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10612021 4613
ARTIGO ARTICLE
do cuidado singular ao enfrentamento do machismo?
Abstract Mental health problems have great in- Resumo Os problemas de saúde mental têm
ternational health relevance. From a multifacto- grande relevância sanitária internacional. De na-
rial nature, the health conditions considered here tureza multifatorial, tais condições de saúde, aqui
as suffering are influenced by social elements such consideradas como sofrimentos, são influenciadas,
as the construction of masculinity, notwithstan- inclusive, por elementos sociais, como a constru-
ding the evident increasing criticisms and strug- ção da masculinidade, em que pese as críticas e
gles against male sexism. Given this setting, the lutas cada vez mais evidentes contra o machismo.
paper addresses male mental distress and its care, Diante deste cenário, este artigo aborda o sofri-
based on a literature review, according to BVS mento mental masculino e seu cuidado, a partir de
research, and considering the 2010-2020 period. uma revisão da literatura, tendo como base a BVS
Twenty-two papers were selected from the resear- e considerando o período de 2010 a 2020. Foram
ch. The results of the study were organized into selecionados 22 artigos. Os resultados do estudo
these categories: Characteristics/Particularities of foram organizados em torno das categorias: Ca-
men’s mental distress; Access/Way of seeking help racterísticas/Particularidades do sofrimento men-
by men in distress and approach/Care of men in tal de homens; Acesso/Modo de procura por ajuda
mental distress. We can conclude that there is a de homens em sofrimento e Abordagem/Cuidado
need for more visibility for the relationship betwe- de homens em sofrimento mental. Conclui-se ha-
en masculinity and suffering and their care speci- ver necessidade de mais visibilidade para a relação
ficities, considering the existence of an apparent entre masculinidade e sofrimento mental e suas
silent crisis, the right of men (as people) to care, especificidades no âmbito do cuidado, consideran-
and the possible contribution, albeit indirect and do a existência de uma aparente crise silenciosa, o
modest, of addressing men’s distress to the fight direito dos homens (enquanto pessoas) ao cuidado
against machismo. bem como a possível contribuição, ainda que indi-
1
Secretaria Municipal de Key words Men, Masculinity, Mental Health reta e modesta, da abordagem do sofrimento dos
Saúde do Rio de Janeiro.
R. Afonso Cavalcanti 455, homens para a luta contra o machismo.
Cidade Nova. 20211-110 Palavras-chave Homens, Masculinidade, Saúde
Rio de Janeiro RJ Brasil. Mental
rafaelpereirasilvam@
gmail.com
2
Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro RJ Brasil.
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Silva RP, Melo EA
Pesquisa inicial:
. Após leitura de títulos:
345 artigos
excluídos 306 artigos
encontrados
Incluídos: 22
artigos
Figura 1. Pesquisa bibliográfica realizada com os descritores men; masculinity; psychological distress; mental
health e stress, psychological na BVS Brasil, com seleção por título, idioma (português, inglês e espanhol) e ano de
publicação (2010 a 2020).
nor esteve presente em 26,5% das mulheres e Fleming et al.18 mostraram, a partir de entrevistas
em 17,5% dos homens14. Além disso, há também com homens do México e dos EUA, que sintomas
autores brasileiros que afirmam que padrões do- depressivos estavam associados a atitudes misó-
minantes de gênero podem levar homens a silen- ginas. Embora devido à natureza exploratória
ciar questões de saúde15 (o que vai ao encontro do estudo não se possa definir assertivamente a
da ideia da “crise silenciosa”) e também levar relação temporal e de causalidade entre sintomas
mulheres a falarem e se queixarem mais de ques- depressivos e atitudes misóginas, os autores deste
tões ligadas às emoções. Contudo, há aqueles que estudo acreditam que um melhor entendimento
defendem que as diferenças de prevalência não dessa relação pode levar a desfechos positivos
são necessariamente produto de subdiagnóstico tanto em homens quanto em mulheres.
na população masculina. Ludermir et al.16, por Há que se destacar que não se pretende des-
exemplo, apontam que tais diferenças podem responsabilizar os homens perpetradores de vio-
decorrer de desigualdades de gênero, as quais po- lência doméstica ao descrever a possível relação
dem produzir impacto negativo na promoção de com o sofrimento mental, mas sim discutir um
saúde mental de mulheres, que tendem a sofrer potencial (e relevante) impacto positivo da abor-
com a dupla jornada e a ainda presente desva- dagem de saúde mental de homens que transcen-
lorização no mercado de trabalho. Nós conside- de o alívio do sofrimento em si.
