na cristandade latina, teve várias causas, assim expressas por ele:
Os grandes surtos de epidemias desapareceram, mas a sua explica-
ção é controvertida na história da saúde. Invenções e descobertas
permitiram elevar substancialmente a quantidade e a qualidade da
produção agrícola [...] Na Antigüidade a rotação dos cultivos era
bienal. Plantava-se metade do terreno e se estercava o restante,
deixando em repouso. No século IX já se havia difundido a rotação
trienal, divisão do solo em três partes: deixava-se uma terça parte
em repouso enquanto nas outras duas alternavam-se cultivos di-
versos, evitando o empobrecimento da terra e ampliando o espaço
lavrado [...]. Novidades surgiram também no terreno da técnica mi-
litar. A colocação do estribo e do arção no cavalo permitiu ao cava-
leiro cravar-se firmemente no lombo do animal [...]. Nascia desse
modo a cavalaria pesada, que teve um papel notável nos embates
e conquistas contra outras culturas. A violência intermitente, inva-
sões, saques deram origem à precisão da defesa. Esta se configurou
na construção de castelos fortificados e muralhados, de forma sem-
pre mais complexa, onde viviam os senhores feudais e seus cavalei-
ros. Para a manutenção dessas fortificações, acentuou-se a explo-
ração sobre o camponês que, proibido agora de deixar a terra onde
nascia, transformou-se em servo da gleba. Consolidou-se uma so-
ciedade trinitária, na qual o cavaleiro e o senhor feudal viviam para
o combate, o clero para a oração e o servo para a produção. Na-
queles tempos não existiam nem infra-estruturas construídas pelo
Estado nem serviços sociais. Estes encargos eram desempenhados
quase sempre pela Igreja, e o agente principal nessa esfera eram os
monastérios. Distribuíam esmolas e alimentos, curavam os doentes
e feridos, recolhiam os órfãos, enterravam os mortos. Construíam
pontes e hospedarias para ajudar aos viandantes. Divulgavam co-
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 207

nhecimentos e copiavam livros antigos, permitindo a sua preser-


vação. As pessoas viviam numa profunda tribulação existencial. A
superstição e a ignorância eram generalizadas, acreditava-se que
monstros e demônios povoavam a terra. Viam na Igreja uma pos-
sibilidade de refúgio e defesa contra tantos males imaginários. A
Igreja passou a se constituir numa componente cotidiana em toda
a vida coletiva e individual, e o cristianismo na única forma de en-
tendimento da realidade. No início do século XI várias monarquias
e embriões de estados nacionais já se haviam formado, mas o con-
trole efetivo que o soberano exercia sobre o território era quase
nulo. A cristandade latina era fracionada em centenas de pequenas
entidades estatais autônomas, como baronatos, ducados, principa-
dos, bispados, cidades-estados e outras formas organizadas, com
limites pouco definidos e existência passageira. Cada um com seu
pequeno exército privado e suas leis, e freqüentemente em guer-
ra umas com as outras. Em uma sociedade tão desorganizada, as
injustiças, a violência contra indivíduos e comunidades eram co-
tidianas. Era natural que se ouvisse um clamor generalizado pela
formação de uma potência superior capaz de coibir os abusos,
distribuir a justiça, delimitar as fronteiras, impor tréguas nos com-
bates, colaborar nos tratados de paz, arbitrar as desavenças. Duas
instituições estavam teoricamente aptas a suprir esse vazio: o Im-
pério e a Igreja. Contudo, o Império encontrava-se limitado às suas
fronteiras naturais, que abarcavam o conglomerado germânico e
partes da Gália e Itália, ao passo que a cristandade continuava a se
expandir em territórios ibéricos, nas ilhas Britânicas e na Europa
central e nórdica. Todo o quadro favorecia portanto a Igreja ( 1997,
p. 37- 40).

Com a reforma monástica de Cluny iniciada na França, no


ano 909 e vencidas as crises do "século de ferro" e do Papado da
primeira metade do século 9º, foi com o Sínodo de Sutri, ocorrido
em 1046, quando foram depostos três antipapas, que se superou
vários problemas internos da Igreja, com a escolha de um papa
mais íntegro. Apesar das tentativas de interferência dos reis ale-
mães, especialmente Henrique III e Henrique IV, nos assuntos ecle-
siásticos e nas eleições pontifícias, as questões do cesaropapismo
e da investidura leiga estavam com seus dias contados.
A partir daí, houve diversos papas que se des­tacaram na pro-
moção de uma gran­de renovação eclesial:
1) Leão IX (1049-1054): vi­si­tou vários países pregando e
elaborando decretos de reforma.

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208 © História da Igreja Antiga e Medieval

2) Nicolau II (1058-1061): a eleição papal esteve a cargo


dos cardeais e não mais dos reis e nobres.
3) Alexandre II (1061-1073): refor­çou a reforma.
4) Gregório VII (1073-1085): o grande reformador da Igreja.
Tais papas combateram dois grandes males da Igreja:
• simonia: venda e compra de cargos e ofícios eclesiásticos;
• nicolaísmo: luta contra os padres que tinham suas concu-
binas e, portanto, não eram celibatários.
Combateram, ainda, a raiz do maior mal que afligia a Igreja,
ou seja, a "investi­dura leiga".
A investi­dura leiga era, portanto, um costume que consis-
tia na inter­ferência do poder dos reis e príncipes nos assuntos da
Igreja, nomeando bispos e abades para a Europa, cargos que nem
sempre eram ocupados por pessoas dignas de exercer ministérios
eclesiais. Muitas vezes, as pessoas eram nomeadas de acordo com
os interesses dos nobres, que não estavam preocupados com as
questões espirituais, e sim com as questões políticas e econômi-
cas. Os reis e nobres não aceitaram facilmente essas mudanças
e os papas, de modo especial, Gregório VII (1073-1085), tiveram
muitas dificuldades. Com este papa, o processo reformador atinge
seu ponto-chave, de modo especial com o dictatus papae, com
várias ordens e propostas que mudariam a face da Igreja e sua
relação com o poder político.
Vejamos o que nos diz Del Roio sobre este período:
O conflito que opunha Roma ao Império ocidental evoluiu, passan-
do das disputas teológicas, históricas, às ofensas e depois às armas.
A Itália transformou-se num campo de batalhas, com freqüentes
acordos de paz e juramentos em nome de Cristo que rapidamente
eram rompidos. Foi nesse clima que se concretizou a eleição de Hil-
debrando de Soana à chefia máxima da Igreja, assumindo o nome
de Gregório VII (1073-1085). Hildebrando, monge de Cluny, comun-
gava das mesmas idéias de seu amigo cardeal da Silva Candida, es-
tava portanto entre os extremistas da renovação e da superiorida-
de papal sobre os demais poderes. Suas concepções a respeito do
cargo que ocupava vêm expostas num documento sintético com 27
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 209

proposições, intitulado dictatus papae, de 1075. Há controvérsia


quanto ao valor real dessas ordenações, já que muitos historiado-
res da Igreja alegam que elas expressam uma sua posição privada,
da qual derivava uma obrigação de cumprimento. No entanto, a es-
critura está incluída nos arquivos dos atos de governo de Gregório,
o que a tornaria oficial. Eis algumas sentenças:
1. A Igreja romana foi fundada somente pelo Senhor.
2. Somente o pontífice romano pode ser chamado de universal.
6. Não se pode, entre outras coisas, habitar na mesma casa com
pessoas que o papa excomungou.
8. Somente se podem usar as insígnias imperiais.
9. O papa é o único homem cujos pés os príncipes devem beijar.
11. O seu nome é único no mundo.
12. A ele é lícito depor imperadores.
17. As suas sentenças não podem ser questionadas por ninguém;
somente ele pode rejeitar as sentenças de qualquer um.
19. Somente ele não pode ser julgado por ninguém.
20. A Igreja romana nunca errou e, segundo as Santas Escrituras,
não errará jamais.
21. Não é católico quem não está de acordo com a Igreja romana.
Nesses princípios, que marcarão a história do catolicismo até os nos-
sos dias, estão sintetizadas as bases da teocracia. Seu espírito será
retomado pelo Concílio Vaticano I (1870), quando a infalibilidade pa-
pal se transformará em dogma no momento em que o papa toma
decisões em matéria de fé ou de costume. Gregório VII rompeu com
a idéia de um duplo poder ao qual caberia guiar harmonicamente os
assuntos espirituais e materiais da vida social. Segundo ele, somen-
te o governante justo e obediente ao papado possuiria o direito e a
legitimidade de exercer seu mandato. Se assim não fosse, o papa po-
deria mobilizar todas as suas forças e depô-lo. Suas proposições são
uma clara advertência aos imperadores, tanto de Bizâncio (Basileus)
como do Ocidente, mas também aos reis, que começavam a afirmar
seu poder nos estados nacionais. Estes ditados seriam aplicados de-
pois contra os soberanos de outros povos que sequer tinham conhe-
cimento da existência do cristianismo (DEL ROIO, 1997, p. 47-49).

Houve uma reação contrária ao "dictatus papae" por parte


do Imperador Henrique IV da Alemanha, de modo que ele foi ex-
comungado pelo papa e depois se reconciliou, mas seguiu-se um
conflito.

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210 © História da Igreja Antiga e Medieval

Após muito diálogo, foram assinados os acordos, conhecidos


como a Concordata de Worms, entre o Imperador alemão Henri-
que V e o papa Calixto II. Os acordos foram ratificados no Concílio
do Latrão, de 1123, e depois, no II Concílio do Latrão, de 1139.
Permaneciam as diferenças e brigas entre o poder temporal e o
espiritual. Mas a reforma eclesiástica foi se fortalecendo.
As reformas tiveram seu auge nos séculos 12 e 13, quando o
Papado se tornou a maior força política do Ocidente. Após a morte
do Papa Gregório VII, em 1085, houve uma fase de muita instabi-
lidade: os imperadores alemães e, depois, os franceses queriam
dominar a Igreja, os papas e os territórios pontifícios; a nobreza
romana queria a cidade de Roma livre de toda a interferência dos
imperadores alemães e começa a lutar contra a presença deles na
cidade, isto é, os romanos não queriam que o papa fosse o "senhor
da cidade"; os papas tentavam conquistar seu espaço, defendendo
os territórios pontifícios e impondo-se em Roma.
Então, deu-se início ao crescimento da autoridade papal que
alcançou seu auge com Inocêncio III (1198-1216), um dos papas
mais importantes de toda a história da Igreja, que restituiu ao pa-
pado o poder absoluto sobre o Estado Pontifício; retomou os "di-
reitos feudais" sobre o sul da Itália; promoveu a reforma da corte
pontifícia; lutou contra vários movimentos heréticos que es­tavam
aflorando na Igreja; apoiou vários movimentos de reforma nas or-
dens religiosas e a fundação dos franciscanos e dominicanos.
Durante seu pontificado, influ­en­ciou e controlou a vida política
ocidental na Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Boê­
mia, Hun­gria, Dinamarca, Islân­dia, Bulgá­ria, Armênia e, in­clusive,
em Constan­tinopla, quan­do os cru­zados tomaram a cidade, instau­
rando ali um império latino. O seu pontificado foi uma grande obra
de fortalecimento do poder eclesial.
Segundo Gonzalez:
O ponto culmi­nante dessa obra foi o IV Concílio de Latrão, em 1215,
que pro­mul­gou pela primeira vez a doutrina da transu­bstanciação.
A saber, no ato da consagração, o pão e o vinho da comunhão se
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 211

trans­formam subs­tancialmente no corpo e sangue de Cristo. Além


disso, foram con­denados os val­denses, os albigenses e as dou­trinas
de Joaquim de Fiore. Foi decretada a inquisição epis­copal, que or-
denava a cada bispo in­vestigar as heresias de sua diocese e extir-
pá‑las. Foi proibido fundar ordens religiosas com novas regras mo-
násticas. Ordenou‑se que fossem criadas escolas nas catedrais para
a educação dos pobres. Foi proibido que os clérigos participassem
de teatro, de jogos, de caça e de outros passatempos semelhantes.
Foi requerida a confissão de pecados por parte de todos os fiéis,
pelo menos uma vez por ano. Foi proi­bida a introdução de novas
relí­quias sem aprovação papal. Ficou estabelecido que os judeus e
muçulmanos deveriam usar roupas especiais, para se distin­guirem
dos cristãos. Os sacerdotes ficaram impedidos de cobrar pela admi­
nistração dos sacra­mentos. E muitas outras medidas seme­lhantes
foram tomadas. Se levarmos em conta que o concílio fez tudo isso
em três sessões de um dia cada, fica claro que quem tomou essas
medidas não foi a assembléia, mas Ino­cêncio, que uti­lizou o concí-
lio para referendar as medidas que ele decidira fazer. Por tudo isso,
não resta dúvida de que com Inocêncio III o ideal de uma cristan-
dade unida sob um só pastor aproximou-se da sua realização. Não
nos surpreende, então, se esse papa chegou a dizer (e muito dos
seus contemporâneos creram), que o papa "está entre Deus e o ser
humano; abaixo do primeiro e acima do segundo. Menos que Deus,
e mais que o homem. Julga a todos, mas ninguém o julga (1978,
p. 184‑185).

O pontificado de Inocêncio III marca, na Igreja, o período da


supremacia do poder espiritual sobre o temporal. Essa fase é con-
firmada no seguinte discurso:
Assim como Deus, o Criador do universo, estabeleceu dois grandes
luminares no firmamento, o maior para presidir o dia e o menor
para presidir sobre a noite; assim ele também estabeleceu dois
lumi­nares no firmamento da Igreja universal [...] O maior para que
presida sobre as almas, como dias, e o menor para que presida so-
bre os corpos, como noites. Estes são a autoridade pontifícia e o
poder real. Por outro lado, assim como a lua recebe a luz do sol [...]
assim o poder real recebe da autoridade pontifícia o brilho da sua
dignidade (DEL ROIO, 1997, p. 56).

Del Roio assim escreve sobre Inocêncio III e seu pontificado:


Pertencente a uma família nobre, o conde de Segni, feito cardeal aos
29 anos e eleito papa aos 37, cresceu dentro dos meandros do poder.
Ser o sucessor de Pedro não lhe bastava, desde logo declarou-se o
vicário de Cristo – título que fez entrar no uso comum. Declarou que

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212 © História da Igreja Antiga e Medieval

o título o colocava ‘na metade da estrada entre Deus e o homem,


abaixo de Deus mas acima do homem’, ao qual foi dado ‘o governo
não só da Igreja universal, mas de todo o mundo’. Gostava muito de
falar através de alegorias, como a das duas espadas concedidas por
Deus: uma nas mãos do papado, outra nas do imperador, entretanto
ambas pertencentes a ele, sendo a do imperador apenas empresta-
da, podendo ser retirada a qualquer momento a critério do próprio
papa. Inocêncio tirou o conceito de pecado e de arrependimento da
esfera privada, íntima, e o inscreveu no direito público. Isso autoriza-
va-o a intervir, não apenas no campo espiritual mas também através
da força, contra tudo o que considerasse pecado. Conclamou uma
cruzada contra a heresia cátara no sul da França, destruindo regiões
férteis e povoadas. Apoiou os ataques contra a Igreja de rito grego e
incentivou as guerras contra o Islã. Interveio nos assuntos políticos
dos estados nacionais e reduziu à situação de vassalos, entre outros,
os reis de Inglaterra, Aragão e Portugal (1997, p. 56-57).

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Podemos resumir o pontificado de Inocêncio III como a época do auge e do apo-
geu da hierocracia, ou também, eclesiocracia ou eclesiocentrismo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Os sucessores de Inocêncio III continuaram a sua obra, tanto
na relação política com os impera­dores como nos assuntos eclesi­
ásticos. As relações da Igreja com a monarquia alemã foi se enfra­
quecendo e, simultanea­mente, fortaleceu-se a aliança daquela
com a monarquia francesa, de modo especial com o rei São Luís IX
(1226­-1270). O sinal do estrei­tamento da relação e dependência
da Igreja com a França se deu com a convocação do Concílio Ecu­
mênico de Lyon, em 1274, para fortalecer a reforma eclesiástica,
buscar ajuda para a Terra Santa e se tentar a união com a Igreja
Grega. Com o Papa Bonifácio VIII (1294‑1303), foi iniciada a fase de
decadência do poder temporal dos papas em função do enfraque­
cimento da Igreja. As nações europeias buscavam o forta­lecimento
da autonomia. Estavam mais preocupadas com os seus assuntos
internos, com o forta­lecimento das novas classes burguesas em
detrimento da nobreza feudal, com o surgimento do humanismo
e da sociedade e cultura modernas. Bonifácio VIII não conseguiu
dialogar com as novas realidades que surgiam e nem com o poder
político estabe­lecido e acabou ficando sozinho.
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 213

E foi no contexto do fortalecimento do pontificado e centra-


lismo romano que aconteceram eventos que, até hoje, marcam
negativamente a história do Cristianismo: o Cisma do Oriente de
1054, o início das Cruzadas em 1095 e o surgimento da Inquisição,
em 1184, com o Papa Lúcio III.
Por outro lado, esses eventos promoveram ainda mais a cri-
se eclesial que teve seu ápice no Exílio de Avinhão (1308-1378),
no Cisma do Ocidente (1378-1415), no Papado do Renascimento
e, finalmente, na Reforma Luterana (1517). A Igreja medieval, po-
derosa e autônoma, foi perdendo-se no emaranhado das dúvidas
doutrinais, nas lutas pelo poder, no luxo e na corrupção.
São esses temas que estudaremos a seguir, nesta unidade e
na próxima!

