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Letícia Cesarino

AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR? temporalidades não lineares

DOSSIÊ 2
no neoliberalismo autoritário brasileiro e sua infraestrutura digital

Letícia Cesarino*

O artigo aborda como a inflexão populista-autoritária do neoliberalismo global tem ganhado tração no Bra-
sil ao se friccionar com sua densidade histórica pós-colonial, marcada pela disjunção entre ideais liberais,
igualitários e universalistas, e uma realidade social desigual e particularista. Volta-se especialmente à con-
vergência infraestrutural entre neoliberalização e plataformização, que, ao consolidar uma temporalidade
paradoxal de crise permanente, abre espaço para ressonâncias com “forças e poderes” que também operam
de forma não linear, segundo a metafísica da desordem, como os diversos modos de nostalgia, milenarismo
e tradicionalismo que acompanham a ascensão da direita radical pelo mundo. Argumento a partir de dois
momentos do bolsonarismo: o messianismo populista nas eleições de 2018 e sua rotinização paradoxal en-
quanto governo parasítico na pandemia da Covid-19, que opera numa temporalidade de exceção. Sugere-se
que, diante da deriva iliberal do neoliberalismo contemporâneo, o bolsonarismo lança o Brasil à vanguarda,
colocando as ideias “de volta no lugar”.
Palavras-chave: Neoliberalismo. Plataformização. Brasil. Bolsonarismo. Crise.

INTRODUÇÃO parecia, assim, fadado ao destino paradoxal de


ser o país de um futuro que nunca chega.
Em 1977, o crítico literário Roberto Entretanto, hoje, mesmo esse horizonte
Schwarz (2014) publicou seu conhecido ar- de futuro parece se desfazer. Como alguns têm
gumento do liberalismo como “ideia fora do argumentado, os efeitos precarizantes e deses-
lugar” no país escravocrata que era o Brasil tabilizadores de décadas de hegemonia neoli-
do século XIX, com todo seu legado histórico beral vêm universalizando a disjunção notada
de desigualdades arraigadas, transversais aos por Schwarz para os próprios países “centrais”
domínios econômico, racial, de gênero e de (Comaroff; Comaroff, 2011). A temporalidade
regionalidade. A condição pós-colonial bra- linear do progresso que sustentava o paradig-
sileira seria caracterizada por uma disjunção ma da modernização vem se desestruturando
persistente entre uma realidade social desigual diante do acirramento das contradições da
e personalista, e uma normatividade política globalização neoliberal, levando consigo a es-
universalista e igualitária (o progresso, a de- cala hierárquica global baseada em noções de Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

mocracia liberal) que está sempre em outro lu- desenvolvimento e subdesenvolvimento que
gar (a Euro-América, o Norte global).1 O Brasil prevaleceu durante boa parte do século XX
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(Ferguson, 2006). Entre as reverberações dessa
reorganização espaço-temporal está a ascensão
* Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Depar- da chamada pós-verdade e da direita populis-
tamento de Antropologia e Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social (PPGAS). Centro de Filosofia e ta pelo globo, a partir de 2008. Antes, vistos
Ciências Humanas (CFH). como característicos de democracias subde-
Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima –
Bairro Trindade. Cep: 88040-400. Florianópolis – Santa senvolvidas, notadamente na América Latina,
Catarina – Brasil. leticia.cesarino@ufsc.br
https://orcid.org/0000-0001-7360-0320 movimentos populistas, inclusive com fortes
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Schwarz (2014) não utiliza o termo pós-colonial. A leitu- derivas iliberais ou fascistas (Connolly, 2017),
ra de que seu texto avança um tipo de crítica pós-colonial,
específica às contradições próprias da história brasileira proliferam também em grandes democracias li-
em que o componente da colonialidade interna sempre foi
central (Cesarino, 2017), é minha. berais do Norte global. Teorias da conspiração,

https://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.44377 1
AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

