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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

LICENCIATURA EM HISTÓRIA DA ARTE


UC DE HISTÓRIA DA ARTE PORTUGUESA NO MUNDO

EXERCÍCIO – NOTA DE LEITURA

Nome: Inês Maria Lima Delgado


Texto analisado: Dias, P. (1999). O Espaço do Índico (séculos XV-XIX). História da Arte
Portuguesa no Mundo (1ª ed., pp. 314-354). Navarra, Espanha: Círculo de Leitores.

Nota de leitura: O presente livro, em linhas gerais, aborda descrições muito pormenorizadas
dos monumentos e obras de arte construídas pelos portugueses no seu imenso império,
estudando, a fundo, todas as disciplinas no campo da arte e a influência da arte portuguesa
noutras culturas, que nunca estiveram sob domínio político-militar português, mas que
alteraram profundamente os sistemas de produção artística. Deste modo, o objetivo
fundamental deste trabalho é a estética que levámos, para além do mar, para terras habitadas
ou desertas, e que, aí, praticamos à nossa usança, com tudo o que resultou da miscigenação da
arte europeia com a arte das gentes com quem convivemos. Neste sentido, foi-me atribuída a
parte do volume na qual são estudados fenómenos artísticos, entre os séculos XVI-XVIII,
resultantes da gesta dos descobrimentos marítimos e da nossa expansão territorial,
procurando apresentar e analisar a fundo algumas obras indo-portuguesas de ourivesaria,
joalharia - prática muito adotada no mercado ocidental, dado que muitas destas peças eram
levadas para Lisboa e de lá para outros países europeus, e não só, sendo cada vez mais rara e
tardia a compra direta nas Índias -, do mobiliário, dos tecidos e da escultura de marfim, que
ainda se encontram conservadas no nosso estimado país, bem como a presença portuguesa
no Ceilão. Assim sendo, foi precisamente na joalheria que o gosto portugues teve menos
peso, pois ficaram logo maravilhados com a riqueza e qualidade destes materiais, sobretudo
quando eram acompanhados de pedras preciosas, como rubis, diamantes e esmeraldas.
Em tese, todas estas obras refletem a fusão das formas e funções ocidentais com as técnicas
tradicionais hindus ou mongóis, isto é, o intenso intercâmbio existente entre a Índia e as
praças portuguesas, caracterizando-se pela sua temática comum religiosa, muito influenciada
pela estética europeia e presente em diversos trabalhos executados para o consumo local,
numa época em que a fé cristã se expandiu pela Europa, de que são exemplos crucifixos,
relicários, estantes missais e rosários, ou simplesmente objetos do quotidiano, como cofres,
caixinhas, leitos, pentes, escudos, mesas, bandejas, cadeiras, contadores, entre outros. Estes
definem-se, fundamentalmente, por transmitir uma componente simbólico-alegórica, isto é,
valoriza-se mais os símbolos espirituais, sendo o principal a santa cruz, a sobrecarga
ornamental, de cariz maioritariamente vegetal (em especial, os cachos de uvas, associados à
eucaristia) e geométrico, com a repetição de linhas retilíneas e curvilíneas (uma espécie de
“horror ao vazio”) e o valor intrínseco dos materiais, principalmente do ouro, da prata, do
filigrana, do metal, da jade, do marfim, do cristal de rocha, da concha de tartaruga e da
madrepérola, antigamente chamada chanco, (teve no Zagurate uma enorme difusão devido à
sua característica peculiar de causar um fenómeno ótico iridescente pela sua estrutura
lamenar), em relação à anatomia humana e ao naturalismo, escassos, devido à falta de estudo
dos mesmos, sendo os únicos exemplos disto as imagens de querubins, santos, da Virgem e
de Cristo Redentor, pois a mensagem salvífica e a espiritualidade sobrepunham-se ao
realismo e ao carnal da vida terrena, marcada pelo conservadorismo. Ademais, a utilização
continuada do ideário da Antiguidade nesta cronologia, ainda que com pontuais alterações
que acentuam e confirmam o seu vigor, comprova a força e a eficiência do legado visual
clássico, nomeadamente da arquitetura, reconhecendo-o como património cultural do
Ocidente europeu, facto notório pela representação de pórticos greco-romanos, compostos
por entablamento, sobre o qual costuma assentar um frontão triangular, e colunas.
No que diz respeito às artes do mobiliário, foi aqui que o Oriente e o Ocidente se uniram de