7. CISMA DO ORIENTE (1054) E AS IGREJAS ORTODOXAS


No ano de 1054, ocorreu uma das principais divisões do Cristia-
nismo: o Cisma do Oriente, divisão entre os cristãos do Oriente (gre-
gos e constantinopolitanos) e os do Ocidente (latinos e romanos).
Até então, o Cristianismo era uma unidade administrativa
em torno do bispo de Roma, com costumes diferentes em várias
partes da Cristandade. Com as diferenças políticas, doutrinais, li-
túrgicas, culturais e disciplinares no decorrer dos séculos foi se for-
talecendo a divisão, que ocorreu em 1054.
Após analisar a situação do Cristianismo ocidental na época
de Gregório VII até Inocêncio III, Pierini aprofunda um pouco mais
a questão das relações político-religiosas do século 11, e assim
descreve o tema "A Igreja e os Imperialismos":
Os altos e baixos do imperialismo no Ocidente não fizeram esque-
cer, naturalmente, que a Igreja tinha que se defrontar com dois ou-
tros imperialismos políticos e religiosos: o bizantino e o islâmico. O
confronto com ambos chegou ao cume logo após a entrada do ano
1000, ou seja, em 1054 com os bizantinos e em 1095-1099 com os
muçulmanos. Mas as raízes, naturalmente, afundavam nos séculos
anteriores e eram extremamente complicadas.

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214 © História da Igreja Antiga e Medieval

A desconfiança e a antipatia dos bizantinos em relação aos latinos


–amplamente correspondida por estes - já haviam se manifesta-
do no sínodo de 692, dito ‘Trulano II’, realizado em Bizâncio, com
toda uma série de acusações contra alguns costumes eclesiásticos
ocidentais, que depois serão constantemente ressuscitadas, nos
sucessivos momentos de crise.
Para agravar ainda mais a situação, como já citamos, houve a in-
tromissão da política. Os imperadores bizantinos, que se iludiam
em ser os herdeiros dos imperadores romanos, procuravam de to-
das as formas servir-se dos papas para controlar os bárbaros. Mas
queriam também impor usas teorias teológicas, que comumente
os papas não podiam aceitar. Leão III Isáurico, imperador de 717 a
741, desencadeou em 726 a luta iconoclasta, com a destruição dos
ícones. Como os papas Gregório II e Gregório III não seguiam sua
política religiosa, ele vingou-se subtraindo da jurisdição do patriar-
cado romano os territórios da Ilíria, da Itália meridional e da Sicília.
Frente a essa primeira ofensiva político-religiosa, os papas, como se
sabe, reagiram procurando a proteção dos francos, organizando o
Estado pontifício e reconstruindo o império com Carlos Magno. Um
século depois, quem entrou em conflito com o papa foi Fócio, que
se tornou patriarca de Bizâncio de maneira um tanto irregular. A po-
lêmica pegou porque os bizantinos haviam operado um outro ‘fur-
to’, incorporando ao seu patriarcado a Bulgária, que, num primeiro
momento, depois da conversão ao cristianismo, havia se agregado
ao patriarcado romano. O resultado dessas e de outras tensões foi
que os bizantinos se convenceram de que os latinos eram atrasados
e bárbaros; os latinos, por sua vez, acreditavam que os bizantinos
eram não-confiáveis e até hereges. Havia necessidade de mais tole-
rância de ambas as partes, mas para isso faltava diálogo, que então
era muito difícil e penoso, seja pela extrema precariedade das co-
municações, seja pela ignorância da língua da outra parte. Os dois
mundos gradativamente iam se fechando em si mesmos e não mais
conseguiam suportar qualquer interferência externa. Assim, quan-
do a polêmica voltou a inflamar, dois séculos depois, o que ocorreu
foi um verdadeiro diálogo entre surdos ( 1998, p. 97-98).

Após esta introdução, creio que podemos aprofundar as cau-


sas dessa divisão. Pode-se dizer que há dois tipos de causas: as
políticas e as eclesiástico/doutrinais.

Causas políticas
Já nos primeiros séculos, com o surgimento da discussão em
torno da data pascal, no século 2º, e das heresias e de discursos
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 215

doutrinais distintos da pregação inicial, muitos bispos e padres


recorreram ao bispo de Roma, em função de ser ele o sucessor
de São Pedro, na direção do Cristianismo, para resolver questões
disciplinares e doutrinais. Como algumas heresias da antiguidade
cristã, dos séculos 3º ao 6º, surgiram no Oriente, muitos bispos
desta região não gostaram de algumas intervenções feitas pelo
bispo de Roma.
Posteriormente, quando o Imperador Constantino, no ano
330, inaugurou a capital do império em Constantinopla, antiga
Bizâncio, o bispo desta região quis assumir o nome de patriarca,
o que não foi bem visto por Roma. A partir daí, aumentaram as
diferenças.
Com a queda de Roma (ocorrida em 476), os bispos conquis-
taram mais poder e autonomia, e os patriarcas de Constantinopla
ficaram reféns do interesse e sofreram muito com o cesaropapis-
mo oriental. Vale ressaltar que a corte bizantina só teve sua queda
em 1453.
Em Roma, os papas foram se tornando fortes em torno do
Estado Pontifício, reconhecido no século 8º, e a partir da restau-
ração do Sagrado Império Romano-Germânico do Ocidente, com
Carlos Magno, acabou-se provocando ainda mais o distanciamen-
to do império oriental e das igrejas daquela região.

Causas eclesiástico-doutrinais
Além das questões políticas, outro fator importante na divi-
são foram as heresias.
Como muitas delas brotaram e tiveram seu apoio em segmen-
tos das Igrejas do Oriente, automaticamente se produziram tensões
entre as autoridades locais e a autoridade romana. Assim, podemos
destacar o Arianismo, o Nestorianismo, o Monofisismo etc.
A questão da Iconoclastia (guerra das imagens), no século
8º, e a do Filioque (procedência do Espírito Santo), no século 9º,

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216 © História da Igreja Antiga e Medieval

foram temas que fizeram crescer muito a divisão na época do pa-


triarca Fócio. Além disso, deve acrescentar-se:
• diferenças culturais e linguísticas: os gregos não com-
preendiam bem o latim, e os latinos, o grego;
• diferenças litúrgicas: celebração com pão ázimo, comu-
nhão com as duas espécies;
• diferenças disciplinares: celibato sacerdotal, padres oci-
dentais imberbes etc.
Com o aumento dessas divisões e de um desprezo recíproco,
no século 11, com o Patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário,
que era antiocidental, o Cisma aconteceu no ano 1054 e, já no sé-
culo 12, todas as igrejas orientais tinham rompido com Roma.
Um fato negativo, que fez aumentar a distância entre cris-
tãos orientais e ocidentais, foi a Cruzada de 1204, que invadiu vio-
lentamente Constantinopla e implantou o Reino Latino do Oriente,
que durou meio século. Apesar das tentativas de união ou diálogo,
as excomunhões só foram anuladas em 1965 pelo Papa Paulo VI e
pelo Patriarca de Atenágoras de Atenas.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Dentre as tentativas de união ou diálogo, podemos citar o II Concílio de Lyon, em
1274 e os Concílios de Ferrara e Florença, em 1431-1443.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Atualmente, as Igrejas Ortodoxas Orientais dividem-se nos
seguintes patriarcados: Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Bulgária,
Constantinopla, Romênia, Moscou e Sérvia. Além disso, existem as
Igrejas "autocéfalas" da Grécia, Chipre, Polônia e República Tche-
ca. Calcula-se que os ortodoxos são atualmente uns 150 milhões
fiéis. Não há um magistério central, elas se articulam em um regi-
me sinodal de colegiado.
Dessa maneira, entre as Igrejas Ortodoxas, temos as cha-
madas Igrejas Antigas Orientais: a Igreja Apostólica da Armênia,
a Igreja Síria Ortodoxa, a Igreja copta Ortodoxa e a Igreja Etíope
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 217

Ortodoxa. Elas se identificam com a doutrina herética monofisita,


condenada no Concílio de Calcedônia, no ano 451.
Nos tempos atuais, aumentou muito a aproximação de Roma
com várias Igrejas, pois umas são mais abertas (gregos de Constan-
tinopla, coptas, armênios) e outras que resistem ao diálogo (rus-
sos, sérvios, búlgaros).

8. ISLAMISMO E CRUZADAS

O Islamismo e a luta pela Terra Santa


Com a expansão muçulmana, a partir do século 7º , come­çaram
a surgir dificuldades para que os peregrinos cristãos pudes­sem visitar
a Terra Santa. No ano 1009, o califa Haken destruiu a Igreja do Santo
Sepulcro e passou a perseguir os cristãos e peregri­nos.
Assim, no apogeu do Papado medieval, dos séculos 11 ao
século 13, acon­teceram as Cruzadas, movimento religio­so-militar
que surgiu na Europa Ocidental, que tinha como objetivo recon­
quistar a Terra Santa (Jerusalém, Belém, Nazaré etc.) das mãos dos
infiéis muçulmanos.
Quem eram os muçulmanos e por que eles conquistaram a
Terra Santa?
Os muçulmanos são os segui­dores de Maomé (570-632),
fun­dador da religião muçulmana também chamada de Islamismo
ou Maometismo. Essa religião nasceu a partir da expe­riência de
Maomé, profeta de Alá (Deus), e iniciou a sua expansão no ano de
622 com a Égira, data da fuga de Maomé de Meca para Medina.
A religião muçulmana tem seu núcleo de fé baseado nas se­
guintes doutrinas:
• Fé num só Deus, Alá, todo poderoso e absoluto; Ele orde-
na tudo e não há lugar para a liberdade do homem. Tudo
está previamente marcado e escrito.

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218 © História da Igreja Antiga e Medieval

• Fé no profeta de Alá, Maomé; ele escreveu o Alcorão, di-


tado por Deus.
• Fé no juízo de Alá, que premia os bons e castiga os maus.
O Islamismo expandiu-se de uma forma extraordinária por
meio de várias conquistas:
1) Damasco, em 635.
2) Jerusalém, em 638.
3) Alexan­dria, em 643.
4) Assédios de Cons­tantinopla, em 673 e 717.
5) Cartago, em 698.
Em 711, chegaram à Espa­nha e ali se fixaram após as derro-
tas para os franceses, em 732. Com isso, as antigas regiões cristãs
do norte da África e do Oriente Médio passaram a ser dominadas
por eles.
Inicialmente, os muçulmanos toleraram os cristãos mediante
o pagamento de impostos. Posteriormente, cria­ram certas dificul-
dades em algu­mas regiões, mas não proibiram as peregri­nações à
Terra Santa.
A partir do século 11, come­çaram a surgir dificuldades para
que os peregrinos cristãos pudes­sem visitar a Terra Santa, além dos
problemas dos ladrões que rouba­vam os peregrinos, forçando-os a
viajarem em grupos maiores e com a ajuda de pequenos exércitos.
A atitude hostil do califa Haken, de proibir peregrinações e
destruir algumas igrejas cristãs, foi um golpe terrível na Cristanda-
de ocidental.
Além disso, devemos registrar os pedidos de ajuda militar
que os imperadores cristãos de Constan­tinopla frequentemente
faziam às lideranças ocidentais para que os ajudassem na luta con-
tra as incur­sões militares muçulmanas.
Todos esses eventos provocaram o surgimento das Cruzadas.
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 219

No capítulo III da obra Igreja Medieval. A cristandade latina,


intitulado A invenção do inimigo, Del Roio, introduzindo o tema
das Cruzadas, relata:
A cristandade latina, proclamando crescentemente ser a única a ex-
pressar a vontade divina, convenceu-se de que detinha o direito e o
dever de impor esta verdade a qualquer indivíduo ou sociedade [...].
Na medida em que se acentuava o dogmatismo e a soberba do poder
latino, cresciam as contestações e resistências. O resultado foi uma es-
piral de repressão, pois os opositores ou apenas divergentes passavam
a ser vistos maniqueisticamente como contraditores de Deus e segui-
dores do diabo. Deveriam ser não somente contidos ou derrotados,
mas aniquilados. Necessária e funcional, a existência do inimigo aju-
dava a compactar as fileiras do sistema, tornando-o mais duradouro
[...]. Adversário real era o Islã, uma imensa área religiosa e cultural
que abrangia desde a Índia até os Pireneus. Vitoriosos na batalha de
Guadalete (711) sobre o reino cristão dos visigodos, os árabes se ins-
talaram na Ibéria, com exceção apenas da pequena soberania das As-
túrias, ao norte. A partir de então guerras esporádicas, alternadas por
longos períodos de paz, travaram-se na fronteira européia entre o Islã
e o Cristianismo. Província do califado de Bagdá nos primeiros decê-
nios da ocupação islâmica, a Ibéria rompeu posteriormente esses laços
políticos, a partir de quando o Islã hispânico, com base em Córdoba,
seu núcleo diretor, ergueu-se como a civilização mais brilhante do Oci-
dente. Conviviam nela e contribuíam para a sua grandeza os islâmicos,
os judeus sefarditas e os cristãos, chamados de moçárabes. Mesqui-
tas, sinagogas e igrejas eram construídas lado a lado. A norma era a
coexistência e a colaboração, e as manifestações ocasionais de into-
lerância dependiam do caráter deste ou daquele governante. Embora
tenha conhecido uma grande expansão e dominado inúmeros povos,
o islamismo era extremamente tolerante com outros credos religiosos.
Quando conquistou Jerusalém (683), recebido pelo clero grego, o califa
Omar visitou o templo edificado no local onde teria sido o sepulcro de
Cristo [...]. Por alguns séculos, respeitando o adversário militar, os lati-
nos mantiveram com ele inclusive algum intercâmbio. Carlos Magno se
correspondia com o grande califa Harum Al-Rachid, que admirava. Em
meados do século XI essa postura modificou-se. Os islâmicos passa-
ram a ser crescentemente tratados como pagãos, gente sem religião, e
Maomé como uma encarnação do anticristo. Cronistas faziam circular
histórias horripilantes sobre supostas maneiras como os lugares santos
dos cristãos eram violados e destruídos pelos muçulmanos, instigados
pelos judeus, e como aqueles que para lá se dirigiam em peregrinação
sofriam vexações. Quando Urbano II convocou a primeira cruzada para
marchar contra Jerusalém não se referiu a esses fatos, argumentando
apenas sobre o dever cristão de libertar a Terra Santa e acenando com
as vantagens econômicas da conquista ( 1997, p. 59-63).

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220 © História da Igreja Antiga e Medieval

As expedições militares contra os muçulmanos receberam o


nome de Cruzadas, porque os soldados dos exércitos, que partici-
pavam daquelas campanhas, utilizavam mantos, elmos e armadu-
ras, todos eles pintados com uma cruz, sím­bolo maior da fé cristã.
Inicial­mente, o nome significou toda a luta contra os muçul-
manos na tentativa de se recuperar os lugares santos. Mais tarde,
abrangeu toda a luta movida pelos cristãos contra os vários tipos
de infiéis.
O Papa Gregório VII (1073-1085) já tinha tentado, durante
o seu pontificado, convocar uma Cruzada para ajudar, particular-
mente, os gregos de Constantinopla. Envol­vido, porém, nas lutas
contra Hen­rique IV da Alemanha, não pôde concretizar tal objeti-
vo. Assim, foi o Papa Urbano II quem convo­cou a primeira das oito
Cruzadas mais importantes.
Infelizmente, as Cruzadas não conseguiram atingir os seus
objetivos iniciais, pois a Terra Santa continuou nas mãos dos mu-
çulmanos. Contudo, vale ressaltar que as Cruzadas:
1) provocaram a união mais forte da Cristandade ocidental,
pois vários reis, em torno do papa, uniram-se para com-
bater um inimigo comum;
2) fortaleceram as missões cristãs, de modo especial a ação
das ordens mendicantes;
3) causaram a morte do feudalismo, pois muita gente dei-
xou o campo, fortaleceu-se a vida urbana como comér-
cio mais fortes e surgiram novas rotas comerciais;
4) colocaram o Ocidente a salvo do perigo muçulmano,
pois as Cruzadas fizeram com que os muçulmanos per-
manecessem mais nas terras conquistadas por eles, em
atitude de defesa;
5) fizeram com que as artes, comércio e ciências, na Euro-
pa ocidental, tivessem um grande progresso a partir do
contato com a cultura oriental.
Podemos afirmar, portanto, que as Cruzadas foram o re-
sultado de toda uma mentalidade em que a dimensão espiritual
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 221

ocupava um espaço imprescindível. Em contrapartida, elas foram,


também, fruto da cobiça dos reis e nobres que queriam conquistar
novas terras e riquezas.

