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ISSN 1413-8557
ABRAPEE 3
Psicologia Escolar e Educacional
Volume 14, No. 1, 2010
Versão impressa ISSN 1413-8557
Versão eletrônica ISSN 2175-3539
EDITORA
Marilene Proença Rebello de Souza Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
COMISSÃO EDITORIAL
José Fernando Bitencourt Lomônaco Universidade de São Paulo, São Paulo – SP
Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP
Silvia Maria Cintra da Silva Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG
CONSELHO EDITORIAL
Acácia Aparecida Angeli dos Santos Universidade São Francisco, Itatiba – SP
Alacir Villa Valles Cruces Centro Universitário de Santo André, Santo André - SP
Albertina Mitjáns Martinez Universidade de Brasília, Brasília - DF
Alexandra Ayach Anache Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS
Anita Cristina Azevedo Resende Universidade Federal de Goiás, Goiânia – GO
Célia Vectore Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG
Cristina Maria Carvalho Delou Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ
Elenita de Rício Tanamachi Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru - SP
Elvira Aparecida Simões de Araújo Universidade de Taubaté, Taubaté - SP
Eulália Henriques Maimoni Universidade de Uberaba, Uberaba - MG
Eunice M. L. Soriano de Alencar Universidade Católica de Brasília, Brasília - DF
Fátima Regina Pires de Assis Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo -SP
Geraldina Porto Witter Universidade Camilo Castelo Branco, São Paulo - SP
Guillermo Arias Beaton Universidade de Havana, Havana - Cuba
Herculano Ricardo Campos Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal - RS
Iolete Ribeiro da Silva Universidade Federal do Amazonas, Manaus - AM
Iracema Neno Cecílio Tada Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
João Batista Martins Universidade Estadual de Londrina, Londrina – PR
Jorge Castélla Sarriera Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS
Leandro Almeida Universidade do Minho, Braga - Portugal
Lino de Macedo Universidade de São Paulo, São Paulo – SP
Lygia de Sousa Viégas Universidade Social da Bahia, Salvador – BA
Luciane Maria Schlindwein Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – SC
Maria Cristina Rodrigues Azevedo Joly Universidade São Francisco, Itatiba – SP
Maria Regina Maluf Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP
Marilda Gonçalves Dias Facci Universidade Estadual de Maringá, Maringá – PR
Marilena Ristum Universidade Federal da Bahia, Salvador – BA
Marisa Lopes da Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ
Mercedes Villa Cupolillo Centro Universitário da Zona Oeste, Campo Grande - Rio de Janeiro, RJ
Regina Lúcia Sucupira Pedroza Universidade de Brasília, Brasília – DF
Rita Laura Avelino Cavalcante Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei - MG
Sônia Mari Shima Barroco Universidade Estadual de Maringá, Maringá - PR
Tânia Suely Azevedo Brasileiro Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho – RO
CONSULTORES Ad Hoc
Adriana Franco Universidade Estadual de Maringá, Maringá - PR
Adriana Missae Momma Faculdade Nazarena do Brasil, Campinas - SP
Ana Maria Lima de Souza Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
Alessandra Gotuzo Seabra Capovilla Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo - SP
Beatriz Belluzzo Brando Cunha Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis - SP
Bernardete Angelina Gatti Fundação Carlos Chagas, São Paulo - SP
Carla Biancha Angelucci Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo - SP
Carol Kolyniak Filho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP
Eda Marconi Custódio Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Elcie Aparecida Fortes Salzano Masini Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo - SP
Flávia Ferreira Asbahr Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Fraulein Vidigal de Paula Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Gisele Toassa Universidade Federal de Goiás, Goiânia - GO
Heloísa Szymanski Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP
Iraí Cristina Boccato Alves Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
José Roberto Montes Heloani Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP
Luciana Bittencourt Fevorini Colégio Equipe, São Paulo - SP
Luiz Antônio Gomes Lima Universidade São Judas Tadeu, São Paulo - SP
Manoel Oriosvaldo de Moura Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Marcelo Domingues Roman Universidade Federal de São Paulo, Santos - SP
Maria Aparecida Affonso Moysés Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP
Maria Eliza Mattosinho Bernardes Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Maria Lúcia Amiralian Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Maria Suzana de Stefano Menin Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Presidente Prudente - SP
Marie Claire Sekkel Universidade de São Paulo, São Paulo - SP
Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo -SP
Marília Gouvea de Miranda Universidade Federal de Goiás, Goiânia - GO
Marisa Eugênia Melillo Meira Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Bauru - SP
Marisa Todescan Dias da Silva Baptista Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP
Marli Lúcia Tonatto Zibetti Universidade Federal de Rondônia, Rolim de Moura - RO
Raquel Souza Lobo Guzzo Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas - SP
Silvana Calvo Tuleski Universidade Estadual de Maringá, Maringá - PR
Vanessa Aparecida Alves de Lima Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho -RO
4 Vera Lúcia Trevisan de Souza Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas - SP
Vera Maria Nigro de Souza Placco Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP
Wanda Maria Junqueira de Aguiar Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP
Psicologia Escolar e Educacional
Volume 14, No. 1, 2010
Versão impressa ISSN 1413-8557
Versão eletrônica ISSN 2175-3539
Quadrimestral: 1996-1999.
Semestral: 2000-
ISSN 1413-8557
Apoio:
Casa do Psicólogo
ABRAPEE 5
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Expediente
A revista Psicologia Escolar e Educacional é um veículo de divulgação e debate da produção científica na
área específica e está vinculada à Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Seu
objetivo é constituir um espaço acadêmico para a apresentação de pesquisas atuais no campo da Psicologia
Escolar e Educacional e servir como um veículo de divulgação do conhecimento produzido na área, bem como de
informação atualizada a profissionais psicólogos e de áreas correlatas. Trabalhos originais que relatam estudos em
áreas relacionadas à Psicologia Escolar e Educacional serão considerados para publicação, incluindo processos
básicos, experimentais, aplicados, naturalísticos, etnográficos, históricos, artigos teóricos, análises de políticas e
sínteses sistemáticas de pesquisas, entre outros. Também, revisões críticas de livros, instrumentos diagnósticos e
softwares. Com vistas a estabelecer um intercâmbio entre seus pares e pessoas interessadas na Psicologia Escolar
e Educacional, conta com uma revisão às cegas por pares e é publicada semestralmente. Seu conteúdo não reflete
a posição, opinião ou filosofia da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. Os direitos autorais
das publicações da revista Psicologia Escolar e Educacional são da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e
Educacional, sendo permitida apenas ao autor a reprodução de seu próprio material, previamente autorizada pelo
Conselho Editorial da Revista. São publicados textos em português, espanhol e inglês.
Psicologia Escolar e Educacional is a journal, associated to the Brazilian Association of Educational and School
Psychology (Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE), for the communication and
debate of the scientific production in its area of specificity. Its objective is to provide a medium for the presentation
of the latest research in the field of Educational and School Psychology, for spreading knowledge, which is being
produced in the area, as well as updated information to psychologists and other professionals in correlated areas.
Original papers, which report studies related to Educational and School Psychology may be considered for publication,
including, among others: basic processes, experimental or applied, naturalistic, ethnographic, historic, theoretical
papers, analyses of policies, and systematic syntheses of research, and also critical reviews of books, diagnostic
instruments and software. As a means of establishing an interchange among peers, as well as people who are
interested in Educational and School Psychology, it employs a double blind review by peers and it is published
semiannually. Its contents do not, in any way, reflect the positions, opinions or philosophy of the Brazilian Association
of Educational and School Psychology. Copyrights on the publication of the Journal of Educational and School
Psychology are property of the Brazilian Association of Educational and School Psychology, and each author will only
be allowed to reproduce his or her own material, with prior permission from the Editorial Board. Texts in Portuguese,
Spanish and English are published.
7
8 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 13, Número 1, Janeiro/Junho de 2009
Psicologia Escolar e Educacional
ISSN 1413-8557
Editorial
Artigos
Papers
Publicaciones
9
73 Competências em Educação: conceito e significado pedagógico
Competence in Education: concept and educational meaning
Competencias en Educación: concepto y significado pedagógico
Isabel Simões Dias
10
139 Disponibilidad de recursos y habilidades prelectoras
Availability of Resources and the acquisiton of pre-reading skills in the family
context
Disponibilidade de recursos materiais e aquisição de habilidades pré-leitoras
em contexto familiar
María Laura Andrés
Lorena Canet-Juric
María M. Richard’s
Isabel Introzzi
Sebastián Urquijo
Resenhas
Reviews
Reseñas
História
History
Historia
161 Entrevista com Pablo del Río Pereda sobre Vygotski: sua obra e sua atualidade
Entrevista con Pablo del Río Pereda acerca de Vygotski: su obra y su actualidad
Interview with Pablo del Río Pereda about Vygotski: his work and his topicality
Maria Isabel Batista Serrão
Flávia da Silva Ferreira Asbahr
11
Informativo
Informative
12
Editorial
A Revista Psicologia Escolar e Educacional, neste número 14.1, apresenta um conjunto de quinze artigos científicos,
sendo três deles internacionais, uma entrevista internacional, uma resenha, um relato de prática profissional e notas
bibliográficas. A discussão da Comissão Editorial tem considerado que é fundamental que os artigos veiculados na
Revista representem a diversidade dos temas da área, das abordagens teóricas sobre os temas e dos diferentes
grupos de pesquisa e Estados brasileiros em que as investigações são feitas. Além disso, a Comissão tem procurado
garantir, em cada um dos números publicados, a especificidade do recorte da área, de maneira que os artigos
veiculados estejam inseridos no âmbito teórico-metodológico da Psicologia Escolar e Educacional. Garantir este
recorte permite que este seja um veículo que congregue as produções da área, ampliando possibilidades para
pesquisa e avanço do conhecimento sobre a Psicologia Escolar e Educacional. A presença de artigos estrangeiros
é um interessante indicativo de que estamos iniciando um processo de internacionalização, impulsionado pela
visibilidade que hoje os veículos de divulgação vêm apresentando pelo fato de veicularem publicações online, como
é o caso da Revista publicada pela ABRAPEE. Os números da Revista são divulgados em dois sítios: www.abrapee.
psc.br e http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php/lng_en.
No primeiro semestre de 2010, a Psicologia Escolar e Educacional teve um momento histórico de participação
política, em âmbito nacional, ao se fazer presente na Conferência Nacional de Educação – CONAE 2010. Evento
que congregou em torno de 3500 delegados de todos os segmentos da educação e mais de 1500 observadores,
teve como tarefa a constituição de um documento nacional norteador das principais diretrizes e ações a serem
implementadas no país e que subsidiarão o Plano Nacional de Educação. Por meio da Associação Brasileira de
Psicologia Escolar e Educacional – ABRAPEE, Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP, Conselho
Federal de Psicologia – CFP e Comissão Nacional de Estudantes de Psicologia – CONEP, pudemos apresentar o
documento intitulado “Contribuições da Psicologia para a CONAE 2010”. Este documento, construído coletivamente,
destaca as principais diretrizes e princípios defendidos pelos psicólogos brasileiros no campo da Educação e que
compuseram o documento final do Ano Temático da Educação: Construindo a Educação para Todos, articulado aos
seis eixos de discussão da CONAE, a saber: Papel do Estado na Garantia do Direito à Educação de Qualidade;
Qualidade da Educação, Gestão Democrática e Avaliação; Democratização do Acesso, Permanência e Sucesso
Escolar; Formação e Valorização dos/das Profissionais da Educação; Financiamento da Educação e Controle Social
e, por fim, Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade.
Esta participação demonstra, cada vez mais, a importância da ampliação da Psicologia em diálogo com os profissionais
da Educação, destacando os avanços do conhecimento para a compreensão das questões educacionais e o
compromisso de nós, psicólogos, com as principais lutas e necessidades ainda postas para a melhoria da qualidade
da escola e seu processo de democratização.
Podemos verificar isso, de forma bastante clara, nas produções que atualmente veiculamos na Revista Psicologia
Escolar e Educacional. Neste número, temos um conjunto de temas que se reportam desde a Educação Infantil até
o Ensino Superior. Ou seja, a Psicologia Escolar vem pesquisando todos os segmentos da Educação e contribuindo
com eles. Outro destaque importante refere-se às questões postas para as pessoas com deficiência, com dois
trabalhos de pesquisa, um com estudantes cegos e outro sobre estudantes surdos. Temáticas ainda importantes
encontram-se no campo das Diretrizes Curriculares em Psicologia, atuação do psicólogo na rede pública de
educação, questões da importância do contexto familiar, dentre outras.
Dois destaques se fazem presentes neste número, sendo o primeiro, o artigo da Profa. Dra. Ruth Mercado Maldonado,
do Departamento de Investigaciones Educativas do Instituto Politécnico Nacional do México, que apresenta uma
importante discussão a respeito da formação de professores naquele país, cujos elementos contribuem sobremaneira
para compreendermos os meandros da formação de professores no Brasil.
13
O segundo destaque desse número encontra-se na seção História, em que apresentamos entrevista com o
Professor Catedrático da Universidade Carlos III de Madrid, Pablo del Rio. Um dos mais importantes organizadores
e revisores da obra de Lev Vigotski apresenta, para o público acadêmico, as questões que considera relevantes no
âmbito da teoria histórico-cultural, a importância da tradução e a atualidade da obra do autor, bem como os rumos
da Psicologia no campo da educação. Considerando-se a importância do tema e sabedores de que não poderia ser
tratado de maneira tão sintética, optamos por apresentá-lo em dois números da Revista: no 14.1 e, em continuidade,
no 14.2 A entrevista foi feita por duas estudiosas da teoria histórico-cultural, Dra. Maria Isabel Batista Serrão, da
Universidade Federal de Santa Catarina, durante seus estudos pós-doutorais, e por Flávia da Silva Ferreira Asbahr,
doutoranda do Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, com bolsa sanduíche concedida
pela FAPESP.
Sabemos que temos ainda muito o que avançar na construção de um conhecimento que subsidie de fato o processo
de escolarização e as questões e desafios que o constituem. Caminhamos na direção de buscar referenciais
teóricos e metodológicos que possam responder, de alguma maneira, à realidade educacional na perspectiva de
sua transformação e humanização. Esse é um dos papéis da Revista Psicologia Escolar e Educacional.
14
Influência da família na decisão profissional:
opinião de adolescentes
Resumo
Objetivou-se a influência familiar em adolescentes, comparando-os por gênero e escola pública e particular. Método: participaram 58 alunos
de escola pública e particular de ambos os gêneros, com idades entre 16 e 19 anos. Utilizou-se questionário com 24 questões. Os resultados
mostraram, na opinião dos participantes, atitude favorável das famílias na escolha da profissão e não foi forte a presença de crises familiares
decorrentes da adolescência; forte e consistente influência da família, particularmente dos pais, sem imposição ou geração de problemas; o
clima em termos de relações interpessoais nas famílias por tipos de escola e gênero tendeu a ser favorável a influências de seus membros nas
escolhas dos adolescentes, bem como apoio em suas decisões envolvendo a profissão.
Palavras-chave: Trabalho, adolescência, escolha profissional.
El objetivo de este artículo fue abordar la influencia familiar en adolescentes, comparándolos por género y escuela pública y particular. Método:
participaron 58 alumnos de escuela pública y particular de ambos géneros, con edades entre 16 e 19 años. Se utilizó un cuestionario con 24
preguntas. Los resultados mostraron, en la opinión de los participantes, actitud favorable de las familias en la elección de la profesión y no fue
fuerte la presencia de crisis familiares en consecuencia de la adolescencia; fuerte y consistente influencia de la familia, particularmente de los
padres, sin imposición o provocación de problemas; el clima cuanto a relaciones interpersonales en las familias por tipos de escuela y género
tendió a ser favorable a influencias de sus miembros en las elecciones de los adolescentes, así como apoyo en sus decisiones envolviendo la
profesión.
Palabras clave: Trabajo, adolescencia, escogimiento profesional.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 15-22. 15
Introdução vez mais pessoas procuram esse tipo de orientação e, devido
a essa crescente demanda, foi necessário o desenvolvimento
A escolha da profissão é uma das decisões mais de instrumentos adequados para lidar com a complexidade e
sérias da vida de uma pessoa, pois ela determina, de certo a escassez de trabalhos sistematizados que se propusessem
modo, o destino do indivíduo, bem como seu estilo de vida, a investigar o dilema da orientação profissional de forma ela-
a educação e até o tipo de pessoas com quem irá conviver borada.
no trabalho e na sociedade. Um erro de escolha equivale a Inegavelmente as chances de êxito na escolha de uma
um erro de vida (Gage, 2009). Com o aumento significativo carreira aumentam à medida que há aprimoramentos muito
dos processos industriais e intercâmbio comercial, a realida- mais aprofundados em recursos e técnicas. Porém deve-se
de da escolha profissional tornou-se mais complexa e assim levar em conta uma variável relevante para a escolha, no que
também surgiu a necessidade de que os indivíduos fossem diz respeito ao gênero. Por exemplo, a educação é no Brasil
orientados quanto à sua escolha. Como lembraram Sales e um cenário de trabalho predominantemente feminino, mas os
cols. (2003), com a globalização e as múltiplas mudanças no cargos de maior poder estão, via de regra, nas mãos mascu-
mundo do trabalho, mais complexa ficou a tarefa de definir a linas. Deve-se considerar esse fator, pois as profissões ditas
escolha profissional. O quadro complica-se com o fato de as femininas são também as que tendem a ter menores salários
complexas e por vezes contraditórias competências exigidas e menos prestígio (Dália, 1983; Silva, 1996).
serem muito variadas e progressivamente maiores, face aos Existem vários outros fatores que são determinantes
vários contextos de trabalho, o que influi nas expectativas de na escolha profissional e que certamente têm influência do
quem está fazendo opções (Diedorff & Morgeson, 2007), que sistema político e social vigente (Soares, 2002). Para melhor
se acresce o fato dos vários ambientes de trabalho ofere- entender esses fatores, realizou-se uma divisão para fins
cerem condições diferentes para ajustamento e socialização puramente didáticos (visto que na realidade sempre atuam
dos ingressantes (Bauer, Bodner, Erdogan, Truxillo, & Tu- juntos) em fatores políticos, econômicos, sociais, educa-
cker, 2007), tendendo a ser mais agressivas para mulheres cionais, psicológicos e familiares. O fator político refere-se
(Miner-Rubino & Cortina, 2007). às políticas governamentais em relação à educação, prin-
Devido à necessidade de identificar competências e cipalmente ao ensino médio, pós-médio, profissionalizante
minimizar acidentes de trabalho, surgiu a Psicologia Vocacio- e universitário; os fatores econômicos, por sua vez, dizem
nal, acontecendo a expansão de seus programas no século respeito à globalização, informação das profissões, falta de
XX, paralelo ao contexto industrial, sendo que as novas exi- oportunidades, desemprego, falta de planejamento econômi-
gências do ciclo profissional tornaram mais prementes as ne- co e todas as implicabilidades do sistema no qual as pessoas
cessidades de orientação (Sales e cols., 2003; Meer, 2007). se inserem; os fatores sociais dizem respeito à divisão da
Por conseguinte, partindo do ponto de vista da Orien- sociedade em classes sociais, busca da promoção social
tação Profissional, como campo psicológico, emergiram por meio do estudo (curso médio e superior), influência da
várias posições teóricas, com diferentes atuações práticas, sociedade na família e os efeitos da globalização na cultura e
que, segundo Moura (2004, p. 19), podem ser agrupadas em na família; os fatores educacionais compreendem, de forma
três correntes teóricas principais: a psicodinâmica, a deci- geral, todo o sistema de ensino brasileiro, como a falta de
sional e a desenvolvimental. Com relação a essas correntes investimentos no setor e a questão da universidade pública e
teóricas, independente da linha assumida, parece, de acordo privada no país; finalmente, os fatores familiares impõem uma
com essa mesma autora, “existir um consenso sobre a con- parte importante no processo de impregnação da ideologia
ceituação da Orientação Profissional”. Além disso, enfoques vigente. A busca de realização das expectativas familiares
teóricos diversos foram sendo elaborados e carecem de pes- em detrimento dos interesses pessoais influencia na decisão
quisas (Primi & Bueno, 2003). Decerto, isso é uma condição e na fabricação dos diferentes papéis profissionais (Soares,
irrefutável para que os trabalhos desse campo de pesquisa 2002), bem como pelos modelos que apresenta.
sejam cada vez mais fidedignos e possivelmente toda essa Skinner (1977), Pires e Araújo, (1976), entre outros,
expansão que vem acontecendo seja pela “insatisfação e defendem que as escolhas não são dadas como opção, pois
consequente superação dos métodos psicométricos” (p.13), são dependentes de alguns eventos diversos que exercem
os quais precisam ser melhorados à luz de evidências cien- influência sobre o comportamento e suas ações e Bohosla-
tíficas, havendo ainda a necessidade de criar novos instru- vsky (1980) fala em especial que as escolhas profissionais
mentos (Sheu & Lent, 2007), especialmente em países com estão multi e sobredeterminadas pela família.
a variabilidade étnica e cultural como a existente no Brasil. Silva (1996) diz também que a escolha profissional
Atualmente, a orientação profissional é um tipo de in- do jovem reativa as escolhas dos pais, acarretando, assim,
tervenção pela qual o orientador minimiza fatores que dificul- antigos conflitos que muitas vezes não foram superados.
tam a decisão profissional, tendo como objetivo fundamental Ademais, esse momento também pode ser encarado pelos
e específico o de auxiliar o indivíduo no processo de escolha pais como uma possibilidade de reparação das próprias esco-
de modo que este realize opções ocupacionais adequadas lhas. Isso sugere que o jovem seja o depositário de fantasias
(Ferretti, 1997). Dessa forma, quanto mais o indivíduo com- inconscientes da família e, dessa maneira, cabe-lhe realizar
preende e conhece as variáveis que podem influenciá-lo, aquilo que a família não realizou ou mesmo dar continuidade
mais controle terá sobre suas escolhas. Sabe-se que cada a tarefas já desenvolvidas por eles. A família é a célula que
16 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 15-22.
faz intermediação entre o social e o indivíduo e também é média de idade do gênero masculino da escola pública foi de
responsável pelos valores morais e pela cultura. O jovem é, 18,09 e do feminino foi 17,31. Na escola particular, a média
em parte, o resultado da relação da família com a sociedade. de idade masculina foi 17,15 anos e feminina, 7,3. Todos os
O adolescente vem sendo foco de muitas pesquisas participantes da escola particular eram solteiros e, na esco-
na área, principalmente pelas várias dificuldades sociais e fa- la pública, havia somente uma participante casada. No que
miliares que surgem nessa fase, sendo vista inclusive como diz respeito ao trabalho, na escola pública três participantes
fase de rebelião, muitas vezes prevalece um modelo de um masculinos trabalhavam e, entre as moças, cinco tinham
antiadulto desafiador, cercado por atitudes de desobediência emprego. Na escola particular, cinco rapazes e cinco moças
(Lemos, 2001). Ligados diretamente à natureza do jovem, trabalhavam.
esses desequilíbrios em estabilidade pressupõem uma crise Quanto à média de idade dos pais, verificou-se 51,8
preexistente no adolescente (Bock, 2001), até mesmo por- anos para os pais dos jovens e 47,33 para as mães das jo-
que o adolescente que é considerado normal também tem vens de escola pública; na escola particular, foi, respectiva-
problemas (Rosas, 1980) e fazer uma opção neste momento mente, de 46,16 e 45,75. O nível de escolaridade dos pais
pode tornar-se uma tarefa difícil. dos alunos da escola pública variou de analfabeto ao ensino
Outros fatores como mercado de trabalho, importância médio e, das alunas, foi de analfabeto ao ensino superior.
social, remuneração, tipo de trabalho (braçal/intelectual) e as Na escola particular, os pais dos garotos e garotas tiveram
habilidades necessárias para o seu desempenho exercem, educação variando do ensino fundamental ao superior. Em
sem dúvida, grande influência na hora da escolha, porém, relação à profissão, houve grande variação para os pais, mas
sem o risco de exageros, determinante decisivo dessa esco- as mães estavam mais voltadas para o trabalho doméstico
lha não é biológico (vocação) e sim de natureza econômica e ou que não exigia formação sofisticada. A renda familiar dos
social, ligado diretamente às oportunidades de escolarização pais de escola particular ficou entre R$ 301,00 e R$ 1.000,00
do indivíduo (Bock, Furtado, & Teixeira, 1991), que lhe darão e, na particular, foi superior a R$ 1.500,00.
as condições básicas de escolaridade (Lara Campos, 2006).
Talvez a principal dificuldade ainda seja desfazer mitos Material
e elucidar o conhecimento de profissões, carreiras, cursos de
nível técnico e superior, vestibulares e mercado de trabalho, Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
com informações concretas e atualizadas. Conforme Rosas – foram usados três: um assinado pelo diretor, outro pelos
(1980), há uma ignorância generalizada e muito do que se pais dos adolescentes e o último pelos adolescentes.
diz a respeito é distorcido ou até mesmo fruto de experiên- Questionário específico - constituído de 24 perguntas
cias pessoais, que não podem, portanto, ser generalizadas. do tipo semiaberto, abrangendo dados para a caracterização
Assim, há necessidade de pesquisar muitos aspectos do sujeito, suas condições de vida e questões específicas
envolvendo a orientação profissional. Dentre eles, é preciso sobre como viram a participação dos familiares no processo
conhecer as variáveis familiares que influem nos jovens se- e motivação da escolha profissional. Esse questionário teve
gundo a opinião dos mesmos. como fonte de apoio a dissertação de mestrado de Veloso
Considerando o contexto aqui mencionado, foram (1981), com algumas adaptações.
estabelecidos os seguintes objetivos para a pesquisa: (a)
detectar variáveis relevantes na escolha profissional com ên- Procedimento
fase nas originárias da família; (b) verificar como as referidas
variáveis atuam no que concerne a alunos matriculados em Após o consentimento do Comitê de Ética da UMC
escola pública e escola particular e (c) verificar a atuação das (Processo nº 018/2005 CAAE-0006.0.2373000-05), foram
mesmas variáveis nos dois gêneros. assinados os termos de Consentimento Livre e Esclarecido
pelo diretor da escola, pelos pais dos adolescentes e pelos
próprios adolescentes. O questionário foi aplicado de forma
Método coletiva, na própria sala de aula, em horários e dias que fo-
ram convenientes para a escola. A aplicação foi feita pelo
pesquisador alertando os participantes que, conforme cons-
Participantes tava no TCLE, seriam respostas absolutamente confidenciais
e não influiriam em sua vida acadêmica. Não foi estipulado
Participaram da pesquisa 58 alunos de segundo e tempo para a resposta.
terceiro ano do ensino médio com idades acima de 16 anos,
sendo 25 de escola pública (11 do sexo masculino e 14 do
feminino) e 33 de escola particular (20 do sexo masculino e Resultados e discussão
13 do feminino). Todos os alunos da escola pública estavam
cursando o 3º ano do ensino médio e, na escola particular, A primeira pergunta feita aos alunos com o objetivo de
13 participantes do gênero masculino estavam no 3º ano do obter resultados foi “Como é o relacionamento com sua famí-
ensino médio e 7 estavam no segundo. No gênero feminino, lia?”. Dessa forma, foi feita a análise de dados categorizando
8 alunas estavam no terceiro ano e 5 estavam no segundo. A as respostas fornecidas pelos participantes.
Influência da família na decisão profissional: opinião de adolescentes * Ricardo Ferreira Nepomuceno & Geraldina Porto Witter 17
Tabela 1. Relacionamento com a família na opinião dos adolescentes.
Consoante com o expresso na Tabela 1, na opinião dos uma atitude favorável das famílias na escolha da profissão
participantes, a tendência em todos os grupos foi considerar por seus filhos e não marcam a presença forte de crises
que se relacionam bem com a família, tendendo as respos- familiares (Bock, 2001), mas similaridade com os dados de
tas a se concentrarem em Bom e Ótimo. A melhor avaliação Veloso (1981), em que também não houve indício de senti-
ocorreu no grupo PuF com 60% de Bom e entre as alunas rem pressão familiar.
da escola particular que, entre Bom (53,8%)e Ótimo (38,5%), Os dados expressos na Tabela 2 elucidam que houve
ficou com 92,3 de manifestações positivas. Foi igualmente uma concordância geral dos participantes no que diz respei-
positiva a avaliação por gênero, sendo vista como Ótima por to ao membro da família com quem melhor se relacionam,
25% do gênero masculino e por 22% do feminino e como tendendo a maioria das respostas para a categoria Pais. A
Boa por 53,6% deles e 56,5% delas. Conseqüentemente, o maior frequência foi no grupo da Escola Pública de gênero
total reflete esta percepção positiva no relacionamento com feminino, com 89,1%, seguido pelos participantes da escola
a família (Bom = 55%; Ótimo = 23,5%). particular de gênero masculino (80%). Os demais grupos
Para verificar se havia concordância na opinião dos obtiveram 60% das respostas neste quesito. Além disso, a
participantes tendo em vista a variável gênero, foi feito o correlação obtida foi de 0,88, sendo r0 = 0,87, assim, pode-se
teste de correlação de postos (Siegel, 1956) para N = 5, p ≤ dizer que há similaridade entre ambos os gêneros. Na com-
0,05 e r0 = 0,75. Foi obtido 0,98, podendo-se afirmar que os paração entre os participantes de escola pública e particular,
dois grupos consideram igualmente boas as relações com foi observado r0 = 0,50 e rc = 0,87, sendo possível, dessa
seus familiares. Na comparação entre estudantes de escola forma, afirmar que não houve similaridade entre os dois tipos
pública e particular, a correlação foi também 0,98, ou seja, é de escolas quanto à pessoa da família com quem melhor se
opinião estatisticamente equivalente que ambos os grupos relacionam.
consideram positivas suas relações familiares. Comparando-se também as categorias pais e outros
Tendo em vista a comparação de avaliação positiva parentes (Irmãos + Outros Parentes), foram somadas as par-
(Bom + Excelente) e negativa (Regular + Ruim +Péssimo), celas dos totais dessas duas categorias e usado o χ2 para
foram somadas as parcelas dos totais e feito o χ 2 para n.g.l n.g.l. = 1, χ2c = 3,86, p≤0,05. O resultado observado foi 7,14
= 2, χ 2c = 5,99, mantendo-se o n.sig adotado para o estudo e, assim sendo, pode-se afirmar que a avaliação final indica
em p≤0,5. O valor obtido foi 18,00, o que permite assegurar que realmente são com os pais os relacionamentos mais va-
que os participantes no total da amostra consideraram bom lorizados pelos participantes na escolha profissional.
o relacionamento familiar. Estes resultados permitem esperar
18 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 15-22.
Tabela 3. Interferência da família nas decisões de escolha profissional.
A categoria mais frequente no que diz respeito à in- Amigos e Religião obtiveram um percentual aproximado,
terferência da família nas decisões dos participantes (Tabela com 17,2% e 13,8% respectivamente. A maior porcentagem
3) foi Mais ou Menos, com um total de 47% de todas as res- observada foi na escola particular, entre os participantes de
postas. Notou-se ainda que, no grupo do gênero feminino da gênero masculino (29,2%). A correlação mostrou que as res-
escola particular, foi onde houve a maior frequência nesta postas dadas pelos alunos da escola particular dos tipos de
categoria, com 69,2% das respostas. Em contrapartida, os interferência da família não são semelhantes às respostas
participantes femininos da escola pública somaram o menor fornecidas pelos alunos da escola pública, pois a correlação
resultado, com 30,8% das respostas. A categoria Sim foi a foi de 0,44 (rc = 0,70). O mesmo ocorreu em relação à com-
que obteve menor frequência das respostas, com 21% do paração de respostas dos participantes do gênero masculino
total geral de respostas. A correlação quanto à concordância e feminino: a correlação entre as respostas fornecidas pelos
na opinião dos participantes para (N = 3, p ≤ 0,05 e rc = 0,87), participantes foi de r0 = 0,68, ou seja, não significante. Embo-
foi r0 = 1, podendo–se afirmar, então, que entre os gêneros ra com variações, é em Estudo, Namoro e Escolha Profissio-
houve semelhança referente à interferência da família nas nal que mais consideraram ter interferência familiar.
decisões dos participantes. Quanto à confrontação dos dados Por meio do teste de Qui-quadrado, constatou-se,
dos estudantes de escola pública e particular, a correlação foi dentre as categorias do total geral, com exceção da cate-
a mesma da comparação anterior. Comparando-se as três goria Outros, que não se obteve frequência significativa nos
categorias da Tabela 3, foi utilizado o teste de χ2, para n.g.l. = seguintes resultados: χ20 = 2,33, e χ2c = 9,49, para n.g.l = 4.
2, χ2c = 5,99 e p≤0,05.. O resultado apurado foi 5,98, H0 não Com esses resultados, é possível afirmar que não houve
foi rejeitada, não há diferença significante, podendo-se então diferença no que diz respeito à interferência da família nos
afirmar que a avaliação total da amostra indica similaridade vários segmentos de decisões.
entre as respostas. Um dos itens do questionário pedia aos participantes
A Tabela 4 mostra os principais tipos de interferência que avaliassem a influência motivadora de vários persona-
da família nas decisões dos participantes da pesquisa. As gens nas suas possíveis escolhas profissionais. Os resulta-
categorias mais presentes nos resultados gerais foram Estu- dos aparecem nas Figuras 1 e 2.
do, com 23%, e Profissão e Namoro, com 20,7% cada uma.
Influência da família na decisão profissional: opinião de adolescentes * Ricardo Ferreira Nepomuceno & Geraldina Porto Witter 19
Figura 1. Motivação para a escolha profissional: escola particular
Através dos resultados expressos na Figura 1, pode- influência de outros colegas, com média de 4,07, influência
se observar que, no que diz respeito à escola particular no dos irmãos, com 4,0, e influência de outros familiares, que
gênero masculino, os itens de maior motivação para a escolha obteve a média de 3,93. De um modo geral, há na escola
profissional foram influência dos irmãos e de outros familiares, pública impacto maior do meio acadêmico, mas também é
ambos com média de 3,95, e influência dos professores, com apreciável a influência familiar.
3,85. Verificou-se que houve correlação entre as respostas da- Embora a influência familiar se faça presente, não
das entre os alunos do gênero masculino e feminino (r0 = 0,97 foram detectados sinais de fortes conflitos familiares, nem
e rc = 0,75). Pode-se dizer que a influência da família é mais interferência abusiva da família (Bohoslavski, 1980). Cer-
forte, mas também há influência do ambiente acadêmico. tamente há a necessidade de mais pesquisas comparando
Os dados da Figura 2 apontam que as principais fon- adolescentes de níveis socioeconômicos distintos já que
tes de motivação na escola pública, entre os participantes podem ter estilos parentais diferentes, inclusive nas escolhas
masculinos, foram influência dos professores, com uma mé- profissionais dos filhos (Santos, 2003), o que pede um cru-
dia de 3,82, influência de outros colegas, com 3,73, e os itens zamento das variáveis em tela. Também se concorda com
influência dos irmãos e mais chances no vestibular, ambos Sparta, Bardagi e Nachtigall (2003), os quais afirmam que só
com a média de 3,55. No caso feminino, os resultados foram: o tipo de escola parece insuficiente para classificar os sujei-
20 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 15-22.
tos por nível socioeconômico, com o que se teve o cuidado nos notável. As relações interpessoais positivas com colegas
de usar apenas tipo de escola. Outros indicadores precisam e professores também viabilizam influências deles nas opções
ser usados concomitantemente. profissionais dos adolescentes, sendo de se destacar que, na
Com a aplicação da correlação de Spearman, verificou- escola pública, o impacto sobre as meninas foi mais forte.
se que existe correlação entre os gêneros masculino e feminino Em síntese, no que diz respeito à influência na escolha
(r20 = 0,86 e r2c = 0,49). Também foram comparadas por meio profissional, pode-se concluir, nos grupos estudados, que a
do mesmo teste as respostas dos participantes de gênero mas- família dos alunos da escola particular interfere pouco mais do
culino dos dois tipos de escola pesquisados e foi observado que a família da escola pública, em se tratando do gênero femi-
que existe correlação, uma vez que r20 = 0,84. Na equiparação nino, e no gênero masculino não houve diferença estatística.
das respostas dos participantes de gênero feminino das duas A opinião dos adolescentes oferece pistas relevantes
escolas, verificou-se r20 = 0,86, sendo assim, existe correlação. para o planejamento de programas de orientação incluindo
Os dados sugerem a necessidade de aprofundar os estudos membros da família. Os resultados mostram que há muitos as-
sobre a influência da família na escolha profissional e no pectos a pesquisar, inclusive que permitam desenvolver instru-
próprio trabalho (Casper, Eby, Bordeauz, & Lockwood, 2007; mentos psicometricamente mais seguros do que o questionário.
Steenbergen, Ellemers, & Mooijaart, 2007), o que raramente
tem ocorrido no Brasil. Entretanto, um clima familiar favorável
como o aqui registrado é um facilitador a ser considerado no Referências
processo de orientação profissional e de carreira.
De um modo geral, os dados obtidos diferem das pro- Bardagi, M. R., & Sparta, M. (2003). Atualização e instrumentos na
jeções decorrentes do enfoque psicanalítico (Barreto & Aiello- área de Orientação Profissional. Anais do Congresso Nacional
Vaisberg, 2007). Os participantes da presente pesquisa mos- de Psicologia Escolar e Educacional, 6 (pp. 451-460). Salvador:
traram confiança e credibilidade em relação ao apoio familiar e Faculdade Ruy Barbosa.
ausência de drama na escolha da profissão, estando consoan-
tes com condições estimuladoras positivas no lar, mais comum Barreto, M. A., & Aiello-Vaisberg, T. (2007). Escolha profissional e
em outros enfoques (Moura, 2004; Lara Campos, 2006). dramática do viver adolescente. Psicologia & Sociedade, 19(1),
Certamente a complexidade da orientação vocacional 107-114.
e profissional também requer uma formação mais ampla e ao
mesmo tempo mais profunda, a qual está a merecer pesquisas Bauer, T. N., Bodner, T., Erdogan, B., Truxillo, D. M., & Tucker, J. S.
no Brasil como, por exemplo, a realizada por Mulcahy (2007) (2007). Newcomer adjustment during organizational socialization:
na Austrália. Também é preciso estar ciente de que o trabalho a meta-analytic review of antecedents, outcomes and methods.
deve incluir a transição da educação vocacional para o trabalho Journal of Applied Psychology, 92(3), 707-721.
(Brekke, 2007). Mas, ainda, para bem servir ao orientando e
prestar um serviço relevante à sociedade ,é necessário investir Bock, A. M. B., Furtado, O., & Teixeira, M. de L. T. (1991). Psicologias.
na formação que privilegie a pesquisa (Li-zhong, 2007). São Paulo: Saraiva.
Influência da família na decisão profissional: opinião de adolescentes * Ricardo Ferreira Nepomuceno & Geraldina Porto Witter 21
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G., Oliveira, C. M., Nascimento, E. de S. (2003). Orientação
Correspondência
Ricardo Ferreira Nepomuceno
Rua Maquipó, 23
VL Solange Guaianases, São Paulo
CEP 08410-350
Agradecimentos
Para o CNPq e Universidade de Mogi das Cruzes pela bolsa de Iniciação Científica.
22 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 15-22.
Estudantes universitários: a influência das variáveis
socioeconômicas e culturais na carreira
Resumo
Este estudo descreve o perfil de concluintes dos cursos de graduação Química, Ciências Biológicas e Psicologia de uma universidade pública e
busca compreender influências das variáveis sociodemográficas e acadêmicas em suas trajetórias de carreira. Os 140 participantes responderam
a um questionário com variáveis sociodemográficas: escolaridade dos pais, renda familiar, nível socioeconômico e procedência do Ensino
Fundamental e Médio (público ou particular). As variáveis acadêmicas (notas) foram obtidas nos prontuários arquivados na seção de Graduação.
As informações sobre as trajetórias de carreira (estudo de caso) foram obtidas por meio de entrevistas com seis participantes. Os dados
foram analisados quantitativamente, segundo modelo univariado - Testes do Qui-Quadrado, Não-Paramétrico Kruskal-Wallis e de Mann-Whitney,
e qualitativamente, segundo Bardin (1977). Referenciais teóricos nacionais e internacionais subsidiaram as discussões. Verificou-se que a
escolaridade dos pais, nível socioeconômico e natureza do ensino cursado estão proporcionalmente relacionados ao sucesso no vestibular e à
escolha da carreira.
Palavras-chave: Estudantes universitários, desenvolvimento profissional, escolha profissional.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34. 23
Introdução de um trabalho confere uma identidade social significativa
para o indivíduo ao permitir que ele contribua produtivamente
A problemática referente à qualidade do Ensino Fun- para a comunidade.
damental, do Ensino Médio e do ingresso na Universidade é
parte de um processo histórico que se iniciou com a coloni- Como o planejamento de carreira deve ser combinado com
zação do Brasil. Por meio da análise da história da educação o planejamento geral de vida, o aconselhamento deve dar o
brasileira, da configuração do ensino público e privado e do suporte necessário para o desenvolvimento de habilidades
acesso à universidade, pode-se compreender de que forma de planejamento de vida que instrumentalizem as pessoas
os desníveis nos setores educacionais se tornaram fruto da para lidarem com as constantes mudanças sociais e situa-
organização social, configurada por uma sociedade de clas- ções individuais. (Savikas, 2000, citado por Jenschke, 2003,
ses (Romanelli, 1994). p. 40)
A educação realizada na maioria das escolas públicas
brasileiras tem carregado um estigma, uma marca de insufi- Swanson e Fouad (1999) enfatizam a importância do
ciência quanto ao seu principal objetivo proposto: o ensino Orientador Escolar e Profissional apropriar-se do contexto
(Paro, 2000). Para o referido autor, o aumento no número de cultural do estudante para estruturar o aconselhamento da
evasões e reprovações escolares, a escassez de professo- carreira visto que os determinantes externos, como discrimi-
res, a indisciplina e a agressividade do aluno, o aligeiramento nação e pobreza, limitam o acesso à escolarização, afetan-
do ensino, entre outros, compõem o cenário precário em que do consequentemente as oportunidades de trabalho como
se encontra o ensino público Fundamental e Médio. Assim, também a percepção do cliente das mesmas. As autoras
as representações sociais dos estudantes sobre o ensino ressaltam a necessidade da compreensão da relação entre
público seguem o discurso da decadência da escola pública, classe social e nível educacional e como estas forças, juntas,
datada há mais de três décadas. A representação negativa podem afetar as escolhas dos estudantes. Por sua vez, Niles
da escola pública encontra respaldo em pesquisas científicas e Harris-Bowlsbey (2005) apontam a escassez de modelos
que acompanham a trajetória decadente deste ensino há de desenvolvimento de carreira que abarquem as diferen-
mais de 40 anos (Whitaker & Onofre, 2006). ças culturais, socio-históricas e econômicas. Desta forma,
Por outro lado, na Educação Superior, frequente- enfatizam a necessidade de desenvolver abordagens mais
mente, as instituições públicas são consideradas de melhor sensíveis a determinantes culturais.
qualidade, como se observa nos exames de ingresso. Uma Nesse sentido, analisando a Orientação Profissional
vez que a relação candidato vaga é grande, são seleciona- brasileira, Ferretti (1992) afirma que a não superação da bar-
dos os candidatos melhor preparados para o tipo de prova reira no exame vestibular, por exemplo, torna-se motivo de
que é realizada. Em decorrência disto, o cenário educacional culpa, principalmente para os jovens de classes subalternas
brasileiro aponta o acesso ao Ensino Superior, nas carreiras que não conseguem desvendar as verdadeiras origens dos
de prestígio, como um mecanismo de manutenção das desi- obstáculos que lhes são antepostos. Isso acontece quando
gualdades sociais do país. Desta forma, o concurso vestibular o sujeito não é visto a partir de seu contexto sócio-histórico
se apresenta como barreira ritualizada porque não autoriza a como um todo e os determinantes sociais envolvidos na
passagem da esmagadora maioria que se submete a esse aprovação não são levados em consideração, deixando este
exame (Teixeira, 1981) e reflete as distorções e iniquidades peso exclusivamente às aptidões individuais do estudante.
da nossa sociedade (Pinho, 2001). Nesse sentido, Bock e Aguiar (1995) defendem que a escolha
A fim de corrigir tais distorções, diversas alternativas ou não escolha profissional é parte de um processo dialético
para o ingresso no Ensino Superior foram e ainda estão sen- em que atuam muitos determinantes individuais e sociais os
do implementadas nos últimos anos, como processo seleti- quais, assim, interferem nas trajetórias de carreira.
vo, pontuação a partir do resultado do Exame Nacional do Importantes estudos sobre o Ensino Superior foram e
Ensino Médio (ENEM) e avaliação seriada, como apontam estão sendo realizados a fim de ilustrar a dinâmica do cenário
Melo-Silva, Lassance e Soares (2004), assim como progra- educacional brasileiro. O Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino
mas de cotas universitárias, como política de ação afirmativa Superior (NUPES), em 2002, realizou um estudo acerca dos
(Guarnieri, 2008; Guarnieri & Melo-Silva, 2007). atributos socioeconômicos dos excluídos e dos ingressantes
Com todos os avanços ocorrendo nos meios de in- no exame vestibular da Universidade de São Paulo. Nesse
gresso na carreira universitária, ela ainda não é, entretanto, estudo, foram analisadas, mais especificamente, as diferen-
acessível a uma grande parcela da população. As dificulda- ças entre as carreiras no tocante às características sociais,
des de acesso remetem à Teoria da Reprodução Cultural educacionais e demográficas dos candidatos e quais seriam
de Pierre Bordieu em que se discute o conceito de violência os fatores determinantes das possibilidades de aprovação no
simbólica (Bordieu,1998) como algo que permeia a divisão vestibular para cada grupo de carreira. O estudo confirma
social de classes e as condições materiais e ideológicas em que há realmente um processo de autosseleção dos candi-
que repousam. datos ao exame vestibular da Fundação Universitária para
As escolhas profissionais inserem-se nessa trama o Vestibular (FUVEST), que seleciona os candidatos que
simbólica e são objetos de interesse, sobretudo, do campo buscam a mais concorrida universidade brasileira, a Univer-
da Educação e da Psicologia. A escolha de uma carreira ou sidade de São Paulo (USP). E que o perfil dos aprovados é
24 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional -SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34.
de jovens recém egressos do Ensino Fundamental e Médio internacionais), permitindo, por exemplo, alargar as possibi-
privado, oriundos de famílias com alta renda e de cor branca. lidades de se aprender História e Geografia. Livros, jornais e
Independente da carreira escolhida, o sucesso no vestibular revistas, aliados a esse conjunto de conhecimentos transmi-
da USP associa-se basicamente à herança educacional e tidos informalmente pelos adultos, adquirem funcionalidade
ao estudo em escolas particulares (NUPES, 2002). Tais re- na medida em que aquilo que o estudante lê tem muito a
sultados indicam a grande seletividade social no processo ver com aquilo sobre o que se conversa, dando a noção de
de ingresso. Em decorrência dessa situação, alterações no continuidade. Isso leva à ampliação do vocabulário e à assi-
exame para ingresso na USP foram propostas no início de milação de uma sintaxe que ajuda a criar estruturas mentais
1996, acentuando a discussão política (Da Silva, 2006). adequadas aos conteúdos da escola, principalmente aqueles
A partir destas discussões, em 23 de maio de 2006 que são transmitidos em linguagem científica específica.
o Conselho Universitário aprovou a criação do Programa A disposição destes fatores culturais parece ter um
de Inclusão Social da USP (Inclusp), que é composto por peso igualmente importante na escolha da carreira e sucesso
uma série de medidas destinadas a ampliar o acesso e a no vestibular, conforme verificado por meio de estudos re-
permanência na Universidade de alunos vindos de escolas alizados com os perfis de candidatos e aprovados da USP
públicas. Entre as mudanças, está o acréscimo de 3% na (NUPES, 2002), da UNICAMP (NUPES, 1997) e da UNESP
pontuação obtida no vestibular da FUVEST para alunos que (Fiamengue & Whitaker, 1999), as três principais universida-
cursaram todo o Ensino Médio em escolas públicas. Tal mu- des públicas paulistas. Desta forma, os atributos socioeco-
dança combina inclusão social com mérito acadêmico e a au- nômicos e o capital cultural podem dizer quais cursos, em
tonomia universitária, segundo a Reitora Suely Vilela (Jornal termos de prestígio, condizem com tal extrato socioeconô-
da USP, 2006). A meta é aumentar o percentual de alunos mico. A seleção já se inicia no ato da inscrição ao vestibular
egressos do Ensino Médio público na universidade pública. e na carreira escolhida, pois a distribuição dos candidatos
A USP, por exemplo, tem realizado mudanças no exame por carreiras tem uma correlação com suas características
vestibular e no INCLUSP. E o ENEM, depois de 10 anos de sociais (NUPES, 2002).
consolidação, passou a valer 20% do vestibular na USP e até Entretanto, existe uma pequena parcela de estudan-
6% no INCLUSP1. A fim de evitar a evasão, providenciam-se tes da rede pública de Ensino Médio que é aprovada nos
medidas como o estímulo à adoção de professor tutor, bolsas exames vestibulares das mais concorridas carreiras em
de moradia, de alimentação, de pesquisa e em atividades de universidades públicas. Esses alunos superam as barreiras
cultura e extensão, por exemplo. educacionais, sobrevivem ao ritual de passagem menciona-
A associação entre os recursos educacionais e de do anteriormente e ainda conseguem concluir a graduação
renda familiar parece ser uma combinação recorrente ma- frente às adversidades da desigualdade de condições no
nifestada pelos privilégios de quem pode estudar em uma acesso à universidade.
escola particular (NUPES, 2002). Nesse sentido, toda e Existe demanda e existe acesso, mas há também
qualquer ação que visa democratizar mais o acesso à univer- o efeito gargalo que exclui a maioria dos candidatos desse
sidade é bem vinda. nível de ensino. Segundo Petruccelli (2004), são dois os ti-
Considerando a força do capital cultural da família pos de demanda: (a) a potencial, constituída por estudantes
como um influenciador de caminhos de seus filhos, indepen- que concluíram o Ensino Médio e (b) a efetiva, que reúne os
dentemente das medidas tomadas pelas universidades, tal estudantes com maiores possibilidades de prosseguir os es-
tema é e será pertinente em estudos que tratam do acesso tudos na Educação Superior. Ainda de acordo com o referido
e permanência na universidade e, por isso, será tratado no autor, do total da população com idade superior a 17 anos,
presente estudo. A noção de capital cultural emerge, primei- 81,4% (cerca de 88 milhões) não concluíram o Ensino Médio;
ramente, segundo Bordieu e Passeron (1998), como uma e, dentre os 18% (20 milhões) que o concluíram, demanda
hipótese que possa explicitar a desigualdade de desempe- potencial, apenas 2,8% (3 milhões) cursam a universidade.
nho escolar nas diferentes classes e também o modo como Em termos etnicorraciais, o perfil da população que atingiu a
as especificidades da reprodução cultural operam dentro da universidade é assim distribuído: 79% se autodenominam de
escola. Esses autores correlacionaram uma série de fatores cor branca; 16,8%, parda e 2,4%, preta. Diante desse cená-
extraescolares (econômicos e culturais) que acabavam inter- rio, todas as medidas que visem à inclusão de mais jovens
ferindo no desempenho e no aproveitamento estudantil. provenientes de diferentes condições sociais, na educação
Segundo Whitaker (1981), o capital cultural, além em todos os níveis, são relevantes. A inclusão e a permanên-
de agregar o capital ou a renda, agrega a história cultural cia na universidade demandam estudos que possam gerar
daquele extrato social ao qual o indivíduo pertence. Seria ações políticas para mudanças gradativas, efetivas e, ao
um conjunto lógico e funcional de conhecimentos ligados à mesmo tempo, urgentes.
arte de um modo geral (literatura, teatro ou música), além Visando à ampliação da democratização do acesso
da compreensão dos acontecimentos políticos (nacionais e à universidade, a Coordenação de Pesquisa da Comissão
Permanente para os Vestibulares da Unicamp (COMVEST)
1 Palestra proferida por Selma Garrido Pimenta, Pró-Reitora e investigou, no ano de 2003, quais seriam os aspectos da situ-
Graduação da USP em 15/06/09 na Universidade de São Paulo, ação econômica dos candidatos ao vestibular da UNICAMP
campus de Ribeirão Preto associados ao melhor desempenho acadêmico durante os
Estudantes universitários: a influência das variáveis socioeconômicas e culturais na carreira * Melina Del´Arco de Oliveira & Lucy Leal Melo-Silva 25
cursos de graduação. Para tanto, o estudo foi realizado andos consentiram em participar deste estudo, subdivididos
com alunos que ingressaram entre os anos de 1994 e 1997, em três grupos de carreiras/curso. O curso de Química e o
totalizando 4.955 graduados. Os dados mostraram que os de Ciências Biológicas está representado por 41 estudantes
estudantes que cursaram o Ensino Médio em escola pública cada um e o curso de Psicologia, por 59 estudantes. Os cur-
apresentaram desempenho superior ao longo do curso em sos de Biologia e Psicologia são de tempo integral e diurnos,
relação aos provenientes do ensino privado. A interpretação enquanto o curso de Química é em regime parcial e no perí-
fornecida pela COMVEST, para tal fenômeno, traz a possibi- odo noturno. No exame vestibular, são oferecidas 40 vagas
lidade de que tais estudantes, por conseguirem superar mui- para cada curso.
tas adversidades para chegar em igualdade de condições à
universidade, têm potencial superior para se desenvolverem Instrumentos
academicamente, se comparados aos estudantes dos outros
grupos (COMVEST, 2004). A coleta de dados foi realizada a partir de três
O referido estudo sugere que, em igualdade de con- principais instrumentos.
dições, os estudantes egressos do Ensino Médio público
teriam melhores desempenhos acadêmicos na universidade. 1. Questionário. Este instrumento, elaborado pelas
No entanto, essa seria uma conclusão a ser estudada com autoras, reúne informações sociodemográficas, tais como
cautela, pois, ainda assim, os aspectos democratizantes procedência escolar dos estudantes, escolaridade do pai,
dentro da universidade podem despertar falsas interpreta- escolaridade da mãe e nível socioeconômico. A classificação
ções, no sentido de que estes alunos, por estarem dentro para estimar o nível socioeconômico (NSE) dos participan-
de uma universidade pública, já são indivíduos privilegiados tes foi baseada na classificação da Associação Brasileira
(NUPES, 1997). de Pesquisa de Mercado (ABIPEME). Novos itens de posse
Como se dá o desenvolvimento deste grupo de alunos foram adicionados, tais como aparelho DVD, computador,
durante a graduação numa universidade pública? Qual é o fax doméstico, entre outros, e também informações sobre a
desempenho acadêmico do estudante universitário egresso situação de moradia (alugada, própria, entre outros).
do Ensino Médio público em comparação ao egresso do ensi- 2. Prontuários dos alunos. A partir dos prontuários
no particular? Quais as diferenças? Quais as semelhanças? arquivados na seção de graduação da universidade, foram
A que se atribuem tais diferenças ou semelhanças? extraídas as variáveis acadêmicas que compreendem as
O acesso à carreira universitária, assim como as notas relativas ao exame vestibular (notas da 2ª. Fase) e as
formas de superação dos obstáculos, constituem objetos de notas da Graduação.
interesse do campo da Orientação Profissional, enquanto te- 3. Roteiro de entrevista. O Roteiro abordou dois ei-
oria e prática. Assim sendo, este estudo insere-se no contex- xos temáticos: (1) as trajetórias destes estudantes durante
to de avaliação das problemáticas da Orientação Profissional o Ensino Fundamental e Médio, (2) a trajetória universitária
e de Carreira. E é a partir dessa perspectiva que os dados (o processo de ingresso e conclusão do curso) dos partici-
foram coletados e analisados. pantes.
Para tanto, um estudo foi delineado com o objetivo
de investigar o perfil acadêmico e sociodemográfico de Procedimento de coleta
estudantes universitários de três carreiras de uma universi-
dade pública (Oliveira & Melo-Silva, 2005), em função das Os dados foram obtidos em três etapas. Na primeira
variáveis: escolaridade dos pais, do nível socioeconômico etapa, os alunos foram abordados em suas respectivas salas
e procedência do Ensino Médio (público ou privado). Este de aula objetivando obter o consentimento livre e esclarecido
estudo objetiva, portanto, descrever o perfil de concluintes para a participação no estudo e as respostas ao questioná-
dos cursos de graduação Química, Ciências Biológicas e rio referido anteriormente. Para garantir maior adesão dos
Psicologia de uma universidade pública e compreender a participantes, o questionário foi entregue aos alunos no ato
influência das variáveis sociodemográficas e acadêmicas em da matrícula do último semestre da graduação. Na segunda
suas trajetórias de carreira. etapa, conforme consentimento da Diretoria da instituição na
qual o estudo foi realizado e dos estudantes, os prontuários
foram acessados e os dados coletados. Para a terceira
Percurso metodológico etapa, selecionou-se uma amostra de seis sujeitos – dois de
cada curso, considerado neste estudo como carreira, sendo
um proveniente de escola pública e outro de escola particular
Participantes – para a realização de uma entrevista semiestruturada.
A população deste estudo foi constituída pela totali- Procedimento de análise dos dados
dade de alunos graduados nos anos de 2003 e 2004 nas
carreiras de Biologia, Psicologia e Química de uma univer- A análise quantitativa foi feita por meio do trata-
sidade pública do interior paulista. O universo da população mento estatístico dos dados coletados nas 1ª e 2ª etapas
alvo deste estudo foi de 250 estudantes. Destes, 140 gradu- – informações sociodemográficas e acadêmicas. Para tanto,
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analisaram-se as variáveis coletadas a partir de um modelo Resultados e discussão
univariado em dois conjuntos de análise: (1) Carreira (Quími-
ca, Ciências Biológicas ou Psicologia) e (2) Nota (Notas da
2ª. fase do vestibular e da graduação). Tais variáveis foram Análise da Variável Carreira: Química, Biologia e
correlacionadas à escolaridade dos pais, ao nível socioeco- Psicologia
nômico e à natureza do ensino cursado.
No que se refere às notas da 2ª. Fase do vestibular, As informações sobre a escolaridade paterna e ma-
optou-se por utilizá-las em detrimento das notas da 1ª fase terna indicam que os cursos de Ciências Biológicas e Psico-
(conforme NUPES, 2002), para obter um dado mais repre- logia possuem percentuais significativamente diferentes em
sentativo do perfil do aluno ao se realizar a comparação entre relação ao curso de Química, como mostra a Tabela 1. Nos
notas do vestibular e graduação. Assim, a média das notas dois primeiros, os maiores percentuais concentram-se no En-
obtidas pela amostra de cada carreira foi ponderada a fim de sino Superior (55% e 61% para o pai e 43,9% e 64,9% para
se fazer uma análise comparativa das notas da graduação a mãe, respectivamente nos cursos), o que indica alta esco-
(pontuação 0-10) com as notas da segunda fase do vesti- laridade, um dos importantes fatores para se avaliar o capital
bular (0-40). Cumpre destacar que a 2ª fase contém disci- cultural dos estudantes. No entanto, na carreira de Química,
plinas mais específicas da carreira e que constituem a base os percentuais estão distribuídos com maior concentração no
do conhecimento desenvolvido nas carreiras selecionadas Ensino Médio (38,5% para o pai e mãe).
para o presente estudo. Assim, as notas ponderadas da 2ª Nota-se, portanto, que a carreira de Psicologia apre-
fase foram as das disciplinas básicas para o curso, como, senta um perfil, para estas duas variáveis educacionais
por exemplo, a nota de Português para Psicologia, a nota paternas, de maior escolaridade em comparação às outras
de Biologia para Ciências Biológicas e a nota da disciplina duas carreiras. O inverso ocorre com a Química, carreira
Química para a carreira Química. para a qual há sobrerrepresentação de candidatos cujos pro-
O desempenho acadêmico foi obtido a partir das genitores (pai e mãe) são menos escolarizados.
médias da graduação dos estudantes, incluindo as reprova- Em linhas gerais, focalizando a totalidade da amos-
ções e recuperações. O tratamento estatístico foi aplicado tra, evidencia-se que praticamente metade dos participantes
aos dados com a utilização de três testes principais: (1) o possui pai (50%) e mãe (45,3%) com um alto nível de es-
Teste do Qui-Quadrado (χ²), adotado nível de significância p colaridade, o que pode ser o primeiro indicativo da relação
≤ 0,05, (2) o Teste Não-Paramétrico Kruskal-Wallis (ANOVA positiva entre altos níveis educacionais dos pais e sucesso
não-paramétrica), e (3) o Teste Não-Paramétrico de Mann- no vestibular.
Whitney. A variável nível socioeconômico (NSE) nos fornece a
Na análise qualitativa, as entrevistas transcritas lite- dimensão do status social dos estudantes. O NSE, conforme
ralmente foram analisadas segundo a técnica de Análise de classificação da ABIPEME, é categorizado em A, B, C, D ou
Conteúdo proposta por Bardin (1977). Realizou-se então uma E. Neste estudo, foram considerados os níveis A, B e C. O
análise do tipo Temático-Estrutural com a categorização dos nível C inclui o nível D, pois este não poderia ser analisado
temas emergentes, cujo procedimento foi a análise horizontal isoladamente, tendo em vista que o tamanho da amostra
das entrevistas, objetivando compreender as interferências pertencente a este nível foi insuficiente para se trabalhar
das variáveis nas trajetórias pessoais destes dois grupos de estatisticamente. Em relação ao nível E, não houve nenhum
estudantes, a partir do referencial sócio-histórico brasileiro de estudante pertencente a esta classe, o que era esperado.
Bock e Aguiar (1995) e das referências internacionais sobre Desta forma, a Tabela 2 mostra que há diferença sig-
as questões culturais e socioeconômicas de Swanson e Fou- nificativa entre o perfil dos cursos de Química e Psicologia
ad (1999) e Niles e Harris-Bowlsbey (2005). no tocante ao nível socioeconômico, uma vez que, nestes,
o percentual de alunos provenientes da classe A (37,5%) é
Estudantes universitários: a influência das variáveis socioeconômicas e culturais na carreira * Melina Del´Arco de Oliveira & Lucy Leal Melo-Silva 27
Tabela 2. Distribuição em porcentagem dos participantes por carreira, em função do nível
socioeconômico e natureza do Ensino Médio.
significativamente superior e, no curso de Química, há predo- Para Pinho (2001), o ingresso de alunos que cursaram
mínio de estudantes provenientes da Classe C (21,1%). Tais integralmente seus estudos em escolas públicas é quatro ve-
dados evidenciam que o nível social destes estudantes pode zes menor entre os inscritos para o vestibular em carreiras
estar diretamente correlacionado à procura por determinada competitivas. O que leva alunos com menores vantagens
carreira universitária, conforme NUPES (2002). sociodemográficas e acadêmicas a buscarem carreiras nas
Associando esta variável ao nível de escolaridade dos quais o nível de competição é menor? De acordo com o
pais, pode-se afirmar que a carreira de Psicologia apresenta autor, “a escolha da carreira é feita de modo a aumentar a
um perfil de recrutamento mais elitista e, por conseguinte, probabilidade de sucesso, mesmo que a vaga assim obtida
é tida como uma carreira de prestígio, enquanto a herança não tenha um grande valor de mercado” (2001, p. 355), o que
educacional dos alunos aprovados no curso de Química foi denominado “fase zero do vestibular”.
indica a menor elitização e prestígio deste curso. Ciências Destaca-se também que o curso de Química diferen-
Biológicas, portanto, ocupa uma posição intermediária neste cia-se dos outros por ser oferecido no período noturno, pelo
ranking. Tais dados confirmam o que a literatura apresenta: qual muitas pessoas com nível socioeconômico menos favo-
quanto maior o capital cultural dos pais dos aprovados, maior recido optam em função da possibilidade de ter um trabalho
é o prestígio e a elitização do curso. no período diurno. Este aspecto também pode ser levado em
Apesar dos dados da Tabela 2 expressarem estatis- consideração no processo de escolha.
ticamente que não houve diferença significativa entre a na- Conforme os dados do NUPES (2002), observando
tureza do ensino frequentado – se público ou privado – na as séries finais do Ensino Médio, pode-se perceber que a
comparação entre os cursos, observa-se uma tendência de variável natureza do ensino tem influência no sucesso/insu-
que os estudantes provenientes do Ensino Médio público cesso do candidato. Como mostram os dados deste estudo,
constituem maior número de alunos na carreira de Química o Ensino Médio cursado em escola particular está sobrer-
(22,5%), invertendo-se esta tendência para o curso de Psico- representado na amostra dos aprovados. Isso corrobora a
logia (10,2%). Desta forma, o tipo de escola (pública ou pri- associação principal entre procedência do ensino privado e
vada) frequentada pelos candidatos ao longo de sua história aprovação no vestibular, notadamente porque, neste estudo,
escolar parece influenciar de alguma forma no processo de 85,7% dos participantes provêm do ensino privado e apenas
escolha da carreira e da universidade. Cumpre destacar que 14,3% são egressos de escola pública.
a procedência escolar é uma das variáveis, em um contexto
sócio-histórico mais amplo, que influencia tanto na escolha Análise das variáveis Notas da 2ª fase do vestibular
da carreira quanto nas possibilidades de ingresso e perma- e Notas da Graduação
nência na universidade. Segundo Bock e Aguiar (1996) e
Ferreti (1992), as condições sócio-históricas influenciam de A partir da análise da variável escolaridade do pai,
forma dialética: “A escolha profissional, como tantas outras observou-se que as notas da 2ª fase do vestibular e da gra-
na vida, expressa uma resposta possível, em um momento duação dos filhos cujos pais possuem nível fundamental de
do indivíduo, resposta esta que se constitui e se organiza escolaridade foram significativamente inferiores às notas dos
como um dos aspectos da subjetividade numa relação direta filhos de pais que atingiram o Ensino Médio e Superior, que
com o mundo objetivo” (Bock & Aguiar, 1996, p. 21). Assim, se equivaleram (segundo teste post hoc de Dunn), como
aos alunos provenientes do Ensino Médio público, a carreira mostra a Tabela 3.
de Química da instituição em foco tornou-se uma possibilida- Em relação à Escolaridade das mães, as notas da 2ª
de real de acesso a uma boa universidade. fase do vestibular e da graduação dos estudantes cujas mães
28 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional -SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34.
Tabela 3. Distribuição em porcentagem dos participantes em função da média das notas da 2º fase e da
Graduação e da escolaridade do pai e da mãe
Tabela 4. Distribuição em porcentagem dos participantes em função da média das notas da 2ª fase do
vestibular e da graduação e dos níveis socioeconômicos dos pais e a natureza do Ensino Médio.
A B C Público Particular
completaram o Ensino Fundamental e Médio (conforme teste A referida tabela também nos permite constatar que
post hoc de Dunn) foram significativamente inferiores às dos as notas da graduação dos estudantes de famílias com NSE
filhos cujas mães atingiram o Ensino Superior. C e B foram significativamente inferiores às notas dos partici-
A partir das correlações com a escolaridade do pai e pantes pertencentes ao grupo A. Ao correlacionar a variável
da mãe, é possível perceber que o Ensino Superior, quando NSE com a escolaridade dos pais, é possível dizer que o
alcançado pelo pai e pela mãe, é o nível de escolaridade que NSE A é um fator que pode discriminar o desempenho dos
mais interfere no desempenho dos estudantes. Tais resulta- filhos, mesmo em igualdade de condições de ensino. Assim,
dos mostram claramente a relação diretamente proporcional o capital cultural é um fator que parece se perpetuar inclusive
entre a herança educacional dos pais e o desempenho dos na graduação, influenciando no quesito desempenho acadê-
filhos, uma vez que altos níveis de escolaridade dos pais pa- mico.
recem condizer com melhor desempenho escolar dos filhos. Em relação à procedência escolar no Ensino Médio, é
É interessante notar que a escolaridade dos pais ainda é possível verificar que as notas da 2ª fase do exame vestibular
uma variável de impacto na vida acadêmica do filho, sobre- dos alunos provenientes de escolas particulares foram sig-
tudo quando é baixa e inclusive em igualdade de condições nificativamente superiores às dos estudantes egressos das
de ensino. públicas. Este dado nos permite constatar que há, sim, uma
No tocante ao nível socioeconômico dos pais, confor- relação positiva entre capital cultural, procedência do Ensino
me a Tabela 4, as Notas da 2ª fase da FUVEST dos partici- Médio, desempenho no vestibular e acesso à universidade
pantes cujas famílias possuem nível socioeconômico (NSE) pois, uma vez que as notas são maiores para os que provêm
C foram significativamente inferiores às notas dos estudantes do Ensino Médio privado, são maiores também as possibi-
que possuem família com NSE A. O grupo de NSE B ficou lidades de aprovação no vestibular. Assim, o desempenho
numa posição intermediária e as notas dos participantes des- médio dos alunos parece obedecer, predominantemente, a
te nível não foram significativamente superiores às do grupo determinantes sociais e econômicos.
