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Uma Mente Inquieta: Uma análise do livro a partir das dimensões da

psicopatologia de Foucault.

Faculdade Princesa do Oeste (FPO)


Bacharelado em Psicologia, 5º semestre.
Psicopatologia I
Samuel Dônovan Alves Ribeiro do Nascimento

Em um primeiro momento, quando pensamos psicopatologia de uma forma


superficial, geralmente nos deparamos com duas vias de pensamento: a biológica, onde
encontramos sintomas e manifestações daquilo que é considerado interno no âmbito do
palpável, e a psicológica, onde isolamos o sofrimento do indivíduo em questões internas e
conflitos emocionais cujos quais ele mesmo há de combater ou pelo menos ressignificar. Mas
até que ponto se separa a patologia do próprio sujeito? Em que momento ocorre a dissociação
do saudável com o patológico?

Em “Uma Mente Inquieta”, somos convidados a pensar na psicopatologia através do


olhar do próprio sofredor, onde a autora, uma autoridade na área de estudos acadêmicos em
transtornos afetivos do humor, narra a sua própria experiência com a Psicose Maníaco-
Depressiva, além de como a própria doença fez e faz parte de sua história, orbitando entre
momentos de crise e júbilo que fazem notável o sedutor caráter de sua condição. É claro que,
o objetivo não é romantizar a psicopatologia e os episódios de catarse que a crise maníaca em
específico pode proporcionar, mas sim de evidenciá-la, torná-la mais sólida no momento em
que a autora, como diziam os antigos chineses, embeleza essa fera. Nesse sentido, é
navegando por sua própria condição que Kay denuncia o estigma ainda reproduzido e que nos
leva a pensar através do prisma bidimensional supracitado, mostrando que, a doença maníaco-
depressiva modifica o estado de humor ao mesmo tempo que estimula comportamentos
aterrorizantes, destruindo o que anteriormente se embasava a racionalidade no pensamento e,
consequentemente, afetando negativamente o desejo de viver. Assim, mostra-se que não é
possível ou suficiente pensar em psicopatologia apenas por lentes biológicas ou psicológicas,
visto a completude do humano e como o sofrimento pode apresentar-se de diversas formas
perante o sujeito.
Ainda nessa perspectiva multifacetada da psicopatologia, Foucault nos dá espaço para
uma discussão mais aprofundada sobre todos seus aspectos, uma vez que deixa bem claro que
essa condição de “doença” vai muito além do tangível, indo além do que se observa no doente
de forma que o próprio desenvolve seu sofrimento através da forma como se relaciona com o
mundo, tanto em sentidos históricos que representam sua personalidade quanto em sentidos
existenciais, como essa pessoa se vê diante de sua condição de humano. Assim, no livro,
vemos que a mania afetou Kay não de maneira repentina, da noite pro dia, há aqui um
desenvolvimento da patologia que se constrói de maneira dialógica à construção da própria
autora como sujeito. A partir disso, o que de fato torna essa manifestação possível? O que,
partindo das dimensões da psicopatologia trazidas por Foucault, representa esse ponto de
ruptura na vida de Kay?

Dessa forma, de acordo com a sua descrição biográfica, vemos que a infância da
autora foi um período recheado tanto de regras e seriedade, quanto do conforto trazido por
uma estabilidade e acolhimento dos pais. Por ter se desenvolvido em um ambiente quase que
estritamente militar, a dureza imposta no cumprimento daquilo que era considerado correto
fazia parte de sua vida. Portanto, mesmo que corriqueiramente em meio a mudanças advindas
do trabalho de seu pai, o “andar pela linha” e talvez a impressão que o entusiasmo irreverente
de seu pai iria continuar sempre daquele jeito mantinha aquela criança igualmente
entusiasmada e curiosa “sob controle”. Entretanto, logo no início do livro, somos
apresentados à uma das primeiras experiências que quebram essa visão fantasiosa de
estabilidade cristalizada que a vida militar poderia trazer: Kay, ainda criança, presencia a
morte de um piloto militar que sobrevoava nas proximidades do pátio de sua escola, cujo qual
escolheu se sacrificar para preservar as vidas das crianças que ali estavam, incluindo a própria
Kay. Sendo seu pai também um piloto militar, a realidade da autora é perturbada pela
realidade da morte e os perigos que os fascínios da liberdade no céu tão exaltados por seu pai
poderiam trazer. Posteriormente, essa realidade é posta ainda mais em cheque, quando em um
processo de mudança devido à um novo cargo no emprego de seu pai, a família se afasta do
núcleo militar anteriormente estabelecido e se põe em frente a uma realidade mais caótica e
turbulenta na Califórnia.