Cronologia das Cruzadas


1ª Cruzada
A 1ª Cruzada foi convocada pelo Papa Urbano II, no Sínodo
de Clermont, em 1095.
O monge Pedro, o Ermitão, foi en­carregado de pregar a rea-
lização da primeira Cruzada, que contou com a participação de
um exército com mais de 600 mil homens da Alemanha, França,
Ingla­ter­ra e Itália, além de uns milhares de aventureiros, colonos
e men­­di­gos (alguns historiadores falam de 18 mil e outros chegam
até a cifra 70 mil homens). Tal número deveu-se a muitos fatores:
• o desemprego e a pobreza na Europa ocidental produ-
ziam um grande número de desocupados;
• a utilização e serviço dos guerreiros medievais que, com
a "trégua de Deus" (acordo temporário de paz), já não
podiam lutar em várias épocas do ano;
• promessa de que todo cruzado que permanecesse fiel à
Cruzada teria o perdão dos pecados e a garantia da salva-
ção eterna.
Em julho de 1099, após várias batalhas e peripécias, os cru-
zados conquistaram as cidades de Niceia, Antioquia e Jerusalém.
Infelizmente, foram muito violentos com os muçulmanos, inclusi-
ve judeus, matando adultos, crianças, violentando mulheres etc.
Após a tomada da cidade, foi estabelecido o Reino de Jeru-
salém, que durou de 1099 até 1187, tendo à frente, inicialmente,
o francês Godofredo de Bulhões. Ele não quis ser chamado de rei,
pois o único rei de Jerusalém foi Jesus Cristo, e sim de "advogado
ou protetor do Santo Sepulcro".

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222 © História da Igreja Antiga e Medieval

Com o tempo, os cruzados foram retornando para a Europa.


Jerusalém voltou a ser ameaçada pelos muçulmanos, dificultando
a vida dos governos do "Reino de Jerusalém".
2ª Cruzada
A 2ª Cruzada foi convocada pelo Papa Eugênio III, em 1144.
Causada pela queda de Edessa, Mesopotâmia (Iraque), caiu
nas mãos do sultão muçulmano de Alepo. Teve dois grandes pre-
gadores: São Bernardo de Claraval e frei Rodolfo.
Desse modo, foi formado um exército com mais de 200 mil
homens que chegou até Jerusalém reforçando a presença cristã na
Terra Santa. Fizeram algumas conquistas, mas sem muitas condi-
ções de resistir às pressões dos muçulmanos.
Em 1187, o sultão do Egito, Saladino, recon­quistou Jerusalém
e provocou grande apreensão na Europa e motivou a 3ª Cruzada.
3ª Cruzada
A 3ª Cruzada foi promovida pelos papas Gregório VIII e Cle-
mente III, em 1189.
Foi dirigida pelos soberanos Frederico Barbarroxa, Ricar­do Co-
ração de Leão e Felipe II Augusto. Só conseguiram conquistar a cidade
de São João do Acre, em 1191. Ricardo Coração de Leão, antes de re-
tornar à Inglaterra, fechou um acordo com o sultão do Egito, Saladino,
e este se comprometeu a não maltratar os peregrinos cristãos.
4ª Cruzada
A 4ª Cruzada foi convocada pelo papa Inocêncio III, em 1202.
A condição era a de que os legados papais a comandassem.
Infelizmente, ela se desviou de seus objetivos e os cruzados se diri-
giram para Constantinopla, contra a vontade do Papa. Lá fundaram
o "Império Latino de Constantinopla", em 1204, aumentando, ain-
da mais, a cisão entre a Igreja latina e a grega. Em 1261, os gregos
reconquistaram Constantinopla.
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 223

Cruzada das crianças


No ano de 1212, aconteceu essa infeliz iniciativa, tendo
como ponto de partida a cidade de Marselha. Milhares de crianças
acabaram sendo vendidas como escravas, no norte da África.
5ª Cruzada
A 5ª Cruzada foi promovida pelos Papas Inocêncio III e Ho-
nório II, em 1218.
Os cruzados conseguiram conquistar a fortaleza de Damieta,
no Egito, em 1219, que foi perdida anos depois.
6ª Cruzada
A 6ª. Cruzada foi dirigida pelo Imperador Frederico II da Ale-
manha, em 1229.
Vale ressaltar que o Imperador Frederico II tinha sido exco-
mungado pelo Papa Gregório IX. A Cruzada deu ótimos resultados.
Por um tratado com o sultão muçulmano do Egito, em 1229,
as ci­­da­­des de Jerusalém, Belém, Nazaré, Tiro e Sidon pas­saram
para o rei alemão. A condição foi que a mesquita de Omar, em
Jerusalém, ficasse nas mãos dos muçulmanos.
7ª Cruzada
A 7ª Cruzada foi convocada pelo Papa Inocêncio IV, em 1245.
Após o Concílio de Lyon, no ano anterior, Jerusa­lém voltou a
cair nas mãos dos infiéis muçulmanos. São Luís da França foi seu
grande líder e conquistou Damieta, no Egito, junto ao Mar Medi-
terrâneo em 1249, mas perdeu a batalha seguinte e teve de pagar
um alto resgate.
8ª Cruzada
Novamente dirigida por São Luís de França, em 1249.
Com a morte de São Luís, vitimado pela peste, em Túnis, na
África do Norte, em 1270 a Cruzada terminou.

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224 © História da Igreja Antiga e Medieval

Isso posto, pode-se afirmar que as Cruzadas não consegui-


ram atingir os seus objetivos iniciais. A Terra Santa continuou nas
mãos dos muçulmanos. Contudo, como já afirmamos anterior-
mente, elas provocaram a união mais forte da Cristandade ociden-
tal; fortaleceram as missões cristãs; causaram a morte do feudalis-
mo; colocaram o Ocidente a salvo do perigo muçulmano; e fizeram
que as artes, comércio e ciências, na Europa ocidental, tivessem
um grande progresso por meio do contato com a cultura oriental.
No âmbito interno do Cristianismo, convém destacar tam-
bém o surgimento das "ordens militares". Elas tinham o objetivo de
unir o modelo monástico no ambiente da guerra das cruzadas, seus
membros eram leigos e faziam votos religiosos com destaque para
lutar pela defesa dos Lugares Santos. Entre elas, destacamos:
1) Ordem dos Cavaleiros Teutônicos.
2) Ordem do Santo Sepulcro de Jerulsalém.
3) Cavaleiros de São João.
4) Ordem de Calatrava.
5) Ordem de Alcântara.
6) Ordem de Santiago.
7) Ordem de Cristo.
8) Ordem de São Bento de Avís etc.
Podemos dizer, por um lado, que as Cruzadas foram resultado
de toda uma mentalidade em que a dimensão espiritual ocupava
um espaço imprescindível na vida da Europa ocidental, com a Cris-
tandade latina. Por outro lado, não podemos esquecer que as Cruza-
das foram fruto, também, da cobiça dos reis e nobres que queriam
conquistar novas terras e riquezas. Além disso, os seus objetivos não
foram alcançados e elas acabaram por gerar muito ódio.
O Cristianismo, aos poucos, foi aprendendo que não se pode, em
hipótese alguma, sustentar atitudes que busquem, na violência e na
guerra, a solução dos problemas que afligem a humanidade. O discurso
da paz, do diálogo e da busca de soluções adequadas para todos os
problemas deve ser um valor e uma opção de toda instituição religiosa.
© U5 - A Cristandade Medieval: Cisma do Oriente (1054), Igrejas Ortodoxas,
Islamismo e Cruzadas 225

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
1) Quais são as características da Cristandade medieval?

2) Quais foram as principais características do pontificado de Gregório VII e


Inocêncio III?

3) Como você analisa as diferenças entre o Cristianismo ocidental e o oriental?

4) Como você analisa as Cruzadas?

5) Qual a importância deste estudo medieval para minha vida acadêmica e pro-
fissional?

10. CONSIDERAÇÕES
A Unidade 5 encerra-se aqui. No decorrer deste estudo, você
pôde estudar e refletir sobre alguns conceitos relacionados à Cris-
tandade medieval, ao Cisma do Oriente (1054), às características
do Islamismo e às Cruzadas.
Na próxima unidade, você vai estudar conceitos relaciona-
dos ao auge e à crise da Cristandade, às heresias medievais, à In-
quisição e à Reforma da Igreja na passagem para a Idade Moderna.
Até lá!

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DEL ROIO, J. L. Igreja medieval. A Cristandade latina. São Paulo: Ática, 1997.
GONZALEZ, J. L. Uma história ilustrada do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1978. v. 4
MELLO, J. R. As cruzadas. São Paulo: Ática, 1989.
NABHAN, N. N. Islamismo de Maomé a nossos dias. São Paulo: Ática, 1996.
PIRENNE, H. Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Dom Quixote, 1970.

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EAD
O Auge e a Crise da
Cristandade A Inquisição
A Transição Entre
a Idade Média e a
Idade Moderna 6
1. OBJETIVOS
• Compreender a transição entre Idade Média e Idade Mo-
derna.
• Conhecer a ciência escolástica e a mística medieval.
• Analisar a crise da Cristandade e os movimentos pré-lute-
ranos.
• Conhecer as heresias medievais (cátaros, valdenses, apo-
calípticos).
• Identificar os movimentos de renovação eclesial (mendi-
cantes).
• Interpretar a Inquisição.
• Conhecer a transição da Igreja Medieval para a Igreja
Moderna.
228 © História da Igreja Antiga e Medieval

2. CONTEÚDOS
• Auge e crise da Cristandade (investiduras).
• Heresias medievais (cátaros, valdenses, apocalípticos).
• Movimentos de renovação eclesial (mendicantes).
• Inquisição.
• Transição entre Idade Média e Idade Moderna.
• Ciência escolástica e a mística medieval.
• Crise da Cristandade e os movimentos pré-luteranos.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Um estudo organizado com sentido é facilmente com-
preendido e interiorizado. Para que isso ocorra, você
precisa se dedicar a descobrir os princípios e as leis que
ligam as várias partes do conteúdo a ser estudado nesta
unidade. Lembre-se de que esta visão global facilitará o
entendimento dos detalhes e da aplicação prática do as-
sunto aqui tratado.
2) Sabemos que pesquisar e estudar são hábitos que preci-
sam ser criados. Assim como qualquer outra habilidade,
no início, ler e estudar precisam ser atividades realizadas
com dedicação e esforço, até que se adquira gosto e se
torne uma tarefa cotidiana comum. Pesquise!
3) Suas reflexões podem ser úteis na elaboração de sua
monografia ou de futuras produções científicas. Assim,
anote-as no Bloco de anotações disponibilizado na Sala
de Aula Virtual ou mesmo no CD-ROM. Aproveite esta
oportunidade para amadurecer sua aprendizagem sobre
os conteúdos estudados e confrontá-los com sua expe-
riência.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 229

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
A unidade anterior abordou o tema da Cristandade medieval,
o Cisma do Oriente, o Islamismo e as Cruzadas. Agora, na Unidade
6, você terá a oportunidade de estudar conceitos relacionados ao
auge e à crise da Cristandade medieval, às heresias medievais e
aos movimentos de renovação eclesial, à Inquisição e à transição
entre Idade Média e Idade Moderna, destacando a ciência esco-
lástica, a mística medieval, a crise da Cristandade e os movimentos
pré-luteranos.
Vamos lá?

5. O AUGE E A CRISE DA CRISTANDADE (AS INVESTI-


DURAS)

Apogeu do poder eclesial (as reformas monásticas e eclesiásticas)


Já vimos nas unidades anteriores que a partir dos papas da
segunda metade do século 11, com destaque para a reforma de
Gregório VII (1073-1085), a Igreja foi se fortalecendo e, com refor-
mas eclesiais e monásticas, foi superando seus principais proble-
mas internos e externos, até chegar no período do auge do papado
com Inocêncio III (1198-1216), período da hierocracia, eclesiocra-
cia ou eclesiocentrismo.
Os aspectos mais marcantes da reforma eclesial foram:
• inves­tidura leiga: leigos ocupando cargos e funções ecle-
siásticos;
• simonia: compra e venda de sacramentos e benefícios
eclesiásticos;
• nico­laísmo: a questão do celibato clerical.
Com a superação desses problemas, a Igreja direcionou-se
para uma forte estru­turação e domínio temporal da sociedade,

Claretiano - Centro Universitário


230 © História da Igreja Antiga e Medieval

fundamentando-se no sistema de Cristandade, com a expansão do


pensamento da superioridade absoluta de religião cristã sobre to-
dos aqueles que não seguiam os seus ensinamentos e eram infiéis.
Na Cristandade, a Igreja ocupava o centro de toda a vida social, re-
ligiosa, econômica e, principalmente, política da Europa ocidental
e, a partir do fim do século 15, com a expansão ibérica, chegou na
América, África e em algumas regiões da Ásia!
A Cristandade expandiu-se graças, em grande parte, à ex-
pansão e ao trabalho das ordens monásticas.
Vamos conhecer um pouco mais sobre elas!

Reformas monásticas
Como já vimos, na segunda fase da Idade Antiga da Igreja
(séculos 4º ao 7º), surgiram várias Ordens Religiosas no Cristia-
nismo. Elas se desenvolveram a partir do Oriente, e dali, poste-
riormente, se expandiram para o Ocidente cristão. Como muitas
instituições sociais ou religiosas, já na Idade Média, várias dessas
Ordens desapareceram.
Em contrapartida, outras, especialmente a Ordem Benedi-
tina, desenvolveram-se muito, trazendo uma grande contribuição
para a Igreja e ajudando no forta­lecimento do sistema de Cris­
tandade. A Ordem Beneditina teve um grande destaque em todo
este processo. Em 529, São Bento de Núrsia fundou, na Itália, o
mosteiro de Monte Cassino.
Na Europa, aconteceu uma grande expansão de mosteiros e
a regra beneditina, muito precisa e fundamentada no ora et labo-
ra (oração e trabalho), foi, aos poucos, impondo-se sobre as outras
regras do Ocidente. No início do século 8º, com o apoio dos impe-
radores em seus projetos de reforma eclesial, ela foi imposta a todo
o Ocidente e os mosteiros foram fundados em todos os países, nos
locais mais inóspitos e distantes, levando progresso e novidades re-
ligiosas, agrícolas e culturais para várias regiões europeias.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 231

Entretanto, em muitos mo­mentos, os próprios mosteiros


precisavam ser reformados, pois, com seu crescimento e expan-
são, tornaram-se fontes de riquezas e passaram a ter um poder,
tanto eclesial como político, muito grande.
Além disso, era grande a intromissão dos nobres e, nesta si-
tuação, decaiu muito a vida dos monges, o que provocou a neces-
sidade de reformas.
Assim, des­tacaram-se as reformas:
• de Bento de Aniane, no início do século 9º;
• Lorenense, no século 10º;
• de Cluny, a maior reforma mo­nástica, na França.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A reforma mo­nástica de Cluny, na França, foi iniciada por um nobre, Guilherme, o
Pio, de Aquitânia e São Berno, um grande reformador, e expandiu-se pela Fran-
ça, Itália, Es­panha, Inglaterra, Portugal, Alemanha etc. No seu apogeu, foram
mais de 1.500 mosteiros dependentes.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Nesse mesmo período, novas ordens surgiram:
1) Em 950, São Nilo fundou o mosteiro na Calábria e, de-
pois, assumiu a abadia de Grottaferrata, em Roma.
2) Camaldolenses de São Romualdo, fundados em 982, na
Itália.
3) Valombrosa de São João Gual­berto.
4) Congregação da Cava etc.
Houve, também, as reformas do clero secular, a partir do sé-
culo 11, que iniciaram, em muitas regiões, um tipo de "vida comum"
ou "vida canônica".
Desse modo, com a Reforma Gre­goriana (1073­-1085), foi
fortalecida a autoridade papal e a tentativa de se acabar com a
intromissão leiga dos nobres e príncipes nos assuntos da Igreja.
Contemporaneamente ao apo­geu da Igreja, surgiram vários
movimentos contra seu poder temporal, os quais exigiam uma

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232 © História da Igreja Antiga e Medieval

Igreja mais evangélica, pobre, austera, atenta aos mais humildes e


desligadas de toda espécie de po­der e domínio deste mundo.

Apogeu do Papado com Inocêncio III

Inocêncio III (1198-1216) foi um dos maiores papas de toda a história


da Igreja.

Como já vimos na Unidade anterior, as reformas eclesiásticas


tiveram seu auge nos séculos 12 e 13, quando o Papado tornou-se
a maior força política do Ocidente. Assim, após a morte do Papa
Gregório VII, em 1085, seguiu-se uma fase de muita instabilidade:
• os imperadores alemães e, depois os franceses, queriam
dominar a Igreja, os papas e os territórios pontifícios;
• a nobreza romana queria a cidade de Roma livre de toda
a interferência dos imperadores alemães e lutou contra a
presença deles na cidade e, também, não queriam que o
papa fosse o 'senhor da cidade';
• da mesma forma, os papas tentavam conquistar seu es-
paço, defendendo os territórios pontifícios e se impondo
em Roma.
Vamos rever algumas das conquistas de Inocêncio III?
1) restituiu ao papado o poder absoluto sobre o Estado
Pontifício;
2) retomou os "direitos feudais" sobre várias regiões;
3) promoveu a reforma da corte pontifícia;
4) lutou contra vários movimentos heréticos que es­tavam
aflorando na Igreja;
5) apoiou vários movimentos de reforma nas ordens reli-
giosas e a fundação dos franciscanos e dominicanos.
Durante seu pontificado, influ­en­ciou e controlou a vida polí-
tica ocidental na:
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 233

1) Alemanha.
2) França.
3) Inglaterra.
4) Espanha.
5) Portugal.
6) Boêmia.
7) Hun­gria.
8) Dinamarca.
9) Islân­dia.
10) Bulgária.
11) Armênia.
12) Constan­tinopla, quan­do os cru­zados tomaram a cidade,
instau­rando ali um império latino.
O seu pontificado foi uma grande obra de fortalecimento do
poder eclesial.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O ponto culminante dessa obra foi o IV Concílio de Latrão, em 1215, que promul-
gou pela primeira vez a doutrina da transubstanciação (no ato da consagração, o
pão e o vinho da comunhão se transformam substancialmente no corpo e sangue
de Cristo).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Além disso, vale destacar os seguintes acontecimentos:
1) Foram con­denados os val­denses, os albigenses e as dou­
trinas de Joaquim de Fiore.
2) Foi decretada a Inquisição epis­copal, que ordenava a cada
bispo in­vestigar as heresias de sua diocese e extirpá-las.
3) Foi proibido fundar ordens religiosas com novas regras
monásticas.
4) Ordenou-se que fossem criadas escolas nas catedrais
para a educação dos pobres.
5) Foi proibido que os clérigos participassem de teatro, de
jogos, de caça e de outros passatempos semelhantes.
6) Foi requerida a confissão de pecados por parte de todos
os fiéis, pelo menos uma vez por ano.