negacionismos e fake news vicejam nos países Connolly já houvesse identificado o papel das
berço da ciência moderna, notadamente a par- mídias eletrônicas, o deslanche do processo de
tir da pandemia da Covid-19 iniciada em 2020. plataformização da internet só se daria após a
Este ensaio se alinha com análises que crise financeira de 2008 – mesmo marco que
sugerem que a eficácia dos populismos, cons- outros identificaram como ponto de virada
piracionismos, punitivismos e outras gramáti- rumo à renovação da convergência neolibe-
cas “iliberais” que alimentam e são alimenta- ral-autoritária manifesta no trumpismo, Brexit
das por movimentos da direita radical, como e afins (Brown, 2019; Davies, 2021). Este ar-
o bolsonarismo, está na sua capacidade de tigo parte de uma perspectiva que recoloca,
responder a contradições internas à própria nos termos da analítica das ressonâncias de
formação neoliberal, ao mesmo tempo em Connolly, o que Gerbaudo (2018) e Waisbord
que pressionam pela sua renovação na dire- (2018) entenderam como “afinidades eletivas”
ção de um viés não democrático ou autoritário entre as novas mídias e os populismos e cons-
(Brown, 2019; Davies, 2021). Essas tendências, piracionismos contemporâneos.
que são globais, ganharam tração no contexto Entre as várias dimensões dessa proble-
brasileiro nos anos que antecederam a chegada mática, destacarei aqui o modo como essa in-
ao poder da direita conservadora com Jair Bol- fraestrutura cibernética intervém para acirrar
sonaro em 2018. Embora o viés das “guerras e, ao mesmo tempo, redirecionar um processo
culturais” acabe ficando em maior evidência anterior, relativo ao modo como o neoliberalis-
(Rocha, 2021), o objetivo da coalizão bolsona- mo desloca os sentidos lineares da temporali-
rista é desfazer o pacto de 1988 em todo seu dade moderno-fordista (Sennett, 1999). A pla-
espectro do reconhecimento à redistribuição taformização da internet teria, segundo Chun
(Fraser, 1991) – esta última manifesta de modo (2016), intensificado a convergência formal
mais explícito na agenda econômica ultralibe- entre infraestrutura de mídia e o neoliberalis-
ral personificada em Paulo Guedes. Conside- mo, ambos marcados por uma temporalidade
rando a formação neoliberal como mais que de crise permanente. Em meados dos anos
apenas uma política econômica, tomamos o 2000, antropólogos como Jane Guyer (2007) e
caleidoscópio bolsonarista (Kalil et al., 2018) Jean e John Comaroff (2000, 2004) sugeriram
como unido por ressonâncias, menos imedia- que as temporalidades não lineares do neo-
tamente visíveis do que uma suposta separa- liberalismo – marcadas por uma “ferradura”
ção entre um nível “liberal na economia” e ou- que une o imediatismo da experiência e dos
tro “conservador nos costumes” faria parecer eventos, por um lado, e futuros inescrutáveis
(Cesarino, 2019). e intangíveis, por outro – vinham propician-
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

Em sua análise da aliança neoliberal- do o afloramento de processos sociais estra-


-conservadora durante os governos Bush, nhos à normatividade da modernidade liberal.
William Connolly (2021) propôs a noção de Com efeito, essas tendências viriam, uma dé-
“máquina de ressonância” para pensar aqui- cada depois, a convergir fortemente na e com
lo que une esses diferentes segmentos fora de a direita alternativa, em derivas populistas,
chaves analíticas ancoradas em pressupostos apocalípticas, messiânicas, conspiracionistas,
de “causalidade eficiente ou análise ideoló- negacionistas etc. É nesse sentido que propo-
gica”. Ele buscou lançar luz, por outro lado, nho, aqui, abordar o bolsonarismo a partir de
sobre camadas subliminares de “disposições uma releitura da disjunção histórica colocada
espirituais semelhantes” entre esses grupos: por Schwarz: não enquanto déficit em relação
um “ethos”, que é “expresso sem ser articu- à temporalidade linear do progresso e da mo-
lado” e que se propaga por diferentes infraes- dernidade liberal, mas como realinhamento
truturas de mídia. Embora, naquele momento, retrospectivo do substrato sócio-histórico bra-

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sileiro à configuração neoliberal-autoritária da Covid-19 em 2020 evidenciou seu investi-