C ou significativamente inferiores às do grupo A (a partir do Além disso, é possível constatar que não houve dife-
teste post hoc de Dunn). Tais resultados confirmam mais rença significativa entre o desempenho acadêmico – notas
uma vez que, quanto mais alto é o nível socioeconômico na graduação – dos alunos egressos de escolas públicas
do candidato, maiores são as vantagens para o sucesso no e particulares. Embora estudos da UNICAMP (COMVEST,
vestibular. 2004) constatassem que os egressos de escolas públicas
Estudantes universitários: a influência das variáveis socioeconômicas e culturais na carreira * Melina Del´Arco de Oliveira & Lucy Leal Melo-Silva 29
superariam em notas os da escola particular, isto não se graduação não foram “afetadas” diretamente pela natureza
aplica ao presente estudo, que apresenta um número bas- do ensino cursado. Assim sendo, vale destacar que, além do
tante reduzido de carreiras e de participantes. No entanto, capital cultural, é preciso considerar as inúmeras variáveis
em ambos os estudos (o da COMVEST e o presente estudo) individuais (características pessoais como, por exemplo,
pode-se afirmar que, em igualdade de condições de ensino, a traços de personalidade, interesses, aptidões, inteligência,
procedência escolar é uma variável que parece não interferir autoeficácia, comportamentos proativos), mas, principalmen-
negativamente no desempenho acadêmico dos participantes te, outras variáveis contextuais, entre elas a necessidade de
podendo, inclusive, afetá-lo positivamente, conforme estudo trabalho, o que pode decorrer em menor tempo de dedicação
apresentado pela COMVEST. aos estudos. Mais investigações sobre o peso dessas vari-
Existe uma forte correlação entre escolaridade do pai áveis na aprovação nos exames vestibulares e no sucesso
e da mãe, nível socioeconômico e a procedência do Ensino acadêmico são necessárias.
Médio. A relação positiva configura-se da seguinte forma: os Cumpre destacar que todos os cursos deste estudo
egressos do ensino público carregam uma herança de baixa apresentaram sinais de elitização visto que, para as três car-
escolaridade dos pais e suas famílias situam-se em níveis reiras, a grande maioria dos estudantes é proveniente do en-
socioeconômicos inferiores. Seu desempenho no vestibular sino particular, comprovando o processo sócio-histórico em
acaba também sendo mais baixo a partir das manifestações que a reprodução social garante a perpetuação do espaço
de insuficiência do ensino cursado e de capital cultural em de ação da classe dominante. Sendo assim, independente
relativa desvantagem em relação aos egressos do ensino da elitização do curso, o estudante que ingressa na universi-
particular e às exigências do vestibular e da educação su- dade pública já é um privilegiado se comparado ao conjunto
perior. No entanto, na trajetória universitária, as notas da da população brasileira.
Tabela 5. Distribuição em porcentagem dos participantes entrevistados (n=6), em função do perfil sociodemográfico,
educacional e acadêmico
Ensino
1 QUI PU 24 18 D Fundamental 4,2 6,6 13 de 8
Incompleto
Ensino
2 BIO PU 28 23 D Fundamental transferida 7,9 8 de 8
Incompleto
Ensino
3 PSI PU 27 23 C Fundamental 5 7,9 11 de 10
Completo
Ensino Médio
(pai)
4 QUI PA 22 18 A Ensino 3,3 8,7 8 de 8
Superior (mãe)
Completos
Ensino Superior
5 BIO PA 22 18 B 5,2 7,3 8 de 8
Completo
Ensino Superior
6 PSI PA 23 18 A 4,9 8,5 10 de 10
Completo
30 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional -SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34.
Análise das entrevistas ‘cursinho popular’ do que quando eu entrei na faculdade”. Os
cursinhos denominados alternativos, populares e/ou comuni-
Com a análise das seis entrevistas realizadas, ob- tários objetivam preparar egressos do Ensino Médio público
jetiva-se a discussão dos dados qualitativos em articulação para o exame vestibular. Ingressar em um deles pode signifi-
com os resultados quantitativos. A Tabela 5 mostra o perfil car a superação de um primeiro obstáculo, o que auxiliará na
sociodemográfico e acadêmico dos sujeitos entrevistados (n superação dos demais.
= 6), confirmando em muitos aspectos a análise quantitativa Cumpre destacar que os determinantes sociais não
realizada anteriormente. Pode-se verificar a diferença de ní- são exclusivos, há que se considerar também os determi-
vel socioeconômico e a escolaridade dos pais dos egressos nantes individuais, os atributos pessoais como, por exemplo,
de escolas públicas e particulares. O NSE dos egressos das a autoeficácia percebida. No comportamento autoeficaz, as
“públicas” situa-se entre C e D e os de escola particular entre ações direcionam-se às ocupações que requerem as capa-
A e B. Pode-se observar também o ingresso tardio da maioria cidades que o indivíduo pode ter ou desenvolver, estabele-
dos entrevistados egressos do Ensino Médio público na uni- cendo metas e objetivos que persistem frente às barreiras
versidade e o prolongamento do tempo de graduação desses surgidas na trajetória de sua realização, conforme observado
alunos. É preciso compreender, agora, os dinamismos e as nos relatos de alguns entrevistados.
subjetividades que envolvem tais questões. Observando a trajetória destes dois perfis de alunos,
A partir do relato dos participantes, é possível perce- é possível dizer que o perfil dos egressos da escola pública
ber a forma como os determinantes sociais interferem em destaca-se em termos da apropriação cultural dos recursos
sua trajetória educacional. Tais relatos permitiram verificar que encontraram fora do âmbito escolar, conforme relatado:
o impacto das variáveis sociodemográficas, educacionais e “além da escola e dentro dela... eu sempre li muito”, “eu sem-
acadêmicas na vida dos dois perfis de estudantes. pre fiz outras atividades... fazia balé clássico... fiz três anos
As condições de ensino para os estudantes egressos de violão”. Observa-se que tais alunos já são privilegiados ao
do Ensino Médio público e privado foram contrastantes. Com poder entrar em contato com estes bens de capital cultural e,
as distinções relatadas, percebe-se a precariedade da quali- ao cursarem o Ensino Superior público, também ocupam um
dade de ensino para egressos de escolas públicas, de modo lugar privilegiado.
que, nos relatos, esta precariedade foi enfatizada no Ensino A questão é que, mesmo estando na graduação, que
Médio, conforme as falas: “o colegial foi terrível, nós quase dispõe tais bens de capital cultural, estes parecem ser diferen-
não tínhamos professores”, “no meu caso, muitas aulas eram tes para os dois perfis de aluno. As adversidades enfrentadas
muito frouxas mesmo”. Quanto aos egressos do ensino parti- pelos egressos do ensino público durante a graduação e o
cular, os relatos foram de satisfação e qualidade pelo ensino: próprio nível econômico a que pertencem acabam interferin-
“eu observava a grande preocupação dos professores em do no desempenho acadêmico: “a vinda pra cá foi muito difí-
você aprender”. cil... o pessoal de casa não me ajudava na época, na verdade
Com o fim do Ensino Fundamental e Médio, os alu- era o contrário, eu que ajudava em casa”, “acho que eu entrei
nos estão submetidos aos graus – maiores ou menores – de no esquema da faculdade aqui, não tive mais problemas”,
liberdade da escolha, como aponta Ferretti (1992). O grau de “então você já conhece os professores, você sabe o que tem
liberdade destes participantes parece pautar-se nestas condi- que estudar... aí você consegue aproveitar um pouco mais,
ções de ensino e no acesso aos bens culturais. Os egressos mas no início sempre é um pouco mais difícil”.
do ensino público trouxeram uma questão preliminar: cursar Uma participante fez referência a um tema pertinente
ou não cursar uma carreira universitária? As diferenças de sobre a questão do apoio pedagógico ou psicopedagógico
condições principiam nas expectativas de metas e resulta- – orientações ou acompanhamento dos alunos que apresen-
dos. Algumas falas são representativas deste momento: “eu tam dificuldades acadêmicas e emocionais frente às condi-
nunca imaginei na minha vida que eu pudesse fazer faculda- ções de estudo. Ela diz: “não tive onde procurar apoio, muitos
de”, “eu queria, mas não podia... uma faculdade que ficava alunos que ingressam aqui ficam perdidos, não sabem onde
como um sonho, lá, contido”. Isto mostra como os graus de procurar apoio”. Essa fala aponta para a necessidade de
liberdade estão subjacentes a algo aquém do indivíduo, mas serviços de apoio educacional e psicológico ao estudante,
que muitas vezes o coloca numa posição falaciosa de sujeito ou pelo menos de aumento na capacidade de atendimento
livre para escolher. Pode-se questionar se de fato há livre em um serviço que existe no campus, porém com número
arbítrio para quem está constrangido por condições sociais, insuficiente de vagas. Por outro lado, as verbalizações dos
econômicas e educacionais. egressos do ensino particular sobre o ingresso à universida-
Assim, é possível perceber as restrições de escolha de fazem referência à satisfação e ao afeto: “eu achei tudo
para os egressos do ensino público e as dificuldades com a lindo, estava deslumbrada mesmo, em todos os aspectos”;
preparação para o exame vestibular e o acesso ao Ensino “minha referência aqui são os meus amigos, e a nossa turma
Superior: “eu fiz um ano de cursinho... eu teria que aprender é uma turma que se uniu muito, então tudo que a gente fazia,
só coisas novas praticamente, algumas delas podiam ser um a gente fazia junto”.
pouco mais familiares... todo o restante era muitíssimo novo, Em contrapartida, é possível enumerar uma série de
então era um trabalho colossal de se fazer”, “eu conheci um dificuldades enfrentadas pelos graduandos provenientes das
cursinho popular, acho que chorei mais quando entrei no escolas públicas: (a) necessidade de trabalhar, (b) necessi-
Estudantes universitários: a influência das variáveis socioeconômicas e culturais na carreira * Melina Del´Arco de Oliveira & Lucy Leal Melo-Silva 31
dade de cumprir a carga horária de suas bolsas para poder de programas universitários que promovam oportunidades
se custear, (c) cuidar dos serviços domésticos, (d) enfrentar experienciais, informações, orientação e atividades psicoe-
a fila da sala de computação destinada aos alunos para faze- ducativas. Nesse sentido, Swanson e Fouad (1999) referem-
rem seus trabalhos (sendo que alguns computadores sempre se ao desenvolvimento de competências multiculturais do
estavam sem condições de uso), (e) restrição das fontes de profissional para que se possa realizar um aconselhamento
pesquisa, pois os livros da biblioteca não são suficientes para apropriado ao contexto cultural do estudante.
atender à demanda e eles não têm dinheiro para comprar Entretanto, o fato da universidade não dispor de um
livros e, por fim, (f) os aspectos psicológicos envolvidos no serviço que se aproxime destas condições ideais soma-se
enfrentamento destas adversidades. às adversidades enfrentadas pelos estudantes, o que gera
A manutenção financeira foi um tema emergen- impacto no desempenho. Por fim, questiona-se qual deveria
te, visto que nenhuma questão do roteiro das entrevistas ser o perfil do profissional ideal para atuar no cenário apre-
abordava diretamente este assunto. Todos os egressos do sentado, sobretudo no contexto brasileiro. Deve-se pensar
Ensino Médio público disseram ter dificuldades para se man- em um profissional que atue na interface entre a Psicologia
ter financeiramente na faculdade: “eu também tive alguns e a Educação tanto no Ensino Básico quanto no Superior e
problemas particulares, financeiros”, “continuo dando aulas que seja consciente dos aspectos sócio-históricos, culturais e
[de inglês], se não estivesse dando aulas eu não poderia ter econômicos como fatores que interferem no comportamento
vindo [referindo-se à cidade onde se situa a universidade]”, do indivíduo.
“no último ano a bolsa acabou e aquele desespero que você
tinha que se formar... sem trabalho, fazendo bico, então foi
horrível, mas acabou”. Considerações finais
Esta lista de aspectos adversos logicamente é ame-
nizada ou não existe para muitos alunos que possam dispor O mecanismo de reprodução social se apresenta
deste capital cultural e econômico. Não se trata somente de sócio-historicamente instalado no Sistema Educacional
uma distinção de natureza do ensino, visto que na análise brasileiro. A atual configuração deste sistema oculta o as-
quantitativa não houve diferença significativa entre o desem- pecto da historicidade desta reprodução e atribui ao sujeito
penho dos dois perfis de aluno; trata-se das condições mate- a responsabilidade por sua posição social. A configuração
riais da universidade, das condições de tempo do aluno e das do sistema público de Ensino Fundamental e Médio, dada
condições psicológicas para dispor de um capital cultural, en- por sua discriminação social a partir do sucateamento e ali-
fim das condições mesmas de “transmissão” e apropriação geiramento do ensino, associa-se à configuração do ensino
deste capital cultural. privado e suas relações mercadológicas. A despeito destas
Ainda que os estudos da COMVEST (2004) tenham diversidades, o efeito cursinho tem aumentado e denunciado
mostrado que os alunos egressos do Ensino Médio público ob- não só a qualidade do ensino nas duas naturezas de insti-
tiveram melhor desempenho acadêmico do que os egressos tuições de ensino – públicas e/ou privadas – bem como a
de escolas particulares, no caso do presente estudo as adver- incoerência das exigências do vestibular.
sidades enfrentadas podem ser elucidativas sobre as diferen- Estas configurações – positiva ou negativamente –
ças encontradas nos dois estudos, mas não são suficientes aumentam sobremaneira a seletividade social no processo
para explicitar integralmente esta diferença. Pode-se afirmar de ingresso à universidade. No entanto, além da seletividade
que há muitas variáveis que interferem: a bagagem defasada associar-se aos aspectos organizacionais do sistema educa-
em relação aos conhecimentos gerais no início da graduação, cional, ela está intimamente associada ao poder real e sim-
a falta de tempo decorrente das dificuldades financeiras para bólico advindo do acesso aos bens culturais pelos indivíduos.
dedicação ao estudo, a falta de apoio psicopedagógico ofere- Assim, o capital cultural está no cerne da reprodução social
cido aos estudantes, entre outras dificuldades. como uma categoria que separa e seleciona os ingressantes
Estes estudantes tinham que trabalhar ou “fazer bicos” ao Ensino Superior, podendo predizer o grau de prestígio e
para sua manutenção e ainda a falta de recursos financeiros elitização de uma carreira universitária, assim como interferir
dificultava o acesso aos livros ou a equipamentos (computa- no próprio processo da escolha da carreira.
dor, outros eletrônicos) que criam condições para os estudos. No Ensino Superior, a variável procedência escolar
Para os estudantes em período integral, a administração do não influencia significativamente o desempenho acadêmico.
tempo era prejudicada. Em relação ao curso de Química, a Por outro lado, a força do capital cultural e das condições
própria dificuldade em relação à área de exatas foi um fator financeiras dos pais continua a interferir nas notas, no ingres-
apontado. so e na permanência do aluno na universidade.
Tais apontamentos sumarizam o efeito das interfe- A possibilidade de evasão do Ensino Superior a partir
rências culturais e econômicas na vida dos dois grupos de das dificuldades enfrentadas pelos egressos do ensino públi-
estudantes. Niles e Harris-Bowlsbey (2005), no tocante às co mostra quão penosa se configura a alternação histórica. O
intervenções para o desenvolvimento de carreira, destacam peso da herança sócio-histórica que cada indivíduo carrega
a importância de se conhecer o contexto sociocultural dos pode se expressar como aspectos favorecedores ou obstacu-
clientes ou estudantes nesse caso, assim como capacitá-los lizadores das mediações e apropriações feitas no mundo cir-
a lidarem com tais diferenças. Inclusive sugerem a criação cundante. Quando estes aspectos interferem negativamente
32 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional -SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34.
nesse processo, a ação pessoal de luta contra a reprodução enfrentamento das condições sociais, educacionais e econô-
social não tem alcance suficiente. A ação coletiva, pensada e micas e do estabelecimento de metas que visem às transfor-
respaldada politicamente, exerce um alcance maior. mações necessárias para a construção de uma sociedade
Isso remete aos questionamentos acerca da efetivida- verdadeiramente democrática.
de das políticas públicas de acesso à carreira universitária,
sobretudo para aquela minoria ingressante com carência
estrutural de recursos. E nisso a universidade passa a ter Referências
um papel muito importante no sentido de também se adequar
às necessidades desse grupo de estudantes universitários Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.
e mesmo otimizar suas instalações, suas bolsas-auxílio, seu
material de pesquisa. E, sobretudo, utilizar diferentes meca- Bock, A. M. B., & Aguiar, W. M. J. (1995). Por uma prática promotora
nismos de ingresso na universidade como o programa de de saúde em orientação vocacional. Em A. M. B. Bock e cols., A
cotas universitárias, entre outras alternativas, como apontado escolha profissional em questão. São Paulo: Casa do Psicólogo.
por Guarnieri (2008) e Guarnieri e Melo-Silva (2007).
O presente estudo contribui um pouco mais com a pro- Bourdieu, P. (1998). Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo:
dução do conhecimento acerca do ingresso e desempenho Perspectiva.
acadêmico de alunos provenientes do Ensino Médio público.
Nesse sentido, cumpre destacar a importância das medidas Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (1998). Escritos de Educação.
que estão sendo criadas e implementadas no país, seja em Petrópolis, RJ: Vozes.
nível nacional, estadual ou municipal, por meio das políticas
de ação afirmativas, como estratégias de enfrentamento aos Comissão Permanente para os Vestibulares - COMVEST. (2004). Em
problemas apontados pelos participantes em situação de Igualdade de Condições, alunos de graduação da Unicamp que
constrangimento social, econômico e educacional por oca- estudaram na rede pública têm desempenho acadêmico superior.
sião da coleta de dados desta pesquisa. Estudos sobre: (1) Campinas: Unicamp. Recuperado: 12 dez. 2004. Disponível: http://
o processo de ingresso e permanência na universidade, (2) www.comvest.unicamp.br/vest2004/desempenho_publica.pdf
a avaliação das políticas de ação afirmativas e (3) o acom-
panhamento de universitários que ingressaram por meio de Da Silva, J. A. (2006). Se alguma coisa existe, ela existe em certa
medidas de ação afirmativa são cada vez mais necessários. quantidade e pode ser mensurada: o valor preditivo dos exames
Atrair jovens de diferentes grupos sociais para as universida- vestibulares. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 7(1),
des significa ampliar a democracia e isto pode transformar o 65-67.
projeto de algumas famílias brasileiras, mas principalmente
influenciar na definição de prioridades e na relação de poder Ferretti, C. J. (1992). Uma Nova Proposta de Orientação Profissional.
nos centros de pesquisas. Um número cada vez maior de jo- São Paulo: Cortez.
vens na Universidade é necessário, tanto para atender às exi-
gências do mercado de trabalho, que requer profissionais cada Fiamengue, E. C., & Whitaker, D. C. A. (1999). Dez anos depois:
vez mais qualificados, quanto para que o País possa alcançar UNESP – Diferentes perfis de candidatos para diferentes cursos
o desenvolvimento científico e tecnológico. Afinal, um país (estudo de varáveis de capital cultural). Pesquisa Vunesp, 11.
que possui o maior e mais diversificado sistema de ciência, Bauru: Fundação VUNESP.
tecnologia e inovação da América Latina, conforme apontam
registros oficiais do Governo (http://www.brasil.gov.br/pais/ Guarnieri, F. V. (2008). Cotas universitárias: perspectivas de
sobre_brasil), não pode ser um país com uma taxa baixa de estudantes em situação de vestibular. Dissertação de Mestrado,
estudantes universitários. Se a consolidação e a expansão Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo.
do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação são
estratégicas para o desenvolvimento soberano e sustentável Guarnieri, F. V., & Melo-Silva, L. L. (2007). Ações afirmativas na
do País e constituem metas para a diminuição da injustiça educação superior: rumos da discussão nos últimos anos. Revista
social, ampliar o número de jovens de diferentes condições Psicologia & Sociedade, 19(2), 70-78.
sociais e econômicas ocupando as cadeiras universitárias é
um dos caminhos para a verdadeira democracia. Jenschke, B. (2003). A cooperação Internacional: desafios e
Finalizando, no âmbito institucional, tanto escolas necessidades da orientação e do aconselhamento em face das
do ensino básico quanto universidades devem investir em mudanças mundiais no trabalho e na sociedade. Revista Brasileira
programas de intervenção na interface da Psicologia com a de Orientação Profissional, 4(1/2), 35-55.
Educação – o Psicólogo Educacional e/ou Orientador Profis-
sional, por exemplo – e que possam acompanhar o desen- Jornal da USP. (2006). Inclusão Social com mérito acadêmico. São Paulo:
volvimento da carreira de modo a aumentar a autoeficácia Jornal da USP, ano XX, nº 765. Recuperado: 02 ago. 2007. Disponível:
dos estudantes, bem como estimular comportamentos mais http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp765/pag05.htm
proativos e autônomos, tendo em vista a necessidade de
Estudantes universitários: a influência das variáveis socioeconômicas e culturais na carreira * Melina Del´Arco de Oliveira & Lucy Leal Melo-Silva 33
Melo-Silva, L. L., Lassance, M. C. P., & Soares, D. H. P. (2004). A Pinho, A. G. (2001). Reflexões sobre o Papel do Concurso Vestibular
Orientação profissional brasileira no contexto da educação e para as Universidades Públicas. Estudos Avançados – Dossiê
trabalho. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 5(2), 31-52. Educação, 15(42), 353-362.
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Público e Privado: Algumas trajetórias na carreira universitária. comunitário na zona rural. Revista Brasileira de Orientação
Relatório de Iniciação Científica do Programa de Bacharelado Profissional, 7(1), 45-55.
em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo.
Sobre as autoras
Correspondência
Lucy Leal Melo-Silva
Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto- Universidade de São Paulo
Avenida Bandeirantes, nº 3900
Ribeirão Preto – SP CEP: 14040-901
34 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional -SP, Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 23-34.
Contribuições da escola para a (de)formação dos
sujeitos surdos
Resumo
O artigo discute, a partir do diálogo entre materialismo histórico dialético e a psicanálise winnicottiana, as contribuições da escola para a
constituição da identidade de sujeitos surdos. A análise de bibliografia pertinente apontou para a escassez de trabalhos que consideram a relação
entre a escola e os processos de subjetivação dessas pessoas. Para compreender as discussões desse campo, foram realizadas reflexões sobre
os fenômenos escolares contemporâneos à luz da Psicologia para uma Educação Formativa – e não deformadora – para todas e todos. Quanto à
população surda, apesar de não haver consenso a respeito dos efeitos da escolarização em instituições inclusivas ou especializadas, concluiu-se
que os profissionais da Educação precisam de liberdade e condições objetivas para criar/recriar espaços e estratégias de aprendizagem, com
a finalidade de proporcionar aos educandos – e a si mesmos – experiências de relações mais horizontais com o outro, esteja ele marcado pela
diferença linguística, sensorial, orgânica, etária, cognitiva ou étnica.
Palavras-chave: Psicologia escolar, surdo, subjetividade.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 35-44. 35
Introdução buir para o aprofundamento da discussão do campo. Nossa
busca aproxima-se das discussões de Bisol e cols. (2008),
que realizou um amplo levantamento bibliográfico sobre o
A experiência cultural em que atualmente nos tema, concluindo que os estudos encontrados:
localizamos
Revelam, por exemplo, uma tendência dos psicólogos
O objetivo do presente trabalho é refletir sobre as im- brasileiros de optarem pelo modelo socioantropológico de
plicações da escola na constituição da subjetividade de pes- surdez. Também mostram que a psicanálise está presente
soas surdas. Partimos, aqui, de uma Psicologia que encontra contribuindo com sua perspectiva para o debate numa área
o homem no mundo para compreender tal constituição, afir- que até então ficava polarizada entre o modelo clínico-
mando, portanto, uma intrínseca relação com os processos terapêutico e o modelo socioantropológico. O levantamento
sociais. Considerando o movimento dialético de progresso referente às temáticas eleitas pelos psicólogos brasileiros
e regressão das condições de sustentação dos processos abre um campo amplo para se pensar no desenvolvimento
de humanização que caracterizam a História (Horkheimer & desta área no país. Há, por exemplo, um foco significativo
Adorno, 1985), propomos um exercício de pensamento: o no estudo de processos que se situam na infância, com
que comunica a instituição educacional à criança surda em alguns trabalhos seguindo até a adolescência. As temáticas
relação à sua possibilidade de existir como sujeito? desenvolvidas precisam ser ainda discutidas considerando-
Entendemos que a Educação é parte de nossos pro- se as demais fases do desenvolvimento vital, incluindo
cessos de socialização, sendo, portanto, uma das instituições estudos com surdos bebês e adultos. (s/p.)
que produz e reproduz relações sociais. As formas como ela
se realiza, seus objetivos e as instituições responsáveis por Assim, este trabalho partirá de reflexões teóricas a
sua objetivação articulam-se ao nosso modo de produção, à respeito do tema, a fim de criar um campo de discussão que
nossa forma de conceber e realizar a política, bem como às não se centre na surdez como patologia, nem nas particula-
nossas aspirações de transformação da realidade social. As- ridades do desenvolvimento do indivíduo surdo. Outrossim,
sim, a um só tempo, a Educação é instrumento de legitima- desejamos apontar para as contribuições da Psicologia
ção e perpetuação do instituído como também é depositária Escolar, que se compromete com a dimensão educacional
de anseios de ruptura com os processos de dominação e ex- do fenômeno humano, a fim de avançarmos na garantia de
clusão (Saviani, 2005). Por esse motivo, entendemos que os uma experiência escolar implicada com o respeito à diver-
estudos sobre a escola, principal instituição responsável pela sidade humana. Diversidade esta, aqui, não tomada como
formalização dos processos educacionais, são essenciais ente abstrato, mas como experiência concreta entre sujeitos
em projetos que pretendem a transformação social de modo politicamente iguais.
a nos aproximarmos da realização dos valores humanos, dos Desde a elaboração da Declaração de Salamanca,
nossos sonhos – hoje, já bastante pálidos – de formação de em 1994, não cabe mais discutirmos se a Educação é direito
um homem que possa constituir-se na direção de sua própria ou não das pessoas com necessidades educacionais espe-
humanidade. ciais – e, dentre elas, as pessoas surdas. A questão que se
É esta a posição ético-política que orienta nossas impõe, agora, no campo da Psicologia, refere-se à constru-
escolhas teóricas. ção de um arcabouço teórico que fundamente intervenções
Ao realizarmos um levantamento bibliográfico sobre comprometidas com a garantia de uma Educação conjunta
surdez em periódicos nacionais por meio do portal Scielo, en- para todas e todos1, de caráter emancipatório. Entendemos
contramos 85 trabalhos, dos quais apenas 18 fazem menção que tal Educação significa, necessariamente, respeito à
ao universo simbólico ou a aspectos psicológicos. Cabe res- diversidade de estilos cognitivos, pertencimentos étnicos,
saltar que, entre eles, a grande maioria refere-se a aspectos culturais, religiosos, condições orgânicas, etc.
psicopatológicos ou à aquisição de habilidades cognitivas de Para tanto, não basta a garantia de matrícula escolar,
pessoas surdas. Apenas dois trabalhos propõem-se a discutir pois já sabemos que a natureza da lógica sobre a qual a ins-
aspectos ligados à identidade (Bueno, 1998; Dizeu & Capo- tituição educacional ergueu-se e mantém-se é meritocrática
rali, 2005), nos quais encontramos reflexões sobre o uso da e excludente. Kupfer e Petri (2000) lembram-nos que o nas-
língua de sinais como aspecto constituinte da identidade. Di- cimento da escola cria, ao mesmo tempo, outro fenômeno:
ferentes posicionamentos são considerados na relação entre a criança escolar. Como discutem as autoras, quando nos
cultura ouvinte e cultura surda, entretanto, a atenção ao tema perguntamos a respeito de quem frequentará a escola, esta-
é elemento basilar das discussões. mos admitindo a existência de crianças escolarizáveis e não
Encontramos ainda um artigo que discorre sobre as
contribuições da Psicologia para o estudo da surdez (Bisol, 1 Utilizaremos a expressão “todas e todos” quando nos referirmos à
Simioni, & Sperb, 2008). garantia do direito à Educação por entendermos que, apesar de não
Não encontramos trabalhos recentes que, do ponto se tratar de questão aqui aprofundada, é essencial o estabelecimento
de vista da Psicologia, estudem escolarização e constituição de recorte de gênero para a compreensão das dificuldades de
da identidade surda, o que parece indicar que estudos de escolarização no Brasil, seja em relação à permanência escolar, seja
aproximação, como este que apresentamos, podem contri- em relação às queixas escolares (Carvalho, 2004).
36 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 35-44.
escolarizáveis. Resta, agora, relembrarmos quais os critérios mos que pensar sobre a pergunta “quem tem ficado de fora
utilizados ao longo de nossa história para responder a essa do direito à escola” pode fazer-nos perceber a trajetória de
questão. Bueno (2004), Patto (2000a) e Jannuzzi (2004) são nossa (des)humanização, abrindo-se, então, o campo para
alguns dos vários autores que têm estudado profundamente que outro caminho seja trilhado, em outra direção.
a garantia do direito à Educação no Brasil. Esses autores Se acompanharmos a concretização da política de
colocam-nos frente a um aspecto tão básico a respeito da inclusão no Estado de São Paulo, quase tudo indica que
Educação para todas e todos, mas que teimamos em esque- evoluímos a largos passos na direção contrária à de uma
cer: desde sua origem, a escola, instituição social que é filha escola de qualidade para/com todas e todos (Patto, 2000b;
de seu tempo, não entende como escolarizáveis aqueles Viégas & Angelucci, 2006). Afinal, o que tem sido a política
que são significativamente diferentes, seja devido à língua, de inclusão? Uma política de continuidade do projeto edu-
à cultura, à condição socioeconômica, à imagem corporal ou cacional desde há muito em vigor no Brasil, ou seja, uma
à organização sensorial, entre outras condições. Tais autores política de desconsideração do sujeito humano, do processo
lembram-nos que o acesso à educação formal esteve restrito educacional democrático e conjunto, da garantia universal
aos filhos de famílias de classe média e alta até a década de da apropriação dos saberes produzidos ao longo da nossa
1970 (Patto, 2000a). história.
Analisando os efeitos da política de Educação Espe- Esse é um dos motivos pelos quais assistimos a uma
cial no Brasil das décadas de 1970, 80 e 90, Bueno (2004) onda conservadora por parte de muitos segmentos educacio-
concluiu que a ampliação de vagas para a população com nais: inúmeros educadores têm batalhado há décadas pelo
deficiência proporcionada pelos Planos de Educação Espe- direito irrestrito à Educação, entre eles, muitos têm lutado
cial não pode ser considerada expressiva: em 1974, eram pela Educação conjunta. Porém, dadas as angustiantes ex-
96.413 as pessoas com deficiência matriculadas, passando periências recentes, é comum ouvirmos o retorno da velha
a 102.268 em 1981 e a 159.325 em 1987. Além disso, o au- conhecida justificativa para a segregação: “lá, na instituição
tor evidencia que esse aumento não significou acréscimo de especializada, saberão o que fazer com ele. Aqui não temos
oferta de educação pública, dado que as matrículas na rede como dar conta”.
privada continuaram representando mais de 40% das vagas Tais experiências e seus efeitos sobre aqueles que
(pp. 118-120). defendem os direitos sociais e os valores democráticos cons-
Enfim, são significativamente diferentes aqueles que tituem importante aspecto a ser considerado pelos psicólogos
não correspondem ao padrão hegemônico – e abstrato – vi- comprometidos com a dimensão educacional dos processos
gente. É verdade que a empresa atual de inserir no texto da de constituição do sujeito humano, pois nos alertam sobre
lei a obrigatoriedade de pensarmos a escolarização de cada o risco presente na adesão irrefletida, hoje tão corrente, à
segmento populacional que cuidadosamente excluímos ao política de inclusão. Se, por um lado, sua difusão demonstra
longo da história de nossa Educação é um avanço sem pre- o reconhecimento do direito à Educação, por outro, é ne-
cedentes. Reconhecermos o direito, por parte da população cessário enfatizar a atenção para o gesto de reificação2 do
com diferenças significativas, à Educação é uma inegável humano, ao se pretender abarcar necessidades e condições
conquista. Estamos, enfim, reconhecendo a legitimidade do tão diversas sem uma crítica radical às condições concretas
direito: a escola pertence a todas e a todos. Mas hoje, pas- em que a vida humana se produz, reproduz e transforma. Daí
sado o momento do reconhecimento dessa legitimidade, já o imperativo de pensarmos as transformações na instituição
podemos ir além e perguntar: que socialização oferecemos escolar como condição sine qua non para o exercício efetivo
quando recebemos pessoas com deficiência em salas regu- do direito.
lares do modo como temos recebido, ou seja, sem transfor- Educação para/com todas e todos não pode significar
mações substantivas da escola? homogeneização das necessidades e dos serviços, sob risco
Como em todo processo social, elementos de regres- de tornar-se Educação para/com assujeitamento. Chama-
são também são facilmente percebidos. Estudos como os de mos atenção, agora, para outro aspecto do fenômeno que
Angelucci (2002, 2009), Pereira e Nascimento (2006) e Góes discutimos: há uma estreita relação entre a forma como con-
e Laplane (2004) dedicam-se a compreender a forma como a cebemos e realizamos um dos direitos sociais mais básicos
política de inclusão tem se concretizado, tanto no âmbito da e a produção de determinada subjetividade.
Educação Básica, quanto na Educação Infantil e de nível Su- Este trabalho é, portanto, um gesto – digamos em
perior. Tais pesquisas revelam que a Educação Inclusiva tem maior conformidade com nosso tema –, um sinal que pre-
sido essencial para a garantia de matrícula escolar de pes- tende contribuir com a resistência ao projeto globalizado de
soas significativamente diferentes, mas as condições estru- reificação hoje em vigor.
turais, curriculares e atitudinais que garantiriam permanência
e sucesso escolar ao alunado ainda estão longe de serem
ofertadas, posto que implicam transformações na própria 2 Entendemos, aqui, reificação no sentido adorniano, ou seja, como
lógica educacional, que deve partir do reconhecimento da supressão da heterogeneidade, do não idêntico, em nome de uma
diversidade humana e do caráter excludente da organização pretensa identidade dos sujeitos que são objetificados, sob o pretexto
do tempo, da apresentação dos conteúdos e da função da de necessidade de tratamento uniforme das pessoas (Horkheimer &
avaliação na escola. A partir destas considerações, entende- Adorno, 1985).
Contribuições da escola para a (de)formação dos sujeitos surdos * Carla Biancha Angelucci & Renato Dente Luz 37
Segundo as estatísticas oficiais, no Brasil, há 25 mi- de cada pessoa em particular, é um antidemocrata, até
lhões de pessoas com deficiência, sendo que cerca de 66 mil mesmo se as ideias que correspondem a seus desígnios são
são pessoas com perda auditiva. A respeito deste segmento difundidas no plano formal da democracia. (p. 141-2)
populacional, o Ministério da Educação registra 52.566 ma-
trículas, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior Neste sentido, a situação do aluno surdo é bastante
(SEESP/MEC, 2007). Comunidades organizadas em torno delicada. No Brasil, às divergências calorosamente debati-
da defesa de segmentos populacionais marcadamente des- das nos últimos quinze anos em torno de qual língua deve
respeitados, como os surdos, têm afirmado com convicção a ser utilizada na educação da pessoa surda (português oral e/
impossibilidade de escolarização conjunta. Alguns dos argu- ou Língua Brasileira de Sinais), somam-se, mais nos últimos
mentos: direito a uma língua integralmente acessível por meio dez anos, as questões referentes ao tipo de escola mais ade-
da experiência visual e utilizável enquanto real instrumento quada para este público com duas grandes fortes correntes:
de comunicação/diálogo, busca pela experiência subjetiva e a educação bilíngue para surdos e a escola inclusiva para
coletiva da perda auditiva enquanto um traço diferencial e todas e todos.
não demeritório, necessidade de construção e fortalecimento Para autores como Gonçalves Filho (1998) e Chaui
da identidade, entre outros. Assim, no caso desse segmen- (2001), a compreensão das manifestações da subjetividade
to populacional, a história da Educação revela a marca de contemporânea necessita de uma análise da situação atual
constantes impossibilidades de convivência com ouvintes, inserida em um processo histórico e social. Deste ponto de
sob pena de perder o direito à sua forma comunicacional vista, compreende-se uma indissociabilidade intrínseca en-
privilegiada, a língua de sinais, ou seja, sob pena de perder tre o indivíduo e seu ambiente – a cultura. Ao expandir tais
o direito à diferença e à construção coletiva, realizada pela conceitos e relacioná-los à psicanálise winnicottiana, temos
comunidade surda nas últimas décadas, de uma forma de que as possibilidades pessoais de manifestação genuína e
viver e organizar-se subjetivamente, incorporando a surdez criativa encontrariam no próprio ambiente o seu alimento e
como traço identitário. seu palco. Com isso, para que um desafio com o qual os
profissionais da educação têm-se deparado cada vez mais
Psicologia, Educação e a pessoa surda precoce frequentemente, qual seja, o da formação da pessoa surda,
possa ser compreendido de forma não simplista, há a ne-
[...] O defeito mais grave com que nos defrontamos cessidade de uma reflexão sobre as condições concretas e
atualmente consiste em que os homens não são aptos à historicamente construídas em torno deste público.
experiência, mas interpõem entre si mesmos e aquilo a ser A pessoa surda a ser entendida no presente texto é
experimentado aquela camada estereotipada a que é preciso aquela com uma perda auditiva bilateral significativa, majo-
se opor (Adorno, 2000, p. 148-9). ritariamente severa ou profunda, instaurada antes, durante
ou alguns anos após o seu nascimento. O foco recai sobre
Nos últimos anos, tem havido no Brasil um esforço pessoas com este tipo de perda por ser ela aspecto de signi-
governamental que visa permitir a existência de uma escola ficativo valor no modo de subjetivação destes indivíduos, ou
que, efetivamente, seja para todas e todos. No entanto, a seja, nestas situações a perda auditiva é fator determinante e
efetivação de tal política da igualdade de direitos pode tornar- a partir do qual o indivíduo irá relacionalmente estruturar seu
se reducionista e, consequentemente, desumanizadora, se psiquismo, não sendo um mero fator periférico/acessório.
não for capaz de atentar às diferentes expressões humanas Como perda orgânica, segundo Northern e Downs
advindas de uma diversidade maior do que a contemplada (1991), as deficiências auditivas severa e profunda são de
pelo termo “deficiente” ou qualquer outro termo generalista tal forma graves que impedem ou prejudicam significativa-
deste tipo. mente a aquisição da linguagem na modalidade oral-aural,
A partir desta primeira questão, cabe, portanto, para no caso do Brasil, a Língua Portuguesa falada. Para Sacks
além dos aspectos quantitativos e estatísticos do sucesso (1998), há um risco de tais pessoas permanecerem com
da inclusão educacional, pensar sobre a qualidade formati- sérias dificuldades de compreensão, pois a informação lin-
va que essa política deveria ter no que tange à constituição guística que a pessoa surda comumente tem acesso nestes
de cidadãos emancipados e críticos. Pensando a educação momentos encontra-se muitíssimo limitada. Ainda segundo
emancipatória, Adorno (2000) esboça a seguinte definição: este autor, tal tipo de dificuldade é “[...] uma das calamida-
des mais terríveis, porque é apenas por meio da língua que
A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a entramos plenamente em nosso estado e cultura humanos,
minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a que nos comunicamos livremente com nossos semelhantes,
assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos adquirimos e compartilhamos informações.” (p. 22). Caso
o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior, mas isso seja ignorado, “[...] ficaremos incapacitados e isolados,
também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja de um modo bizarro – sejam quais forem nossos desejos,
característica de coisa morta já foi mais do que destacada, esforços e capacidades inatas. E, de fato, podemos ser tão
mas a produção de uma consciência verdadeira. [...] Numa pouco capazes de realizar nossas capacidades intelectuais
democracia, quem defende ideais contrários à emancipação, que pareceremos deficientes mentais” (p. 22).
e, portanto, contrários à decisão consciente independente
38 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 35-44.
Durante a história, diferentes olhares e práticas inci- informação era empurrada para meus ouvidos. [...] O pai e
diram sobre as pessoas que se encontravam neste tipo de a mãe de Clark eram ambos surdos. Isto realmente teve um
situação. As propostas educacionais resultantes estrutura- efeito em mim já que eu sempre tive uma completa barreira
ram-se tanto pelas visões de homem/mundo presentes em linguística entre eu e o mundo adulto. [...] Eu frequentemente
determinada época quanto de pessoa surda (Botelho, 1998; ia para a casa de Clark depois daquilo e, através das
Souza, 1995). De ignorados passaram, a partir do século XVI conversas com a mãe e o pai de Clark, a minha confiança
até os dias de hoje, a ser objetos de salvação piedosa, ainda elevou-se. Era como se minha educação sobre o mundo
sem espaço ativo de opinião e deliberação. De alunos mini- estivesse finalmente começando, algo que a escola nunca
mamente educáveis por meio da alfabetização visual e de foi capaz de fazer3 (p.86-7).
um certo esforço para adquirir a língua oral, passaram a ser
reabilitáveis/tratáveis oralmente ou treináveis visualmente. Durante a década de 1990, o movimento político da
Neste tempo, houve o reconhecimento, em maior ou menor comunidade surda brasileira simpatizante da Língua Brasi-
grau, das chamadas línguas de sinais. leira de Sinais (Libras) ganhou força e reclamou com vee-
Mantendo o intuito de desvelar aquela camada este- mência pela legitimação da mesma, assim como por escolas
reotipada a que é preciso se opor, é importante destacar que, que oferecessem a Libras como idioma de instrução e ensi-
diferentemente das línguas de modalidade oro-aural como, nassem a Língua Portuguesa escrita como segunda língua.
por exemplo, o francês, o português ou o árabe, as línguas Foi somente em 2002 que a Libras foi legitimada como uma
de sinais possuem uma gramática distinta por serem de uma língua através da Lei Federal nº. 10.436 de 24 de abril. Se-
modalidade linguística espaço-visual, ou seja, são produzidas gundo esta lei:
no espaço por meio do movimento do corpo – com ênfase
nas expressões faciais e nas mãos – e captadas visualmente. Art. 1º. É reconhecida como meio legal de comunicação e
De fato, são idiomas usados por muitos surdos precoces por expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros
ser de fácil e rápida aquisição por estes e, também, por al- recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único.
gumas pessoas ouvintes em contatos com surdos precoces, Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a
podendo expressar, segundo Sacks (1998), quaisquer ideias forma de comunicação e expressão, em que o sistema
e sentimentos. Diferentemente de uma comum concepção linguístico de natureza visomotora, com estrutura gramatical
estereotipada, não são gestos puramente transparentes ou própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de
imitativos, mas línguas ricas em nuances e possibilidades, ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas
produzidas regionalmente, assim como foram as distintas lín- do Brasil.
guas orais. Em nosso país, o idioma visuoespacial utilizado
por boa parcela das pessoas surdas precoces é a Língua de Em seu segundo artigo, a mesma lei afirma que:
Sinais Brasileira (Libras). O grupo das línguas de sinais é
composto, segundo Sacks (1998), por: Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e
empresas concessionárias de serviços públicos, formas
[...] todas as linguagens de sinais nativas, passadas e institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua
presentes (por exemplo, a Língua Americana de Sinais, a Brasileira de Sinais – Libras como meio de comunicação
Francesa, a Chinesa, a Iídiche, a antiga Língua de Sinais objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do
do Condado de Kent). Excluem-se, porém, as formas Brasil.
sinalizadas de linguagens faladas (por exemplo, inglês
em sinais), que são meras transliterações e carecem da Justamente a fim de garantir a efetivação do aspecto
estrutura das línguas de sinais genuínas. (p. 9-10). multiplicativo da Libras e a regulamentação da Lei Federal
no. 10.436, entrou em vigor, em 22 de dezembro de 2005,
Durante a maior parte do século XX, no Brasil, a moda- o Decreto Federal nº. 5.626. Se, no aspecto social, há uma
lidade predominante na Educação de surdos foi a de escolas promessa de inserção da Libras no cotidiano social e educa-
especiais oralistas nas quais havia um esforço de transformar cional brasileiro, a realidade frequente das pessoas surdas
os alunos em pessoas adaptadas para a comunicação ma- ainda é definida por seus familiares e os profissionais – ou
joritária oral. Neste processo médico-educacional, tornou-se as políticas públicas – que discursam sobre a pessoa surda,
comum que as pessoas surdas pouco aprendessem, impli- mantendo-a na condição de objeto da ação de outrem, e
cando graves marcas emocionais e formativas (Luz, 2003). buscando muitas vezes ainda sua reabilitação orgânica. Em
A partir da década de 1990, muitos surdos, pelo mundo todo, outras palavras, a surdez precoce é, frequentemente, vista
começaram a relatar suas experiências educacionais como em nossa sociedade como uma marca demeritória, a qual
forma de denunciar uma visão estreita a respeito da pessoa leva ao olhar estigmatizante que atravessa negativamente a
surda. Como exemplo, Mason (1991) relata: própria constituição da pessoa surda. Segundo Gonçalves
Filho (1998, p. 49), “[..] se há algo de poderoso nos fatos de
Eu lembro de me sentir completamente fora de o que quer reificação é que, não apenas fazem funcionar como coisa
que estivesse acontecendo à minha volta na escola. Meus
olhos não estavam sendo usados para o seu potencial, e a 3 Tradução dos presentes autores.
Contribuições da escola para a (de)formação dos sujeitos surdos * Carla Biancha Angelucci & Renato Dente Luz 39
quem é humano, mas tendem a obscurecer a visão de que a voltado para a realização do trabalho manual. Mas a realida-
coisa ali, é na verdade um homem”.4 de atual mostra-nos a ausência até do conhecimento voltado
Pensando no aspecto educacional, se por um lado há para a técnica, para o pragmatismo. Patto (2000a) afirma que
toda uma complexa discussão sobre a língua mais efetiva grande parte do alunado, hoje, não tem sequer acesso àquilo
na instrução de pessoas surdas - e parece forte a possibili- a que Adorno chamou de semiformação.
dade emancipatória que a real aquisição da língua de sinais Há também aqueles que imputam ao ensino da su-
pode oferecer, apesar de não ser garantia certa de formação balternidade o caráter deformador da escolarização. Entre-
e saúde psíquica -, tem ganhado espaço, nos últimos dez tanto, no caso da educação de surdos, acompanhamos um
anos, toda uma rica proposta de uma sociedade menos se- processo mais radical: a experiência da dominação como o
gregacionista através da Educação Inclusiva. No entanto, há posicionamento do outro em um não lugar, porque, afinal, o
frequentes queixas de pais e alunos surdos, assim como da sujeito surdo, ao não se submeter ao padrão de comunica-
comunidade surda, sobre a garantia que esta proposta edu- ção via língua oral-aural, adquire o estigmatizante estatuto de
cacional oferece de uma primeira língua acessível à pessoa incapaz de comunicação e linguagem. Enfim, sua posição é
surda, já que esta criança chega à escola, na grande maioria a de quem está fora do universo humano.
das vezes, com sérias limitações comunicativas, fruto de uma
sociedade ainda excludente. Assim, um aspecto importante, O lugar com que precisamos sonhar
com sérias implicações na construção de políticas educa-
cionais adequadas a esta parcela da população, é sobre a Em uma perspectiva winnicottiana (Winnicott, 1975,
própria aquisição destas línguas. 2000), o encontro entre os homens é aquilo que constitui a
humanidade mesma. Os vários momentos pelos quais esse
A escola em que vivemos encontro passa, desde a relação cuidador/bebê até a mútua
dependência, podem ser demonstrativos do quanto o homem
Recuando em direção à história da Educação, princi- forja-se nas várias modalidades que a relação com o outro
palmente, à Educação destinada a pessoas surdas, a marca comporta. O tempo subjetivo e o tempo transicional revelam
que encontramos é a da segregação, da relação rápida e le- elementos do jogo de apresentação, manipulação e apro-
viana entre surdez e déficit cognitivo, o que justificaria, então, priação do mundo para que, enfim, possa-se compartilhar a
o predomínio do assistencialismo e de objetivos de formação experiência de estar no mundo com o outro.
de mão de obra pouco ou nada qualificada. Recuando em di- Esta psicanálise, portanto, trata dos processos de
reção à história da condição social de pessoas com deficiên- reconhecimento e não reconhecimento da humanidade em
cia, chegamos a situação muito semelhante: inferiorização, nós, por meio da experiência com o outro, que nos permite
humilhação dos sujeitos, que frequentemente ainda são vis- criar o que já está ali. Para isso, é necessário que nos identi-
tos como criaturas, ora tocadas por Deus, ora pelo demônio, fiquemos, que possamos sonhar que o outro diante de nós é
mas sempre fora do campo do humano (Amaral, 1994). um igual, é gente como a gente.
Gonçalves Filho (1998) relembra-nos uma lição de Si- Outro aspecto relevante no processo de constituição
mone Weil: quando não há possibilidade de nos reconhecer- da subjetividade refere-se à possibilidade de realização de
mos no campo social, em meio a outros homens, perdemos experiências e de acesso a objetos culturais a elas relacio-
nosso vínculo com o passado, o presente e o futuro; nosso nados; objetos que sejam significativos, que tenham sentido,
fazer torna-se algo em si, com a única função de garantir, mais do que tudo, que revelem a existência do humano no
por mais alguns momentos, a continuidade da reprodução mundo e que apóiem o sentimento de existência de cada
da vida abstrata. um de nós, com direito a passado e presente apoiando o ato
Tendo em vista a máxima freiriana (Freire, 2000) de de sonhar um futuro. Entre os objetos culturais, cabe des-
que não há a educação em si, mas que os homens educam- tacarmos os objetos étnicos e os objetos transicionais, que
se uns aos outros, em comunhão, uma possível contribuição são elementos fundantes desse sentimento (Safra, 2004).
da Psicologia seria atentar para o fenômeno do impedimento Os primeiros estão relacionados à história familiar do grupo
da realização dos objetivos educacionais, sua lógica, seus cultural a que pertence o sujeito, ou seja, apontam para o en-
sentidos, seus protagonistas. Não o tomar como unicamente troncamento das várias vidas humanas que se concretizam
psicológico, não decodificar, dividir ou sistematizar simples- nas inter-relações. Já os objetos transicionais apresentam-
mente, mas compreendê-lo em sua positividade. Não se trata se como a possibilidade de habitarmos o mundo: na medida
de defender uma educação igual para todas e todos, pelo em que se prestam a abrigar nossas produções imaginati-
contrário: trata-se de discutir, em conjunto, como garantir vas, permitem que tenhamos cada vez mais esperança na
igualmente o direito à Educação para o sujeito humano, to- interlocução entre o que necessitamos, desejamos e o que a
mado como necessariamente plural. cultura tem a nos ofertar.
E o que deforma na escola de hoje? Porém, quando acompanhamos a produção daqueles
Alguns afirmam ser o elitismo do saber, que acaba por que se debruçam sobre a questão da formação da identidade
destinar às massas um aprendizado técnico-instrumental, individual e grupal de pessoas surdas, encontramos, via de
regra, relatos de experiências de impedimento da possibilida-
4 Grifos do texto original. de de se reconhecer no outro e na cultura. Sua língua, suas
40 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 35-44.
formas expressivas de se comunicar, de produzir e reeditar encontrar na História os significados sociais para a marca da
sua compreensão de si e do mundo são raramente reconhe- surdez, sempre atravessada pelo estigma da incapacidade,
cidas como legítimas no meio científico. Sob um espectro de da inferioridade (Skliar, 1998).
argumentos que vai desde o rebaixamento da língua de sinais Finalmente, podemos pensar quais são os efeitos
a uma sucessão de gestos empobrecedores da comunicação para a pessoa surda propriamente. E, como toda experiência
até a preocupação com as dificuldades de interação com os escolar, os desdobramentos são variados, intensos e bastan-
sujeitos falantes da língua majoritária – o português, no nos- te complexos. O que destacamos como prioritário é, enfim,
so caso –, profissionais da saúde e da educação acabam a comunicação, por parte da escola, de um lugar para esse
por transmitir aos pais, mais ou menos conscientemente, a sujeito: um lugar em que ele tem acesso a uma forma de
ideia de que a pessoa surda está fora da comunicação, caso comunicação plena de sentidos e significados, bem como
não faça adesão à língua majoritária. Diferentemente do es- acesso à História, em que passado, presente e futuro podem
trangeiro, cuja língua forasteira, apesar de não conhecida, articular-se mediante ação reflexiva. De forma sintética, trata-
tem sua dignidade reconhecida, a pessoa surda, usuária da se de um lugar em que o sujeito experimenta o pertencimen-
Libras, ocupa o lugar de alguém sem língua, posto que ainda to, a viabilidade de sua existência, sem que sua condição
prevalece o não reconhecimento da legitimidade da língua de surdo tenha que ser negada. Tal possibilidade, do ponto
de sinais. Ao não considerar o direito à língua, ao não en- de vista winnicottiano (1975), é fundamental para o processo
tender o surdo como sujeito humano, contribuímos para um de humanização, posto que oferece esperança na interação
dos maiores sofrimentos de todos, segundo Weil (1996): o com os outros. O problema que pode derivar para a pessoa
de não ter reconhecida a legitimidade de seu sofrimento. E a surda é o sentimento de que apenas “lá”, na escola, entre
pessoa surda não tem a possibilidade de compreender que iguais, é que se pode existir.
está sendo impedida de fazer disso uma experiência. Tudo Inúmeros dos estudiosos aqui citados, como Bueno
acontece, mas não ganha caráter de experiência. (2004), Góes e Laplane (2004), Jannuzzi (2004) e Patto
Em uma perspectiva winnicottiana, Freller (1999) (2000a), sejam da Educação, sejam da Psicologia Esco-
entende a escola como elemento da cultura que constitui lar, têm apontado para o engodo presente na tentativa de
o humano em nós a partir de duas principais funções: “[...] compreensão dos fenômenos da Educação Especial sem
participar da instauração e ampliação do espaço potencial relacioná-los à política educacional como um todo. Ora, se
e apresentar materiais culturais relevantes, de forma que o a escolarização que se oferece às pessoas com deficiência
aluno possa se apropriar deles de forma criativa e singular, está remetida ao projeto de Educação em geral, é preciso,
preservando sua identidade pessoal e grupal.” (p. 195). A então, compreendermos quais são seus compromissos e
forma pela qual a escola tem contemplado o aluno surdo a como se concretizam na atual organização escolar. Tal pro-
ponto de permitir a sua apropriação efetiva do espaço escolar jeto de Educação é apenas uma das facetas do projeto de
enquanto um espaço potencial constitutivo de sua singula- sociedade hoje vigente, relacionado portanto, a valores e as-
ridade humana e o quanto tem oferecido instrumentos co- pirações intrinsecamente relacionados ao modo de produção
municativos reais para a apropriação dos materiais culturais capitalista. Trata-se de uma concepção que acaba por repor
relevantes são, certamente, algumas das questões centrais a exclusão, dado que não se baseia no compromisso de su-
ao se pensar o processo formacional da pessoa surda, tanto peração dos problemas substantivos do sistema educacional
do ponto de vista educacional quanto psíquico, afinal a iden- brasileiro – a formação dos profissionais da educação, suas
tidade de “escolar” compõe nossa subjetividade. condições de trabalho e sua remuneração – mas tão somen-
Nesse contexto, o papel da escola de surdos tem sido te na construção de competências e habilidades. Autores da
justamente o de proporcionar o sentimento, a experiência de Educação, da Psicologia e da Sociologia da Educação, em
um lugar possível no mundo, de uma identidade, com direito seus estudos, já revelaram que nosso sistema educacional,
a uma língua própria, que viabilize e sustente a construção que se articula a um projeto econômico-político, organiza-se
de um universo de trocas simbólicas, que tenha um fim em a partir de uma lógica que imputa ao indivíduo a responsabi-
si mesmo. Este mesmo fenômeno gera outros efeitos, ainda lidade por seu próprio percurso, sem questionar o mundo em
por se explorar. Passamos a apontar aqui apenas alguns que isso tudo acontece5.
possíveis eixos: O desafio de uma Educação Formativa para todas
Podemos pensar em efeitos junto aos pais, que veem e todos incide justamente neste ponto: a escola – regular
seu filho utilizar-se de uma outra língua, sentir-se perten- ou especializada – tal como hoje se organiza, não garante
cente a um outro espaço, com outros costumes e modos de o sentimento de pertencimento ao universo humano a nin-
significar a si e ao mundo. guém, basta que olhemos para os índices de desempenho
Há também que se pensar em quais têm sido os efei- escolar ou para o percentual de licenças-saúde por questões
tos para a escola. Para além de seu objetivo geral, que é o de relativas ao adoecimento psíquico de educadores. Mas, se
proporcionar o acesso ao conhecimento acumulado historica- quisermos conhecer esse fenômeno profunda e complexa-
mente, a escola vê-se diante da responsabilidade de ofertar mente, nada melhor que acompanharmos longamente a vida
a experiência de viabilidade para esse sujeito que, como já
afirmamos, vem constituindo-se como um “sem lugar”. E é 5 A esse respeito, podemos citar Azanha (1987), Patto (2000) e
também por meio da escolarização que esse sujeito terá que Gentili (2007).
Contribuições da escola para a (de)formação dos sujeitos surdos * Carla Biancha Angelucci & Renato Dente Luz 41
diária de alunos e educadores em uma escola pública, por No caso da população surda, pode não haver con-
exemplo, como bem já nos ensinou Patto (2000a). senso a respeito dos efeitos da escolarização em instituições
Há uma aparência de respeito às diferenças na for- inclusivas ou especializadas, mas sobre um aspecto não há
ma como está estruturada a política pública educacional de controvérsia: os profissionais da Educação, onde quer que
inclusão. Porém, na medida em que propõe que as pessoas trabalhem, precisam de liberdade para criar e recriar os es-
sejam atendidas em função das patologias que as diferen- paços e as estratégias de aprendizagem cuja finalidade seja
ciam umas das outras, outra face é evidenciada, qual seja, proporcionar aos educandos – e a si mesmos – experiências
a da desconsideração dos sujeitos concretos, que são irre- de relações mais horizontais com o outro, esteja ele marcado
dutíveis a um diagnóstico, a uma sintomatologia ou mesmo pela diferença linguística; sensorial; orgânica; de idade; de
a um traço psicossocial. Ao arrolar fragmentos de nossa hu- estilo cognitivo; de pertencimento étnico, religioso, cultural ou
manidade como indicativos de funcionamentos discrepantes socioeconômico. Aí, então, estaremos comprometidos genui-
em relação à norma abstrata, tal política acaba por reiterar namente com a construção de uma formação educacional
a possibilidade de um novo coletivo: o de anormais. Outras que possibilite ao sujeito o encontro com sua humanidade.
nomenclaturas podem ser utilizadas, como especiais, casos Fica a expectativa em torno da formação humani-
de inclusão e pessoas com necessidades especiais, mas a zadora de qualquer pessoa, inclusive a surda, e de que o
marca refere-se ao quanto tais fragmentos distam da norma- poder da reificação que marca nosso cotidiano não vá além
lidade. do obscurecimento do olhar, pois, segundo Gonçalves Filho
Educação para todas e todos, necessariamente, (1998, p. 49), “a visão do homem pelo homem – esta experi-
implica uma Educação em que o direito à língua seja re- ência de que diante do outro não nos encontramos diante de
conhecido, as especificidades tenham lugar. Posicionamo- matéria bruta ou de mero organismo – mantém seu caráter
nos, então, em nome de uma intervenção psicológica junto irredutível. Permanece latente. Em condições propícias, pode
aos fenômenos da escolarização que se comprometa com reavivar-se”.
a necessidade radical de se repensar a arquitetura, as re-
lações, a proposição, a organização das atividades etc.,
sempre garantindo a possibilidade de experiência entre os Referências
sujeitos. Trata-se, por isso, de uma intervenção consciente
e assumidamente política. Não há mais como endossarmos Adorno, T. W. (2000). Educação – para quê? Em T. W. Adorno,
uma prática educativa homogênea, seriada, classificatória, Educação e Emancipação (pp. 139-154). Rio de Janeiro: Paz e
compartimentada em salas de aula, regida por relações de Terra.
dominação entre profissionais administrativos, educadores,
familiares e alunos. Amaral, L. A. (1994). Conhecendo a Deficiência: em Companhia de
É urgente o trabalho conjunto, entre educadores, psi- Hércules. São Paulo: Robe.
cólogos, alunos e familiares, a fim de criarmos espaços de
aprendizagem que sejam plurais, podendo variar segundo o Angelucci, C. B. (2002). Uma Inclusão Nada Especial: apropriações
objetivo elaborado coletivamente. Temos acompanhado es- da política de inclusão de pessoas com necessidades especiais na
colas que se propõem a construir outros arranjos educativos, rede pública de educação fundamental do estado de São Paulo.
em que alunos de diferentes idades e com diferentes hipóte- Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de
ses sobre o conhecimento podem, a partir de um interesse São Paulo, São Paulo.
em comum, unir-se na investigação de um determinado tema.
Havendo outros objetivos em jogo, outros agrupamentos de Angelucci, C. B. (2009). O Educador e o Forasteiro: depoimentos
alunos e professores podem realizar-se. sobre encontros com pessoas significativamente diferentes. Tese
Nenhuma estrutura deve sobrepor-se às necessida- de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
des dos educandos, desde as escadas, passando pela frag- São Paulo.
mentação das disciplinas, até a organização em classes.
Uma importante contribuição da Psicologia pode estar Azanha, J. M. P. (1987). Alain ou a Pedagogia da Dificuldade. Em J.
na garantia de situações de encontro humano na instituição M. P. Azanha, Educação: alguns escritos. São Paulo: Nacional.
escolar, procurando, sempre, evidenciar o reconhecimento
da diferença que, se não for traumático, leva a estranhamen- Botelho, P. (1998) Segredos e silêncios da educação dos surdos. Belo
to. É necessário que, diante dessas situações de convivência Horizonte: Autêntica.
com diferentes pessoas, possamos perguntar: Quem é esse
que se apresenta a mim? De onde vem? Como é? Tais ques- Bisol, C. A., Simioni, J., & Sperb, T. (2008). Contribuições da
tões só podem ser examinadas a partir do estabelecimento psicologia Brasileira para o estudo da surdez. Psicol. Reflex. Crit.
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pela negação da alteridade e do incômodo, mas justamente http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
pela sua consideração, que abre possibilidades de reflexão 79722008000300007&lng=pt&nrm=iso
sobre a nossa própria identidade e sobre a diversidade de
formas presentes na humanidade.
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Sobre os autores
Correspondência
Carla Biancha Angelucci
Rua da Consolação, 930, prédio 38
CEP 01302-907 - Consolação - São Paulo - SP
44 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 35-44.
Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a
mediação no desenvolvimento de competências dos
educadores sociais
Resumo
Discutir as possibilidades de atuação da Psicologia Escolar nos contextos de educação não-formal se constitui tema de reflexão atual. As
Organizações Não-Governamentais (ONG’s) surgem no cenário do Terceiro Setor como nova esfera social que aproxima a sociedade civil
das demandas sociais e, no caso, daquelas provenientes do campo educacional. Nesta conjuntura, surgem os educadores sociais com perfil
profissional ainda pouco definido e preparado para os desafios cotidianos dos espaços de combate à exclusão social. Esse artigo irá abordar
sobre a relevância da formação continuada dos educadores sociais, a partir da mediação do psicólogo escolar, com base nos pressupostos
teórico-conceituais da psicologia histórico-cultural. Inicialmente, serão discutidas as primeiras relações da Psicologia e Educação no Brasil;
seguidamente, se discorrerá sobre a instauração de ONG’s educativas no país, sinalizando para a emergência da profissão educador social; por
fim, abordar-se-á sobre a mediação do psicólogo escolar para o desenvolvimento de competências dos educadores sociais.
Palavras-chave: Psicologia escolar, organizações não-governamentais, educadores.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 45-54. 45
Introdução dalidades de ensino, favorecendo ao psicólogo uma atuação
mais presente na escola (Campos & Jucá, 2003; Cruces,
2003; Guzzo & Wechsler, 2001). Nessa época, emergia um
Psicologia e Educação no Brasil: Breve Histórico perfil profissional da psicologia escolar pouco definido, que
Sobre as Articulações Iniciais buscava atender à concepção individualista de fracasso
escolar e estava associado às tendências psicométrica, ex-
A história da Psicologia no Brasil tem sido associada perimental e tecnicista balizadas pelos padrões positivistas
às diversas transformações paradigmáticas, cujas mudanças (Marinho-Araujo & Almeida, 2005a).
refletiram um perfil profissional pouco definido e associado a González Rey (2003, 2004) afirma, ainda, que a psi-
padrões tradicionalistas de atuação desenvolvidos em outros cologia esteve por bastante tempo arraigada a um modelo
países. Os marcos históricos que se associam ao percurso positivista, muito embora começassem a surgir, no início do
dessa área trilharam caminhos bastante específicos às per- século XX, outras alternativas epistemológicas que supe-
tinências sociais e históricas da época, especialmente em rassem a padronização, a medição e a universalidade das
sua inserção no país na década de 50, quando surgiram os questões estudadas. Conforme esse autor, a psicologia
primeiros cursos de graduação na área psicológica. estava basicamente voltada para o método e fundamentada
A chegada da Psicologia no Brasil deu-se na passa- em comportamentos individuais, o que desencadeou o sur-
gem dos séculos XIX – XX, acompanhada de estudos efetu- gimento de duas vertentes: a experimental e a psicométrica.
ados na Medicina e na Pedagogia. Mais especificamente, foi Com base nessa nuance, a Psicologia Escolar adotou uma
na década de 60 que a área adquiriu o status de reconhe- postura clínica na escola, inspirada no modelo biomédico que
cimento profissional. A Lei 4.119 instituiu o ensino superior fora desenvolvido a partir de fundamentações teóricas natu-
da Psicologia e a regulamentação da profissão de psicólogo, ralistas e médicas sobre as questões sociais, apropriando-
bem como a consolidação da área da Psicologia Escolar se rapidamente dos fenômenos anormais como seu objeto
como um dos campos de atuação. de estudo (as dificuldades e transtornos de aprendizagem
Desde seus primórdios, a Psicologia esteve associa- configuravam-se no rol das taxonomias).
da à Educação e vem acompanhando mudanças epistemo- As primeiras articulações entre a Psicologia e a Edu-
lógicas que a balizam para distintas fundamentações teórico- cação desencadearam uma visão associacionista e meca-
metodológicas em sua práxis. As articulações iniciais entre a nicista do processo de ensino e aprendizagem, reforçando
Psicologia e a Educação constituíram-se como desarmônicas, concepções deterministas e dicotômicas acerca da aprendi-
sendo associadas a concepções reducionistas e determinis- zagem e do desenvolvimento humano. Por um lado, existiam
tas sobre o desenvolvimento humano que caminharam lado as teorias que se baseavam em concepções ambientalistas
a lado de uma postura profissional normatizadora, tecnicista do desenvolvimento, as quais concebiam a influência unidire-
e elitista, sob a forma de um modelo clínico de intervenção cional de fatores externos para os internos; de outro lado, as
escolar (Antunes, 2003; Cruces, 2003; Marinho-Araujo & Al- teorias subsidiadas pelas concepções inatistas enfatizavam
meida, 2005a, Patto, 1999). a preponderância dos fatores internos sobre os externos e
A relação constituída historicamente entre a Psicolo- sugeriam que o desenvolvimento humano constituía-se por
gia e a Educação manteve-se distante de assumir uma forma processos de caráter universal.
harmônica e simétrica na tentativa de atender às demandas Nesse contexto, viam-se práticas educacionais im-
do contexto educacional. Todavia, há que se considerar que pregnadas de ações que “selavam destinos” (Patto, 1999)
esses “encontros e desencontros”, tal como nos evidencia em virtude de concepções que ora atribuíam as causas das
Lima (1990), faziam parte de uma configuração social e queixas escolares (entendidas como problemas de apren-
histórica próprias das categorias profissionais, as quais se dizagem e de comportamento) ao aluno, ora ao ambiente
assentavam em uma visão de homem e de mundo alinhados social/familiar (Neves & Almeida, 1996, 2003; Patto, 1999;
aos paradigmas vigentes da época. Weiss, 2003).