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234 © História da Igreja Antiga e Medieval

7) Foi proi­bida a introdução de novas relíquias sem apro-


vação papal.
8) Ficou estabelecido que os judeus e muçulmanos deveriam
usar roupas especiais, para se distin­guirem dos cristãos.
9) Os sacerdotes ficaram impedidos de cobrar pela admi­
nistração dos sacra­mentos.
Desse modo, muitas outras medidas seme­lhantes foram to-
madas.
Se levarmos em conta que o Concílio fez tudo isso em três
sessões de um dia cada, fica claro que quem tomou essas medidas
não foi a Assembleia, mas Ino­cêncio III, que uti­lizou o Concílio para
referendar as medidas que ele decidira fazer.
Por tudo isso, não resta dúvida de que, com Inocêncio III, o
ideal de uma Cristandade unida sob um só pastor aproximou-se
da sua realização. Não nos surpreende, então, o que esse papa
chegou a dizer (e muito dos seus contemporâneos creram), que o
papa "está entre Deus e o ser humano; abaixo do primeiro e acima
do segundo. Menos que Deus, e mais que o homem. Julga a todos,
mas ninguém o julga" (GONZALEZ, 1978, p. 184-185).
O pontificado de Inocêncio III marcou, na Igreja, o período
da supremacia do poder espiritual sobre o temporal. Essa fase é
confirmada no seguinte discurso:
[...] assim como Deus, o Criador do universo, estabeleceu dois gran-
des luminares no firmamento, o maior para presidir o dia e o me-
nor para presidir sobre a noite; assim ele também estabeleceu dois
lumi­nares no firmamento da Igreja universal [...]. O maior para que
presida sobre as almas, como dias, e o menor para que presida sobre
os corpos, como noites. Estes são a autoridade pontifícia e o poder
real. Por outro lado, assim como a lua recebe a luz do sol [...]. Assim o
poder real recebe da autoridade pontifícia o brilho da sua dignidade.

Os sucessores de Inocêncio III continuaram a sua obra, tanto na


relação política com os impera­dores como nos assuntos eclesi­ásticos.
As relações da Igreja com a monarquia alemã foram se enfraquecen-
do e, simultanea­mente, fortaleceu-se a aliança da Igreja com a mo-
narquia francesa, de modo especial com o rei São Luís IX (1226­-1270).
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 235

Desse modo, o sinal do estrei­tamento da relação e depen-


dência da Igreja com a França se deu com a convocação do Con-
cílio Ecu­mênico de Lyon, em 1274, para fortalecer a reforma ecle-
siástica, buscar ajuda para a Terra Santa e para se tentar a união
com a Igreja Grega, que estava separada da Igreja ocidental desde
o Cisma do Oriente de 1054.
Vale ressaltar que com o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) foi
iniciada a fase de decadência do poder temporal dos papas em
função do enfraque­cimento da Igreja.
As nações europeias buscavam o forta­lecimento da auto-
nomia, mais preocupadas com os seus assuntos internos, com o
forta­lecimento das novas classes burguesas em detrimento da no-
breza feudal, com o surgimento do humanismo e da sociedade e
das culturas modernas. Isto também fez com que elas se envolves-
sem menos com questões externas e eclesiásticas.
Assim, Bonifácio VIII não conseguiu dialogar com as novas
realidades que surgiam e nem com o poder político estabe­lecido e
acabou ficando sozinho.
A Idade Moderna começava e a Igreja permanecia à parte,
ten­tando manter as estruturas medievais, antiquadas para a nova
realidade emergente.
Infe­liz­­mente, a atitude de fechamento da Igreja durou até
o século 20. O fruto desse fechamento foi a inse­gurança, o refor-
ço das de­cisões e atitudes intransigentes e, conse­quen­temente,
a perda da capaci­dade de diálogo, de com­preensão, de discerni-
mento e de abertura para o novo.

6. HERESIAS MEDIEVAIS (CÁTAROS, VALDENSES,


APOCALÍPTICOS)
Heresias medievais
A formação da ortodoxia cristã teve o seu auge entre os sé-
culos 4º e 7º, época dos grandes concílios ecumênicos. Com o Con-

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236 © História da Igreja Antiga e Medieval

cílio Ecumênico de Constantinopla (680­­-681), terminou a fase das


dis­cussões antigas sobre a dou­trina da Igreja.
Na primeira fase da Ida­de Média (692-1073), em função das­
várias mudanças sociais e eclesiais, especialmente a questão das
instabilidades ocorridas pelas invasões bárbaras e expansão muçul-
mana, o ambiente não foi muito favorável para a re­flexão teológica.
Dentre as mudanças sociais na primeira fase da Idade Média,
estão: que­da do império, invasões dos "bár­baros", fortalecimento
do sistema feudal, expansão muçulmana etc.
Assim, não surgiram heresias, mas sim várias discus­sões teo-
lógicas sobre a dou­trina cristã que não saíram do am­biente dos
mos­­­teiros e es­colas teológicas: ­
1) questão da Iconoclastia sobre a ve­neração das ima­gens
sagradas, iniciada em Cons­tantinopla e es­clarecida no II
Con­cílio de Niceia, em 787;
2) questão do Filioque, es­sa­discussão provocou o aumen-
to das­diferenças entre as Igrejas la­tina e grega e persiste
ainda ho­je;
3) questão do Adocianismo (Jesus teria sido adotado como
Filho de Deus, desde o batismo), sur­gida na Espanha
com os bispos Elipando de Toledo e Félix de Urge e con-
denada no sínodo romano de 798;
4) controvérsia sobre a Pre­ destinação, levantada pelo
monge Godescalco, do mosteiro de Fulda, na Alemanha
e condenada em vários sínodos alemães;
5) controvérsias eucarís­ti­cas que não se referiam à pre­sen­­
ça real de Cristo na Eucaristia, e sim ao modo dessa pre-
sença real, tiveram vários re­pre­sentantes:
• Pascasio Rad­berto.
• Ratra­mno de Cor­bie, no século 9º.
• Berengário de Tours, no século 11.

Filioque: doutrina segunda a qual o Espírito Santo procede do Pai


e do Filho.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 237

Eles foram con­de­nados e o es­cla­re­ci­men­to final veio no IV


Concílio do La­trão, com o Papa Inocêncio III, em 1215, quando foi
apro­vada a dou­trina da "tran­substanciação".
Na segunda metade da Idade Média (1073-1303), a Igreja vi-
veu a fase do "apogeu do Papado". Uma Igreja forte, rica e po­derosa,
que muitas vezes se con­fundia com os poderes deste mundo e­estava
comprometida com a cor­rupção e o luxo. Nesse contexto, surgiram
muitos mo­vimentos que pregavam a renovação da Igreja e sua vol-
ta aos tempos primitivos, ou seja, pregavam um Cristianismo, mas
pobre, mais puro e mais fiel aos ideais do Evangelho. Al­guns­deles
perma­neceram na comu­nhão eclesial e outros romperam com ela.
A partir do século 12, surgiram várias heresias, com forte
apelo po­pular e com um caráter forte­mente an­ti­e­clesiástico. Des-
se modo, as causas do sur­gimento dessas heresias de­vem ser bus-
cadas na decadência da vi­da interior e religiosa, na ri­que­za, na vida
mundana e no luxo dos e­clesi­ás­ticos. Além do aspecto mais ecle­
sial, temos de mencionar a di­minui­ção da autoridade do Papado,
com as lutas deste com os impe­ra­dores.
Finalmente, existem as causas políticas, econômicas e cultu-
rais, de acordo com o que afirma Ribeiro Júnior:
Do século XI ao século XIII, a expansão econômica da Europa, a re-
união nas cidades de merca­dores e das classes pobres, mais orga­
nizadas (tecelões, artesãos, mi­nei­ros etc.), pro­porcionaram, por
toda parte, o aparecimento de mo­vimentos populares, os quais
de­ram­origem a várias heresias e levaram a Igreja e o poder civil a
montarem um violento aparelho re­pressivo, uma vez que, para a
so­ci­edade feudal cristã, a heresia que­brava as ordens divina e so-
cial, alicerçadas sobre o juramento de fidelidade do vassalo a seu
senhor. A heresia nem sempre nasce da dúvida intelectual, co­mo
ocorreu nos­­séculos anteriores. Surge, tam­bém, das con­dições so-
ciais, econômicas e políticas; da oposi­ção das clas­ses a uma outra
domi­nante. Assim, praticamente todas as heresias medievais esta-
vam li­ga­das a fatores sócio­-eco­nômicos. Os cultos da pobreza e da
vida co­mum­ re­pre­sen­tavam não só uma es­­­­piritualização das con-
dições ma­­­­­­te­riais e­xistentes mas também uma reação contra o luxo
e a ri­que­za nascidos do desenvolvimento do capitalismo. A luta de­
ten­dência anti­feudal, anticlerical e anti­-sa­cramental que se desen-
volveu nes­se período foi uma luta de opri­midos con­tra o­re­gime

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238 © História da Igreja Antiga e Medieval

feudal, o e­piscopado aristocrático e as ins­titui­ções religiosas exclu-


sivistas e ambiciosas, mas uma lu­ta­tra­du­zida no discurso da época,
que era um discurso te­o­lógi­co (1989, p. 62-63).

Nesse contexto, as heresias sur­­giram e se expandiram com


grande apoio po­pular. Destacamos a seguir as principais heresias
deste período:
1) Cátaros (puros) ou albigenses (da cidade francesa de
Albi): he­resia proveniente do dualismo maniqueu (luta
entre o bem e mal, Deus e o Diabo, com vitória de Deus
no fim dos tempos) oriental e do leste europeu que se
fixou em vários países, es­pecialmente na França. Eram
ad­mirados por causa de sua aus­teridade e do comba-
te às riquezas dos clérigos. Sua doutrina se ba­seava no
dualismo e rejeitava tudo o que era material:
a) pro­priedades privadas;
b) casamentos;
c) carne;
d) tra­ba­lho;
e) guerra;
f) negavam o valor redentor da ressurreição de Jesus e
ensinavam que Ele só teve um corpo aparente e foi
o mais puro dos espíritos;
g) praticavam jejuns, ascetismo rigoroso e o suicídio
era um ideal de santidade.
• Condenados no III Concílio do Latrão, em 1179,
foram desaparecendo com as Cruzadas movidas
contra eles e pela ação da Inquisição. Motsegur,
a grande fortaleza cátara no Languedoc francês,
caiu no ano 1244.
• Del Roio escreve assim sobre eles:
A mais importante heresia que o papado combateu, se considerar-
mos o número de adeptos que arregimentou, foi a dos cátaros, cha-
mados igualmente de albigenses, devido a um dos seus redutos, a ci-
dade francesa de Albi. As posições teológicas do catarismo são pouco
conhecidas. Seus documentos originais foram destruídos e chegaram
até nossos dias apenas os atos de processos forjados com base nas
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 239

calúnias dos adversários [...]. Aos fiéis, cabia o dever do ascetismo, o


afastamento das riquezas e prazeres mundanos, considerados arma-
dilhas do mal para manter os humanos ligados à matéria [...]. O cres-
cimento da heresia deu origem a várias estruturas organizativas, com
subdivisões dentro da comunidade com o nome de auditores, cren-
tes e eleitos. Estes, representando o grau maior de pureza, incluíam
as mulheres e tinha funções similares às de sacerdotes. As muitas
ruínas de seus templos apresentam indícios de que praticavam ritos
esotéricos de difícil compreensão. Devessem ou não os cátaros ser
considerados cristãos, o fato é que com eles nascia no Ocidente la-
tino, no final do século XII, uma igreja alternativa à de Roma. Coube
ao papa Alexandre III (1159-1181) lançar o anátema sobre os cátaros
(1179) e pedir a formação de uma cruzada para combatê-los. Era um
salto qualitativo, as cruzadas realizadas até então tinham-se voltado
contra os não-cristãos, religiões situadas nas fronteiras externas da
cristandade(1997, p. 72-74).
2) Valdenses: fundados por um rico comerciante francês,
chamado Pedro Valdo, que se converteu em 1173, e dis-
tribuiu seus bens aos pobres, levou vida penitente pre-
gando a Palavra de Deus de forma itinerante e, com seus
discípulos, formou um grupo chamado de os pobres de
Lyon. Para ele, a vida pura do Evangelho estava intima-
mente ligada à opção pela pobreza e no serviço aos po-
bres. Proibido de pregar pelo bispo de Lyon, con­seguiu
a permissão de fazê-lo do papa Alexandre III, no ano
de 1179. Ao dirigir críticas, porém, contra a corrupção
do clero, a situação piorou. Foi excomungado em 1184,
através de decreto do papa Lúcio III, que atingiu também
outros radicais hereges. Não se sabe como Pedro Valdo
morreu, mas parte de seus seguidores per­maneceram
fiéis à Igreja, e parte optou por uma vida fora da Igreja e
muitos se uniram aos hereges cátaros. Os pontos princi-
pais da doutrina valdense eram esses:
a) re­jeitavam a Igreja visível;
b) re­jeitavam os sa­cramentos, menos a Euca­ristia;
c) exigiam a supressão dos dízimos e do serviço militar;
d) apreciavam muito a Bíblia.
No século 16, uni­ram-se aos calvinistas e existem até
hoje, como Igreja organizada, na Itália, Suíça, Argentina
e Uruguai.

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240 © História da Igreja Antiga e Medieval

3) Petrobrussianos: discípulos de Pedro de Bruis, que pre-


gou sua doutrina na França, no início do século 11. Ba-
seando-se num funda­mentalismo evangélico, criticavam
a hierarquia eclesiástica e alguns aspectos da doutrina
cristã. Eram contrários ao batismo de crianças, à cons-
trução de Igrejas, à missa, e pregavam a desobediência
ao clero e à hierarquia. Para os Petrobrussianos, deve-se
rezar em qualquer lugar.
• Pedro foi assassinado em 1124, quando fazia um
churrasco com o fogo aceso sobre cruzes queimadas
e teve sua doutri­na condenada, em 1139. Foram seus
discípulos:
• Henrique de Lau­san­ne;
• Tanquelmo de Brabante Eon de Stella.
4) Irmãos Apóstolos: fundados por Geraldo Segarelli, em
1260, e por Frei Dolcino de Novara. Pregavam uma po-
breza rigorosa e romperam com a Igreja e, em 1370, fo-
ram exterminados por um exército cruzado.

Geraldo Segarelli foi queimado em 1300 e Frei Dolcino de Novara,


em 1307.

5) Arnaldo de Bréscia: foi um cônego agostiniano, refor-


mador eclesial e grande asceta, com propensão ao fa-
natismo e radicalismo. Criticou as riquezas da Igreja, sua
mundanidade e seu poder temporal; foi condenado no
Concílio do Latrão, em 1139. Em Roma, liderou um mo-
vimento político que queria o afastamento do Papa da
cidade e foi enforcado em 1155.
• Del Roio assim sintetiza sua vida:
Arnaldo nasceu nos primórdios de 1100 na cidade de Bréscia e pouco
se sabe da primeira parte de sua vida, apenas que era um monge
notabilizado pelos ataques ao seu bispo Manfredo, no qual, critica-
va o alto nível de vida que levava. Exilado, rumou para Paris, onde
travou elevados debates teológicos com Bernardo de CLairvaux, seu
acérrimo inimigo. Convocado a penitenciar-se pelo papa Eugenio III
(1145-1153), chegou a Roma em 1145. Encontrou a cidade rebela-
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 241

da contra o papado, exigindo maiores liberdades. Em pouco tempo


transformou-se num dos líderes dos insurretos e porta-voz dos seto-
res mais pobres da população. Sua apreciação sobre a Igreja institu-
cional fez-se sempre mais radical. Aos cardeais dizia que [...] as suas
moradias, por soberba, avareza, hipocrisia e muitas outras qualida-
des execráveis, não era a Igreja de Deus, mas um mercado e uma
taberna de ladrões [...]. Nem o papa escapava de suas acusações: [...]
homem sanguinário, que baseava sua autoridade sobre incêndios e
homicídios, torturador de igrejas, perseguidor da inocência [...].
O remédio que propunha era simples: a Igreja devia abandonar suas
riquezas e o poder temporal, entregando-se aos pobres, cumprindo
a sua missão espiritual. Em junho de 1148 foi excomungado e em
1155, vencida a sublevação, depois da volta do papa a Roma, o pre-
gador bresciano foi preso. Entregue ao braço secular, foi queimado
e, provavelmente, antes de colocado na fogueira, estrangulado. Em-
bora declarado herético, na verdade seu crime consistiu em opor-se
ao dualismo que interligava Igreja e Império, poder espiritual e po-
der temporal, que a seu ver degradava a missão confiada por Cristo.
Como ele, mesmo que exprimindo-se numa linguagem menos incen-
diária, pensavam muitos sacerdotes e leigos (1997, p. 70-71).