forma mais consistente, na qual as técnicas e a decoração variavam consoante a região na
península ibérica, resultando numa rede alargada de estéticas contrastantes, quase sempre
bastante exóticas, refletindo, acima de tudo, o encontro entre duas culturas com formas
distintas de ser, viver e encarar o dia a dia. Geralmente, tratavam-se de peças destinadas aos
interiores cristãos, como de igrejas e sacristias, mas, também, ao enobrecimento dos espaços
privados e habitacionais portugueses que participaram na expansão ultramarina, o que levou a
uma adaptação face às exigências dos clientes, com costumes e vivências muito diferentes
das do povo oriental, e, consequentemente, ao aparecimento gradual de novas manufaturas
no seio da praça portuguesa, com novos tipos de móveis criados de raiz, ou outros antigos
sujeitos a modificações. Os principais centros de fabrico de mobiliário eram em Goa,
Cambaia, Surrate, Sinde, Chaul, Baçaim, Tana, Mombaim e Cochim, onde se produziam
milhares de peças exportadas para outras regiões da Índia por artífices especializados, ou
seja, não era em Portugal que existiam estas oficinas, mas na povoação indígena, cujo meio
de subsistência era o mercado artesanal. Por conseguinte, os móveis indo-portugueses podem
abranger inúmeros tamanhos e variadas tipologias, como domésticos, para as casas nobres,
sendo os mais comuns: os contadores, “descendentes” dos congéneres portugueses levados
para o Oriente, cujos desenhos afastaram-se dos modelos originais, ganhando uma autonomia
própria bastante diversificada; os leitos (os leitos de sissó torneados ganham grande
importância nos séculos XVII e XVIII, juntamente com os espaldares, tornando-se dos
principais produtos exportados para o reino) ou castres, por norma lacados e pintados, com
uma estrutura em madeira e/ou metal dourado a azougue para a decoração profusa, tão
própria destes objetos de luxo, incluindo a arte têxtil na sua execução, não só para enriquecer
a peça, mas por razões de conforto e proteção; os escritórios, também de funcionalidade
europeia, uma caixa paralelepipédica com várias gavetas destinadas a guardar documentos e
uma tampa móvel, para colocar sobre a mesa, identificado pela sua decoração mogol,
delicada, rica e utilitária, muitas vezes fabricado no Zugarate; as gavetas-escritório, de
dimensões reduzidas, leves e portáteis, porém resistentes e fortes; o ventó, com uma única
porta que abre lateralmente, expondo as gavetas, iguais ou diferenciadas, funcionando como
porta-jóias ou cofre; as arcas, simples ou abundantemente decoradas, firmes às intempéries
das viagens marítimas, ou mais frágeis, apenas destinadas aos interiores nobres; o cofre ou a
arqueta, com modestas dimensões, de fácil transporte e com forma abaulada na tampa, uma
inovação portuguesa introduzida no Oriente; o bufete e a banca, muito encomendados pelos
senhores, e as cadeiras, um móvel do ambiente quotidiano comum que chegou cedo a
Portugal. Os oratórios têm um caráter devocional, apesar de serem usados em casa e não em
espaços públicos de culto, o que leva à sua integração no mobiliário doméstico. Por último,
temos o mobiliário litúrgico, no qual se inserem os arcazes de sacristia, os cadeirais, as
estantes de coro, os tocheiros, ainda que, por vezes, com características da cultura hindu, e as
estantes de missal, habitualmente, em talha baixa trabalhada em pau-santo.
Como já foi referido, a presença portuguesa na Índia provocou alterações na produção local e
a arte têxtil não foi exceção, o que levou à rentabilização desta atividade e ao ajuste das
formas com um cunho mais europeu, de modo a cativar os homens do Ocidente. Ao contrário
do que muitos pensam, os tecidos asiáticos não alcançaram as praças europeias através da
chegada de Vasco da Gama à Índia em 1498, mas, sim, facilitou o transporte dos materiais
que até aí eram raros e a preços extremamente elevados. Na verdade, a rota da seda era já
milenar, iniciando-se as trocas de algodões estampados indianos, dos tapetes iranianos e
afegãos, das sedas e das telas preciosas com o Mediterrâneo, tornando-os motivo de ofertas
régias por ser uma arte demorada, exímia em técnica e em decoração. Os principais pontos de
embarque eram Goa e Cochim, de onde saíam as armadas do reino para Portugal receber os