De um lado, a Psicologia buscava o reconhecimento Essas distintas fundamentações ditaram as vias prá-
mais consolidado social e cientificamente, aderindo, portan- tico-interventivas da Psicologia Escolar e foram apropriadas
to, a algumas características pertinentes à ciência moderna, pela Educação no intuito de responder às demandas do con-
que emergiu na busca de uma compreensão pautada em texto educacional, refletindo-se, sobremaneira, nos modelos
outros paradigmas não coadunados ao idealismo (Lima, pedagógicos adotados à época. Uma das consequências
1990; Tanamachi, 2000). Logo, as perspectivas positivista e negativas dessa relação foi que os atores da escola estabe-
empírica tornaram-se predominantes na ciência e, também, leciam uma noção causal e reducionista acerca das queixas
nas teorias psicológicas que fundamentavam a atuação da escolares, atribuindo ora ao aluno, ora ao ambiente social, o
Psicologia Escolar, cujo intuito maior era o de aderir a um ensejo de sua origem.
status científico de acordo com as exigências da época. No decorrer do percurso da atuação psicológica no
No cenário nacional, foi na década de 60 que surgiu contexto educativo, muitas críticas foram sendo colocadas
maior demanda de serviço por atendimento a alunos com sobre a forma de atuação do psicólogo escolar, principalmen-
queixas escolares, decorrente, entre outros fatores, da am- te com relação a tais modelos de compreensão das queixas
pliação do sistema educacional no Brasil em diversas mo- escolares (Collares & Moysés, 1992, 1996; Neves & Almeida,
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1996, 2003; Patto, 1999; Souza, 2004; Weiss, 2003). Os re- psicológico humano, e tem como um de seus principais re-
sultados das avaliações dessas queixas estavam subsidiados presentantes Lev Vygotsky (1896-1934).
naqueles paradigmas e se fizeram refletir nos laudos psicoló- A teoria vygotskiana vem agregando grandes contri-
gicos com rótulos e estigmas aos alunos e/ou suas famílias. buições teóricas e conceituais que alicerçam o trabalho da
Além disso, essa proposta de intervenção da Psicologia Psicologia Escolar, especialmente por defender que o desen-
Escolar mostrava-se pouco útil tanto à prática pedagógica volvimento humano ocorre a partir dos processos de media-
quanto ao sujeito encaminhado com queixa escolar (Souza, ção simbólica, os quais são desencadeados pelas ricas trocas
2004). Ao contrário, como enfatiza Patto (1999), esses mo- de experiências entre sujeitos nas relações em sociedade. As
delos de avaliação serviram para um processo excludente, competências tipicamente humanas são subsidiadas pelas
próprio de um sistema de produção capitalista, denunciando, atividades em sociedade e surgem pela mediação de instru-
inclusive, o caráter elitista a que essa atuação profissional mentos de natureza concreta e simbólica. Esses instrumen-
pôde (e ainda pode) estar a serviço. tos são desenvolvidos historicamente e estão continuamente
A partir dessa proposição inicial de atuação da Psico- presentes no contexto cultural no qual determinados sujeitos
logia Escolar, havia uma contribuição inócua diante das reais estão inseridos. A concepção de homem, nessa perspectiva,
demandas dos atores envolvidos no processo de ensino e parte da ideia de que as funções psicológicas superiores
aprendizagem De um lado, a adoção de um modelo clínico constituem-se a partir das relações sociais estabelecidas nos
de atuação às dificuldades de aprendizagem provocou uma contextos histórico-culturais (Vygotsky, 1998, 2000, 2004).
atribuição ao próprio aluno acerca da culpabilização por seu Nessa direção, os processos de atuação em Psicolo-
fracasso, a partir de análises realizadas sob medidas psico- gia Escolar podem ser revistos à luz da teoria histórico-cul-
métricas, sem a consideração de fatores contextuais. Por tural da Psicologia do Desenvolvimento e, assim, planejados
outro lado, a relação estabelecida com os educadores não com intencionalidade para uma proposição de atuação com
atendia à demanda real, no que tange à orientação pedagó- foco nas relações desenvolvidas no seio das instituições
gica direcionada aos problemas desenvolvidos no contexto sociais. Neste artigo, defende-se que a Psicologia Escolar
da escola. deve atuar em contextos educativos formais e não formais
Diante da insuficiência do modelo vigente, a Psicolo- junto aos seus atores, especialmente no que concerne às
gia Escolar desencadeou uma crítica interna à sua forma de demandas contemporâneas de formação dos educadores
atuação e vem, nas últimas décadas, ampliando tais pers- sociais através de processos de mediação planejados pelo
pectivas. Formas de intervenção em uma dimensão institu- psicólogo escolar.
cional, com foco nas relações intersubjetivas desenvolvidas Atualmente, o psicólogo escolar tem se defrontado
no contexto educacional e voltadas, especialmente, para o com diversos desafios em espaços educacionais diferencia-
apoio ao processo de ensino e aprendizagem vêm sendo dos que convidam à inovação e ampliação de sua formação
consideradas estratégias privilegiadas em Psicologia Escolar (Caro e Guzzo, 2004; Carvalho, 2007; Correia e Campos,
(Marinho-Araujo & Almeida, 2005a, 2005b; Neves & Almei- 2004; Dadico, 2003; Soares, 2008). A constituição de contex-
da, 2003). Além disso, essa área não é mais compreendida tos de atuação desta área está sendo revista e ressignificada
como mera aplicabilidade da Psicologia ao contexto educati- em função das várias configurações institucionais sobre as
vo, mas um campo de atuação, pesquisa e produção de co- quais o homem organiza sua vida em sociedade, principal-
nhecimento pertinente nos mais diversificados contextos de mente diante das emergências de problemas sociais que
práticas educativas (Marinho-Araujo, 2003; Marinho-Araujo & dela afloram.
Almeida, 2005a; Mitjáns-Martínez, 2008). O Terceiro Setor vem se concretizando como um dos
Diante desse contexto, outras possibilidades de atu- espaços de surgimento das instituições educativas diferen-
ação da Psicologia Escolar foram emergindo, principalmente ciadas, para o exercício de práticas da educação formal e não
no que tange às intervenções realizadas junto ao corpo do- formal. Na sociedade hodierna, eis que se abre um contexto
cente em prol da melhoria do processo de ensino e aprendi- fértil para a contribuição de atuação da Psicologia Escolar.
zagem. O que se defende, neste artigo, é que os psicólogos Com base na premissa de que os espaços institucio-
escolares devem privilegiar uma atuação que contribua para nalizados para práticas educativas são contextos ricos para
a otimização das relações sociais da instituição com base o desenvolvimento humano, irá se discorrer, a seguir, sobre
na mediação da Psicologia junto aos educadores, a fim de a emergência de instituições de ensino de Terceiro Setor que
que se promovam processos de conscientização nesses se instauram na contemporaneidade e que convidam a uma
atores (Guzzo, 2005; Marinho-Araujo & Almeida, 2005a; atuação emergente em Psicologia Escolar.
Mitjáns-Martínez, 2008). Para esse enfoque, defende-se que
as proposições teórico-conceituais da abordagem histórico- Terceiro Setor e Psicologia Escolar: Possibilidades
cultural da Psicologia do Desenvolvimento, com foco no e Desafios
desenvolvimento humano adulto, são ricos aportes teórico-
metodológicos de atuação em Psicologia Escolar. Com o movimento da globalização e a pós-moderni-
A perspectiva Histórico-Cultural é uma das aborda- dade, o panorama das organizações sociais no contexto na-
gens teóricas que vem ganhando espaço na Psicologia, con- cional vem tomando formas que se direcionam para diversas
tribuindo para uma nova compreensão do desenvolvimento configurações institucionalizadas. Dentre elas, os contextos
Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a mediação no desenvolvimento de competências... * Pollianna Galvão Soares & Claisy Maria Marinho Araujo 47
educativos também vêm trazendo peculiaridades às ativida- compreensões diferenciadas nos campos de discussão des-
des pedagógicas e, por conseguinte, demandas por perfis se conhecimento.
profissionais específicos de atuação.
Nas últimas décadas, as Organizações da Sociedade É essa dupla determinação que faz com que, na literatura,
Civil (OSCs) vêm ganhando espaço entre os setores públi- convivam distintas análises sobre a natureza dessa nova
co e privado, concretizando-se como nova forma de orga- esfera pública não estatal e o significado das políticas de
nização social que permite aproximação entre os cidadãos parceria. Esses diferentes posicionamentos poderiam ser
e a esfera pública em prol da garantia do atendimento aos sintetizados como respostas às seguintes indagações: qual
direitos sociais básicos e do combate à exclusão social. Con- o verdadeiro objetivo do terceiro setor - lócus de atuação das
forme Szazi (2006), tem se observado, nas últimas décadas, ONGs: apaziguar os conflitos sociais gerados pelo aumento
que as transformações no mercado e na sociedade brasileira da desigualdade aprofundada pelas políticas neoliberais ou
conduziram a um reposicionamento do papel do Estado e buscar integrar os excluídos na vida social e política? Quais
ao fortalecimento da sociedade civil organizada a partir da as possibilidades inscritas na ação política realizada nesses
emersão do Terceiro Setor, tendo em vista o alcance do bem espaços: subordinação político-ideológica ou constituição de
comum através da defesa pela seguridade dos princípios espaços democráticos de publicização dos conflitos sociais?
previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e (Deluiz e cols., 2003, p.3)
na Constituição da República Federativa do Brasil.
Diversos tipos de organizações dessa nova esfera Assumir essas tendências de interpretação da reali-
social, como as associações, as fundações, as cooperativas dade social como meramente dicotômicas, ante a emersão
e outras formas sem fins lucrativos, são comumente conheci- do Terceiro Setor, sugere um distanciamento da complexida-
das como Organizações Não governamentais (Roesch, 2002) de intrínseca aos fenômenos sociais e uma tendência a um
e têm contribuído, no cenário nacional, para a avaliação das posicionamento ideológico considerado como mais “correto”,
demandas sociais e mobilização dos sujeitos locais para a sob risco de não se conceber a possibilidade de mecanismos
luta e garantia dos direitos civis. sociais outros que atenuem as demandas alarmantes da
Se antes caberia somente ao Estado (primeiro setor) a sociedade. Salienta-se a necessidade das instâncias gover-
responsabilidade pela proteção e garantia dos direitos civis e, namentais e não governamentais mostrarem-se cientes de
por outro lado, à esfera privada (segundo setor) a geração de suas funções e responsabilidades sociais, mas, em nenhuma
tributos fiscais e emprego, a ineficiência de uma organização delas, está garantida a eficácia total de sua missão na so-
social centrada no governo criou mote para transformações ciedade diante da complexa, instável e peculiar conjuntura
na sociedade brasileira. Assim, o Terceiro Setor surge como socioeconômica que assiste a inúmeras transformações, de
novo ator social pela constituição de organizações oriundas cunho organizacional e ideológico, na história política de nos-
da própria sociedade civil (Deluiz, Gonzalez, & Pinheiro, so país e do mundo.
2003; Szazi, 2006). A visão que se adota neste trabalho corrobora a
A emersão de um novo setor também recebeu críticas compreensão de que as ações governamentais deveriam
sobre o estigma assistencialista gerado e que serviu para ser mais atuantes e eficientes, pois, conforme a Constituição
“camuflar” verdadeiros problemas sociais típicos de uma so- Federal em seu artigo 3º, o Estado afirma que se constituem
ciedade de economia capitalista subdesenvolvida. Uma vez como seus objetivos fundamentais: “construir uma sociedade
que o Estado não cumpre e nem garante adequadamente os livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional;
direitos sociais, distribui seu poder para amenizar o impacto erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual-
de políticas voltadas para o ajuste econômico que aflige as dades sociais e regionais” (Brasil, 1988).
camadas populares. Diante da falta de eficácia das ações desse Estado
O que vem se observando, nos últimos governos, é que em prover os direitos civis básicos, como saúde e educação,
o Estado tem privilegiado políticas econômicas voltadas para vê-se a importância em se desenvolver vias de ação social
as empresas de capital. Como exemplo, somente no ano de que contribuam para a amenização dos problemas sociais,
2004 foram liberados R$ 4,1 bilhões para oito transnacionais desde que seus objetivos e princípios sejam devidamente
e R$ 6,2 bilhões para 5 milhões de pequenos agricultores1. cumpridos. Compreende-se que os espaços institucionaliza-
Empresas aéreas e os bancos também são os alvos privi- dos pelo Terceiro Setor possam ser caminhos mais imediatos
legiados pelo apoio estatal, sob uma lógica de governança para a sociedade civil, perante a falta de preparo do setor
que investe na estabilização do mercado econômico e um público no atendimento às inúmeras demandas sociais. Ao
afinamento de verbas destinadas às demandas sociais mais mesmo tempo, as instituições de natureza não governamen-
elementares, em detrimento da seguridade anunciada pelo tal devem estar comprometidas à ideia de luta pela garantia
Estado de Bem Estar Social. dos direitos civis e combate à exclusão social, com ênfase
Conforme Deluiz e cols. (2003), tal ambiguidade de no desenvolvimento da emancipação dos sujeitos atendidos,
concepções sobre a instauração do Terceiro Setor leva a sobrepondo a visão assistencialista e missionária.
No Brasil, diversas ações e projetos sociais dessa
1 Informações divulgadas no site http://www.midiaindependente. natureza tiveram significativa emergência a partir da década
org/pt/blue/2005/11/339687.shtml de 70 (Oliveira & Haddad, 2001; Roesch, 2002; Szazi, 2006).
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Várias áreas, como a educação, saúde, meio ambiente, tra- consideravam como o “aparelho ideológico do Estado”. Em
balho, entre outras, foram constituindo-se como alvo dessas meio a um clima revolucionário e à falta de alternância de
ações não governamentais que trouxeram para si a respon- propostas teóricas no meio acadêmico para a interpretação
sabilidade social em virtude da incansável espera do papel da realidade educacional (Deluiz e cols., 2003), as ONGs de
do Estado em solucionar as necessidades dessas esferas, o natureza religiosa passaram a se dedicar quase que exclu-
que possibilitou a geração de ações de cooperativas, sindica- sivamente aos movimentos de lutas sociais, não possuindo
tos, associações, fundações, entre outras (Szazi, 2006). significativa visibilidade pública por serem desenvolvidas em
Compreendendo o Terceiro Setor como espaço social pequenas ações sociais, atuando sob as limitações impostas
para o desenvolvimento de Organizações Não governamen- pela censura e repressão da ditadura militar (Oliveira & Ha-
tais, apresentar-se-á, a seguir, um breve histórico do sur- ddad, 2001).
gimento de instituições educativas em contextos de ONGs Já nas décadas de 70 e 80, as Organizações Não
no Brasil, demarcando-os como cenários contemporâneos governamentais começaram a atuar mais incisivamente
de “possibilidades e desafios” para a atuação da Psicologia atreladas à educação formal e se desvinculavam mais dos
Escolar. propósitos iniciais da Igreja Católica (Deluiz e cols., 2003).
Nessa época, o foco tornava-se um pouco menos desprovido
ONGs: A Emersão de Contextos Educativos de cunho militante e direcionava-se para o atendimento mais
Diferenciados direto das demandas sociais de educação, advindas da es-
cassez de oferta de vagas nas escolas públicas.
As Organizações Não governamentais (ONGs) sur- Na década seguinte, observou-se um enorme avanço
gem como uma classe especial das “Organizações da So- de instituições educativas de Terceiro Setor, principalmente a
ciedade Civil” (OSCs) e, dentro do terreno do Terceiro Setor, partir da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
estão associadas a movimentos sociais de luta pela garantia nal), Lei de nº 9.394/1996, pela qual se estabelece abertura
dos direitos civis e combate à exclusão social (Montãno, legal de instituições organizadas pela sociedade civil. Logo
2002; Oliveira & Haddad, 2001; Roesch, 2002). em seu artigo primeiro, a legislação enfatiza que a educação
Esse termo surge no cenário do Terceiro Setor como “abrange os processos formativos que se desenvolvem na
elemento distinto de implementação de determinadas ações vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas insti-
da sociedade civil, cujo desenvolvimento constitui-se sob tuições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e or-
a égide de uma proposta de democratização das políticas ganizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”
públicas. No Brasil, o uso dessa terminologia ganha ênfase (Brasil, 1996).
a partir da Conferência Mundial das Nações Unidas, mais Percebe-se que, desde o princípio da institucionaliza-
conhecida como ECO-92 (Deluiz e cols., 2003; Oliveira & ção do Terceiro Setor, sempre existiu uma vinculação relacio-
Haddad, 2001). nada à área educacional, cujas ações não governamentais
De acordo com Oliveira e Haddad (2001), foram nas pretendiam minimizar as desigualdades sociais e a dificul-
décadas de 60 e 70 que os setores da Igreja, dos partidos dade de acesso aos bancos escolares através de medidas
políticos e das Universidades firmaram um conjunto de pe- primárias e/ou compensatórias.
quenas Organizações Não governamentais. A finalidade era No decorrer dessas décadas, esses contextos edu-
desenvolver um trabalho social em benefício dos segmentos cativos adquiriram formas particulares de caracterização das
mais carentes da população. Essa ação foi desencadeada, atividades desenvolvidas em virtude das configurações so-
principalmente, pelas consequências da intervenção da dita- ciais, econômicas e políticas, distinguindo-se do contexto da
dura para a manutenção do status quo social que imperava escola formal, mas adotando formas semelhantes de acom-
na década de 60. panhamento pedagógico. Visando atender às necessidades
A atuação da Igreja Católica, especialmente após o educacionais, com foco em um assistencialismo oriundo
golpe militar de 64, teve destaque pelo número de ações das lacunas existentes na educação básica, tais instituições
dessa natureza, em virtude de ter sido considerada um alvo passaram a desenvolver atividades de cunho pedagógico
menos cobiçado pelo regime militar, embora ainda operasse diferenciado do contexto oficial de ensino.
sob restrições impostas pela censura vigente. Suas ativida- Nesse movimento histórico de constituição das insti-
des estavam voltadas, principalmente, para a defesa dos tuições educativas não governamentais, a tônica direcionou-
direitos humanos e a educação popular, com foco no de- se para os espaços de educação não formal, que demandam
senvolvimento de ações destinadas aos grupos populares. o desenvolvimento de práticas educativas específicas a es-
O trabalho educacional tinha como ênfase a perspectiva da ses contextos. Por se entender que a escola não é a única
Teologia da Libertação e se constituía nas Comunidades via institucional de ações educacionais, as chamadas orga-
Eclesiais de Base por meio dos grupos de ação pastoral (Oli- nizações de educação não formal similarmente sistematizam
veira & Haddad, 2001). suas atividades, porém com objetivos distintos e próprios a
O surgimento das ONGs educativas nesse período esses espaços (Romans, Petrus & Trilla, 2000/2003).
de pós-golpe não estava coadunado aos ideais da escola- A abertura social desse novo terreno educativo trouxe,
rização oficial. A escola era compreendida pela perspectiva em seu bojo, a profissionalização daqueles que se envolvem
dos críticos reprodutivistas da sociologia da educação que a em programas e projetos sociais direcionados para as cama-
Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a mediação no desenvolvimento de competências... * Pollianna Galvão Soares & Claisy Maria Marinho Araujo 49
das mais populares. São conhecidos, na literatura da área é a assessoria ao trabalho docente (Marinho-Araujo & Almei-
da Educação, como educadores sociais e, no Brasil, não se da, 2005a). Essa proposição dá ênfase aos processos de
tem dado devida importância para estudos voltados a esse mediação estabelecidos nas relações sociais dos contextos
profissional diante da sua significativa responsabilidade com educativos não formais e destaca a atuação da Psicologia
a população que atua, bem como sua relevância ideológica como foco institucional como estratégia privilegiada ao de-
e política no cenário nacional. Alguns estudos recentes sobre senvolvimento humano adulto.
Psicologia Escolar em espaços de ONGs têm sinalizado para A Psicologia Escolar encontra um desafio maior quan-
a carência em investimento na formação continuada específi- do direcionada a contextos educativos não formais, como
ca para os educadores que atuam em contextos de educação as Organizações Não governamentais (ONGs). Conforme
não formal e que é necessário voltar uma atenção maior aos sinalizado anteriormente, o educador que se encontra nos
profissionais que estão envolvidos com causas públicas de contextos da educação não formal tem sido pouco estudado
combate à exclusão social (Carvalho, 2007; Dadico, 2003; e desvalorizado diante da missão social dessa profissão e,
Soares, 2008). consequentemente, da sua relevância no cenário nacional.
Surgido em meio a essas emergências da sociedade Diante disto, enfatiza-se que a Psicologia Escolar,
civil, o educador social ainda tem um perfil profissional pou- enquanto área de atuação e produção de conhecimento já
co definido, principalmente em virtude da falta de formação consolidada na instituição escolar formal, possa contribuir,
adequada, tanto inicial como continuada, para o exercício também, nos contextos de educação não formal junto aos
competente de sua atuação. Conforme Caro e Guzzo (2004) educadores sociais, especialmente para a compreensão
das atribuições, funções, responsabilidades, papéis e perfil
Muitas vezes, observam-se inadequações de educadores desses profissionais. Para isso, há que se compreender as
bem intencionados, pela falta de formação, de apoio e características institucionais deste novo cenário social onde
até de uma orientação por parte de profissionais das emergem as atividades educativas.
diversas áreas de desenvolvimento. Infelizmente, hoje, as A literatura da área educacional tem sinalizado a dis-
universidades estão ainda longe dos reais problemas sociais, tinção entre a educação informal, própria do contexto familiar
o que impossibilita a grande colaboração de estudiosos na e dos meios de comunicação, a educação formal e a não for-
transformação social (p. 16). mal, as quais, por sua vez, pressupõem objetivos explícitos
de aprendizagem ou formação (Romans e cols., 2000/2003).
Diante desse desafio, entende-se que a área da Nesse sentido, as ONGs surgem com propósitos específicos
Psicologia Escolar pode trazer contribuições aos espaços de acompanhamento pedagógico a alunos advindos da edu-
educativos não formais e, entre as suas possibilidades de cação formal, configurando-se, portanto, como um espaço
atuação, destaca-se a emergência de ações que auxiliem no não formal de educação.
desenvolvimento e consolidação da identidade profissional A indefinição das competências esperadas do educa-
do educador social. dor social nas instituições educativas não formais reflete a
Nesse sentido, considera-se que a atuação da falta de clareza da própria natureza e filosofia institucionais
Psicologia Escolar, pela fundamentação da perspectiva ante a sua constituição histórica e social, especialmente no
histórico-cultural, deve estar voltada para a mediação do de- Brasil. A educação não formal surge no cenário nacional
senvolvimento humano adulto na elaboração de processos como mecanismo institucionalizado que visa prover atendi-
formativos que desenvolvam as competências necessárias à mento àqueles que estão sendo excluídos dos seus direitos
especificidade da prática educacional em contexto de ONG. básicos, especialmente os relacionados ao acesso e qualida-
Para isso, é importante que a Psicologia Escolar compreen- de de sua formação educativa. Diante da falta de qualidade
da o perfil de educador social esperado ao pleno exercício e dificuldade de ingresso aos bancos escolares, a sociedade
profissional nesse novo cenário (Soares, 2008). requereu vias de complementação educacional. Os espa-
A seguir, será apresentada uma breve discussão so- ços não formais de educação não se configuram, portanto,
bre as possibilidades e desafios de atuação profissional da como substituição da instituição escolar, tampouco possuem
Psicologia Escolar que possam contribuir para a formação caráter exclusivamente assistencialista. Sua atribuição e res-
profissional do educador social. ponsabilidade social direcionam-se ao desenvolvimento de
sujeitos críticos e conscientes de si ante uma sociedade que,
Psicologia Escolar e a Mediação de Competências por natureza, os exclui.
em Educadores Sociais Essas instituições, a depender da sua história, mis-
são e filosofia, promovem distintos direcionamentos no que
Diante das diversas possibilidades de atuação e in- tange às suas práticas pedagógicas; por isso, é necessário
tervenção da Psicologia Escolar, destaca-se, neste artigo, a se pensar na preparação adequada dos profissionais que
mediação de competências dos educadores sociais que sur- atuam nesses espaços em prol da constituição de um perfil
gem em um novo cenário institucional de combate à exclusão profissional mais claro, consolidado e coadunado à sua mis-
social. são social.
Uma das propostas que tem sido defendida como Embora haja boa intencionalidade na instauração des-
atuação relevante da Psicologia nos espaços educacionais ses espaços, é nítida a falta de preparo dos profissionais que
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chegam a essas instituições (Caro & Guzzo 2004; Romans e tão diretamente relacionados ao uso dos signos e explicam a
cols., 2000/2003; Soares, 2008). Os educadores sociais, em gênese do desenvolvimento humano.
geral, não passaram por nenhum processo formativo em que A partir desses pressupostos, a atuação da Psicologia
desenvolvessem competências específicas a uma atuação Escolar pode voltar-se para o desenvolvimento de competên-
crítica e autônoma e que os levem a atuar com segurança e cias dos educadores sociais por meio dos inúmeros e ricos
clareza de suas atribuições e responsabilidades. De acordo processos de mediação simbólica intrínsecos às situações de
com Caro e Guzzo (2004), os educadores sociais “chegam trabalho dos espaços de educação não formal. As relações
até às instituições, por diferentes meios, desde uma simples sociais de trabalho desenvolvidas nesse contexto possuem
necessidade de emprego até por não encontrar o trabalho características sociais e históricas próprias de instituições
desejado” (p. 15). não governamentais, o que gera especificidades na natureza
Atualmente, os contextos de formação profissional, da mediação.
tanto inicial como continuada, ainda não estão orientados Para que se possa planejar um processo de formação
para o desenvolvimento de competências ao pleno exercí- profissional, é necessário compreender que as competências
cio do educador social. Diante de um panorama nacional de próprias a uma atuação requerem a expressão de recursos
emergência das ONGs educativas, é necessário fornecer al- subjetivos e objetivos dos sujeitos, manifestos por meio de
ternativas de assessoria ao trabalho docente, como a forma- recursos pessoais, interpessoais, cognitivos, éticos, tácitos,
ção continuada em serviço, que promovam maior segurança entre outros que compõem o perfil pessoal e profissional do
e clareza dos papéis desenvolvidos nos contextos de ONGs ser trabalhador.
que favoreçam a constituição da identidade dos educadores Os recursos mobilizados no desenvolvimento de com-
sociais. petências são considerados “conteúdos simbólicos” neces-
É nesse cenário que se abre um espaço fecundo para sários à atuação profissional para as situações desafiadoras
a contribuição da Psicologia Escolar, junto aos educadores de trabalho. Marinho-Araujo (2003) propõe uma organização
sociais e em consonância à razão social que emerge essa didática dos recursos de saberes e habilidades para o desen-
nova profissão. volvimento de competências, categorizando-os em: saberes
Nessa direção, as proposições da abordagem histó- teóricos; saberes técnicos, saberes práticos, habilidades
rico-cultural da Psicologia têm trazido contribuições teóricas interpessoais; habilidades pessoais; habilidades éticas; e
que possibilitam refletir sobre os espaços contemporâneos habilidades estéticas.
de trabalho como lócus privilegiado para a elaboração de Soares (2008), com base na categorização dos recur-
processos formativos que objetivem o desenvolvimento dos sos de competências propostas por Marinho-Araujo (2003),
sujeitos trabalhadores, sob uma perspectiva sistêmica, dinâ- propõe um desenho de perfil profissional de educadores
mica e relacional, e que revelam uma nova visão para o de- sociais com base em uma pesquisa em contexto de ONG
senvolvimento das competências profissionais necessárias para o desenvolvimento de formação continuada, a saber:
para a atuação maior. recursos teóricos: fundamentação teórica e conceitual de
Com base nessa perspectiva, a Psicologia Escolar assuntos acerca da área da Educação; recursos técnicos:
toma o conceito de mediação como subsídio teórico orienta- conhecimentos didático-metodológicos, tecnológicos e ope-
dor da sua atuação. A mediação simbólica, conceito central racionais; recursos dos saberes práticos: conhecimentos pré-
da teoria histórico-cultural, é compreendida pelo uso de ins- vios, oriundos da história de vida e da experiência cotidiana,
trumento real (concreto) e o signo (instrumento simbólico), que se somam constantemente aos conhecimentos técnicos,
inerente aos processos psíquicos que ocorrem nas relações e teóricos e metodológicos formais da Educação; recursos
através das atividades de trabalho. Leontiev (2004) traz uma interpessoais: características favorecedoras das interações
discussão mais aprofundada sobre a evolução dos proces- e relações sociais, que contribuam ao desenvolvimento dos
sos intelectuais humanos a partir de sua compreensão sobre sujeitos por meio da intervenção socioeducativa; recursos
a atividade humana e sua relação com a noção de trabalho pessoais: aspectos pessoais que são disponibilizados antes,
marxista. Para o autor, “a estrutura da consciência humana durante e após a atuação pedagógica, com o objetivo de pro-
está regularmente ligada à estrutura da atividade humana” porcionar melhores ações socioeducativas; recursos éticos:
(p. 106), cujo desenvolvimento se dá pelo uso instrumental, habilidade em perceber, criticar e combater preconceitos pre-
elo de mediação simbólica e material, nas ações de compar- sentes nas intersubjetividades, buscando romper discursos
tilhamento das tarefas nas relações produtivas. discriminatórios, individuais ou sociais; recursos estéticos:
De acordo com Vygotsky (1998), o uso do instrumento proeza e habilidade no uso da criatividade e imaginação,
nos processos de desenvolvimento humano está relacionado como características psicológicas favoráveis à atuação pro-
à criação do sistema de signos pela cultura, por exercer a fissional.
função mediadora do pensamento, da comunicação e tra- Ressalta-se que tal categorização não se constitui
balho exercido em sociedade. Ao abordar a relação entre uma proposta estanque e findada pelas características de
a inteligência humana e o uso de signos, o autor sublinha recursos apresentadas; ao contrário, é aberta e flexível às
que “a unidade dialética desses sistemas no adulto humano demandas sociais e profissionais, configurando-se como
constitui verdadeira essência no comportamento humano uma sugestão que visa à mobilização de recursos para atuar
complexo” (p. 32). Os processos de mediação, portanto, es- em situações complexas, desafiadoras e inovadoras de tra-
Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a mediação no desenvolvimento de competências... * Pollianna Galvão Soares & Claisy Maria Marinho Araujo 51
balho e que possa subsidiar atuações da Psicologia Escolar profissional em São Luís-MA. Dissertação de Mestrado, Instituto
junto aos educadores sociais em contextos de educação de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.
diferenciados. Enfatiza-se a relevância em se desenvolver
estudos voltados para a definição do perfil profissional dos Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (1992). A história não contada
educadores sociais de forma que as competências possam dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 46(28), 31-48.
ser planejadas em processos de formação.
Defende-se que a atuação do psicólogo escolar deve Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (1996). Preconceitos no
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Ante a configuração social das ONGs educativas, e competências na formação e atuação profissional (pp. 17-36).
surge a reflexão sobre o preparo profissional dos psicólogos Campinas, SP: Alínea.
escolares para essas instituições. A formação em Psicologia
na área escolar deve considerar estratégias de ensino, como Dadico, L. (2003). Atuação do psicólogo nas organizações não
os estágios e cursos de extensão, que privilegiem os contex- governamentais em educação. Dissertação de Mestrado, Instituto
tos não formais de educação tanto quanto os formais. Faz- de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
se prudente reforçar a necessidade do desenvolvimento de
pesquisas direcionadas à formação e atuação do psicólogo Deluiz, N., Gonzalez, W., & Pinheiro, B. (2003). ONGs e políticas
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não formais de educação direcionados para a população trabalhadores. Boletim Técnico do SENAC, 29(02), 29-41.
mais empobrecida.
Intervir nos processos subjetivos que sustentam prá- González Rey, F. L. (2003). Sujeito e subjetividade: uma aproximação
ticas de injustiça social, a partir da especificidade do conhe- histórico-cultural. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.
cimento científico e profissional, coloca-se como o desafio
da Psicologia Escolar. Colaborar, conjuntamente aos demais González Rey, F. L. (2004). O social na psicologia e a psicologia no
atores sociais desses contextos férteis para o desenvolvi- social: a emergência do sujeito. Petrópolis: Vozes.
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(pp. 83-103). Campinas, SP: Alínea.
Sobre as Autoras
Correspondência
Pollianna Galvão Soares
SGAN 912, Módulo C, Bl. E, apto 110
Brasília-DF, CEP: 70.833-000
Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a mediação no desenvolvimento de competências... * Pollianna Galvão Soares & Claisy Maria Marinho Araujo 53
O aluno cego: preconceitos e potencialidades
Sylvia Nunes
José Fernando Bitencourt Lomônaco
Resumo
Este artigo analisa a cegueira, os preconceitos a ela associados e as potencialidades de pessoas cegas, especialmente do aluno cego. Salienta a
ênfase dada ao sentido da visão no processo de aquisição de conhecimentos e considera os preconceitos comumente associados à capacidade
de aprendizagem do cego.
Palavras-chave: Cego, deficiente visual, preconceito.
Introdução
A visão que o cego tem do mundo é de uma riqueza única, incomparável e deve passar a ser vista
como uma apreensão integral da realidade, não uma carência de visão, não uma castração de um
órgão, mas a existência suficiente de um ser humano completo. (Monte Alegre, 2003, p.12)
Quando se pensa em cegueira, algumas indagações características, os preconceitos que o cercam e suas poten-
são comuns: como é a vida cotidiana sem a visão? O que o cialidades como aprendiz. Pressupomos que profissionais
cego é capaz de fazer? Que tipo de vida pode levar? Como das áreas de Psicologia e Educação devem ter conhecimen-
ele é capaz de aprender? Neste trabalho, tais indagações tos sobre os diferentes tipos de deficiências, as limitações
são analisadas e, a partir desta análise, a situação do cego reais impostas por cada deficiência e, principalmente, as
na vida escolar é discutida. infinitas possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem
A ideia do presente artigo surgiu da percepção sobre desses sujeitos. Assim, objetiva-se neste artigo apresentar
o reduzido número de artigos referentes ao aluno cego, suas e analisar informações sobre a cegueira e o aluno cego a
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64. 55
partir da literatura teórica e de pesquisas na área de modo Para compreender melhor a condição de cegueira e a
a salientar suas reais limitações, mas, ao mesmo tempo, forma como ela é vivenciada pelo indivíduo, é importante co-
enfatizar as potencialidades do aluno cego, uma vez que tais nhecer a idade e a causa da perda visual. Segundo Amiralian
possibilidades estão com demasiada frequência encobertas (1997), os cegos que perdem a visão a partir dos cinco anos
pelo manto dos preconceitos. são considerados cegos adventícios ou adquiridos. Os casos
de cegueira anterior a essa idade são chamados de cegueira
I. O que é cegueira? congênita. A delimitação da idade de cinco anos para o diag-
nóstico de cegueira adquirida é fruto de pesquisas que não
A cegueira é uma deficiência visual, ou seja, uma limi- identificaram memória visual em cegos que perderam a visão
tação de uma das formas de apreensão de informações do antes dessa idade.
mundo externo - a visão. Há dois tipos de deficiência visual: A autora afirma que, quanto mais cedo ocorre a perda
cegueira e baixa visão. da visão, mais essa condição influencia o desenvolvimento
Devido às muitas discussões sobre a deficiência e do sujeito e, quanto mais tarde a cegueira se apresenta, mais
seus estigmas, é comum a preocupação com os termos uti- as características de personalidade anteriores à perda têm
lizados a fim de que eles não sejam pejorativos nem reflitam peso maior na formação do indivíduo.
preconceitos. Em face disto, algumas pessoas preferem o A ausência da visão é um fenômeno complexo e di-
termo deficiente visual à palavra cego. Todavia, esses ter- verso. As causas da deficiência, o momento e a forma da per-
mos não são equivalentes. O conceito de deficiência visual é da visual (progressiva ou repentina), o contexto psicológico,
mais abrangente visto que engloba não só a cegueira como familiar e social influenciam o modo como a pessoa vive sua
também a baixa visão. Embora haja quem acredite ser o ter- condição de cegueira. Assim, ainda que possamos pensar
mo “cego” preconceituoso ou pejorativo, não compartilhamos em pontos comuns entre os cegos - principalmente no que
dessa premissa. Utilizamos a palavra por seu caráter descriti- diz respeito às formas de percepção - o desenvolvimento de
vo: cego é aquele que é privado de visão, segundo o dicioná- cada um é peculiar, como o é de todo vidente, o que justifica
rio Houaiss. E é dessa realidade que estamos tratando. Não pensarmos que o desenvolvimento da pessoa com cegueira
há preconceito na utilização do termo cego. O preconceito está muito mais próximo ao de outras pessoas com caracte-
está em pressupor que o cego é um sujeito menos capaz. rísticas próximas (idade, condição socioeconômica, influên-
Segundo Amiralian (1997), a primeira preocupação cia cultural etc.) do que a de outro cego. No entanto, ainda
com a cegueira foi a da medicina, que a percebia como uma que não exista apenas um caminho de desenvolvimento para
consequência de doenças e buscava minimizar essa defici- os cegos, algumas condições são importantes para melhorar
ência com o objetivo de tornar a pessoa normal novamente. e/ou viabilizar suas condições de aprendizagem.
Os médicos se interessavam sobre quanto uma pessoa com Como já dissemos, em casos de baixa visão, recursos
deficiência visual era capaz de ver, o que levou à definição ópticos podem ser utilizados para maximizar o resíduo visual.
de medidas para avaliar a capacidade visual. A medida mais O mesmo não ocorre com a pessoa cega. Então, é preciso
usada, desde então, é a avaliação de duas funções oculares: fazer com que a informação visual chegue até ele por outras
acuidade visual - que consiste em discriminação de formas formas. Para tal, outros canais sensoriais devem ser utiliza-
- e campo visual - relativo à capacidade de percepção da dos, como o tato e a audição.
amplitude dos estímulos. A capacidade visual é avaliada por A importância da linguagem no desenvolvimento hu-
essas medidas, com todas as correções ópticas possíveis mano é inquestionável. Para o cego, a linguagem assume um
(óculos, lentes etc.). No entanto, começou-se a perceber papel ainda maior, porque as informações visuais a que ele
que alguns cegos, com a mesma medida de acuidade visu- não tem acesso podem ser parcialmente verbalizadas. Nes-
al, apresentavam capacidade visual diferente. Alguns deles, se sentido, Lira e Schlindwein (2008), que discutem a inclu-
inclusive, ao aprender o sistema braile, conseguiam utilizar a são da criança cega na escola por uma leitura vigostskiana,
visão residual para ler o braile com os olhos, isto é, algumas relacionam a linguagem e as funções psíquicas superiores
pessoas diagnosticadas como cegas aproveitavam a pouca para o cego:
visão que tinham para apreender as informações do mundo.
Isto levou à formulação da distinção entre cegueira e baixa A criança cega pode perfeitamente se apropriar das
visão. Assim, a partir de 1970, o diagnóstico de deficiência significações de seu meio e participar das práticas sociais, pois
visual deixou de considerar apenas a acuidade visual para dispõe do instrumento necessário para isso – a linguagem.
avaliar as formas de percepção do sujeito: se ele apreende o Além disso, a concepção de que, com o desenvolvimento
mundo por meio do tato, olfato, cinestesia etc., esta pessoa das funções psíquicas superiores, o homem transforma sua
é considerada cega; se, no entanto, tiver limitações da visão, relação com o mundo e nela introduz a dimensão semiótica,
mas ainda assim conseguir utilizar-se do resíduo visual de minimiza a dimensão da perda decorrente da cegueira. (Lira
forma satisfatória, então, seu diagnóstico é de baixa visão. & Schlindwein, 2008, p. 187)
Tal concepção permite a indicação de auxílios ópticos (ócu-
los, lentes de aumento específicas, lupas etc.); concessão de Segundo Amiralian (1997), o cego substitui o que ele
benefícios sociais e medidas educacionais (como o uso do não vê por meio da linguagem, o que pode justificar algumas
código braile ou letra comum). palavras não compreensíveis ou parcialmente compreensí-
56 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
veis que eles falam. Além disso, o sujeito cego percebe o Isso significa que, sem acesso a materiais gráficos
mundo por meio de todos os sentidos que não a visão (tato, (desenhos e figuras em relevo) em situações de aprendiza-
olfato, paladar, audição), mas o significado das coisas lhe é gem, restringe-se uma ampla possibilidade de conhecimento
transmitido, em sua maioria, por videntes que utilizam muito do mundo para o deficiente visual.
menos esses sentidos e muito mais a visão como fonte de Mas, embora o tato seja uma importante via de infor-
informação e conhecimento. A consequência deste impasse mação para o sujeito cego, obviamente não é a única. O sis-
é que a pessoa cega tem que fazer constantes “ajustes” en- tema cinestésico é um dos sistemas que fornecem informa-
tre aquilo que ela conhece por meio de suas percepções e ções sobre a orientação espacial, o movimento e o equilíbrio,
aquilo que chega pela fala dos que a rodeiam. possibilitando a percepção de posição, da direção do vento,
Rabêllo (2003) afirma que algumas pessoas cegas da velocidade do movimento e orientação do corpo.
“(...) se tornam extremamente sensíveis aos matizes de in- Uma vez que nem todos os objetos podem ser per-
flexão, de volume, de cadência, de ressonância e das várias cebidos diretamente pelo tato, alguns conceitos só podem
intensidades dos sons das falas dos outros, que passam des- ser entendidos pelas crianças por explicações orais ou outras
percebidos aos videntes” (p. 78). É por meio da linguagem e analogias, como maquetes ou outros tipos de representação.
das percepções táteis e cinestésicas que podemos explicar Também o olfato e a gustação são dois sentidos importantes
seu desenvolvimento cognitivo, uma vez que a linguagem para o desenvolvimento da criança cega. A gustação auxilia
assume ainda mais uma função organizadora e planejadora, na apreciação dos alimentos e o olfato ajuda o cego a reco-
fundamental para o desenvolvimento humano. nhecer pessoas, objetos, caminhos etc.
Em relação ao tato, Ochaíta e Rosa (1995) diferen- Pensando nas possibilidades de compreensão do
ciam dois tipos, baseados em Gibson: tato passivo - recep- mundo pelos sentidos que não a visão, é interessante refletir
ção da informação de forma passiva e não intencional pela sobre trabalhos que enfocam a vivência da arte pelo sujeito
pele e pelos tecidos subjacentes, por exemplo, sensação cego. Oliveira (2002), por exemplo, em sua obra Do essencial
de calor causada pela roupa - e tato ativo ou sistema háp- invisível: arte e beleza entre os cegos, discorre sobre as pos-
tico - busca de informação de modo intencional por meio do sibilidades de experiência estética dos cegos. A questão que
toque. Neste tipo de tato, estão envolvidos não só a pele e fundamenta o livro é: o cego, em função de sua perda visual,
os tecidos subjacentes, mas “(...) receptores dos músculos e é capaz de vivenciar a experiência estética? É evidente que,
tendões, de maneira que o sistema perceptivo háptico capta por trás da pergunta, está a noção de que a estética se limita
a informação articulatória motora e de equilíbrio” (Ochaíta & ao visual. O autor discorda desta noção e defende que a arte
Rosa, 1995, p.185). não é apenas visual e, portanto, é acessível ao cego.
Em comparação à visão, o tato é uma forma mais Em primeiro lugar, ele afirma que a arte não se res-
lenta de captação da informação. Isso porque a exploração tringe à pintura, à escultura e à arquitetura, pois também a
háptica se dá de forma sequencial. Por exemplo, o cego literatura, a dança e a música são expressões artísticas. Ou
precisa percorrer uma mesa para conhecê-la, enquanto a seja, as artes e a beleza não são usufruídas apenas pela
visão permite uma identificação mais rápida. No entanto, visão, mas também pelo tato e pela audição, como ocorre,
Batista (2005) lembra que não é só o tato que tem o caráter por exemplo, quando da apreciação de esculturas pelo tato e
sequencial: música, discurso, livros, textos, todos são formas de músicas e literatura pela audição. Oliveira (2002) parte de
sequenciais de transmissão de informação e, nem por isso, uma concepção de beleza que considera a percepção da uni-
são consideradas melhores ou piores do que a informação dade em meio à diversidade, como pressuposto de vivência
captada visualmente. Muito pelo contrário, é comum ouvir- estética. Este princípio de unidade não se restringe à percep-
mos que ler um livro permite um aprofundamento maior da ção visual: o tato pode inferir beleza ou não em contornos e
história do que ver o filme correspondente. texturas tridimensionais. Há limitações nessa percepção de
O tato possibilita o conhecimento por meio das ca- beleza porque diversas estruturas tridimensionais não são
racterísticas dos objetos: textura, formato, temperatura etc. inteiramente captadas pelo tato. No entanto, nesse pensa-
Mas ele é mais útil para objetos próximos e permite menos mento, o cego é capaz de ter a experiência estética por meio
informações no caso de objetos grandes e/ou distantes. Esta de seus sentidos e suas vivências.
possibilidade de discriminação pelo tato e pelos outros sen- Ferrari e Campos (2001) partem de outra definição
tidos leva a crer que o uso dos sentidos pelo cego não é de estética para falar da beleza para os cegos. As autoras
uma mera compensação do órgão falho, mas envolve uma afirmam que há uma intrínseca relação entre beleza e prazer,
reorganização biopsicossocial, que permite o acesso e o pro- não estando a beleza unicamente ligada à imagem visual.
cessamento de informações. Assim, por mais que a experiência estética esteja baseada
Camargo, Nardi e Veraszto (2008), ao pesquisarem na experiência sensorial – seja qual for o sentido – ela só é
a comunicação entre alunos com deficiência visual e seus possível pelo uso conjunto da razão. Se a apreciação da be-
professores, afirmam que “(...) utilizando-se maquetes e leza se dá pela inter-relação entre sentidos e racionalidade,
outros materiais possíveis de serem tocados, vinculam-se e não unicamente pela visão, então, ela é possível ao cego.
os mencionados significados a representações táteis e, por Ele é capaz de experenciar a beleza por meio do toque, da
meio da estrutura mencionada, esses significados tornam-se cinestesia, da audição etc.
acessíveis aos alunos cegos ou com baixa visão” (p.3401)
O aluno cego: preconceitos e potencialidades * Sylvia Nunes & José Fernando Bitencourt Lomônaco 57
As coisas do mundo têm qualidades múltiplas, muitas gos estará mais bem capacitado a estabelecer vínculos com
delas não visuais. É a partir dessas qualidades que temos os mesmos, entendendo que eles têm a cegueira com uma
que pensar o trabalho com cegos. Propostas como as de condição (dentre muitas outras que esse indivíduo também
Ferrari e Campos (2001), em que crianças e adultos defi- tem: classe social, gênero, cor/raça etc.). É inegável que tal
cientes visuais visitam museus, mostram que estes não são condição impõe limitações ao seu processo de aprendiza-
espaços culturais predominantemente visuais. Pois, tanto no gem e ao seu desenvolvimento como um todo, mas, uma vez
que se refere à apresentação quanto à divulgação do acervo, que as informações do mundo podem chegar por diferentes
há possibilidades de experiências estéticas acessíveis aos e variadas vias, o indivíduo cego tem tantas possibilidades de
deficientes visuais. se desenvolver quanto as crianças videntes.
O teatro é outra forma de vivência estética e cultural
para o cego. Vale lembrar que a palavra “teatro” tem, em seu II. Como o cego é visto?
histórico etimológico, relação com o contemplar algo pela
visão. Assim, em um primeiro momento, a experiência teatral Em terra de cego quem tem olho é rei, e em terra de
estaria restrita a quem vê: como ator e como espectador. olho quem é cego é o quê?
A lógica da concepção etimológica de teatro e a exclusão Em nosso mundo visual, muitas informações são tra-
cultural que esse segmento da população vive justificam a tadas como exclusivamente visuais quando, na verdade, não
dúvida sobre essa experiência por parte do cego. Mas Ra- são. Podemos perceber isso em algumas ações como en-
bêllo (2003), em sua tese de doutorado, mostra o quanto contrar objetos em bolsas, digitar números de telefone, tocar
essa experiência é possível e enriquecedora para o desen- instrumentos, vestir-se etc. A visão é, possivelmente, o “guia”
volvimento do deficiente visual, tanto pela oportunidade de dessas ações, mas sua ausência não é demasiadamente
trabalho sensorial, corporal e expressivo, quanto pelo acesso prejudicial para a execução da ação (Batista, 2005).
a uma importante forma de manifestação cultural por meio de Porém, como vivemos em um mundo de videntes,
algumas adaptações e ênfase nas informações e vivências à visão é dado um papel essencial no desenvolvimento hu-
não visuais necessárias para a experiência teatral. mano e sua ausência assume, muitas vezes, uma dimensão
Em suma, a aquisição de informações pela pessoa maior do que ela realmente tem.
cega se dá pela conjunção das sensações táteis, cinestési- Essa ideia de restrição do desenvolvimento do cego
cas e auditivas aliadas às experiências mentais passadas já justifica-se pela supervalorização da visão na aquisição do
construídas pelo sujeito. Isso quer dizer que, sem a visão, o conhecimento. Existem autores que estimam ser a visão a
cego percebe a realidade de forma diferente do que as pes- responsável por 80% do conhecimento, como Oliveira (2002).
soas que veem. O que não quer dizer que a percepção do Batista e Enumo (2000) questionam essa afirmação conside-
cego seja melhor ou pior. A questão está na diferente orga- rando que, que ainda que a visão seja uma importante via de
nização sensorial de cegos e videntes. É nesse sentido que informação, ela não é a única.
Vygotsky (1934/1997) afirma que a vivência da cegueira não Tal ideia também está amplamente arraigada em nos-
é como a do vidente de olhos tapados. O cego de nascença sa linguagem. No cotidiano, é fácil perceber que utilizamos
percebe o mundo de forma diferente e só experimenta a ce- o verbo ver não só para a ação de olhar algo, mas também
gueira como deficiência por meio de interações sociais que no sentido de conhecer. Por exemplo, com muita frequência,
lhe mostram isso. falamos: “Você viu o que aconteceu com fulano?”. Tal uso do
Assim, a cegueira por si só não é um impedimento verbo “ver” tem mais relação com o conhecimento do fato
ao desenvolvimento. Há a imposição de caminhos diferen- do que exclusivamente com o ato de ver. Essa atribuição de
ciados devido à ausência da visão, mas o desenvolvimento significados para além da visão não acontece apenas com
do cego é pleno de possibilidades e limitações como o de esse verbo. Muitos outros termos derivados das palavras ver
qualquer ser humano. É o que também parece pensar Amira- e olhar também estão imbuídos de outras significações rela-
lian (2007) que, após estudar o desenvolvimento emocional cionadas à supremacia da visão, como, por exemplo: visões
de crianças cegas congênitas, afirma “(...) Há, portanto, entre de mundo, pontos de vista, revisão, mau olhado, amor cego,
as crianças com cegueira congênita, uma grande variedade fé cega, olho gordo, olho comprido, frieza do olhar, estar de
de possibilidades de desenvolvimento” (p.130). olho etc.
No entanto, a deficiência visual – assim como os ou- Amiralian (1997) nota dois polos opostos quando se
tros tipos de deficiência – assume na sociedade em que vi- fala em cegueira: a) o cego pode ser visto como indefeso,
vemos uma diferença que é considerada uma desvantagem. como um coitado; ou como detentor de um saber sobrena-
A forma como a cegueira tem sido concebida restringe o que tural, mais capacitado para desvendar mistérios do que os
a criança é à sua falta de visão, pois o enfoque é dado à videntes; b) em relação à bondade/maldade também existe
imperfeição e à falta. Assim, quando um vidente conhece um esse paradoxo: ou o cego é percebido como estritamente
cego, é comum que a relação se estabeleça primeiro com a bom, ou como o vilão da história.
deficiência e, depois (talvez), com o ser humano que existe Debora Kent (1989) também evidencia isso ao estu-
para além da cegueira. dar a concepção de cegueira na literatura. De modo geral,
Podemos pensar que, ao considerar as particularida- há uma oscilação entre bondade ou maldade extremas;
des da cegueira, o profissional que trabalha com alunos ce- sabedoria; punição dos pecados; intensa relação com Deus
58 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
etc. Essas características são abordadas como se fossem plicação mística para a cegueira cede lugar a uma teoria que
inerentes à falta de visão. pressupõe a capacidade de adaptação do cego. No entanto,
As pessoas cegas, frequentemente, são tidas como mesmo este segundo período ainda guarda uma concepção
especiais, como portadoras de características profundamen- equivocada do cego, qual seja, a de que a compensação da
te diferenciadas das outras pessoas, tanto na literatura como falta de visão pelos outros sentidos é simples e automática.
na mídia em geral. Esse preconceito impede que se perceba Ainda hoje existem práticas pedagógicas que enfatizam unica-
o cego como um ser humano. mente a estimulação dos outros sentidos - o que é consequên-
O estereótipo do cego está relacionado à forma como cia de uma concepção biologizante e restrita de ser humano.
historicamente ele foi visto. Vygotsky (1934/1997) define três Num estudo sobre conceituação de cegueira por
momentos principais na concepção de cegueira. O primeiro estudantes do primeiro e quinto anos de Psicologia de uma
momento é chamado período místico e compreende a Antigui- universidade estadual paulista, mais uma vez esta ideia foi
dade, Idade Média e parte da Idade Moderna. Nesse período expressa nas respostas dos participantes agrupadas na ca-
vigoraram duas noções principais: ou o cego era considerado tegoria Compensação Sensório-Cognitiva, que inclui termos
alguém indefeso, infeliz, que vivia em desgraça, ou era trata- referentes à compensação da visão pelos outros sentidos ou
do com respeito pelos poderes místicos que se acreditava ter. às capacidades cognitivas do cego como um processo auto-
Devido à falta de visão, o sujeito era visto como mais capaz mático e natural, e não como um resultado da aprendizagem
de se desenvolver espiritualmente, pois se entendia que ele passível a qualquer ser humano (Lomônaco, Nunes, & Sano,
estava livre do envolvimento nas ilusões mundanas. 2004).
Em nosso meio, a primeira autora deste trabalho par- E, finalmente, o período científico ou sociopsicológico
ticipou da realização de uma pesquisa sobre as concepções é marcado pela percepção do cego como capaz de se reorga-
de cegueira congênita em alunos do primeiro e quarto anos nizar para compensar a deficiência visual. Essa compensa-
de um curso de Pedagogia. Um dos entrevistados expres- ção não se limita ao desenvolvimento dos outros órgãos dos
sou que a pessoa cega “(...) se desenvolve em um âmbito sentidos, mas à reorganização da vida psíquica por inteiro, a
muito mais espiritualista do que materialista pelo fato dela fim de compensar o conflito social advindo da deficiência do
não concretizar o que ela vê” (Viegas e cols., 2004). Nessa órgão. Aqui, podemos perceber outro salto qualitativo entre o
curta frase, podemos perceber claramente esta ideia de um segundo e o terceiro períodos. De uma concepção meramen-
maior desenvolvimento espiritual do sujeito cego e também te biológica, o homem passou a ser visto como um ser social
a incompetência em “concretizar” as informações que recebe e histórico que, por meio dos grupos sociais de que faz parte,
do mundo. Como salienta Amiralian (2002), o mundo mental desenvolve uma linguagem e, ao se comunicar, constrói sig-
do cego é um enigma para o vidente. Natural que o seja, nificados para si e para os outros.
dada à diferença que a visão provoca. No entanto, conceitos Vygotsky (1934/1997) não nega as limitações da
distorcidos como este deixam o cego em desvantagem, já cegueira enquanto restrição biológica, mas afirma que, so-
que a ele são atribuídas capacidades e limitações que nada cialmente, não há limitações, porque o cego, por meio da
têm a ver com a falta de visão. palavra, pode se comunicar e apreender significados sociais.
Também na pesquisa de Caiado (2003, p.35), a ideia No entanto, a inter-relação do indivíduo cego com o ambiente
de incapacidade/espiritualidade fica evidente na seguinte não se dá sem conflitos. Mas, segundo o autor, é devido ao
fala: “Há o professor que acredita que o deficiente visual não fato do conflito existir que há forças para sua superação.
aprende porque é um deficiente global e, outros, que acre- Claro que, devido à limitação visual, o indivíduo cego
ditam que, porque ele não tem a visão, desenvolveu uma vai precisar de um ambiente diferenciado e adaptado, que
inteligência extraordinária”. dê conta de garantir a satisfação de suas necessidades. E
O segundo momento, denominado período biológi- toda essa vivência diferenciada define uma estrutura mental
co e ingênuo, ocorreu durante o Iluminismo (século XVIII). diferente daquele que vê, pois a pessoa cega precisa usufruir
Como sabemos, a ciência passa a ser bastante valorizada de outros caminhos para conhecer o mundo, o que marca
nesse período, reduzindo-se muito o espaço para explica- outras formas de processo perceptivo e, por consequência,
ções metafísicas. Ao mesmo tempo, cresce a necessidade da estruturação e organização do desenvolvimento cognitivo.
de “esclarecer” a população em geral e, assim, são criados Este fato pode ser evidenciado com os conceitos de espa-
vários centros de educação em massa, principalmente na ço e tempo. No caso do espaço, os elementos que dão as
Europa. Todos esses acontecimentos dão um novo sentido à informações espaciais são diferentes para o vidente e para
cegueira, que passa a ser vista como objeto de estudo cien- o cego: quem vê se utiliza muito mais da visão do que dos
tífico. Além disso, inicia-se o movimento de educação dos outros sentidos, enquanto o cego se utiliza mais de uma
cegos por meio da criação de institutos e escolas específicos exploração tátil-cinestésica do ambiente. Levando em conta
para eles. Este movimento educacional permitiu maior inclu- esses aspectos, Amiralian (2002) afirma:
são social da pessoa cega.
Data deste período a criação da teoria da substituição, Devemos ter sempre em mente que, para os videntes,
segundo a qual a falta de um órgão seria compensada pelo o mundo mental dos cegos é um conceito nebuloso,
melhor funcionamento de outros. O salto qualitativo entre o organizado por analogias ou inferido de situações que
primeiro e o segundo período é notável, uma vez que a ex- consideramos semelhantes às deles. Dessa mesma
O aluno cego: preconceitos e potencialidades * Sylvia Nunes & José Fernando Bitencourt Lomônaco 59
maneira, o mundo mental dos videntes é construído pelos atuar como docente e especialista. Ele atua como docente
cegos. Por exemplo, para nós é muito difícil pensar em uma porque é responsável por atividades de ensino e aprendi-
representação mental sem a imagem visual, ou o que seja zagem e como especialista porque é um agente facilitador
o conceito tátil-cinestésico de cadeira, assim, como para os do processo educacional ao orientar a escola, a família e a
cegos congênitos, a visualização dos objetos é um dado comunidade. Dessa forma, a ênfase da atuação do professor
impossível. (p. 207) especializado depende do lugar onde ele está desenvolvendo
seu trabalho, que pode ser: classe especial, sala de recursos
ou ensino itinerante.
III. O cego na sala de aula A estigmatização do deficiente visual prejudica sua
personalidade e autoestima. Por isso, é preciso um ambiente
Amiralian (2002) considera duas concepções de inclu- educacional o mais adequado possível para o desenvol-
são do deficiente visual. A primeira proposta foi influenciada vimento integral do cego. Monte Alegre (2003) constatou
pela prática estadunidense e está mais voltada a programas a falta de apoio especializado nas escolas comuns - ditas
de treinamentos que visam tornar o deficiente visual mais “inclusivas” -, tanto pela falta de materiais e recursos para
parecido com o vidente. Esse processo, chamado normaliza- o trabalho com as crianças cegas, quanto pela falta de pre-
ção, é bastante criticado. Primeiro, porque não é possível tor- paro dos docentes da sala de aula comum, o que leva a um
nar uma pessoa aquilo que ela não é. Além disso, a questão trabalho pedagógico técnico, espontaneísta e muitas vezes
da normalização traz nas entrelinhas a ideia de que ser defi- inadequado por não dar conta das necessidades do aluno
ciente visual é ser inferior e faltante. Isto dificulta ainda mais cego. As professoras da sala comum de alunos com defici-
a vivência dessa condição pelo deficiente, porque se todas ência visual demonstraram incertezas sobre como lidar com
as suas percepções e conceitos são considerados inferiores, esses alunos e desconhecimento dos materiais adaptados
então, resta a esta pessoa a busca constante dos conceitos para o cego - inclusive o braile.
visuais que não lhe são acessíveis, a não ser pela fala dos No entanto, algumas delas afirmaram que o convívio
videntes, o que os deixa novamente dependentes. com alunos deficientes visuais permitiu a percepção das ca-
É possível outra forma de inclusão do deficiente visual pacidades destas crianças, a superação de preconceitos e a
que o aceite sem valorizar demais as suas incapacidades, representação da criança como um ser que tem “(...) carac-
mas buscando respeitar o que ele é. Essa concepção de terísticas gerais de normalidade, de autonomia, de relações
inclusão não enfoca os limites e déficits das pessoas cegas, sociais satisfatórias, de virtudes cognitivas, curriculares, de
mas busca compreender a forma como essa pessoa se cons- desenho, de locomoção, verbais, do interesse pelo conhe-
titui e percebe o mundo, de modo a não querer transformar cimento e como merecedoras de uma projeção de futuro
os cegos em videntes, e nem tampouco impor conceitos, pa- satisfatório” (Monte Alegre, 2003, p. 275).
drões e valores dos que veem. Em vez disso, tenta entender Assim, ainda que o autor faça uma crítica aos poderes
as limitações da ausência de visão e analisa as condições de públicos pela falta de investimento e iniciativa na área de edu-
vida na família, escola e em outros grupos de referência que cação especial (em alguns casos, o professor compra os ma-
possam facilitar o desenvolvimento desse indivíduo. teriais com seus próprios recursos), o convívio escolar dessas
O aluno cego, em sua vida escolar, necessita de ma- crianças com professores abertos a situações novas e criati-
teriais adaptados que sejam adequados ao conhecimento vas não deixa de ser um ganho significativo. Claro que isso
tátil-cinestésico, auditivo, olfativo e gustativo – em especial não pode ser motivo para não se lutar por melhores condições
materiais gráficos tateáveis e o braile. A adequação de ma- de ensino desta população, uma vez que isso lhe é de direito.
teriais tem o objetivo de garantir o acesso às mesmas infor- Mas a experiência citada mostra o quão importante é a convi-
mações que as outras crianças têm, para que a criança cega vência com a diferença, se esta é respeitada. No entanto, se
não esteja em desvantagem em relação aos seus pares. o professor não está preparado, ele pode demorar a perceber
A educação do deficiente visual é marcada pela rela- (se vier a perceber) a capacidade de seu aluno cego e, com
ção intrínseca com o atendimento especializado, capaz de isso, desperdiçar um precioso tempo da vida desse aluno, o
suprir as necessidades especiais advindas da falta de visão que não ocorreria se o professor já tivesse em sua formação
e assegurar o ensino formal deste aluno. Esse atendimento um contato e uma reflexão sobre a deficiência visual.
especializado deve ser garantido pela chamada educação Masini (1994) analisa várias propostas de educação
especial. para deficientes visuais e nota que o referencial utilizado é o
A educação especial é uma modalidade de ensino que do vidente; deste modo, a comparação do deficiente visual
deve caminhar paralelamente ao ensino regular, em todos com o vidente coloca o primeiro em constante desvantagem.
os seus níveis: educação infantil, ensino fundamental, médio Esse fato tem uma consequência grave para o deficiente vi-
e superior. Esta concepção de modalidade não está isenta sual, qual seja, a de não ser percebido como ele de fato é,
de discussões e divergências. Pressupomos que o ensino mas sempre com o olhar daquilo que ele não é. Outro ponto
especializado deve acompanhar a criança/pessoa com defi- levantado pela autora refere-se aos instrumentos propostos
ciência em toda a sua vivência educacional sem, com isso, nos programas, que refletem uma concepção subjacente
se transformar em substituto do ensino regular. Segundo a de processos mecânicos de aprendizagem, pois as tarefas
Lei n.º 5.540/68, a função do professor especializado é a de baseiam-se em associação simples do mundo externo, des-
60 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
contextualizadas da forma global de percepção do deficiente Tal dado nos mostra que não é pelo fato do professor
visual. falar que o aluno cego tem garantido o acesso ao conhe-
A concepção de cego com base no vidente, além de cimento. São necessárias adaptações na fala do professor
minimizar as possibilidades de entender o cego como ele para que o conteúdo não seja estritamente visual. Para tal, é
realmente é, enfatiza suas limitações e não suas possibili- preciso lançar mão de outros recursos (como maquete, es-
dades. E isso, em um mundo de videntes, faz com que o quemas táteis, sonoros etc.), de modo a garantir que o aluno
deficiente visual seja ainda mais prejudicado. Mas como um está compreendendo o que está sendo dito pelo professor.
educador vidente pode ensinar um cego? Claro está que um Caiado (2003) lembra o quanto a educação dos alunos
vidente não tem como saber diretamente como se organiza o com deficiência no Brasil teve um histórico de assistencialis-
“mundo” do cego, pelo fato daquele usar a visão como sentido mo e filantropismo, de modo a não ser vista como um direito,
principal de suas ações. Mas isso não impede que pais, pro- mas como uma ação benevolente de algumas pessoas. Só
fessores e profissionais possam ir além de suas experiências recentemente os direitos das pessoas com deficiência têm
como videntes e consigam perceber que as possibilidades sido assegurados por lei e, como consequência, têm sido ob-
de aprendizagem de uma criança ou adulto com deficiência jeto de reivindicações e lutas – ainda que timidamente – para
visual são tão grandes como a de qualquer ser humano, pois o cumprimento da lei.
a visão não é a única fonte de informação. Em decorrência do pouco conhecimento sobre a
A educação do deficiente visual pode ser orientada deficiência visual, os professores frequentemente têm bai-
por um professor especializado, o que não quer dizer colocá- xa expectativa quanto à aprendizagem do aluno. A crença
lo em uma escola especial. Ao contrário, o aluno deve ser equivocada da pouca capacidade de aprendizagem do aluno
regularmente matriculado em uma escola regular, mas rece- cego prejudica-o muito, uma vez que tende a minimizar as
ber o apoio de um professor especializado para assegurar a propostas pedagógicas do professor. Outro ponto negativo
satisfação das suas necessidades, até o momento que isso quanto à educação do cego é a possibilidade do professor,
for preciso. por falta de preparo, adotar procedimentos educacionais
Caiado (2003), num estudo sobre as vivências esco- tendo, como parâmetro, as formas de aprender do vidente.
lares dos cegos, entrevistou seis pessoas cegas cuja perda Em última instância, isso significa a recusa total do professor
visual foi anterior à alfabetização e que aprenderam a ler pelo de encarar a deficiência e perceber suas possibilidades e
braile e no ensino regular. Dentre as categorias criadas pela limitações. Caiado (2003) nos dá um exemplo disso no de-
autora para analisar as entrevistas, duas chamam a atenção: poimento de uma das participantes de sua pesquisa: “Essa
o preconceito vivido em sala de aula, em grande parte pela professora, ao invés de falar comigo, perguntava para o meu
falta de preparo do professor, e a falta de recursos adaptados companheiro do lado; outros professores não gostavam de
para os alunos cegos. ditar, porque já tinham passado a matéria na lousa” (p. 84).
Essa falta de materiais adaptados fazia com que O hábito de escrever a matéria na lousa como único
os alunos tivessem a fala do professor como único recurso recurso deve sofrer adaptações quando há um aluno cego
pedagógico. Claro que a voz do professor é de extrema im- em sala de aula. Não é possível ao professor simplesmente
portância em sala de aula para qualquer aluno. No entanto, dizer para si e para os outros que esse é o seu jeito e que
desenhos, mapas, fórmulas, escrita na lousa etc. são fre- não pode mudar para não prejudicar os outros alunos. Esse
quentemente utilizados para enriquecer a aula e facilitar a tipo de atitude demonstra não só a dificuldade do professor,
apreensão dos conteúdos. Nesses momentos, o que fazer mas a cristalização de preconceitos que leva o aluno cego à
com o aluno cego? Alguns poucos professores conseguiam exclusão dentro da lógica da inclusão: ele está em sala de
fazer adaptações ou dedicavam uma atenção especial aos aula, mas as barreiras atitudinais não estão favorecendo seu
alunos cegos. Mas a maioria não fazia essa adaptação de aprendizado.
recursos e deixava os alunos cegos excluídos de certos con- Esse é um jogo perigosíssimo porque, se esses pre-
teúdos, delegando unicamente a eles próprios a responsabi- conceitos não forem revelados, a mensagem da instituição
lidade pela sua aprendizagem. Alguns pais de alunos cegos escola é: estamos fazendo a nossa parte, estamos aceitando
confeccionavam os materiais adaptados. Mas a maioria dos “alunos de inclusão”, estamos incluindo. Mas, na realidade,
alunos relatou que concentravam todos os seus esforços na nada foi alterado ou adaptado para esse aluno, que fica mar-
fala do professor: foi pela aprendizagem a partir do que o ginalizado dentro da sala de aula. Se ele não aprender, ou se
professor falava em sala que eles estudaram para provas desistir de estudar, a escola sentir-se-á eximida de culpa. É
escolares, vestibulares e concursos. uma lógica cruel e, infelizmente, real.