A Igreja medieval pre­cisava, urgentemente, de uma re­forma.


Ela se enfraquecia politicamente e precisava mudar o seu modo de
se relacionar com a nova sociedade que surgia.
Essas heresias mostraram­as insatisfações popu­lares e ser-
viram para questionar a estrutura eclesial. Infelizmente, a Igreja
não se desligou dos com­promissos temporais e não resol­veu seus
problemas internos e externos. A crise aumentou e pro­vocou o
surgimento de si­tuações lamentáveis que tiveram seu a­ uge com a
Reforma protes­tante, liderada por Martinho Lutero.

7. MOVIMENTOS DE RENOVAÇÃO ECLESIAL


Os problemas que afetaram a Igreja (crise do papado e luta
com os imperadores, contratestemunho da hierarquia, riquezas e
luxúria eclesiais, investidura leiga, simonia e nicolaísmo) fizeram
com que surgissem movimentos de reforma que conhe­ceremos.
Elencaremos alguns movimentos que surgiram, a partir do
século 11, e que geraram heresias e movimentos unidos à Igreja:

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242 © História da Igreja Antiga e Medieval

• Os Apocalípticos fundados pelo monge cisterciense Joa-


quim de Fiore (+1202), monge da Calábria, grande refor-
mador da Igreja. Ele escreveu sobre a era espiritual que
deveria ser assumida pela Igreja e se concretizaria naque-
la época; seus escritos tiveram muitos seguidores, inclu-
sive consegui a simpatia do monge e papa Celestino V,
eleito em 1294, com ideal de pobreza e pureza, chamado
de o "papa evangélico", mas que renunciou com menos
de um ano de papado, decepcionado com os rumos da
Igreja e com as pressões dos cardeais.
• As beguinas que surgiram no fim do século 12 nos Países
Baixos e foram fundadas por Santa Bega ou pelo pregador
Laberto, e levavam vida apostólica comum num sistema
rigoroso e sem votos.
• Os Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Fran­
cisco de Assis ou beguinos, dis­sidentes franciscanos que
pre­ga­vam a renúncia total dos bens ma­teriais; muitos fo-
ram presos e con­denados pela Inquisição; os Fran­ciscanos
Espirituais ou frati­celli, ordem monástica que lutava por
uma­Igreja pobre e pura.
No contexto da Vida Religiosa Consa­grada, surgiram várias or­
dens que queriam a renovação eclesial: cistercienses de São Roberto
de Molesme (fundados em 1098, na França e seguidores da regra bene-
ditina e dedicavam bom tempo ao trabalho manual e trouxeram muitas
inovações tecnológicas para a agricultura e um dos grandes represen-
tantes desta ordem foi São Bernardo de Claraval, um dos personagens
mais importantes do Cristianismo do século 13); cartuxos de São Bruno
de Colônia, os premonstratenses de São Norberto de Xantén etc.
Segundo Del Roio, no capítulo em que trata sobre a Deca-
dência da teocracia:
Mesmo em seus piores momentos, governada por homens incapa-
zes, envolvida em guerras e mergulhada na corrupção, a estrutura
da igreja resistiu a todas as tempestades. Em grande parte, esse
desempenho dever ser creditado às ordens religiosas. Diferencia-
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 243

das entre sim, elas exerceram uma vasta e multifacetada influência


na sociedade européia, abrangendo, entre outros, os campos mili-
tar, econômico, artístico e universitário. Seu aparecimento deu-se
processualmente, na medida em que novas tarefas e dificuldades
apresentavam-se ao cristianismo romano. Algumas não resistiram
ao tempo, todas conheceram crises e divisões, embora tenham re-
presentado parte importante na história da Igreja (1997, p. 85).

Mas o maior movimento de renovação eclesial foi o dos


mendicantes, no­me dado a várias ordens religiosas que surgiram
nos séculos 12 e 13 e pregavam a pobreza total da Igre­ja, dos mos-
teiros e dos monges (frades-irmãos), que viveriam na pobreza, na
aus­te­ridade e na mendicância.
Del Roio situa o contexto de surgimento dos mendicantes
desta forma:
Se fosse possível a um cristão latino, no início de 1200, proceder
uma análise objetiva da realidade de sua Igreja, motivos não falta-
riam para que ficasse muito preocupado. Os cruzados em retirada,
inexistência quase completa de casos de conversão de islâmicos ao
cristianismo, freqüente conversão de cristãos ao islamismo, expan-
são das heresias, preferência dos hereges à morte mais dolorosa a
ter que abandonar seus próprios princípios, perda da capacidade
de sacrifício entre os cristãos romanos, tudo isso evidenciava a ur-
gência de se encontrarem novas formas de comportamento e de
expressão religiosa na Igreja romana. A chama para essa mudança
surgiria com Giovanni di Pietro de Bernardone, também chamado
de Francisco (1997, p. 89-90).

Vejamos agora algumas ordens religiosas:


1) Franciscanos: fundados por São Francisco de Assis (1181-
1226), um dos santos mais co­nhe­cidos da Igreja por sua
po­breza e austeridade. Nas­cido no apogeu do Papado, o
pe­ríodo no qual a Igreja esteve mais com­prometida com
os po­deres des­te mundo e com as ri­quezas. A­pro­vados
em 1223, aju­daram na re­for­ma da Igreja, no ser­viço aos
po­bres, nas missões e nas universi­dades cristãs recém-
fun­dadas:
Filho de família rica da cidade de Assis, região umbra da Itália, deci-
diu entregar-se à vida em total pobreza, tal como Valdésio de Lion.
Aos que o chamavam de louco, respondeu: "aquela que era o mais
rico de todos me escolheu, junto com sua beatíssima mãe, viver na

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244 © História da Igreja Antiga e Medieval

pobreza". Nele se concentravam todas as contradições da cristan-


dade latina. Se os leprosos eram considerados malditos, intocáveis,
viveria junto a eles. Se a natureza era vista como inimiga que assus-
tava o homem medieval, Francisco inverte essa posição a ponto de
tratar o lobo, animal mais temido da época, como irmão. Se a mu-
lher era considerada como inferior e perigosa, ele se apresenta ao
lado de Clara de Assis e a trata como uma igual. Viajará até o Egito,
onde manterá boas relações com o sultão e pronunciará discurso
duro contra os cruzados e seus crimes.
Acompanhado por um grupo de seguidores, visitará Roma em 1210
e obterá de Inocêncio III aprovação oral para a primeira versão das
regras da ordem que pretendia fundar. Exigia daqueles que preten-
diam militar em suas fileiras uma vida em pobreza, simplicidade e
disposição para uma existência peregrina, sem habitação definitiva,
em favor das crianças e dos mais humildes. Pouco antes de mor-
rer, diz a tradição, rebentaram em seus corpos feridas semelhantes
às de Cristo. Com seu desaparecimento, a ordem iria se dividir en-
tre os espirituais, que exigiam coerência como o pensamento e a
ação de Francisco, e os conventualistas, que pediam a atenuação
do rigor das regras, sobretudo no que dizia respeito à opção pela
pobreza, que desejavam fosse substituída pelo direito à posse de
bens em comum. Apesar do papado ter-se decidido a favor destes
últimos, a divisão subsistiria por muito tempo, ao longo do qual se-
tores consistentes dos espirituais se aproximaram do joaquimismo
(DEL ROIO, 1997, p. 91-92).

• A Regra escrita por Francisco em 1221 foi aprovada


pelo papa Onório III em 1223. Mesmo com as divisões
internas, a Ordem Franciscana teve uma expansão
extraordinária e no fim do século 13 já tinha mais de
1500 conventos, e nesse período se destacaram Elias
de Cortona, sucessor de Francisco e São Boaventura.
Em 1517, após três séculos de conflitos internos, foi
aprovada a divisão da Ordem em dois ramos: Irmãos
Menores e Irmãos Menores Conventuais.
2) Dominicanos: fundados por São Domingos de Gusmão
(1170­-1221), contemporâneo de São Fran­cisco. Preocu-
pavam-se com a falta de formação do clero e com a ex-
pansão das heresias. Ajudaram na reforma eclesial, na
formação do clero e no combate às heresias:
Domingos, pertencente a uma abastada família de Castela e for-
mado em filosofia, seria enviado juntamente com os legados pa-
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 245

pais à zona hegemoneizada pelos cátaros, com a incumbência de


convertê-los. Anos de insucessos o convenceram da necessidade
de fundar uma ordem, dotada de quadros bem preparados e ins-
truídos, com a finalidade de predicar o evangelho e as verdades da
Igreja entre as pessoas. Acompanhado por apenas seis companhei-
ros, obteve do papa Honório III (1216-1227) o reconhecimento de
sua ordem e a autorização para predicar. Era uma grande novidade,
já que apenas aos bispos era concedida tal prerrogativa. Em 1220,
sob a influência de Francisco de Assis, impôs o voto de pobreza a
seus seguidores. Como os franciscanos, criou uma ordem feminina
e outra leiga. Grandes nomes viriam pertencer a essa ordem, como
Alberto Magno, Tomás de Aquino, Catarina de Siena. Infelizmente,
em 1233 o papa Gregório IX iria delegar aos dominicanos a tare-
fa de servirem à inquisição. Embora apenas um pequeno número
dentre eles tenha cumprido essa determinação, comparados com o
conjunto de religiosos que nela se envolveram, esse fato pesa ainda
hoje como mácula indelével (DEL ROIO, 1997, p. 92-93).
3) Carmelitas: nasceram em Je­ru­­sa­lém, possivelmente a
partir do ere­mi­tério fundado, em 1156, pelo cru­­zado
Berto de Calábria e um gru­­po de companheiros. Trans­
fe­riram-se para a Europa e se dedicaram às missões e à
formação do povo.
4) Mercedários: fundados por São Pedro Nolasco e São
Raimundo Peñafort, em 1222.
5) Servitas: fundados por sete piedosos homens de Floren-
ça, Itália, em 1233.
6) Trinitários: fundados por São João da Mata. Foram
aprova­dos em 1198.
Assim, a Igreja medieval te­ve muitas luzes, mas também
mui­tas sombras. Dessa maneira, ela apren­deu que sua missão não
pode estar vin­cu­lada aos sistemas e às estru­tu­ras des­te mundo, e
buscar sua for­ça e autoridade na obra de Je­sus Cristo, nas verda-
des do Evan­gelho e­­­no­exemplo de tantos cristãos que souberam
"amar a Deus sobre todas as coisas".

8. INQUISIÇÃO
Agora, estudaremos a "inquisição", entidade mais criticada
e mais incompreendida de toda a História do Cristianismo. Ela foi

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246 © História da Igreja Antiga e Medieval

um tribunal criado pela própria Igreja para combater os hereges


e aqueles que não se adequavam ao sistema da Cristandade me-
dieval. Aprofundando, podemos dizer que ela foi uma instituição,
com aspectos jurídicos precisos, que teve sua atenção voltada para
investigação dos hereges medievais e suas teorias, tendo como ob-
jetivo identificá-los e tomar as medidas para controlá-los e excluí-
-los do contexto da Cristandade latina medieval.
O Pe. Giacomo Mar­tina, histo­riador je­suíta, faz um juízo da
Inquisição com es­tas pala­vras, tra­du­zidas do ori­ginal italia­no:
A Inquisição repre­senta um dos pontos nevrálgicos da cristanda-
de me­dieval, e, em ge­ral, da História da Igreja. É necessário, porém,
compreender o espírito que permitiu o seu nasci­mento e desen­volvi­
mento: a intole­rância era comum em toda a Idade Média e a tolerância
se afirmou fatidica­mente só na idade moderna mais re­cente. A Igreja,
pois, fez uso dos meios que o procedi­mento penal da­quele tempo lhe
colo­cava à dis­posição. Com­pre­­ender isto, porém, não significa justificar
ou absolver. Não temos neces­sidade de justi­ficar a Inquisição medieval
e não o fa­re­mos. A acei­tação de algumas de­­núncias, tam­bém anôni­
mas e a con­servação do segredo acerca de tex­tos pe­sa­dos, a exclusão
qua­se ge­ral de um defensor, a ex­cessiva ex­tensão do con­ceito de here-
sia, a apli­cação da tortura, apesar dos li­mites e cau­telas previs­tos pelo
Di­reito, a pena de morte, são atos tão dis­tantes do ge­nuíno espírito
evangélico: não resta senão re­co­nhecer que, ao me­nos nisto, a ida­de
mo­derna, mesmo com erros e desvios, com­preen­deu melhor as exi­
gências da men­sagem cristã ( 1980, p. 130).

A Inquisição de­ve ser compre­en­di­da no con­texto his­tórico


no qual ela nas­ceu e se de­sen­volveu. Como sabe­mos, a Inquisição
nasceu e se desenvolveu no contexto do mundo medieval (sécu-
los 12-14), na época em que surgiram muitas heresias contrárias à
Igreja enquanto instituição e na época em que a Cristandade esta-
va no seu apogeu, teve seu período mais forte na Idade Moderna
(séculos 14-17) e foi se enfra­quecendo até desaparecer nos sécu-
los 19 e 20.
Na Idade Antiga, até o início do século 4º, os cristãos resol-
viam internamente os seus problemas, quando surgiam dúvidas
dou­trinais, ou sobre a fé ou proce­dimento mo­ral e comunitário de
um membro da comunidade.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 247

Quando o Cristia­nismo, no Edito de Milão (313), ganhou a


liber­dade de culto e, a partir do Impe­rador Te­o­dósio (392), tor-
nou-se religião oficial do Império Ro­mano, as coi­sas mu­daram.
Os impe­ra­dores e reis acre­ditavam que a u­ni­dade im­pe­rial só se-
ria con­se­gui­da com a unidade reli­gio­sa; por is­so, com­bateram e
perse­guiram todos aque­les que po­diam ferir a união imperial. Nes-
se contexto, mexer ou mudar a or­dem religiosa era o mesmo que
fazê-lo com a or­dem universal que­­­rida e dese­jada por Deus.
Assim, todos os hereges eram con­side­rados co­mo aqueles
que minavam e com­pro­metiam a or­dem religiosa e, conse­quente­
mente, a ordem social; isto fazia com que eles fossem rejei­tados e,
no espírito da intolerância me­dieval, deviam ser banidos do conví-
vio social e religioso, ou seja, condenados e mortos.
Na Idade Antiga, muitos papas, bispos e teólogos cristãos
con­denaram as atitudes violentas do Estado e de setores da Igreja,
que já aceitavam a prática da violência para condenar os hereges.
Na Idade Média, porém, poucos levantaram a voz contra as atitu-
des intolerantes e antievangélicas dos proce­dimentos inquisitórios
ecle­siásticos e reais.
Tentando es­cla­recer mais ain­da essa ques­tão, em que se
funda­mentava essa intolerância me­dieval, o Pe. Gia­como Mar­tina
(1980, p. 128), na obra anteriormente ci­tada, men­ciona os se­guin­
tes as­pectos:
• Pensava-se que o batizado (no Cristianismo) não pudesse
perder a fé a não ser por própria culpa". En­tão, a here­sia
a­pa­­recia co­mo um er­ro con­tra a ver­dade, mas tam­bém
como um cri­me con­­tra a so­cie­dade, uma ten­tati­va de mu-
dar a or­dem ci­vil, fun­da­da sobre a religião.
• Outra cir­cuns­tância deci­siva foi o renova­do influxo do di­
reito ro­mano que, ao contrário da tradição pa­trís­­tica, se
mostrava muito se­vero com os donatistas e os mani­queus,
comparando a sua culpa a uma alta traição digna de mor-
te. Ino­cên­cio III já se inclina para esta tese, o­bser­vando

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248 © História da Igreja Antiga e Medieval

que quem re­nega a Cristo co­mete uma cul­pa mais gra­ve


que o delito de lesa-majes­tade, punido com a morte.
• É preciso não esque­cer que dian­te dos casos de lin­cha­men­
to dos he­reges que se veri­fi­ca­vam na Fran­­­ça e na Ale­manha,
era ne­ces­­­sário con­ter e con­­­tro­lar o arbítrio das massas e
regular juridi­camente o proce­dimento contra os here­ges.
Devemos acrescentar que a prática do lincha­mento arbi-
trário era muito comum nesse período e que, num siste-
ma de clas­ses, os menos favorecidos não tinham direito de
apelação e eram facilmente domi­nados pelos mais fortes.
Além disso, a Inquisição surgiu num período em que a ten-
dência dualista era muito forte. O que é esse dualismo? É a crença
de que existem no mundo duas grandes forças irreconciliáveis, to-
talmente opostas uma à outra. O bem e o mal eram forças expres-
sas com vários antônimos (Deus e diabo, dia e noite, luz e trevas,
espírito e ma­téria, alma e corpo, espiritual e tem­poral, santo e pe­
cador, homem e mulher etc.).
Nesse contexto, o mais importante era salvar a alma para
que ela descan­sasse junto a Deus. Assim, o corpo era considera-
do como uma prisão para a alma, que deveria se libertar de­le e
das coi­sas do mundo, quan­do estas o afastavam do divino e do
eclesial. Ora, se pa­ra li­bertar a al­ma de um he­rege ou pe­cador era
ne­ces­sário tor­turá-lo ou matá-lo, para o bem dessa mes­ma alma,
is­­so deveria ser feito.
Após es­ses escla­recimentos, vejamos como foram o nascimen-
to e o fortalecimento da Inquisição. Ela surgiu no período em que es-
tavam aflorando, na Europa, as heresias medievais, tema visto no nú-
mero passado. Ini­cialmente, a Igreja quis mantê-la sob seu controle.
Entretanto, com o passar do tempo, a Inquisição caiu nas
mãos dos reis e imperadores, que a utilizaram para combater seus
inimigos políticos e eliminá-los. Muitas vezes, as lideranças polí-
ticas agiram contra­riamente aos desejos da Igreja, que, cada vez
mais fraca, não podia fazer frente a esses abusos.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 249

Martina (1980. p. 128), na obra Storia della Chiesa, Cen­tro


Ut Unum Sint, Roma, menciona quatro fases na evolução da In-
quisição:
Inquisição episcopal: a repressão da heresia foi confiada aos bis-
pos, que direta ou indireta­mente, inspecionavam periodica­mente
as dioceses. Tal procedi­mento foi esclarecido pelo papa Lúcio III, no
encontro de Verona, com Frederico Barba-­Roxa, no ano de 1184.
Inquisição legatícia: a defesa da fé era confiada aos legados escolhi-
dos pelo Papa. O sistema tornou-se mais freqüente com Inocêncio
III, no início do século 13. O Papa enviou como legados à França,
muitas vezes, os Cister­cienses, mais com o objetivo de pregar e de
converter do que com o de condenar.
Inquisição monástica: Gre­ gório IX confiou aos Francisca­
nos e
Domini­canos a Inquisição, a partir de 1231.
Inocêncio IV (1243-1254) per­mitiu o uso da tor­­tura, mal­gra­do o pa-
recer con­trário, emitido, quatro séculos antes, pelo papa Nicolau II.