emergente globalmente. mento num estado de exceção permanente e
Neste artigo, exploro como a máquina no viés neodarwinista ou spenceriano da atual
de ressonância do bolsonarismo viceja na tem- formação neoliberal.
poralidade não linear do neoliberalismo, com Concluo sugerindo que a resiliência do
foco na atual infraestrutura de mídia. Por um bolsonarismo, mesmo em meio à maior crise
lado, há a dimensão messiânica mais evidente, humanitária da história recente do país, se liga
que se mostrou central à eficácia do discurso à incapacidade de muitos brasileiros de atri-
e estratégia eleitoral bolsonaristas, especial- buir responsabilidade pelos efeitos sanitários
mente após o atentado a faca em setembro de e econômicos ao governo federal e, mais espe-
2018. Por outro, a pandemia da Covid-19 evi- cificamente, à pessoa do presidente. Enquanto
denciou uma forma contraditória de governo boa parte dessa incapacidade parece advir de
que se perpetua parasitando o próprio sistema uma estratégia comunicacional eficaz em de-
ao qual ele alega se opor (Nobre, 2020), lidera- fletir causalidade a partir do ambiente entró-
do por um soberano que, embora já autorizado pico propiciado pela plataformização, ela tam-
pelo “povo”, reiteradamente adia a decisão so- bém se liga ao processo mais fundamental de
bre o estado de exceção (Abreu, 2019). deslocamento neoliberal do “social” pela ênfa-
Suspensos num estado paradoxal em se na responsabilização individual e familiar
que convivem horizonte apocalíptico e so- (Brown, 2019; Dardot; Laval, 2016). No caso
brevivência cotidiana (Guyer, 2007), muitos brasileiro, essa tendência, que é global, ganha
segmentos da população brasileira têm expe- tração a partir de uma densidade histórica lo-
rimentado a catastrófica gestão federal da pan- cal em que particularismos e desigualdades
demia como plausível. Sugiro que parte dessa arraigadas, e o abandono dos mais vulneráveis
plausibilidade possa advir do modo como o pelo Estado e pelas elites, conformaram uma
bolsonarismo, ao abandonar o horizonte li- cultura política que sempre operou em disjun-
near do Estado social e planejador (Mirowski, ção com a normatividade democrática de base
2019), realinha o presente neoliberal ao lega- liberal-igualitária – a mesma que se encontra,
do histórico desigual e contraditório apontado hoje, em crise por todo o mundo.
por Schwarz. Em outras palavras, ao sincroni-
zar o déficit liberal-democrático do país à deri-
va iliberal do neoliberalismo contemporâneo, TEMPORALIDADES NEOLIBERAIS
ele colocaria as ideias “de volta no lugar”. E SUA BASE MATERIAL
Para desenvolver essa reflexão, a pri-
meira seção retoma brevemente argumentos A análise da crise financeira de 2008 tem Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

sobre o “neoliberalismo realmente existente”, dividido opiniões: se caracterizaria um aban-


destacando sua dimensão temporal não linear. dono ou uma renovação da hegemonia neolibe-
Aponto um aspecto pouco trabalhado pela li- ral (Plehwe; Slobodian; Mirowski, 2020) – tudo
teratura, que diz respeito à base infraestrutural depende de como se entende o termo. A primei-
dessas temporalidades nas novas mídias, cen- ra posição faz sentido se entendermos o neoli-
trais à eficácia tanto de Bolsonaro como dos beralismo como uma agenda de política econô-
demais populistas da direita radical. Na se- mica, cujo desdobramento, especialmente no
gunda seção, discuto as gramáticas populistas pós-pandemia, parece se inflexionar no sentido
e conspiratórias que proliferaram nas redes so- de uma maior flexibilização do receituário da
ciais bolsonaristas, em dois períodos cruciais. austeridade e do alcance regulatório do Estado,
Enquanto a eleição de 2018 ressaltou a dimen- inclusive no caso da indústria tech (Carvalho,
são messiânica do bolsonarismo, a pandemia 2020). Autores como Peck, Theodore e Brenner