Também Camargo e cols. (2008) notaram a impor- Também Lira e Schlindwein (2008) notaram que
tância da fala na aprendizagem do aluno com deficiência professores de alunos cegos se negaram a mudar as es-
visual. Entretanto, os autores, ao estudarem a comunicação tratégias de ensino em prol da aprendizagem do seu aluno.
em sala de aula no ensino de física, notaram as dificuldades As pesquisadoras apresentam um estudo em que três estu-
comunicacionais ocorridas entre professores e alunos. As dantes universitários cegos foram entrevistados. O objetivo
dificuldades mais frequentes referem-se à apresentação de foi relacionar o percurso escolar com a vivência da inclusão/
conteúdos vinculados a representações visuais, sem a devi- exclusão. Várias dificuldades foram apontadas pelos entre-
da adaptação. vistados além da supracitada: falta de material em braile e
O aluno cego: preconceitos e potencialidades * Sylvia Nunes & José Fernando Bitencourt Lomônaco 61
de acessibilidade do ambiente físico. Segundo as autoras, espontaneísta, improvisativa e realizada por principiantes”
os problemas de escolarização apontados não se referem (p.118).
a limitações intelectuais ou de abstração do cego, mas da Mais do que injustiça trata-se de um desrespeito às
falta de preparo do sistema educacional e da escola espe- leis que asseguram os direitos dos alunos com deficiência. A
cífica em que estavam estudando, pois não houve suficiente emenda constitucional n.º 12, de 1978, afirma que “(...) é as-
adaptação dos recursos didáticos para potencializar a apren- segurado aos deficientes a melhoria de sua condição social
dizagem dos alunos. e econômica, especialmente mediante educação especial e
Montilha, Temporini, Nobre e Kara-José (2009) rela- gratuita”; e no artigo 208, lemos no inciso III, da Constituição
tam uma pesquisa em que 26 alunos com deficiência visual, de 1988: “(...) atendimento educacional especializado aos
cegueira e baixa visão, com média de idade de 17 anos, portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular
responderam a um questionário sobre o seu processo de de ensino”.
escolarização. Os resultados apontaram alto nível de repe- Será que o direito do aluno com deficiência está
tência dos alunos. Além disso, a dificuldade mais apontada garantido se não são dadas condições adequadas de pre-
pelos sujeitos foi a de ler os livros didáticos. E a relação paração do professor e se não são feitas as adaptações
com o professor, dentre a relação com colegas e diretor, foi necessárias para que ele seja um aluno regular realmente
a mais escolhida como influente no processo de aprendiza- incluído em sala de aula comum? Para Lira e Schlindwein
gem. Nesse sentido, podemos pensar que, segundo esses (2008), “a escola pode auxiliar a enfrentar as dificuldades
alunos, um bom relacionamento com o professor auxilia mais impostas pela diferença visual em uma sociedade essencial-
na compreensão dos conteúdos escolares. Porém, esse bom mente visual”. (p.173). É nesse sentido que acreditamos que
relacionamento nem sempre ocorreu, pois 73,1% dos alunos a reflexão sobre o que é a cegueira, bem como a abertura à
tiveram alto índice de repetência. experiência com o aluno cego são caminhos facilitadores da
No estudo realizado por Nunes e Lomônaco (2008), aprendizagem deste aluno.
alunos cegos de uma instituição especializada foram solicita-
dos a definir conceitos concretos e abstratos. Nem todos os IV. À guisa de conclusão
participantes apresentaram definições claras e corretas dos
conceitos em questão, porém, aqueles que o fizeram afir- Como destacado nas seções anteriores, a cegueira
maram terem aprendido tais conhecimentos na escola. Para tem sido pensada unicamente pela falta e pela incapacidade.
nós, isso significa que o cego, como qualquer aluno, precisa Isso é evidenciado no susto e na admiração das pessoas ao
ter oportunidades de aprendizado. Dada a ausência de vi- se depararem com algumas habilidades cotidianas de indiví-
são, são necessárias adaptações para que as informações duos cegos. O espanto e a descrença parecem ainda maiores
visuais lhes cheguem por outras vias. Mas a capacidade de quando se trata da formação e práticas profissionais desses
abstração do cego não é diferente da capacidade daquele últimos. São comuns comentários comparativos com cegos
que enxerga. A questão é que, independente da cegueira, bem sucedidos e conclusões de que é uma vergonha que
para aprender, é preciso ter oportunidade de aprendizagem. eles consigam algo grandioso enquanto nós (videntes e per-
Em resumo, nos estudos apresentados sobre a edu- feitos...) não temos o mesmo (ou melhor) desempenho pro-
cação do aluno com deficiência visual, percebemos pontos fissional. Parece existir uma expectativa de frustração para a
comuns: falta de recursos, falta de preparo do professor e vida do cego e o espanto está em perceber seu sucesso ou,
falta de conhecimento sobre a capacidade de aprendizagem melhor dizendo, sua capacidade de chegar ao mesmo ponto
do cego. Quanto à falta de recursos, os estudos mostraram que o vidente. Essas falsas ideias evidenciam a expectativa
que a fala do professor constitui praticamente o único recurso de limitações muito maiores e mais amplas da pessoa cega
para a aprendizagem do cego. Ainda que a linguagem seja do que aquelas realmente decorrentes da deficiência.
fundamental no desenvolvimento, ela não consegue substi- Esta concepção do cego como ser faltante dificulta
tuir tudo, por isso a importância de utilizar outros materiais muito as relações sociais da pessoa cega, principalmente
adaptados. pelo desconhecimento de sua real condição, o que pode
Além disso, para que a linguagem seja uma fonte de causar um impacto afetivo negativo, uma vez que o imagi-
informações para o aluno cego, é preciso que esteja adap- nário social está enviesado por estereótipos de limitação e
tada às suas necessidades, a fim de que os conhecimentos sofrimento na vida do cego.
trazidos pelo professor possam fazer sentido. Assim, nota- O prognóstico desfavorável para pessoas deficientes,
mos que a discussão sobre integração/inclusão, frequente muitas vezes se baseia demasiadamente nas limitações da
desde a década de 1990, ainda se faz necessária. Pois não deficiência. Essa percepção organicista valoriza excessiva-
basta que os alunos cegos estejam em sala de aula. É pre- mente o defeito orgânico. É evidente que não se trata de
ciso que a escola adapte-se a esse aluno. Sem a oferta de negar a cegueira enquanto uma limitação que exige adapta-
oportunidades de aprendizagem, não há garantia do direito ções. No entanto, há algumas décadas, pesquisadores que
à educação. trabalham com cegos, tal como Amiralian (1990), questionam
Ao comentar a escassez de materiais adequados para os resultados que mostram atrasos no desenvolvimento do
o cego, Monte Alegre (2003) desabafa: “(...) é injusto com os deficiente visual em pesquisas comparativas com videntes.
estudantes cegos que eles fiquem fadados a uma pedagogia Para além da comparação, nossa proposta, de acordo com
62 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
os autores aqui citados, é pensar em processos diferentes, Lei n. 5540, de 28 de novembro de 1968. (1968). Fixa normas de
com diferentes tempos de desenvolvimento, mas lembrando organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação
que o cego é capaz de aprender, simplesmente porque é um com a escola média, e dá outras providências. Brasília.
ser humano, ou seja, um ser de aprendizagem. Isso quer
dizer que pais, professores e profissionais devem facilitar e Lira, M. C. F., & Schlindwein, L. M. (2008) A pessoa cega e a inclusão:
possibilitar ao máximo tal aprendizagem. um olhar a partir da psicologia histórico-cultural. Caderno Cedes,
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150.
O aluno cego: preconceitos e potencialidades * Sylvia Nunes & José Fernando Bitencourt Lomônaco 63
Recebido em: 26/02/2009
Reformulado em: 01/06/2010
Aprovado em: 08/06/2010
Sobre os autores
Correspondência
Sylvia Nunes
Rua Dr. Moacyr Vargas de Souza, 115
Jardim Filipinos Poços de Caldas- MG CEP: 37701-257.
64 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
Psicologia Escolar na rede pública de educação dos
Municípios de Santa Catarina
Resumo
Este artigo foi elaborado a partir da pesquisa que mapeou os projetos de lei que inserem os psicólogos na rede pública de Educação nos
municípios catarinenses. O objetivo é discutir as concepções de Psicologia Escolar presentes nos projetos de lei, visando compreender em
que medida apresentam elementos inovadores e pertinentes às discussões recentes na área de Psicologia Escolar e Educacional. Os dados
foram produzidos por meio de entrevistas realizadas por telefone com secretários(as) de educação de municípios que possuem psicólogo na
Educação e consultas aos projetos de lei. Constatou-se que a legislação contempla uma variedade de concepções teóricas (tradicionais e
contemporâneas), as quais repercutem diretamente nas formas de atuação e nos resultados dos trabalhos dos psicólogos, divergindo de acordo
com o grau de criticidade de cada profissional e o contexto de atuação.
Palavras-chave: Psicologia escolar, leis, atuação do psicólogo.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional,SP. * Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 65-72. 65
Introdução do fenômeno humano, preocupando-se exclusivamente
com padrões gerais de comportamento estabelecidos esta-
Este artigo tem como pano de fundo a pesquisa “A tisticamente (Yazlle, 1997). Em outras palavras, aponta-se
atuação do psicólogo frente à demanda escolar: regulamen- a “ausência de compromisso da Psicologia com a condição
tação, concepções, práticas e inovações”, a qual tem sido multideterminada das circunstâncias nas quais os indivíduos
desenvolvida em âmbito nacional, envolvendo os estados de se humanizam” (Tanamachi & Meira, 2003). Trata-se assim,
São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Acre, Rondônia, Paraná e de uma Psicologia comprometida com a ordem e o controle,
Santa Catarina, coordenada pelo Laboratório Interinstitucio- ou seja, com as regras sociais decorrentes do sistema domi-
nal de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar (LIEPPE), nante - o capitalismo (Yazlle, 1997).
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com No início do século XX, observa-se a introdução do mo-
apoio do CNPq. Os dados aqui apresentados referem-se a delo clínico na Psicologia Escolar, inspirado na medicina, cujo
uma pesquisa associada a esta de longa duração, intitulada objetivo era diagnosticar e tratar crianças que apresentassem
“Mapeamento dos projetos de lei que inserem os psicólogos problemas de aprendizagem (Lima, 2005). Assim, enquanto
na rede pública de Educação dos municípios de Santa Ca- alguns profissionais utilizavam procedimentos psicotécnicos,
tarina”, realizada apenas no estado de Santa Catarina com advindos de laboratórios experimentais, baseados em testes
apoio do Fundo de Amparo à Pesquisa da Universidade de inteligência e técnicas projetivas de personalidade, outro
Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó) e do Artigo grupo de psicólogos realizava atendimento psicoterapêutico,
170 da Constituição do Estado de Santa Catarina. individualizado, detendo-se, sobretudo, à investigação de
Pretende analisar, através dos resultados da pesquisa problemas situados nos alunos (psicológicos, neurológicos,
em questão, as concepções de Psicologia Escolar presentes fonoaudiológicos, psiquiátricos), percebendo suas caracte-
nos referidos projetos de lei, avaliando de que forma estas rísticas pessoais como incompatíveis com a aprendizagem e
concepções têm norteado as práticas que a Psicologia de- o ajustamento escolar (Patto, 1987).
senvolve no contexto escolar e educacional, buscando com- Nesta lógica, era desconsiderada toda a dimensão
preender se as mesmas acompanham os avanços da ciência social do ensino, desde a dinâmica institucional, a relação
e da profissão, no que se refere ao grau de criticidade. professor-aluno, os métodos e conteúdos de ensino, entre
A relevância deste tema justifica-se quando analisa- outros aspectos, os quais não eram objeto de questiona-
mos retrospectivamente como a Psicologia atuou ao longo mentos, nem mesmo enquanto variáveis que poderiam gerar
da história no campo da Educação, sendo possível compre- problemas de ajustamento e/ou de aprendizagem. Somente
ender as influências que permeiam as práticas realizadas anos mais tarde esse serviço foi reestruturado em outras
neste contexto, atualmente. bases, abandonando a linha de atendimento essencialmente
Entende-se a Psicologia Escolar como área de estu- clínica, tendo em vista a crescente demanda de diagnóstico
do e atuação, cujo foco reside sobre o contexto educacional e tratamento de crianças com problemas de aprendizagem
(escolar ou extra-escolar) e na revisão crítica dos conhe- (Patto, 1987).
cimentos acumulados, tanto pela Psicologia com ciência, Surge também, paralelo ao Movimento de Higiene
quanto pela Pedagogia e pela Filosofia da Educação. Sendo Mental, um modelo de atendimento preventivo, focando
assim, o trabalho do psicólogo escolar é definido pelo seu ações de orientação, assistência, pesquisa e ensino em
compromisso teórico e prático com as questões escolares e desajustamento infantil. Esse movimento acreditava que o
educacionais, independente do seu local de trabalho (Meira psicólogo deveria se adiantar aos problemas e cuidar do bem
& Antunes, 2003). estar individual e social (Lima, 2005).
Retomando brevemente alguns aspectos históricos, A partir da década de 1980, essa visão tradicional da
pode-se afirmar que o surgimento da Psicologia Escolar Psicologia na Educação passou a ser denunciada, iniciando-
esteve diretamente relacionado à psicometria e especial- se uma discussão crítica em relação à identidade e à função
mente à aplicação de testes psicológicos. Os primeiros do psicólogo escolar. Respaldado, principalmente, pelo texto
trabalhos desempenhados por psicólogos nos sistemas de de Maria Helena Souza Patto1, o movimento da crítica bus-
ensino, no Brasil, a partir do final do século XIX, foram de cou a inclusão dos processos desenvolvidos na instituição
medir habilidades e classificar crianças quanto à capacida- escolar na análise das dificuldades de aprendizagem. Nesse
de de aprender, resumindo suas atividades à aplicação de sentido, os problemas de aprendizagem passam a ser perce-
testes de inteligência e de prontidão para a aprendizagem bidos como um fenômeno complexo, socialmente constituído
ou a realização de diagnósticos psicológicos. Em níveis mais e que deve ser analisado em seus aspectos históricos, eco-
sofisticados, alguns profissionais faziam terapia na escola, nômicos, políticos e sociais (Lima, 2005).
avaliação psicológica através de testes e, outros, dedicavam- Com base nos pressupostos teóricos do Materialismo
se a programas preventivos, atuando com pais, professores Histórico-Dialético, elaborado por Karl Marx, a concepção
e administradores, respaldados por uma concepção adapta- crítica entende o homem como um ser que tem nas relações
cionista de saúde mental (Patto, 1987). sociais a possibilidade de se constituir juntamente com outros
Nesse sentido, pode-se dizer que a Psicologia Escolar
surge marcada por modos de pensar descontextualizados, 1 Patto, M. H. S. (1987). Psicologia e ideologia: uma introdução
na medida em que não considera os determinantes sociais crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz.
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homens, na medida em que se constroem formas de satis- caminhamento desta documentação, o que era combinado
fação de suas necessidades, numa relação dialética. Dessa a partir do contato telefônico. Munidos destes documentos,
forma, os aspectos psicológicos devem ser compreendidos passou-se para a etapa seguinte, cujo objetivo era analisar
em seu caráter fundamentalmente histórico e social (Meira & os conteúdos destes projetos de lei, a fim de verificar se os
Antunes, 2003). mesmos acompanham os avanços da ciência e da profissão,
Portanto, pode-se dizer que o objeto de estudo e atu- no que diz respeito à Psicologia Escolar crítica. Nesta etapa,
ação da Psicologia Escolar é o encontro entre o sujeito hu- optou-se por categorizar os conteúdos contidos nas leis, com
mano e a educação, não focando nem o sujeito psicológico e o intuito de classificá-los e agrupá-los de acordo com os ob-
nem o contexto educacional isoladamente, mas procurando jetivos da pesquisa. As categorias elaboradas compreendem
compreender as relações que se estabelecem entre estes os seguintes itens:
processos. A função do psicólogo escolar não é a resolução 1) provimento do cargo, que se refere ao preenchi-
de problemas, nem a simples divulgação de teorias e conhe- mento permanente ou temporário de lugar público;
cimentos psicológicos, mas de acordo com suas limitações, 2) grupos profissionais, entendido como a classifica-
auxiliar a escola a eliminar os obstáculos que se colocam ção dada ao conjunto de cargos, agrupados de acordo com a
entre os sujeitos e o conhecimento (Meira & Antunes, 2003). natureza da atividade;
3) Jornada de trabalho, que se refere ao número de
horas trabalhadas semanalmente;
Metodologia 4) data de aprovação da lei, na qual é apresentado o
dia, mês e ano de aprovação da lei e;
Esta pesquisa tem caráter qualitativo, ou seja, “é 5) especificações do cargo, que se caracteriza pela
orientada para a análise de casos concretos em sua particu- descrição das atribuições, deveres e responsabilidades do
laridade temporal e local, partindo das expressões e ativida- cargo a ser provido.
des das pessoas em seus contextos locais” (Flick, 2004, p. No total, foram pesquisados 177 dos 293 municípios
28). As técnicas de pesquisa utilizadas foram a entrevista por catarinenses. Destes, 27 possuem psicólogo na educação
telefone com secretários(as) de educação de municípios que e apenas 12 possuem lei que regulamenta a atuação deste
possuem psicólogo na Educação e a pesquisa documental profissional.
em arquivos públicos, por meio de consultas aos projetos de Esta amostragem, que consideramos significativa,
lei dos municípios de Santa Catarina que inserem os psicólo- não foi definida previamente, mas é decorrente da dificulda-
gos na rede pública de Educação. de de englobar todos os municípios do Estado, em função do
Inicialmente, a pesquisa contou com dados do Rela- não retorno das informações por uma parcela deles e o tem-
tório do Levantamento Sobre Projetos de Lei e Práticas de po que seria exigido para cumprimento pleno desta etapa, o
Psicólogos na Área de Educação, realizado pelo Conselho qual não dispúnhamos. Posteriormente, foram apresentados
Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-12, 2007), e analisados os dados com base nas categorias acima des-
cujos resultados contribuíram com informações sobre 80 mu- critas, visando atender os objetivos da pesquisa. A análise
nicípios do Estado. Cabe ressaltar que a pesquisa envolveu do conteúdo expresso nesta legislação, procurou identificar
apenas as redes municipais de Educação porque a rede es- as concepções que os embasam, verificando se as mesmas
tadual não conta com psicólogos em seu quadro funcional. correspondem aos avanços da Psicologia Escolar crítica.
Posteriormente, o trabalho de campo se desenvolveu Na análise dos resultados foram considerados apenas
por intermédio da Federação Catarinense de Municípios (FE- 10 municípios, em função dos mesmos possuírem legislação
CAM), através da qual foram abordadas as 21 associações que regulamenta a atuação do psicólogo escolar. Conside-
microrregionais de municípios que a compõe, por meio de rando que obtivemos um total de 12 municípios que possuem
entrevistas por telefone. Primeiramente, foram mapeados os lei, cabe esclarecer que não foi possível acessar os dados de
municípios catarinenses que possuem psicólogos atuando dois dos municípios no prazo pretendido.
na rede pública de Educação. Nesta etapa, foi necessário
contatar mais de uma pessoa, a fim de obter os dados solici-
tados, devido à falta de informações de alguns profissionais Apresentação e discussão dos
e incompatibilidade entre os dados coletados.
Nos municípios onde foi constatada a presença de resultados
psicólogo atuando na educação, procurou-se verificar, com
os Secretários de Educação, a existência de legislação que Os resultados da pesquisa em questão trouxeram
regulamentasse a atuação deste profissional no contexto dados importantes para as discussões que se têm dado no
escolar. Neste mesmo contato, nos municípios que possuem âmbito da Psicologia Escolar crítica, sendo eles quantitativos
lei, investigou-se o número da mesma e as formas de acesso e qualitativos. A seguir, procura-se apresentar alguns resulta-
a estes textos. dos e desenvolver uma análise sobre os projetos de lei e as
O acesso a esta legislação se desenvolveu por meio práticas desenvolvidas pelo psicólogo escolar, atualmente.
de pesquisa aos endereços eletrônicos (sites) e via correio Dos 177 municípios pesquisados, no que se refere
ou fax, ficando a critério de cada município a forma de en- à existência de psicólogo atuando na Educação, constatou-
Psicologia Escolar na rede pública de educação dos Municípios de Santa Catarina * Celso F. Tondin, Débora Dedonatti & Irme S. Bonamigo 67
se que 27 municípios possuem psicólogo na Educação, 76 está relacionada às novas propostas de construção do co-
municípios possuem psicólogo na Saúde que presta serviço nhecimento, levando em conta a diluição das fronteiras, de
para a Educação e 74 municípios não possuem psicólogo na tempos, espaços e saberes. Compreender essa concepção
Educação. Destes 27 municípios que possuem psicólogo na contida nos projetos de lei nos remete às expectativas do
Educação, quanto à existência de legislação que regulamen- serviço público quanto ao trabalho do psicólogo escolar, bem
ta a atuação deste profissional, obtiveram-se os seguintes como as práticas que estão sendo efetivamente realizadas
resultados: 12 municípios possuem lei que insere o psicólogo nas instituições escolares.
no quadro de funcionários da educação, 14 municípios não Enfatizando a emergência das leis, nos municípios nos
possuem lei e um município não foi possível obter esse dado quais foi identificada a existência das mesmas, constatou-se
devido à dificuldade de contatá-los. que sua aprovação data de um período recente, compreen-
No que se refere aos projetos de lei, especialmente dendo a última década, mais especificamente o período de
ao provimento do cargo de psicólogo escolar, verificou-se 1999 a 2007.
que, em sua maioria, o psicólogo compõe o quadro de fun- Considerando o período de envolvimento da Psico-
cionários permanentes da Educação, sendo o caso de 7 dos logia com as questões da Educação, que teve início no final
10 municípios pesquisados. Entre os demais, um compõe o do século XIX, período no qual se evidenciou a incorporação
quadro de funcionários temporários da Educação e 2 fazem dos saberes psicológicos às questões educacionais, e que a
parte do quadro geral de funcionários efetivos no município, profissão do psicólogo foi constituída legalmente em 1962,
embora atuem na Educação. Quanto à carga horária de atu- acredita-se que a regulamentação da atuação do psicólogo
ação profissional, verifica-se uma variação de 20 a 44 horas escolar nos municípios catarinenses, tendo ocorrido somente
semanais. no final do século XX, foi um tanto tardia.
Identificaram-se, na análise da legislação, alguns gru- Antunes (2003) ressalta que, a partir de 1962, as
pos profissionais, ou seja, um conjunto de cargos agrupados relações entre Psicologia e Educação tornaram-se alvo de
de acordo com a natureza da atividade, que inclui a função polêmicas, em função das críticas que passaram a emergir.
de psicólogo escolar. Dentre a variedade de termos utilizados Nesta época, a Psicologia estava incorporada à prática pe-
para designá-los, destacam-se: “grupo ocupacional profissio- dagógica e a atuação profissional dos educadores, muitas
nal”, “grupo de apoio técnico científico”, “grupo de especialis- vezes desempenhando práticas marcadas por insuficiente
tas em assuntos educacionais” e “suporte pedagógico direto fundamentação teórica. Ao mesmo tempo, a prática especí-
à docência”. fica do profissional psicólogo na escola estava muito emba-
Cabe destacar que esses termos diferem também sada em uma perspectiva clínica, atuando no atendimento
quanto ao seu conteúdo, isto é, aos grupos profissionais in- individual de “crianças com problemas de aprendizagem”,
tegrantes. O termo mais comumente utilizado e que merece fora da sala de aula.
mais atenção é o “grupo de especialistas em assuntos educa- Em meados de 1970, a utilização de testes passa a
cionais”, sendo identificado em 3 projetos de lei. No entanto, ser duramente criticada. Essas críticas partem da maneira
o mesmo termo designa um grupo diferente de profissionais como os testes eram utilizados e suas conseqüências para
nestes projetos, por exemplo, em determinada lei engloba os o educando, levando em conta que os resultados dos testes
cargos de “psicólogo escolar”, “supervisor escolar” e “orien- eram usualmente interpretados como atribuições próprias
tador educacional”, já em outra, além destes, compreende os do sujeito, culpabilizando o aluno pelos ditos “problemas de
cargos de “fonoaudiólogo” e “auxiliar de ensino da Educação aprendizagem”. Essa concepção negligenciava as condições
Infantil”. socioculturais e pedagógicas, além de causar danos nocivos
A denominação “especialista em assuntos educacio- para um grande número de crianças, que eram encaminha-
nais” nos remete a pensar a questão das especialidades ou das às classes especiais (Antunes, 2003).
especialismos. Hüning e Guareschi (2005) ressaltam que Além disso, as críticas estendiam-se às interpretações
as delimitações do conhecimento vão criando campos de e ações reducionistas, cujas determinações dos problemas
competências, dispositivos de inteligibilidade, especialidades escolares eram buscadas em fatores externos ao ambiente
e especialistas. Essas concepções trazem alguns perigos escolar, como: desenvolvimento mental, atenção, compro-
para as ciências, especialmente para a Psicologia, no que metimentos motores ou emocionais (entendidos como pro-
diz respeito ao risco de fragmentação do ser humano, da duto das relações familiares). Isso resultava em um problema
privatização das diferentes instâncias da vida, sendo que as ainda mais grave, o encobrimento dos determinantes intra-
especialidades podem prestar-se mais a uma questão com- escolares, os quais eram responsáveis por grande parte dos
petitiva do que a um suposto aprimoramento dos cuidados problemas (Antunes, 2003).
com a saúde ou com a vida. Diante disso, analisa-se se que estas críticas, jun-
Considerando que a contemporaneidade nos apre- tamente com a regulamentação da atuação do psicólogo
senta a inviabilidade de pensar o conhecimento ou a prática escolar legitimaram o trabalho deste profissional, permitindo
profissional dentro de fronteiras nitidamente delimitadas, o desenvolvimento de um novo olhar sobre os problemas es-
cabe-nos perguntar se a denominação “especialista em as- colares, partindo de uma perspectiva crítica, que considera
suntos educacionais” contida nos projetos de lei concebe o o ambiente escolar, bem como as práticas pedagógicas en-
trabalho da Psicologia enquanto uma especialidade ou se quanto co-responsáveis pelos processos de aprendizagem.
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No que diz respeito às especificações do cargo de que abarcam uma diversidade de concepções teóricas ou até
psicólogo escolar, ou seja, à descrição das atribuições, deve- mesmo a ausência de concepção teórica. Isso resulta muitas
res e responsabilidades do cargo, foi verificado que: existem vezes em trabalhos insuficientes, que não atingem as expec-
atividades generalistas no bojo dos projetos de lei, coexistem tativas da escola e reforçam os problemas que permeiam as
concepções distintas de Psicologia Escolar e inexiste especi- práticas educativas.
ficação do cargo em alguns projetos de lei. Por outro lado, com relação às leis que apontam as
Desse modo, pode-se perceber que embora a lei vise especificações do cargo, nos propomos a verificar se as
regulamentar e legitimar o trabalho do psicólogo na escola mesmas condizem com as atuais concepções de Psicologia
aponta um número relativamente maior de atribuições da Escolar crítica.
Psicologia, ou seja, atividades que a Psicologia pode desen- Com esse intuito, parece importante resgatar breve-
volver em diversos contextos, ao invés de serem enfatizadas mente as concepções tradicionais em Psicologia Escolar, que
as atividades específicas da Psicologia Escolar. Da mesma são as seguintes: 1) teoria do dom ou das aptidões Individu-
forma, a maior parte das atividades consideradas específicas ais (“criança anormal”), que se utiliza de testes de aptidão e
pela legislação, podem ser desenvolvidas também por outros personalidade e acredita que a origem do problema está no
profissionais, o que demonstra certa negligência e/ou desco- indivíduo, em seus determinantes hereditários; 2) ambienta-
nhecimento, por parte daqueles que participam da elabora- lismo (“criança problema”), que parte da análise da história
ção das leis, das especificidades da Psicologia Escolar. de vida e dos comportamentos e acredita que o problema
Conforme afirma Meira (2003), ao mesmo tempo em escolar tem origem no ambiente familiar desajustado e/ou
que a Psicologia não pode desconsiderar a dimensão edu- na criança e seus relacionamentos; 3) organicismo (“criança
cativa em qualquer de suas áreas de atuação, a Psicologia com distúrbio de aprendizagem”), utiliza-se de exame neu-
Escolar não pode ser compreendida enquanto uma especia- rológico e eletroencefalograma, acreditando que o problema
lidade na formação do psicólogo, embora tenha especificida- parte de uma disfunção cerebral, ou seja, de fatores orgâni-
des, as quais precisam ser de conhecimento do profissional cos; 4) interacionismo (“criança carente, deficiente ou dife-
psicólogo que atua na escola. rente”), utiliza-se da educação compensatória por acreditar
A existência de atividades generalistas no bojo dos que a origem do problema está nos aspectos socioculturais
projetos de lei traz vantagens e desvantagens para a prática e; 5) inatismo/mbientalismo, interacionismo/construtivismo
do psicólogo escolar. De um lado, percebe-se a generaliza- (“criança imatura”), procede-se a aplicação de provas para
ção dessas atividades como uma alternativa que amplia as avaliar o desenvolvimento e a capacidade da criança, bem
perspectivas de trabalho, levando em conta que estas podem como as condições do ambiente, partindo da crença de que a
ser desenvolvidas por vários profissionais, podendo atingir origem do problema está no processo de desenvolvimento do
os mesmos objetivos a partir de referenciais teórico-práticos indivíduo em contato com o meio adequado (Meira, 2003)
distintos. Por outro lado, a generalização dessas atividades Observa-se no conteúdo das leis que regulamen-
pode resultar em um descuido com as especificidades da tam a atuação do psicólogo na rede pública de Educação
Educação, as quais devem ser do conhecimento dos profis- a existência de concepções tradicionais e contemporâneas
sionais que se propõem a desenvolver trabalhos no ambiente em Psicologia Escolar, sendo verificadas em uma mesma lei
escolar. Quanto a essa questão, Tanamachi e Meira (2003) concepções distintas, em função das atividades atribuídas ao
afirmam que o psicólogo precisa se colocar dentro da edu- profissional de Psicologia.
cação e assumir um compromisso teórico e prático com as Quanto às atividades presentes nos projetos, “avaliar
questões da escola. alunos com dificuldades de aprendizagem, através da testa-
Cabe destacar que algumas leis que inserem o psicó- gem e recursos apropriados, emitindo parecer psicológico e
logo na Educação não contemplam a especificação do cargo, propondo encaminhamentos quando necessário” e a “reali-
o que nos leva a questionar as formas como são elaborados zação de psicoterapia individual e/ou grupal”, pode-se pensar
estes projetos de lei, quem participa desta elaboração e qual que estas atribuições revelam uma concepção semelhante
o envolvimento do psicólogo neste processo, tendo em vista à teoria do dom ou aptidões individuais, na qual através de
que essa legislação regulamenta a sua atuação. Por acreditar testes de aptidão e personalidade, busca-se na criança a
que este profissional possua conhecimentos específicos do origem dos problemas de aprendizagem. Já as atribuições
campo da Educação, bem como dos avanços da Psicologia “realizar visitas domiciliares” e “realizar orientação familiar”
Escolar crítica, considera-se sua participação fundamental nos remete a concepção ambientalista, que parte da crença
na elaboração de projetos de lei, com o objetivo de ampliar de que o ambiente familiar desajustado e os relacionamentos
e especificar as atividades que podem ser desenvolvidas em da criança são os determinantes dos problemas escolares.
Psicologia Escolar e Educacional. Por outro lado, atribuições como: “colaborar na re-
A ausência de especificação do cargo, ao mesmo construção e avaliação das práticas educacionais, visando
tempo em que dá liberdade para a atuação do psicólogo favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento psicossocial
escolar, não colocando limites quanto aos recursos utiliza- dos alunos” e “participar do trabalho de elaboração, implan-
dos nem às atividades que podem ser desenvolvidas, bem tação, avaliação e reformulação de projetos pedagógicos,
como às formas de condução destes trabalhos, também abre currículo e políticas educacionais, concentrando sua ação
inúmeras possibilidades, permitindo o exercício de atividades nos aspectos que dizem respeito aos processos de desen-
Psicologia Escolar na rede pública de educação dos Municípios de Santa Catarina * Celso F. Tondin, Débora Dedonatti & Irme S. Bonamigo 69
volvimento humano, de aprendizagem e das relações inter- Conclusão
pessoais” nos remete às teorias críticas contemporâneas,
as quais se preocupam com as práticas educacionais e as A realização deste estudo apontou algumas particu-
relações estabelecidas no ambiente escolar enquanto produ- laridades da rede pública de Educação do Estado de Santa
tores do fracasso escolar, deixando de focar o sujeito e seu Catarina quanto ao processo de inserção do psicólogo na
contexto social como fatores determinantes das dificuldades escola, especialmente no que diz respeito à regulamentação
de aprendizagem. deste trabalho, sendo identificado um número restrito de mu-
As teorias críticas entendem a queixa escolar como nicípios que possuem suas práticas legalmente previstas.
uma síntese de múltiplas determinações, incluindo relações Além disso, a análise destes documentos e organi-
familiares, grupos de amigos, contexto social e escolar, sen- zação dos dados permitiu a explicitação de algumas inquie-
do que a superação das condições produtoras da queixa tações que nos ocorreram, embora uma análise rigorosa,
dependem da ação conjunta dos envolvidos, que pode ser exigiria um exame mais detalhado destas produções.
mediada pelo psicólogo. Essa compreensão não visa desfo- Considerando a legislação que regulamenta e legiti-
car a criança para culpabilizar a família ou a escola, mas se ma o trabalho do psicólogo escolar, a qual não contempla a
dirige às circunstâncias em que o processo educativo se re- amplitude de atividades que podem ser desenvolvidas por
aliza, entendendo que podem ser modificadas. O desafio da este profissional e que existe uma variedade de concepções
intervenção consiste em identificar possibilidades concretas teóricas que perpassam as práticas previstas pela legislação,
para superação dessa situação (Tanamachi & Meira, 2003). supõe-se que estes projetos de lei sejam resultado de pro-
Neste estudo, pode-se perceber que o trabalho do cessos distintos de elaboração.
psicólogo escolar não é devidamente previsto pela legislação Além disso, identifica-se a coexistência de concep-
que regulamenta sua prática. Da mesma forma, supõe-se ções distintas de Psicologia Escolar no bojo de cada projeto
que as práticas desenvolvidas por muitos profissionais de de lei, abarcando concepções tradicionais e contemporâne-
Psicologia não condizem com as expectativas da gestão as, o que nos leva a crer que não houve a participação do
educacional, levando em conta que não existem especifica- psicólogo na elaboração destes textos, o qual supostamente
ções para sua atuação. teria conhecimentos sobre os avanços das concepções em
A atuação da Psicologia no contexto educacional visa Psicologia Escolar crítica. Se houve, eles não estão apropria-
contribuir para que a escola cumpra sua função social - de dos destas discussões.
socializar o conhecimento acumulado historicamente e con- Dessa forma, sugere-se para futuras pesquisas a in-
tribuir para a formação ética e política dos sujeitos -, não se vestigação sobre os processos de elaboração dos projetos
restringindo à resolução de problemas e divulgação de teo- de lei, a fim de responder aos seguintes questionamentos:
rias e conhecimentos psicológicos, mas atuando dentro de quem participa do processo de elaboração dos projetos de
seus limites e especificidades, ajudando a escola a eliminar lei que inserem o psicólogo na escola? O psicólogo participa
os obstáculos que se colocam entre os sujeitos e o conhe- da elaboração da lei que regulamenta sua atuação? Como
cimento, auxiliando no processo de formação de práticas são definidas as especificações do cargo de psicólogo esco-
educativas que favoreçam os processos de humanização e lar? As práticas desenvolvidas condizem com as atividades
desenvolvimento do pensamento crítico (Tanamachi & Meira, previstas em lei?
2003). Também é evidente a necessidade de refletir sobre a
Essa atuação poderia ser efetivada com maior rigor formação acadêmica e a formação continuada. Assim, ques-
se fossem elaboradas diretrizes e parâmetros para os pro- tiona-se: como está o ensino de Psicologia e Educação nos
jetos de lei, pautadas pelas evoluções da Psicologia Escolar cursos de graduação? Como tem sido trabalhada a formação
crítica, mediante a participação de profissionais de Psicologia continuada dos psicólogos escolares e educacionais? Que
e Educação, os principais envolvidos nesta prática. políticas são previstas para uma formação em serviço que dê
Nesse sentido, para que a Psicologia possa contribuir conta do profissional lidar com a realidade escolar?
com a Educação é necessário que sejam construídas meto- Estes e tantos outros questionamentos são oriundos
dologias de trabalho baseadas em um movimento de ação/ dos resultados desta investigação, porém, as respostas a
reflexão/ação, permitindo que todos os envolvidos possam estas questões exigem a realização de novas pesquisas, o
refletir sobre a própria prática social, utilizando-se de teorias que enriqueceria os resultados deste estudo.
que direcionem estas práticas, agindo de forma diferenciada Espera-se que esta pesquisa tenha contribuído com
e comprometida com o desenvolvimento de ações que tradu- elementos que favoreçam o debate e o estudo sobre a inser-
zam essa nova compreensão crítica sobre si mesmo e sobre ção do psicólogo na rede pública de Educação, contribuindo
a realidade social (Tanamachi & Meira, 2003). com a discussão que tem se dado no âmbito das entidades
científicas e profissionais da Psicologia.
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Sobre os autores
Correspondência
Celso Francisco Tondin
Rua Uruguai, 333-E ap. 104
Centro, Chapecó - SC CEP: 89.801-570
Agradecimentos
Fundo de Amparo à Pesquisa da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó)
Psicologia Escolar na rede pública de educação dos Municípios de Santa Catarina * Celso F. Tondin, Débora Dedonatti & Irme S. Bonamigo 71
Competências em Educação: conceito e significado
pedagógico
Resumo
O conceito de competência e a reflexão sobre o seu significado pedagógico assumem um papel de destaque na investigação em Educação a
nível nacional e internacional. Este artigo procura enquadrar e definir o conceito de competência no contexto educativo, fazendo alusão à relação
entre o construtivismo e uma abordagem por competências no processo de ensino/aprendizagem. Recorrendo a investigações multidisciplinares
nacionais e internacionais, este estudo pretende constituir-se como um contributo para o entendimento do significado pedagógico do conceito
de competências. Procura dados para reflectir acerca da intervenção educativa numa escola pluralista, multifacetada e em constante mutação.
A educação é uma forma de intervenção no mundo, que solicita sujeito(s) aprendente(s), acção e contextos específicos. Esta mobilização dos
recursos pessoais para uma resposta efectiva numa situação particular ocorre autonomamente quando se proporcionam oportunidades para a
sua construção.
Palavras-chave: Competência, construtivismo, educação.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 73-78. 73
Introdução permite ao sujeito aprendente enfrentar e regular adequada-
mente um conjunto de tarefas e de situações educativas.
O conceito de competência e a reflexão sobre o seu Neste sentido, competência será um constructo teó-
significado pedagógico assumem um papel de destaque na rico que se supõe como uma construção pessoal, singular,
investigação em Educação a nível nacional e internacional (Co- específica de cada um. É única e pertence, exclusivamente,
mellas, 2000; Cruz, 2001; Gouveia, 2007; Perrenoud, 1999). à pessoa, exprimindo-se pela adequação de um indivíduo a
No âmbito escolar, a competência enfatiza a mobili- uma situação. Não se visualiza, observam-se os seus efeitos
zação de recursos, conhecimentos ou saberes vivenciados. (Rey, Carette, Defrance, & Kahn, 2005).
Manifesta-se na acção ajustada diante de situações com- Para Roldão (2003), a competência emerge quando,
plexas, imprevisíveis, mutáveis e sempre singulares (Boterf, perante uma situação, o sujeito é capaz de mobilizar adequa-
2003; Perrenoud, 2000, 2001, 2005). damente diversos conhecimentos prévios, seleccioná-los e inte-
Uma abordagem por competências enaltece o que o grá-los de forma ajustada à situação em questão. Desta forma,
discente aprende por si, o aprender a aprender, a construção a competência exige apropriação sólida e ampla de saberes, de
pessoal do saber através da interacção. Enaltece o conheci- modo a permitir ao sujeito que os convoque (de forma ajustada)
mento enquanto instrumento de aquisição de competências, quando se encontra face a diferentes situações e contextos.
elogia os conteúdos enquanto meios possibilitadores de de- Competência recorre, desta forma, a noções, conhecimentos,
senvolvimento de competências. Valoriza o método pedagó- informações, procedimentos, métodos e técnicas.
gico e a aprendizagem, superando a dicotomia teoria-prática Cruz (2001) define competência como um conceito
e enraizando os valores educativos da escola do século XXI que acolhe saberes, atitudes e valores, abarcando o domínio
(Costa, 2004). do self (saber-ser), o domínio cognitivo (saber formalizado)
e o domínio comportamental (saber-fazer) - a competência
Competência: enquadramento teórico consolida-se numa acção ou no conjunto de acções orga-
nicamente articuladas. Este autor e Alves (2005), perspec-
O termo competência (do latim competentia, tivam a competência como a capacidade que as pessoas
“proporção”,”justa relação”, significa aptidão, idoneidade, desenvolvem de articular, relacionar os diferentes saberes,
faculdade que a pessoa tem para apreciar ou resolver um conhecimentos, atitudes e valores; como uma acção cogni-
assunto) terá surgido pela primeira vez na língua francesa, tiva, afectiva, social que se torna visível em práticas e ac-
no século XV, designando a legitimidade e a autoridade das ções que se exercem sobre o conhecimento, sobre o outro e
instituições (por exemplo, o tribunal) para tratar de determina- sobre a realidade. Constitui-se por um conjunto de saberes,
dos problemas. No século XVIII amplia-se o seu significado de saberes-fazer e de atitudes que podem ser mobilizadas e
para o nível individual, designando a capacidade devida ao traduzidas em performances. “A competência é agir com efi-
saber e à experiência. ciência, utilizando propriedade, conhecimentos e valores na
No domínio da Psicologia este constructo aparece acção que desenvolve e agindo com a mesma propriedade
em trabalhos científicos pela primeira vez através de Noam em situações diversas” (Cruz, 2001, p. 31).
Chomsky (nos anos 50 do século XX) no contexto da lin- Como defende a União Europeia, a competência é
guística, entendendo-se competência como a faculdade uma combinação de conhecimentos, capacidades e atitudes
inata de falar e compreender uma língua (Perrenoud, 2005). adequadas ao contexto (Estella & Vera, 2008).
Chomsky opõe competência a desempenho, entendendo a Para Perrenoud (1999), uma competência traduz-se
primeira como aquilo que o sujeito pode realizar idealmente na capacidade de agir eficazmente perante um determinado
devido ao seu potencial biológico, e o desempenho como o tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem se
comportamento observável (Dolz & Ollagnier, 2004). limitar a eles. É um saber em uso que exige integração e
A partir dos anos 70 do século XX, a palavra compe- mobilização de conhecimentos, processos e predisposições
tência surge associada à qualificação profissional, vinculan- que, ao incorporarem-se uns nos outros, vão permitir ao
do-se ao posto de trabalho e associando-se ao colectivo, à sujeito fazer, pensar, apreciar (Roldão, 2002). Constitui a
organização. Nesta perspectiva empresarial, a competência faculdade de mobilização de recursos cognitivos, com vista à
é interpretada como uma forma de flexibilização laboral e de resolução com pertinência e eficácia de uma série de situa-
diminuição da precariedade do emprego. ções (Gentille & Bencini, 2000).
Como defende Ceitil (2006), o termo competência Nestas enunciações, podemos encontrar diferentes
tem sido perspectivado ora como atribuição, ora como qua- componentes das competências: saber-saber, saber-fazer,
lificação, ora como traço/característica pessoal, ora como saber-ser. Definir competência através de cada uma destas
comportamento/acção, chamando a atenção ora para carac- componentes pode ser, no entanto, uma tentação perigosa,
terísticas extra-pessoais (perspectiva das atribuições e das uma vez que (1) os saberes fazem parte da competência,
qualificações), ora intra-pessoais (perspectiva dos traços/ mas não se podem confundir com ela; (2) as competências
características pessoais) e/ou comportamentais. são descritas como acções, mas não é o facto de descrever
Em Educação o conceito de competência tem surgido as acções que explica ou que possibilita a acção ou o êxito;
como alternativa a capacidade, habilidade, aptidão, potencia- (3) as competências estão directamente relacionadas com o
lidade, conhecimento ou savoir-faire. É a competência que contexto e o saber ser não tem implícito esse contexto.
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Comparar competência a recursos, a uma adição Ser competente permite ao sujeito ser autónomo em
de saberes, saberes-fazer e saberes-ser, apreendendo-a relação ao uso do saber, possibilita-lhe activar recursos (co-
como um estado, é negligenciar a perspectiva de construção nhecimentos, capacidades, estratégias) em diversos tipos de
pessoal subjacente a este constructo - um indivíduo sábio situações, nomeadamente, situações problemáticas. Ser com-
não é necessariamente competente, nem a competência é petente será ser capaz de recorrer ao que se sabe para se
um somatório, mas uma combinatória de elementos em que realizar o que se deseja/projecta. O indivíduo competente será
cada um se modifica em função das características daqueles aquele que, num determinado domínio, enfrenta eficazmente
aos quais se junta. uma situação inesperada, mobilizando e conjugando saberes,
Juntar estas três componentes, numa adição de par- saberes-fazer e técnicas. Como defende Comellas (2000), uma
tes, levanta, desta forma, problemas conceptuais (Beaufils, pessoa será competente num determinado domínio se colocar
2006). em acção diferentes capacidades e saberes necessários para
A competência integra e coordena um conjunto de es- dar uma resposta ajustada à situação em que se encontra. Ao
quemas (de percepção, pensamento, avaliação e acção) que atingir a realização pessoal, ao exercer a cidadania activa, ao
sustém inferências, antecipações, transposições analógicas, fomentar a inclusão social e o emprego, o sujeito manifesta as
generalizações, probabilidades, recolha de informação per- suas competências (Estella & Vera, 2008).
tinente, tomada de decisão. A competência integra, assim, Em síntese, a competência é uma combinação de
raciocínios, decisões conscientes, inferências, hesitações, conhecimentos, motivações, valores e ética, atitudes, emo-
ensaios e erros para se ir automatizando e constituindo-se ções, bem como outras componentes de carácter social e
num esquema complexo (Pereira, 2005). Como afirmam Per- comportamental que, em conjunto, podem ser mobilizadas
renoud, Thurler, Macedo, Machado e Allessandrini (2002, p. para gerar uma acção eficaz num determinado contexto
19) “(…) define-se competência como a aptidão para enfren- particular. Permite gerir situações complexas e instáveis que
tar uma família de situações análogas, mobilizando de uma exigem recorrer ao distanciamento, à metacognição, à toma-
forma correcta, rápida, pertinente e criativa, múltiplos recur- da de decisão, à resolução de problemas. Podemos, pois,
sos cognitivos: saberes, capacidades, micro competências, afirmar que a competência se caracteriza por ser complexa,
informações, valores, atitudes, esquemas de percepção, de projectada no futuro (numa aposta nos poderes do tornar-se).
avaliação e de raciocínio”. Exerce-se em situação, é completa, consciente e transferível
A competência apropria-se, assim, da acção, preexis- para outros contextos.
te e exige recursos e meios para os mobilizar. Se não há No âmbito educativo, solicita-se aos diferentes interve-
recursos a mobilizar não há competência, e se há recursos nientes (docentes e discentes) que mobilizem as suas aqui-
mas não é possível mobilizá-los a tempo, é como se não sições (pessoais, sociais, académicas, …) perante situações
existissem (Perrenoud, 2001, 2005; Pereira, 2005). Para que diversas, complexas e imprevisíveis. Solicita-se competência
exista essa mobilização é necessário que o sujeito transfira para fazer face aos desafios actuais (e futuros), numa alusão
conhecimentos, portanto, a mobilização inclui a transferência a uma conexão que combina recursos e acções do sujeito e
e acontece em situações complexas onde o sujeito pode es- traduz uma contribuição pessoal para um determinado desfe-
tabelecer o problema antes de o resolver, determinar quais cho. Solicita-se conhecimento em acção (Boterf, 2003). De-
os conhecimentos essenciais a recorrer, como reorganizar os fende-se que o sujeito é produtor e portador de competências,
dados em função da situação (Pereira, 2005). detentor de um conjunto de valores (como a colaboração, o
A noção de competência remete para situações empenho ou a mobilidade) que deverão ser tidos em conta na
nas quais é preciso tomar decisões e resolver problemas, abordagem às competências (Boterf, 2003; Costa, 2004).
associa-se à compreensão e avaliação de uma situação,
uma mobilização de saberes, de modo a agir/reagir ade- Abordagem por competências: uma perspectiva
quadamente. Desta forma, a tomada de decisão (expressar educativa
conflitos, oposições), a mobilização de recursos (afectivos e
cognitivos) e o saber agir (saber dizer, saber fazer, saber ex- A partir das definições previamente apresentadas, po-
plicar, saber compreender) são as características principiais demos verificar que a emergência da noção de competência
da competência. Estas características permitem entender na área da Educação evidenciou mudanças epistemológicas.
este conceito como uma forma de controlar (simbolicamente) Nos anos 60 do século XX, o behaviorismo teve uma grande
as situações da vida. influência no desenvolvimento dos objectivos pedagógicos,
Para Rychen e Tiana (2005), competência designa identificando os comportamentos que deviam ser expressos
um sistema de acção complexo que envolve aptidões cog- pelos alunos e promovendo os níveis de desempenho consi-
nitivas e não cognitivas. Ser competente exige sistemas de derados adequados e sujeitos a avaliação.
acção complexos que abarcam conhecimentos, estratégias e Nas últimas décadas, tem-se inflectido para uma
rotinas necessárias para os aplicar, emoções e atitudes ade- perspectiva cognitivista e construtivista, sendo que o enfo-
quadas e auto-regulação. Definir a competência pela compo- que tem recaído na construção interna do sujeito, no poder
nente do que conseguimos fazer de forma sistemática, apela e desejo que dispõe para desenvolver o que lhe pertence
a processos de ordem cognitiva, a estratégias da resolução como actor autónomo da sua aprendizagem. Os objectivos
de problemas às quais um indivíduo recorre quando age. pedagógicos passam a visar as competências a adquirir pe-
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gina perturbações, exige reflexões conjuntas que, ao serem académico e modificar a relação com o saber dos alunos
resolvidas, gera adaptação e sentido ao aprendido (Marujo & em dificuldade; (2) facilitar a assimilação activa de saberes
Neto, 2004). “A discussão em grupo ajuda os alunos a iden- aproximando construtivismo e pedagogia diferenciada; (3)
tificarem lacunas nos seus conhecimentos e a entenderem colocar os professores em movimento, incitando-os a falar
como a nova informação se relaciona com conceitos mais de pedagogia e a cooperar no quadro de equipas ou de pro-
amplos e inclusivos” (Almeida, 2002, p. 160). jectos de estabelecimento escolar. Concorrerá para fomentar
Nesta óptica activa e cooperativa ensinar será con- a relação com a vida profissional, o desenvolvimento pessoal
ceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, propor dos estudantes, ajudando-os a assumir responsabilidades
tarefas complexas e desafios que incitem (todos) os alunos sociais, a resolver problemas e a adaptar-se às mudanças
a mobilizar os seus conhecimentos e, em certa medida, a sociais (González & Wagenaar, 2003).
completá-los.
Como defende Freire (2004, p. 22), “(…) ensinar não
é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a Considerações finais
sua produção ou a sua construção”.
A abordagem por competências equaciona a diferen- Em situação de ensino/aprendizagem, o indivíduo
ciação pedagógica como a metodologia de trabalho a utilizar, aprende a identificar e a descobrir conhecimentos, a mobilizá-
valorizando o diálogo entre docente(s) e discente(s). los de forma contextualizada. Ser competente não é realizar
Para Visser (1993), a diferenciação pedagógica con- uma mera assimilação de conhecimentos suplementares,
templa o desafio de fazer progredir no currículo uma criança gerais ou locais, mas sim, compreende a construção de es-
em situação de grupo, através da selecção apropriada de en- quemas que permitem mobilizar conhecimentos na situação
sino e estratégias de aprendizagem e estudo. Desta forma, certa e com discernimento. A partir da formação de uma de-
assume-se a heterogeneidade como um recurso fundamental cisão ou procura de informação pertinentes, estes esquemas
da aprendizagem, adoptando-se a colaboração dos sujeitos, de percepção, pensamento, avaliação e acção suportam
a aprendizagem cooperativa, como recurso para regular a interferências, antecipações, generalizações e apreciações
aprendizagem e individualizar percursos educativos. de probabilidades. Ao construir competências considera-se o
Ao organizar-se as actividades e as interacções de contexto de aprendizagem, a implicação do sujeito na toma-
modo a que cada aluno seja frequentemente confrontado com da de decisão, a resolução de situações problemáticas e o
situações pedagógicas significativas para si e adequadas às próprio processo de construção de conhecimento.
suas características, está a procurar dar-se uma resposta Uma abordagem por competências defende que o
a todos os alunos, o que fomentará o sucesso educativo sujeito constrói os seus próprios saberes, numa interacção
(Grave-Resendes & Soares, 2002). afectiva que possibilita o aprender a aprender.
Criar situações pedagógicas geradoras de sentido e Em contexto educativo, com os outros, o sujeito (re)des-
de aprendizagem, diferenciá-las para que cada aluno seja re- cobre, (re)inventa novas possibilidades de acção que lhe per-
querido na sua zona de desenvolvimento próximo, optar por mitem situar-se critica e autonomamente na sociedade actual.
uma observação formativa e por uma regulação da aprendi-
zagem interactiva, considerar os efeitos das relações inter-
pessoais e individualizar percursos formativos, são apenas Referências
algumas estratégias que podem ser adoptadas numa lógica
de trabalho por problemas e/ou por projectos. Almeida, L. S. (2002). Facilitar a aprendizagem: ajudar aos alunos a
Numa perspectiva sócio-construtivista, o desenvolvi- aprender e a pensar. Psicologia Escolar e Educacional, 6(2), 155-
mento inicia-se no plano social, na relação com os outros. O 165.
sujeito realiza algo com alguém e é precisamente essa expe-
riência de partilha com o outro que possibilita a interiorização Alves, P. (2005). Dos objectivos às competências: implicações para
das principais funções cognitivas – o sujeito aprende com os a avaliação de um programa de formação de professores. Em
outros para, mais tarde, saber fazer sozinho. Neste processo, J. C. Morgado & M. P. Alves (Orgs.), Mudanças educativas e
a linguagem é essencial, servindo como mediadora entre o ní- curriculares ... e os educadores/professores? Actas do Colóquio
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Recebido em: 23/06/2009
Sobre a autora Reformulado em: 05/07/2010
Aprovado em: 08/07/2010
Isabel Simões Dias (mdias@esecs.ipleiria.pt)
Instituto Politécnico de Leiria da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, Leiria - Portugal
Correspondência
Isabel Simões Dias
Rua Dr. João Soares
Apartado 4045
2411-901 Leiria - Portugal
78 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 73-78
A consciência na obra de L.S. Vigotski: análise do
conceito e implicações para a
Psicologia e a Educação
Resumo
O objetivo deste artigo teórico é analisar o conceito de consciência na obra de L. S. Vigotski. Partimos dos pressupostos de que Vigotski não só
via o conceito de consciência como central em suas reflexões filosófico-metodológicas e em sua proposta de psicologia, como possuía, além
das importantes contribuições dentro da Psicologia do Desenvolvimento e dos processos de aprendizagem, um valor fundamental enquanto
pensador da Psicologia como ciência. Primeiramente, dedicamo-nos à transformação do conceito, desde um viés reflexológico até um caráter
mais semiótico. A seguir, analisamos uma metáfora utilizada por Vigotski em um de seus textos, em que compara a consciência a um objeto
refletido num espelho e faz uma analogia entre este processo e a ciência psicológica, seus pressupostos epistemológicos e metodológicos de
investigação. Finalmente, a partir dessas reflexões, concluímos com a discussão de alguns possíveis impactos do estudo do conceito vigotskiano
de consciência na Psicologia e na Educação.
Palavras-chave: Vygotsky, consciência, psicologia.
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Introdução avaliação, pelo fato de as diversas escolas psicológicas à
época da crise serem categorizadas em dois polos básicos:
O objetivo deste artigo é fazer uma análise do conceito uma corrente científico-natural materialista e outra dita idea-
de consciência, presente na obra do psicólogo L. S. Vigotski, lista ou espiritualista. Sistemas teóricos como o behaviorismo
de um ponto de vista epistemológico. De modo geral, pensa- (conhecido atualmente como behaviorismo metodológico), a
mos que Vigotski não só via o conceito de consciência como psicanálise, a reflexologia russa, a psicologia personalista
central em suas reflexões filosófico-metodológicas e em sua de William Stern e a psicologia subjetivista de origem alemã
proposta de psicologia, como costumava avaliar a relevância encaixavam-se em um ou outro polo da controvérsia. Assim,
de teorias psicológicas de acordo com a sua contribuição ao se uma tendência recorria a um polo científico-naturalista
estudo do conceito (Zinchenko, 1985, p. 99). Daí, procedere- e rejeitava a ideia de um fenômeno psíquico irredutível ao
mos à análise do conceito vigotskiano de consciência, seus físico em termos de propriedades e substâncias, a outra posi-
aspectos ontológico e epistemológico, isto é, sua natureza cionava-se no outro oposto do polo: afirmava a existência de
mesma e seu lugar e modo de investigação na ciência psico- um fenômeno psíquico formado por uma substância própria
lógica, bem como de algumas implicações do conceito para e isto dificultava sua sujeição a métodos de apreensão e aná-
a educação. lise rigorosamente científicos. Em palavras mais simples, o
O esforço teórico aqui empreendido parte precisa- dilema era a existência de uma ciência que negava o aspecto
mente da reflexão de que Vigotski possui, além das contribui- subjetivo ou a existência de uma psicologia que, aceitando o
ções importantes e conhecidas dentro da Psicologia do De- fenômeno psíquico, deixava de ser ciência2. É nesta espécie
senvolvimento e dos processos de aprendizagem, um valor de encruzilhada que se encontrava o fenômeno psicológico.
fundamental enquanto pensador da Psicologia como ciência, Para Vigotski, a proposição do conceito de consciência era
tendo realizado, em diversos textos, reflexões filosóficas e uma espécie de resposta para a dicotomia entre correntes da
metodológicas que buscavam legitimar o conhecimento psi- psicologia que unificaria, assim, a ciência psicológica.
cológico produzido no início do século XX, quando viveu a
maior parte de sua curta vida (1896-1934). Podemos dizer Transformação no conceito vigotskiano de
que, dentro da produção científica em Psicologia no Brasil, consciência
as contribuições de caráter mais epistemológico de Vigotski
não têm sido priorizadas e que, só nos últimos dez anos, A primeira coisa a perceber aqui é que, mesmo sendo
este quadro vem se modificando, em especial através de proposto como categoria fundamental para a sua psicologia,
estudos de alguns autores (Pino, 2000, 2005; Zanella, Reis, o conceito de consciência foi, ao longo dos anos, desenvol-
Titon, Urnau, & Dassoler, 2007). Dessa forma, nosso estudo vendo-se e transformando-se dentro dos trabalhos do autor.
justifica-se pela escassez de trabalhos de natureza teórico- Há alguns escritos que abordam este tema de forma mais
crítica sobre as reflexões produzidas por Vigotski, no âmbito explícita: o primeiro seria “Os Métodos de Investigação Re-
da Psicologia enquanto ciência. Este “outro” Vigotski já foi flexológicos e Psicológicos” (1999b), a famosa comunicação
resgatado por autores com Van der Veer e Valsiner, os quais de 1924 apresentada num congresso em São Petersburgo
afirmam que o autor, mais do que um psicólogo preocupado que “abriu as portas” da psicologia para Vigotski. Há ainda
com análises empíricas de fenômenos experimentais, era “A Consciência como Problema da Psicologia do Comporta-
antes de tudo um “filósofo/metodologista em seu coração” mento” (1999a), fruto de sua primeira conferência quando já
(1996, p.44). É este “outro” Vigotski, metodólogo e pensador no Instituto de Psicologia em Moscou, ao que tudo indica em
da ciência, que procuraremos resgatar, através da análise do 1925; “O Significado Histórico da Crise na Psicologia”, termi-
conceito de consciência em sua obra. nado entre 1926 e 1927; e “A Construção do Pensamento e
Para proceder a esta análise, faremos uso de alguns da Linguagem” (2001), publicado já no fim de sua vida, em
textos específicos produzidos por Vigotski, quais sejam1: “A 1934. Há ainda uma compilação e notas de estudos de semi-
Consciência como Problema da Psicologia do Comportamen- nários feitos por alunos e colegas da equipe de pesquisa de
to” (1999a), “Os Métodos de Investigação Reflexológicos e Vigotski entre os anos de 1933 e 1934, intitulada “O Problema
Psicológicos” (1999b), “O Problema da Consciência” (1999c) da Consciência” (1999c). Inicialmente publicada por Leontiev
e “O Significado Histórico da Crise na Psicologia” (1999d), nos anos sessenta, esta compilação, por conter fragmentos
todos pertencentes ao volume publicado no Brasil sob o título de anotações feitas por outras pessoas que não o próprio
de Teoria e Método em Psicologia (1999). psicólogo, provavelmente contém problemas em sua edição,
Em O Significado Histórico da Crise na Psicologia,
importante escrito de natureza metodológica e filosófica, 2 O livro de Luís Cláudio Figueiredo (1996, p. 22) também localiza
Vigotski diagnostica o que ele chama de crise na Psicologia este dilema de forma bastante semelhante. O autor declara que, para
do início do século XX. Tal crise caracterizava-se, em sua instituir a ciência psicológica, a psicologia se vê obrigada, a um só
tempo, a reconhecer e desconhecer seu objeto. Se não o reconhece,
1 Por conta das limitações colocadas pelo tamanho reduzido dos não se legitima como ciência independente, bem podendo ser
artigos científicos, os textos foram escolhidos por proporem mais anexada a outras ciências, como a medicina, a pedagogia etc. Se o
explicitamente uma reflexão epistemológica ou por conterem, no reconhece, não se legitima enquanto ciência, já que não é capaz de
título, já uma proposta de discutir o conceito de consciência. formular leis gerais com caráter preditivo.
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o que requer cuidado redobrado quando utilizada como fonte eventos da consciência, apesar de não se manifestarem
de pesquisa. exteriormente, possuíam existência objetiva. Este é o ponto
De fato, se tomarmos os textos em ordem de escrita crucial de sua conferência e o que pode ter causado tanta
cronológica, perceberemos uma mudança na forma de con- polêmica no congresso de 1924. Outra declaração em tom
ceituar a consciência. Esta mudança é percebida, em parti- mais inflamado torna mais claro este ponto:
cular, por Davydov e Radzikhovskii (1985) e Rivière (1985) e
tem como ponto decisivo, para este último autor, a transição Falemos claro. Os enigmas da consciência, da psique, não
entre um viés reflexologista, nos idos de 1924, para uma con- podem ser eludidos com subterfúgios nem metodológicos
cepção semiótica ou mediacional do conceito. nem teóricos. Não se pode fazer rodeios para deixar a
Em “Os Métodos de Investigação Reflexológicos e consciência de lado. (...) Psicologicamente a consciência é
Psicológicos” (1999b), Vigotski apresenta-se pela primeira um fato indubitável, uma realidade primordial e um fato, não
vez a um grande público de psicologia; sua comunicação secundário, nem casual, de enorme importância. Ninguém o
procurava criticar justamente a reflexologia, a corrente discute. Podemos adiar o problema, mas não eliminá-lo por
psicológica dominante nos meios acadêmicos russos. Ele completo. (1999b, p. 27)
afirmava que a reflexologia tornava-se mais problemática à
medida que investia no estudo de formas de comportamento Vigotski arremata essa declaração lembrando que
humano cada vez mais complexas, por conta da definição re- tudo isso deve ser resolvido experimentalmente, de acordo
flexológica de qualquer comportamento como um sistema de com procedimentos objetivos. Ele recomenda aos reflexólo-
reflexos condicionados. Para Vigotski, resumir todo e qual- gos que abandonem o materialismo da fisiologia ao qual es-
quer comportamento a tal denominador comum era incorrer tão aprisionados e aceitem o desafio de serem materialistas
em reducionismo; e era também reducionista a atitude de, à na psicologia.
maneira do behaviorismo metodológico fundado por Watson, Para uma plateia de reflexólogos em sua maioria, a
não levar em conta a consciência como mais uma espécie de proposição de Vigotski pode ser considerada, no mínimo, co-
comportamento possível de ser observado e estudado. rajosa. Ainda assim, o mecanismo através do qual ele propõe
Vemos que Vigotski critica o ponto de vista da refle- que se estude a consciência é tão reflexológico quanto o do
xologia (também conhecida como psicologia objetiva, inicial- estudo de um comportamento qualquer. A diferença básica é
mente fundada por Bekhterev), mas propõe uma espécie de que, em um evento psíquico, o reflexo produzido por determi-
meio-termo ao sugerir a possibilidade de a consciência ser nada sensação torna-se, em seguida, excitante para um novo
estudada pelos reflexólogos. Utilizando a linguagem da cor- reflexo: esta relação, chamada por Vigotski reflexo-excitante
rente que criticava, ele define a consciência como “um me- reversível, é uma relação entre reflexos que não ocorre no
canismo de transmissão entre sistemas de reflexos” (1999b, caso de comportamentos mais simples.
p. 15). Chega a afirmar que “dar-se conta significa transferir Aproximadamente um ano depois, em “A Consciência
certos reflexos para outros. O inconsciente baseia-se psiqui- como Problema da Psicologia do Comportamento” (1999a),
camente em que alguns reflexos não se transmitem a outros outras questões já passam a se tornar importantes na defesa
sistemas.” (1999b, p. 14) Uma passagem um pouco mais de Vigotski do conceito de consciência. Nas palavras de Ri-
longa esclarece melhor seu argumento: vière (1985), o citado artigo de Vigotski de 1925 possui como
característica principal a tentativa de conjugar a categoria do
Surge a pergunta: por que admitimos o estudo dos reflexos reflexo com a ideia da origem social da consciência. Neste
verbais em sua integridade e inclusive depositamos sentido, há, sim, uma atitude bastante crítica em relação à
nesse campo as maiores expectativas e não levamos reflexologia, visto que ele considera extremamente proble-
em consideração esses mesmos reflexos quando não mática a admissão da principal premissa reflexológica de
se manifestam externamente mas sem dúvida existem que seria possível explicar todo o comportamento humano
objetivamente? Se pronuncio em voz alta, para que o sem recorrer a fenômenos subjetivos. No entanto, como ele
experimentador ouça, a palavra “tarde”, que me surgiu já apontava na comunicação “Os Métodos de Investigação
por associação, isto é considerado uma reação verbal, um Reflexológicos e Psicológicos” (1999b), o problema estava
reflexo condicionado. Mas se pronuncio a palavra para mim justamente em considerar que o fenômeno psíquico possuís-
mesmo, sem que seja ouvida, se a penso, deixa por isso se uma natureza subjetiva, inacessível experimentalmente e,
de ser um reflexo e se altera sua natureza? E onde está consequentemente, não científica.
o limite3 entre a palavra pronunciada e a não pronunciada? Entre a palestra que o fez ser convidado para traba-
(1999b, p. 10) lhar em Moscou em 1924 e a primeira fala pública que fez
depois de ter começado a trabalhar, em 1925, existe, portan-
É um pouco mais sutil a crítica de Vigotski aqui, mas to, uma ligação compreensível. A nosso ver, a maior distinção
podemos perceber que, conquanto argumente de dentro do entre os dois textos seria que, no segundo momento, o autor
sistema reflexológico acerca da existência da consciência, abandona a tentativa de buscar dentro da reflexologia ou da
ele afirma algo bastante radical dentro da teoria: que os reatologia uma metodologia adequada para investigar os
fenômenos da consciência, afirmando uma “urgente neces-
3 Os itálicos são do próprio autor. sidade de elaborar uma nova metodologia para investigar os
A consciência na obra de L.S. Vigotski: análise do conceito e implicações para a Psicologia e a Educação * Lia da Rocha Lordelo & Robinson M. Tenório 81
reflexos inibidos” (1999a, p. 77) ou, ainda, numa observação fundamental estaria em confundir a relação entre espírito e
um pouco mais irônica, “uma capitulação completa da me- matéria com a relação entre sujeito e objeto. “Quando isto
todologia puramente reflexológica, cuja utilização deu bons é feito”, diz Vigotski, “é comum identificar o subjetivo com o
resultados no caso dos comportamentos dos cachorros” psíquico, e a partir daí se conclui que o psíquico não pode
(1999a, p. 78). ser objetivo” (1999d, p. 379). Ou seja, o fenômeno psíquico,
A origem social da consciência, mais especificamente ou espiritual, é às vezes considerado como sendo aquilo que
localizada na linguagem e no comportamento social, é uma tem natureza subjetiva. Certamente nossa psique ou nossa
ideia que também se encontra presente nos dois trabalhos; consciência5 pode ser (e é) “subjetiva” – ou seja, ela pode ser
ela será, no entanto, melhor desenvolvida anos mais tarde, de natureza não material –, mas, sendo assim, “subjetivo”
logo em 1926, em “O Significado Histórico da Crise na Psico- não é o termo que devemos utilizar, segundo Vigotski, pois
logia”, no manuscrito “Historia del Desarrollo de las Funcio- ele produz uma grave confusão conceitual6. O psicólogo nos
nes Psíquicas Superiores” (1995) de 1931 e, em 1934, em chama a atenção para que não confundamos a consciência,
Pensamento e Linguagem. No artigo de 1926, encontra-se, enquanto um dos termos da antinomia sujeito-objeto, com a
no entanto, uma reflexão de fundo epistemológico mais sis- consciência empírica, psicológica, aquela que é, por defini-
tematizada acerca do problema da consciência e da própria ção, objeto de estudo da psicologia.
psicologia e é a ela que nos dedicaremos agora. Com o objetivo de esclarecer essa discussão, segui-
remos mais um pouco o raciocínio feito por Vigotski (1999d,
A consciência no espelho: uma nova epistemologia pp. 381-382). Ele ilustra: se perguntarmos a um materialista
para a psicologia e a um idealista o que devemos estudar, o ato tal como é, ou
o ato tal como eu o represento, o primeiro responderá o ato
Foi possível perceber, nos dois artigos analisados, em si e o segundo, a percepção que ele tem do ato. De outra
a adesão inicial de Vigotski ao ponto de vista reflexológico, forma, o que devemos estudar: o pensamento ou o pensa-
paralelamente aos primeiros comentários acerca de uma mento sobre o pensamento? Para Vigotski, sem sombra de
possível origem social da consciência. Ele chega a afirmar dúvida devemos estudar o pensamento em si – ele pede,
a importância da linguagem, do comportamento social e da neste caso, o auxílio de Marx, em sua afirmação de que, se a
relação com o outro na formação da consciência, e seus essência e a forma de manifestação das coisas coincidissem,
próximos escritos, de certa maneira, são o desenvolvimento toda a ciência seria desnecessária (Marx, 1985, p. 939). É aí
dessas ideias ainda embrionárias. que podemos nos perguntar: se nós, psicólogos, cientistas
Em “O Significado Histórico da Crise na Psicologia” humanos, estudamos o fenômeno psíquico em si e admiti-
(1999d), a consciência é discutida não só como objeto fun- mos que ele possui natureza e existência objetivas, o que
damental de estudo para a psicologia, mas também na forma será, então, dos fenômenos subjetivos? Quem vai estudar
de um conceito que, quando examinado de perto, produz esse tipo de fenômeno, “isso que parece para cada um7?”
uma reflexão epistemológica abrangente, a qual compreende (Vigotski, 1999d, p. 382).
algumas antinomias típicas da ciência e da filosofia, outras “Mas o problema do que as coisas ‘parecem’ é também
correntes psicológicas e seus problemas metodológicos. algo que ‘parece’ um problema”, continua Vigotski (1999d, p.