Assim, é nesse cenário desconfortável e inédito que se apresentam os primeiros


indícios de uma crise maníaco-depressiva. De um lado, uma rotina em um ambiente escolar
diferente, ainda acostumada com os trejeitos de uma sociedade militar e a convivência com
seus antigos amigos, a menina se sentia deslocada na frente de outros adolescentes, por outro
lado, um espaço familiar diferente, uma vez que a o pai, centrado e sempre animado, passa
por transtornos de humor que mudam completamente o seu semblante alegre e calmo. A partir
disso tais mudanças são sentidas em todo o núcleo familiar e principalmente em Kay, a qual
admirava a figura paterna e familiar que sempre a impulsionava em direção a seus objetivos
com relação a medicina, proporcionando todo o acolhimento necessário em seu
desenvolvimento.

Desse modo, a primeira crise maníaca de Kay aparece de forma até mesmo leve e
agradável, no sentido de proporcionar um entusiasmo e um sentimento de que tudo pode ser
feito naquele exato momento, um transe diante das próprias divagações e na dificuldade de se
expressar com seus amigos e familiares. Assim, até dado momento, a crise ainda possuía em
sua manifestação um caráter prazeroso. Entretanto, a sua mente, anteriormente uma aliada
para lidar com situações tediosas, passa a se tornar uma inimiga quando sufoca a própria Kay
com esses pensamentos, levando-a para um estado contemplativo da morte que questiona o
sentido da sua própria existência. Nesse sentido, há um deslocamento naquilo que se fazia
ordem anteriormente, o ponto de ruptura que consequentemente leva as primeiras aparições
do transtorno na vida de Kay está representado nesse caos repentino. Assim, de certa forma,
existe uma ameaça de morte para o seu self, no sentido que tudo aquilo que anteriormente foi
construído se vê em risco de desmoronamento.

Ainda nessa linha de pensamento, de acordo com as dimensões da psicopatologia de


Foucault, vemos que o self do indivíduo sempre caminha em uma direção que permita uma
perpetuação de si mesmo, ou seja, nunca há totalmente uma ausência de razão ou abolição
total dos sentidos. Assim, Foucault evidencia o aspecto positivo presente em uma patologia,
cuja qual ao mesmo tempo que inibe certos comportamentos e condutas evolutivamente
aprendidos, também realça modos de agir mais arcaicos e simples do desenvolvimento
humano. Portanto, em uma primeira análise é possível ver características dessa dimensão
evolutiva dentro do sofrimento vivido por Kay, de forma que, a partir do ponto de ruptura
supracitado e representado na perda da estabilidade representada na figura de seu pai, o self
da autora se vê diante de uma realidade insuperável. Desse modo, o self de Kay, atormentado
com essa realidade, utiliza-se de um recurso de regressão evolutiva para auxiliar nesse
momento, o que acaba trazendo à tona certos sintomas referentes à estágios anteriores de seu
desenvolvimento. Dentre essas características, podemos observar a falta de concentração e de
foco em um só objetivo. Aqui, o pensamento acelerado, a enxurrada de ideias e
possibilidades conversam com uma visão infantil de um mundo sem limites, onde tudo é
possível, fantasioso e causador de euforia, mesmo que os outros não compreendam muito
bem.

Certamente é possível compreender que as situações adversas foram essenciais para a