ramos que o machismo incide sobre a sociedade Apesar de ter-se percebido uma tendência en-
como um todo, o que leva a evidentes efeitos de- tre os autores de relacionar padrões hegemônicos
letérios na vida de mulheres e que também parece de masculinidade a efeitos negativos sobre a saúde
afetar negativamente a saúde mental de homens. mental de homens15,16,19,20, observou-se também
Portanto, entendemos que o reconhecimento da uma tendência que pode ser entendida como de
maior prevalência de transtornos mentais em relativização ou até de oposição a essa visão21-25.
mulheres não exclui a possibilidade de existência Destaca-se o trabalho realizado por Wong et al.22
do sofrimento não reconhecido em homens. que, a partir de uma perspectiva multidimensio-
Embora homens pareçam sofrer “em silên- nal da construção da masculinidade, identifica-
cio”, há evidências de que não sofrem sozinhos. A ram que a conformidade com determinadas nor-
partir da análise de dados da 2002 National Sur- matizações em subgrupos específicos de homens
vey on Drug Use and Health (pesquisa realizada pode estar relacionada tanto positiva quanto ne-
nos EUA), constatou-se que homens que come- gativamente com estresse psicológico – há que se
teram violência doméstica reportaram necessida- dizer que o subgrupo denominado como “toma-
des de saúde mental não tratada duas vezes mais dores de risco desapegados” (do inglês “detached
do que aqueles que não cometeram17. Além disso, risk-takers”) que está, de forma geral, em confor-
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midade com normas mais sexistas e patriarcais, sofrimento. Destaca-se o estudo conduzido por
apresentou maior sofrimento psicológico. Ainda Keohane e Richardson24 que, a partir da realiza-
no sentido de se perceber as construções como ção de grupos focais cujos participantes eram ho-
multidimensionais, McKenzie et al.23 estudaram o mens com maior risco para suicídio ou que exer-
estabelecimento de conexões sociais por homens ciam o papel de “gatekeepers” da comunidade,
e a mobilização de redes de suporte. Os autores fizeram observações relevantes no que diz respei-
identificaram padrões diversos e, embora alguns to à procura, ao recebimento e ao fornecimento
entrevistados tenham demonstrado formas de re- de ajuda. Os pesquisadores observaram que os
lacionamento mais instrumentais e menos emo- homens consideravam invariavelmente o efeito
cionalmente colaborativas, outros apresentaram que as questões psicológicas podem ter sobre a
padrões de conexão social positivos para a saúde masculinidade. Percebeu-se que normas cultu-
emocional. Nesse sentido, destaca-se o alerta feito rais como conter emoções e manter a “firmeza”
por Shafer e Wendt25 para que as atitudes tradi- frente à adversidade estavam muito presentes
cionalmente percebidas como masculinas não se- entre os participantes. Reconhecer ou admitir o
jam automaticamente percebidas como negativas problema foi visto como o primeiro passo mais
já que, na perspectiva dos autores, algumas des- difícil. Observou-se, ainda, que a busca por ajuda
sas características como a de serem “orientados à depende de boas conexões feitas no ambiente fa-
ação”, e “focados em objetivos” poderiam ser úteis miliar, no trabalho e nos esportes e que, embora
no tratamento. Ainda nessa direção, Whitley21 os homens se reconheçam também no papel de
destaca um fenômeno descrito como “culpabi- “ajudantes”, eles demonstraram receio em não ter
lização da vítima” (do Inglês “victim-blaming”), a capacidade necessária para a ajuda.
em que se culpabiliza homens por agir em con- Há que se destacar que, para além do fato de
formidade com padrões de masculinidade, atri- homens em geral buscarem auxílio para questões
buindo-se o sofrimento a esse comportamento e mentais menos do que mulheres26,27, há subgru-
desconsiderando-se a complexidade do fenôme- pos de homens que tendem a acessar o auxílio
no que envolve o contexto social e determinantes menos do que outros. Parent et al.27 observaram,
de saúde. Essa visão é entendida como simplista e a partir da aplicação de questionários em uma
reducionista e transcendê-la parece ser uma ne- amostra de homens americanos, que a procura
cessidade quando se pensa no cuidado de homens por ajuda (definida no estudo como contato com
em sofrimento mental24. profissional de saúde mental ou de serviço social
nos últimos 12 meses) foi maior entre homens
Acesso/Modo de procura por ajuda brancos, homossexuais, solteiros, idosos e com
de homens em sofrimento depressão mais proeminente.
Autores de um estudo realizado em diversos
Apesar de se reconhecer a existência de inter- países da Europa apontaram que fatores socio-
seções entre questões referentes às particularida- econômicos parecem exercer influência na pro-
des do sofrimento mental do homem e o modo cura por serviços de saúde. Porém, segundo os
de busca por ajuda, alguns dos estudos incluídos autores, embora os papéis sociais de homens e
nesta revisão abordam de forma direta o acesso mulheres exerçam influência no acesso, esse im-
ou o modo de procura por ajuda de homens em pacto é variável de acordo com o país estudado26.
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