Esta é uma promessa e tanto, esperamos agora examiná-la 382). A falsidade desse problema está, para ele, novamente
para que se torne compreensível. na confusão entre gnoseologia e ontologia.
A ideia central defendida por Vigotski nesse artigo é
a crise na psicologia e o que ela significa e prenuncia. Para Em gnoseologia, aquilo que parece existe, mas afirmar que
o autor, como já dissemos anteriormente, distinguiam-se, aquilo é realmente a existência é falso. Em ontologia, o que
àquela época, dois grandes blocos de teorias psicológicas.
Resumidamente, os caminhos da psicologia seriam estes: 5 De modo geral, temos também usado de forma intercambiável
ou o da ciência, que, neste caso, deveria ser capaz de ex- os termos “consciência” e “psique”. Certamente quando Vigotski
plicar fenômenos (rejeitando o que havia neles de psíquico escolheu o primeiro termo, imprimiu a ele características próprias –
ou subjetivo); ou o do conhecimento de visões particulares é o que estamos tentando mostrar; ainda assim, quando usamos
sobre o que viria a ser o fenômeno psíquico (assim impossi- um nome no lugar do outro, é porque pretendemos nos referir,
bilitando sua existência como ciência). O que parece chamar independente de nomenclaturas, àquilo que seja, por definição, o
a atenção, entretanto, é o argumento que Vigotski usa para objeto de estudo da psicologia.
atribuir significado à crise: esse significado residiria, para ele, 6 Grande parte do esforço de Vigotski nessa discussão consiste,
na formulação equivocada e confusa do problema gnoseoló- ao nosso ver, em atribuir uma natureza objetiva ao que denominamos
gico4, ou melhor, na confusão entre o problema gnoseológico fenômenos psicológicos – a psique, a consciência, ou subjetividade.
(ou epistemológico) e o ontológico. Parece que o problema É por esta razão que ele tenta afastar a antinomia “objetivo X
subjetivo” de suas reflexões sobre a consciência – por esta ser uma
4 N a tradução do artigo do russo para o inglês, consta a palavra distinção de fundo epistemológico, quando o que está em jogo é
epistemológico ao invés de gnoseológico; a palavra gnoseológico uma asserção ontológica – que diz respeito à existência mesma dos
aparece também na tradução para o espanhol. Não estamos fenômenos psicológicos.
considerando significativas as eventuais diferenças entre os termos. 7 Itálicos no original.
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parece não existe em absoluto. Ou os fenômenos psíquicos caso do exemplo do espelho, acreditamos que Vigotski tinha
existem e então são materiais e objetivos, ou não existem um objetivo principal: mostrar que a consciência humana,
e não podem ser estudados. É impossível qualquer ciência vista por algumas correntes psicológicas como um evento
só sobre o subjetivo, sobre o que parece8, sobre fantasmas, interno e às vezes de difícil acesso e investigação, torna-se
sobre o que não existe. (...) Não cabe dizer: no mundo há um resultado aparente, uma consequência da relação entre
coisas reais e irreais – o irreal não existe. O irreal deve ser a realidade e o processo de internalização desta através da
explicado como a não coincidência, como a relação entre linguagem e de outras ferramentas simbólicas – o que não
duas coisas reais; o subjetivo como a consequência de dois significa que não possamos estudá-la. Significa, sim, que, se
processos objetivos. (1999d, p. 386) conhecermos, no caso, A e X, conheceremos a consciência
e ainda, em particular, as funções psicológicas superiores a
A explicação de Vigotski pode soar, em algum mo- cujo estudo Vigotski se dedicou.
mento, um tanto intrincada; alguns parágrafos depois, po- A analogia proposta por Vigotski não é exatamente
rém, ele utiliza a metáfora do espelho para pensar o conceito original na literatura científica e filosófica – especialmente a
de consciência no contexto da relação entre epistemologia e de orientação marxista. Ela pode ser relacionada, em primeiro
ontologia. Aqui, ao nosso ver, suas reflexões tornam-se mais lugar, a um conhecido princípio do materialismo dialético, de
claras. Vejamos: acordo com o historiador da ciência Graham (1987): o de que
Um objeto - uma mesa, por exemplo - é refletido num a existência determina a consciência. Este é uma máxima
espelho. Chamemos de A a mesa e de a o seu reflexo no presente em textos de Marx (197710), Marx e Engels (1999)
espelho. X é o processo de reflexão9 da luz que ocorre no e Lenin, posteriormente (1982), de posse desta premissa,
espelho, refletindo a mesa. Aqui, não podemos dizer que a dedica-se bastante a teorizar sobre o que, para ele, seria a
(o reflexo da mesa) é tão real quanto A (a mesa em si); tam- fundação da teoria materialista do conhecimento: a consci-
pouco dizer que a é falso; ocorre que a é real de outra forma. ência é uma imagem do mundo exterior e, sem este mundo,
O reflexo a é o resultado aparente que parte de A e de X. nem a consciência nem quaisquer sensações existiriam. Não
Entretanto, conhecendo A e X, é possível estudar, explicar, à toa, as palavras reflexo e imagem são frequentemente utili-
prever e ainda transformar o reflexo a. zadas para se referir à epistemologia materialista nessa obra
Para Vigotski, a filosofia e a ciência ocidentais tradi- de Lenin.
cionalmente focalizam, em seus processos de investigação, Pensamos que é interessante perceber os signifi-
o objeto em si, A, ou apenas o reflexo, a imagem, a. De um cados que a metáfora do espelho carrega no contexto das
ponto de vista dialético (na ciência que ele propunha), é ne- reflexões epistemológicas de Vigotski. Em introdução a uma
cessário estudar a como um resultado, uma consequência do coletânea de textos em epistemologia, Manuel Maria Carrilho
objeto em si, já que o reflexo não existe por si só: é preciso (1991) coloca como uma das questões mais recentes deste
relacionar a mesa ao espelho e também às leis que ocasio- campo de estudos justamente as “condições históricas” da
nam o reflexo. Se a consciência seria a, o reflexo, A seria a constituição do conhecimento, além das “condições psico-
existência, é o que Vigotski indica alguns parágrafos depois genéticas” de sua aquisição. Seria o conhecimento algo de
(1999d, p. 388); finalmente, X, as leis de reflexão da luz no origem exclusivamente subjetiva? Vigotski já procurava res-
espelho, seria o processo que ocorre na consciência. A auto- ponder a esta pergunta em seu já citado artigo, dissolvendo
ra Dorothy Robbins (2003) resgata essa metáfora em artigo e e reposicionando falsas antinomias como “conceito X fato” ou
sugere que essas leis de reflexão seriam o processo de inter- “realidade X pensamento” e, ainda, “sujeito X objeto”. Como
nalização e mediação que ocorre através da linguagem e de tentamos mostrar acima, a metáfora vigotskiana do espelho
outros signos. Cremos, certamente, que levar a metáfora às é, em grande medida, uma tentativa de pensar as categorias
últimas consequências cause-nos alguns prejuízos conceitu- de subjetivo e objetivo e se, nas palavras de Carrilho (1991),
ais, pois ao passo em que procuremos achar “equivalentes” podemos pensar num dos sentidos da palavra “epistemo-
para as “letras” A, a e X, respectivamente, corremos o risco logia” como uma oposição à “ontologia”, o argumento de
de cristalizar as posições de cada categoria e distorcer as Vigotski quanto à suposta confusão entre estes dois termos
eventuais relações de complementaridade ou pertencimento parece possuir consistência teórica – em especial no que
que existem entre elas – e incorremos, aí, numa simplificação tange a seu diagnóstico da crise na psicologia.
bastante perigosa, a nosso ver. Em verdade, a própria Rob-
bins, ao estudar essa metáfora, lembra, no início de seu arti- Algumas implicações para a educação ou um outro
go, que uma metáfora não é completa e que tampouco pode Vigotski
realmente ilustrar fatos empíricos (Fichtner, 1999, conforme
citado por Robbins, 2003), mas ilustrar relações teóricas. No 10 Para sermos mais precisos, a afirmação de Marx no Prefácio
da Contribuição à Crítica da Economia Política (1977, p. 24) é a de
8 Os itálicos desta citação também estão no original. que “... não é a consciência dos homens que determina seu ser; é o
9 Nas edições em inglês e em português,Vigotski usa, incorretamente, seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. De
o termo físico “refração”. Aproveitando o fato de estarmos fazendo qualquer forma, permanece, na citação, a relação de determinação
aqui uma citação indireta, substituímo-lo pela palavra correta, a que havíamos nos referido, e na direção vida (ou existência)
“reflexão”. consciência.
A consciência na obra de L.S. Vigotski: análise do conceito e implicações para a Psicologia e a Educação * Lia da Rocha Lordelo & Robinson M. Tenório 83
É nosso intento, neste artigo, mostrar um Vigotski um menos contingente torna possível o diálogo com diferentes
pouco diferente do habitual, principalmente no cenário aca- condições e contextos e é difícil, por conta disso, considerá-
dêmico brasileiro. O “Vigotski habitual” tornou-se, a partir dos lo normativo em alguma instância. Esta característica não é
anos oitenta, uma das grandes referências nas discussões exclusiva dos textos de Vigotski; certamente, em todo autor
no campo da psicologia da educação, do desenvolvimento cujo pensamento possua posicionamento crítico acerca da
infantil e das relações ensino-aprendizagem na escola, ao construção do conhecimento (tanto em ciência quanto em
lado de autores como Jean Piaget e Henri Wallon. A relação outras áreas), é possível dele extrair uma reflexão para o
aprendizagem-desenvolvimento (Oliveira, 1993), a qual se tempo presente. Para nós, este é um grande valor da epis-
concretiza na noção de zona de desenvolvimento proximal, temologia.
é uma ideia fundamental no corpo de reflexões trazidas pelo Pode ser um modo de pensar dialético dizer que,
psicólogo soviético. São ainda importantes o processo de for- diante dessas colocações, sabemos quais não são as impli-
mação de conceitos, a importância do brinquedo na educa- cações do pensamento de Vigotski, em especial de seu con-
ção infantil (Cerisara, 2000) e o papel do outro na construção ceito de consciência, para a educação. Sabemos o que não
do conhecimento (Rego, 1997). devemos fazer. É muito precipitado extrair de conceitos como
Estes são tópicos que ressoam na prática direta do “consciência” e “significado” orientações sobre como agir
educador e de outros profissionais que atuem no campo da numa situação específica, por exemplo, em sala de aula.
pedagogia principalmente. Neste sentido, entretanto, Marta No entanto, existe, em educação, outro campo de re-
Kohl de Oliveira (1993, 2000) faz uma reflexão importante: flexões onde a noção de consciência é central. Este conceito
ela lembra que o campo da educação é um dos que pos- foi um tema de interesse e pesquisa frequentes na obra de
sui uma relação mais problemática entre prática e teoria; educadores famosos – entre eles, o pernambucano Paulo
enquanto, de um lado, os professores esperam da teoria Freire (1921-1997), o qual, em sua pedagogia crítica, enfa-
um “como fazer” rápido e eficiente, o pesquisador, de modo tizou o papel da educação popular na formação da consci-
geral, busca em sua investigação produzir um conhecimento ência crítica (Freire, 1986). Embora não devamos equivaler
com algum poder explicativo, mas que não necessariamen- o conceito de consciência psicológica (tal qual proposto por
te gera propostas de atuação diretas. No caso de Vigotski, Vigotski) ao de consciência crítica de Freire, há, pelo menos,
este problema quase passa a adquirir o caráter de solução: uma influência em comum a ambos os autores: o marxis-
seu trabalho, por conta do pouco tempo que teve para se mo. Talvez seja por influência do marxismo que o conceito
desenvolver, não possui indicações muito precisas sobre de consciência é tão importante para esses teóricos; mas,
como deve agir o professor em sala de aula ou qual a melhor decerto, era a consciência de classe o que mais interessava
estratégia para desenvolver, no tempo adequado, a lingua- a Marx. Já no caso do clássico livro de Georges Snyders,
gem de uma criança (embora sua preocupação com a prática Escola, Classe e Luta de Classes (2005), vemos a defesa
fosse grande), por outro lado, ele pode inspirar uma reflexão de uma possível escola, de posse de conceitos marxistas
importante sobre como funciona o ser humano, de que pon- como o de luta de classes. Embora não faça uso explícito do
to de vista realizar a pesquisa em educação e outras áreas conceito de consciência, o autor francês refere-se a este de
relacionadas. forma indireta quando, ao assumir a escola como um local
Apesar disso, certamente entendemos Vigotski como de contradições dialéticas, invoca “a iniciativa, a capacidade
um autor extremamente importante para o campo da edu- e a alegria de agir por si próprio, de crescer e de dirigir o seu
cação e é neste sentido que resgatamos a reflexão feita por crescimento” (2005, p. 119) para fazer da escola um local que
Marta Kohl: para resgatar também este “outro” Vigotski. Este lute pela democracia e pelo fim das desigualdades econômi-
pesquisador, sobre o qual nos debruçamos aqui, elaborou cas e sociais.
reflexões de cunho epistemológico e metodológico que ampa- No caso específico de Vigotski e da proposição de
ram problemas atuais dentro das ciências humanas de modo seu conceito de consciência no âmbito da psicologia, acre-
geral e, mais especificamente, na psicologia e na pedagogia – ditamos que haja algumas reflexões das quais a educação
talvez nisto resida boa parte de sua atualidade. Dessa forma, possa se beneficiar. Podemos, primeiramente, pensar na
isso não significa que ele não seja fundamental para o campo escola como um local privilegiado de desenvolvimento dos
da educação. Mesmo uma reflexão epistemológica, ou ela em processos psíquicos que compõem a consciência, já que é
especial, ressoa no campo da prática pedagógica e também no contexto escolar que as crianças passam grande parte
por esta razão procuramos resgatar esse tipo de crítica. de seu tempo. Aliado a isso, há a natureza material e ob-
Este Vigotski “normativo”, cujas ideias são rapida- jetiva do fenômeno da consciência e sua formação através
mente transformadas em orientações práticas, deve ser da cultura e de seus instrumentos (físicos e simbólicos). Es-
minimamente repensado e, em alguns casos, combatido – tes fatores ajudam-nos a pensar na situação, no ambiente
porque ele não existe, propriamente. E se, por um lado, o em que se dão os processos de ensino e aprendizagem, e
que havia de orientação ou “como fazer” em suas obras vai podem significar que devemos estar atentos aos elementos
gradativamente perdendo o sentido, já que foi, como quase que constituem essas situações pedagógicas e nas relações
todo conhecimento, construído em condições sociais e histó- entre estes elementos. E, de forma mais geral, a ideia de
ricas muito específicas, o valor crítico e epistemológico dos uma consciência formada pela história em seus diferentes
textos não tem uma data exata para “expirar”: seu caráter níveis pode auxiliar-nos a conceber também uma escola cuja
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análise histórica seja fundamental para sua compreensão e ceito para análise, e pensamos que tanto a Educação quanto
contínua transformação. Assim, reafirmamos a importância, a Psicologia beneficiam-se bastante deste esforço de crítica
inclusive no âmbito da educação, de estudarmos de forma teórica.
crítica o conceito de consciência na obra de L.S. Vigotski.
Referências
Conclusão
Carrilho, M. M., & Sàágua, J. (1991). Objectivos e fronteiras do
Percorrendo alguns textos de Vigotski, vimos que o conhecimento. Em M. M. Carrilho (Org.), Epistemologia: posições
conceito de consciência passou de um viés mais estritamen- e críticas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
te reflexológico para um de natureza mais social e semiótica
– por conta, no caso, da proposição, em um de seus escritos, Cerisara, A. B. (2000). A educação infantil e as implicações
do significado da palavra como unidade de análise psíqui- pedagógicas do modelo histórico-cultural. Cadernos CEDES, 35,
ca11. Outra reflexão importante foi o resgate da metáfora do 78-95.
espelho, utilizada por Vigotski em “O Significado Histórico da
Crise na Psicologia” (1999d) para ilustrar a condição epis- Davydov, V. V., & Radzikhovskii, L. A. (1985). Vygotsky´s theory and the
temológica da categoria consciência. Ele declara, no artigo, activity-oriented approach in psychology. Em J. V. Wertsch (Ed.),
que os dualismos em que incorrem algumas teorias psicoló- Culture, communication and cognition: vygotskyan perspectives
gicas devem-se a uma confusão entre epistemologia e onto- (pp. 33-65). New York: Cambridge UP.
logia. Essa confusão ocorre quando tomamos por subjetivo
um evento psíquico, quando este último, em verdade, tem Figueiredo, L. C. M. (1996). Matrizes do pensamento psicológico.
natureza objetiva. Assim, comparando a consciência a um Petrópolis, RJ: Vozes.
reflexo no espelho, ele afirma que devemos estudá-la não
como algo totalmente real nem como uma imagem ou ilusão Freire, P. (1986). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
simplesmente, e sim como um evento que é real de outra Terra.
forma. A consciência deve ser estudada como um fenômeno
resultante da realidade e da internalização desta. Graham, L. (1987). Science, philosophy, and human behavior in the
Após essas reflexões, dedicamo-nos a analisar algu- Soviet Union. New York: Cambridge University Press.
mas implicações deste conceito para o campo da Educação.
Concluímos que pode ser bastante precipitado, quando não Lénin, V. I. (1982). Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa: Avante.
equivocado, extrair de um conceito como o de “consciência”
algum tipo de fórmula ou procedimento direto de atuação Lordelo, L. da R. (2007). A Consciência como Objeto de Estudo
em sala de aula, por exemplo. Isto é problemático por dois na Psicologia de L.S. Vigotski: uma reflexão epistemológica.
motivos, a nosso ver: primeiro, que o próprio conceito pro- Dissertação de Mestrado, Programa de Pós Graduação em
posto por Vigotski tem, como tentamos mostrar, muito mais Ensino, Filosofia e História das Ciências, UFBA/UEFS, Salvador.
o intuito de produzir uma reflexão crítica que o de produzir
uma aplicação prática na ciência psicológica. Certamente Marx, K. (1977). Prefácio. Em K. Marx, Contribuição à crítica da
ele poderá e deverá produzir aplicações, mas o trajeto que economia política. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora.
nos leva de um conceito teórico até seu manejo no cotidiano
profissional é mais complexo do que pensamos. Um segundo Marx, K. (1985). O Capital: Crítica da economia política (Vol. IV). São
motivo é o fato de que a própria Educação não deve ser vis- Paulo: DIFEL Difusão Editorial S.A.
ta como uma ciência normativa (ao contrário da Psicologia,
que infelizmente se construiu justamente sob a égide do que Marx, K., & Engels, F. (1999). A ideologia alemã. São Paulo: Editora
deve ser o “normal” e do que se desvia deste formato). Des- Hucitec.
se modo, parece-nos praticamente impossível, de posse do
conceito de “consciência”, chegar a conclusões sobre o que Oliveira, M. K. de. (1993). Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento,
um educador deve ou não fazer na sua prática profissional, um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione.
por exemplo. Mas lembramos que há todo um conjunto de
reflexões que pode e deve ser feito ao tomarmos este con- Oliveira, M. K. de. (2000). O pensamento de Vygotsky como fonte de
reflexão sobre a educação. Cadernos CEDES, 35, 11-18.
11 Para uma discussão mais aprofundada acerca da unidade
de análise na obra vigotskiana, ver Lordelo, L. da R. (2007). A Pino, A. (2000). O social e o cultural em Vigotski. Cadernos CEDES,
Consciência como Objeto de Estudo na Psicologia de L.S. Vigotski: 21(71), 45-78.
uma reflexão epistemológica. Dissertação de Mestrado, Programa
de Pós Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, Pino, A. (2005). Vigotski: as marcas do humano. São Paulo: Cortez
UFBA/UEFS, Salvador. Disponível em : http://www.ppgefhc.ufba.br/ Editora.
dissertacoes.htm
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Sobre os Autores
Correspondência
Lia da Rocha Lordelo
Rua Rogério de Faria, 106/302, Rio Vermelho. CEP: 41940 300. Salvador –BA
Agradecimento
A CAPES pela bolsa de mestrado.
86 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 79-86.
Resiliência em estudantes do Ensino Médio
Lidiane Peltz
Maria da Graça Moraes
Mary Sandra Carlotto
Resumo
O objetivo do estudo foi avaliar a resiliência em estudantes do Ensino Médio e sua associação com variáveis sociodemográficas e contribuição da
escola em seu desenvolvimento pessoal. A amostra foi composta de 140 alunos de uma Escola Estadual de uma cidade da região metropolitana
de Porto Alegre. Foram utilizados, como instrumentos de pesquisa, um questionário para levantamento de variáveis demográficas e sociais
e a Escala de Resiliência, adaptada por Pesce, Assis, Avanci, Santos, Malaquias e Carvalhaes (2005), que constitui-se de três dimensões:
Independência e determinação; Resolução de ações e valores; Autoconfiança e Capacidade de adaptação a situações. Resultados indicam
associação negativa entre renda familiar e a dimensão de resiliência de Independência e determinação. Associação positiva foi identificada entre
a percepção de que a escola contribui para o desenvolvimento pessoal e a dimensão de Resolução de ações e valores.
Palavras-chave: Resiliência, estudantes, ensino médio.
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Introdução apenas um conjunto de determinadas reações, mas se trata
do resultado de uma combinação de respostas individuais
Já há algum tempo, a ciência tem-se interrogado sobre realizadas em uma determinada situação social.
por que determinadas pessoas têm a capacidade de superar A literatura mostra que, inicialmente, a resiliência refe-
as piores situações, enquanto outras ficam comprometidas ria-se a traços de personalidade e que, embora mais tarde o
nas malhas da infelicidade e da angústia. As experiências e contexto e as redes de relacionamento fossem consideradas
estudos feitos têm mostrado algumas explicações científicas fatores protetores, enfocava-se o desenvolvimento individual
sobre esse fato. A Biologia defende o ponto de vista de que saudável em condições difíceis no ambiente familiar ou em
cada ser humano é dotado de um potencial genético que o situações ambientais, tais como guerras, imigração, proble-
faz ser mais resistente que outros. A Psicologia, por sua vez, mas sociais, entre outras. A trajetória das pesquisas sobre
dá realce e importância às relações familiares, sobretudo a resiliência é interessante do ponto de vista que segue o
na infância, que construirá nesse indivíduo a capacidade de desenvolvimento humano no sentido vertical e a orientação
suportar certas crises e de superá-las. A Sociologia vai fazer indivíduo-mundo externo no sentido transversal, isto é, inicia
referência à influência do entorno, da cultura e das tradições abordando a criança, o adolescente, o adulto e, por último,
como construtores dessa capacidade do indivíduo de suplan- o idoso. Da mesma forma, a definição do conceito evolui do
tar as adversidades. Já a Teologia traz um aporte diferente indivíduo (traços de personalidade) para a família (constru-
pela própria subjetividade transcendente, uma visão outra da ção relacional) e redes sociais mais amplas (visão ecológica)
condição humana e da necessidade do sofrimento como fator (Souza & Cerveny, 2006).
de evolução espiritual (Vasconcelos, 2005). Essas experiên- Segundo Sapienza e Pedromônico (2005), apesar de
cias e estudos têm introduzido o conceito de resiliência. existirem inúmeras definições para o termo, normalmente a
Segundo Yunes (2003), na língua portuguesa, a pala- resiliência é relacionada ao manejo, pelo indivíduo, de recur-
vra resiliência, aplicada às ciências sociais e humanas, vem sos pessoais e contextuais. De acordo com Barbosa (2007),
sendo utilizada há poucos anos. No Brasil, seu uso ainda se o conceito de resiliência passou de uma fase de “qualidades
restringe a um limitado grupo de pessoas e a alguns círculos pessoais” até o conceito mais atual de compreendê-la como
acadêmicos. Muitos profissionais da área da Psicologia, da um atributo da personalidade desenvolvido no contexto psi-
Sociologia ou da Educação ainda não tiveram contato com cosociocultural em que as pessoas estão inseridas.
a palavra e desconhecem seu uso e aplicação em qualquer Papalia e Olds (2000) pontuam que alguns fatores de
das áreas da ciência. No entanto, profissionais do campo da proteção podem contribuir para a resiliência. Normalmente
Engenharia, Ecologia, Física e Odontologia utilizam o termo esses fatores estão relacionados à personalidade da crian-
para se referir à resistência de materiais. O conceito de resili- ça, à família, às experiências de aprendizagem, à exposição
ência tem sua origem na Física e na Engenharia para indicar reduzida ao risco e às experiências compensadoras propor-
a propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo cionadas, por exemplo, por um ambiente escolar favorável.
deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de Poletto (2007) refere que a escola é um dos microssistemas
uma deformação elástica (Aznar-Farias & Oliveira-Monteiro, que pode atuar diretamente na promoção de resiliência ao
2006). Transportada para as Ciências Sociais, adquire um desenvolver e incentivar as capacidades e potencialidades
novo enfoque identificado como amplo, polêmico, dinâmico e da criança, especialmente ao melhorar o desenvolvimento
ainda está em fase de construção. Em Psicologia, o estudo do de crianças de famílias menos favorecidas. A escola, ainda,
fenômeno da resiliência é relativamente recente, no entanto, pode incentivar atividades extracurriculares especialmente
segundo Souza e Cerveny (2006), a quantidade de artigos para adolescentes, facilitando sua inserção futura no mer-
publicados sobre o assunto vem crescendo expressivamen- cado de trabalho. Mas a escola pode representar, também,
te, quase que triplicando a cada período de cinco anos. como a família e a instituição, em algumas configurações,
Sua definição não é clara, tampouco precisa quanto fator de risco para o desenvolvimento saudável (Poletto &
na Física ou na Engenharia, e nem poderia sê-lo, haja vista Koller, 2008).
a complexidade e multiplicidade de fatores e variáveis que A resiliência é estabelecida precocemente na infân-
devem ser levados em conta no estudo dos fenômenos cia e baseia-se no diálogo reflexivo, isto é, a pessoa ser
humanos (Yunes, 2003). Rutter (1999) define a resiliência confirmada, vista e respeitada pelo que ela é por um outro
como um fenômeno de superação de estresse e adversi- significativo ou de confiança. A base para a resiliência já
dades, não se constituindo em uma característica ou traço existe na infância e tem de ser considerada na construção
individual. Poletto (2007) complementa, referindo ser a ca- da resiliência na adolescência (Lindstron, 2001). Os jovens
pacidade humana de superar adversidades, resultante da encaminham-se para a idade adulta através de várias arenas
interação permanente e do jogo de forças entre os fatores sociais: a família, o contexto social e geográfico, o contexto
de risco e proteção, possibilitando, assim, o estabelecimento cultural e histórico, os sistemas educacionais e os sistemas
de sua semelhança com a definição de saúde. Pesce e cols. de relacionamento com seus pares e ambientes de trabalho.
(2005) entendem por resiliência o conjunto de processos O autor afirma, ainda, que, quanto mais essas arenas são
sociais e intrapsíquicos que possibilitam o desenvolvimento conectadas em suas estrutura e função, mais fácil fica para o
saudável do indivíduo, mesmo este vivenciando experiências adolescente ver a vida como coerente.
desfavoráveis. De acordo com Leipold e Greve (2009), não é
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Garcia (2001) refere existir três tipos de resiliência: um mecanismo através do qual múltiplos fatores protetores
social, acadêmica e emocional. A social apresenta como fato- promovem a resiliência (Sapienza & Pedromônico, 2005).
res protetivos ter um grupo de amigos e o sentimento de per- Segundo as autoras, a possibilidade de enfrentar fatores de
tencimento ao mesmo, relacionamentos íntimos, bom vínculo risco e de aproveitar os fatores protetores torna o indivíduo
com a escola, bem como modelos sociais que promovam resiliente. Na medida em que o resiliente lança mão de seus
uma aprendizagem construtiva nas situações familiares e recursos positivos para enfrentar as adversidades, a resiliên-
escolares e equilíbrio entre as responsabilidades sociais e as cia pode ser considerada fator de proteção para a adaptação
exigências por obter determinados benefícios. A transmissão do indivíduo às exigências cotidianas. Também apresentam
de valores, assim como as atitudes positivas dos pais sobre uma lista das principais características encontradas em
a importância da educação para o futuro de seus filhos, tam- crianças e adolescentes resilientes: bom funcionamento in-
bém tem papel fundamental no desenvolvimento de crianças telectual, sociabilidade e expressão adequada, autoeficácia,
resilientes, essas atitudes colaboram para um melhor de- autoconfiança e autoestima elevada, talentos e fé. Nos seus
sempenho escolar, da mesma forma que ajudam a criança a contextos, essas crianças e adolescentes contam com prá-
ser mais competente socialmente no futuro. Segundo o au- ticas parentais competentes, vantagens socioeconômicas e
tor, quanto à resiliência acadêmica, a escola pode propiciar conexões com redes familiares ampliadas e apoiadoras. No
o aumento e o fortalecimento de habilidades de resolução contexto extrafamiliar, mantêm vínculos com adultos e orga-
de problemas e a aprendizagem de novas estratégias, bem nizações pró-sociais e frequentam a escola.
como capacitar professores para auxiliar estudantes com Estudo realizado por Pesce, Assis, Santos, & Oliveira
dificuldades. O período escolar contribui para diferentes (2004) sobre a associação da resiliência com eventos de vida
trajetórias do desenvolvimento, tendo impacto sobre as ex- adversos e com fatores de proteção em uma amostra 997
periências futuras do indivíduo (Medeiros, Loureiro, Linhares, de adolescentes escolares com idade entre 12 e 19 anos de
& Marturano, 2000). A escola tem sido vista como um dos uma rede pública de ensino identificou que a resiliência é um
ambientes, por excelência, para haver o enriquecimento da processo interativo entre a pessoa e seu meio, considera-
resiliência (Barbosa, 2007). do como uma variação individual em resposta ao risco. De
A resiliência, de acordo com Pesce e cols. (2005), acordo com os autores, os dados que foram encontrados em
constitui-se de três dimensões: a primeira é denominada de seu estudo mostraram que os eventos traumáticos de vida
resolução de ações e valores, ou seja, indica ações relacio- não estão relacionados com características de um indivíduo
nadas à energia, persistência, disciplina e à concepção de resiliente. Não se poderia afirmar que ter vivenciado um tipo
valores que dão sentido à vida, como a amizade, a realiza- de evento ou várias experiências negativas contribui para a
ção pessoal, a satisfação e significado da vida; a segunda capacidade de lidar com a adversidade. No entanto, os fato-
dimensão é a de independência e determinação, ou seja, res de proteção tiveram associação com a resiliência, eles
caracterizada pela capacidade do indivíduo resolver, sozi- atuam como facilitadores no processo individual de perceber
nho, situações difíceis, lidar com várias situações ao mesmo e enfrentar o risco.
tempo, aceitar as adversidades e aceitar situações que não Segundo Padovani (2006), o indivíduo encontra-se
pode fazer nada para mudar e, a terceira, é a autoconfiança inserido em um contexto dos quais fazem parte as pessoas
e capacidade de adaptação a situações, em que indica acre- que com ele interagem, as conexões entre outras pessoas
ditar que pode resolver seus problemas e que os mesmos do ambiente, os vínculos e influências diretas e indiretas que
dependem mais da pessoa do que dos outros, bem como ele recebe a partir das mudanças do ambiente e nas pessoas
realizar ações contra sua vontade e manutenção do interes- que dele fazem parte. A resiliência surge, então, como um
se em coisas que considera importantes. processo construído a partir da interação da pessoa com o
Sapienza e Pedromônico (2005) relacionam risco, meio. Seja qual for o contexto (família, instituição ou escola),
proteção e resiliência. As adversidades não costumam estar este pode configurar-se como risco ou proteção. No entanto,
isoladas, já que fazem parte do contexto social, envolvendo isto dependerá da qualidade das relações, da presença de
fatores políticos, socioeconômicos, ambientais, culturais, fa- afetividade e reciprocidade que tais ambientes oportuniza-
miliares e genéticos. Dessa forma, os fatores de risco, quan- rem. Quando houver conexões positivas entre os contextos
do em associação interativa, constituem-se em mecanismos e/ou dentro deles, certamente haverá possibilidades que
de risco, aumentando a probabilidade ou desencadeando um acionam processos de resiliência e favorecem a melhoria
desfecho negativo no desenvolvimento do indivíduo. Quando da qualidade de vida e adaptação/saúde das pessoas e da
muitas situações de risco associam-se, elas dificultam o de- sociedade (Poletto & Koller, 2008).
senvolvimento, a aquisição de habilidades e o desempenho A noção de vulnerabilidade é composta por elemen-
de papéis sociais. tos que agravam a situação de risco ou impedem respostas
Entretanto, existem os fatores de proteção que são satisfatórias diante de situações adversas e deve ser com-
descritos como recursos pessoais ou sociais que atenuam ou preendida em três planos básicos: o individual, que está
neutralizam o impacto do risco. Os fatores protetores podem relacionado aos comportamentos, porém não reduzidos a
atuar como um “escudo” para favorecer o desenvolvimento uma ação voluntária, mas associados às condições objeti-
humano. As variáveis suporte social e autoconceito positivo vas do meio natural e social e ao grau de consciência sobre
costumam estar correlacionadas, indicando a existência de tais comportamentos; o segundo plano é o social, ligado ao
Resiliência em estudantes do Ensino Médio * Lidiane Peltz, Maria da Graça Moraes & Mary Sandra Carlotto 89
acesso à informação, aos serviços de saúde, condições de 1-ótima a 7-péssima) elaborado especificamente para res-
bem estar social; e o terceiro está ligado ao institucional, ao ponder aos objetivos do estudo, tendo como base principal o
desenvolvimento de ações por instituições específicas visan- referencial teórico sobre resiliência; 2) Escala de Resiliência
do diminuir, ou eliminar os riscos que tornam os indivíduos de Wagnild e Young (1993) adaptada para o uso no Brasil por
mais vulneráveis (Padovani, 2006). Pesce e cols. (2005). A escala avalia a adaptação psicosso-
Sapienza e Pedromônico (2005) referem que existem cial positiva em face de eventos de vida importantes. Possui
períodos de vida em que o indivíduo está mais vulnerável, 25 itens descritos de forma positiva com resposta tipo likert
por exemplo, a adolescência é um deles, pois é uma fase do variando de 1 (discordo totalmente) a 7 (concordo totalmente)
desenvolvimento em que ocorrem mudanças físicas e psico- e subdivide-se em 3 dimensões: Resolução de ações e va-
lógicas; é quando o indivíduo começa a tornar-se indepen- lores (RAV-14 itens) caracterizada pela realizações de ações
dente dos pais e dar mais valor aos pares; é também quando relacionadas a energia, persistência, disciplina, concepção
o indivíduo quer explorar uma variedade de situações com as de valores que execução de ações voltadas para dar sentido
quais ele ainda não sabe bem como lidar. Adolescentes são à vida como a amizade, a realização pessoal, a satisfação
considerados, por alguns estudiosos, como um segmento e significado da vida; Independência e determinação (ID-6
da população de elevada vulnerabilidade, devido à estrutura itens) que indica a capacidade de resolver situações difíceis
social encontrada em países como o Brasil. sozinho, lidar com várias situações ao mesmo tempo, acei-
Os estudos sobre resiliência iniciaram-se com as pes- tar as adversidades e aceitar situações que não pode fazer
quisas sobre a superação de enfermidades, posteriormente nada para mudar ; Autoconfiança e capacidade de adaptação
focalizaram mais a criança pré-escolar e o adolescente. Atu- a situações (ACAS-5 itens) que revelam a crença de que a
almente se tem clara a preocupação em conhecer como essa pessoa pode resolver seus problemas e que os mesmos de-
criança ou adolescente vence os desafios impostos pela con- pendem mais dela do que dos outros, realizar ações contra
vivência familiar, escolar e urbana (Souza & Cerveny, 2006). sua vontade mantendo o interesse em coisas que considera
Pelo exposto, a investigação buscou contribuir para o importante. A escala adaptada apresentou índice de confiabi-
conhecimento do tema investigando a relação entre variáveis lidade de 0,80 e nesse estudo 0,70.
sócio-demográficas, escolares e contribuição da escola para
a resiliência de estudantes do Ensino Médio de uma escola Procedimentos
pública.
Para a coleta dos dados, primeiramente foi realizado
um contato com a direção da instituição de ensino tendo sido
Método apresentado o objetivo do estudo a fim de obter a autoriza-
ção e o apoio para a aplicação dos instrumentos. A aplicação
ocorreu no mês de outubro de 2008, nos turnos manhã e
Participantes noite. Foram realizados os procedimentos éticos conforme
legislação do Ministério da Saúde (1997), resolução 196 do
A amostra, do tipo acidental, foi composta por 140 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Foi esclarecido à dire-
alunos do Ensino Médio de uma escola pública de uma ci- ção da escola e aos alunos da instituição tratar-se de uma
dade da região metropolitana de Porto Alegre - RS. A maioria pesquisa sem quaisquer efeitos avaliativos individuais e/ou
constituiu-se de meninas (55%), é solteira (92,9%) e pos- grupais e que as respostas seriam anônimas e confidenciais.
suem idade média de 17,9 anos (DP=4,12). Desses, 26,4% A pesquisa possui aprovação do Comitê de Ética de afiliação
cursa o 1º ano, 37,1% o 2º ano e, 36,4% o 3º ano do Ensino das autoras.
Médio. A maior parte dos alunos mora com os pais ou algum O Banco de Dados foi digitado e posteriormente
familiar (97,3%) não desenvolve nenhuma atividade relacio- analisado em pacote estatístico. Foram calculadas médias
nada a trabalho formal (53,6%) e referem já terem tido uma e desvio-padrão das dimensões de Resiliência e realizada
experiência de repetência (55,7%) em algum momento de análise de correlação de Pearson para as variáveis quantita-
sua vida escolar. Quanto à renda familiar, a maioria informa tivas e t de student e Anova para comparação entre grupos
renda superior a três salários mínimos (72,1%) e moram em de variáveis qualitativas.
residência própria (76%).
Instrumento Resultados
Para operacionalizar os objetivos desta investigação Resultados evidenciam média mais elevada na
utilizou-se dois instrumentos autoaplicáveis: 1) Questionário dimensão de Resolução de ações e valores, seguida pela
para levantamento de variáveis sociodemográficos (sexo, ida- Autoconfiança e capacidade de adaptação a situações. A
de, estado civil, atividade laboral, renda familiar), escolares menor média foi obtida na dimensão de Independência e
(ano atual, repetência) e psicossocial (contribuição da escola determinação, considerando uma escala de pontuação de 1
para o desenvolvimento pessoa com variação de opções de a 7, conforme Tabela 1.
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O maior índice de resiliência foi identificado na di-
Tabela 1. Média e Desvio-Padrão das dimensões de Resiliência. mensão de Autoconfiança e capacidade de adaptação a
situações, em que o indivíduo indica acreditar que pode re-
Fatores Min Max M DP solver seus problemas e que os mesmos dependem mais
de si que dos outros, bem como pode realizar ações contra
RAV 3,50 6,79 5,87 0,51 sua vontade e manutenção do interesse em coisas que con-
ID 2,50 6,17 4,50 0,79 sidera importantes. O desenvolvimento de capacidades de
ACAS 3,00 7,00 5,63 0,76 resiliência nos sujeitos passa, conforme Tavares (2001), pela
mobilização e ativação das suas capacidades de ser, estar,
Nota: RAV: Resolução de ações e valores; ID: Independência e ter, poder e querer, ou seja, pela sua capacidade de autorre-
determinação. gulação e autoestima.
ACAS: Autoconfiança e capacidade de adaptação a situações Pesce e cols. (2004) referem que adolescentes com
maiores níveis de resiliência têm: autoestima mais elevada;
maior supervisão familiar; melhor relacionamento com outras
Na análise dos resultados da correlação de Pearson, pessoas como amigos e professores; maior apoio social, seja
verifica-se que quanto mais elevada a renda familiar, menor ele emocional, afetivo, informacional e de interação positiva.
a independência e determinação. Quanto maior a percepção A dimensão de menor pontuação foi a de Independência e
de que a escola contribui para o desenvolvimento pessoal, determinação, ou seja, caracterizada pela capacidade do
maior é a dimensão de resolução de ações e valores. Não sujeito de resolver situações difíceis sozinho, lidar com vá-
foi identificada associação das variáveis investigadas com rias situações ao mesmo tempo, aceitar as adversidades e
a dimensão de autoconfiança e capacidade de adaptação a aceitar situações que não pode fazer nada para mudar.
situações Os resultados obtidos não indicam diferença significa-
Verifica-se através das provas t de student e Anova tiva entre os sexos, contrariando resultados obtidos por Pes-
que nenhuma das variáveis qualitativas apresentou relação ce e cols. (2004) que verificaram que meninas apresentavam
com as dimensões de resiliência. níveis maiores de superação das dificuldades que os meni-
nos. O mesmo resultado ocorreu com relação à idade, ano
do Ensino Médio, repetência e atuação profissional. Pode-se
Tabela 2. Matriz de correlação de dimensões de Resiliência e hipotetizar que variáveis demográficas e a experiência, tanto
variáveis quantitativas. profissional como de trabalho, não se constituem fatores de
resiliência no grupo estudado, provavelmente pelas caracte-
Variáveis RAV ID ACAS rísticas da amostra. São jovens que residem com a família, a
maior parte somente estuda e estão cursando o nível médio
Idade -0,018 0,113 -0,146
na idade adequada, 15 a 17 anos, segundo refere o PNAD
Escolaridade -0,091 0,036 0,046 (2007). Estudo realizado por Padovani (2006) verificou que
Renda familiar -0,014 -0,238** 0,021 a escolaridade foi o primeiro item que apresentou diferença
Escolaridade mãe 0,065 -0,165 0,014 entre os adolescentes. É possível pensar que, pelo estudo
ter sido realizado somente com jovens de Ensino Médio, a
Escolaridade pai 0,029 -0,043 0,017
vivência pode não se apresentar tão diferenciada. Supõe-
Contribuição escola -0,188* -0,139 -0,060 se que eles tenham sido beneficiados pelas vivências que já
tiveram no ambiente escolar ao longo do processo de esco-
Nota: * significativo ao nível de 5% larização.
** significativo ao nível de 1% Os resultados obtidos no estudo indicam associação
RAV: Resolução de ações e valores; ID: Independência e com a renda familiar e a dimensão de Independência e de-
determinação terminação. Quanto mais elevada a renda familiar, menor a
ACAS: Autoconfiança e capacidade de adaptação a situações independência e determinação. Esse resultado pode estar
relacionado ao perfil da amostra investigada. A maior parte
dos alunos possui renda familiar superior a 3 salários mí-
nimos e não desenvolve nenhuma atividade relacionada a
Discussão trabalho formal. Segundo Barlach (2005), a intensidade com
que o ambiente torna-se hostil e estéril é que determina a
O conceito de resiliência vem sendo construído ape- diferença entre a resiliência e outros processos adaptativos.
nas nos dias atuais. Esse campo da ciência foi recentemente Na mesma linha, Luthar, Cicchetti e Becker (2000) entendem
inaugurado e, embora muitos autores tenham se dedicado ao a resiliência como um processo dinâmico de adaptação po-
estudo dos fatores que levam o sujeito a lidar positivamente sitiva às adversidades significativas. Desse modo, resiliência
com dificuldades, existe um caminho a ser percorrido até consiste num equilíbrio entre a tensão e a habilidade de lutar,
que se chegue a hipóteses mais concretas (Pesce e cols., além do aprendizado obtido com os sofrimentos.
2005).
Resiliência em estudantes do Ensino Médio * Lidiane Peltz, Maria da Graça Moraes & Mary Sandra Carlotto 91
Tabela 3. Relação entre dimensões de Resiliência e variáveis qualitativas.
Com relação à dimensão de Resolução de ações e valores (bem/mal, honesto/desonesto) que têm um significa-
valores, verificou-se que, quanto maior a percepção de que do relativo e circunstancial para eles. São feitas exigências
a escola contribui para o desenvolvimento pessoal, maior é de hábitos de higiene, linguagem, postura e obediência à
o sentimento de energia, persistência e disciplina para agir autoridade discrepantes das condições estruturais e culturais
sobre os problemas e possuir uma concepção de valores que vividas. No entanto, é possível apostar que essas crianças e
dão sentido à vida, como a amizade, a realização pessoal, jovens poderiam se adaptar se algumas de suas expectativas
a satisfação e o significado da vida. O resultado indica a fossem atendidas pela escola.
importância da escola na transmissão de valores e no desen- Amparo, Galvão, Cardinas, & Koller (2008) destaca
volvimento de comportamentos úteis para o enfrentamento e que a escola constitui-se numa importante rede de proteção,
resolução de dificuldades. Segundo Poletto (2007), a escola com a qual os jovens apresentam, em geral, atitudes positi-
contribui na promoção de processos de resiliência através vas de confiança e interesse. A continuidade da formação é
de projetos e atividades que estimulem as potencialidades valorizada e a escola está incluída em projetos futuros destes
individuais e a cooperação. Poletto e Koller (2008) referem jovens. Os amigos, professores e pais representam impor-
que é no contexto escolar que as crianças experienciam tantes fatores de proteção no contexto escolar.
inúmeras situações: relações entre pares, grupos, amizade, Não foi identificada associação das variáveis inves-
competição, rivalidade, aprendizagem e descoberta do novo, tigadas com a dimensão de Autoconfiança e capacidade de
entre tantas outras. adaptação a situações. Este resultado pode estar relacio-
É importante destacar a não associação da contri- nado à seleção das variáveis investigadas. De acordo com
buição da escola nas outras dimensões da resiliência, Inde- Pesce e cols. (2004), há fatores socioeconômicos, familiares,
pendência e determinação e Autoconfiança e capacidade de escolares e religiosos envolvidos no construto e também um
adaptação a situações. Poletto (2007) refere que o discurso conjunto de fatores inerentes ao indivíduo que contribuem
da escola, muitas vezes, não parece ter relação com a rea- para a força necessária aos jovens que sofrem com a adver-
lidade do cotidiano de alguns jovens. Professoras falam em sidade biológica, física, social ou cognitiva.
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Conclusão Aznar-Farias, M., & Oliveira-Monteiro, N. R. de. (2006). Reflexões
sobre pró-socialidade, resiliência e psicologia positiva. Revista
A escola pode ou não colaborar no desenvolvimento Brasileira de Terapia Cognitiva, 2(2), 39-46.
da resiliência, isso depende das interações que ocorrem nes-
sa instituição e do que é construído nessa relação indivíduo- Barlach, L. (2005). O que é resiliência humana? Uma contribuição
sociedade. No entanto, para que o indivíduo consiga chegar à para a construção do conceito. Dissertação de Mestrado, Instituto
escola e ter sucesso, dando continuidade aos seus estudos, de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
é imprescindível que tenha uma família, uma instituição ou
uma rede de apoio que o ajude a se manter motivado e com Barbosa, G. S. (2007). Resiliência? O que é isso? Revista de Divulgação
suas necessidades afetivas, sociais e cognitivas atendidas. Científica da ECA/USP - São Paulo, 7(39). Recuperado: Jan.
Os resultados apontam para a necessidade das esco- 2009. Disponível: <http://www.eca.usp.br/njr/voxscientiae/george_
las atuarem como contextos de valorização para o desenvol- barbosa_38.htm>
vimento dos jovens, principalmente na questão de resolução
de ações e construção de valores. Dessa forma, poderão vir Garcia, I. (2001). Vulnerabilidade e resiliência. Adolescência Latino-
a exercer sua cidadania dentro de uma visão ética de mundo. americana, 2(3), 128-130.
A escola é uma instituição fundamental no processo de for-
mação cidadã e, juntamente com a família, ajuda a promover Leipold, B., & Greve, W. (2009). Resilience. A conceptual bridge
a construção de sujeitos conscientes, capazes de reconhecer between coping and development. European Psychologist, 14(1),
seus direitos e corresponder com seus deveres à sociedade 40–50.
que os integra. A escola pode favorecer o reconhecimento
das dificuldades pessoais e propiciar uma atuação para o Lindstron, B. (2001). O significado de resiliência. Adolescência Latino-
enfrentamento das limitações. A escola promoverá resiliência americana, 2(3), 133-137.
se apresentar experiências como desafios e não como ame-
aças, construindo interações de qualidade com estabilidade Luthar, S. S., Cicchetti, D., & Becker, B.. (2000). The construct of
e coesão, compondo uma rede de apoio com o ambiente, resilience: a critical evaluation and guidelines for future work. Child
que demonstre reconhecimento, aceitação e ofereça limites Development, 71(3), 543-562.
(Amparo e cols., 2008).
É necessário destacar que a literatura sobre o tema Medeiros, P. C., Loureiro, S. R., Linhares, M. B. M., & Marturano, E. M.
no Brasil ainda é incipiente, dificultando a comparação com (2000). Autoeficácia e os aspectos comportamentais de crianças
outros estudos empíricos nacionais. Esta situação é impor- com dificuldades aprendizagem. Psicologia: Reflexão e Crítica,
tante, uma vez que hoje já se tem clara a influência de aspec- 13(3), 327-336.
tos culturais e contextuais sobre os resultados da resiliência.
Deve-se ter cautela com relação aos resultados obtidos neste Padovani, A. S. (2006). Diferenças entre iguais: um estudo sobre
estudo, uma vez que estes são decorrentes de uma amostra características de resiliência entre adolescentes comunitários e
não probabilística, não sendo, portanto, passíveis de genera- privados de liberdade. Recuperado: 10 nov. 2008. Disponível em:
lizações. Sugere-se novos estudos com amostras represen- <http://www.bvs-psi.org.br/tcc/201.pdf>
tativas com uma maior amplitude de variáveis. A realização
de pesquisas sobre mecanismos de proteção e resiliência Papalia, D. E., & Olds, S. W. (2000). Desenvolvimento humano. Porto
em pessoas expostas a ambientes de risco pode contribuir Alegre: Artes Médicas.
no esclarecimento de como funcionam esses mecanismos,
bem como desvendar a forma como atuam as competências Pesce, R. P., Assis, S. G., Avanci, J. Q., Santos, J. C., Malaquias, J.
individuais e sociais. Os resultados possibilitam pensar em V., & Carvalhaes, R. (2005). Adaptação transcultural, confiabilidade
intervenções voltadas à redução de problemas de desenvol- e validade da escala de resiliência. Cadernos de Saúde Pública,
vimento e à promoção da resiliência. 21(2), 436-448.
Se a vida é resolver problemas e se os problemas
são, na sua maioria, imprevisíveis, é necessário o desenvol- Pesce, R. P., Assis, S. G., Santos, N., Oliveira, R. de V. C. (2004). Risco
vimento da flexibilidade adaptativa. Isto é o que fizeram nos- e proteção: em busca de um equilíbrio promotor de resiliência.
sos ancestrais em seu caminho evolutivo (Leipold & Greve, Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(2), 135-143.
2009).
Poletto, M. (2007). Contextos ecológicos de promoção de resiliência
para jovens em situação de risco. Dissertação de Mestrado,
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noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1> 75-84.
Sobre as autoras
Correspondência
Lidiane Peltz,
Rua: Pinheiro Machado n.º 2614, apto 26, Bairro São Pelegrino
Caxias do Sul- RS, CEP 95020172
Agradecimento
Ao CNPq. pela bolsa produtividade para Mary Sandra Carlotto
94 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 87-94
Estimulação da consciência fonológica na educação
infantil: prevenção de dificuldades na escrita
Resumo
Consciência fonológica é uma competência metalinguística que possibilita o acesso consciente ao patamar fonológico da fala e a manipulação
cognitiva das representações neste nível. Este estudo objetivou verificar se um programa de estimulação dessa habilidade no pré-III favoreceria
a aquisição da escrita na 1ª série. Participaram do estudo 85 crianças alunas de escola pública. Procedimento: 1) pré-teste: avaliação do
quociente intelectual, da consciência fonológica e da escrita; 2) elaboração do programa de estimulação e classificação das crianças em grupos:
experimental (GE) e controle (GC), a partir de balanceamento estatístico; 3) aplicação do programa; 4) pós-teste: reavaliação da consciência
fonológica e escrita. Os resultados indicaram que os dois grupos evoluíram em todas as variáveis do pré para o pós-teste. Qualitativamente, a
evolução foi maior para o GE. Contudo, a diferença entre ambos não foi estatisticamente significante. Hipóteses: número insuficiente de sessões,
número grande de crianças por grupo e/ou inexperiência das experimentadoras em práticas pedagógicas.
Palavras-chave: Consciência Fonológica, escrita, educação infantil.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. * Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 95-104. 95
Introdução Como a escrita é uma habilidade criativa, construída
a partir do alicerce alfabético, ela exige algumas habilidades
precedentes que facilitarão essa complexa criação.
... Vinte mil anos antes de nossa era, em Lascaux, homens Uma dessas habilidades é a consciência fonológica,
traçam seus primeiros desenhos. Será preciso esperar 17 uma competência metalinguística que possibilita o acesso
milênios para que se inicie uma das mais fabulosas facetas consciente ao patamar fonológico da fala e a manipulação
da história da humanidade - a escrita... (Jean, 2002, p.11). cognitiva das representações neste nível. Portanto, envol-
ve reflexão, análise e manipulação intencional de unidades
Desde a Antiguidade, o homem sente a necessidade que compõem a linguagem (palavras, sílabas, fonemas).
de registrar, de perpetuar os momentos históricos. Na pré-his- Essa competência desenvolve-se à medida que as crianças
tória, os homens faziam desenhos em pedras como sinais para conscientizam-se dessas unidades dentro de um continuum
transmitir mensagens, contudo essas informações só podiam do grau nulo, a sensibilidade e a consciência (Cielo, 2002).
ser interpretadas por membros daquela cultura que conhe- Importante salientar que esse continuum de comple-
ciam o significado de cada figura. Como transmitir os pensa- xidade de processamento significa que perceber palavras
mentos, os sentimentos, os fatos de forma que integrantes de é mais fácil que perceber fonemas; que identificar rimas é
outras comunidades pudessem entendê-los? A necessidade mais fácil que excluir ou adicionar fonemas; e que segmentar
da escrita, propriamente dita, torna-se imperativa! fonemas é mais fácil que invertê-los.
Mas essa forma de comunicação criada pelo homem Portanto, pré-escolares demonstram naturalmente al-
tem uma história longa, lenta e complexa. Começou a ser gumas dessas habilidades, tais como perceber palavras que
vista relativamente tarde na história de seu desenvolvimento, terminam com o mesmo som (rimas) ou que iniciam com o
provavelmente muito tempo depois de a linguagem falada ter mesmo som (aliteração) e segmentar palavras em sílabas.
sido adquirida (Navas & Santos, 2004; Zorzi, 2003). No entanto, precisam ser ensinados a perceber fonemas nas
Vale lembrar, segundo os autores acima citados, que palavras, haja vista que o fonema é a menor unidade sonora
o objetivo da escrita não é simplesmente o registro da fala, e não é naturalmente segmentada na linguagem oral e, desta
mas transmitir mensagens por meio de um sistema conven- forma, depende de experiências mais formalizadas.
cional que representa conteúdos linguísticos. É, portanto, De acordo com Liberman e cols. (conforme citado por
uma forma de mediação linguística criada de acordo com as Godoy, 2003), crianças de 4-5 anos possuem habilidades fo-
necessidades de uma sociedade com demandas culturais nológicas silábicas, mas não fonêmicas, já que estas últimas
determinadas. Em outros termos, a linguagem falada tem são adquiridas no processo da aprendizagem da leitura e da
raízes filogenéticas enquanto a linguagem escrita depende escrita por volta dos seis anos de idade.
de variáveis ontogenéticas e sociogenéticas. Quatro níveis de desenvolvimento da consciência
A estrutura de uma língua é representada por um sis- fonológica são apontados:
tema de escrita. O sistema de escrita do idioma português é
o alfabético, criado aproximadamente em 1.000 a.C. pelos 1. Sensibilidade à rima e à aliteração: corresponde a
fenícios. O silabário fenício foi adaptado pelos gregos, que uma etapa inicial, caracterizada pela descoberta, por
desenvolveram o alfabeto de 23 letras, muito usado pelos parte da criança, de que determinadas palavras apre-
romanos durante o primeiro século a.C. e, desde então, o sentam um mesmo conjunto de sons em seu princípio
sistema vem sendo aprimorado. (aliteração) ou fim (rima). Implica uma capacidade
O sistema alfabético é fonográfico, isto é, representa para detectar estruturas sonoras semelhantes em
segmentos fonológicos, como sílabas e fonemas. Segundo diferentes palavras. Embora não seja considerada um
Navas e Santos (2004), são as associações grafofonológicas conhecimento fonológico, acredita-se que tal noção
e grafossemânticas que nos dão uma verdadeira compreen- possibilite um melhor desenvolvimento da consciência
são do relacionamento entre os morfemas e a linguagem oral. fonológica e, assim, auxilie a aprendizagem futura da
Como os sistemas de escrita baseiam-se na linguagem oral, escrita, especialmente, ao facilitar as estratégias de
esse fato explica como a escrita e a ortografia funcionam. O leitura por analogia;
poder do alfabeto para representar a língua, independente da
complexidade de sua estrutura fonológica, é inegável, pois 2. Conhecimento silábico: corresponde a uma capacida-
os leitores de sistemas alfabéticos podem ler palavras que de para segmentar e operar com as estruturas silábi-
nunca viram antes, já que elas são construídas a partir da cas das palavras, que implica um processo de divisão
combinação de fonemas e grafemas. da palavra em seus constituintes silábicos;
No português brasileiro, temos 26 grafemas e cerca
de 40 representações fonológicas. Essas unidades formam 3. Conhecimento intrassilábico: envolve a compreensão
uma “ponte” com a língua falada e se fundem em unidades de que as sílabas podem ser subdivididas em elemen-
linguísticas maiores, com função lexical e gramatical, proven- tos menores do que elas mesmas e maiores do que
do o acesso a todo o vocabulário de uma língua. um fonema;
96 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 95-104.
4. Conhecimento segmental: as palavras são compostas nêmicas podem auxiliar na aquisição da leitura e da escrita,
por um conjunto de segmentos sequenciados denomi- principalmente no início da alfabetização.
nados fonemas. O estudo de A. G. S. Capovilla e F. C. Capovilla (2000)
verificou que alunos de primeira série de escola pública com
Ao escrever, a criança precisa compreender que as baixo desempenho em consciência fonológica tiveram bene-
letras, enquanto símbolos gráficos, correspondem a segmen- fícios com treino de consciência fonológica e de correspon-
tos sonoros que não possuem significados em si mesmos. dências grafofonêmicas, como síntese, segmentação, mani-
Segundo Navas e Santos (2004), Zorzi (2003) e pulação e transposição fonêmica, manipulação e transposi-
Pestun (2005), a relação entre a consciência fonológica no ção silábica. Esses benefícios estenderam-se às habilidades
âmbito do fonema e a aquisição da leitura e da escrita é re- de leitura em voz alta de palavras e de pseudopalavras e
cíproca e bidirecional, ou seja, à medida que a consciência escrita sob ditado de palavras e pseudopalavras, bem como
fonológica se desenvolve, ela facilita o aprendizado da leitura ao conhecimento de letras, mas não a outras habilidades
e da escrita que, por sua vez, propicia o estabelecimento da de processamento fonológico como memória de trabalho e
consciência fonológica. Portanto, a criança que é capaz de acesso ao léxico, sugerindo que estas habilidades não são
refletir sobre os sons da fala terá mais facilidade de associar função da consciência fonológica.
esses sons às letras, adquirindo o princípio alfabético. Outro estudo, proposto por Paula e cols. (2005), ve-
Desta forma, o desenvolvimento da consciência fono- rificou a influência da terapia em consciência fonológica nos
lógica tem sido frequente e consistentemente relacionado ao processos de alfabetização por meio de atividades especí-
sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita. ficas e sistematizadas, como o ensino explícito da relação
Guimarães (2002), avaliou os níveis de consciência grafema-fonema, em crianças de 1ª série sem êxito na alfa-
fonológica e consciência sintática, verificando a relação des- betização. Os resultados apontaram que a terapia em consci-
tas habilidades com o desempenho na leitura e na escrita de ência fonológica, associada ao ensino explícito das relações
palavras isoladas. Os sujeitos com melhor desempenho em grafema-fonema, interferiu significativamente no processo de
habilidades metalinguísticas (consciência fonológica e cons- alfabetização. Houve um aumento do desempenho na habi-
ciência sintática) apresentaram desempenho elevado em lei- lidade de leitura após a terapia em consciência fonológica,
tura e em escrita, ao mesmo tempo em que a aprendizagem demonstrando a existência de uma correlação entre leitura e
da leitura alfabética contribuiu para o desenvolvimento da consciência fonológica. Em consequência disso, a compre-
consciência fonológica. ensão da leitura foi potencializada.
Barrera e Maluf (2003) também investigaram a in- Cárnio e Santos (2005) também verificaram o efeito
fluência das habilidades metalinguísticas de consciência de um programa fonoaudiológico preventivo em linguagem
fonológica, lexical e sintática na aquisição da linguagem oral e escrita no desenvolvimento da consciência fonológica.
escrita em crianças de 1ª série do Ensino Fundamental. Os Os resultados encontrados sugerem eficácia do programa
resultados demonstraram melhor desempenho em leitura e fonoaudiológico preventivo em linguagem oral e escrita para
em escrita ao final do ano letivo em crianças que iniciaram o o desenvolvimento da consciência fonológica.
processo de alfabetização com níveis superiores em habili- A. G. S. Capovilla e F. C. Capovilla (2004) investiga-
dades metalinguísticas. ram os efeitos de um programa de tratamento de dificuldades
Em muitos países, têm-se ensinado de forma explícita fonológicas e de alfabetização nas habilidades de cons-
e sistemática a manipulação de fonemas na fase de alfabeti- ciência fonológica, leitura em voz alta, escrita sob ditado,
zação, diminuindo dificuldades em leitura e escrita e facilitan- conhecimento de letras, codificação fonológica na memória
do a melhor compreensão da relação fonema-grafema (A. G. de trabalho e acesso fonológico à memória de longo prazo
S. Capovilla & F. C. Capovilla, 2003). com crianças de pré a 2ª série. Os resultados demonstraram
No Brasil, Brito, Castro, Gouvêa e Silveira (2006), ganhos nas habilidades de consciência fonológica, leitura em
Paula, Mota e Keske-Soares (2005), Barreira e Maluf (2003), voz alta e escrita sob ditado.
Cielo (2002), Godoy (2003), A. G. S. Capovilla e F. C. Ca- Britto e cols. (2006) realizaram uma pesquisa que
povilla (2000) e Maluf e Barrera (1997) defendem o ensino avaliou a consciência fonológica de crianças no período da
sistemático e explícito das relações grafofonêmicas para o aquisição da linguagem escrita por meio do Teste de Consci-
desenvolvimento dos níveis de consciência fonológica no ência Fonológica - CONFIAS (Moojen, 2003) com o objetivo
início da alfabetização a fim de facilitar a aquisição da lingua- de comparar o desempenho de crianças em escrita e cons-
gem escrita. ciência fonológica após estimulação ou não. Verificou-se que
Dois estudos brasileiros importantes foram realizados as crianças que passaram pela intervenção apresentaram
de forma a verificar a eficácia de procedimentos de interven- melhora nos resultados totais em consciência fonológica.
ção fônica na aquisição da leitura e escrita de crianças de Essas autoras descrevem que o desempenho do grupo esti-
escolas públicas e particulares (A. G. S. Capovilla & F. C. mulado foi significativamente maior em habilidades de cons-
Capovilla, 1998, 2000). Os resultados de ambos os estudos ciência fonológica e desenvolvimento da escrita, apesar da
confirmaram que procedimentos para desenvolver a cons- observação de melhora nos resultados de ambos os grupos,
ciência fonológica e o ensino de correspondências grafofo- o que aponta a importância da estimulação da consciência
fonológica no período de apropriação da linguagem escrita.
Estimulação da consciência fonológica na educação infantil: prevenção... * Magda S. V. Pestun, Leila C. F. Omote, Déborah C. M. Barreto & Tiemi Matsuo 97
Pesquisas têm evidenciado que jogos e atividades parte do trabalho de prevenção realizada no ano de 2008.
metalinguísticas, como músicas, poemas e pistas letra-som, Para esse ano, cinco etapas foram propostas e executadas:
colaboram para o desenvolvimento da consciência fonoló- 1ª) avaliação intelectual e cognitiva (habilidades metalinguís-
gica e conhecimento alfabético (Snow e cols., Schneider e ticas e escrita de palavras) de 88 crianças matriculadas
cols., Brennan & Ireson, conforme citado por Craig, 2006). no pré III em uma escola pública de Londrina, no ano de
De maneira geral, o treino em consciência fonológica anterior 2008;
à instrução formal em leitura facilita a leitura e o desenvolvi- 2ª) elaboração de um programa de atividades metalinguísticas
mento ortográfico. E o benefício parece ser em longo prazo que priorizava o desenvolvimento da consciência fonológi-
(Lundberg, conforme citado por Craig, 2006). ca a ser aplicado às crianças do grupo experimental;
A sociedade atual – competitiva e exigente – prediz o 3ª) aplicação do programa de intervenção;
sucesso profissional a partir do desempenho escolar e, como 4ª) reavaliação cognitiva das 88 crianças;
salienta Rotta (2006, p.113), “aprender tornou-se não só um 5ª) análise dos resultados obtidos no ano de 2008.
diferencial, mas uma necessidade”. Entre as habilidades aca-
dêmicas consideradas de fundamental importância para o su- Participantes
cesso profissional, estão principalmente a leitura e a escrita.
A leitura refere-se à interpretação de sinais gráficos que A amostra dessa primeira parte do projeto foi cons-
uma comunidade convencionou utilizar para substituir os sinais tituída de 88 crianças, sendo 46 do sexo masculino e 42 do
linguísticos da fala. Envolve basicamente dois processos: de- sexo feminino, com idade média de 67,3 meses (sd= 3,33)
codificação e compreensão. A decodificação é o processo por e alunos do pré III de uma escola municipal da zona sul da
meio do qual reconhecemos os símbolos escritos (gráfico e cidade de Londrina. Todas as crianças apresentavam condi-
acústico), tarefa que exige atenção. Após o reconhecimento, é ção socioeconômica baixa e foram autorizadas por seus pais
necessário converter os símbolos gráficos em representações a participarem do estudo mediante assinatura do Termo de
fonológicas, o que possibilita o reconhecimento da palavra. Consentimento Livre e Esclarecido.
O reconhecimento das palavras e identificação de referentes As atividades de avaliação e de intervenção foram
possibilita a compreensão (Rotta & Pedroso, 2006). realizadas na própria escola em horário regular de aulas e
A escrita, por sua vez, pode ser considerada um conduzidas por cinco profissionais: duas psicólogas gradua-
conjunto de processos de conceituação e lexicalização. Um das, inseridas no Programa de Prestação de Serviço Volun-
aspecto central do desenvolvimento da escrita é a conversão tário da Universidade Estadual de Londrina (UEL), uma aluna
fonema/grafema e, em seguida, a aquisição da ortografia e a do quinto ano de psicologia da UEL, uma psicopedagoga da
constituição de uma memória grafêmica. Secretaria de Educação do Município de Londrina e a autora
Segundo artigo assinado por Cláudia Costin – vice- do artigo, como coordenadora do estudo.
presidente da Fundação Victor Civita e ex-ministra da Ad-
ministração Federal e Reforma do Estado – publicado na Instrumentos e materiais
Folha de Londrina de 23/10/2008, sob o título “A educação
de crianças e jovens”, Londrina concentra as melhores esco- Os instrumentos empregados para as fases de ava-
las públicas do Paraná de acordo com MEC – 2007. Mesmo liação foram:
assim, está longe do ideal. Para a 4ª série, a meta era atingir
nota 4,7 e a alcançada foi 4,9. Das 146 escolas municipais, 1. Escala Wechsler de Inteligência para Crianças - WISC–III
41(28%) ficaram abaixo da média. Além disso, a pior nota do (Wechsler, 2002), adaptada e padronizada para a popula-
Estado pertence a uma escola da cidade (Costin, 2008). ção brasileira. É um instrumento clínico, de aplicação indi-
Tendo esse panorama como figura de fundo, objeti- vidual, que tem por objetivo aferir a capacidade intelectual
vamos estudar e identificar algumas medidas que poderiam de crianças entre seis anos e 16 anos e 11 meses. Consis-
melhorar esse quadro e propiciar às crianças londrinenses te em 13 subtestes divididos em dois grupos identificados
um desenvolvimento global adequado. De forma mais espe- como verbal e não verbal ou de execução. O desempenho
cífica, nossa meta foi verificar: avaliado nos vários subtestes é resumido em três medidas
Se um programa de estimulação de habilidades compostas: QI verbal, QI de execução e QI total. Além
metalinguísticas, aplicado no pré III de modo sistemático, desses escores, o WISC–III oferece quatro escores em
desenvolveria a consciência fonológica; índices fatoriais: compreensão verbal (CV), organização
Se haveria correlação entre consciência fonológica perceptual (OP), resistência à distração (RD) e velocidade
e escrita de palavras. de processamento (VP). Foi aplicada com o propósito de
excluir crianças com atraso intelectual.