panos do Norte da Índia, de Cambaia e de Bengala. Também em Chaul, Baçaim e Diu se
praticava esta arte, com destino à exportação e à clientela luso-indiana, sendo muito típica a
utilização dos panos da China para as cerimónias civis e religiosas e dos damascos do Médio
Oriente, adornando sempre as igrejas, principalmente nos frontais de altar, até mesmo as mais
pobres, devido à sua sumptuosidade estética que anima o suporte parietal, de caráter narrativo
e figurativo (por vezes caricaturado, com cenas de caça, de festas, montaria e fábulas da
Antiguidade), acompanhados de elementos simbólicos (como da heráldica), sendo que as
técnicas de pintura e os produtos utilizados variam de acordo com as condições e os estilos
locais. Ainda inserido neste tema, temos as vestes litúrgicas, executadas no Oriente, com
origem na Índia, sobretudo as de linho decoradas com bordados a fio de seda ou de prata e
ouro, em alto-relevo, e as bandeiras processionais feitas, muitas vezes, em veludo. Em suma,
pode-se dizer que os tecidos que chegavam com as naus da Índia foram as obras de arte mais
apreciadas pelos portugueses. Tal sucesso deveu-se à organização da produção, ao comércio
eficiente, mão de obra e materiais abundantes e a preços acessíveis, bem como ao esforço
pela adaptação às temáticas e gostos ocidentais.
O interesse de Portugal pela ilha de Ceilão manifestou-se desde o tempo de D. Francisco de
Almeida, devido à extensa produção de canela, ao grande número de elefantes e de pedras
preciosas, das quais se destacava o rubi, o que levou, em 1518, com Lopo Soares de
Albergaria, ao primeiro estabelecimento duradouro de um protetorado sobre este reino,
resultando em ações militares até se afirmar, só na década seguinte, o domínio português, que
se estendeu por mais de um século, até ao final da conquista das nossas praças pela Holanda.
Agora, a presença portuguesa limitava-se à missionação, sobretudo nas zonas rurais, onde se
conservavam modestas igrejas, as quais se perderam com a conquista holandesa de 1655,
sendo a Ordem de Santo Agostinho a que mais templos teve. Outro momento importante em
Ceilão foi o do tempo de Matias de Albuquerque, a quem Filipe II, em 1591, mandou
fortificar Manar, que constituiu um importante ponto de apoio à conquista e manutenção das
fortalezas cingalesas, sendo as cidades com estruturas mais complexas Colombo, Gale
(necessária para o controle do comércio com o golfo de Bengala) e Jafanapatão, cuja cidade e
reino foram conquistados por Constantino de Sá, em 1618, muitas construídas por
cabouqueiros e pedreiros portugueses e compostas por resistentes couraças, extensos muros
de pedra e cal ao longo da baía, inúmeras igrejas, baluartes, etc. Havia, ainda, outras
fortificações complementares no sistema defensivo de Ceilão, de que são exemplo a de
Caliture (1630), a de Negumbo (1635), a de Baticalá (iniciado em 1619, durante o tempo do
vice-rei conde de Redondo), a de Triquilimale - um dos melhores portos, pelo que agradou,
desde cedo, à Coroa portuguesa -, terminada em 1626 por Constantino de Sá, que acabou por
falecer dez anos mais tarde, atrasando o começo da fortificação do porto de Beligão somente
para 1663, somando a difícil situação económica em que o Estado da Índia se encontrava.
Naturalmente, e concluindo, quando se fala no Ceilão não podemos excluir a importante
produção artística de esculturas e cofres de marfim, feitos para o mercado europeu e,
particularmente, para o português, por norma decorados com pedras preciosas
(principalmente ouro, rubis e safiras), de tamanhos versáteis, de temas históricos, militares e
políticos, com símbolos emblemáticos, nos quais se cruzam as linguagens tradicionais
ocidental e oriental, muitas vezes constituindo ofertas régias para as classes mais abastadas,
em virtude da sua plástica excecional, da imaginária luso-cingalesa, pelo tratamento delicado
e preciso, ainda que estilizado e simples, das figuras religiosas que comunicam pelo olhar,
deveras expressivo, tal como os pregueados dos mantos, com iconografias próprias, e
poses/feições menos duras e estáticas do que a das congéneres indianas, nas quais se denota,
por vezes, influência chinesa.

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