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(2012) alertam, contudo, que o neoliberalismo e privado (Boyd, 2011; Chun, 2016). Esta seção
viceja justamente de forma contraditória, en- explora as ressonâncias entre neoliberalismo e
quanto “modo de regulação parasítico” (p. 274) digitalização a partir de suas convergências in-
de outras formas político-econômicas com as fraestruturais, que deslocam a temporalidade
quais antagoniza, como o Estado desenvolvi- linear do progresso prevalente até meados do
mentista e a social-democracia. século XX.
Além disso, o neoliberalismo também Partimos aqui da ideia de que essas con-
se adapta ao convergir com outras forças so- vergências infraestruturais ajudam a conformar
ciais. Se tomarmos o termo no sentido do viés – ou seja, a dar forma – à ressonância crescente
foucaultiano, ele denota uma racionalidade entre o neoliberalismo e outras forças: puniti-
de governo que não apenas extrapola o do- vistas (Comaroff; Comaroff, 2004; Wacquant,
mínio econômico, como opera pela contami- 2009), necropolíticas e racistas (Mbembe, 2018),
nação e desdiferenciação entre a economia e conservadoras (Brown, 2019), religiosas (Con-
outras esferas sociais (Brown, 2015; Foucault, nolly, 2021), soberanistas (Davies, 2021), mes-
2008). Suas implicações passam a abranger, siânicas e mágicas (Comaroff; Comaroff, 2000).
assim, todo o espectro da vida, desde a cons- Essas (re) articulações emergentes, observadas
trução de subjetividades e moralidades até a por diferentes autores, não se dão por pressões
conformação de um novo regime epistêmico e puramente “externas” ao neoliberalismo, mas
espaço-temporal (Comaroff; Comaroff, 2000; são atualizadas a partir de potencialidades ine-
Guyer, 2007). Ao mesmo tempo, o próprio rentes à própria doutrina e prática neoliberais.
neoliberalismo vai mudando na sua articula- Desde suas origens, no que se convencionou
ção recíproca com outras “forças e poderes” chamar de Coletivo de Pensamento Neoliberal
(Brown, 2019), ao ponto de alguns cogitarem, (Plehwe; Slobodian; Mirowski, 2020), o amplo
atualmente, uma formação pós-neoliberal que movimento pela renovação do liberalismo no
recombinaria, de formas novas e híbridas, os início do século XX se deu não de forma coesa,
polos da soberania e governamentalidade (Da- mas por meio de fraturas e contradições entre
vies, 2021), da tecnocracia e do populismo (Bi- linhas mais ou menos progressistas, interven-
ckerton; Acetti, 2021). cionistas, conservadoras ou spencerianas-neo-
Ressaltar o caráter do neoliberalismo darwinistas (Dardot; Laval, 2016). Essa hetero-
como mais que uma política econômica tam- geneidade interna permite que o neoliberalismo
pouco significa reduzi-lo a um regime simbó- ganhe tração global por meio de fricções (Tsing,
lico. O próprio Foucault, assim como o mar- 2007) diferenciais com contextos históricos e
xismo, a cibernética e a antropologia lembram geográficos os mais diversos, ao mesmo tempo
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que não existe subjetividade, epistemologia ou em que mantém, por toda parte, um “ar de famí-
racionalidade, desvencilhados de uma base ma- lia” (Peck; Theodore; Brenner, 2012).
terial. Toda comunicação é material, mesmo a Boa parte da literatura antropológica so-
digital, que opera com bits no lugar de átomos bre neoliberalismo tem tratado do modo como
(Boyd, 2011). No caso do neoliberalismo con- ele altera a conformação espaço-temporal que
temporâneo, é possível destacar o papel articu- prevaleceu ao longo do período keynesiano-
lado de dois processos de desterritorialização, -fordista, marcado pela temporalidade do pro-
a financeirização e a digitalização, para o avan- gresso e da modernização, e suas hierarquias
ço transversal da racionalidade neoliberal – na globais associadas. Com o fim da Guerra Fria,
realidade, como esse avanço faz colapsar, ao a escala linear e rígida do sub/desenvolvimen-
mesmo tempo em que rearranja, antigas dif- to deu lugar ao espectro mais fluido do Norte/
erenciações historicamente sedimentadas no Sul globais, pensado de forma multiescalar,
ocidente moderno, como aquela entre público enquanto fraturas inclusive internas ao mun-

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do “desenvolvido”: haveria um Norte no Sul, e início do século XX, inclusive enquanto base