2. CONFIAS – Consciência Fonológica: Instrumento de
Método Avaliação Sequencial (Moojen, 2003). Esta prova objetiva
avaliar as diferentes habilidades cognitivas que envolvem
Esse estudo integra um projeto de extensão e pes- a consciência fonológica. As tarefas abrangem dois níveis:
quisa intitulado “Transtornos da Aprendizagem: avaliação, a) Nível da Sílaba, composto por oito questões, sendo
intervenção, investigação e prevenção” e constitui a primeira cada uma delas com dois itens de treino e quatro itens de
98 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 95-104.
teste, e uma questão com dois itens de treino e oito itens modo geral, visa promover melhora na qualidade de aprendi-
de teste, totalizando pontuação máxima de 40 acertos; b) zado de crianças pré-escolares. Caracteriza-se ainda como
Nível do Fonema, composto por seis questões com dois uma pesquisa experimental de grupo, com pré e pós-teste.
itens de treino e quatro itens de teste e uma questão com A variável dependente (VD) refere-se ao comportamento
dois itens de treino e seis itens de teste, totalizando pontua- que está sendo medido, nesta pesquisa, o desempenho em
ção máxima de 30 acertos. Os acertos e erros dos sujeitos consciência fonológica e escrita. A variável independente
experimentais e controles foram registrados em protocolos (VI) refere-se ao tratamento ou procedimento em estudo
específicos do próprio instrumento para posterior análise, (intervenção em consciência fonológica). Quando um deli-
tendo por base a pontuação esperada para crianças alfa- neamento é capaz de demonstrar que a manipulação da VI
betizadas, sendo 70 acertos o máximo possível. resulta em mudanças na VD, a tentativa de relação causa/
3. Quatro palavras e uma frase. Quatro palavras (uma mo- efeito pode ser assumida. Essa união é chamada de relacio-
nossílaba, uma dissílaba, uma trissílaba e outra polissíla- namento funcional (Alberto & Troutman; Mcguigan; Lakatos
ba) que não pertencem ao repertório usual de cartilhas, & Marconi, conforme citado por Almeida, 2003).
mas fazem parte do campo de conhecimento das crian- O procedimento constou de quatro etapas:
ças e pertencem a um mesmo grupo semântico. Após Etapa 1 (avaliação pré-teste) – realizada de fevereiro
as quatro palavras serem escritas, o ditado foi finalizado a abril de 2008. As 88 crianças foram avaliadas de forma in-
com uma frase na qual estava inserida uma das palavras dividual em quatro sessões de 30 minutos quanto ao desem-
ditadas anteriormente. A prova tem por objetivo verificar a penho intelectual e cognitivo por meio dos testes WISC-III e
hipótese de escrita elaborada pela criança, uma vez que CONFIAS e prova de escrita de quatro palavras e uma frase.
o processo de construção da concepção de escrita passa As avaliações de potencial intelectual e habilidades metalin-
por diferentes níveis. Para Ferreiro e Teberosky (1991), a guísticas foram realizadas pelas duas psicólogas graduadas
criança, durante o período de contato com os sinais grá- e a avaliação de escrita, pela psicopedagoga da prefeitura.
ficos, passa por estágios de evolução com características As duas primeiras sessões foram dedicadas à aplicação do
marcantes que podem ser agrupados em quatro grandes WISC-III, seguindo procedimento padrão recomendado no
níveis: pré-silábico, silábico, silábico-alfabético e alfabé- manual. A terceira e a quarta sessões foram dedicadas à
tico, que são descritos concisamente no procedimento aplicação do CONFIAS e à escrita de quatro palavras e uma
(tabela de pontuação). As palavras ditadas no pré-teste frase. Para o CONFIAS, foram seguidas as recomendações
foram: boi, gato, cavalo e borboleta; no pós-teste, foram: sobre o procedimento de aplicação segundo manual. Quanto
pão, bolo, bolacha e gelatina. à escrita de quatro palavras e uma frase, foram seguidas as
4. Papel Sulfite, lápis preto e lápis colorido. recomendações de Ferreiro e Teberosky (1991). As respostas
5. Cronômetro. foram registradas em protocolos-padrão para análise poste-
rior. A análise dos resultados obtidos no WISC-III e CONFIAS
Procedimento seguiram as normas dos próprios testes. Quanto à prova de
escrita de quatro palavras e uma frase, estabelecemos os
De acordo com Almeida (2003), este estudo caracte- critérios descritos na Tabela 1.
riza-se como uma pesquisa-ação, uma vez que seu objetivo Os resultados obtidos foram tratados por meio de
é verificar a eficácia de uma proposta de intervenção que, de análise estatística não paramétrica, classificando as crianças
Tabela 1. Critérios estabelecidos para a aplicação e avaliação da prova de escrita de quatro palavras e uma frase segundo
Ferreiro e Teberosky (1991).
Estimulação da consciência fonológica na educação infantil: prevenção... * Magda S. V. Pestun, Leila C. F. Omote, Déborah C. M. Barreto & Tiemi Matsuo 99
em dois grupos a partir do desempenho em consciência fo- sala de aula, desenvolvendo atividades lúdicas com as duas
nológica e potencial intelectual: um com desempenho acima professoras titulares.
da mediana e outro com desempenho abaixo da mediana. A Etapa 4 (reavaliação de todas as crianças – expe-
partir dessa classificação, houve um balanceamento estatís- rimental e controle – pós-teste) – realizada em novembro e
tico que redistribuiu as crianças em dois novos grupos: expe- dezembro de 2008. Três crianças haviam solicitado transfe-
rimental e controle. Cada um desses grupos foi constituído rência de escola durante o ano letivo e, portanto, somente 85
de crianças com desempenho acima e abaixo da mediana. crianças foram reavaliadas quanto à consciência fonológica
Etapa 2 (elaboração do programa de estimulação da por meio do CONFIAS e escrita de quatro palavras e uma
consciência fonológica) – realizada de maio a julho de 2008. frase. Participaram dessa etapa de reavaliação somente a
As duas psicólogas graduadas, a psicopedagoga e a autora psicóloga graduada e a psicopedagoga. Os dados coletados
deste artigo elaboraram um programa de estimulação das foram analisados por meio de estatística não paramétrica. O
habilidades de consciência fonológica a ser realizado em 35 teste de qui-quadrado foi empregado para avaliar a homo-
encontros de uma hora cada. O programa envolveu tarefas de geneidade da distribuição nos grupos de estudo e o teste de
consciência de palavras, identificação de rimas e aliterações e Mann-Whitney para comparar os grupos por meio das VDs.
consciência silábica e fonêmica. Os exercícios, em sua maio-
ria, foram extraídos daqueles propostos por A. G. S. Capovilla
e F. C. Capovilla (2002) e Almeida e Duarte (2003). Resultados e discussão
Etapa 3 (implementação do programa de estimulação)
– realizada de julho a outubro de 2008. Nessa fase, houve O estudo foi iniciado com 88 crianças matriculadas
duas alterações na proposta inicial. A primeira, decorrente do no pré III, no ano de 2008, em uma escola municipal da re-
desligamento da pesquisa de uma das psicólogas graduadas, gião sul da cidade de Londrina e concluído com 85, devido à
fez com que a coordenadora do projeto decidisse pela inser- transferência de três alunos no decorrer do ano letivo.
ção de uma aluna estagiária de psicologia, com experiência As variáveis para análise foram descritas com a mé-
na área, como substituta. A segunda foi a inserção de uma dia ± desvio padrão () e a mediana (Md) com valores mínimo
professora da própria escola na pesquisa, com o objetivo de (Min) e máximo (Max).
auxiliar a psicóloga graduada no controle das crianças em As diferenças das mensurações iniciais e finais foram
sala de aula durante a aplicação do procedimento de inter- avaliadas pela diferença entre a medida final e inicial e a
venção. As 44 crianças do grupo experimental (GE) foram razão entre medida final e inicial. Aplicou-se o teste de Mann-
divididas mediante balanceamento estatístico das caracterís- Whitney com as seguintes hipóteses nulas:
ticas básicas em dois subgrupos de 22 alunos cada. Cada
subgrupo foi assistido duas vezes por semana em encontros • Diferença entre as avaliações final e inicial
de 60 minutos cada um. As avaliações das atividades realiza- H0: diferença média = 0 (µfinal - µinicial = 0 µfinal = µinicial)
das em cada encontro, bem como qualquer ocorrência, eram • Razão entre as avaliações final e inicial
registradas em protocolo elaborado pelas pesquisadoras. H0: razão média = 1 (µfinal /µinicial = 1 µfinal = µinicial)
As 44 crianças do grupo controle permaneceram em outra
Tabela 2. Caracterização da amostra em estudo (quociente intelectual total – QIT, idade e sexo).
QIT
Na 44 44
Md (Min-Max) 86 (76 – 120) 85 (75 – 116) U=0,078 (p=0,7795)
Idade
N 44 44
Md (Min-Max) b
67 (62 – 73) 67 (62 – 73) U=0,051 (p=0,8209)
Sexo
Feminino 20 (50,0%) 20 (50,0%) c2 = 0,00 (p=1,0000)
Masculino 24 (50,0%) 24 (50,0%)
a - Número de crianças
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De agosto a outubro de 2008, foram realizadas 29 para seus filhos e fazem poucos jogos de linguagem com
sessões de 60 minutos cada. Não foi possível realizar as 35 eles, o que desfavorece o desenvolvimento das habilidades
sessões propostas inicialmente devido aos recessos escola- metalinguísticas.
res ocorridos no período. Assim, as atividades que envolviam No pós-teste, podemos observar evolução de ambos
o ensino dos fonemas não foram trabalhadas. No decorrer das os grupos em todas as modalidades trabalhadas e avaliadas,
sessões de intervenção, foi observado que algumas variáveis sendo que o GE evoluiu mais que o GC em todas as medi-
interferiram na produtividade do programa proposto. Uma delas das do CONFIAS. Contudo a diferença de desempenho entre
foi o número de crianças (n=22) em cada sala de intervenção, os grupos não foi significativa (p= 0,1532). Interessante que
o que dificultou o controle da disciplina e aplicação de alguns somente o GE atingiu o nível pré-silábico na modalidade sí-
exercícios que exigiam respostas individuais. Outra variável labas (23,4 ± 4,8) – trabalhadas nas sessões de intervenção.
desfavorável foi a inexperiência da psicóloga graduada e da Seria efeito do programa de estimulação? Em fonemas, os
estagiária de psicologia em práticas pedagógicas, havendo a dois grupos atingiram o mesmo nível (8,86 ± 4,70 para o GE
necessidade de auxílio de uma professora do quadro de do- e 8,40 ± 5,20 para o GC). Como a modalidade fonemas não
centes da escola para atuar no controle das crianças. foi trabalhada durante a aplicação do programa de estimula-
A Tabela 2 fornece a caracterização da amostra em ção, seria a instrução formal responsável por esse resultado?
estudo e descreve a distribuição dos participantes entre os Essas variáveis deverão ser melhor controladas em 2009.
grupos controle (GC) e experimental (GE) quanto ao quo- Quanto à não diferença estatisticamente significativa
ciente intelectual total (QIT), idade e sexo. de ganho entre os grupos, duas hipóteses que podem expli-
Como pode ser observada, a distribuição por gênero car esse resultado foram levantadas:
dos alunos nos grupos controle (GC) e experimental (GE) foi 1ª) O número de sessões de intervenção pode ter
homogênea (p=1,000). sido insuficiente para desenvolver uma capacidade cognitiva
Os resultados do pré e do pós-teste nas provas do que está estritamente relacionada à própria compreensão da
CONFIAS e nas provas de escrita, bem como as diferenças linguagem oral. Acreditamos que as atividades de conscien-
entre o pós e o pré-teste para os grupos controle (GC) e ex- tização fonológica para crianças nessa faixa etária, oriundas
perimental (GE), estão descritos na Tabela 3. de classes sociais menos favorecidas e com inexperiência
No teste CONFIAS, os dois grupos (GC e GE) evolu- escolar, deveriam fazer parte das atividades rotineiras e não
íram em todas as variáveis medidas do pré para o pós-teste, somente de forma esporádica.
no entanto a evolução foi maior para as crianças do grupo 2ª) O despreparo das psicólogas em práticas pedagó-
experimental, tanto para sílaba como para fonema. Contudo gicas pode ter produzido dificuldades para manter as crian-
a diferença entre os dois grupos não foi estatisticamente sig- ças atentas e envolvidas nos exercícios.
nificativa (p>0,05). Essas duas variáveis podem ter contribuído para os
No pré-teste, não houve diferença entre os grupos resultados obtidos.
controle e experimental em sílabas (p=0,8273), em fonemas
(p=0,8394) e em escrita (p=0,7773), o que demonstra a ho-
mogeneidade dos grupos. Conclusão
Interessante observar que o desempenho das crian-
ças em todas as provas do CONFIAS, avaliado no pré-teste, O presente estudo teve por objetivo verificar se um
ficou abaixo do esperado para crianças na fase pré-silábica, programa de estimulação de uma habilidade metalinguística
segundo escores obtidos na validação do teste CONFIAS (consciência fonológica) aplicado de modo sistemático no
(±23,52 para sílabas; 8,28 para fonemas e 31,8 para total). pré III desenvolveria essa habilidade e se haveria correlação
Uma hipótese levantada para o fraco desempenho das crian- entre a consciência fonológica e a escrita.
ças de nossa amostra na avaliação pré-teste pode ser o baixo Os resultados obtidos revelaram ganhos em consci-
nível socioeconômico, somado à ausência de escolarização ência silábica, consciência fonêmica e em escrita em ambos
formal antes do pré III. Pestun (2005) e Da Silva (2004) ve- os grupos (GE e GC). Apesar do GE ter evoluído mais que
rificaram a influência da condição sociocultural e econômica o GC em todas as modalidades, a diferença de ganho entre
nas aquisições metalinguísticas e constataram déficit nessa os grupos não foi estatisticamente significativa. Acreditamos
habilidade em crianças pertencentes às classes menos favo- que o tempo de exposição das crianças do GE ao programa
recidas. Os resultados obtidos nesse estudo indicaram que de estimulação foi insuficiente para um avanço maior.
a carência em estimulação da linguagem oral poderia ser a Como a aquisição da consciência linguística é gradu-
responsável por tal desempenho, pois crianças que frequen- al e depende tanto do desenvolvimento e amadurecimento
tavam ensino pré-escolar havia mais de dois anos e cujos biológico quanto das constantes trocas com o meio ou o con-
pais apresentavam grau de instrução superior demonstraram texto (Cielo, 2002), acreditamos que um trabalho sistemático
melhores resultados em habilidades metalinguísticas quando de estimulação das capacidades metalinguísticas deva estar
comparadas às crianças que iniciaram sua escolarização presente desde os primeiros anos da educação infantil com
somente no pré III e cujos pais tinham em média quatro anos o objetivo de conduzir os alunos a um eficaz aprendizado do
de estudo. Segundo Morais, Mousty e Kolinsky (1998), pais princípio alfabético que desenvolva plenamente habilidades
que apresentam poucos anos de escolarização, leem menos mais complexas de leitura e escrita.
Estimulação da consciência fonológica na educação infantil: prevenção... * Magda S. V. Pestun, Leila C. F. Omote, Déborah C. M. Barreto & Tiemi Matsuo 101
Tabela 3. Resultados pré e do pós-teste nas provas do CONFIAS e nas provas de escrita para os grupos controle e
experimental (Valores medianos, mínimo e máximo das variáveis - Md (Min-Max), e teste de Mann-Whitney).
PRÉ –TESTE a
Variáveis Controle (GC) Experimental (GE) Teste (valor p)
Sílabas CONFIAS(1)
N 44c 44 c
Md (Min-Max) 13 (6 – 28) 13 (8 – 21) U=0,047 (p=0,8273)
Fonema CONFIAS (1)
N 44 44
Md (Min-Max) 5 (2 – 10) 4 (2 – 11) U=0,041 (p=0,8394)
Total CONFIAS(1)
N 44 44
Md (Min-Max) 18 (9 – 36) 18 (11 – 31) U=0,001 (p=0,9800)
Escrita (1)
N 44 44
Md (Min-Max) 1 (0 – 3) 1 (0 – 2) U=0,080 (p=0,7773)
PÓS-TESTE b
Variáveis Controle (GC) Experimental (GE) Teste (valor p)
Sílabas CONFIAS (2)
N 42d 43d
Md (Min-Max) 24 (12 – 39) 27 (16 – 37) U=2,533 (p=0,1115)
Fonema CONFIAS (2)
N 42 43
Md (Min-Max) 7 (3 – 27) 8 (2 – 24) U=0,697 (p=0,4037)
Total CONFIAS (2)
N 42 43
Md (Min-Max) 28 (17 – 66) 30 (22 – 58) U=2,903 (p=0,0884)
Escrita (2)
N 42 43
Md (Min-Max) 1 (1 – 4) 2 (1 – 4) U=0,027 (p=0,8700)
102 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 95-104.
Sendo uma das defensoras da existência de uma Cárnio, M. S., & Santos, D. (2005, Maio/Agosto). Evolução da
relação recíproca e bidirecional entre a aquisição de leitura consciência fonológica em alunos de ensino fundamental. Pró-
e escrita e o desenvolvimento da consciência fonológica, Fono: Revista de Atualização Científica, 17(2), 195-200.
acreditamos que o processo de alfabetização irá contribuir
e favorecer para que os aprendizes deste estudo foquem a Cielo, C. A. (2002, Setembro/Dezembro). Habilidades em consciência
atenção nos aspectos sonoros e segmentais da linguagem fonológica em crianças de 4 a 8 anos de idade. Pró-fono: Revista
oral – como a consciência fonêmica. de Atualização Científica, 14(13), 301-312.
Acreditamos também que os efeitos deste trabalho de
estimulação possam ser melhor avaliados no decorrer da 1ª Costin, C. (2008, 10 de outubro). A educação de crianças e jovens.
série do Ensino Fundamental, com realização de mais um Folha de Londrina, p.7.
pós-teste. Esperamos observar e analisar se os resultados
da conscientização fonológica obtidos no pré III poderão pre- Craig, S. A. (2006). The effects of an adapted interactive writing
dizer a leitura contextual e escrita um ano depois. intervention on kindergarten children’s phonological awareness,
Pensamos também que um programa de capacitação spelling, and early reading development: a contextualized approach
de professores de Educação Infantil seria promissor. to instruction. Journal of Educational Psychology, 98(4), 714-731.
Portanto, esse estudo continua!
Da Silva, V. F. (2004). A influência sócio-cultural e econômica
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Alegre: Artmed.
Sobre as autoras
Correspondência
Magda Solange Vanzo Pestun
Universidade Estadual de Londrina
Departamento de Psicologia Social e Institucional
Rodovia Celso Garcia Cid (PR 445), Km 380 Londrina – PR
104 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 95-104.
Psicologia, diretrizes curriculares e processos
educativos na Amazônia: um estudo da
formação de psicólogos
Resumo
Este estudo objetiva analisar a formação de psicólogos frente às Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Psicologia no que tange
aos processos educativos. Realizamos revisão da literatura pertinente ao tema, pesquisa documental e empírica com alunos, professores e
coordenador de curso, utilizando questionário, entrevistas e adotando a estratégia de triangulação a partir das categorias: perfil sociocultural;
nível de conhecimento acerca das mudanças oriundas das Diretrizes para o curso de Psicologia; percepção na qualidade da prática docente; nível
de satisfação com relação à própria formação universitária, tomando como referência os conhecimentos, habilidades e competências adquiridas.
Apresenta contribuições para a compreensão da formação de psicólogos no campo da educação na Amazônia no Ensino Superior, centrada
na construção de um profissional de pensamento e prática críticos, capaz de analisar as transformações nos vários contextos educacionais e
escolares, utilizando referenciais que permitam a compreensão do fenômeno educativo na sua complexidade.
Palavras-chave: Formação do psicólogo, psicologia escolar, ensino superior.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120. 105
Introdução à atuação do psicólogo no campo da educação. Para tanto,
conta com a participação de pesquisadores dos Estados de
Atualmente, há um consenso entre os pesquisadores São Paulo, Minas Gerais e Rondônia, possibilitando uma
brasileiros de que a Psicologia não mais se restringe ao mo- análise ampliada da formação/prática profissional em Psico-
delo clínico, centrado no atendimento individual, baseando logia no campo da Educação em nosso país.
apenas em aspectos intrapsíquicos as explicações para a O objetivo geral da pesquisa é analisar a formação
complexidade das ações e intenções humanas (Tanamachi, dada aos futuros psicólogos nos Cursos de Graduação em
2002). Nas várias áreas em que o psicólogo atua, constata- Psicologia quanto à ênfase nos processos educativos, tendo
se a discussão da importância de um trabalho social, em em vista as novas Diretrizes Curriculares Nacionais vigentes
equipes multiprofissionais, utilizando referenciais teórico- em Psicologia.
metodológicos que busquem responder, de alguma maneira, Com relação aos objetivos específicos do estudo,
aos desafios postos pela realidade social na qual o indivíduo elaboramos os seguintes: levantar e analisar a literatura es-
está inserido1. tudada na área da Psicologia Escolar e Educacional, tendo
No campo da Psicologia Escolar e Educacional, os como categorias de análise elementos que compõem uma
pesquisadores da área são praticamente unânimes em de- perspectiva crítica do trabalho do psicólogo no campo da
fender uma formação centrada na construção de um profis- educação; analisar os documentos oficiais produzidos pelos
sional de pensamento e prática críticos, capaz de analisar as cursos de formação e que se referem à dimensão educativa
transformações vigentes nos vários contextos educacionais do trabalho do psicólogo; levantar os elementos que com-
e escolares, trabalhando coletivamente, a partir de uma pers- põem o pensamento e a prática docente universitária no que
pectiva ético-política, utilizando referenciais que permitam a se refere à formação/atuação do psicólogo no campo da edu-
compreensão do fenômeno educativo na sua complexidade, cação a partir da percepção de coordenadores, professores
considerando suas múltiplas determinações: sociais, políti- e alunos do 4º e 5º anos de cursos de Psicologia.
cas, institucionais e individuais2. Neste artigo, damos destaque à pesquisa realizada na
No caso brasileiro, a formação de psicólogos é regi- região Norte, mais especificamente na Universidade Federal
da pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Este conjunto de de Rondônia – UNIR, primeira a oferecer o curso de formação
diretrizes para o curso de Psicologia foi aprovado em 2004, de psicólogo em todo o Estado. Consideramos que estudos
fazendo com que as instituições de formação em nível supe- desta natureza nos revelam diferentes realidades brasileiras,
rior tenham que implementá-las, com todas as adequações de forma a ampliar a compreensão das questões da forma-
e modificações que este novo modelo requer aos currículos ção/prática profissional na área de Psicologia no país.
e estruturas de curso até então vigentes. Esse momento
coincide com a expansão de vagas no Ensino Superior, in- A formação de psicólogos no Brasil
crementada por uma nova política pública instituída em nível
federal que privilegia a abertura de vagas e recursos para A formação de psicólogos no Brasil fortaleceu-se a
instituições privadas, conforme dados do MEC/INEP (2007). partir da Regulamentação Profissional que ocorreu em 1962
Em 2007, o Grupo de Trabalho em Psicologia Escolar (Lei nº 4119). Nos últimos 46 anos, o crescimento da Psico-
e Educacional da ANPEPP organizou importante publicação logia foi vertiginoso, partindo da formação de 78 psicólogos
intitulada “Formação em Psicologia Escolar: realidades e em São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
perspectivas” - coordenada pelo Prof. Dr. Herculano Ricardo Humanas da USP, para aproximadamente 160 mil profissio-
Campos (2007), cujos capítulos remetem a este importante nais em todo o Brasil. Desde 1971, com a Lei 5766, todo
momento da formação. Neste livro, tem especial destaque psicólogo tem que se registrar em seu Conselho Profissional
o capítulo de Marinho-Araújo (2007), intitulado A psicologia para exercer a profissão. Para tanto, precisa estar inscrito em
escolar nas diretrizes curriculares: espaços criados, desafios um Conselho de Psicologia em seu Estado de exercício pro-
instalados. fissional (Conselhos Regionais). A finalidade dos Conselhos
Esta pesquisa insere-se neste momento histórico da Profissionais é de orientar e fiscalizar o exercício profissional,
implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais na bem como contribuir para o desenvolvimento da Psicologia
formação de psicólogos, estabelecendo o recorte temático como ciência e profissão de forma a garantir à sociedade a
em uma das possibilidades de ênfases a ser trabalhada por qualidade técnica e ética dos serviços prestados pelos profis-
estas Diretrizes e que se refere aos processos educativos e sionais de Psicologia em todo o país. O Sistema Conselhos
é constituído por um Conselho Federal de Psicologia e 17
1 Esta constatação pode ser verificada na produção recente da Conselhos Regionais, que devem seguir o mesmo Código de
Psicologia, fruto de grupos de pesquisa no Brasil e de produções Ética Profissional3 e o Código de Processamento Disciplinar
oriundas dos grupos de Trabalho da ANPEPP – Associação Nacional (Resolução 06/2007)4.
de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia.
2 O V Congresso Nacional Norte-Nordeste em Psicologia, realizado 3 O Código de Ética Profissional foi criado em 1979, pela
em Maceió, em 2007, organizou publicação intitulada “A produção Resolução 029/79; revisado em 1987, pela resolução 02/1987 e mais
na diversidade: compromissos éticos e políticos em Psicologia” que recentemente substituído pela Resolução 010/2005.
muito bem retrata parte das discussões recentes na área. 4 A complexidade do exercício profissional pode ser observada por
106 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
A configuração política e econômica do Estado bra- Com relação à reforma psiquiátrica, movimento inicia-
sileiro fez com que grande parte dos cursos de formação do no final da década de 70 e que se estendeu até 90, foi
de Psicologia fosse organizada no Estado de São Paulo. um espaço privilegiado para discussão do modelo de aten-
Atualmente é o Estado que possui em torno de 35% dos psi- dimento médico dado aos portadores de transtornos mentais
cólogos brasileiros exercendo a profissão, bem como apro- e também os psicólogos iniciaram uma discussão sobre seu
ximadamente 1/3 dos cursos de Psicologia do Brasil (www. papel nestes casos. Paralelamente, o modelo médico dentro
abepsi.org.br). da Psicologia também estava sendo discutido no âmbito da
Conforme analisam Checchia e Souza (2003), três Psicologia Educacional e Escolar por meio de críticas como
importantes publicações podem ser consideradas como as as feitas por Patto (1981) e, posteriormente, outros trabalhos
que permitem contemplar as principais análises a respeito endossaram a necessidade de mudança do perfil do psicólo-
da formação de psicólogos. São elas: o estudo pioneiro de go e sua prática.
Mello (1975) sobre os cursos de formação em Psicologia em As mudanças que se apresentam no perfil profissional
São Paulo; a publicação do Conselho Federal de Psicologia e na formação profissional devem-se a quê? Esta é uma per-
(1988) a respeito de “Quem é o psicólogo brasileiro?” e o livro gunta que vários estudos no Brasil vêm tentando responder.
Psicólogo Brasileiro: práticas emergentes e desafios para a No trabalho de 1988, Botomé (citado por Checchia & Souza,
formação, organizado por Bastos e Achcar (1994) a pedido 2003), discute a mudança do olhar da Psicologia sobre o
do Conselho Federal de Psicologia. seu objeto de estudo por meio da introdução de críticas que
Uma breve retrospectiva dessas três publicações, vieram principalmente do pensamento crítico sociológico à
com base nas discussões apresentadas por Checchia e compreensão do pensamento psicológico7 e da introdução
Souza (2003), permite-nos analisar, mesmo que de maneira de discussões no campo da Psicologia advindas do que
sucinta, o quadro de formação profissional no Brasil. Como se denominou Movimento Institucionalista e da Psicologia
analisa Mello (1975), os cursos de Psicologia, em seus pri- Institucional8, de maneira a destacar a importância da mul-
mórdios, optam por um modelo de formação centrado em tidisciplinaridade ou da interdisciplinaridade. No bojo desta
uma concepção profissional clínica e de profissional liberal, discussão, os currículos dos cursos de Psicologia passam a
priorizando o atendimento individual em consultórios particu- ser o alvo das principais críticas pelo fato de excluírem vários
lares, inspirada no modelo médico. As disciplinas presentes aspectos da realidade social do país e por ensinarem uma
no currículo enfatizavam a formação nas áreas de psicodiag- Psicologia dita neutra e científica, com bases claramente
nóstico, avaliação psicológica e psicoterapias. Esse quadro positivistas e a-históricas. Para exemplificar, o trabalho do
se mantém nos anos 1960, 1970, fortalecidos por um período psicólogo escolar e educacional baseava-se quase exclusi-
político de exceção, sob a égide de uma ditadura militar, in- vamente em determinar o Q.I. ou a deficiência de crianças
terferindo diretamente na constituição das ideias e das ações em idade escolar para alocação em classes especiais por
profissionais em todas as áreas do conhecimento, incluindo a meio de testes psicológicos baseados no modelo psicomé-
Psicologia5. As primeiras mudanças nesse quadro vão acon- trico e clínico.
tecer somente em meados dos anos 1980, como analisam Assim sendo, os anos 1990 inauguram um conjunto
os demais trabalhos citados, no momento também em que de ações que passam a acontecer nos planos político9 e
se configura o movimento de abertura política e a luta pela social brasileiros e que influenciam a profissão, bem como
democratização do Estado brasileiro e a implantação do Sis- fermentam a discussão teórico-metodológica nas diversas
tema Único de Saúde no Brasil6. Tais mudanças centram-se áreas de atuação profissional. Esse momento de discus-
nas discussões a respeito das finalidades da profissão e da são e problematização da Psicologia retratado por Bastos
prática profissional, bem como veiculam críticas importantes e Achcar (1994) centra a análise de tais mudanças em três
à formação profissional e que terão seus reflexos nos anos grandes áreas clássicas de atuação profissional: Clínica,
1990, mais diretamente, como tentaremos mostrar a seguir. Escolar e Organizacional e do Trabalho. Contribuíram com
este levantamento professores das principais universidades
e faculdades de Psicologia do Brasil, possibilitando um perfil
meio das várias Resoluções e Documentos produzidos pelo Conselho
Federal de Psicologia em consonância com os Conselhos Regionais.
Estes documentos são disponibilizados no site do Conselho Federal 7 Note-se que a tese de Maria Helena Souza Patto que analisa
no endereço www.pol.org.br. este tema foi defendida em 1981 com o título Psicologia e ideologia :
5 A análise preciosa desse momento histórico da Psicologia no reflexões sobre a psicologia escolar, orientada pela Profa. Eclea Bosi.
campo da formação e da profissão é apresentada por Coimbra em 8 No rastro dos “cavalos do diabo”: memória e história para
sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da USP uma reinvenção de percursos do paradigma do grupalismo-
e denominada “Gerentes da Ordem: algumas práticas “Psi” nos aos institucionalismo no Brasil é a tese de doutorado de Heliana Conde
70 no Brasil”, 1992. Rodrigues que analisa esse importante movimento latino-americano
6 O processo de discussão e implementação do Sistema Único de e sua presença no Brasil, 2002.
Saúde brasileiro é constituído a partir da Carta de Ottawa de 1986, 9 Aprovação, em 1988, de novo texto da Constituição Brasileira
ocasião em que aconteceu a Primeira Conferência Internacional e que, pelo seu alcance social, foi denominada de “Constituição
sobre Promoção de Saúde. Cidadã”.
Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 107
bastante completo da discussão sobre a formação e atuação diversos. Defende um novo olhar que não priorize apenas a
do psicólogo. “criança-problema” (individualizante) como era dito anterior-
Com relação à Psicologia Clínica, Lo Bianco, Bastos, mente, mas todo o contexto sociopolítico e cultural no qual se
Nunes e Silva (1994) analisam que, a partir de meados dos insere, assim como a realidade escolar brasileira e os pres-
anos 1980, há mudanças tanto nos referenciais teóricos utili- supostos históricos envolvidos na produção dos problemas
zados, quanto nas práticas veiculadas na atuação profissio- neste âmbito.
nal. Essas mudanças referem-se à ampliação do modelo de Esses três importantes trabalhos revelam as mudan-
atendimento psicológico predominantemente centrado nos ças significativas que aconteceram no plano da discussão
consultórios (anos 70) para instituições de atenção básica teórico-metodológica nas três principais áreas de atuação
e secundária, bem como os questionamentos advindos da da Psicologia e como tais mudanças deveriam estar tam-
Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial e suas repercus- bém presentes na formação. Não queremos dizer com isso
sões no atendimento psicológico. No campo dos referenciais que a prática profissional antecede a formação, mas que os
para esse trabalho, segundo os autores, há um questiona- movimentos sociais e políticos vigentes, as questões postas
mento do modelo que explica os fenômenos psíquicos como socialmente pelo momento político, histórico e social da pro-
tão somente individuais para considerar a “inserção social” fissão passaram a questionar a atuação e a formação pro-
do sujeito. Destacam, ainda, a grande demanda de proble- fissional, exigindo novas respostas e enfrentamentos para
mas escolares presentes no campo da Saúde, bem como a a profissão no Brasil. Analisaremos, em seguida, as saídas
necessidade de atuação em um nível preventivo de atenção que se fizeram presentes no plano da formação profissional
primária. No que concerne à formação profissional, as auto- apontadas pela pesquisa recente na área.
ras, conforme referenda o texto de Checchia e Souza (2003),
consideram que as concepções vigentes implicam ações no A formação do Psicólogo nas novas Diretrizes
plano da formação em dois eixos: “dos requisitos e com- Curriculares
petências necessários para a realização de um trabalho
profissional de qualidade e as características e estrutura As discussões a respeito da formação profissional no
de formação profissional que possibilitem efetivamente mu- campo da Psicologia se mantiveram durante a década de
danças na prática clínica” (p.116, grifos das autoras). Aspec- 1990 (Machado, 1996; Meira, 1997; Souza, 1996; Tanama-
tos tais como a contextualização do fenômeno psíquico, a chi, 1997; Yazzle, 1997) fortalecidas pela busca de uma iden-
observação, a estruturação do ato pedagógico que possibilite tidade profissional articulada com os novos desafios sociais.
a aquisição dessas competências e habilidades, a crítica Mais especificamente, essas discussões desembocaram na
teórico-metodológica, a inclusão de conteúdos advindos da articulação nacional que norteou a elaboração das Diretrizes
Antropologia, da Filosofia e da Sociologia, o trabalho em equi- Curriculares para o Curso de Graduação em Psicologia, cujas
pes multiprofissionais e a relação universidade-comunidade ideias são discutidas no bojo da nova Lei de Diretrizes e Ba-
foram abordados como fundamentais no plano da formação ses da Educação Nacional (LDBEN). Sobre tais discussões,
profissional. destacam-se o livro organizado por Guzzo (2001, 2002), fruto
No que se refere à área de Psicologia Organizacional de debates construídos no interior do Grupo de Trabalho em
e do Trabalho, as discussões também têm se aprofundado Psicologia Escolar da Associação Nacional de Pesquisa e
nas vertentes da globalização e das novas formas de gestão, Pós-Graduação em Psicologia, e o trabalho de Yamamoto
bem como nas críticas ao modelo de acúmulo de capital e (2000).
na criação das gestões cooperativas e de economia solidá- As Diretrizes comparecem no cenário nacional oficial-
ria. O trabalho do psicólogo transcende a tradicional visão mente em 2004, trazendo mudanças bastante significativas
de recursos humanos e de seleção de pessoal, participando em relação ao Currículo Mínimo, em seus princípios, objeti-
mais amplamente em outras dimensões da relação capital- vos e metas, circunscritas ao modelo dos Parâmetros Cur-
trabalho. riculares Nacionais, centradas na concepção construtivista
Na área da Psicologia Escolar, por sua vez, Maluf de aprendizagem. Nesta perspectiva teórico-metodológica, o
(1994) considerou que se encontravam em profundas revi- currículo deverá ser construído tendo em vista a aquisição
sões e reformulações os “esquemas conceituais que susten- de competências e habilidades para a formação e o exercício
taram a formação em Psicologia durante o curso de gradua- profissional. Dentre as inovações previstas, destaca-se a
ção” (p.166) que estavam provocando mudanças na atuação ruptura com a concepção de áreas de atuação profissional
na referida área. Particularmente, destaca o questionamento no interior da formação. As áreas tradicionais (Psicologia
à concepção de adaptação de criança à escola e um novo Clínica, Escolar e Organizacional) deveriam ser substituídas
olhar ao fenômeno educativo como fruto das relações esco- por ênfases curriculares, a serem escolhidas por alunos nos
lares e institucionais. A autora também se refere à atuação do últimos períodos do curso e tais ênfases poderiam ter inclusi-
psicólogo, cuja defesa nos anos 1990 é de que atue como um ve aspectos de duas ou mais áreas interligadas.
profissional independente do corpo administrativo da escola. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
De um modo geral, as mudanças incidiram a partir de uma área de Psicologia, o que se espera de uma formação pro-
crítica ao modelo psicométrico de avaliação, bem como ao fissional em Psicologia pelas Instituições de Ensino Superior
papel do psicólogo na escola e em contextos educacionais do Brasil é que esteja voltada para a atuação profissional,
108 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
pesquisa e ensino de Psicologia, assegurando determinados Quanto ao conceito de ênfases, a proposta das novas
princípios e compromissos, a saber: a) Construção e desen- Diretrizes busca garantir, em consonância com um núcleo
volvimento do conhecimento científico em Psicologia; b) Com- comum, algumas das especificidades presentes no campo
preensão dos múltiplos referenciais que buscam apreender a da Psicologia, possibilitando a constituição de competências
amplitude do fenômeno psicológico em suas interfaces com profissionais e de habilidades acadêmicas descritas neste
os fenômenos biológicos e sociais; c) Reconhecimento da documento. Segundo Bastos (2002), este conceito é inovador
diversidade de perspectivas necessárias para compreensão por possibilitar a constituição de espaços de aprofundamento
do ser humano e incentivo à interlocução com campos de que complementam a formação básica e que “devem surgir
conhecimento que permitam a apreensão da complexidade da vocação da instituição ou de demandas sociais emergen-
e multideterminação do fenômeno psicológico; d) Compre- tes da realidade em que ela se insere” (p. 41).
ensão crítica dos fenômenos sociais, econômicos, culturais Neste sentido, a noção de ênfase curricular propõe
e políticos do País, fundamentais ao exercício da cidadania a superação da visão dualista de formação profissional
e da profissão; e) Atuação em diferentes contextos conside- centrada na polaridade generalista versus especialista. Esta
rando as necessidades sociais e os direitos humanos, tendo discussão teve início nos anos 1990, e encontra-se presente
em vista a promoção da qualidade de vida dos indivíduos, em Souza (1996), quando discute que uma forma de supe-
grupos, organizações e comunidades; f) Respeito à ética ração desta dualidade exigiria a construção de “princípios
nas relações com clientes e usuários, com colegas, com o norteadores de uma prática a serviço de pensarmos a exclu-
público e na produção e divulgação de pesquisas, trabalhos são, a estigmatização e a desigualdade” (p. 243), temáticas
e informações na área da Psicologia; g) Aprimoramento e consideradas como fundamentais na constituição de um
capacitação contínuos. compromisso ético e político do profissional psicólogo frente
Estes princípios e compromissos detalham as ques- aos desafios sociais.
tões apontadas por Ancona-Lopez em Parecer emitido em
2004, enfatizando que as Diretrizes Curriculares em Psicolo- A dimensão educativa na formação profissional
gia deverão contemplar uma formação ampla do psicólogo,
respeitando “a multiplicidade de suas concepções teóricas No que tange à atuação do psicólogo no campo da
e metodológicas, originadas em diferentes paradigmas e educação, as discussões iniciadas nos anos 1980 tiveram
modos distintos de compreender a ciência, assim como a excelentes resultados e muitos se articulam com as ques-
diversidade de suas práticas e contextos vários de atuação” tões postas pelas Diretrizes Curriculares, como procuramos
(Parecer CNE/CES, Ancona-Lopez, 2004). apresentar a seguir.
Mas como garantir que haja, em nível nacional, uma A Psicologia Escolar e Educacional tem suscitado
formação básica, comum aos cursos de Psicologia, em dife- inúmeras reflexões acerca da formação e da prática dos
rentes regiões e necessidades locais? Como garantir uma profissionais que nela atuam, sobretudo a necessidade de
formação que responda aos compromissos e princípios redefinição do papel do psicólogo na escola e de reestrutu-
estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais? Esta ração de sua formação acadêmica (Almeida, 1999; Balbino,
questão é resolvida no interior do Documento por meio da 1990, 2007; Checchia & Souza, 2003; Cruces & Maluf, 2007;
criação de um núcleo comum, definido como “um conjunto Del Prette, 2001, 2002; Gomes, 2002; Guzzo, 2001, 2002;
de competências básicas que se reportam a desempenhos Jobim & Souza, 1996; Joly, 2000; Maluf, 1994; Marinho-Araú-
e atuações iniciais requeridas do formando em Psicologia” jo, 2007; Martins, 1994, Meira, 2002; Novaes, 2002; Souza,
(Parecer CNE/CES, Ancona-Lopez, 2004). Estes “visam ga- 1996; Wechsler, 1996; Witter 1997, 2002; Yazlle, 1990).
rantir ao profissional o domínio de conhecimentos psicológi- Segundo Novaes (2002), “o surgimento de novos es-
cos e a capacidade de utilizá-los em diferentes contextos que paços e tempos educativos provocará, sem dúvida, mudan-
demandam a investigação, análise, avaliação, prevenção e ças não só no próprio sistema educacional e social como nas
intervenção em processos psicológicos” (Ancona Lopez, práticas profissionais do psicólogo escolar.” (p. 98). Afirma
2004). a autora que não podemos continuar vislumbrando o futuro
Portanto, segundo as Diretrizes, a formação em Psico- como uma mera continuidade do passado ou até mesmo do
logia exige que a proposta do curso articule os conhecimen- presente, pois nos encontramos diante de uma crise históri-
tos, habilidades e competências em torno dos seguintes ei- ca que “exige novas soluções para novos problemas”. Neste
xos estruturantes: fundamentos epistemológicos e históricos; sentido, afirma que “o psicólogo escolar terá que procurar
fundamentos teórico-metodológicos; procedimentos para a caminhos outros para ajudar a construir esse novo século
investigação científica e a prática profissional; fenômenos que já está em nossas portas.” (p.101).
e processos psicológicos; interfaces com campos afins do Para Gomes (2002), a Psicologia Escolar também
conhecimento e práticas profissionais, estas voltadas para precisa acompanhar a realidade atual: “Considerando que a
assegurar um núcleo básico de competências que permitam sala de aula reflete a sociedade, é urgente que a Psicologia
a atuação profissional e inserção do graduado em diferentes Escolar transforme cada vez mais o foco de interesse” (p. 50);
contextos institucionais e sociais, de forma articulada com para isto, “será necessário repensar a Universidade que, por
profissionais de áreas afins. um lado, desenvolve pesquisas e aprimora os conhecimen-
tos na área e, por outro, não prepara profissionais capazes
Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 109
de enfrentar o desafio de promover Educação e Saúde no Com relação à fase documental, os procedimentos
ambiente escolar.” (p. 71). metodológicos adotados foram: levantamento da literatura
Checchia e Souza (2003) consideram ainda que a produzida na área da Psicologia Escolar e Educacional, que
formação profissional deva, nesta área, favorecer “a realiza- redefine a formação/atuação do psicólogo no campo educa-
ção de uma prática de atendimento psicológico que busque cional em uma perspectiva multiprofissional, educativa, em
a ruptura do fracasso escolar, (...) considerando a complexi- consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para os
dade das práticas envolvidas na vida escolar” (p. 125). Para Cursos de Graduação em Psicologia; levantamento e análise
as autoras, a Psicologia no campo da dimensão educativa do de documentos oficiais do curso de Psicologia pesquisado.
trabalho do psicólogo tem construído os elementos constituti- Os procedimentos metodológicos no estudo empírico
vos para uma atuação e uma formação em uma perspectiva foram: elaboração e validação dos instrumentos de coleta
crítica. Analisam que tal construção baseia-se no tripé: a) de dados (questionário padronizado e entrevistas gravadas);
compromisso da Psicologia com a luta por uma escola de- levantamento e análise do discurso do coordenador de curso
mocrática e com qualidade social; b) ruptura epistemológica e professores de Psicologia da IES estudada, que ministram
relativa à visão adaptacionista de Psicologia; e c) construção disciplinas e estágios curriculares vinculados à ênfase em
de uma práxis psicológica frente à queixa escolar (p. 126). “processos educativos e à atuação do psicólogo no campo
Mas como aproximar as questões postas na área da da educação”; levantamento e análise do discurso de alunos
Psicologia Escolar e Educacional e os desafios das Diretri- do 4º e 5° anos de Psicologia desta IES quanto aos elemen-
zes Curriculares em Psicologia? Marinho-Araújo (2007) tenta tos que compõem o pensamento e a prática docente univer-
fazer esse exercício de análise e de aproximação entre as sitária no que se refere à atuação do psicólogo no campo
discussões instaladas na área e os desafios das Diretrizes da educação, bem como a análise estatística (estatística
Curriculares. Um primeiro aspecto destacado pela autora é descritiva) dos dados quantitativos encontrados.
a necessidade de clareza em relação ao perfil profissional Na análise e tratamento dos dados coletados adota-
esperado do egresso do Curso de Psicologia. Ou seja, que mos os procedimentos interpretativos da informação textual
psicólogo desejamos formar? Segundo a autora, a implanta- (Bardin, 2000) e posterior aplicação da estratégia de triangu-
ção das Diretrizes requer “a construção de um perfil crítico e lação (Denzin, citado por Silverman, 2009).
comprometido com a transformação das condições sociais e
de trabalho que permeiam o contexto escolar e educacional”
(p. 20), porém destaca que este perfil deve articular-se “cole- Resultados e discussão
tivamente e defendendo a utilidade das intervenções, como
suporte ao reconhecimento social da profissão” (Marinho- Os resultados apresentados neste estudo contem-
Araújo, 2007, p. 20). plam informações decorrentes da coleta de dados nas fases
Portanto, quando articulamos o perfil indicado com as documental e empírica da pesquisa. Eles estão distribuídos
questões postas pela área, conforme analisa a autora, estare- em quadros/matrizes descritivos, além da ilustração com
mos nos comprometendo com uma formação que se encontra gráficos e relacionam-se, em sua grande maioria, com os
articulada a concepções que estarão na direção da busca discursos produzidos pelo questionário aplicado aos alunos,
pela cultura de sucesso escolar, por novas concepções sobre bem como pelas entrevistas com docentes e coordenador do
o desenvolvimento humano, na direção da complexidade de curso de Psicologia da IES estudada.
sua definição, substituindo paradigmas como o da doença e
do tratamento pelo da saúde psicológica e da construção de Formação de psicólogos em Rondônia
estratégias que visem à promoção e ao bem estar humanos.
É no interior desse quadro conceitual que a presente pesqui- O curso de Psicologia no Estado de Rondônia teve o
sa se insere buscando compreender a apropriação possível, seu início em 1988, com a Licenciatura em Psicologia pela
presente no campo da formação em Psicologia, no que tange Universidade Federal de Rondônia – UNIR e, somente em
a sua dimensão educativa, tal como posto nas Diretrizes Cur- 1991, é criada a habilitação em Formação do psicólogo, na-
riculares Nacionais do MEC para a área. quela mesma IFES. Atualmente, o curso já formou aproxima-
damente 300 psicólogos nestes quase 30 anos de existência,
Metodologia da pesquisa contando com um corpo docente qualificado e, recentemente,
teve o curso de mestrado em Psicologia criado e recomenda-
Este estudo assume uma abordagem qualitativa, do do pela CAPES (2009). Na sequência, vamos traçar um perfil
tipo estudo de caso (Lüdke & André, 1986; Stake, 2000) e da expansão desta formação em Rondônia, dando destaque
compreende duas grandes fases na obtenção dos dados: à formação de psicólogos na UNIR.
documental e empírica, partindo do pressuposto que a re-
alidade social é subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, múl- Expansão dos cursos de Psicologia em Rondônia.
tipla, dinâmica, resultado de uma construção dos sujeitos
participantes, mediante a interação com outros membros da Tomando por base o Censo da Educação Superior
sociedade. de 2004, o mesmo registrou 2.013 instituições de educação
superior (IES) no país, sendo que 118 delas (5,8%) estão
110 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
Quadro 1. Perfil da expansão dos cursos de Psicologia em Rondônia.
localizadas na região Norte e o Estado de Rondônia possui expansão no Estado de Rondônia efetiva-se a partir de 1997,
22 IES, ou seja, 18,6% das instituições desta região, sendo quando há uma ampliação de 07 para 21 IES privadas, per-
apenas uma pública (4,5%) e as restantes privadas (95,5%) manecendo apenas uma IFES até o ano de 2006, quando foi
(INEP, 2006). Cabe destacar que existe uma única IES com criada a Escola Agrotécnica Federal de Colorado do Oeste
organização acadêmica de universidade, qual seja, a Uni- (EAFCO), que, atualmente, transformou-se em Instituto Tec-
versidade Federal de Rondônia - UNIR, fundada em 1982, nológico. Apesar da Universidade Federal de Rondônia ser a
juntamente com a criação do Estado de Rondônia. Quanto única universidade pública em Rondônia, ela é a responsável
às outras IES, 17 são particulares com fins lucrativos e 04 por aproximadamente 40% do número de cursos de gradu-
são Comunitárias, Filantrópicas e/ou Confessionais (INEP, ação oferecidos em todo o Estado. Quanto ao oferecimento
2006). do curso de Psicologia, sua expansão pode ser constatada
O processo de expansão pode ser observado a partir no Quadro 1.
da aprovação da LDB (1996), quando houve uma ampliação Com base na leitura deste quadro, do ponto de vista
de 118,3% no número de IES no país e mais que o dobro da expansão do Ensino Superior em Rondônia, constatamos
na região Norte (247%), sendo que em Rondônia o aumento que o número de cursos de Psicologia passou de um para
foi de 175%, maior que o apresentado nacionalmente. Esta seis num curto espaço de tempo, ou seja, no período de 2004
Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 111
a 2007 houve um aumento de 600% no oferecimento da for- a saber: Cacoal, Vilhena, Ji-Paraná, Rolim de Moura, Arique-
mação neste Estado. Já com relação à habilitação, os novos mes e Guajará-Mirim. O curso conta com uma matriz curricular
cursos priorizam a formação do psicólogo e apenas um deles vigente desde 1996; entretanto seu projeto pedagógico vem
oferece a formação de professor em Psicologia, conforme passando por modificações, discussões e avaliação desde o
a nova orientação das diretrizes curriculares nacionais. Em ano de 2005, quando foi designada uma Comissão para fazer
nível nacional, os dados de 200710 revelam que havia no país sua reformulação, em decorrência da aprovação das Novas
356 cursos de psicologia, sendo 56 em IES públicas e 300 Diretrizes Curriculares Nacionais do MEC (2004).
particulares, e a maior concentração deles está localizada na Produto do trabalho desta Comissão, o documento
região Sudeste, totalizando 165 cursos. que está disponível no site da universidade demonstra que
No tocante às ênfases curriculares, o quadro acima há uma disposição em oferecer uma formação mais voltada
revela uma prevalência no âmbito da saúde em 100% dos para a dimensão social e para o desenvolvimento científico
cursos, com destaque para a saúde mental, priorizando da área, conforme ilustram os fragmentos a seguir: “O pre-
modelos de atuação centrados na prevenção e na promo- sente projeto propõe um curso de Formação de Psicólogo
ção. Entretanto, é importante ressaltar que a Educação se que espelha o compromisso com o desenvolvimento social e
faz presente em 83% dos cursos, articulada principalmente da ciência, [...] com a responsabilidade de educar cidadãos
com desenvolvimento humano, sendo que um deles perma- para uma sociedade em mudança e, sobremaneira, esteja
nece com a perspectiva tradicional da nomenclatura de área sensível às demandas sociais”. Além disso, “Um curso ca-
(Psicologia Escolar). Constatamos também que apenas um paz de inovar a presença da Psicologia em Porto Velho e
curso buscou incluir a nova nomenclatura de processos edu- arredores, capaz de buscar sempre romper com doutrinas e
cativos em suas ênfases, seguindo as orientações presentes políticas de exclusão e alienação social, impondo presença
nas Diretrizes Curriculares para a área. Quanto ao número em novas áreas do fazer psicológico” (2005, s/p).
de horas destinadas à formação do psicólogo, observamos Consta também neste documento que o projeto do
que há uma homogeneidade entre os cursos, variando de curso está em processo de reformulação e aprovação nas
4.220 horas a 4.545 horas, e o turno predominante nos novos instâncias competentes da universidade, o que é confirmado
cursos é o noturno, com um oferecimento de vagas em torno nas falas dos professores entrevistados, ainda que estejam
de 100 por ano. em discordância em alguns aspectos: “Como disse, ainda
Diante do apresentado, podemos afirmar que a expan- não implantamos efetivamente a matriz [...]”. (Esta resposta
são dos cursos de Psicologia é patente no Estado de Rondô- foi dada revendo a matriz curricular proposta para o Curso
nia, no âmbito do Ensino Superior Privado, como também há de Psicologia da UNIR, que pretendemos ver implantada em
uma presença significativa da ênfase na formação do psicólo- 2010) (P1, 2009); “[...] nosso curso ainda não está seguindo
go para atuar com a dimensão educativa, o que demonstra um as orientações das Diretrizes Curriculares; no momento, uma
compromisso das IES com a educação básica no Estado. Comissão está redigindo nossa nova matriz curricular com
Bernardes (2003), em seu artigo “O debate atual base nas diretrizes e com base no que ficou decidido no Fó-
sobre a formação em Psicologia no Brasil - análise de do- rum de Discussão das Diretrizes” (P2, 2009);
cumentos de domínio público”, preocupava-se com esta
expansão no número de cursos (47%), que ocorre a partir O projeto pedagógico em vigor já contém os termos ou
de 1990, mais especificamente nos últimos cinco anos desta nomenclaturas quanto à organização curricular de núcleos
década. O autor destacava o contexto em que vivíamos na comuns e eixos estruturantes para estar adequado às Novas
época e defendia que a formação em Psicologia era central Diretrizes, porém o conteúdo ainda não. O formato, o modelo
para a pesquisa, basicamente em função de vários fatores, a é esse, mas ainda não se chegou à essência (P3, 2007).
saber: “a ausência de reformas curriculares, o psicologicismo
que marca a sociedade [...] e o processo de mercantilização Percebe-se, nos exemplos acima, que há um projeto refor-
do ensino no país, visualizado no crescente número de cur- mulado e que está disponível no site desta IFES, mas existe
sos de Psicologia abertos nas últimas décadas” (Bernardes, também um movimento interno de reelaboração do mesmo,
2003, p. 20). Mas é importante considerar a desigualdade com vistas a adequá-lo aos anseios dos vários segmentos
regional da oferta de cursos superiores, especialmente na envolvidos neste processo, como fica evidente na fala de
região norte do país, justificando a ampliação dessa modali- uma das professoras entrevistadas:
dade de ensino.
A construção da Matriz Curricular assentada nas Diretrizes
Panorama da formação em Psicologia na UNIR de 2004 teve uma linda construção. Os professores vinham
discutindo uma proposta de matriz, quando os alunos
A formação em Psicologia na Universidade Federal de propuseram um Seminário de Discussão. Os alunos se
Rondônia realiza-se no campus situado na cidade de Porto prepararam, estudaram as diretrizes e as propostas de
Velho, capital do Estado, sendo que a UNIR conta com mais matriz feita pelos professores e de outras universidades.
seis campi, localizados nas principais cidades de Rondônia, Os professores e alunos defendiam suas ideias, algumas
disciplinas foram retiradas, outras incluídas, cargas horárias
10 Dados obtidos na BVS – PSI, 2007. ampliadas ou diminuídas [...] (P1, 2009).
112 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
Quadro 2. Perfil dos alunos de Psicologia da UNIR.
RO – 55,5%
Naturalidade
Outros Estados – 44,5% AM/ GO/ MT/ MA/ RN/ PB/ SP
Não – 77,8%
Trabalho/Ocupação Brinquedista/Funcionário público
Sim – 22,2%
O exemplo relatado corrobora com Ribeiro e Silva nasceu em Rondônia, prestou pelo menos dois vestibulares,
(2007) quando afirmam que “os tópicos que geraram mais sendo que 72% ingressaram no Ensino Superior no ano de
discussões foram os que implicavam alterações estruturais 2005, ou seja, os alunos pesquisados estão cursando o pe-
ou modificações mais significativas que afetassem a organi- ríodo esperado, o que demonstra aprovação nos semestres
zação e a carga horária das disciplinas ao longo do curso e a anteriores.
carga horária total do curso.” (p.8). Buscamos conhecer também os principais motivos
que os levaram a escolher o curso de Psicologia, quais se-
Perfil dos alunos pesquisados jam: a busca pela realização pessoal e para ter acesso a um
curso universitário, ficando em terceiro plano a realização
A coletividade estudada caracteriza-se como sendo profissional. A influência de familiares e/ou amigos não apa-
os alunos do 4º ano (8º período) do curso de Psicologia da rece em destaque, ainda que seja indicado como decisivo
UNIR. A amostra está composta por 18 alunos (num total de para a escolha do curso.
22 alunos matriculados naquele período no ano de 2008).
O Quadro 2, auxilia-nos a conhecer o perfil desses Dados sobre o processo formativo
alunos, permitindo-nos afirmar que eles são, em sua maioria,
solteiros, do sexo feminino (72%), egressos da rede privada Dos 18 alunos pesquisados, 67% responderam que
de ensino e que concluíram sua escolarização básica na úl- enfrentavam dificuldades durante seu processo formativo e
tima década. Quanto ao gênero, Castro e Yamamoto (1998) destacam a falta de relacionar teoria e prática dentro do cur-
relataram os resultados das pesquisas de Ferretti (1976) e rículo. Esta constatação também se evidencia no discurso de
Lewin (1980), que encontraram, respectivamente, os percen- docentes do curso, conforme ilustrações, a seguir:
tuais de 87,1% e 86% para o predomínio das mulheres na
formação em Psicologia no país. Dados corroborados por Penso que o aspecto mais positivo e que aponta
Mello (1975) (82,9%); e pelo Conselho Federal de Psicologia desenvolvimentos nas diretrizes é o fato de aliar, desde o
(2004), que chegam a encontrar que 91% dos psicólogos projeto, a parte prática das disciplinas, não ficando mais
entrevistados eram mulheres, demonstram que a Psicologia à vontade dos professores. Mais do que isto, nos obriga a
é um curso eminentemente feminino. pensar criativamente em experiências práticas, pois ninguém
Constatamos também que a maioria deles mora com iria aguentar um curso inteiro de observação e entrevistas.
suas famílias, não trabalha e a metade utiliza o carro para ir (P1, 2009).
à universidade. Cabe também destacar que a metade deles
Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 113
1 – Relacionar teoria e prática dentro do currículo da 5 – Dominar a retórica e as técnicas da produção
formação do psicólogo científica
Figura 1. Gráfico das principais dificuldades enfrentadas pelos alunos durante sua formação em Psicologia.
Fonte: Questionário aplicado na pesquisa de campo, 2008.
A professora entrevistada reconhece as dificuldades ção, o quantitativo de docentes em função das disciplinas do
presentes nas novas diretrizes quanto à inserção da prática currículo, o que pode, de certa forma, estar relacionado com
nas disciplinas do núcleo comum, que foram anunciadas pe- o não atendimento por parte dos docentes às dificuldades
los alunos pesquisados: por eles apresentadas, resultado também destacado nesta
figura.
[...] confesso que ainda não sabemos como vamos Contudo, os alunos consideram extremamente positi-
articular isto dinamicamente na formação de nosso vo o compromisso tanto dos docentes quanto deles próprios
aluno, mas, assim como a diretriz, é nosso esforço de com a formação acadêmica, além da qualidade e da capaci-
planejar uma nova postura de formação profissional, fruto dade que os professores demonstram possuir para promover
daquilo que temos percebido como falta em nossa prática o desenvolvimento da formação profissional em Psicologia.
social. (P1, 2009). Em se tratando de competências e habilidades pro-
postas pelas novas Diretrizes Curriculares para a área - uma
Na Figura 1, estão relacionadas todas as dificuldades das principais mudanças na formação do psicólogo -, encon-
apresentadas pelos alunos e o percentual de respostas en- tramos neste estudo, ver Figura 3, que “realizar orientação,
contrado. aconselhamento psicológico e psicoterapia” foi a competên-
Na Figura 2, no âmbito das relações interpessoais, os cia adquirida mais destacada pelos alunos (61%). Também
alunos avaliam como muito deficiente (83%), na sua forma- 56% deles, ou seja, mais da metade do grupo pesquisado,
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Figura 2. Gráfico da avaliação dos alunos quanto ao âmbito das relações entre discentes e docentes no curso de Psicologia.
Fonte: Questionário aplicado na pesquisa de campo, 2008..
afirmaram saber “relacionar-se com o outro de modo a propi- específicos centram-se no eixo estruturante denominado
ciar o desenvolvimento de vínculos interpessoais requeridos Processos Psicológicos (Souza, Bastos, & Barbosa, 2009),
na sua atuação profissional”; “avaliar fenômenos humanos ao qual esta competência está relacionada.
de ordem cognitiva, comportamental e afetiva em diferentes No tocante ao nível de satisfação dos alunos quanto
contextos” e “analisar o contexto em que atua profissional- aos âmbitos estrutural, operativo e curricular da formação em
mente em suas dimensões institucional e organizacional, Psicologia nesta IFES, a Fgura 4 apresenta os aspectos que
explicitando a dinâmica das interações entre os seus agen- foram por eles avaliados positiva e negativamente.
tes sociais”, levando-nos a inferir que há uma forte tendência Merece destaque, nesta figura, a avaliação extrema-
da formação em uma abordagem clínica e organizacional. mente positiva que os alunos fazem em relação ao âmbito
Contudo, há competências e habilidades que são apontadas curricular quanto: à adequação das disciplinas oferecidas
como insuficientes nesta formação, com destaque para “sa- em relação às competências necessárias para a formação
ber buscar e usar o conhecimento científico necessário à atu- profissional e à contribuição das disciplinas para a forma-
ação profissional, assim como gerar conhecimento a partir ção do psicólogo para atuar com os processos educativos,
da prática profissional” (33%). O que só vem corroborar com chegando a um nível de satisfação em torno de 90%. Este
a principal dificuldade apresentada anteriormente. dado demonstra que, apesar do curso estar em processo de
Brasileiro e Albuquerque (2008), estudando o curso reestruturação para atender às orientações das novas dire-
de licenciatura em psicologia, no período de 2005 a 2006, trizes, o currículo consegue satisfazer as necessidades de
nesta mesma instituição e com a participação de alguns alu- formação dos alunos.
nos da atual pesquisa, encontraram resultados semelhantes Quanto ao âmbito operacional, podemos observar
quanto à competência avaliar fenômenos humanos de ordem que três indicadores aparecem com um nível mediano de
cognitiva, comportamental e afetiva em diferentes contextos, satisfação: as condições oferecidas para a integração teoria
também destacada neste estudo de 2008. Este fato reitera prática, para a realização das atividades práticas e a ade-
dados obtidos no último Exame Nacional do Desempenho quação do acervo bibliográfico da UNIR às necessidades do
do Estudante (ENADE, 2006), que afirmam que os melho- curso de Psicologia. É importante considerar que dois destes
res resultados obtidos pelos alunos quanto aos conteúdos estão relacionados a uma das dificuldades a ser solucionada
Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 115
Figura 3. Gráfico das competências e habilidades gerais desenvolvidas pelos alunos durante sua formação
em Psicologia.
Fonte: Questionário aplicado na pesquisa de campo, 2008.
116 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
Figura 4. Gráfico do nível de satisfação dos alunos em relação aos âmbitos estrutural, operativo
e curricular da formação em Psicologia.
Fonte: Questionário aplicado na pesquisa de campo, 2008.
mente para relacionar teoria e prática dentro do currículo da Consideramos que pesquisar questões desta nature-
formação de psicólogo; dizem estar mais preparados para za, embora não esgote a questão, colabora na importante
realizar orientação, aconselhamento psicológico e psicote- tarefa de avaliação e de indicação de caminhos que venham
rapia, assim como avaliar fenômenos humanos de ordem a ser trilhados por aqueles que formam psicólogos em âmbi-
cognitiva, comportamental e afetiva, em diferentes contextos; to nacional e este estudo vem se somar a esta iniciativa de
porém sentem-se inseguros para atuar profissionalmente demais pesquisadores brasileiros.
em diferentes níveis de ação, de caráter preventivo ou te-
rapêutico, considerando as características das situações e
dos problemas específicos com os quais se deparam. O que Referências
nos leva a considerar a natureza dos estágios e das práticas
veiculadas, podendo indicar uma tendência a modalidades Almeida, M. J. (1999). Educação Médica e Saúde: Possibilidades de
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considerarem os docentes compromissados e aptos para re- html.
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Psicologia, diretrizes curriculares e processos educativos na Amazônia: um estudo... * Tânia Suely A. Brasileiro & Marilene Proença Rebello de Souza 119
Recebido em: 24/09/2009
Reformulado em: 25/05/2010
Aprovado em: 26/05/2010
Sobre as autoras
Correspondência
Marilene Proença Rebello de Souza
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar - LIEPPE
Av. Prof. Mello Moraes 1721 Sala 19 Bolco G
CEP 05508-030 Cidade Universitária - São Paulo - SP
Agradecimento
Ao CNPq pelo apoio com Bolsa de Pós-Doutorado Júnior.
A Alex Moreira do Carmo.
120 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 105-120.
Elaboração de projetos político-pedagógicos:
reflexões acerca da atuação do psicólogo na escola
Aline Wanderer
Regina Lucia Sucupira Pedroza
Resumo
Este trabalho discute a atuação do psicólogo escolar no incentivo à elaboração do Projeto-Político-Pedagógico pela comunidade escolar. Aborda
temas como política, relações de dominação/hierarquização escolares, formação/atuação do psicólogo escolar e exercício da autonomia. Abdicando
da autoridade de especialista servindo à normatização, o psicólogo pode questionar relações de hierarquização escolares, bem como sensibilizar
quanto à ideia de que a identidade da escola é historicamente construída e sua realidade é modificável pela ação coletiva da comunidade. Atuou-
se numa escola pública de Ensino Fundamental, séries iniciais, de Brasília-DF, utilizando a observação participante em reuniões semanais com
a equipe pedagógica e pensando-se a postura do psicólogo como mediador. O Projeto-Político-Pedagógico é importante mecanismo de trabalho
coletivo, permitindo a constituição da identidade da escola, de posicionamentos políticos e diretrizes de trabalho coerentes com cada realidade.
Enfatizou-se a consolidação de um processo de reconhecimento da possibilidade de autonomia na construção do Projeto-Político-Pedagógico
pela equipe pedagógica.