Pierini também trata o tema das distintas "inquisições", afir-


mando que:
A inquisição medieval, em vigor em quase todos os países cristãos
entre o final do século XVI, deve ser distinguida da cruzada contra
os albigenses (1209-1229) e das outras formas de investigação e
luta contra os hereges, como a inquisição dogal veneziana (1249-
1289), a inquisição régia francesa (1251-1314), a inquisição régia
espanhola (1478-1834), a inquisição romana (instituída pelo papa
Paulo III, em 1542, e que se tornou, depois, um dos organismos
da Cúria romana, até se transformar na atual "Congregação para a
doutrina da Fé") (1998, p. 116).

Qual o modo de proceder da inquisição? Vamos conhecê-la?


• a acusação era feita com o nome do acusado não se fa-
zendo público;
• o interrogatório do acusado era feito em torno de suas
ideias heréticas;
• a tortura era aplicada, quando a culpa era evidente, para
que o réu a confessasse.
A sentença poderia ser de três tipos:

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250 © História da Igreja Antiga e Medieval

1) se ele se arrependesse, era "absolvido" e recebia uma


"peni­tência eclesiástica";
2) se a conversão não parecesse sincera, era condenado à
"prisão perpétua";
3) condenação.
Desse modo, havia várias penas:
1) cárcere;
2) peregrinação a um lugar santo;
3) construção de uma Igreja;
4) exercício de uma ou várias obras de caridade;
5) obrigação de carregar um sinal discriminatório;
6) pena de morte confiada e aplicada pelo "braço secular",
ou seja, pelo Estado.
A questão da condenação aplicada pelo "braço secular"
sus­­citava questiona­mentos, como a do teólogo católi­co Jean Ma­
thieu-Rosay, ao afirmar que "a hipocrisia da I­gre­ja foi assom­brosa".
Partindo do prin­cípio de que Ec­cle­sia non sitit san­guinem (a Igre­ja
não é se­denta de sangue), não exe­cutava ela mesma as senten­ças
capitais que seus juízes haviam proferido.
Assim, entre­gava os condenados ao braço se­cular, com os
votos piedosos de que este lhes poupasse a vida. "Oração mera-
mente fictícia, pois, ao mesmo tempo, ameaçava suas sentenças
e que, por este motivo, passassem a ser, eles mesmos, heréticos
passíveis de perseguição" ( MATHIEU-ROSAY, 1990, p. 178).
Para Pierini:
A função dos juízes eclesiásticos era apenas verificar se A função
dos juízes eclesiásticos era apenas verificar se havia hereges cons-
cientes e convictos ou recidivos. Os juízes e as autoridades civis,
bem como as instituições leigas, faziam o resto, segundo as leis
locais em vigor. De fato, foram um rei (Pedro II de Aragão) e um
imperador (Frederico II), o primeiro em 1197 e o segundo em 1220,
que decretaram a pensa de morte na fogueira para os hereges
contumazes. O papa Inocêncio IV foi quem autorizou, em 1252, os
inquisidores eclesiásticos a usarem a tortura, já em vigor nos pro-
cessos leigos, contrapondo-se, assim, à condenação desse método
bárbaro formulada em 866 pelo seu predecessor, o papa Nicolau I.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 251

No curso da inquisição eclesiástica, porém, as torturas eram muito


raras, infinitamente menos comuns do que nos processos presidi-
dos pelos juízes leigos; e caíram em desuso por volta da metade
do século XVI, enquanto nos tribunais liegos se mantiveram até o
início do século passado, apesar das denúncias de Casar Beccaria,
a partir de 1764. Note-se também, que com freqüência era a in-
quisição eclesiástica (que, sozinha, não podia ordenar a morte de
ninguém) que salvava certas pessoas das garras de alguns sobera-
nos (como o imperador Frederico II ou, mais tarde, o rei da França,
Filipe, o Belo); às vezes tratava-se de bons cristãos, mas que, apesar
disso, eram torturados e levados à morte sob o pretexto de heresia,
quando a motivação de fundo era eminentemente política (1998,
p. 116-117).

A Inquisição expandiu-se por todos os países da Euro­pa com


muita rapidez. Foram julgados por ela não só atos contra a fé cris-
tã, mas também os mais variados delitos:
1) roubo;
2) estelionato;
3) magia;
4) alqui­mia;
5) blasfêmia;
6) adultério;
7) bigamia;
8) prostituição;
9) ler livros proibidos;
10) infanticídio etc.
Entre os inquisidores mais co­nhecidos, destacam-se:
1) Ber­nardo Gui.
2) Tomás de Torquemada.
3) Con­rado de Marburgo.
4) Pedro de Vero­na.
Calcula-se que, dos processos levados a termo, só foram
conde­nados à pena de morte 5% dos acusados. Tristes foram,
também, as acusações contra centenas de milhares de mulheres,
acusadas inocentemente de bruxaria, em vários países da Europa.

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252 © História da Igreja Antiga e Medieval

A Inquisição instalou-se tam­bém na Espanha, em 1480, e


em Portugal, em 1540. Calcula-se que nesses dois países hou-
ve mais de 30 mil hereges queimados. Gran­de parte dos perse-
guidos e con­de­nados era de judeus (conhe­cidos como cristãos-
-novos) e mu­çul­­manos, às vezes convertidos forçadamente ao
Cristianismo.
Todavia, segundo os inquisidores, continuavam praticando
suas antigas religiões. A Inquisição foi abolida em Portugal, em
1821, e, na Espanha, em 1834.
Por meio de Portugal, a Inquisição chegou também ao Brasil.
Aqui, "o Santo Ofício nunca instalou um tribunal permanente; mas
sua ação se exerceu através dos visitadores":
• Hei­tor Furta­do de Men­­don­ça, entre 1591 e 1595.
• Mar­cos Tei­xeira, en­tre 1618 e 1619.
Entretanto, eram dele­gados po­deres aos bis­­pos para efe­
tuarem pri­sões, con­fiscar bens e en­viar pa­ra Lis­boa os pri­sio­nei­ros
a se­rem jul­gados.
A Ba­hia foi o palco das inquisi­ções mais inten­sas. De 1591 a
1624, foram pro­ces­sa­dos ali 245 cris­tãos-no­vos acu­sa­dos de judai­
zantes. Em 1646, mais de cem conde­nações foram feitas; no auto-
-de-fé [cerimônia na qual se anunciavam as sentenças da Inquisi-
ção às vítimas] de 1711, 52 brasi­lei­ros foram justiçados. O último
bra­si­­leiro condenado à morte pela Inquisição mor­reu em Lis­boa,
no au­to-de-fé de 1748 (SCHLENSIGER, 1995).
A Inquisição foi extinta pela Igreja em 1908, quando passou a
se chamar Con­gre­gação do San­to Ofício. Ho­je, é denominada Con­
gre­gação para a Doutrina da Fé, cujo obje­tivo é zelar pela integrida-
de da doutrina cristã, sem os apelativos intolerantes da Inquisição.
Entre as con­­de­nações da Inquisição mais co­nhe­cidas, pode-
mos men­­cio­nar:
1) Joana D’Arc (1412-1431).
2) Nicolau Co­pér­­nico (1473-1543).
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 253

3) Giordano Bru­no (1548-1600).


4) Ga­lileu Galilei (1564-1642).
Fruto da es­tru­­tu­­­ra inquisi­torial também foi o Ín­dice dos Li­vros
Proi­­bi­dos, arti­fício uti­­­liza­do pela Igre­­­ja, a partir do século 16, para con­­
de­nar todas as o­bras que não es­ta­vam de a­cor­do com a dou­trina e
práti­ca eclesiais. A primeira edição ocorreu no ano de 1559, após o
Concílio de Trento. A Congre­gação do Índice foi criada por Pio V, em
1571. O último Índice foi editado em 1948 e o Concílio Va­ti­­cano II não
o editou mais. Entre os autores conde­nados pelo Índice, ci­ta­­mos:
1) Francis Ba­con.
2) Victor Hu­go.
3) Emmanuel Kant.
4) Jo­hn Locke.
5) Pas­­cal.
6) Jean Jacques Rous­seau.
7) Vol­taire.
8) Be­ne­dito Spino­za.
9) René Des­car­­tes.
10) Ernest Re­nan etc.
A Inquisição precisa ser entendida a partir do contexto em
que ela surgiu e se expandiu. A Igreja reconheceu os erros e exces-
sos da Inquisição e deseja que não haja mais atentados contra a
vida humana por causa de assuntos religiosos.
O aspecto mais nefasto da prática inquisitorial, justificada no início
pela periculosidade não só religiosa, mas também social de certos
hereges – como os cátaros ou albigenses-, foi o de ter implantado
de maneira cada vez mais decidida e indiscriminada a luta contra a
dissidência, que se tornou perseguição contra qualquer ideologia
diferente e intolerância em relação ao legítimo pluralismo ideológi-
co (PIERINI, 1998, p. 117).

Não po­demos concor­dar com os atos da Inquisição, pois foram um


contra-teste­munho dian­te das verda­des evangélicas. To­da­via, precisa­
mos com­preen­dê-la dentro do seu con­texto. A Igre­ja aprendeu muito,
pois das atitu­des ambíguas e erradas, podemos tirar lições para a vida.

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254 © História da Igreja Antiga e Medieval

9. TRANSIÇÃO ENTRE IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA

Mundo moderno e o Humanismo


Esta fase foi uma das mais difíceis para a Igreja, pois o mundo
medieval, marcado por uma fé teocêntrica, que criou o chamado
"Sistema de Cristandade", entrou em crise. Foi o início da chamada
Idade Mo­derna ou Nova.
Cronologi­camen­te, esta fase se situa no século 14 (crise da
Igreja e declínio do poder temporal do Papado) e se estende até o
século 18 (Revo­lução Francesa e a crise das monarquias).

O Mundo da Baixa Idade Média (1250-1500 apr.)


O período que vai do fim do século 13 até inícios do século
16 se apresenta com muitas novidades no contexto da sociedade
europeia medieval:
É um mundo em crescimento e expansão o que se apresenta na
metade do século XIII, em quase todos os continentes da terra,
mas de modo especial na Europa: crescimento econômico e de-
mográfico; expansão geográfica. A população mundial – que dos
cerca de 190 milhões por volta do ano 500 d.C., havia crescido para
265 milhões no ano 1000, para 320 milhões no ano 1100 e 360
milhões no ano 1200- consegue manter-se estável por mais de um
século, descendo um pouco (para 350 milhões) em 1400, para vol-
tar a subir em seguida e chegar a 545 milhões em 1500 e a 610
milhões em 1700. A queda demográfica verificada na metade do
século XIV é particularmente evidente na Europa, após a epidemia
da "peste negra" de 1247-1250: a população européia, que pas-
sara dos 36 milhões no ano 1000 para 45 milhões em 1100, para
60 milhões em 1200, chegando aos 80 milhões em 1300, cai de
novo para 60 milhões, para depois voltar aos 80 milhões em 1500,
a 100 milhões em 1600 e a 120 milhões em 1700. Até a duração
média da vida cresceu, na Europa: dos 25 anos, do século IV d.C.,
passou para os 35 anos entre 1200 e 1300. Embora a "baixa Idade
Média" possa ser considerada uma época de crise, em relação aos
dois séculos anteriores, e, as conjunturas desfavoráveis se renovem
com freqüência, por causa das guerras quase contínuas, das epi-
demias recorrentes, da ameaça das carestias, no quadro global da
evolução histórica trata-se mais de uma crise de crescimento e de
adaptação: de fato, é nesses séculos que se delineia cada vez mais
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 255

claramente a fisionomia do mundo moderno, em razão, sobretudo,


do segundo elemento decisivo, a expansão geográfica.
As grandes descobertas, nesse campo, estimuladas por fatores eco-
nômicos e demográficos, acham-se condicionadas pelas últimas
grandes movimentações de povos da idade medieval: o islamismo,
em retirada da península ibérica, vai, porém, avançando na Ásia
Menor e nos Balcãs, pelo interior da África e da Sibéria e na direção
da Índia e da Indonésia, fechando assim a passagem dos europeus
para o Sul; os mongóis, por outro lado, islamizados ou em via de is-
lamização, fecham a passagem para o Leste. Aos europeus só resta
o caminho a Oeste, chegando aos mercados da Ásia circunavegan-
do a África ou inclusive atravessando todo o Oceano, para lá do
estreito de Gibraltar, a fim de chegar ao Japão e à China.
No que se refere à África, já em 1269 começam as infiltrações por-
tuguesas no Marrocos, que levarão muito mais tarde, em 1415, à
conquista de Ceuta, primeira possessão européia do continente.
Mas em 1291 são dois irmãos genoveses, Hugolino e Vadino Vi-
valdi, que ultrapassam por primeiro o estreito de Gibraltar para
chegar às Índias circunavegando a África; não retornam, porém
[...] em 1497 Bartolomeu Dias alcança a ponta extrema da África,
ou seja, o atual Cabo da Boa Esperança. Vasco da Gama, por sua
vez, supera-o, adentrando-se pelo oceano Índico e, a 18 de maio de
1498, aporta em Calicut, na Índia. Enquanto isso, entram na disputa
também os espanhóis, promotores da viagem do genovês Cristó-
vão Colombo: tendo partido de Palos no dia 3 de agosto de 1492,
ele chega a o novo mundo, do outro lado do Atlântico, no dia 12 de
outubro. O bloqueio fora rompido, o mundo está aberto (PIERINI,
1998, p. 146-148).

E foi neste contexto de tantas mudanças em todos os seg-


mentos da sociedade ocidental, principalmente, que o Cristianis-
mo viveu um grande processo de mudanças, pois a passagem de
uma sociedade medieval agrária e feudal para uma sociedade mo-
derna urbana não foi tão simples e afetou toda a sociedade. Como
o Cristianismo se solidificou e construiu sua identidade a partir da
Cristandade medieval, é claro que teria muitas dificuldades para
aceitar e assumir o novo modelo de sociedade. As tentativas de
diálogo com este novo modelo foram difíceis e podemos dizer que
continuam ainda hoje, com grande destaque para o processo ini-
ciado com o Concílio Vaticano II, a partir de 1962.

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256 © História da Igreja Antiga e Medieval

A Igreja no fim da Idade Média


Para enten­­­der o que acon­teceu com a Igreja, na Idade Mo-
derna, é bom recordar al­guns aspectos da vida eclesial, na transi-
ção en­tre o fim da Idade Média e o início da Mo­­derna.
O período do "apogeu do papado" (sécu­los 12-13), marcado
pela hierocracia e pelo teocen­trismo, tão evidentes nas Cruzadas
e na Inquisição, foi de­clinando no fim do século 13.

Hierocracia: o poder eclesial se so­bre­punha ao civil.


Teocen­trismo: Deus era o centro de toda a vida social.

Bonifácio VIII ainda tentou, sem sucesso, reconquistar poder


e influência, cada vez mais amea­çados. Nesse período, destaca-
ram-se dois as­pec­tos da vida eclesial que me­recem ser considera-
dos, embora sintetica­mente: a espi­ritualidade e a Ciên­cia Escolás­
tica.