um Sul no Norte (Ferguson, 2006). Assim, fe- para políticas públicas). Nesse sentido, a tem-
nômenos anteriormente associados a realida- poralidade neoliberal encontraria ressonân-
des terceiro-mundistas em vias de superação, cias menos com a “flecha” da modernização do
como o trabalho informal, o (re)encantamento que com espaços-tempo não lineares, como no
do mundo ou o próprio populismo passam a dispensacionalismo cristão (Connolly, 2021)
ser identificados também no antigo Primeiro e nas doutrinas tradicionalistas que caracteri-
Mundo (Comaroff; Comaroff, 2011). zam a direita alternativa nos EUA, no Brasil e
Jane Guyer (2007) propôs a noção de alhures (Teitelbaum, 2020).
“tempo pontuado” (punctuated time) para O casal de antropólogos sul-africanos
caracterizar essas mudanças. Segundo a an- Jean e John Comaroff (2000) capturou bem
tropóloga, o neoliberalismo desloca a ima- essa inflexão espaço-temporal e seus efeitos
ginação modernista de um futuro próspero socioepistêmicos na metáfora do neoliberalis-
potencialmente alcançável por todos – o que mo enquanto “segunda vinda”, milenarista, do
Mark Fisher (2020) chamou de cancelamento capitalismo, após o interregno keynesiano-for-
do futuro –, deixando apenas o tempo presen- dista do pós-guerra. Como na segunda vinda
te, imediato, por um lado, e um futuro que é de Cristo, o capitalismo financeirizado inter-
distante e imprevisível, por outro. O presente vém desestruturando o horizonte de futuro
se torna assim uma série de eventos a que os linear do progresso, dando lugar a temporali-
indivíduos devem responder de forma mais ou dades não lineares que costumamos associar a
menos ad hoc – o que converge com o diagnós- formações não modernas e epistemologias não
tico de Chun (2016) sobre o espaço-tempo da científicas: do “capitalismo de cassino” aos
internet plataformizada. A ênfase na experiên- discursos messiânicos e apocalípticos (reli-
cia individual (do your own research) é assim giosos, mas também seculares, como no An-
complementada pela confiança quase cega em tropoceno) e em teorias da conspiração, como
um “plano” maquinado por forças invisíveis o QAnon; de vigilantismos e punitivismos de
e em última instância inescrutáveis (trust the toda sorte (como, hoje, os tribunais de internet)
plan) – sejam elas de ordem religiosa ou espiri- a linguagens vitalistas de parasitismo, que po-
tual, ou de ordem secular, como a própria mís- dem assumir a forma literal de rumores sobre
tica da mão invisível do mercado (Cesarino; vampiros, zumbis, traficantes de órgãos, ju-
Silva, [2021?]). deus bebedores de sangue humano e afins; de
Guyer nota que as implicações cogni- causalidades encantadas e ocultas a oráculos,
tivas desse tipo de temporalidade já estavam esquemas-pirâmide e outras manifestações do
previstas na formulação original da doutrina que, na era da internet plataformizada, veio a Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

neoliberal por Hayek. Esta, como elaborou se chamar desinformação ou pós-verdade (Ce-
Mirowski (2019), partia do pressuposto da in- sarino e Silva [2022])
capacidade cognitiva de sujeitos individuais Em sua tese clássica sobre a “doutrina
e coletivos, e da superioridade epistêmica do do choque”, Naomi Klein (2008) destacou a
livre-mercado como processador de informa- aceitação de políticas neoliberais pelas popula-
ção. Guyer argumenta que essa suposição de ções de países onde elas foram implementadas
ininteligibilidade é a base para a eliminação do de forma não democrática em nome de uma
horizonte temporal “médio” que conformava o reimposição da ordem na esteira de grandes
viés linear planejador característico do período rupturas e crises, como o Chile de Pinochet,
keynesiano-fordista (e, poderíamos acrescen- o Iraque pós-Guerra do Golfo ou a Louisiana
tar, o “social” durkheimiano que protagonizou pós-Katrina. Hoje, podemos dizer que a dou-
a institucionalização das ciências sociais no trina do choque neoliberal se implementaria