Palavras-chave: Psicologia escolar, projeto político pedagógico, atuação do psicólogo.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 121-129. 121
Introdução dominação e anúncios de projetos concretos e viáveis de
ação apoiados em um corpo teórico e em um projeto polí-
O presente trabalho discute a possibilidade de atuação tico. Permite concretizar sonhos possíveis coletivos, tendo
do psicólogo escolar no incentivo e colaboração à elaboração discernimento suficiente para integrar eticamente os sonhos
do Projeto Político Pedagógico (PPP) pela Comunidade es- individuais em um único compromisso ético-social.
colar, a partir de uma pesquisa participante. Para tal, reflete É com essa formação que o psicólogo poderá ter con-
acerca de questões como política, relações de dominação e dições de se conscientizar e exercer seu papel político na es-
hierarquização escolares, formação e atuação do psicólogo cola, questionando as posições de autoridade nas relações
escolar e exercício da autonomia. exercidas nesse contexto. Com isso, promoveria reflexões
Com base nas ideias propostas por Bobbio, Matteucci junto à comunidade a fim de conscientizá-la sobre como as
e Pasquino (1992), observa-se que o conceito de política pessoas participam da lógica de manutenção da opressão,
pode trazer em si uma relação de força, em que um grupo contrária à democratização, por meio de disposições psíqui-
assume a responsabilidade pelos interesses de uma coleti- cas profundas e determinadas por forças invisíveis e pode-
vidade, sendo que esta, por sua vez, abdica da exigência rosas que intentam manter o status quo (Patto, 2005). Ao re-
desses interesses por sua própria força, delegando-a ao conhecer a importância da história da escola na constituição
grupo dominante. de sua identidade, o psicólogo contribui para se pensar que,
Com relação à atuação do psicólogo, tal força mani- da mesma forma que a realidade é construída, ela pode ser
festa-se, pretensamente, na autoridade do especialista, que modificada pela ação coletiva da comunidade escolar.
diagnostica e trata, possui um conhecimento “neutramente” Com base em tais reflexões e lembrando as coloca-
produzido e pode servir-se dele para “ajudar” os indivíduos a ções de Fresquet e Kohan (2005) de que a educação con-
se ajustarem ao sistema normatizador. A partir das concep- temporânea está impregnada de conceitos esvaziados de
ções de Chauí (1994), Patto (2005) e Freire (2001), surge sentido, já que são utilizados de forma indiscriminada, aca-
a seguinte reflexão: até que ponto a ação do psicólogo não bando por querer dizer tudo e, por isso mesmo, não podendo
vem, constantemente, servindo e fortalecendo as ideologias dizer nada, este trabalho visa discutir as implicações de uma
capitalistas e burguesas da contemporaneidade? A ideologia, experiência de incentivo à elaboração do PPP, com foco em
segundo Chauí (1994), é ideário histórico, social e político processos de colaboração e construção conjunta. Os PPPs,
que oculta a realidade como forma de assegurar e manter a anunciados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
desigualdade social, bem como as relações de dominação Nacional (LDB - lei n° 9394/1996) como obrigatórios nas
econômica e política. Esse ocultamento ocorre quando as escolas do país, ainda suscitam dificuldades de elaboração,
ideias passam a ser consideradas como explicações e justifi- sendo importante a produção de discussões que esclareçam
cações da realidade, e não como frutos do contexto histórico, e reflitam acerca do sentido de sua existência.
político e social do qual surgem. É consequência da assimi-
lação da ideologia que ela passe a se introjetar nas diversas O Projeto político-pedagógico como instrumento
instituições que compõem a sociedade, inclusive na escola. de clarificação da ação educativa
A educação, considerada como uma das mais importantes
portas de entrada dos indivíduos nos valores sociais predo- A LDB, conforme Marçal (2001), trata da necessidade
minantes em dado momento histórico, é um dos principais de elaboração de projetos pedagógicos segundo três eixos:
instrumentos para a legitimação e perpetuação das ideolo- flexibilidade – autonomia das escolas para realizarem seu
gias que justificam relações de poder e exploração. próprio trabalho pedagógico; avaliação; e liberdade – plura-
Nesse sentido, é interessante observar o quanto a lismo de ideias e de concepções pedagógicas, bem como
formação do psicólogo carrega em si a difusão das lacunas gestão democrática do ensino público. A lei, ao prever a
legitimadoras da ideologia, tornando-o profissional que atua participação dos profissionais da educação na elaboração da
a serviço da normalização e do que Chauí (1994) denomina proposta pedagógica e da comunidade escolar e local em
de ideologia da competência. Isso porque sua formação ain- conselhos escolares ou equivalentes, demonstra ênfase na
da vem profundamente impregnada das noções da Ciência proposta de gestão democrática do ensino.
Positivista, que teoricamente produz um conhecimento que O projeto pedagógico é um elemento norteador da
retrata uma realidade pronta, estática e a-histórica. Assim, organização do trabalho escolar. No entanto, não é apenas
a partir de uma formação que mais parece um treinamento um conjunto de planos e projetos de professores, nem um
ou informação, surgem profissionais reprodutores de conhe- documento que trata das diretrizes pedagógicas da insti-
cimentos que, por meio deles, julgam-se capazes de compre- tuição educativa; mas um produto específico que reflete a
ender e manipular o real, ajustando os indivíduos ao que é realidade da escola, situada em um contexto mais amplo que
aceito como “normal”, “esperado”, “correto”. a influencia e é por ela influenciado. Trata-se, portanto, de
Para a superação de tal modelo, seria necessária a um instrumento que permite clarificar a ação educativa da
formação de indivíduos crítica e politicamente conscientes, instituição educacional em sua totalidade, necessitando, por
capazes de se engajar no movimento de denúncia e anúncio isso, da participação de todos os segmentos envolvidos no
proposto por Freire (2001). Esse movimento caracteriza- processo educacional (Brandão, 2003). Observa-se que as
se por denúncias das realidades sociais de exploração e escolas que alegam possuí-los, em muitos casos, possuem
122 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 121-129.
apenas projetos pedagógicos, pretensamente desprovidos É possível hipotetizar que a dificuldade encontrada
de uma origem política. Freire (1992) lembra que a prática pelas escolas para a produção dos PPPs relacione-se à
educativa não é imparcial, envolvendo uma escolha que de- alienação da vida cotidiana. Essa não permite aos indivíduos
monstra posturas políticas. Reconhecer tais escolhas faz que retirarem-se por alguns momentos dos sistemas em que es-
a escola não esteja a serviço da manutenção do status quo. tão profundamente imersos para lançarem sobre eles olha-
Um PPP, assim como pressupõe qualquer projeto, res críticos, visualizando-se como atores e transformadores
traz em si a ideia de rupturas com o presente e promessas a partir de posicionamentos políticos, característicos da
de mudança para o futuro, mudança que passa por um perí- atividade humano-genérica. Isso leva a questionar que tipo
odo de instabilidade. Veiga (2003) diferencia dois gêneros de de proposição seria possível para modificar essa situação.
inovações que afetam os PPPs: regulatória e emancipatória. Como poderia o psicólogo ingressar no ambiente escolar
A primeira tem suas bases epistemológicas no caráter regu- para contribuir junto ao grupo composto por sua comunidade
lador normativo da ciência tradicional. O PPP volta-se para no sentido de lhe permitir a tomada de consciência de suas
a burocratização da instituição educativa, tornando-a mera possibilidades de elevação acima da vida cotidiana?
cumpridora de normas técnicas e mecanismos regulatórios.
A segunda pressupõe uma ruptura que predisponha os indi- Mediação e retomada da atividade revolucionária
víduos e as instituições para a indagação e a emancipação. individual
Concentra-se no processo de construção, é a afirmação da
individualidade e da particularidade da instituição educativa. Diversos debates têm abordado qual deve ser a
Apesar de a LDB ter sido conformada num cenário postura do psicólogo ao entrar na realidade escolar. Patto
de efervescência política, de processo de redemocratização (1987) analisa historicamente tal postura e esclarece que
da sociedade e do aparato estatal, essa não explicita que a primeira função desempenhada por esse profissional foi
dispositivos serão utilizados para a efetiva transformação da a mensuração das habilidades e classificação das crianças
estrutura educacional. A autonomia pressuposta pela estru- quanto à capacidade de aprender e progredir nos estudos.
tura da LDB não deve ser confundida com descaso político Posteriormente, passa a existir uma orientação basicamente
nem com descompromisso do poder público, dando margem clínica, no sentido de se obterem diagnósticos e tratamentos
ao Estado de se eximir de suas obrigações, transferindo-as de distúrbios. É possível observar, assim, que “o centro das
para a esfera privada e para a comunidade (Brandão, 2003). explicações e das práticas psicológicas frente à queixa es-
Diante da garantia estabelecida pela LDB de partici- colar é marcado pela visão clínica” (Souza, 1997, p. 146). A
pação dos profissionais de educação na elaboração desse clínica na escola, como citada pelas autoras, é exercida pelo
plano pedagógico, o psicólogo apresenta-se como figura modo como o psicólogo vem desenvolvendo suas atividades,
importante nessa tarefa, ao possibilitar, por exemplo, co- pautado na individualidade do aluno e na queixa do professor
nhecimentos sobre desenvolvimento humano que auxiliam frente à falta de condições de trabalho e às deficiências e
no processo de entendimento das pessoas que compõem a dificuldades de aprendizagem das crianças. Souza (1997)
escola e, conseqüentemente, na adequação do projeto peda- aponta necessidades de mudança na atuação do psicólogo,
gógico a esse público. ressaltando, no entanto, a importância de sua presença den-
tro do contexto escolar, intervindo junto aos professores, aos
Buscando possibilidades de transformação: a alunos e suas famílias. Pedroza (2003) lembra que a pre-
elevação acima da vida cotidiana sença desse profissional no interior da escola pode contribuir
para a criação de espaços de escuta, de diálogo e reflexão,
É importante buscar as raízes que explicam o surgi- auxiliando na construção de uma escola democrática.
mento do abismo entre a possibilidade de transformação da Levando-se em conta essas considerações, entende-
realidade escolar brasileira e a efetiva concretização desse se que, para que o psicólogo possa atuar de forma politica-
processo. Um possível caminho é apontado por Heller (1989), mente consciente junto a comunidades escolares que, possi-
quando analisa a estrutura da vida cotidiana e os processos velmente, encontram-se em processos de alienação da vida
de alienação na cotidianidade. cotidiana, não pode posicionar-se à distância ou externamen-
A presença da cotidianidade desde o início da vida te a elas. Parece lógico, ao contrário, que, inicialmente, deve
humana, com a contribuição dos processos de manipulação colocar-se em relação próxima com essas cotidianidades, o
e alienação social, pode fazer com que a convivência entre que lhe permitirá compreender os movimentos próprios a sua
particularidade e generalidade se dê de forma muda e in- dinâmica. Isso significa que não estabelecerá uma relação
consciente. Consequência disso seria impossibilitar, aos indi- afastada da realidade escolar, mas interna a ela.
víduos, a consciência de que lhes é possível elevar-se acima Newman e Holzman (2002) oferecem interessante
da prática cotidiana através de suas escolhas particulares, proposta de atuação com grupos, apoiando-se na produção
marcadas pelos juízos morais individuais, e por sua atividade de Vygotsky e relacionando-a com as proposições do mate-
humano-genérica, que lhes dá o caráter de transformadores rialismo dialético de Marx. Essa relação é estabelecida na
da realidade social, gerando consequências que influenciam medida em que Vygotsky considera a atividade revolucionária
a própria cotidianidade (Heller, 1989). como primeira e básica para o desenvolvimento do ser huma-
no, atividade através da qual constrói a história por meio de
Elaboração de projetos político-pedagógicos: reflexões acerca da atuação do psicólogo na escola * Aline Wanderer & Regina Lucia Sucupira Pedroza 123
uma totalidade dialética que envolve linguagem, pensamento pedagógico1. A intervenção foi conduzida por uma das au-
e desenvolvimento. Os autores propõem uma intervenção toras, na qualidade de estágio acadêmico supervisionado
que visa criar, em tempos reacionários de alienação social, pela outra. A escola escolhida já havia participado de outras
zonas de desenvolvimento proximal emocionais. Defendem iniciativas junto à Universidade, tendo manifestado o interes-
também que se deve tratar o que é dito não através da di- se em discutir a formulação do PPP. Realizaram-se reuniões
visão entre interno e externo, mas como manifestação da semanais, no período vespertino, com a equipe pedagógica,
movimentação do indivíduo entre o privado e o social. membros da coordenação e direção da escola com duração
Em muitos casos, a pré-definição social e imobi- variando entre uma e três horas. O horário dos encontros
lizadora do sentir pode ser geradora de conflitos, por não coincidia com aquele reservado às reuniões pedagógicas
abarcar o privado, que acaba por não ser significado de for- semanais dos professores, dirigidas pela coordenadora.
mas únicas, características do desenvolvimento individual. Foi feito o convite para participação de uma funcionária do
Os conflitos não resolvidos, não dialogados e não media- corpo administrativo, mas esse somente foi aceito em uma
dos geram, conseguintemente, imobilismo dos indivíduos, ocasião. Utilizou-se a observação participante, objetivando-
impossibilitando-os de aprender o que é serem aprendizes se a mediação e a facilitação do debate. As intervenções
e, assim, retirando-os de sua atividade revolucionária, isto é, apoiaram-se na concepção de que o psicólogo deve atuar de
da consciência de serem produtores de história e passarem forma crítica e politicamente consciente. Essa postura impli-
a ser construtores de mudanças. ca um cuidado para que seu trabalho não reflita e perpetue
É possível, dessa forma, refletir sobre a possibilidade as ideologias de hierarquização e dominação presentes na
de que o psicólogo, na escola, atue com a comunidade esco- figura do especialista que possui conhecimento neutramente
lar na posição de mediador, em parceria com equipe gestora produzido, podendo utilizá-lo para o diagnóstico e tratamento
e demais educadores. Esse acolheria os conflitos surgidos dos indivíduos e das instituições para seu ajustamento ao
no grupo, auxiliando a significá-los, permitindo construir com sistema normatizador.
o outro, e não por ele, formas únicas de internalização da Procurou-se trabalhar com os conteúdos trazidos pela
emocionalidade, produzindo, assim, o desenvolvimento con- equipe pedagógica, ressaltando que esses se inscrevem em
duzido pela aprendizagem. Estabelecer-se-ia a relação entre um longo processo histórico de construção das identidades
social e privado que é promotora do desenvolvimento através individuais e da própria escola. Esse processo é marcado por
da mediação do outro, bem como a explicitação da relação relações de autoridade e por forças de interesses políticos
entre a particularidade e a produção humano-genérica, de manutenção do status quo com que todos contribuem
reduzindo-se a alienação da vida cotidiana. Indivíduos emo- de variadas maneiras. Demonstrando que a realidade e a
cionalmente desenvolvidos estariam novamente habilitados identidade escolar são historicamente construídas por todos,
ao engajamento na atividade revolucionária, na produção buscou-se ainda despertar a ideia de que a realidade cons-
de História, na ação autônoma e criativa. Esse engajamento truída pode também ser modificada pela atuação coletiva.
faz-se necessário à elaboração do PPP, que pressupõe o re- Após cada reunião, as observações suscitadas eram
conhecimento da identidade escolar construída socialmente registradas, sendo posteriormente discutidas e analisadas
e passível de transformação. pelas autoras. Esse processo auxiliou a constituir subsídios
Considerando tais reflexões, o presente trabalho para as decisões relativas ao andamento do trabalho, esta-
discute uma experiência de colaboração e incentivo à ela- belecendo-se um processo de contínua reflexão acerca da
boração do PPP em uma escola pública para séries iniciais dinâmica do grupo de discussão.
do Ensino Fundamental de Brasília – DF. A proposta surgiu No primeiro contato com a equipe pedagógica, foram
a partir da compreensão da necessidade de iniciativas que apresentados os objetivos do projeto de incentivo à elabora-
buscassem compatibilizar a abstração da previsão legal com ção do PPP como um todo, quais sejam: discutir a importân-
a realidade escolar, em que nem sempre existe a possibili- cia da elaboração do PPP com os profissionais da educação
dade de exercício da autonomia. Além disso, abre-se espa- e com a comunidade escolar; incentivar a análise da realida-
ço para a discussão referente às posturas que o psicólogo de da escola, a fim de estabelecer sua identidade; fomentar
deve adotar no contexto escolar, fugindo de intervenções a elaboração de metas para escola, bem como sua função
autoritárias baseadas no poder de especialista a serviço da e finalidade; auxiliar na elaboração do PPP, considerando a
normalização. Propõe, ao contrário, que esse profissional identidade da escola e contendo os meios necessários ao
possa imergir na cotidianidade dos indivíduos com os quais alcance das metas propostas; planejar com a escola um
se relaciona, servindo-lhes de mediador, impulsionando-lhes cronograma de implantação do PPP; acompanhar periodi-
o desenvolvimento e levando-os a refletir acerca de seus pa- camente a inserção do PPP na prática cotidiana da escola;
péis como agentes históricos. rever com a escola a adequação do PPP às novas realidades
que venham a surgir ao longo do tempo. Mediante essa apre-
Método sentação inicial, buscou-se fornecer, à equipe pedagógica,
O presente trabalho foi desenvolvido junto a uma 1 Na atuação junto à escola, além das autoras, participou ainda
Escola Pública para séries iniciais de Brasília – DF, tendo, um estagiário, que atuou em alguns encontros com a equipe
por foco principal, a atuação do psicólogo junto a seu corpo pedagógica.
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a compreensão do alcance da proposta de trabalho trazida. da angústia provocada por elas), surgiam relatos de expe-
Contudo, a ênfase não foi dada à consecução dos objetivos riências vividas pelos profissionais em outros contextos de
em si mesma, mas à consolidação de um processo que per- trabalho ou mesmo na própria escola, que auxiliavam a deli-
mitisse o reconhecimento da possibilidade de autonomia na near caminhos para responder às dificuldades apresentadas.
construção do PPP pela comunidade escolar. Assim é que, diante da exposição dos motivos pelos quais
o PPP ainda não havia sido constituído, surgiu um relato de
uma das professoras sobre como este havia sido elaborado
Resultados e discussões em uma outra escola onde havia trabalhado. O relato infun-
diu na equipe a percepção de que não se tratava de ação
Desconstrução da autoridade do psicólogo e impossível e a primeira contribuição obtida foi a de que, para
exploração do conceito e do processo de elaboração que todos participem do movimento de elaboração do PPP,
do Projeto político-pedagógico não se faz necessário que estejam presentes em todas as
reuniões de discussão. Bastaria que houvesse um constante
O primeiro contato com a equipe pedagógica revelou movimento de circulação de informações e um acordo de que
uma expectativa de que fosse trazida uma proposta pronta todos poderiam ter espaço para se pronunciar em qualquer
de PPP que apenas seria adaptada à escola. Essa expectati- momento do processo. Assim, ao não condicionar a elabo-
va suscitou a percepção de que a figura do psicólogo escolar ração do PPP à presença de toda equipe pedagógica, uma
estava investida de um caráter de autoridade, bem como de primeira amarra que impedia o trabalho pôde ser relativizada.
que a equipe pedagógica colocava-se em posição de recep- A primeira prática a ser proposta foi a adoção de uma caixa
tora de conhecimentos. Procurando afastar tal percepção, de sugestões, que ficaria à disposição de quem a quisesse
discutiu-se acerca do que aqueles profissionais entendiam utilizar quando não pudesse estar presente nos trabalhos de
por definição de PPP e como estavam os debates a esse discussão. Em encontro posterior, surgiu, de uma das profes-
respeito na Instituição. Ao final do encontro, foram colocados soras, a ideia de que cada uma das pessoas presentes se
os objetivos gerais do trabalho que originou a proposta de comprometesse a “adotar uma colega” para o relato do que
intervenção, demonstrando-se, com essa postura, que nada havia sido discutido. Interessante observar que essa segun-
pronto seria apresentado. da ideia, partindo da própria equipe, surtiu maiores efeitos do
Observou-se que as representações das profissionais que a primeira, que havia sido proposta pelas psicólogas.
acerca do PPP são bem próximas àquelas encontradas na li- Ainda a partir das primeiras dificuldades apontadas,
teratura. Esse foi descrito como demonstrativo da identidade dois eixos temáticos importantes surgiram e foram foco do
da escola e percebido como de suma importância, por permitir trabalho posterior durante a maioria dos encontros. O pri-
que cada profissional pudesse se identificar individualmente meiro referia-se à necessidade de um resgate histórico da
com o trabalho institucional, bem como caracterizá-lo diante escola (já com 30 anos de funcionamento), o que permitiria
do público externo à escola. A definição foi reforçada na me- o delineamento de sua identidade, passo essencial na for-
diação do debate, apontando-se o contexto de surgimento mulação do PPP. Essa necessidade foi detectada nas falas
do PPP na LDB, envolvendo-o em três eixos: flexibilidade; de que parecia que o PPP precisava ser retirado do vazio.
necessidade de avaliação constante; e liberdade, pluralismo O segundo dizia respeito ao anseio dos profissionais por
de ideias e concepções pedagógicas. conhecimento mais abrangente acerca da clientela atendida
Demonstrando que a proposta de trabalho constituía- pela escola. As psicólogas apontaram, ainda, que a discus-
se primordialmente em uma abertura de espaço para a escu- são acerca do PPP, idealmente, deve envolver toda a comu-
ta da escola, propôs-se o início das discussões, pedindo-se nidade escolar (equipe pedagógica, pais, alunos, servidores
que a equipe pedagógica relatasse como os debates acerca e demais interessados). Assim, as sugestões que passariam
do PPP estavam ocorrendo na Instituição. A equipe apontou a ser levantadas a partir desse primeiro encontro envolve-
uma série de dificuldades tencionando justificar a inexis- riam o levantamento histórico acerca da escola, formas de
tência do PPP até aquele momento. As principais questões conhecer e responder às questões referentes à clientela e
apontadas foram: a rotina corrida da escola, abrangendo às formas de incluir a comunidade escolar como um todo na
assuntos de maior prioridade; o fato de o quorum presente discussão acerca do PPP.
nas reuniões acerca do tópico raramente contar com todos
os profissionais; a percepção de que parecia que o PPP es- Questões acerca da clientela: espaço de escuta e
taria sendo retirado do vazio, isto é, não haveria bases para elaboração
sua constituição; e a percepção de que não havia, por parte
da escola, um conhecimento aprofundado de sua clientela, o Com relação à clientela, os primeiros movimentos do
que não permitia a formulação de ações que visassem atingi- grupo revelaram-se em manifestações de descontentamento
la beneficamente. e frustração quanto à postura dos pais e famílias diante da
Delineou-se, após esses relatos, um movimento que escola e do trabalho individual de cada profissional. Houve
se mostraria comum na dinâmica grupal até o término dos queixas quanto à não valorização da escola pública, não
trabalhos. Sempre que eram apontadas inúmeras dificulda- participação dos pais nas atividades realizadas pela escola e
des (após a abertura de um espaço de escuta e acolhimento não colaboração desses com as propostas das professoras
Elaboração de projetos político-pedagógicos: reflexões acerca da atuação do psicólogo na escola * Aline Wanderer & Regina Lucia Sucupira Pedroza 125
(cobrança de deveres de casa e comparecimento em reu- foi previsto um espaço de discussão aberta durante a reunião
niões). Acolhendo as queixas e legitimando-as, procurou-se que, em um segundo momento, foi aprofundada em peque-
demonstrar que é preciso compreender as raízes de tais nos grupos relativos a cada série. A equipe produziu ainda
comportamentos e atitudes das famílias, verificando de que uma dramatização, que introduziu a reunião, demonstrando
contexto educacional elas provêm e o que entendem por tanto as relações entre pais e filhos frente à escola, quanto o
posturas participativas. Demonstrou-se que tal construção esforço da equipe para aproximar as famílias da instituição.
histórica seria relevante por poder apontar que o que para Foi interessante observar que, nessas discussões, os
as profissionais parece óbvio não necessariamente o é para debates não ficaram restritos aos horários marcados com as
as pessoas com as quais trabalham. Foi possível inferir, ain- psicólogas. Ao contrário, estendiam-se em outras ocasiões
da, pelos relatos da equipe, que há um certo grau de não do cotidiano escolar. Essa tendência ficou clara quando as
identificação das profissionais com o próprio trabalho, o que professoras traziam produções e sugestões elaboradas ao
pode ser gerador de intenso sofrimento e angústia. Ao mes- longo da semana para serem discutidas pelo grupo. Apare-
mo tempo que manifestavam não perceber valorização dos ceu ainda quando foi previsto que os últimos preparativos
pais perante a escola pública, não confiavam seus próprios para a reunião, como fechamento da estrutura do questio-
filhos a ela e, ao não sentirem valorizado seu próprio traba- nário, delineamento da dinâmica de discussão e ensaio da
lho, também acabavam por não confiar nele ou, ainda, por dramatização, seriam feitos em outro horário, de forma inde-
não confiar naquele que é desenvolvido pelos colegas. Das pendente.
próprias queixas, passaram a emergir sugestões e posições A avaliação da equipe acerca dos resultados obtidos
pró-ativas em relação ao tema. Foram relembrados eventos por meio da reunião de pais foi positiva, considerando-se que
realizados na escola que contaram com a presença e inte- representou um primeiro e importante passo na aproximação
resse maciços das famílias e iniciou-se a busca por maneiras que desejava empreender com a clientela. Serviu para que
de repetir essas ocasiões e torná-las movimento permanente avaliasse algumas posturas que deram certo e outras que pre-
de aproximação entre a escola e sua clientela. A iniciativa cisarão ser melhoradas em ocasiões posteriores. Observou-
que foi acolhida e posta em prática ao longo do semestre foi se que as participações foram significativas, tanto no grande
a de utilizar a reunião de pais para se iniciar movimento de quanto nos pequenos grupos. Os pais foram convidados a
exposição das questões que inquietavam a equipe acerca da continuarem suas manifestações, escrevendo em mural co-
clientela, bem como para começar sua inclusão na discussão locado na entrada da escola. Além disso, foram convidados a
acerca do PPP. participar dos encontros de discussão acerca do PPP, o que,
Foram realizados vários debates acerca de formatos entretanto, não ocorreu até o término deste trabalho.
de coletas de dados referentes à clientela: questionários fe-
chados, já utilizados no início de cada ano letivo para coleta O resgate histórico no reconhecimento da
de dados sociodemográficos (importantes em termos quan- identidade escolar
titativos); e questionários abertos e subjetivos, que poderiam
parecer proporcionar dados qualitativamente mais profundos, Quanto ao eixo temático do resgate histórico da
mas demonstraram não permitir essa conclusão de forma escola para delineamento de sua identidade, constatou-se
imediata, analisando-se seus efeitos ao longo da história que havia alguns pais e professoras que foram alunos da
da escola. Assim, apareceram como formas de sondagem escola e que poderiam auxiliar no levantamento de dados.
inicial que, entretanto, não permitiam um aprofundamento Contudo, não houve sugestões acerca dos procedimentos
qualitativo das concepções apontadas pelos pais. Isso se concretos a serem adotados. Houve também a lembrança de
caracterizava por não possuírem retorno significativo, já que que, na comemoração do aniversário de 29 anos da escola,
a pequena quantidade de questionários que retornava trazia contou-se com a presença de seis ex-diretores e foi realiza-
respostas curtas e pouco profundas. da uma exposição de fotos. Foi apresentado um documento
A importância da aproximação pessoal com as famílias contendo o histórico formal da instituição. Nesse, havia um
foi aos poucos ficando patente. As reuniões gerais de pais e amontoado de datas e dados estatísticos sobre quantos alu-
conversas com as professoras demonstraram ser momen- nos eram atendidos e quantas turmas havia de cada série
tos profícuos para estreitamento de relações da escola com (com uma lacuna de cerca de 20 anos nas informações). A
sua clientela, permitindo que essa fosse conhecida de forma partir do documento, foi ressaltada a concepção de que o
gradativa e natural. Foi também aparecendo que quaisquer histórico da instituição, para refletir sua identidade, necessita
eventos realizados pela escola, tais como os suscitados por possuir um caráter vivencial e concreto, não apenas factual
datas comemorativas ou demonstrações culturais, e que e estatístico.
contassem com a presença das famílias, seriam sempre im- Com base na percepção de que pode ser imobiliza-
portantes espaços de compartilhamento de experiências e dor conferir autonomia a quem não a possui em sua história,
acolhimento de demandas da clientela. foram propostas à equipe algumas questões para nortear
Dessa forma, a reunião de pais foi idealizada pela a reflexão. Levantaram-se perguntas tais como: nesses 30
própria equipe, tencionando que fosse um primeiro passo anos de escola, já houve um Projeto Político-Pedagógico?
para a resposta a seus anseios. Foi elaborado questionário Quantos diretores passaram pela escola, quanto tempo per-
fechado com espaço para justificativas e, ao mesmo tempo, maneceram e como foi sua entrada (eleição, indicação ou
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imposição da Secretaria de Educação)? O que caracterizou tais questões nem gostavam de fazê-lo, que não tinham
cada gestão? Durante esses anos, mudou o perfil dos profes- tempo de participar das discussões por trabalharem apenas
sores da escola (de onde vinham, por quais motivos)? Mudou seis horas, que eram, em sua maioria, desconhecidos dos
o perfil dos servidores da escola? Mudou o perfil da clientela? próprios alunos.
Nesses 30 anos, quais foram os projetos iniciados pela es- Em duas oportunidades, houve o convite para que
cola que deram certo e que continuam vigorando até hoje, uma funcionária participasse da reunião. Na primeira, essa
mesmo que com outra feição? Quais os que deram certo, se encontrava na sala, fazendo outras atividades e se recu-
mas não vingaram (por quê)? Quais os que deram errado? sou a sentar-se mais próximo, dizendo que, se fosse preciso
As questões produziram algumas iniciativas volun- que ela respondesse a alguma questão, poderiam perguntar,
tárias de ações para respondê-las, tais como: procurar do- pois ela estava ouvindo. Na segunda, essa mesma funcioná-
cumentação acerca das gestões dos diretores e entrevistar ria acabou sentando-se no círculo de discussão por alguns
ex-aluno conhecido para saber com o que poderia contribuir. minutos, não dizendo coisa alguma e retirando-se logo em
Houve também espaço para que fosse debatida a relevância seguida. Sugeriu-se que se aproveitasse a reunião de pais
dessas questões e sua abrangência. para reunir também os servidores, mas a ideia, embora apa-
Conseguiu-se uma lista de ex-diretores, seus con- rentemente bem acolhida, não foi realizada.
tatos e tempo de gestão. Sugeriu-se que cada profissional
ficasse responsável por realizar uma entrevista com uma A concretização de primeiros passos
dessas pessoas. Houve debates acerca do formato de tais
entrevistas (pessoalmente ou via eletrônica). As psicólogas Considera-se que o espaço oferecido foi bastante be-
auxiliaram a pontuar vantagens e desvantagens de cada for- néfico para a equipe pedagógica. Inicialmente, cabe apontar
mato, decidindo a equipe que isso dependeria da disponibili- que se criou um espaço institucionalmente reconhecido de
dade de cada entrevistado e dos aprofundamentos a serem discussão permanente acerca do PPP, algo que no início foi
buscados após o primeiro contato. tratado como impossível, diante das outras prioridades da
pauta escolar. Além disso, houve considerável aumento da
A demanda do grupo por novas iniciativas participação dos integrantes do grupo na discussão. Esses
passaram a expor mais suas opiniões, mesmo quando dis-
Por demanda da própria equipe pedagógica, foi re- cordantes, a sugerir e idealizar ações que tiveram oportuni-
solvido que era momento de se passar ao próximo passo na dade de colocar em prática, e dispensaram tempo para as
elaboração do PPP: o levantamento de problemas e anseios atividades relativas ao PPP fora dos horários previstos das
atuais da escola para posterior elaboração de metas a serem reuniões com as psicólogas.
atingidas futuramente. Foi ressaltado que se poderia começar Dessa forma, foi possível enfatizar, junto ao grupo,
essa etapa, lembrando-se que as anteriores jamais estariam que, embora o PPP não estivesse concluído, o processo
totalmente fechadas, necessitando sempre serem revistas e iniciado serviria de base para que a equipe conseguisse
aprimoradas. A equipe relembrou, então, iniciativa realizada sentir-se segura na autonomia de que dispõe para sua ela-
no início do ano letivo, em que, em pequenos grupos, levan- boração.
taram-se problemas atuais da escola. Propôs-se o resgate
dessas questões e, se não mais fossem encontradas ou não
fossem mais atuais, novas questões seriam elaboradas. Considerações finais
No último encontro realizado, ocorreu intensa discus-
são e debate sobre questões trazidas pela própria equipe. O trabalho realizado permitiu observar que as falas
Foram elaborados projetos e formas para suprir tais questões das profissionais da comunidade escolar vão ao encontro das
levantadas e discutidas e foi previsto espaço para que voltas- ideias propostas por Heller (1989), em relação à alienação da
sem a ser revistas no próximo ano letivo, não se deixando vida cotidiana, e por Newman e Holzman (2002), no tocante
para trás o que havia sido conseguido até ali. aos conflitos gerados pelo distanciamento da mediação so-
cial auxiliando a significar e desenvolver a emocionalidade no
Inserção da comunidade na elaboração do PPP: âmbito privado. Observe-se que, por intermédio da fala e da
relações de poder e hierarquização mediação fornecida pelas psicólogas, puderam ser explicita-
das as amarras cotidianas que pareciam imobilizar a equipe
Cabem ainda algumas observações quanto à inser- na construção do PPP, quais sejam: falta de tempo para
ção da comunidade escolar na discussão acerca do PPP, reuniões; dificuldades devido à não participação de todos;
mais especificamente em relação à inclusão dos servidores sentimentos de indignação e frustração perante as posturas
da escola do corpo administrativo. Foi interessante constatar da clientela atendida pela escola; impossibilidade de inicia-
que, nas observações da equipe pedagógica acerca das di- tivas que permitissem um resgate histórico e consequente
ficuldades quanto à inclusão desse público, estava implícita percepção da identidade do trabalho escolar peculiar àquela
uma separação histórica em termos de hierarquia e autorida- realidade específica; profundos conflitos que deixavam im-
de. Assim é que foi dito que era bastante difícil reunir esses plícita uma não identificação com o próprio trabalho e com
servidores, que eles não se interessavam em opinar sobre o dos colegas; distanciamento histórico mantido ideologica-
Elaboração de projetos político-pedagógicos: reflexões acerca da atuação do psicólogo na escola * Aline Wanderer & Regina Lucia Sucupira Pedroza 127
mente em relação aos funcionários da escola que também Quando as teorizações e discussões da Psicologia
constituem a comunidade escolar. Escolar atêm-se à consideração da clínica como forma de
A atividade de expressão dessas amarras e conflitos diagnóstico e intervenção dos indivíduos e grupos calcada
representa um momento de elevação do grupo acima da em uma oposição entre interno e externo, chega-se à conclu-
prática inconsciente da vida cotidiana. Isso permite a ma- são de que o profissional deveria manter-se fora do ambiente
nifestação das particularidades individuais e a construção escolar. Isto é, o psicólogo não deveria imergir no cotidiano
de possibilidades de ação transformadoras que alteram a escolar para que não se investisse de suas peculiaridades, o
própria cotidianidade, como observado nas sugestões e que prejudicaria sua interpretação dos conteúdos ali gerados.
ações realizadas pelo grupo, ficando explícita aí a atividade Decorre dessa concepção que tais conteúdos, expressos
humano-genérica (Heller, 1989). Já se considerando as pala- pela linguagem, representariam a realidade interna dessas
vras de Newman e Holzman (2002), tais iniciativas poderiam comunidades em sua totalidade e não apenas uma constru-
representar um retorno à atividade revolucionária, já que a ção dialética da complexidade.
atividade de mediação permitiu a construção de formas de Um modelo de intervenção distanciado do cotidia-
sentir únicas e individuais, a partir do compartilhado social- no pode permitir aos psicólogos atenderem a um número
mente, o que se coaduna com a concepção da aprendizagem consideravelmente grande de demandas, já que não se
conduzindo o desenvolvimento. aproximam de forma profunda de qualquer das realidades
Quando Vygotsky (1984) postula o conceito de zona estudadas. Questiona-se, entretanto, com que profundidade
de desenvolvimento proximal, fala em níveis de desenvol- a atuação dos profissionais, nesse modelo, chega às escolas
vimento. Afasta-se de uma concepção de desenvolvimento e quais os reais e duráveis ganhos gerados para os indivídu-
por etapas ou estruturas estanques e sucessivas. Introduz os envolvidos.
a concepção de que o desenvolvimento dá-se com o outro, Entende-se que a imersão do profissional da Psicolo-
isto é, a mediação do outro permite que o que foi aprendido gia na escola, de forma profunda, permitindo-lhe experimentar
inicialmente no social possa ser internalizado de formas úni- a cotidianidade vivida pelos membros da comunidade escolar
cas. Newman & Holzman (2002) lembram que esse processo e exercer papel de mediador que propicie o desenvolvimento
é também verdadeiro para a emocionalidade. Wallon (1975) individual e grupal, parece ser uma ação que é politicamente
aponta que a linguagem surge para simbolizar a ação e os consciente. Tal intervenção pode permitir superar um modelo
objetos. Entretanto, embora atue nessa transição, não conse- de autoridade de saberes, em que se estabelecem relações
gue abarcar a totalidade dos fatos. Em relação à emocionali- de poder entre as ciências, como a Psicologia e a Pedagogia,
dade, acaba por racionalizá-la. No entanto, a emocionalidade tornando alguns profissionais dependentes da intervenção de
pura não desaparece sob o jugo da linguagem racional, con- outros e inconscientes de suas possibilidades de autonomia
tinuando a ser impulsora da ação e ainda podendo provocar e produção histórica. A desconstrução dessas ideologias é
o aparecimento de conflitos, já que não é completamente essencial, já que propostas de transformação da realidade,
significada ou consciente na fala. seja no âmbito educacional ou em qualquer outro, somente
É possível entender-se, a partir daí, que o psicólogo são possíveis se os indivíduos se perceberem como partes
na escola pode possuir um papel de mediação, em que não integrantes e ativas em seus sistemas de ação cotidiana, o
sobrepõe seus conhecimentos de autoridade científica ao que somente ocorrerá se lhes forem garantidas as condições
outro, mas se permite estar com o outro na vivência e análise necessárias a seu desenvolvimento.
dos conflitos, levando-o a desenvolver formas próprias de
internalização da emocionalidade.
Wallon (1975) ressalta ainda que o individualismo Referências
burguês, calcado no positivismo e no existencialismo, relega
o indivíduo a um isolamento impotente, isto é, retira-o dos Bobbio, N., Matteucci, N., & Pasquino, G. (1992). Dicionário de Política
sistemas em que atua, dando-lhe a impressão de que não (4a ed.) (C. C. Variale, Trad.). Brasília: EDUnB.
repercute neles de nenhuma maneira. Isso também pôde ser
observado na fala das profissionais que, caricaturalmente, Brandão, C. P. (2003). Projetos Político-pedagógicos e a Qualidade
poderia ser expressa da seguinte forma: “Nós queríamos da Educação: a Visão dos seus autores. Dissertação de mestrado,
construir o PPP, resgatar a história, participar, mudar as con- Faculdade de Educação, Universidade de Brasília, Brasília.
dições da escola, mas a Secretaria de Educação, os pais, o
governo, a escola pública não permitem a ação”. Em outras Chauí, M. (1994). O que é Ideologia (37a ed.). Coleção Primeiros
palavras, todos esses sistemas aparecem nas falas como Passos. São Paulo: Editora Brasiliense.
entidades autônomas, não havendo a percepção de que as
profissionais os compõem e os constroem. Dessa forma, a Freire, P. (1992). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a
intervenção do psicólogo no grupo escolar teria também a Pedagogia do oprimido (12a ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
finalidade de identificar, junto aos indivíduos, os aspectos de
seu cotidiano, tornando-os conscientes e permitindo o surgi- Freire, P. (2001). Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo:
mento de novas formas de ação. Editora Unesp.
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à psicologia escolar. São Paulo: Ed. T. A. Queiroz.
Sobre as autoras
Correspondência
Aline Wanderer
SHIS QI 3 Conjunto 5 Casa 8 – Bairro Lago Sul – 71605-250 Brasília – DF
Elaboração de projetos político-pedagógicos: reflexões acerca da atuação do psicólogo na escola * Aline Wanderer & Regina Lucia Sucupira Pedroza 129
As implicações do bullying na auto-estima de
adolescentes
Resumo
O objetivo do presente estudo foi investigar possíveis diferenças na autoestima de adolescentes envolvidos em bullying, enquanto agressores,
vítimas, vítimas/agressores ou testemunhas, por sexo. Participaram 465 adolescentes, sendo 52,7% do sexo masculino. Os instrumentos
utilizados foram um questionário sobre bullying e a Escala de Autoestima de Rosenberg. Os resultados apontaram para uma interação entre sexo
e papéis de bullying em relação à autoestima. Testes Post Hoc demonstraram que, no grupo de vítimas/agressores, os meninos apresentaram
média superior de autoestima em relação às meninas. Verificou-se que, em relação aos meninos, o grupo de testemunhas apresentou maior
média de autoestima que o grupo de vítimas. Em relação às meninas, o grupo de agressoras apresentou média mais alta que o grupo de vítimas/
agressoras. Concluiu-se que o bullying apresenta diferentes implicações na autoestima de meninas e meninos envolvidos em diferentes papéis.
Novos estudos para esclarecer algumas dessas questões são propostos.
Palavras-chave: Bullying, auto-estima, gênero.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional , SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 131-138. 131
Introdução apresentar consolidação de seu papel de agressor com a
continuidade deste ao longo da vida. Podem desenvolver
sentimentos de culpa e vergonha pelos atos inadequados,
Conceito de bullying isolamento ou exclusão social (Cantini, 2004). Rolim (2008)
sustenta que o tipo pernicioso de agressão utilizada no
O bullying constitui-se em uma subcategoria bem bullying faz com que as vítimas sejam alvos que, por diferen-
delimitada de agressão ou comportamento agressivo, carac- tes motivos, não conseguem se defender eficazmente das
terizado pela repetitividade e assimetria de forças (Olweus, agressões. Isso faz com que os autores consigam solidificar
1993). É um comportamento agressivo e persistente com a suas posições na hierarquia do grupo a que pertencem ou
intenção de causar dano físico ou moral em um ou mais es- também aumentem sua popularidade entre os colegas.
tudantes que são mais fracos e incapazes de se defenderem A vítima é o alvo do bullying e refere-se à criança
(Olweus, 1993). A provocação é repetida e tem um caráter que é repetidamente exposta a ações agressivas de outras
degradante e ofensivo, sendo mantida apesar da emissão de crianças as quais têm a intenção de machucá-la e isso geral-
sinais claros de oposição e desagrado por parte do alvo. É in- mente envolve diferença de força, tanto real, como percebida
tencional, não provocado pela vítima e pode ser considerado (Berger, 2007). As vítimas que são constantemente abusa-
como uma forma de abuso, que pode ser tanto físico como das caracterizam-se por um comportamento social inibido,
psicológico. O bullying caracteriza-se por atos repetidos de passivo ou submisso. Estes adolescentes costumam sentir
opressão, tirania, agressão e dominação de pessoas ou gru- vulnerabilidade, medo ou vergonha intensos e uma autoes-
pos sobre outras pessoas ou grupos, subjugados pela força tima cada vez mais baixa, aumentando a probabilidade de
dos primeiros (Lopes, 2005). vitimização continuada (Middelton-Moz & Zawadski, 2007).
No bullying, as agressões podem tomar a forma de As vítimas de bullying possuem até três vezes mais chances
abuso físico com a utilização de chutes, socos, pontapés, de sofrer com dores de cabeça e com dores abdominais, até
empurrões, roubo ou dano aos pertences. As agressões cinco vezes mais chances de ter insônia e até duas vezes
podem ser verbais, com a utilização de apelidos, insultos, e meia mais chances de experimentar enurese noturna,
comentários racistas, homofóbicos, de diferenças religiosas, quando comparadas às crianças que não são vítimas (Rolim,
físicas, econômico-sociais, culturais, morais e políticas (Ro- 2008). Segundo Lopes (2005), a redução da prevalência de
lim, 2008). Podem também assumir uma forma mais indireta, bullying nas escolas pode ser uma medida de saúde publica
como a exclusão social ou o isolamento (Olweus, 1993; Rigby, altamente efetiva para o século XXI.
1998). O bullying pode incluir chamar por nomes, debochar, Algumas crianças são tanto vítimas como agresso-
chutar, bater, aterrorizar, ignorar e rejeitar, humilhar, intimidar, res e são denominadas de vítima/agressor. Estas crianças,
discriminar, entre outras ações agressivas (Lopes, 2005). Os provavelmente, apresentam uma combinação de baixa auto-
ataques podem ocorrer também por vias eletrônicas, através estima, atitudes agressivas e provocativas e prováveis altera-
de mensagens instantâneas, web site, salas de bate-papo ções psicológicas, merecendo atenção especial. Podem ser
ou torpedos. Este tipo de bullying tem sido referido como depressivas, ansiosas, inseguras e inoportunas, procurando
bullying eletrônico ou cyberbullying (Berger, 2007). humilhar os colegas para encobrir suas limitações (Lopes,
2005). As vítimas/agressores têm uma maior probabilidade
Cenário do bullying de apresentar sérios problemas de comportamento externali-
zado e são, em grande frequência, maltratadas por seus cole-
O bullying tem sido considerado como um poderoso gas. Experienciam dificuldades com o comportamento impul-
processo de controle social (Olweus, 1993). A vitimização sivo, reatividade emocional e hiperatividade. Diferenciam-se
pode ser considerada como um processo que ocorre na es- dos alvos típicos por serem impopulares e pelo alto índice
fera coletiva, como um fenômeno social, em que a violência de rejeição entre seus colegas (Robin, Toblina, Schwartza,
dos agressores é reforçada através da interação social entre Gormanb, & Abou-ezzeddinea, 2005).
os membros do grupo (Lisboa, 2005). O agressor tem sido O grupo de vítimas/agressores apresenta os maiores
considerado como um indivíduo procurando poder e lideran- números de problemas de conduta, problemas na escola,
ça dentro do grupo de iguais (Olweus, 1993). problemas com o grupo de iguais, sintomas psicossomáticos
O agressor é aquela criança que age de forma agres- e psicológicos, maiores encaminhamentos aos serviços psi-
siva contra um colega que é supostamente mais fraco, com a quiátricos e uma maior probabilidade de persistência no seu
intenção de machucar, prejudicar, sem ter havido provocação envolvimento em bullying (Liang, Flisher, & Lombard, 2007).
por parte da vítima (Berger, 2007). O agressor, frequente- As vítimas/agressores apresentam certas características
mente, vê sua agressividade como qualidade, tem opiniões como sintomas de depressão, ansiedade e outras formas de
positivas sobre si mesmo e geralmente é bem aceito pelos estresse internalizado. Alguns pesquisadores apresentam a
colegas. Sente prazer e satisfação em dominar, controlar e hipótese de que o comportamento agressivo destas crianças
causar dano nos outros e geralmente é mais forte que seu reflete um estado de pobreza em modular a raiva e a irrita-
alvo (Lopes, 2005). Apresenta uma tendência maior para bilidade maior do que a capacidade de utilização de estraté-
comportamentos de risco, como o consumo de tabaco, álcool gias sociais com um objetivo orientado (Robin e cols., 2005).
ou outras drogas e porte de armas. Os agressores podem Liang e cols. (2007) afirmam que, juntamente com o grupo de
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agressores, as vítimas/agressores estão mais suscetíveis ao e dificultam a integração grupal (Coopersmith, 1989; Rosen-
uso excessivo de cigarros, álcool e outras substâncias. Este berg, 1989). Um bom grau de autoestima é crítico para o bom
grupo apresenta o risco mais elevado para apresentar se- funcionamento do adolescente, uma vez que ela ajuda os
veras ideações suicidas. Apresentam risco aumentado para adolescentes a acreditarem e confiarem neles mesmos. A au-
vários tipos de comportamento de risco, violência e compor- toestima também afeta o adolescente na forma de lidar com
tamento antissocial, quando comparadas a crianças que não o ambiente. Crianças e adolescentes com boa autoestima
estão envolvidas em bullying (Liang e cols., 2007). persistem mais e fazem mais progressos diante de tarefas di-
Em se tratando de vítimas/agressores, é importante fíceis que aqueles com uma baixa autoestima. A posição que
fazer distinção entre comportamento agressivo proativo e as crianças e os adolescentes ocupam entre seus pares é
reativo. O comportamento agressivo proativo envolve tenta- extremamente importante, uma vez que a autoestima é uma
tivas de influenciar o outro através de meios aversivos, em função deste status dentro do grupo. As crianças cujos pares
uma situação que não foi provocada (Gini & Pozzoli, 2006). não gostam dela tem menos oportunidades de desenvolver
É um comportamento voluntário, deliberado e influenciado suas habilidades sociais (Steinberg, 1999). A autoestima está
por reforços externos (Lisboa, 2005). Este é o tipo de agres- relacionada à saúde mental e ao bem-estar psicológico e sua
são utilizada pelos agressores típicos. Já o comportamento carência está relacionada a certos fenômenos mentais ne-
agressivo reativo é um ato impulsivo em resposta a uma gativos como depressão e suicídio. Para Rosenberg (1989),
provocação ou ameaça percebida (Gini & Pozzoli, 2006) e pessoas com baixa autoestima engajam-se em comporta-
consiste em uma resposta defensiva de raiva (Lisboa, 2005). mentos delinquentes como uma forma de retaliação contra a
Este é o tipo de agressão utilizada pelas vítimas/agressores. sociedade que desdenha deles e também como uma forma
Berger (2007) afirma que a maior parte dos alunos de obter autoestima.
não se envolve diretamente em atos de bullying e geralmen- Autoestima é uma avaliação que o indivíduo efetua e
te se cala por medo de ser a próxima vítima, por não saber comumente mantém em relação a si mesmo. Expressa um
como agir e por não acreditar nas atitudes da escola. Grande sentimento ou uma atitude de aprovação ou de repulsa por si
parte das testemunhas sente simpatia pelas vítimas, tende a mesmo e refere-se ao quanto um sujeito considera-se capaz,
não culpá-los pelo ocorrido, condena o comportamento dos significativo, bem sucedido e valioso (Coopersmith, 1989;
agressores e deseja que os professores intervenham efetiva- Rosenberg, 1989). Pode ser entendida como um juízo pesso-
mente (Lopes, 2005). Garandeau e Cillessen (2006) susten- al de valor, externado nas atitudes que o indivíduo tem para
tam que, quando uma criança ou adolescente testemunha consigo mesmo e nas crenças pessoais sobre suas habilida-
um colega sendo vitimizado por outro, o seu comportamento des, capacidades, relacionamentos sociais e acontecimentos
não será neutro. Poderá escolher o lado da vítima e se juntar futuros (Coopersmith, 1989; Heatherton & Wyland, 2003). A
ativamente ao bullying ou se manter passivo. Entretanto, é autoestima diz respeito à forma como o indivíduo elege suas
importante ressaltar que ser passivo não é o mesmo que ser metas, aceita a si mesmo, valoriza o outro e estabelece suas
neutro. Na realidade, a atitude passiva reforça a agressão, expectativas e projetos, sendo que o ponto fundamental
por mostrar ao agressor que nada irá interromper a atividade, da autoestima é o aspecto valorativo (Coopersmith, 1989).
deixando-o livre para realizar sua ação (Garandeau & Cilles- A percepção que o indivíduo tem do seu próprio valor e a
sen, 2006). avaliação que faz de si mesmo em termos de competência
Segundo Cantini (2004), é possível identificar alguns constituem os pilares fundamentais da autoestima. Esta se
fatores de risco que podem estar associados à ocorrência constitui em uma experiência subjetiva, acessível às pesso-
do bullying, como fatores da personalidade, autoestima, di- as através de relatos verbais e comportamentos observáveis
ficuldades nas relações sociais, ser vitimizado na escola ou (Coopersmith, 1989).
fora dela, violência na escola ou fora dela, violência na comu- Muitas das mais populares teorias sobre autoestima
nidade, desajustes familiares, práticas educativas parentais, estão baseadas na teoria denominada The looking-glass
contexto escolar, alienação escolar, violência na mídia e per- self (Heatherton & Wyland, 2003). Esta teoria, proposta por
cepção do problema. Charles Horton Cooley no início do século XX, sustenta que
o indivíduo e a sociedade não existem separadamente, mas
Autoestima sim que um é produto do outro. Da mesma forma como nós
descobrimos nossa aparência através do nosso reflexo no
O conceito de autoestima tem sido estudado e con- espelho, aprendemos sobre nossa personalidade olhando a
siderado como um importante indicador de saúde mental reação dos outros. Se várias pessoas nos rodeiam, acredi-
na adolescência. Existe uma correlação entre autoestima, tamos que somos populares. Se as pessoas riem de nossas
rendimento escolar e aprovação social, e tal correlação é piadas, acreditamos que somos divertidos, engraçados. Em
virtualmente generalizável a todos os grupos étnicos e cultu- outras palavras, a forma como nós vemos a nós mesmos
rais (Steinberg, 1999). A autoestima é talvez a variável mais é fortemente influenciada pela maneira como os outros nos
crítica que afeta a participação exitosa de um adolescente veem. Heatherton e Wyland (2003) afirmam que alguns es-
com outros em um projeto. Os adolescentes com baixa au- tudos sugerem que meninos e meninas divergem na origem
toestima desenvolvem mecanismos que provavelmente dis- da autoestima, sendo que a autoestima das meninas é mais
torcem a comunicação de seus pensamentos e sentimentos influenciada pelos relacionamentos, enquanto a autoestima
As implicações do bullying na auto-estima de adolescentes * Cláudia de Moraes Bandeira & Claudio Simon Hutz 133
dos meninos é mais influenciada pelo sucesso dos seus ob- entre meninos e meninas está no tipo de agressão utilizada
jetivos. e não na incidência de agressão nos subgrupos de meninos
Existem controvérsias quanto à conceitualização da e meninas.
autoestima como um traço estável da personalidade ou como Algumas pesquisas apontam diferenças entre meni-
um estado especificamente ligado ao contexto (Heatherton nas e meninos em relação ao bullying, visto que comumente
& Wyland, 2003). Algumas teorias apontam para autoestima as meninas identificam-se mais como vítimas e testemunhas
como sendo um traço relativamente estável da personalida- e os meninos mais como agressores e vítimas/agressores
de do indivíduo. Dentro desta perspectiva, a autoestima pode (Bandeira, 2009). As meninas geralmente expressam atitudes
ser considerada como estável, pois é construída vagarosa- mais positivas em relação às vítimas, são mais empáticas e
mente ao longo do tempo, através de experiências pessoais dão mais suporte que os meninos (Gini & Pozzoli, 2006). Os
bem sucedidas, sendo valorizada continuamente por pesso- meninos tendem a utilizar a agressão física como empurrões,
as significantes. Outras teorias apontam para uma classifica- chutes e socos. Já as meninas utilizam formas mais indiretas
ção variável, com a asseveração de que a autoestima pode de bullying, como agressão verbal, insulto, mentira e fofoca
ser momentaneamente manipulada ou afetada. Entretanto, (Bandeira, 2009). Nas adolescentes, em particular, é comum
uma visão subsequente sustenta que a autoestima pode ser o uso de apelidos e fofocas (Vail, 2002). Os meninos afir-
considerada tanto como um estado quanto como um traço mam que são mais agredidos por outros meninos, enquanto
(Heatherton & Wyland, 2003). Rosenberg (1989) sugere que as meninas afirmam que são agredidas principalmente por
o julgamento pessoal é formado desde a infância. Embora outras meninas. Meninas e meninos também diferem na
no início da adolescência os indivíduos sejam suscetíveis à maneira como percebem e nas suas atitudes em relação ao
maior inconstância dos sentimentos sobre si, a autoestima bullying (Bandeira, 2009).
tende à estabilidade ao longo do ciclo vital. Os achados de Crick e Grotpeter (1995) propuseram o termo agressi-
Rigby e Cox (1996), em seus estudos sobre a relação entre vidade relacional para denominar as ações cometidas pelas
bullying e autoestima, apontam para uma relação entre baixa meninas, nas quais as interações sociais são manipuladas
autoestima e bullying em meninas, mas não encontraram para causar prejuízo no relacionamento entre os pares. Isso
a mesma relação entre os meninos. Assim, o fenômeno de envolve ameaças de expulsão do grupo, exclusão proposital
bullying deve ter diferentes implicações na autoestima dos e comentários prejudiciais a respeito de alguém com o fim
adolescentes do sexo masculino e do sexo feminino. de causar a rejeição do grupo de pares. Os autores acima
citados acreditam que as meninas utilizam mais esse tipo de
Diferenças de gênero abuso que os meninos, uma vez que isso prejudica o que
mais importa para elas, o relacionamento entre o mesmo gê-
Pesquisas em desenvolvimento de gênero mostram nero. Segundo Lisboa (2005), as relações diádicas e íntimas
que meninas e meninos diferem na apresentação de vários parecem ser mais importantes para as meninas que para
problemas de desenvolvimento. Sexo e gênero são importan- os meninos. As meninas tendem a se importar mais com o
tes fontes de variabilidade no comportamento das crianças retorno dos pares para formar seu autovalor, o que torna as
(Bell, Foster, & Mash, 2005). Apenas mostrar que meninas adolescentes mais suscetíveis aos comentários em relação
e meninos diferem não é o suficiente. Existe a necessidade à sua aparência física (Crick & Grotpeter, 1995). Conforme
de investigar como as experiências de socialização, variáveis Lisboa (2005), é permitido socialmente às meninas manter
biológicas e o contexto ambiental ou cultural interagem com relações de amizades íntimas e próximas com um par do
o passar do tempo para produzir diferentes modelos de ajus- mesmo sexo. Já os meninos são vulneráveis a preconceitos,
tamento para meninas e meninos. podendo, por isso, tornarem-se vítimas.
Por muito tempo, os pesquisadores de bullying detive-
ram-se em estudar apenas os meninos, pois consideravam
que este fenômeno ocorria com muito mais frequência nos Método
indivíduos do sexo masculino (Berger, 2007). Mais recen-
temente, reconheceram-no também como um problema O presente estudo seguiu um delineamento do tipo
das meninas, mas, provavelmente, com uma apresentação correlacional de corte transversal. Este estudo contou com
única. Olweus (1993) acreditava que o bullying ocorria com 465 adolescentes, estudantes de quartas a oitavas séries
pouca frequência nas meninas. A forma como o bullying do ensino fundamental de três escolas (duas públicas e
apresenta-se nas meninas é geralmente despercebida, como uma privada) da cidade de Porto Alegre, RS. Dentre estas
se elas não fossem suspeitas de comportamento agressivo crianças, 220 pertenciam ao sexo feminino (47,3%) e 245,
ou bullying da mesma forma que os meninos (Vail, 2002). ao sexo masculino (52,7%). A idade dos participantes variou
Este dado é reforçado por Lisboa (2005), que identifica que entre nove e 18 anos (M=13,4; dp=1,47). A amostra foi de
os meninos são classificados pelos seus colegas como conveniência e a participação dos alunos foi voluntária. Este
agressores e como vítimas/agressores com uma frequência estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do
maior do que as meninas. Para Liang e cols. (2007), a agres- Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Gran-
sividade e a vitimização são de ocorrência mais comum entre de do Sul.
os meninos. Já Gini e Pozzoli (2006) afirmam que a diferença
134 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 131-138.
Instrumentos
Os instrumentos utilizados foram um questionário zada uma análise de variância (ANOVA 4X2) com papéis de
sobre bullying e a Escala de Autoestima de Rosenberg. O bullying e sexo como variáveis independentes. A média e o
questionário sobre bullying contou com 15 questões de desvio padrão da autoestima nos diferentes papéis de bullying
múltipla escolha em que os adolescentes puderam se iden- para meninos e meninas são apresentados na Tabela 1.
tificar como participantes, ou não, de bullying. Algumas das
questões possibilitaram a escolha de mais de uma opção,
permitindo sobreposições de algumas categorias a priori. O Tabela1. Média e Desvio Padrão da Autoestima nos Diferentes
questionário possibilitou identificar os adolescentes enquanto
vítimas, agressores, vítimas/agressores e testemunhas. Meninas Meninos
A Escala de Autoestima de Rosenberg (1989) é uma
medida unidimensional que avalia a autoestima global. É Papéis de bullying M dp M Dp
constituída por dez afirmações relacionadas ao conjunto de Vítimas 2,84 0,35 2,78 0,45
sentimentos de autoestima e autoaceitação. Os itens são Agressores 3,01 0,39 2,89 0,37
respondidos em uma escala de quatro pontos variando entre
Vítimas/agressores 2,78 0,36 2,92 0,36
concordo totalmente, concordo, discordo e discordo total-
mente. Neste estudo, foi utilizada a versão adaptada para o Testemunhas 2,89 0,39 3,05 0,40
português por Hutz (2000), que manteve a avaliação como
uma medida unidimensional com características psicomé-
tricas equivalentes às do instrumento original. No presente
estudo, o instrumento manteve seus níveis de fidedignidade. Os resultados da ANOVA apontaram uma interação
entre sexo e papéis de bullying em relação à autoestima
Procedimentos [F(3,398)= 2,95; p<0,05], como pode ser visto na Figura 1.
Devido à interação, foram realizadas análises de variância
Inicialmente, foi encaminhado um termo de consen- oneway para o sexo masculino e para o sexo feminino. Estas
timento livre e esclarecido para assinatura dos pais ou res- análises apontaram diferenças significativas entre os papéis
ponsáveis de todos os participantes. Os questionários foram de bullying. Testes Post Hoc (Tukey) apontaram que, no gru-
aplicados coletivamente em sala de aula, em dias e horários po de vítimas/agressores, os adolescentes do sexo mascu-
designados previamente. A coleta dos dados teve a duração lino apresentaram médias de autoestima significativamente
de 50 minutos. Antes de iniciar a aplicação dos questionários, superiores em relação às do sexo feminino. Ainda entre os
a pesquisadora realizou um rapport, no qual explicou aos alu- adolescentes do sexo masculino, verificou-se que o grupo de
nos os objetivos da pesquisa e o significado do termo bullying, testemunhas apresentou maior média de autoestima que o
citando alguns exemplos, sempre utilizando uma linguagem grupo das vítimas. Em relação ao sexo feminino, verificou-se
apropriada para a faixa etária dos participantes. Neste ra- que o grupo de agressoras apresentou média mais alta de
pport, a pesquisadora explicou a diferença entre bullying e autoestima que o grupo das vítimas/agressoras.
agressões ocasionais, explicando as características peculia-
res do bullying. Os adolescentes foram informados que sua
participação era voluntária e que poderiam interrompê-la
a qualquer momento sem nenhuma penalidade. Também
foram informados sobre o sigilo e a confidencialidade dos
dados e de que não deviam se identificar nos questionários.
Os únicos dados pessoais que foram coletados foram idade,
sexo, com quem reside e o número de irmãos.
Resultados
Inicialmente, foi feita uma verificação das caracterís-
ticas psicométricas da escala de autoestima na amostra do
estudo. Verificou-se que a consistência interna (α = 0,74) era
adequada e muito próxima ao alfa de Cronbach obtido no
estudo original. As médias e desvios padrões encontrados na
presente amostra (ver Tabela 1) também foram muito próxi-
mos aos obtidos no estudo original.
Para analisar as diferenças da autoestima nos quatro Figura 1. Interação das variáveis autoestima e papéis de bullying
grupos de papéis de bullying em relação ao sexo, foi reali- por sexo.
As implicações do bullying na auto-estima de adolescentes * Cláudia de Moraes Bandeira & Claudio Simon Hutz 135
Discussão os meninos, o sucesso de seus objetivos pessoais parece
representar um fator de maior influência na sua autoestima.
A interação verificada entre sexo e papéis de bullying É possível que as diferentes exigências culturais juntamente
em relação à autoestima indica que, no grupo vítimas/ com características pessoais influenciem a forma como o
agressores, o sexo masculino apresentou média superior de processo de vitimização é experienciado por meninos e me-
autoestima em relação ao sexo feminino. Entre as meninas, ninas. É provável que a rejeição experimentada pelo grupo
baixos níveis de autoestima estão relacionados com o papel vítima/agressor cause impacto negativo na autoestima das
de vítima/agressor, o que não ocorre entre os meninos. Uma meninas, que parece ser influenciada em grande parte pe-
explicação para estes achados pode estar na diferença quan- los relacionamentos. Novos estudos são sugeridos a fim de
to aos fatores que influenciam a autoestima de meninos e verificar a relação entre rejeição de pares e autoestima em
meninas. Conforme a literatura (Heatherton & Wyland, 2003), meninos e meninas.
a autoestima das meninas é fortemente influenciada pelos Em relação ao sexo feminino, verificou-se que o grupo
relacionamentos, enquanto a autoestima dos meninos é in- de agressoras apresentou média mais alta de autoestima que
fluenciada pelo sucesso de seus objetivos. A dimensão social, o grupo de vítimas /agressoras. Dentre as meninas, o grupo
que inclui o cuidado e a integração interpessoal, parece ser de agressoras possui altos níveis de autoestima. Os agres-
um fator que apresenta grande influência na autoestima das sores típicos diferenciam-se das vítimas/agressores pela
meninas. Para elas, o retorno de pessoas significativas repre- popularidade. Contrário ao que ocorre no grupo de vítimas/
senta um fator de grande importância. As meninas priorizam agressores, o grupo de agressores é bem aceito pelos pares
as emoções e os eventos sociais, passam grande parte do e recebe retorno positivo, fazendo provavelmente com que
seu tempo trocando informações, segredos e criando intimi- as meninas agressoras percebam-se como capazes, compe-
dade. Durante o período da adolescência, as meninas ficam tentes e com grande valor. O retorno positivo dos pares em
mais suscetíveis à opinião e aceitação dos pares. As meninas relação aos agressores parece influenciar de forma positiva
valorizam as amizades mais que os meninos, os quais bus- a autoestima das meninas. Estes achados encontram supor-
cam maior desempenho em atividades como esporte e outros te na literatura (Lopes, 2005; Rolim, 2008), que aponta os
desafios pessoais. Para os meninos, o desempenho pessoal, agressores como figuras populares e bem aceitas pelos co-
como, por exemplo, a competição ou o pensamento individu- legas. Os próprios agressores veem sua agressividade como
al, exerce grande influência na sua autoestima qualidade e têm opiniões positivas sobre si mesmos (Lopes,
O grupo vítima/agressor é, dentre os grupos de pa- 2005). Sentem prazer e satisfação em dominar, controlar e
péis de bullying, o que possui índices mais altos de rejei- causar dano aos outros. O agressor pode alcançar um status
ção e maltrato pelos colegas (Berger, 2007; Lopes, 2005). importante, consolidando sua capacidade de dominar e sua
Diferenciam-se das vítimas e agressores típicos por serem superioridade. Os achados do presente estudo contrariam
impopulares e pelo alto índice de rejeição entre seus colegas os resultados encontrados por Rigby e Cox (1996) em um
(Robin e cols., 2005). É plausível que o impacto emocional estudo que apontou uma associação entre baixa autoestima
da rejeição seja maior para as meninas que, enquanto no e agressores do sexo feminino. Estas diferenças provavel-
papel de vítimas/agressoras, são rejeitadas por seus pares. mente ocorreram porque o estudo realizado por Rigby e Cox
Com a rejeição, passam a ver a si mesmas com desapro- (1996) não diferenciou o grupo de agressoras puras do grupo
vação, percebem-se como incapazes, incompetentes e sem de vítimas/agressoras.
muito valor. Outro agravante que parece funcionar como fator Em relação ao sexo masculino, verificou-se que o gru-
de risco para as meninas durante a adolescência, deixando- po de testemunhas apresentou maior média de autoestima
as mais vulneráveis aos fatores estressantes do meio e da que o grupo das vítimas. Entre os meninos, baixos níveis de
sociedade, são as mudanças hormonais que ocorrem com autoestima estão relacionados ao papel de vítima. É plausí-
a puberdade (Bell e cols., 2005). A puberdade é um período vel que o fato de não possuir recursos, status ou habilidade
crítico para as meninas, que, diferente de outros períodos para se defender, reagir ou cessar o bullying cause impacto
do desenvolvimento, apresentam desvantagens em relação na autoestima dos meninos, que passam a se perceber como
aos meninos. A literatura (Bell e cols., 2005) aponta alguns fracos e sem valor. É possível que a sensação de impotência
mecanismos que podem explicar estas diferenças de gênero. em se defender dos agressores e cessar o bullying cause
Tais mecanismos incluem diferentes fatores de risco e pro- um impacto negativo na autoestima dos meninos vitimizados.
teção, tanto do meio ambiente quanto genéticos, diferentes Estes dados corroboram os achados de Rigby (1998) que,
níveis desses fatores, ou ainda diferentes desafios culturais em seus estudos a respeito da personalidade das vítimas,
ou ambientais que meninos e meninas encontram e podem encontrou interação entre escores baixos de autoestima e o
diferenciar o desenvolvimento de algum problema ou dificul- papel de vítima.
dade em particular. Em relação aos meninos, o grupo vítimas/
agressores apresenta níveis mais elevados de autoestima.
Ao contrário das meninas, a autoestima dos meninos vítimas/ Considerações finais
agressores parece não sofrer grande impacto com a rejeição
de seus colegas. É plausível que os meninos sejam menos Foi possível verificar que o bullying apresenta dife-
suscetíveis à aprovação ou desaprovação externa. Para rentes implicações na autoestima de meninas e meninos
136 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 131-138.
envolvidos nos diferentes papéis e variações de autoestima Berger, K. S. (2007). Update on bullying at school: Science forgoten?
nos diferentes papéis para o mesmo sexo. Os resultados Developmental Review, 27, 90-126.
fornecem dados interessantes no que diz respeito ao bullying
e às diferenças entre os sexos. Os trabalhos que visam à pre- Cantini, N. (2004). Problematizando o bullying para a realidade
venção e redução do bullying devem ser estruturados tendo brasileira. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de
em mente as diferenças entre os sexos. É necessário que se Campinas, Campinas, São Paulo.
aborde o bullying de maneira diferenciada para cada papel
e, em específico, para cada sexo. Sexo e gênero são impor- Coopersmith, S. (1989). Coopersmith – self-esteem Inventory. Palo
tantes fontes de variabilidade no comportamento de crianças Alto, CA: Consulting Psychologists Press.
e adolescentes. Saber que meninos e meninas diferem no
padrão de certos tipos de comportamento é o primeiro passo Crick, N. R., & Grotpeter, J. K. (1995). Relational aggression, gender,
para o conhecimento a respeito dos mecanismos que podem and social-psychological adjustament. Child Development, 66,
produzir estas diferenças. 710-722.