Espiritualidade
As heresias medievais (cata­rismo, valdenses, fraticelli etc.)
questionaram as estruturas eclesiais e sociais e os sacra­mentos
cristãos. Isso fez com que a Igreja refletisse sobre esse assunto e,
aos poucos, sistematizasse a "teolo­gia dos sacramentos", até defi-
ni-los em sete, no Concílio de Trento, no século 16.
As de­voções for­­tale­ceram-se e se ex­­pan­­diram em tor­no do
"Cristo ho­mem, crucifi­cado e misericor­dioso" e também nas de­vo­­
ções à Virgem Maria e no culto aos san­tos (apesar do comércio de
relíquias e do cres­­ci­men­to das supers­tições). Surgiram iniciativas
de be­neficência e caridade.
Ao mesmo tempo em que se desenvolvia a Ciência Esco-
lástica, foi-se fortalecendo a Mística, a qual tinha por objetivo le-
var o cristão a se aprofundar nas verdades revela­das por meio da
"contem­plação interior". Assim, se a Escolástica estudava a fé por
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 257

meio da dialética, a Mística estudava a fé por meio da contempla-


ção. Nos séculos 12-14 surgiram grandes místicos, como:
Bernardo de Claraval.
11) Hugo de São Vítor.
12) Mestre Eckart.
13) João Tauler.
14) Henrique Suso.
15) João Ruisbroeck.
16) Santa Hildegarda de Bingen.
17) Santa Catarina de Sena.
18) Santa Gertrudes a Grande.
19) Santa Ângela de Foligno etc.
Ciência Escolástica (séculos 11-14)
Com o surgimento da cultura burguesa, aos poucos foram
fundadas as universi­dades em várias cidades do Ocidente cristão,
quase sempre, nas mãos do clero e das ordens religiosas. Nelas,
havia um grande espaço para os estudos teológicos e filosóficos,
o que não tinha ocorrido durante a Idade Média. Assim, a partir
do século 11, surgiu a "Ciência Escolástica", grande tendência do
pensamento desse período, considerada pelos huma­nistas como
ciência das vacuida­des, sofisterias e questões abstra­tas, mas que
permanece viva até hoje, pois criou um sistema de pensamento
não superado. As ca­rac­terísticas principais são:
• relação especial entre a Filosofia e a Teolo­gia;
• dependência da filosofia aris­to­télica e métodos lógico-
-dedutivo e dialético.
A Escolástica divide-se em três períodos:
1) Escolástica primitiva:
• Santo Anselmo (creio para entender);
• Pedro Abelardo etc.
2) Apogeu (época das "sumas" ou grandes sínteses):

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258 © História da Igreja Antiga e Medieval


Alexandre Hales;
• Alberto Mag­no;
• Boaventura;
• Tomás de Aquino (o príncipe dos escolásticos, com as
Summa Theologica, Summa contra gentiles etc.).
3) Escolástica tardia (declínio):
• Duns Escoto (opôs-se ao tomis­mo e acentuou a ativi-
dade humana ante a graça divina).
• Guilherme de Ockam (separou a fé da razão: pro­vo­
cou a queda da influência da Teologia, foi um dos pre-
cursores da reforma protestante).
Além disso, é preciso consi­derar as mudanças econômicas,
políticas, sociais e religiosas que aconteciam diante da crise e de­
clínio do sistema feudal medieval, marcado pelo fechamento e
restri­ção da vida social em torno das es­truturas agrária e rural; o
surgi­men­to da cultura burguesa, centra­da nas cidades que cres-
ciam em torno de um incipiente pro­ces­so de desenvolvimento
das manufaturas e indústria; e a ascen­são de uma nova classe, a
burgue­sia, que já não aceitava o poder centralizador dos reis e no-
bres.
Nesse con­texto de supera­ção das estrutu­ras me­dievais, de
crise do feu­da­­lis­mo e surgi­mento da cultu­ra bur­gue­sa e urbana, é
que se iniciou uma no­va fase da his­tória chama­da de Ida­de Moder-
na ou Nova. Nesse pe­ríodo, a vida da Igreja foi marcada por duas
situações distintas e bem definidas:
1) Por um lado, a Igreja hierár­quica (papas, bispos e alto
clero) viveu uma crise sem precedentes, marcada pela
ten­tativa de manu­tenção das estru­turas do poder, con-
seguido na Idade Média, e pela corrupção e imoralida-
des de muitos de seus membros.
2) Por outro, houve vários se­tores da base eclesial que,
diante da decadência e da corrupção, propuseram uma
reno­vação e promoveram várias ten­tativas de reformas
na estrutura da Igreja.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 259

A partir do século 14, com o desenvolvimento do método


em­pírico e racionalista, protagoni­zado pelo Humanismo e pelas
novas tendências modernas, a Ciência Es­colástica não morreu,
mas perma­neceu relegada e circunscrita ao espaço eclesiástico.
Nesse novo "mundo moderno" que se estruturava, as mu-
danças ocor­reram com base no Humanismo, provocando gran­des
transfor­mações sociais, cultu­rais, políticas, econômicas e religiosas.

Movimento humanista
A situação da Igreja na Idade Moderna foi muito difícil, pois
o mundo medieval, marcado por uma fé teocêntrica (Deus e Igreja
no centro de tudo), e que originou o Sistema de Cristandade, en-
trou em crise. A Idade Mo­derna ou Nova, cronologi­camen­te, situa-
-se do começo do século 14, e estendeu-se até o fim do século 18
(Revo­lução Francesa e a crise das monarquias).
A Europa está passando por grandes mudanças. Um aspecto
importante a se ressaltar foi a expansão das universidades:
As crises de crescimento típicas do período 1250-1500, embora
agravadas pelos mais diversos fatores (climáticos, higiênicos, re-
ligiosos, ambientais, econômicos, demográficos, sociais, políticos),
chegam em muitos casos a resultados concretos de grande impor-
tância, com a constituição de organizações nacionais, estatais, que
mais ou menos respondem às exigências regionais. E todo esse
conjunto de fenômenos vai se desenvolvendo às vésperas das gran-
des descobertas geográficas, dos grandes encontros e desencon-
tros intercontinentais, que levarão ao mundo "aldeia global" e aos
seus respectivos problemas. Mas o período histórico de 1250-1500
traz consigo, no campo especificamente cultural, algumas conquis-
tas igualmente decisivas, importantes e significativas: difunde-se a
alfabetização nos continentes que estão na vanguarda, ou seja, na
Europa e na Ásia; o crescimento quantitativo, embora nem sempre
qualitativo, das instituições educacionais superiores (universitá-
rias); o impulso a uma consciência histórica e filosófica, median-
te os movimentos humanista e renascentista, partindo da Itália e
alcançando a Europa e o mundo inteiro; a descoberta e utilização
cada vez mais ampla, a partir da metade do século XV, de um novo
instrumento de comunicação social: a imprensa. São aquisições de
alcance potencialmente universal, às quais seria preciso acrescen-
tar as novas técnicas de navegação e, infelizmente, também as no-

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260 © História da Igreja Antiga e Medieval

vas técnicas bélicas, como a artilharia e a pólvora de disparo [...].


Enquanto o resto do mundo aponta responde às crises apontando
para a herança antiga "conservada", o mundo europeu reage ape-
lando também para o antigo, mas "revivido", "renovado", com sen-
tido cada vez mais histórico-crítico: um historicismo aplicado aos
textos que se desenvolverá gradualmente junto com o empirismo
aplicado aos fenômenos naturais. Humanismo, naturalismo: são as
duas idéias-guia que mil anos de Idade Média transmitirão às ida-
des moderna e contemporânea (PIERINI, 1998, p. 153-154).

E foi neste contexto que o Humanismo surgiu, questionando


as bases da Idade Média, tentando recuperar as forças dos clássi-
cos anteriores a ela e lançando as bases para o pensamento racio-
nalista moderno, com grandes conflitos com as estruturas eclesi-
ásticas, que não estavam preparadas para as novas propostas que
emergem nesta época.

Informação–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O começo do século 14 é marcado pela crise da Igreja e o declínio do poder
temporal do Papado, com o Exílio de Avinhão.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Desse modo, o Humanismo é definido co­mo:
[...] doutrina ou ati­tu­de que se ori­en­ta expressa­mente por uma
perspectiva antropocêntrica. Afirma ser o homem o criador dos va-
lores morais, que se definem a partir das exigências concretas da
vida. Designa também o mo­­vi­mento filosófico e artístico originado
na Itália, no século XIV, que constitui o ponto de partida da cultura
moderna. Em ambas as vertentes, reconhece-se o seguinte: a to­ta­
lidade do homem, a sua historicidade, a sua naturalidade e o valor
humano das artes clássicas (SCHLESINGER, H.; PORTO H. Dicionário
enciclopédico das religiões. 1995. v. 1, verbete Humanismo).

O movimento huma­nista provocou a superação da concep-


ção teocên­trica medieval, a qual tem Deus como o centro do uni-
verso pela concepção an­tropocên­trica que faz do homem o ponto
de convergência.
No entanto, o humanista não é um ateu ou indiferente em
matéria religiosa: "acredita no homem, sem, entretanto, endossar
espiritualmente o paganismo, sem deixar de amar a Deus; procura
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 261

tam­­bém amar a vida e a beleza, traços típicos da cultura greco-


-latina." (AMARAL, 1990).
O Humanismo nasceu na Itália, com base na obra de Petrar-
ca (1304-1374), e teve grandes representantes em vários países,
além da Itália:
1) Lourenço, o Magnífico, de Florença.
2) Eras­mo de Roterdã, na Holanda.
3) Lefèvre d'Éta­ples, Guil­laume Budé, Ra­bellais e Mon­
taigne, na França.
4) Thomas Morus, na Inglaterra.
5) Luís de Camões, em Portugal.
6) Miguel de Cervantes, na Espanha e muitos outros.
No fim do século 16, o mo­vimento humanista entrou nu­ma
fase de declínio.
A partir do século 18, assumiu uma postura mais científica e
humani­tarista influenciada pelas tendências iluministas, baseadas
no em­pirismo inglês e no racio­nalismo. Posteriormente, provocou
o surgi­men­to da Re­volução Fran­cesa e a consequente separação
entre a Igreja e o Estado. Co­mo resultados do racionalismo empí-
rico, surgiram as tendências filosóficas que, mediante críticas ao
clero e à Igreja, chegaram a afirmar que Deus não existe, ou seja,
preconizaram a chamada teologia da "morte de Deus".
O movimento huma­nista aos poucos provocou grandes mudan-
ças. Antes de tudo, temos de afirmar que foi fortalecendo a cultura bur­
gue­sa e urbana. Suas tendências democráticas fortaleceram-se com
base no ques­tio­na­men­to das estruturas eclesiais do "Sistema de Cris-
tandade", que foi se declinando.
Esta mudança fez com que as cidades cres­cessem e que seus
habitantes fossem mais politi­zados e passassem a ques­tionar as es-
truturas de poder. Assim, surgiram os primeiros ques­tionamentos
aos imperadores, pois os grandes impérios deviam ceder espaço
aos interesses nacionais e regionais.

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262 © História da Igreja Antiga e Medieval

O desenvolvimento de novas técnicas abriu espaço para as


navegações. De modo especial, Portugal e Espanha fizeram com
que o orbe terrestre fosse compreendido mediante uma nova vi-
são geográfica.
A "cultura burguesa" foi, paula­tinamente, disso­ciando-se da
Igreja e com isto teve-se o surgimento da "cul­tura laicista", ou seja,
a formação de um novo modo de organizar a vida social que teria
como critério, primeiramente, não mais a religião e a Igreja, mas
sim os interesses do homem, temporais e seculares.
No campo econômico, com as novas técnicas e, posterior-
mente, novas descobertas, houve um grande desenvolvimento
das estruturas comerciais e, aos poucos, uma incipiente descen­
tralização de seu poder.
Podemos afirmar, portanto, que o Humanismo foi um movi-
mento importante para a história da humanidade, pois recuperou
e reforçou o espaço e a importância do "homem" na vida do mun-
do e, ao mesmo tempo, provocou mudanças que influenciaram
muito a vida da Igreja.
Em termos religiosos, inicialmente, este movimento teve
uma visão antieclesial e anticlerical; e posteriormente, no século
18, assumiu uma postura antirreligiosa, influenciada pelas tendên-
cias racio­nalistas e iluministas.

10. CRISE DA CRISTANDADE E MOVIMENTOS


PRÉ-LUTERANOS

Crises da Igreja e da hierarquia na Idade Moderna


O mundo medieval, marcado pelo teocentrismo e pelo Sis-
tema de Cristandade, entrara em crise, advindo a Idade Moderna
como um dos períodos mais difíceis para a história da Igreja.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 263

Essa época iniciou-se no século 14, com a crise da Igreja e a


diminuição do poder temporal do Papa­do (Exílio de Avi­nhão, Cis-
ma do Ocidente e Papado do Renas­cimento) e estendeu-se até o
término do século 18 com a Revolução Francesa e a crise das mo-
narquias.
O movimento humanista provocou grandes mudanças na so-
ciedade e na Igreja. As culturas burguesa e urbana fortaleceram-se,
com tendências democráticas, mediante grande questionamento
das estruturas eclesiais. O sistema de Cristandade declinou com a
queda das autoridades eclesial e papal.
A crise teve raízes também nas mudanças econômicas, po-
líticas e sociais. O sistema feudal, que mantivera a vida social fe-
chada e restrita à estrutura agrária, esvaziou-se diante da cultura
burguesa, centrada nas cidades. Nestas, a manufatura e a indústria
cresceram, provocando na nova classe um surto de independência
em relação ao poder centralizador dos reis, nobres e papas.

Exílio de Avinhão (1308-1378)


O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), numa tentativa de forta-
lecer o poder eclesial, entrou em atrito com o rei francês, Filipe, o
Belo. Na época, a França superara a Alemanha, tornando-se a de-
tentora do poder político europeu. Com a morte de Bonifácio, no
exílio, seguiu-se uma grande crise eclesial, pois a nobreza romana
queria se ver livre da interferência papal na Itália.
O papa Bento XI (1303-1304) não conseguiu superar essa
crise. Seu sucessor, Clemente V (1305-1314), tinha sido arcebispo
de Bordeaux e estivera ausente do conclave que o elegera, com
medo dos romanos. Por causa disso, fixou residência em Avinhão,
em 1309, onde os papas permaneceram até 1377. Seu pontificado
foi muito submisso ao rei francês Filipe, o Belo, que usou a Igreja
para combater seus inimigos. Assim, difamou a memória do Papa
Bonifácio VIII e, num processo vergonhoso, obrigou-o a suprimir a
Ordem dos Cavaleiros Templários.

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264 © História da Igreja Antiga e Medieval

Desse modo, as consequências do exílio de Avinhão foram


muito negativas:
1) decadência dentro da Igreja e o afrancesamento da Santa
Sé;
2) enfraquecimento externo dos papas, pois passaram a
ser considerados como chefes políticos da França e não
como pastores da Cristandade;
3) abuso das sanções eclesiásticas que geraram aversão e
medo da Igreja diante dos sistemas de fiscalização da cú-
ria de Avinhão;
4) aumento do nepotismo, ou seja, crescimento da autori-
dade que os parentes do papa exerciam na administra-
ção eclesiástica.
Sobre este tempo do exílio, que ficou também conhecido como o
"cativeiro da Babilônia", Del Roio diz:
Seria injusto concluir que, durante esses anos, os papas se cons-
tituíram em simples peças da política francesa, mas é indubitável
que o papado perdeu em prestígio e peso político. Seus anátemas e
excomunhões podiam ser fatais para um estudioso ou para um fra-
de que se entregasse a alguma heresia, mas certamente seriam re-
cebidos com desprezo pelos poderosos. Os alicerces de seu poder,
os senhores feudais e as ordens militares e monásticas debilitavam-
-se, ao passo que, por outro lado, eles se recusavam a aceitar os
novos movimentos, dos quais poderiam retirar novas energias. Não
se dispunham a transformações tão profundas. E tais movimentos
existiam, concentrados no impulso de esperança despertado entre
o povo pelo joaquimismo, nas novas ordens dedicadas à pobreza,
nos intelectuais saídos das universidades e empenhados na cons-
trução de uma Igreja democratizada e apta para enfrentar os tem-
pos modernos que se anunciavam. A tudo isso os papas fechavam
ouvidos e olhos (1997, p. 103-104).

É importante recordar que neste período do Exílio de Avi-


nhão ocorreu a grande ´peste bubônica´, a qual ficou conhecida
também como a peste negra, que matou milhões de pessoas na
Europa, um terço da população, segundo alguns. Isso levou muitas
pessoas a se penitenciarem e a buscar a reconciliação com Deus
e ocorreu inclusive, um ano jubilar cristão em 1350. Mas os pro-
blemas eclesiais não foram solucionadas; pior ainda, cresceram
muito.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 265

Cisma do Ocidente (1378-1417)


O Cisma do Ocidente foi o período em que, por inúmeros
problemas, a Igreja teve, simultaneamente, dois ou três papas.
Diante dos des­mandos e da indignidade de muitos papas, foi cres-
cendo nos meios eclesiásticos a teoria con­ciliarista. Vale ressaltar
que este Cisma não nasceu de uma heresia ou de algum erro teo-
lógico, mas sim da dúvida que existiu a respeito de quem seria o
verdadeiro papa.

Conciliarismo: doutrina moderna surgida no século 14 que afirma-


va ser o concílio ecumênico superior ao papa, inclusive, com poder
para depor este.

Papas simultâneos
O papa Gregório XI foi o último papa de Avinhão e morreu logo
depois de chegar a Roma. Mas a influência dos reis franceses era mui-
to grande em função do grande número de cardeais franceses. Neste
contexto, foi eleito o papa Urbano VI (1378-1389). Sua eleição foi du-
vidosa, segundo alguns, pois houve muita pressão no conclave para
que se elegesse um papa italiano e não um francês. O papa era um
homem piedoso e reformador, mas orgulhoso, áspero e imprudente,
e ameaçou criar mais cardeais italianos para fazer frente aos france-
ses. Isso tudo fez com que ele se voltasse contra muitos cardeais que
se afastaram dele e elegesse outro papa, mais próximo dos interes-
ses franceses: Clemente VII (1378-1394), que se instalou em Avinhão.
Cada papa teve apoio de várias nações. O Cisma durou 37 anos.
Tentativas de solução
Houve várias tentativas de se solucionar o Cisma, todas
em vão. O Concílio de Pisa, convocado em 1409 para resolver a
questão, não conseguiu depor os dois papas e elegeu um terceiro,
Alexandre V (1409-1410), conciliador que poderia ter resolvido a
questão, mas morreu logo em seguida. Alexandre V foi sucedido
por João XXIII, totalmente indigno e mundano.