manifestação dos sintomas de Kay. Entretanto, o que de fato torna essa regressão possível
para a autora em específico? Foucault destaca que a angústia é característica primeira da
existência, porém quais os motivos que levaram essa angústia a evoluir para uma
psicopatologia? Para isso, é necessário que analisemos o recurso de regressão existente na
psicopatologia através também da dimensão histórico individual do indivíduo, ou seja, sobre
quais elementos do passado e construção individual de Kay articulam quem ela foi, quem ela
é e quem ela não pode ser nesse momento de ruptura. Nesse sentido, como ela iria se adaptar
àquela realidade tão diferente? E seus amigos? E o mais importante, como sua família, agora
visivelmente abalada, poderia a auxiliar a lidar com suas dificuldades? Com vista nos
acontecimentos subsequentes de sua primeira crise maníaca, é possível notar que a distração
eufórica no trabalho e na produtividade acadêmica remetem a uma maneira de lidar com a
desestabilização e a mudança caótica de rotina, algo que anteriormente já fora vivenciado
como forma de lidar com a turbulência gerada pelos humores sombrios do pai na mudança
para a Califórnia. Essa característica é ainda mais acentuada no decorrer de seu
desenvolvimento acadêmico e profissional, de forma que enquanto Kay está distraída
pensando, escrevendo ou até mesmo cavalgando desenfreada em um cavalo, o ensurdecedor
caos gerado pela inquietação da mudança de rotina pelo menos por um momento, cessa.
Dessa forma, analisando sua patologia através do prisma histórico-individual, se faz possível
perceber como a regressão para um estado eufórico e desconcentrado característico da mania
não é originário, ou seja, o recurso identifica-se como uma manobra já apresentada
anteriormente, na qual a insuportabilidade do ponto de ruptura faz urgente que apareça outra
vez, preservando o self e a noção de continuidade da identidade do doente.

Diante do que foi exposto, podemos entender como a angústia evidenciada pela
condição maníaco-depressiva de Kay interagem com seu self e a induzem a uma regressão em
seu sentido histórico-individual e evolutivo. Entretanto, do que se trata realmente essa
angústia? Como se organiza a causa de seu sofrimento? Foucault afirma que, além de
aproximar-se dos sentidos de uma psicopatologia pela via das dimensões evolutivas e
histórico-individuais, é necessário entender, através de um exercício fenomenológico, a
essência do sofrimento através dos olhos do doente, em sua dimensão existencial. Nesse
sentido, na mania de Kay, o passado, presente e futuro estão todos interligados e fazem parte
do mesmo momento: agora. Não existem limites nos cartões de crédito, a necessidade de
precaver-se de uma imensa invasão de cobras é iminente, tudo o que precisa ser lido pode e
deve ser lido nesse exato momento, não há tempo para refletir, somente agir. De início, há
uma sensação de onipotência causada pela euforia, a capacidade de perder a timidez, de
cativar outras pessoas, a sensualidade e principalmente um grande aumento na produtividade.
Porém, ao mesmo tempo que a mania a inebria, também carrega um sofrimento e depressão
na medida em que ela percebe a falta de controle que sua condição pode acarretar. Ideias vem
e vão, sentimentos pulsam, caminhos nunca antes imaginados se fazem possíveis. Porém, ao
término desse processo, vêm as dúvidas, as consequências, a preocupação no rosto dos
amigos, um casamento com um homem admirável desmoronando, será que é realmente isso
que ela sempre quis? Dentre essas complicações, vem o lítio como uma maneira eficaz de
tratar seus episódios maníaco-depressivos. Entretanto, mesmo com as alucinações sombrias e
tentativas de suicídio, seguir a prescrição médica e fazer uso do medicamento significaria
abandonar o “lado bom” da mania, ao entrar em um estado de eu "normal", morreria a Kay
alegre, produtiva, expansiva e efervescente.

Em suma, a inquietação e busca por emoção já fazia parte da vida da autora, de forma
que a mesma já se encontrava em um estado dependente daquela sensação. A angústia gerada
a partir disso é justamente ligada a esse sentimento de impotência diante do dilema do qual,
no decorrer de sua vida, o pensamento acelerado e a capacidade produtiva foram elementos
essenciais e sempre presentes em suas vivências, perdê-los ou negar ser levada por eles
significaria negar a própria Kay e lidar com as consequências do mundo sem crises maníacas.

Portanto, “Uma Mente Inquieta” traz inquietações e relatos essenciais para que
possamos compreender as dimensões de uma psicopatologia, além de fazer perceber a
importância de um olhar fenomenológico da doença, não se reduzindo a explicações rasas que
inferiorizam o indivíduo afetado por uma psicopatologia. Ademais, é interessante notar como
todos os aspectos da condição maníaco-depressiva afetam Kay de uma maneira ou outra,
navegando por seus estados mais eufóricos, alucinados, depressivos e desesperados
produzindo significado para suas vivências. Dessa forma, as elucidações trazidas pelas
dimensões Evolutiva, Histórico-Individual e Existencial servem como lentes que fazem
perceber sua patologia de maneiras diferentes, não excludentes, mas sim complementares.

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