Uma vez apontadas diferenças na autoestima de me-
ninos e meninas nos diferentes papéis de bullying, o conheci- Garandeau, C. F., & Cillessen, A. H. N. (2006). From indirect
mento detalhado dos mecanismos subjacentes a cada papel aggression to invisible aggression: A conceptual view on bullying
se faz necessário, juntamente com a prevenção dos efeitos and peer group manipulation. Aggression and Violent Behavior, 11,
deletérios. Estudos futuros deveriam enfocar especificamente 641– 654.
o bullying entre as meninas, uma vez que este ainda é pouco
investigado. Os dados obtidos através deste estudo visam Gini, G., & Pozzoli, T. (2006). The role of masculinity in children’s
a enriquecer e ampliar o conhecimento sobre o fenômeno bullying. Sex Roles, 54, 585-588.
bullying, possibilitando um maior conhecimento acerca dos
adolescentes e sua relação com seus pares. Este estudo bus- Heatherton, T. F., & Wyland, C. L. (2003). Assessing self-esteem.
cou compreender o bullying como um comportamento agres- Em S. J. Lopez & C. R. Snyder (Orgs.), Positive psychological
sivo baseado e sustentado por valores culturais do contexto, assessment: a handbook of models and measures (pp.219-233).
assim como um modo de relação estabelecido entre pares. Washington, DC : American Psychological Association.
O bullying é um fenômeno presente em praticamen-
te todas as escolas ao redor do mundo (Berger, 2007). Os Hutz, C. S. (2000). Adaptação brasileira da escala de auto-estima de
estudos relacionados ao bullying têm apontado a gravidade Rosenberg. Manuscrito não-publicado, Universidade Federal do
das consequências da exposição a abusos frequentes pelos Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
pares. Este fato remete-nos ao sofrimento experienciado
por um número expressivo de adolescentes em nossa cul- Liang, H., Flisher, A. J., & Lombard, C. J. (2007). Bullying, violence,
tura. A gravidade do fenômeno não pode ser desprezada and risk behavior in South African school students. Child Abuse &
nas escolas que, por vezes, desconhecem ou minimizam Neglect 31, 161–171.
a magnitude de tal fenômeno. A escola desempenha um
papel de grande importância no desenvolvimento social de Lisboa, C. S. M. (2005). Comportamento agressivo, vitimização e
crianças e adolescentes e não pode ser considerada ape- relações de amizade em crianças em idade escolar: Fatores de
nas como um espaço destinado à aprendizagem formal ou risco e proteção. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio
ao desenvolvimento cognitivo. Portanto, a escola precisa se Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
transformar, adaptar-se à realidade e às demandas culturais
atuais e atuar no sentido de prevenir e controlar o bullying, Lopes, A. A. N. (2005). Bullying - Comportamento agressivo entre
assim como outros comportamentos interativos inadequados estudantes. Jornal de Pediatria, 81(5), 164-172.
e prejudiciais ao desenvolvimento, e não funcionar como um
agente mantenedor do sofrimento psicológico dos envolvidos Middelton-Moz, J., & Zawadski, M. (2007). Bullying – Estratégias de
nessas situações. sobrevivência para crianças e adultos (R. C. Costa, Trad.). Porto
Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 2002).
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Sobre os autores
Correspondência
Claudio Simon Hutz
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Ramiro Barcelos, 2600-Térreo
Bairro Santa Cecília – Porto Alegre – RS
CEP: 90035-003
138 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 131-138.
Disponibilidad de recursos materiales en el hogar y
adquisición de habilidades pre-lectoras
Resumen
El aprendizaje de la lectura implica un conjunto de factores que hacen posible su adquisición. Entre estos, se destacan el contexto alfabetizador
familiar, entendido como el conjunto de los recursos del hogar que abarcan experiencias en las cuales el niño se encuentra en contacto con
eventos que involucran la lectoescritura y la disponibilidad de materiales impresos; además de las habilidades y conocimientos prelectores
definidos como precursores de la lectura formal, que tienen sus orígenes en las experiencias tempranas de la vida de un niño. El objetivo de
este trabajo es explorar y describir las relaciones entre el contexto alfabetizador familiar y el rendimiento en habilidades prelectoras. Para ello se
seleccionó una muestra de 88 niños de 5 años de edad, de ambos sexos, y a los cuidadores de los mismos niños a quienes se les administró
una entrevista semiestructurada y precodificada denominada Evaluación del Contexto Alfabetizador y la versión en español del Get Ready to
Read! Screening Tool de Whitehurst & Lonigan. Los resultados permitieron establecer una asociación estadísticamente significativa entre los
índices disponibilidad de recursos materiales vinculados a la lectura en el hogar -especialmente el acceso a medios tecnológicos- y el rendimiento
en habilidades prelectoras, demostrando la importancia que tienen para la alfabetización las características del medio ambiente en el que se
desenvuelve el niño.
Palabras clave: Alfabetización, ambiente familiar, materiales instruccionales.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 139-148. 139
Introducción (Purcell-Gates, 1996). D����������������������������������
iversos trabajos han aportado evi-
dencia acerca de la asociación significativa entre las expec-
El aprendizaje de la lectura implica un conjunto de tativas de los padres y el desempeño de los niños al inicio
factores que hacen posible su adquisición eficiente. Entre de la alfabetización formal (Halle, Kurtz-Costes, & Mahoney,
estos factores se destacan el tipo de método pedagógico 1997). La interacción familiar en lecturas conjuntas tiene un
empleado por el docente (Hernández & Jiménez, 1987; Jimé- gran impacto sobre el desarrollo de habilidades de prelectu-
nez, Rodrigo, Ortiz, & Guzmán, 1999), las características de ra y sobre el aprendizaje de la lectoescritura cuando el niño
los textos elegidos para la enseñanza (Calero & Pérez, 1993; comienza la escolaridad formal, sobre todo, existe una corre-
Sánchez, 1995), el entrenamiento en los distintos procesos lación positiva con el tiempo que destinan los padres a estas
cognitivos lectores (Jiménez e cols., 1999; Ramos Sánchez, prácticas y el grado de compromiso con el que las asumen
1999), el contexto alfabetizador familiar (Marder, Querejeta, (Juel, 1991; Braslavsky, 2004).
Piacente, Resches, & Urrutia, 2005) y las habilidades y cono- Aquellos recursos del contexto alfabetizador familiar
cimientos prelectores (Piacente, 2005; Whitehurst & Lonigan, referidos a la disponibilidad de recursos materiales vincula-
2003). Como se puede apreciar, los factores que influyen en dos a la lectura tienen relación con el nivel cultural, laboral
el aprendizaje de la lectura constituyen un grupo diverso y y de ingresos de la familia (Fernández & Salvador, 1994). El
heterogéneo. La relación entre las habilidades prelectoras nivel laboral y de ingresos de una familia se ha asociado prin-
con las que los niños ingresan al sistema escolar y su rendi- cipalmente con el desempeño académico de niños en edad
miento académico posterior en actividades de lectura es con- escolar (Magnuson, 2007; Fueyo, 1990; Gordon & Greenidge,
siderada significativa (Baydar, Brooks-Gunn, & Furstenberg, 1999; Pourtois & Desmet, 1989). La disponibilidad de medios
1993; Stevenson & Newman, 1986; Tramontana, Hooper, culturales (libros, periódicos, televisión, enciclopedias, etc.)
& Selzer, 1988), por lo que su adquisición temprana resulta en el hogar es un componente del contexto alfabetizador que
fundamental para el aprendizaje inicial de la lectura (Baydar influye en el rendimiento escolar (Echols, West, Stanovich,
e cols., 1993). & Zehr, 1996). El nivel educativo de los padres influye en la
En la adquisición y perfeccionamiento de habilidades participación de los mismos en las actividades escolares de
de prelectura tienen influencia el contexto alfabetizador fami- sus hijos y, como consecuencia, en su rendimiento acadé-
liar en el que se desenvuelve el niño; distintos estudios han mico (Bracken & Fischel, 2008). Se ha encontrado que la
encontrado correlaciones significativas entre el contexto alfa- privación de estímulos atribuido al déficit sociocultural de
betizador familiar y el desarrollo de habilidades lingüísticas y diversos entornos, genera diferencias en el rendimiento: en
prelectoras en niños de edad preescolar (Bus, van Ijzendoorn, las familias de mayor nivel sociocultural, se ofrece al niño una
& Pellegrini, 1995; Purcell-Gates, 1996). Dentro del contexto serie de repertorios educativos mayor que en las de estratos
alfabetizador, el nivel socioeconómico de los cuidadores es más bajos, lo que permite una mejor adaptación a contextos
estimado como un predictor fuerte del desempeño acadé- escolares (Ruiz de Miguel, 1999).
mico de los niños en tareas de lectura y escritura al inicio En investigaciones llevadas adelante con niños hispa-
del primer grado (Magnuson, 2007; Nacional Assessment of noparlantes se ha encontrado una enorme variabilidad entre
Educational Progress, 1991). Asimismo, el nivel educacional contextos hogareños de diferentes niveles, en relación a la
de los padres se relaciona positiva y consistentemente con el disponibilidad de recursos materiales vinculados a la lectura,
desempeño escolar (Recart-Herrera, Mathiesen, & Herrera- y los conocimientos y habilidades infantiles de prelectura que
Garbarini, 2005). También, la participación de los padres los niños poseen (Dioses e cols., 2006).
en las actividades escolares de sus hijos explica el nivel de
los niños en pruebas escolares (Bazán-Ramírez, Sánchez- Habilidades y conocimientos prelectores
Hernández, & Castañeda-Figueiras, 2007).
Las habilidades y conocimientos prelectores hacen
Contexto Alfabetizador Familiar referencia a un conjunto de precursores de la lectura formal
necesarios para tener éxito en el aprendizaje de la lectura;
El contexto alfabetizador familiar es un conjunto de tienen sus orígenes en las experiencias tempranas de la vida
recursos que abarca tanto experiencias hogareñas en las de un niño (Piacente, 2005; Whitehurst & Lonigan, 2003).
cuales el niño se encuentra en contacto con eventos que in- Estas habilidades prelectoras se van perfeccionando de for-
volucran la lectoescritura como la disponibilidad en su entor- ma diferente en cada niño, hasta alcanzar cierto grado de
no de materiales escritos en diferentes formatos y soportes experticia en la lectoescritura (Garton Pratt, 1991). Existen
(Graves, Juel, & Graves, 2000). dos áreas específicas que se encuentran en la base del
El conjunto de recursos vinculados a las prácticas y aprendizaje de la lectura y la escritura. Los niños que desar-
creencias alfabetizadoras poseen repercusiones en el de- rollan habilidades potentes en esas áreas tienen mayor éxito
sarrollo del vocabulario, de habilidades de prelectura y en el en el aprendizaje de la lectura. Se trata del conocimiento de
aprendizaje inicial de la lecto-escritura. Aquellas familias en lo impreso y la conciencia lingüística.
las cuales se da un uso frecuente de actividades de lectu- El conocimiento de lo impreso hace referencia al
ra y escritura generan en sus niños conocimientos sobre lo conocimiento que poseen los niños sobre el material gráfico
impreso y sobre la funcionalidad y uso del lenguaje escrito presente en su entorno cotidiano. Esta habilidad incluye el
140 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 139-148.
conocimiento de lo escrito y de algunas letras. El conoci- Método
miento de lo escrito se refiere al conocimiento general que
dispone el niño sobre la escritura como sistema, implicando
la comprensión de la funcionalidad de la escritura (Downing, Participantes
Olillla, & Oliver, 1975). Es decir, saber que posee y transmite
un significado para un otro distante o ausente; conocer la Se seleccionó de forma no probabilística casual una
direccionalidad de la escritura y el aspecto visual de un texto. muestra de 88 niños y niñas de 5 años de edad, alumnos
Por último, el conocimiento de las letras se refiere a conocer de sala de 5 del Jardín de Infantes de escuelas de gestión
el grafismo, el sonido de los grafemas o el nombre de algunas privada de la ciudad de Mar del Plata, Argentina. Se entre-
letras (Adams, 1990; Compton, 2000; Ferreiro & Teberosky, vistó personalmente a los cuidadores o tutores legales de los
1984; Guardia, 2003; Muter, Hulme, & Snowling, 1997; Vellu- niños evaluados (en su mayoría fueron los padres o familia-
tino & Scanlon, 2002; Whitehurst & Lonigan, 1998). res directos). La muestra de niños estaba conformada por
Otra de las áreas de habilidades prelectoras exten- 53,4% de mujeres y 46,6% de varones. De los cuidadores
samente estudiada por su relación con el aprendizaje de la que participaron de la entrevista, el 89,7% fueron las madres
lectoescritura es la conciencia lingüística, se trata de una
�������
ha- y el 10,3% los padres de los niños. Todos informaron saber
bilidad metalingüística porque implica la reflexión y el control leer y escribir.
deliberado sobre el lenguaje (Garton Pratt, 1991). En este
dominio, se incluyen las habilidades de conciencia fonológica Instrumentos
y de conciencia léxica.
La conciencia fonológica se refiere a la reflexión Para la evaluación del contexto alfabetizador familiar
conciente sobre los sonidos de la propia lengua e implica un se utilizó una entrevista semiestructurada y precodificada de
conjunto de diferentes habilidades (Defior-Citoler, 1994). Nu- elección múltiple (3 a 6 opciones), denominada Evaluación
merosas investigaciones la consideran como la variable con del Contexto Alfabetizador (Piacente, Querejeta, Marder, &
mayor fuerza predictiva de la lectura inicial (Carrillo, 1994; Resches, 2003). La misma fue construida para éste y otros
Stanovich & Siegel, 1994; De Jong & Van der Leij, 1999; estudios de similar naturaleza (Piacente, Marder, Resches, &
Goswami, 2000; Stanovich, 2000; Vellutino & Scanlon, 2002). Ledesma, 2006). Este instrumento fue elaborado a partir de
La conciencia fonológica puede ser evaluada a través de tres la ‘Stony Brook Family Reading Survey’ (Whitehurst, 1992)
tareas: comparar sonidos, segmentar en fonemas palabras y de la ‘Stony Brook Family Survey for Elementary School’
presentadas como estímulo y unir fonemas para formar pala- (Whitehurst, 1997). ����������������������������������������
Esta entrevista evalúa diferentes dimen-
bras (Torgesen & Mathes, 2002). siones del contexto alfabetizador familiar; cada dimensión
La conciencia léxica se trata de la capacidad para o sub-escala se conforma de 7 ítems con respuestas en
identificar una palabra como un elemento lingüístico separa- formato escala Lickert en su mayoría. Las sub-escalas que
do del continuo del habla. Esta habilidad puede evaluarse a evalúan distintas dimensiones son: (1) Disponibilidad de re-
través de tareas en las que el niño debe aislar las palabras cursos materiales vinculados a la lectura: indaga la existencia
que componen una oración y reconocer qué palabras cortas y cantidad de libros en general, de libros específicos para los
conforman otra palabra más larga (Borzone, Rosemberg, niños y de papel y lápiz con los que se cuenta en el hogar.
Diuk, Silvestre, & Plana, 2004). Adicionalmente, se pregunta por la cantidad de personas que
En síntesis, las habilidades y conocimientos prelec- viven en la casa y por el idioma de la familia. Su importancia
tores constituyen un conjunto heterogéneo que permitirán al reside en que constituyen elementos de suma importancia
niño los primeros acercamientos con las formas propias de la para las interacciones con el lenguaje escrito. (2) Caracte-
lectura y la escritura y serán estos primeros contactos los que rísticas de hábitos y comportamientos del niño vinculados al
facilitarán los aprendizajes esenciales de la lectoescritura, a lenguaje escrito: indaga sobre aspectos referidos a frecuen-
su vez, estas habilidades se adquieren en la interacción del cia de actividades de lectura y escritura de parte del niño,
niño con contextos alfabetizadores que favorezcan el acceso disfrute de las actividades de lectura compartidas, preguntas
a las múltiples formas de la cultura escrita. referidas a letras y palabras y escritura del nombre propio y
Teniendo en cuenta que escasas investigaciones en otras palabras. (3) Nivel educativo de los padres o cuidado-
niños hispanoparlantes han explorado las relaciones entre el res: explora años de escolaridad aprobados. Adicionalmente,
contexto alfabetizador familiar y la adquisición de habilidades indagaba por el tipo de ocupación del cuidador. (4) Creencias
prelectoras, el objetivo de este trabajo fue explorar y describir y prácticas alfabetizadoras: se refiere a frecuencia e impor-
estas relaciones en un grupo de niños de 5 años de edad tancia concedida a actividades tales como cantar canciones
de Jardín de Infantes sosteniendo la hipótesis principal de y contar cuentos, enseñanza explícita de letras y números,
que el contexto alfabetizador familiar guarda relación con el ayuda en la preparación del material escolar.
rendimiento diferencial de las habilidades prelectoras de los Para la evaluación de las habilidades prelectoras se
niños. utilizó la versión en español del Get Ready to Read! Scree-
ning Tool (Whitehurst & Lonigan, 2003). El test se compone
de 20 ítems en donde el niño debe señalar dentro de un con-
Disponibilidad de recursos materiales en el hogar y adquisición * María L. Andrés, Lorena Canet-Juric, María M. Richard’s, Isabel Introzzi & Sebastián Urquijo 141
junto de 4 posibilidades presentadas en forma gráfica aquella quedaron conformados fueron: (1) Índice Disponibilidad de
correcta según la consigna del evaluador, de los cuales 10 Recursos (IDR), se denominó así al conjunto de ítems que
ítems corresponden a conocimiento de lo impreso y 10 a describían la disponibilidad de recursos materiales vincula-
conciencia lingüística. Específicamente 5 ítems evalúan co- dos a la lectura. (2) Índice Hábitos del niño en lectura (ILN),
nocimiento de lo escrito a través de consignas como ‘Algunos incluía características de hábitos y comportamientos del niño
niños escribieron cuentos. Encuentra el más largo’; otros 5 vinculados al lenguaje escrito. (3) Índice Nivel Educativo de
ítems evalúan conocimiento de letras, con consignas tales los Padres (IEP), estaba conformado por aquellos ítems que
como ‘Encuentra el dibujo que tiene letras’. Para conciencia describían el nivel educativo de padres y finalmente el (4)
fonológica se presentan 5 ítems con instrucciones como Índice Creencias y Prácticas alfabetizadoras (ICP), que eva-
‘Esta es una bola, y estos dibujos son: un caballo, un zapato, luaba tipo de creencias y frecuencia de prácticas alfabetiza-
una pared y una ola. Encuentra el que rima con bola’ y para doras en el hogar del niño. Se aplicó prueba de independen-
conciencia léxica se utilizan 5 ítems con consignas tales como cia Chi cuadrado para medir la asociación con el rendimiento
‘Estos dibujos son: un girasol, una raqueta, un zapato y una de habilidades prelectoras. Se realizó un Análisis Factorial
chimenea. Encuentra lo que obtienes cuando pones GIRA y Exploratorio del IDR, que es el que presentó asociaciones
SOL juntos’. La prueba se puntúa 1 si la respuesta señalada estadísticamente significativas con las habilidades prelecto-
es la correcta y 0 si se señala una respuesta incorrecta. El ras. Se analizaron las relaciones entre los niveles de dispo-
puntaje máximo posible es de 20 puntos. El instrumento pro- nibilidad de recursos materiales vinculados a la lectura y los
porciona información sobre distintos niveles de habilidades rendimientos de habilidades prelectoras. Para ello, se dividió
prelectoras utilizando para ello la sumatoria de los ítems cor- la muestra en tres grupos de acuerdo a la puntuación en el
rectamente respondidos a lo largo de la prueba, más allá del IDR, considerándose por debajo de un desvío estándar (-1
tipo de habilidad a la cual pertenezcan. Los distintos niveles DE) Baja Disponibilidad de Recursos, por arriba de un des-
refieren a: Nivel 1: escasas habilidades (de 0 a 4 habilidades). vío estándar (+1 DE) se consideró Alta Disponibilidad y para
Nivel 2: habilidades que están comenzando a desarrollarse aquellas puntuaciones ubicadas en el centro (-1 DE y +1 DE)
(de 5 a 8 habilidades). Nivel 3: habilidades que indican un Disponibilidad Media. Se aplicó la Prueba no paramétrica de
mayor progreso (de 9 a 12 habilidades). Nivel 4: habilidades diferencia de medias de Kruskal-Wallis (Kolmogorov-Smirnov
que indican una preparación medianamente elevada para (91)=160, p<0.001).
la lectura (de 13 a 16 habilidades). Nivel 5: habilidades que
indican una preparación suficientemente elevada para la lec-
tura (de 17 a 20 habilidades). La confiabilidad de la prueba de Resultados
habilidades prelectoras según la fórmula de Spearman-Brown
de bipartición fue =.69. El alfa de Cronbach fue .73. En relación al contexto alfabetizador familiar, respecto
a la disponibilidad de recursos materiales vinculados a la lec-
Procedimientos tura, los resultados de las encuestas indicaron que el 43% de
los hogares presentaron más de 40 libros de lectura, que el
Se pidió a los cuidadores un consentimiento por escrito 54% disponía tanto de televisor como de computadora y que
para permitir la participación de sus hijos en la investigación. en el 38,6% de los hogares se le permitía al niño utilizar la
Se aplicó la evaluación de habilidades prelectoras cuando se computadora. Sobre las características de hábitos y compor-
encontraban al inicio del segundo semestre de la sala de 5 tamientos del niño vinculados a la lectura, casi la totalidad de
del Jardín de Infantes en un aula de una institución destinada los niños (96,6%) no presentaba dificultades de comprensión
para tal fin. Se concertó previamente con los cuidadores un oral, solicitaban a los adultos del entorno que les lean libros
horario de reunión y se les administró de forma individual la de cuentos u otros materiales (86,1%) y hojeaban libros y
entrevista sobre contexto alfabetizador familiar en un aula de revistas por su cuenta dos o más veces a la semana (95,4%).
la escuela determinada. En relación al nivel educativo de los cuidadores, el 64,8% de
los informantes poseían entre 10 y 15 años de escolaridad,
Análisis estadístico un 20,5% informó ser profesional, un 4,5% técnico, un 23,9%
empleado de comercio, el 5,7% poseía un oficio, el 37,5%
Para el análisis de los resultados se utilizaron los re- de los informantes eran amas de casa y el 8% restante se
cursos de la estadística descriptiva e inferencial. Para facilitar encontraba desempleado o prefirió no contestar respecto de
la interpretación de los datos en función de los objetivos e su ocupación. Con relación a las creencias y prácticas alfa-
hipótesis planteados, se construyeron cuatro índices corres- betizadoras, el 65,9% de los padres indicó que enseñaban
pondientes a las dimensiones de la Evaluación del Contexto letras y números a sus hijos y el 66,7% a escribir su nombre
Alfabetizador. Para ello, se categorizaron los ítems otorgán- y otras palabras de uso cotidiano con una frecuencia de más
doles puntajes que variaban entre 1: escaso, 2: intermedio de dos veces por semana.
y 3: adecuado. Los puntajes de los ítems fueron sumados y En cuanto a las habilidades prelectoras, el 45,5%
luego divididos por la cantidad total de ítems para que fueran de los niños se encontraban en el Nivel 5, que implica una
equivalentes, ya que el número de ítems que integran el ín- preparación suficientemente elevada como para comenzar el
dice no eran idénticos para todos los casos. Los índices que aprendizaje de la lectura.
142 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 139-148.
Tabla 1. Niveles de habilidades prelectoras para los niños en sala de 5 del Jardín de Infantes.
acumulado
Total 88 100,0
Tabla 2. Asociación entre los Índices de Contexto Alfabetizador y las Habilidades Prelectoras según prueba de independencia
de chi-cuadrado.
Habilidades Prelectoras
Chi-cuadrado 11,659
Índice Disponibilidad de Recursos
Gl 4
(IDR)
Sig. ,020(*)
Chi-cuadrado 4,524
Índice Hábitos del niño en Lectura
Gl 4
(ILN)
Sig. ,340(a)
Chi-cuadrado 7,733
Índice Nivel Educativo de los
Gl 6
Padres (IEP)
Sig. ,258(a)
Chi-cuadrado 3,877
Índice Creencias y Prácticas
Gl 6
Alfabetizadoras (ICP)
Sig. ,693(a)
Relaciones entre los índices del contexto moderada (C de Pearson=0.347). La lectura de perfiles de la
alfabetizador familiar y las habilidades prelectoras tabla de contingencia nos indica que del 100% de los niños
con valores bajos en el IDR, solamente el 5.9% posee el ni-
De los cuatro índices construidos, solamente uno de vel más alto en las habilidades prelectoras, en tanto que del
ellos –el Índice Disponibilidad de recursos materiales (IDR)- 100% de los alumnos con valores altos en el mismo IDR ese
aparece asociado de forma estadísticamente significativa porcentaje es de 30.6%.
con los niveles de habilidades prelectoras. En el IDR, las A continuación, se presentan los resultados del Aná-
diferencias entre los niveles de habilidades prelectoras fue- lisis Factorial Exploratorio (AFE) del IDR con el objeto de
ron estadísticamente significativas χ2 (4, 88)= 11.65, p=0.02, evaluar los componentes de la estructura factorial del mismo
observándose una asociación directamente proporcional, es que, como se ha mencionado, es el único que mostró una
decir que a mayores valores del IDR mayores niveles en las asociación estadísticamente significativa con los niveles de
habilidades prelectoras. La fuerza de esta asociación resulta rendimiento en habilidades prelectoras.
Disponibilidad de recursos materiales en el hogar y adquisición * María L. Andrés, Lorena Canet-Juric, María M. Richard’s, Isabel Introzzi & Sebastián Urquijo 143
Tabla 3. Análisis Factorial Exploratorio de los ítems del Índice Disponibilidad de Recursos Materiales (IDR). Método de
extracción Factorización Alfa. Varianza total explicada de los 7 ítems del IDR para la muestra total.
Tabla 4. Comunalidades por Factor del Análisis Factorial Exploratorio de los ítems del Índice de Disponibilidad de Recursos
Materiales (IDR). Método de extracción Factorización Alfa.
La medida de adecuación muestral de Kaiser-Meyer- son los que explican el mayor porcentaje de varianza y
Olkin (KMO) evalúa la dependencia de las variables; como se corresponden a la disponibilidad y utilización de los medios
observa que el valor se aproxima a 1 (0.612) entonces tiene tecnológicos presentes en el hogar y a la disponibilidad de
sentido realizar el análisis factorial. Por otro lado, la Prueba materiales escolares didácticos y literarios.
de esfericidad de Bartlett indica que se contrasta la hipótesis
nula de que las matrices de correlaciones poblacionales son Niveles de disponibilidad de recursos y rendimiento
iguales a la matriz de identidad, lo que muestra que las varia- en habilidades prelectoras
bles se relacionan [χ2 (21, 88)= 216.95, p= ≤.01].
El análisis realizado permite identificar tres factores Para evaluar el rendimiento diferencial en habilidades
con autovalores superiores a 1 que explican el 73.32% de prelectoras según los niveles de disponibilidad de recursos
la varianza. Los factores I (Disponibilidad de medios tecno- materiales vinculados a la lectura, se aplicó la prueba de
lógicos) y II (Disponibilidad de libros y materiales escolares) Kruskal-Wallis. Los resultados se presentan en la tabla 5.
144 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 139-148.
Tabla 5. Prueba de Kruskal- Wallis para constrastes de medias de rendimiento en habilidades prelectoras y niveles de
disponibilidad de recursos.
Total 85
Habilidades prelectoras
Chi-cuadrado 10,478
Gl 2
a Prueba de Kruskal-Wallis
b Variable de agrupación: Índice Disponibilidad de Recursos Materiales (IDR)
Tabla 6. Estadísticos para la prueba U de Mann-Whitney de contrastes entre medias según nivel de disponibilidad de recursos.
Total 46
Habilidades prelectoras
U de Mann-Whitney 101,500
W de Wilcoxon 254,500
Z -3,333
Los resultados de los estadísticos de contraste mues- Para analizar qué grupos presentan diferencias entre
tran que existen diferencias estadísticamente significativas sí se aplicó la prueba U de Mann-Whitney para dos muestras
en los rendimientos de habilidades prelectoras para los independientes. Se utilizó la corrección de Bonferroni para
distintos niveles de disponibilidad de recursos materiales (χ2 controlar la tasa de errores tipo I (p<.017), la diferencia resultó
(2gl)
=10.478; p<.05). significativa entre los niveles bajo y alto (U=101,5; p<.017).
Disponibilidad de recursos materiales en el hogar y adquisición * María L. Andrés, Lorena Canet-Juric, María M. Richard’s, Isabel Introzzi & Sebastián Urquijo 145
Discusión niveles socio económicos y culturales bajos de los altos. El
acceso a la tecnología se relaciona directamente a las posi-
En este estudio nos propusimos evaluar la asociación bilidades de aprendizaje de la lectoescritura y, sin duda, al
entre el contexto alfabetizador familiar y el rendimiento en desempeño académico de los niños. Por lo tanto, debemos
habilidades de prelectura, considerando que otras investiga- insistir en el valor que tiene la tecnologización de las escue-
ciones han encontrado relaciones significativas entre estas las de gestión pública que atienden a los sectores más des-
variables (Bus e cols., 1995; Purcell-Gates, 1996). En este favorecidos de nuestra sociedad y que se caracterizan por el
trabajo, los resultados permitieron confirmar tan sólo la exis- escaso acceso a los medios tecnológicos que tienen impacto
tencia de asociaciones entre la disponibilidad de recursos directo sobre su educación.
materiales vinculados a la lectura en el hogar y el rendimiento
en habilidades prelectoras.
Nuestros resultados están en consonancia con traba- Referências
jos que plantean que la disponibilidad de medios culturales
-que comprende material escolar, material de lectura (en Adams, M. J. (1990). Learning to read: thinking and learning about
particular libros para niños) y medios tecnológicos- es un print. Cambridge, MA: MIT Press.
componente del contexto alfabetizador que posee influen-
cia en el rendimiento escolar (Echols e cols., 1996; Bowey, Baydar, N., Brooks-Gunn, J., & Furstenberg, F. F. (1993). Early
1995). Dentro de estos recursos, el que más se destaca en warning signs of functional illiteracy: Predictors in childhood and
la asociación con el rendimiento en habilidades prelectoras, adolescence. Child Development, 64, 815-829.
es el acceso a medios tecnológicos, como la computadora
y la televisión. Bussière y Gluszynki (2004) han reportado la Bazán-Ramírez, A., Sánchez-Hernández, B. A., & Castañeda-
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del niño con la escritura. Es evidente que la computadora
es un instrumento tecnológico portador de textos escritos, Borzone, A. M, Rosemberg, C. R., Diuk, B., Silvestre, A., & Plana,
de mayor valor motivacional que un libro en función de la D. (2004) Niños y maestros por el camino de la alfabetización.
inclusión de imágenes, animaciones, etc. Buenos Aires: Red de Apoyo Escolar.
No obstante, no todos los niños poseen el mismo nivel
de acceso a estos medios. Evidentemente diferentes nive- Bowey, J. A. (1995). Socieconomic status differences in preschool
les de exposición a materiales en el hogar, ofrecen distintas phonological sensitivity amd first-grade reading achievement.
oportunidades para el aprendizaje y, consecuentemente, Journal of Educational Psychology, 87, 476-487.
se reflejan en el rendimiento escolar. Existen estudios que
afirman que tanto la disponibilidad de material escrito como Bracken, S. S., & Fischel, J. E. (2008). Family reading behavior
la cantidad de libros en el hogar, poseen efectos significati- and early literacy skills in preschool children from low-income
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Sobre os autores
Correspondência
María Laura Andrés
Universidad Nacional de Mar del Plata, Facultad de Psicología, Dean Funes 3350, Cuerpo V, Nivel III (7600), Mar del Plata, Argentina.
148 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 139-148.
Un debate actual sobre la formación inicial de
docentes en México
Resumen
El ensayo plantea un debate inscrito en el contexto de las discusiones sobre una reforma de carácter oficial y nacional anunciada en México,
para la formación inicial de docentes. Dos posiciones son punto de partida; la primera consiste en concebir a la formación de docentes en tanto
proceso continuo, lo cual implica actuar desde una visión integral y sistémica sobre los programas de formación docente. La segunda posición
cuestiona las grandes y cíclicas reformas con las que se pretenden cambios radicales en subsistemas educativos nacionales y cuyas indeseables
consecuencias se describen en los estudios del campo. La discusión central del trabajo remite al papel de las prácticas escolares en la formación
inicial de docentes y está apoyada en literatura internacional sobre ese tema. El trabajo destaca la construcción de conocimiento sobre la
escuela y la docencia que desarrollan los sujetos involucrados en las prácticas: profesores de escuelas, docentes de instituciones formadoras
y estudiantes. Se plantea para el análisis la noción de “encuentro de dos culturas” la de escuelas de práctica y de las instituciones formadoras,
señalando tanto dificultades como beneficios reconocidos por estudiantes y profesores.
Palabras clave: Formación de profesores, educación, enseñanza.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 149-157. 149
De entre todas las actividades que son profesionales 19). Igualmente, en los Estándares Chilenos de Desempeño
o aspiran a serlo, la enseñanza es la única a la para la Formación Inicial de Docentes se propone que: “la
que se ha encargado la tarea formidable de crear formación inicial permitirá al futuro educador o educadora
capacidades y destrezas que permitirán a las [“. …”] enfrentar las primeras experiencias de enseñanza y
sociedades sobrevivir y tener éxito en la era de la [“….”] capacitarlo para emprender [“….”] la segunda etapa
información. de su formación que tendrá lugar durante toda su trayectoria
Hargreaves profesional” (MEC, 2000).
En el caso mexicano, ya se planteaba en un docu-
mento para la discusión nacional, posterior a la reforma de los
Introdução noventa a la educación normal1, que: “La formación docente
se concibe como un proceso de aprendizaje permanente,
Organizo el presente texto en tres partes, en la primera ya que las competencias y conocimientos que adquiere un
planteo en qué términos me referiré a la formación docente; maestro son resultado, no sólo de la formación inicial, sino de
en segundo lugar identifico algunas de las prioridades a revi- los aprendizajes que realiza durante el ejercicio de su profesi-
sar en este campo, en México y algunos países de la región. ón…” (Secretaría de Educación Pública, 2003, p. 12).2
Por último propongo considerar estas prioridades frente a los Así mismo, en los actuales planes de estudios para
retos que aún están pendientes en la formación de docentes la formación inicial en México, se reconoce a ésta como un
y la educación básica. momento de la formación docente. Se dice en uno de esos
Actualmente, podríamos coincidir en que, como pro- planes, que no todas las necesidades de formación se pue-
claman las más diversas voces, no es posible aspirar a me- den cubrir “de manera específica y con certeza, mediante la
jorar la calidad y equidad educativas, sin propiciar una mejor formación inicial, pero constituyen retos estimulantes para
formación, tanto de los futuros docentes como de quienes continuar la preparación docente, es decir, para asumir la
están en servicio. Sin embargo este entendimiento lleva tam- formación permanente durante el servicio” (Secretaría de
bién, en ocasiones, a responsabilizar al profesorado de los Educación Pública, 2004, p. 54).
“malos resultados” escolares que en nuestras latitudes con- De acuerdo con esta concepción de la formación do-
tinúan reportándose. Ya diversos estudiosos del tema han cente, en diferentes partes del mundo en la última década,
llamado la atención acerca de que no sólo se requieren me- se han promovido políticas tendientes al desarrollo de verda-
jores docentes, sino cambios profundos en las dimensiones deros Sistemas de Formación Continua. En éstos, las ten-
organizativas y de gestión de los sistemas escolares donde dencias más avanzadas proponen articular las perspectivas
prestan sus servicios. de formación inicial con las de la formación en servicio, sin
Por otro lado, debemos reconocer que es necesario perder de vista la especificidad de cada una.
el debate, el análisis y la revisión de propuestas orientadas a Es en este marco de la formación docente entendida
mejorar la formación docente en nuestro país y a ese respec- como un proceso continuo que ubico la presente exposición.
to comenzaré por ubicar en qué términos me referiré a ésta.
La literatura internacional acerca de cómo entender la Una prioridad en el campo de la formación docente:
formación de los maestros es muy vasta e incluye perspec- su necesaria relación con la práctica escolar.
tivas diversas; sin embargo, puede decirse que, en general,
hay ciertas coincidencias sobre algunos de los aspectos que Es conocida la perspectiva que en la formación de
deberían atenderse prioritariamente en este tema. los profesionales propone la importancia que para ésta tie-
Una de ellas es la necesidad de arribar a concep- ne la proximidad con la práctica. En el caso de los futuros
ciones y políticas integrales y sistémicas al tratarse de la for- docentes, se trata de la cercanía con la práctica profesional
mación de maestros. En ese sentido, una de las tendencias que tiene lugar en las escuelas. Para los profesores en ser-
que ha tomado fuerza en este campo, es la de concebir a la vicio, esta postura implica que los programas dirigidos a este
formación de docentes como un proceso continuo. sector, consideren la experiencia y conocimiento que ellos
Desde esa visión, el proceso formativo comienza aún desarrollan en el ejercicio cotidiano de la docencia, en lugar
antes de la formación inicial, prosigue en ésta y posterior- de suponer de antemano su incompetencia profesional (Enci-
mente, al ejercer la práctica profesional (Vaillant, 2002). Esta nas, 2005; Souza, 2007).
última, en términos de Schön, se trataría del denominado Por ahora sólo me remitiré a la formación inicial que,
“continum de la práctica” (1992), en el cual los sujetos desar- en mi perspectiva, tiene un papel importante en la historia
rollan conocimientos necesarios para el ejercicio profesional.
Ávalos (2000, 2004) revisa cómo, para la formación 1 Aquella en que se hacen los estudios y la práctica necesarios
docente chilena, esta idea, de la formación como proceso para obtener el título de maestro de primera enseñanza (Nota de
continuo, estuvo presente desde la sexta década del siglo revisión).
XX, aunque dice, es a partir de los noventa que “empiezan 2 En México, la formación inicial de los docentes se realiza en
a formularse políticas integrales de formación docente que las escuelas normales que tienen nivel de licenciatura, es decir, de
comprenden ambas etapas, la de formación inicial y la que educación superior equivalente a las carreras universitarias y con los
tiene lugar durante el ejercicio profesional.” (2000, pp. 18- mismos años de estudio.
150 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 149-157.
profesional de los docentes, como un trayecto donde se se dirige a quien está aprendiendo a conocer los espacios
introducen al conocimiento sistematizado de disciplinas aso- educativos escolares, así como a las herramientas culturales
ciadas con la educación y, parcialmente, a la práctica escolar y a profesionales existentes en ellos. En ese proceso están
y a la de enseñanza. apoyados por las materias de contenido teórico presentes
Sobre las prácticas escolares en la formación ini- también en el currículum de la formación inicial. Se trata con
cial, desde antes de las reformas realizadas en países de ello de colocar a los estudiantes en situación de aprendiza-
la región en los años noventa, se ha propuesto acercar de je, articulando las experiencias de la práctica con la teoría
una manera sostenida a los futuros profesores a las culturas respecto a la realidad escolar y a la enseñanza que en ésta
escolares donde ejercerán su profesión. Es decir, a la vida tiene lugar.
escolar tal como ésta sucede y al trabajo de los maestros en En ese sentido, los planes de estudio para la forma-
servicio para conocer y aprender de esa realidad. ción inicial en sus diferentes variantes en México, reconocen
Así, en diferentes partes del mundo, no sólo en Améri- explícitamente el carácter formativo de la experiencia de los
ca Latina, los planes de estudio para la formación inicial y los estudiantes en las escuelas de educación básica, como se
distintos programas articulados a esos planes, han otorgado dice en uno de ellos: “El futuro maestro [de educación es-
gran importancia al acercamiento de los futuros docentes pecial] se formará en las aulas de la escuela normal, en los
hacia las escuelas donde posteriormente ejercerán como servicios de educación especial y en las escuelas regulares
profesionales. Un supuesto de base que comparten estas de educación básica” (SEP, 2004, p. 56).
propuestas, aunque con diferentes matices y perspectivas te- Y continúa el mismo Plan:
óricas, es el de considerar que el aprendizaje de la docencia
tiene lugar de manera importante (aunque no exclusivamen- La observación y la práctica [de los estudiantes] no se realizan
te) en la práctica, en contacto con las condiciones reales de con el fin de calificar o criticar lo que sucede en el aula, ni de
la vida escolar y sus pautas culturales. identificar un modelo de docencia que se deba imitar; sino de
Algunos autores lo señalan de esta manera: registrar información para analizar y explicar las formas de
proceder de los maestros [“….”] y para reconocer prácticas
En el recorte temporal de los programas (de formación inicial) escolares adecuadas a las características de los grupos y de
debe acordarse un lugar sustancial a la formación práctica cada uno de los alumnos (SEP, 2004, p. 58).
en el medio escolar, prácticas de larga duración, contactos
repetidos y frecuentes con los medios de práctica, clases Así mismo, en todos los planes de estudio para la
centradas en el análisis de las prácticas, análisis de casos, formación inicial, se reconoce la importancia formativa que
solución de problemas concretos, etcétera. (Tardif, Figueroa, tiene para los estudiantes trabajar en los grupos de la escue-
Cividini, & Mujawamariya, 2000, p. 51). la básica al lado de un profesor “experimentado” de ese nivel,
llamado “tutor”, como lo señala uno de ellos:
Coincidiendo con esa posición, encuentro en mi pro-
pio trabajo que existen grandes posibilidades formativas al Se espera que los profesores [de escuelas básicas], cumplan
desarrollarse en esos términos la formación de los futuros una función de tutoría durante las observaciones y las prácticas
docentes; comenzamos ya a identificarlas y documentarlas educativas guiando a los estudiantes en los procedimientos y
en estudios de posgrado sobre el tema (Estrada, 2009; Es- en la toma de decisiones adecuadas [“….”] y transmitiendo
trada & Mercado, 2008; Hilario 2010)3. Sin embargo, hace sus saberes y experiencia… (SEP, 2004, p. 59).
falta más investigación para conocer cuáles son los procesos
formativos que realmente tienen lugar durante las prácticas En otros países de la región el planeamiento es seme-
escolares de los estudiantes de magisterio, más allá de las jante. Un reporte de Chile nos habla de que en este país, con
posiciones que niegan o afirman las ventajas que pueden la reforma de 1997, las actividades referidas a las prácticas
tener estas experiencias de práctica para su formación. escolares de los futuros docentes en el currículum “aumen-
En nuestro país, con el plan de estudios vigente, se taron desde aproximadamente un 8% en los años ochenta
ha propiciado el acercamiento paulatino de los futuros maes- hasta un promedio cercano al 20%” (Ávalos, 2004, p. 13).
tros a la realidad escolar y las prácticas de enseñanza en las Adoptar esa perspectiva en la formación inicial es
condiciones reales en las que ésta ocurre durante el último acorde, en términos generales, con lo que se plantea en
año de su licenciatura.4 La orientación de ese acercamiento actuales investigaciones sobre el papel de la práctica en la
formación de los profesionales, en particular de los docentes.
3 D eben también reconocerse y publicarse los estudios que en las Además de autores que se han ocupado específicamente de
propias instituciones formadoras se hacen sobre estos procesos y este tema (Ávalos, 2004; Espinosa, 2007; Mercado, 2002;
que aportan conocimiento que puede servir de base para mejorar las Rockwell & Mercado, 1986; Schön, 1992; Tardif e cols., 2000;
prácticas escolares en la formación inicial. Tardif, Lessard, & Lahaye, 1991), existen desarrollos teóricos
4 No existirían mejores “situaciones auténticas de aprendizaje” cuyo sobre el aprendizaje situado que permiten sustentar las pro-
diseño se propone en el nuevo modelo curricular para la formación puestas formativas apoyadas en la práctica escolar.
docente inicial que se elabora desde la Secretaría de Educación Por ejemplo, Lave y Wenger (1991) conciben el desar-
Pública (SEP) y al que me referiré más adelante. rollo del aprendizaje profesional asociado al proceso denomi-
Un debate actual sobre la formación inicial de docentes en México * Ruth Mercado Maldonado 151
nado “participación periférica legítima en las comunidades de Los anteriores planteamientos teóricos relativos al
práctica”, en el cual tienen lugar constantes negociaciones de carácter formativo de la práctica, que son tributarios, a su
significado entre los participantes de dichas comunidades. Así vez, de las antecedentes aportaciones de Vigotsky sobre
mismo, la formación profesional se concibe como un proceso aprendizaje,7 no niegan en forma alguna la necesidad de
inconcluso, como una carrera de vida en la que siempre se la formación teórica de los futuros profesionales. Plantean
encuentra presente la construcción de nuevos aprendizajes. en cambio, la imposibilidad de formarlos sin considerar de
Esos aprendizajes se producen en el intento por re- manera preponderante el papel de la práctica en ese proce-
solver los problemas reales que se presentan en la práctica so. Así lo explican claramente los actuales planes de estudio
(Lave, 1988; Lave & Wenger, 1991; McLellan, 1991; Schuba- para la formación inicial en el país.8
ver-Leoni & Grossen, 1992;) y que Schön llama conocimiento La actual formación inicial en México, próxima a los
en la acción (1992), Clandinin y Connelly (1996) conoci- anteriores planteamientos teóricos en cuanto a las prácticas
miento profesional y repertorios de la práctica, en el caso de escolares, aún no desarrolla todo su potencial, el cual he-
Wenger (1998).5 mos comenzado a identificar. Sabemos ya que las prácticas
Wenger (1998) señala, igualmente, que el desarrollo escolares vinculadas a las demás líneas curriculares de los
de competencias profesionales y destrezas para la solución planes de estudio en las normales, están generando proce-
de problemas de la práctica profesional tienen lugar en el pro- sos formativos importantes que es necesario reconocer, así
ceso de la participación en las comunidades de práctica. La como aquellos aspectos que deben mejorarse. Ambas cues-
participación periférica legítima es para Lave y Wenger (1991) tiones deben considerarse antes de tomar decisiones sobre
una manera de pertenecer a una comunidad de práctica. cambios curriculares a la formación inicial.
La participación, señalan dichos autores, deja de ser
periférica, cuando los profesionistas se integran a una comu- Las prácticas escolares de los futuros docentes:
nidad de práctica y se van convirtiendo, paulatinamente, en encuentro entre dos culturas, un añejo y a la vez
participantes centrales de la práctica profesional. La partici- actual reto en la formación inicial.
pación en las comunidades de práctica se puede dar de ma-
nera periférica mediante distintos niveles de aproximación; Uno de los aspectos más sensibles que hemos identi-
en nuestro caso, como sucede con las prácticas escolares de ficado en la formación inicial mexicana, con los actuales pla-
los estudiantes de magisterio. nes de estudio, se ubica en el espacio donde interactúan las
Por medio de las prácticas se tiene acceso a un espa- escuelas de formación y las de educación básica. Podemos
cio que no se encuentra completamente dentro, ni totalmente llamarlo el espacio del encuentro entre dos culturas, que
fuera de la comunidad de práctica (Wenger, 1998). De esa durante su historia han estado siempre en contacto, pero no
manera “Los maestros aprenden en las comunidades de de la manera actual. Le llamaría así, implicando que entre
práctica, en la participación periférica legítima…” (Lave & ambas culturas existe un espacio de construcción de proce-
Wenger, 1991). sos entre los sujetos participantes, más que una “laguna”
El repertorio de una comunidad de práctica, dice Wen- entre esos dos mundos como se le llama en otros estudios
ger, incluye rutinas, palabras, instrumentos, maneras de ha- (Marcelo, 1999, p. 6).
cer, relatos, gestos, símbolos, géneros, acciones o conceptos En el caso de México, este encuentro intercultural,
que la comunidad ha producido o adoptado en el curso de su tiene lugar a lo largo de la licenciatura, principalmente du-
existencia y que han pasado a formar parte de su práctica. rante las prácticas de pre-profesionales de los estudiantes,
Incluye el discurso por el que los miembros de la comunidad en los dos últimos semestres de los ocho que conforman a la
crean afirmaciones significativas sobre el mundo, además de formación inicial.
los estilos por medio de los cuales expresan sus formas de Al interactuar estas instituciones, ahora ambas conce-
afiliación y su identidad como miembros (Wenger, 1998). bidas como espacios de formación, se desarrollan complejos
Habría tres posiciones en las que coinciden los auto- procesos de negociación de significados (Wenger, 1998) en-
res antes señalados: a) el aprendizaje tiene un carácter social tre los sujetos involucrados, de aportaciones e intercambios
y personal; b) el aprendizaje es construido; c) la construcción mutuos, encuentros y desencuentros, entre otros. Estos pro-
del aprendizaje tiene lugar en situaciones determinadas de cesos ocurren en las relaciones que tienen lugar durante las
la práctica social; es decir, que el aprendizaje se desarrolla prácticas entre los asesores y estudiantes de las instituciones
durante los procesos de participación en las comunidades formadoras por un lado, y por otro, los tutores o maestros
de práctica. Podríamos agregar, como en las escuelas, si las de las escuelas de práctica; estas tres figuras constituyen lo
pensamos en términos de comunidades de práctica.6
7 Para Vigotsky el elemento fundamental de los cambios de los
5 Un desarrollo más amplio sobre estas aportaciones teóricas sujetos radica en la relación que éstos establecen con la sociedad y
referidas, en su caso, a la apropiación de nuevas propuestas la cultura (Cole & Scribner, 1978).
pedagógicas por los docentes puede verse en Espinosa (2007). 8 No por ello podrían calificarse de “empiristas” como lo hacen
6 Estas ideas están desarrolladas con mayor amplitud en el estudio algunos especialistas que proponen ahora su derogación. Además
de Estrada (2009) sobre las prácticas de pre-profesionales en la de tratarse de un término peyorativo, desde él se ignora que la
formación inicial. ciencia misma trabaja con lo empírico, tanto como con la teoría.
152 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 149-157.
que algunos autores denominan la tríada de las prácticas de enseña y cómo se aprende a enseñar, las cuales pueden di-
formación inicial (Wilson, 2006).9 ferir de las que proponen los maestros de formación inicial.
Una de las cuestiones que hemos documentado al es- Por otro lado, aunque los tutores acepten a un es-
tudiar las relaciones entre estas tres figuras es, por ejemplo tudiante de magisterio en su grupo, y muchos lo hagan con
cómo, desde la institución formadora asesores y estudiantes entusiasmo, no siempre existe claridad sobre los límites de
tratan con dificultades de ajustarse a los ritmos y las nece- esa función. Los tutores perciben que es un trabajo agregado
sidades propias del trabajo en las escuelas de práctica. En a las innumerables actividades que ya deben cumplir cotidia-
algunos casos, desde el espacio de la formación se percibe namente.
que las formas de enseñanza de los profesores tutores son Los estudiantes, por su parte no parecen creer que
diferentes a las que llevan los estudiantes para practicar. es posible aprender de lo que ocurre en los grupos donde
Suele también aspirarse, desde la institución forma- practican y de cómo sus tutores ejercen la docencia. Suelen
dora, a que los tutores adopten los modelos de enseñanza decir que no pueden llevar a cabo la enseñanza como se les
que aquella diseña con sus estudiantes, o que les permitan propone en las normales, porque los tutores no aprecian que
practicar de acuerdo con esas propuestas. También se es- así mejore el aprovechamiento de los alumnos.
cucha en los espacios de formación que es difícil para los Sin embargo, asesores de normal, tutores de escue-
estudiantes aprender a ser maestros con tutores que, por las básicas y estudiantes de magisterio, han desarrollado du-
ejemplo “aprovechan” su presencia para “encargarles el gru- rante más de diez años las prácticas escolares, participando
po” mientras atienden otras tareas. así en procesos formativos cuyos contenidos es necesario
Aquello que los formadores desearían para las prác- reconocer.
ticas de sus estudiantes, proviene de lo que les demanda Los asesores de prácticas en las normales por ejem-
su plan de estudios, así como de sus propias percepciones plo, han construido lo que podríamos llamar una verdadera
sobre cómo deberían ser la escuela básica y la docencia. especialización dentro de las funciones académicas de la
En diversas latitudes se presentan percepciones se- normal. Han aprendido, en muchos casos, cómo llegar a
mejantes hacia las escuelas de práctica, desde las institucio- acuerdos con los profesores tutores sobre la conducción de
nes formadoras, como se dice en la siguiente referencia: “Los los estudiantes.
centros de formación inicial de docentes, han desarrollado Igualmente, como asesores han aprendido a conocer
tradiciones, formas de trabajo y adoptan posiciones sobre las distintas posibilidades de los estudiantes frente a los pro-
cómo deben ser la formación y la docencia, que son diferen- blemas que enfrentan al practicar la enseñanza bajo condi-
tes a las de los maestros de escuelas de práctica” (Tardif e ciones reales, así como a encontrar los mejores apoyos para
cols., 2000, pp. 54-57). cada caso. También han aprendido que la vida y el trabajo
En general, en los centros de formación inicial se asu- en las escuelas de práctica imponen condiciones a veces no
me que es ahí donde se enseña a ser maestro y que en las imaginadas a las prácticas de los estudiantes ante las cuales
escuelas sólo se practica lo aprendido, creencia que proviene ellos deben conducirlos.
de anteriores perspectivas sobre la formación inicial y la prác- Por lo que toca a los tutores, muchas veces se han in-
tica docente cotidiana. volucrado en las prácticas de los futuros docentes de manera
Los profesores de las escuelas de práctica, a su cercana, apoyándolos en sus dificultades ante los grupos.
vez, se encuentran inmersos en tareas diferentes a las de Encuentran entre los repertorios de su experiencia, recursos
las instituciones formadoras. Ellos trabajan ante prioridades qué compartir con los estudiantes en términos de que se
y necesidades distintas a las que enfrentan los maestros y inicien en la acción docente; por ejemplo, para ser capaces
estudiantes de la formación inicial; tienen plazos para llegar de construir con los niños acuerdos de convivencia y trabajo
a determinadas metas con sus alumnos. Deben llegar al fin en el aula (Estrada, 2009). O bien identificando el valor que
de cursos tratando de alcanzar las metas esperadas con sus puede tener para su propia formación lo que llevan los estu-
alumnos, más que guiar a los estudiantes de magisterio. Sa- diantes, como el acercamiento a las tecnologías informáticas,
ben que en última instancia los únicos responsables de los para ellos un tanto ajenas hasta entonces (Hilario, 2010).
resultados finales de sus alumnos son ellos mismos, ante las Para los estudiantes, las prácticas escolares también
autoridades y los padres de familia. representan situaciones de aprendizaje, pues reportan expe-
En todo caso, la tutoría a los futuros docentes no es rimentar procesos de cambio en sus expectativas sobre el
prioritaria en el trabajo de los profesores de escuelas básicas, trabajo docente. Describen, cómo a lo largo de ese período
ni tendría por qué serlo, sólo pueden orientarlos como otra de en las escuelas, muchas veces transforman sus ideas inicia-
sus tareas. Además, tienen sus propias ideas sobre cómo se les acerca de la enseñanza y la vida escolar, o de los sujetos
que en ella participan, así como de los procesos que tienen
lugar entre ellos. En esas descripciones logran identificar, en
9 Destaco a estos tres sujetos como los que intervienen en el diseño ocasiones, aquello que han aprendido y que es diferente a lo
y decisiones que orientan las prácticas en lo pedagógico, aunque en que conocían desde la normal.
las prácticas escolares para la formación inicial hay otros importantes Los estudiantes reconocen haberse orientado inicial-
participantes, como los alumnos de las escuelas básicas, los padres mente en sus prácticas, por expectativas negativas hacia la
de familia, los directores de escuela, entre otros. escuela y sus tutores, así como haber anticipado una simpli-
Un debate actual sobre la formación inicial de docentes en México * Ruth Mercado Maldonado 153
cidad en la enseñanza muy alejada de su real complejidad, sabemos con qué resultados hasta ahora. Haría falta cono-
que posteriormente empezaron a comprender (Estrada, cer más sobre lo que ha ocurrido con las prácticas escolares
2009). en la formación inicial durante más de una década y con las
Sin embargo, las experiencias y procesos formativos cuales se pretendió acortar el abismo entre esa formación y
sobre la docencia donde participan las tres figuras de la trí- la realidad escolar.
ada de las prácticas, son aún poco reconocidos10 y aprove- En cambio, cuando se habla de los cambios nece-
chados en los espacios que deberían dedicarse a ello en la sarios para mejorar la formación inicial en nuestro país, lo
formación de los estudiantes. que suele proponerse en los últimos años, es el traslado de
Por ejemplo, el trabajo en las normales sobre las ex- esa formación a los espacios universitarios. A ese respecto,
periencias formativas de los estudiantes en las escuelas de debíamos saber o recordar que esa medida, no ha implicado
práctica tendría que aproximarlos a la investigación, ya muy por sí misma, mejorar las áreas más críticas de la formación
vasta actualmente, que da cuenta de los procesos que consti- inicial en los países que así lo han hecho, por ejemplo, Chile.
tuyen a las escuelas y a la enseñanza, inscritas en contextos La relación entre la formación teórica y práctica, así como
sociales particulares donde ellos ejercerán su profesión y no las posibilidades de encuentro productivo entre la institución
sólo a los modelos de lo que ellas deben ser. formadora y las escuelas de educación básica, no son pro-
Se trataría de que los futuros docentes conocieran los blemas resueltos en los países que han hecho ese traslado,
procesos de construcción de conocimiento, de reproducción, ni en aquellos donde la formación docente se ha hecho prio-
pero también de creación y aún de innovación que tienen lu- ritariamente en las universidades.12
gar en esas escuelas y que puedan reconocer las situaciones Pese a lo anteriormente expuesto, en el sentido de
que dentro de ese ámbito, en algunos casos constriñen, pero que aún tenemos un camino por recorrer, para contar con
en otros posibilitan el ejercicio docente significativo.11 más y mejor conocimiento sobre los procesos formativos que
Así lo señalan los autores de un trabajo sobre este se han construido en las normales para los futuros docentes
tema que nos dicen: en nuestro país, parece que estamos frente a una nueva re-
forma, por cierto, no anunciada oficialmente. Es por ello que
En los Estados Unidos y Canadá se cuentan actualmente hablando de prioridades en la formación de docentes plante-
varios millares de investigaciones efectuadas en las [aulas aría una más, sólo que a manera de pregunta:
de escuelas básicas]. Este movimiento (de investigación) se
basa en el reconocimiento de que los maestros de oficio La reforma a la formación inicial ¿es ahora una
son poseedores de saberes (conocimientos, competencias, prioridad?
actitudes) que la investigación debe esforzarse en actualizar
y en integrar a los programas de formación inicial. (Tardif e ¿Por qué ahora una reforma a la formación inicial?
cols., 2000, p. 53). Habría, como en toda reforma, innumerables razones que
podrían argumentarse por quienes la promueven. No obs-
No obstante, los asesores, poco se detienen en los tante, sabemos que un Estado no emprende la reforma cur-
seminarios donde podrían apoyar más fuertemente las prác- ricular de un subsistema de la importancia de la educación
ticas de los estudiantes, pues actualmente deben priorizar la normal en México, sólo por motivos académicos, sino que los
elaboración del documento recepcional, dados los lineamien- tiempos políticos influyen de manera importante en este tipo
tos a ese respecto del plan de estudios vigente. Con ello, se de decisiones.
provoca que los asesores, vean limitadas sus posibilidades Por otro lado, se ha planteado entre los documentos13
de dedicarse con sus estudiantes a desarrollar análisis más que circulan de manera informal acerca de esa reforma, que
formativos sobre los problemas pedagógicos con los que és- una de las razones por las que ésta se justifica es la de vincu-
tos se encuentran durante sus prácticas. lar la formación docente inicial con la reforma a la educación
La negociación entre estas dos culturas a que me básica actualmente en proceso.
he referido, se ha dado con matices muy diferentes en cada Sin embargo, esta reforma a la educación básica, está
lugar, con mayores frutos y procesos favorables en algunos efectivamente aún en proceso y algunos de sus componen-
casos y desfavorables o frustrantes en otros.
De cualquier manera, el comienzo de un acercamien- 12 Se aduce también que así se terminaría con la “endogamia”
to más provechoso desde la formación inicial que tome lo de las normales, aunque se desconoce que, por ejemplo, desde
mejor de las prácticas docentes cotidianas ha tenido lugar, no la reforma de 1984, el personal docente universitario en esas
instituciones haya aumentado paulatinamente. Además, habría otras
10 Marcelo (1999) plantea, en cambio, que la historia entre las formas de promover una mayor cercanía entre las normales y el
escuelas primarias y las de formación docente en las prácticas sistema de educación superior universitario.
de enseñanza, se caracterizan más por los desencuentros y la 13 “Modelo Integral para la Formación Profesional y el Desarrollo
ignorancia recíproca, que por una colaboración entre ambas. de Competencias del Maestro de Educación Básica.” Y “Modelo
11 También deben actualizarse las asignaturas teóricas del Curricular para la Formación Profesional de los Maestros de
currículum de formación inicial con las aportaciones científicas más Educación Básica.” Ambos del 2010 y marcados como de “Circulación
recientes, así como las didácticas especializadas. interna” de la Secretaría de Educación Pública.
154 Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 149-157.
tes podrían hacerse del conocimiento de los estudiantes de de una realidad frente a la cual los maestros deben estar
magisterio sin cambiar los planes de estudio vigentes. preparados. No obstante, ya escuchamos voces autorizadas
Además, la reforma a la educación básica está por y análisis sustentados que nos alertan sobre los riesgos de
mostrar sus posibilidades de consolidarse como una reforma suponer que estas herramientas representan la solución a
con la calidad y consistencia pedagógica suficientes, lo que nuestros problemas pedagógicos. Nos previenen sobre los
no se ha mostrado en su proceso de elaboración y de imple- riesgos de suponer que la disponibilidad implica acceso y nos
mentación. Este proceso ha implicado un debate nacional aún recuerdan que los beneficios de toda herramienta dependen
abierto sobre la pertinencia de esa reforma en la perspectiva del uso social de que sean objeto y que, en el caso de la
en que se está desarrollando y que ha sido cuestionada en escuela deberán estar al servicio de la docencia y el apren-
diversos foros y congresos educativos nacionales desde las dizaje, no al revés.
más diversas voces. Se dice y tal vez sea posible, que la escuela será otra
Por su parte, la formación docente, tanto la inicial en la era de la informática, no obstante, literatura reciente nos
como la llamada continua, ha sido objeto de importantes re- recuerda que:
formas prácticamente en todo Latinoamérica en las dos últi-
mas décadas (Gatti, 2008). Chile, particularmente, es en ese La institución escolar vive la paradoja de la época con la
aspecto, uno de los países de la región, que cuenta con una instalación de la sala de cómputo mientras el techo se cae y
experiencia más consolidada y documentada desde la instau- no hay dinero para pagar mejor a los docentes; tensionada
ración entre 1996 y 1997 del Programa de Fortalecimiento de entre los múltiples proyectos, programas, propuestas y
la Formación Inicial Docente. Se crearon ése y otros muchos objetos de diverso tipo que aterrizan en la escuela; atareada
programas y políticas como la emisión de los Estándares de ésta tratando de armar el rompecabezas de la última reforma
Desempeño para la Formación Docente. Así mismo, se de- y hacer sentido del conjunto y tan ocupada con todo ello que
sarrollaron programas de profesionalización para todos los no le queda tiempo para dedicarse a lo esencial: repensar
profesores universitarios dedicados a la formación docente, mientras se hacen, la enseñanza y el aprendizaje (Torres,
que salieron al mundo a realizar posgrados. 2000, p. 10).
También se conformaron organismos que velaran por
la calidad de los procesos de formación y se ha promovido la Es verdad que la creciente introducción de las nuevas
discusión nacional sostenida en diferentes ámbitos del país; tecnologías a la escuela representa otros retos a la formación
todo lo cual ha permitido la consolidación de la reforma. Ello inicial de docentes y aún más complejos para los profesores
ha sido así, pese a los necesarios debates, ajustes y tal vez en servicio. Pero también es cierto que no podemos plante-
algunos desencuentros, inevitables, cuando se trata de un arnos la introducción de estos recursos sin vincularla con los
campo tan estratégico socialmente. retos que aún no superamos en la educación básica. Algunos
En general, las reformas educativas se plantean de ellos son:
grandes y cíclicos cambios bajo el supuesto de que todo La enseñanza efectiva de la alfabetización inicial y las ma-
lo anterior debe ser sustituido por diferentes e innovadoras temáticas
prácticas (Viñao, 2001) y no han sido la excepción aquellas La apropiada atención pedagógica a los alumnos de escuela
que han pretendido revolucionar a la formación inicial de do- con grupos multigrado
centes. Sin embargo, hemos ya comenzado a aprender que La atención pedagógica a los alumnos multirepitentes
no es mediante ese tipo de reformas que conseguiremos los La evaluación pedagógica de tipo procesual
cambios deseados. La interculturalidad en la escuela y el aula
Ahora sabemos que los procesos de cambio toman La inclusión educativa en condiciones que realmente la posi-
mucho tiempo para introducirse y consolidarse en las rea- biliten en las aulas.
lidades educativas, que esos procesos deben promoverse Se trata de cuestiones referidas a la docencia, pero
bajo perspectivas integrales y desarrollarse a la par que no remediables sólo por ella. Ciertamente deben atenderse
programas de acompañamiento permanentes y evaluación desde la formación inicial, pero su solución transita por cam-
constante de sus componentes, entre otras cosas. bios administrativos, de gestión y de política educativa más
Cada reforma identifica nuevos “retos” y prioridades, generales que promuevan por ejemplo:
ya sean los de la centuria o aún los del milenio. Y es verdad El eficaz acompañamiento pedagógico para los docentes en
que en la formación continua de docentes, no sólo en la inicial, servicio
nos enfrentamos a retos muy actuales, porque se dan en el Aligerar las cargas administrativas y de gestión para los do-
presente, pero se asientan sobre otros muy añejos. Son retos centes de manera que el tiempo de enseñanza sea mayor y
que no hemos superado, a pesar de que reformas, acuerdos de calidad.
nacionales, así como reuniones de expertos, foros y congre- Incorporar el uso de las tecnologías de la información a la
sos nacionales e internacionales van y vienen sin tregua. formación inicial vinculando su uso a los problemas pedagó-
Actualmente, con frecuencia planteamos, por ejemplo, gicos ya reconocidos y no resueltos.
que un nuevo reto para los futuros maestros y los que están Introducción a la educación básica de las tecnologías actua-
en servicio, es la incorporación y el uso de las herramientas les desde las realidades escolares, vinculando su uso a las
tecnológicas en la escuela y no podemos negar que se trata experiencias docentes de los profesores.
Un debate actual sobre la formación inicial de docentes en México * Ruth Mercado Maldonado 155
Promover y posibilitar los tiempos y condiciones instituciona- Cole, M., & Scribner, S. (1978). Introduction, in Vygotski L. Mind in
les para el trabajo colegiado, entre otros. Society. The Development of Higher Psychological Processes.
España: Editorial Crítica.
Para finalizar
Encinas, M. A. (2005). Voces magisteriales en torno al Programa
Finalmente, insistiré en que es necesario reconocer Nacional para la Actualización Permanente de los Maestros de
que adscribirnos a los discursos que cíclicamente se pre- Educación Básica en Servicio (PRONAP). Tesis de maestría,
sentan como innovadores, no implica mejorar los procesos Departamento de Investigaciones Educativas del Centro de
educativos en nuestras escuelas. Es necesario además, Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico
seguir considerando las realidades escolares que no hemos Nacional, México.
conseguido cambiar y que, por persistentes y reiteradas a
muchos pueden parecerles simples o “naturales.” Una rápi- Espinosa, T. E. (2007). Los maestros y la apropiación de nuevas
da adscripción a discursos de época que crean nuevas no- propuestas pedagógicas. Estudio etnográfico de la incorporación
menclaturas en educación, como la de competencias (Gatti, de una reforma para la alfabetización inicial en la primaria. Tesis
2008), en ocasiones nos impiden reconocer los cambios más doctoral en CD, Departamento de Investigaciones Educativas del
profundos que debemos promover en el trabajo escolar y en Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto
la formación docente. Politécnico Nacional, México.
Como nos propone Torres:
Estrada, R. P. (2009). Formación inicial en la normal: Construcción de
No se trata de un mero cambio del “rol docente” sino de significados de maestros y estudiantes en las prácticas preservicio.
un cambio profundo del propio modelo escolar; no hay Tesis de doctorado. Departamento de Investigaciones Educativas
posibilidad de que los docentes asuman un nuevo rol del Centro de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto
profesional en el marco de un orden escolar atrasado, rígido Politécnico Nacional, México.
y jerárquico, pensado para docentes-ejecutores, no para
docentes reflexivos, creativos, autónomos (2000, p. 11). Estrada, R. P., & Mercado, R. (2008). Procesos de negociación
de significado en una escuela normal mexicana. Psicología &
Un nuevo profesionalismo docente no se construye Sociedade, 20(3), 391-401.
en el vacío, sino apelando a la mejor docencia que nos ha
sido legada por generaciones de maestros, así como a las Gatti, B. A. (2008) Análise das políticas públicas para formacao
nuevas aportaciones que la ciencia y la tecnología ofrecen continuada no Brasil, na última década. Revista Brasileira de
para un mejor trabajo escolar. Y con todo ello los nuevos Educacao, 13(37), 57-70.
docentes deberán hacer sentido de la paradoja de nuestro
tiempo y nuestra región: construir calidad y equidad “des- Hilario, C. N. (2010). Las prácticas escolares de estudiantes de
de las limitaciones de la pobreza y las posibilidades de la magisterio: entre la normal y la primaria. Tesis de maestría (en
tecnología, pero también desde las posibilidades de aquella proceso), Departamento de Investigaciones Educativas del Centro
y las limitaciones de ésta” En ese proceso los docentes de- de Investigación y de Estudios Avanzados del Instituto Politécnico
ben “identificar lo bueno a mantener y lo bueno a incorporar, Nacional, México.
siempre aprendiendo” (Idem: 27), lo cual es indispensable en
cualquier profesión que pretenda contribuir para los cambios Lave, J. (1988). La cognición en la práctica. España: Paidós.
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