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266 © História da Igreja Antiga e Medieval

Um só papa novamente
Somente no ano de 1414 foi solucionada a questão, no Concílio de
Constança. Com o apoio do rei Sigis­mundo da Alemanha, os três papas
foram depostos e eleito o papa Martinho V (1417-1431), que reconduziu
a Igreja a tão esperada paz e tranquilidade. O Concílio criou vários decre-
tos de reforma e condenou as heresias de João Wiclif e João Huss.

Heresias de João Wiclif e João Huss


As heresias de João Wiclif, sacerdote inglês, e João Huss, sa-
cerdote tcheco, caracterizavam-se pelas tendências antieclesiais e
modernas e estavam imbuídas de uma grande rejeição ao poder
temporal e eclesial dos papas, principalmente por causa de seus
desmandos e escândalos. Além disso, são influenciados pelas ten-
dências nacionalistas que já não aceitavam o poder romano em
vários países da Europa. Ambos tinham as seguintes ideias:
• A Sagrada Escritura como única fonte de Revelação.
• A rejeição da Tradição enquanto fonte de Revelação.
• A não aceitação da hierarquia eclesiástica.
• Oposição manifesta à autoridade papal e exagero do as-
pecto nacionalista da Igreja.
Essas ideias fundamentaram as teses articuladas por Marti-
nho Lutero, no início do século 16. As consequências destas duas
heresias foram desastrosas, pois foram as bases da grande divisão
da Cristandade com a reforma protestante e, também, ajudaram no
aumento do desprestígio e declínio da autoridade papal e eclesial.
Sintetizando o pensamento de João Huss, Pierini relata:
O pensamento de João Huss é extremamente significativo, como
reflexo das crises do seu tempo: da crise da sua terá, da sua Igreja
da sua vida pessoal. Nele juntam-se, de maneira emblemática para
a baixa Idade Média, três contradições fundamentais: a contradição
entre a identidade nacional boêmia e a alemã; a contradição entre
a igualdade fundamental de todos os crentes e todos os tipos de
desníveis, tanto no campo eclesiástico (anti-hierarquismo) quanto
no civil e no político (antifeudalismo); mas, sobretudo, a contradi-
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 267

ção entre a verdade de Deus, que para Huss se manifesta através da


predestinação, e a pseudoverdade humana, que, para ele, se ma-
nifesta nas aparências jurídicas e canônicas. A conseqüência dessa
impostação ideológica é que a autêntica "verdade" (palavra-chave
de todo o pensamento de Huss) existe apenas lá onde a aparência
humana está de acordo com a predestinação divina. Sendo assim,
parece difícil harmonizar certas idéias de Huss com a doutrina ca-
tólica tradicional, que já estava clara em seu tempo, a respeito das
relações entre graça, predestinação, liberdade humana e a teologia
sobre a Igreja. Isso fica evidente nas trinta proposições suas que
mereceram condenação e que Ele próprio pode rever e comentar (
1998, p. 173-174).

Papado do Renascimento (1447-1521)


Após a superação do Cisma do Ocidente, com os papas Mar-
tinho V e Eugênio IV, no início da metade do século 15, a Igreja
viveu um período no qual os Papas conseguiram restabelecer a
unidade eclesial e a influência do poder pontifício junto aos pode-
res ocidentais e junto à nobreza romana.
Com o fortalecimento do poder eclesial, veio o período cha-
mado "Papado do Renascimento", que foi bastante influenciado
pelas tendências humanistas, caracterizado pelo estilo de vida
principesco e mundano das lideranças eclesiais e nobres, pelo for-
talecimento da cultura, da arte, da literatura e pelo ceticismo reli-
gioso. Os papas, herdeiros da grande crise eclesial anterior, tinham
de resolver muitos problemas, como:
1) reformar a Igreja;
2) eliminar as falsas teorias teológicas e as manifestações
contra a Igreja e seu poder;
3) melhorar a relação com as novas correntes modernas;
4) e tentar eliminar a ameaça dos turcos, adeptos da reli-
gião islâmica.
Além de tudo, o papado nesse período vivia uma profunda
crise causada por:
1) nepotismo;
2) corrup­ção moral;

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268 © História da Igreja Antiga e Medieval

3) mundanização;
4) influência do pensamento moderno.
Esta foi uma fase lamentável da história da Igreja. Foram
muitos os eventos e as situações que causaram transtornos à paz
e tranquilidade eclesiais.

11. MOVIMENTOS DE REFORMA ECLESIAL SÉCULOS


14–15
Nos séculos 14 e 15 aconte­ce­ram fatos lamentáveis na vida
da Igreja. Porém, contemporaneamente a esses eventos, surgiram
movimentos que visaram pro­­mover a reforma eclesial. Uns perma-
neceram em co­mu­nhão eclesial e outros se separaram dela e, até
mesmo, a combateram.
Falando sobre a crise eclesial e sua busca de renovação, Pie-
rini fala das derrotas cristãs dos últimos tempos (relação decaden-
te com o império, cisma do Oriente e divisão entre Cristianismo
ocidental e oriental e perda das cruzadas):
Três fracassos, três ocasiões perdidas, que foram interpretadas
pelos contemporâneos como três "julgamentos de Deus". O re-
sultado foi a crescente perda de interesse pelos grandes ideais do
universalismo cristão e da hegemonia eclesiástica. Amadureceram
outros ideais, como os quais o cristianismo e a Igreja são chama-
dos a confrontar-se: o nacionalismo de príncipes e soberanos, que
não mais toleravam o alto controle de imperadores ou papas; os
arroubos do capitalismo incipiente, interessado unicamente em
acumular riquezas, mesmo que às custas de igrejas e mosteiros;
o individualismo cultural e religioso, que questiona livremente as
fontes da revelação, as das antigas culturas gregas e romana e as da
natureza (1998, p. 155).

É neste contexto que tivemos o fortalecimento dos vários


movimentos reformísticos que já estavam surgindo há séculos.
Agora, vamos conhecer um pouco mais estes movimentos.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 269

Movimento dos pregadores


Nesse período surgiram muitas pessoas santas, fervorosas,
zelosas e com um poder de comunicação extraordinário, as quais
passavam pelas cidades e vilas combatendo e criticando todos os
males que afligiam a Igreja.
Além disso, havia:
1) incoerências e arbitrariedades da hierarquia eclesial;
2) mundani­zação do clero;
3) simonia;
4) concu­binato eclesial;
5) nepotis­mo;
6) superstição;
7) ignorância religiosa.

Simonia: tráfico e comércio de coisas sagradas e relíquias.

Desse modo, a pregação popular desenvolveu-se muito dian-


te da presença de multidões prontas para vibrar. Destaque para os
franciscanos:
1) Bernar­dino de Sena.
2) João de Capistrano .
3) Olivier Maillard.
4) O domi­nicano Vicente Ferrer, chamado de "o pregador
do fim do mundo".
Em pleno pontificado de Alexandre VI, da família dos Borja,
um dos papas mais indignos, Jerônimo Savonarola (1498), abalou
a opulenta Florença.
Inicialmente, por meio de sermões à moda da época:
Vede esses prelados dos nossos dias: só pensam na terra e nas coi-
sas terrestres; a preocupação pelas almas não lhes fala mais ao co-
ração. Nos primeiros tempos da Igreja, os cálices eram de madeira
e os prelados de ouro; hoje, a Igreja tem cálices de ouro e prelados
de madeira [...].

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270 © História da Igreja Antiga e Medieval

Depois, o Savonarola impõs à capital dos Médici uma verda-


deira ditadura com base na austeridade. Ao assumir uma atitude
de rebeldia em relação a Alexandre VI, que lhe pedia contas de
suas pro­fecias acabou sendo excomungado e queimado vivo. Ou-
tros, independentemente de formas e longe das visões apocalípti-
cas, também sonhavam com a reforma.
Antes de mais nada, havia os teólogos, tendo à sua frente os
mestres da Universidade de Paris e o maior de todos, João Gérson
(+1429). Teórico do poder conciliar, Gérson também foi o teórico da
monarquia, desse cul­to ao rei da França que Joana D'Arc, sua con-
temporânea, situava na mesma linha que a devoção ao rei do céu.
Esse teólogo, segundo Pierrard (1982), mais próximo de São
Boa­ventura do que de Santo Tomás, também era um místico ter-
no e sutil, foi ele o verdadeiro criador da devoção a São José, um
pregador de linguagem familiar, um autor de opúsculos piedosos e
populares e também um educador, pois acreditava que a reforma
da Igreja deveria começar pelos jovens.
Surgiram outros grandes pregadores ainda, como:
1) João Geiler (1445-1510): o maior orador sacro alemão.
Combateu ferozmente os vícios do clero e teve seus es-
critos colocados no Índice dos Livros Proibidos.
2) Geraldo, o grande (1340-1384): holandês, místico, fun-
dou os "Irmãos de Vida comum" e atacou os abusos do
clero, sendo, por isso, proibido de pregar.
3) Alano Rupe (1428-1475): domi­nicano francês e pro­
pagador do rosário.
4) Bernardino de Sena (1380-1444): dina­mizador da Obser-
vância franciscana, considerado o maior pregador italia-
no da primeira metade do século 15.
5) João Capistrano (1386-1456): franciscano que trabalhou
em íntima comunhão com os papas desse período.

Reforma das congregações de observância


Nesse período, apesar da crise eclesial e de muitas Ordens
e Congregações tradicionais, surgiu um intenso movimento de re-
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 271

forma no seio destas mesmas famílias religiosas. Seus membros


foram objetos de burla e críticas por parte dos humanistas.
Assim, dos beneditinos, do­mi­ni­canos, car­melitas, eremitas de
Santo Agos­tinho e francis­canos não só saíram pregadores pró-reforma
ecle­sial, mas que a preconizaram de fato dentro das próprias congre-
gações com forte acento no retorno à pobreza, à estabilidade e à vida
comum.
Além de todo esse movimento interno de renovação, surgi-
ram também novas congregações, marcadas pela tendência místi-
ca, pela pregação e pela caridade aos carentes e mais pobres:
1) os Irmãos e Irmãs de Vida Comum, de Geraldo o Grande,
fundados em 1379;
2) os Olivetanos, fundados por São Bernardo Tolomei, em
1313;
3) os Jesuatos, fundados pelo beato João Colombini, em
1360;
4) os Mínimos, por São Francisco de Paulo, em 1452;
5) os Jerônimos, unificados sob a regra de Santo Agostinho,
pelo Papa Bento XIII, em 1414;
6) a Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida e San-
ta Cata­rina da Suécia;
7) a Ordem da Anunciata de Santa Joana de Valois.

Oratórios do divino amor


No final do século 15, surgiram na Itália associações que se
propunham a atender as obras de assistência caritativa e recomen-
davam a reforma da Igreja. Eram compostas de leigos e sacerdotes
e se baseavam na Regra Terceira da Ordem Franciscana.
Assim, os Oratórios ajudaram muito na elevação da morali-
dade do clero e de muitos leigos nas principais cidades italianas.
Destacaram-se o Oratório de São Jerônimo de Vicenza e o Orató-
rio do Divino Amor de Gênova, fundado em 1513 com o apoio do
Papa Leão X, por Hector Vernazza que fundou, também, Oratórios
em Roma e Nápoles.
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272 © História da Igreja Antiga e Medieval

Desses Ora­tórios nasceram, inclusive, congregações religio-


sas (somas­cos, barnabitas, teati­nos) e deles saíram grandes refor­
madores, como Caraffa, futuro Papa Paulo V, São Cae­tano de Thie-
ne e outros.

Evangelismo
Foi um movimento cristão que surgiu dos Círculos Huma­nis­
tas Cristãos. Esse Humanismo cristão estava:
[...] mar­­­­cado pelo culto da exegese bíblica, caracterizado por uma con-
cepção otimista do homem, por interpretações amplas dos dogmas,
pelo apego mais às experiências místicas do que às dissertações teoló-
gicas, pelo anseio de uma Igreja evangélica e tolerante, mas também
pela fidelidade ao corpo da Igreja romana (PIER­RARD, 1982, p. 162).

Fundamentalmente, podemos afirmar que os humanistas


cristãos pregavam a reforma da Igreja por meio da purificação dos
compromissos temporais e da volta às origens dos tempos evangé-
licos. Entre os seus representantes, destacaram-se:
1) Eras­mo de Roterdã.
2) Lefévre d'Étaples.
3) Nicolau de Cusa.
4) Marsílio Ficino.
5) Pico della Mirandola.
6) João Reu­chlin.
7) João Colet.

Reforma da Igreja espanhola


Na Espanha, a reforma da Igreja foi promovida pelos reis ca-
tólicos, Fernando e Isabel, no fim do século 15 e início do século 16.
Com a ajuda eficaz do D. Her­nando de Talave­ra e do Cardeal
Ji­me­nez de Cisne­ros, todas as dioce­ses, mosteiros e conventos
foram reformados (espiritualmente) e ser­viram de modelo para
a mudança que a Igreja articularia após o Concílio de Trento, na
metade do século 16.
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 273

Devoção moderna
Do século 14 ao 16, nasceu e se desenvolveu na Igreja um
movimento espiritual que, ligado às tendências modernas, pro­pu­
nha uma "nova o­ri­entação da vida espiritual", caracterizada pela
perda de prestígio das teorias sábias e por um método de oração
simples, razoável, acessível a todos, visando à perfeição cristã e à
união com Deus em um abandono que, aliás, não é quietismo, mas
ascese.
As causas deste novo movimento foram o culto individualista
medieval, as crises eclesiais deste período e as falhas da vida cristã
(excomu­nhões aleatórias, interditos, tráfico de relíquias, práticas
supersticiosas, grande parte do clero mal preparado e inefi­ciente).
As principais características deste movimento foram:
1) cristocentrismo prático que reforça a humanidade do
Redentor e não discute os te­mas teológicos, pois o fiel
deve imitar os exemplos de Cristo;
2) oração metódica, inflamada e simples;
3) tendência moralista e antiespecula­tiva;
4) afeto expresso no fervor e desejo de Deus;
5) biblismo, ou seja, apego à Bíblia como base da Revelação;
6) interioridade e silêncio;
7) ascetismo e esforço da vontade: fala-se mais do exercí-
cio das virtudes e da vitória contra os vícios do que da
fidelidade às aspirações do Espírito Santo.
Os principais representantes des­ta corrente espiritual foram:
1) Geraldo, o Grande (1340-1381).
2) Fio­renzo Rade­wijnis (+1400).
3) Teodo­rico de Herxen.
4) Henri­que Mande.
5) João Busch.
Um dos maiores representantes foi Tomás Kempis (1380-
1471), autor da Imitação de Cristo, que propõe a conformidade e a
configuração com Cristo.

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274 © História da Igreja Antiga e Medieval

Infelizmente, esses movimentos de reforma não conseguiram


o apoio esperado junto às altas esferas da hierarquia eclesiástica e
não puderam evitar o advento da Reforma Protestante, iniciada com
Martinho Lutero, a partir do ano de 1517. Mesmo assim, esses mo-
vimentos foram importantes para a Igreja porque serviram de base
para reforma eclesial articulada após o Concílio de Trento.

12. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
1) Como você descreve a transição entre Idade Média e Idade Moderna?

2) Quais as principais características da ciência escolástica e da mística medieval?

3) Quais as causas da crise da Cristandade medieval e do surgimento dos mo-


vimentos pré-luteranos?

4) Quais foram os aspectos marcantes das heresias medievais (cátaros, valden-


ses, apocalípticos)?

5) Identificar os movimentos de renovação eclesial na época dos mendicantes


e, também, no período pré-luterano.

6) Analise e avalie a Inquisição.

7) Qual a importância deste estudo medieval para minha vida acadêmica e


profissional?

13. CONSIDERAÇÕES
Esta unidade abordou, também, conceitos relacionados à
transição entre Idade Média e Idade Moderna, destacando a ciên-
cia escolástica, a mística medieval, a crise da Cristandade e os mo-
vimentos pré-luteranos.
Chegamos ao final do caderno: História da Igreja Antiga e
Medieval. É oportuno observar que o presente trabalho não teve a
pretensão de esgotar o assunto, pois nosso objetivo era o de traçar
© U6 - O Auge e a Crise da Cristandade A Inquisição A Transição Entre a Idade Média e a Idade Moderna 275

os principais pontos que o envolvem a fim de despertar o interesse


pela pesquisa nessa área.
Continue pesquisando e discuta com seus colegas diferentes
respostas para os antigos problemas. Afinal, o caminho é construí-
do a cada passo! Esperamos que, nessa caminhada rumo ao saber,
nos encontremos novamente para outras buscas.
Resta, por fim, desejar a todos sucesso nos estudos e que os
ensinamentos adquiridos sejam o primeiro passo de uma caminhada
de reflexão profunda sobre os fundamentos teológicos dos cristãos.
Foi um prazer conhecê-lo, ensinar e aprender com você!

14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AMARAL, A. A. C. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
DEDIEU, J. P. A inquisição. Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1997.
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1995. v. 1.

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