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não (apenas) por catástrofes, golpes de Estado (Cesarino, 2020; Junge, 2019), viceja dialetica-
e outros eventos lineares, mas por uma infra- mente na “conjuração produtiva de um mundo
estrutura não linear e autossimilar (fractal) saturado de violência e ambiguidade moral,
que distribui e capilariza a crise por escalas cuja ameaça apenas eles [as figuras populistas]
múltiplas, para além da política e da econo- são capazes de reduzir a uma ordem habitável”
mia pensadas enquanto domínios discretos do (Comaroff; Comaroff, 2004, p. 824).
real (Cesarino e Silva [2022]). Muitos notaram Estudos mais recentes no campo das no-
como a precarização generalizada da vida no vas mídias ajudam a compreender o enraiza-
neoliberalismo transpõe o estado de crise para mento cognitivo dessa metafísica da desordem
a vida cotidiana, com consequências multidi- no quotidiano dos usuários, notadamente pela
mensionais para os indivíduos e famílias (Co- via pré-representacional da mobilização de afe-
maroff; Comaroff, 2004; Guyer, 2007). Fisher tos, hábitos e atenção (Chun, 2016; Connolly,
(2020) notou, por exemplo, a ressonância entre 2021). Muitos notaram convergências funda-
dinâmicas do capitalismo financeirizado e dis- mentais entre a infraestrutura digital contem-
túrbios mentais endêmicos, como os ciclos de porânea e tendências transversais a fenômenos
boom and burst dos mercados e as oscilações que costumam andar juntos, como os populis-
bipolares de depressão e euforia que afligem mos da direita radical, punitivismos, conspi-
porções cada vez maiores de vidas submetidas racionismos e negacionismos (Fielitz; Marcks,
ao ritmo do “tempo pontuado” neoliberal. 2019; Gerbaudo, 2018; Waisbord, 2018). Mais
Está bem estabelecido, notadamente na recentemente, alguns vêm pontuando que essa
literatura sobre fascismo (Paxton, 2008; Con- infraestrutura consiste não apenas na face mais
nolly, 2017), que estados de crise acirram o visível e “oficial” da internet, mas também, e
que Jean e John Comaroff (2004) chamaram principalmente, nas camadas que se formaram
de dialética da “produção e redução da desor- “sob o radar” (Abidin, 2021) das plataformas
dem”. Durante a ascensão da guerra ao terror a partir dos seus efeitos antiestruturais – que
nos anos 2000, esses autores explicaram a cen- Gray, Bounegru e Venturini (2020) chamaram,
tralidade (e mistura) crescente da mídia jorna- com base na teoria do Unheimlich freudiano,
lística e da ficção tematizando crime, violên- de “estranho-familiar infraestrutural”.
cia, segurança e ordem nas esferas públicas da Central à dimensão temporal em tela é o
África do Sul e alhures como reflexo de inse- modo como a capilarização crescente do ritmo
guranças mais fundamentais acerca da ascen- intensivo da economia da atenção junto aos
são do Estado securitário neoliberal (Mbembe, usuários tem contribuído para aprofundar o
2018; Wacquant, 2009). A nostalgia por líde- estado de crise permanente diretamente junto
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res autoritários e justiceiros (agindo extraju- a e a partir dos processos cognitivos humanos.
dicialmente, se preciso for) seria assim uma Fielitz e Marcks (2019) ressaltaram a centrali-
resposta à “metafísica da desordem”, em que dade dessa temporalidade para a proliferação
a sociedade é entendida como estando “à beira de afetos fascistas, como medo e ressentimen-
da dissolução”. Durante a campanha de 2018, to, em sua elaboração recente do que chama-
essas narrativas fundamentais sobre a ordem ram de “fascismo digital”. Leirner (2020) ela-
político-cosmológica foram materializadas em borou os notáveis paralelos que fenômenos
memes nos quais Bolsonaro e Moro apareciam como populismo e desinformação guardam
fundidos às figuras de super-heróis, soldados, com a reformulação da teoria e prática militar
cruzados medievais ou policiais. Esse gênero nas últimas décadas, em direção às guerras de
de storytelling, alimentado há anos no Brasil e espectro total ou híbridas – que, no Brasil, têm
alhures por uma mídia policialesca que foi re- se desdobrado menos em torno de um inimigo
novada nas narrativas orgânicas no WhatsApp externo do que ao longo das linhas históricas

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da colonialidade interna (Cesarino, 2017). cuja base são os indivíduos e suas respectivas
Provavelmente foi Wendy Chun (2016) trajetórias pessoais e experiências sensoriais.
quem melhor trabalhou as ressonâncias fun- A eu-pistemologia (i-pistemology) opera na e
damentais entre as infraestruturas ciberné- pela desintermediação espaço-temporal, sen-
ticas e neoliberais, no modo como ambas se do sua forma típica o vídeo do evento que aca-
sustentam em uma espacialidade de públicos- ba de acontecer, que chega em primeira mão
-em-rede articulada com uma temporalidade no smartphone e é imediatamente repassado
de crise permanente. As plataformas operam adiante. Chun sugere que esses e outros efei-
pela interpelação contínua dos usuários por tos de desintermediação acirram a “vontade de
“eventos” aos quais devemos reagir, produzin- poder” dos usuários, incitando-os a atuarem
do uma externalização do nosso fluxo de aten- como pequenos soberanos em seus feudos di-
ção e consciência que permite o exercício de gitais nas mídias sociais e em outros ambien-
influência (literalmente, colocação em fluxo) tes dataficados do capitalismo de plataforma.
tão fundamental ao seu modelo de negócios. O diagnóstico de Chun converge com
Como a autora destaca, interpeladas numa outros, referentes aos modos de individuação
temporalidade de crise permanente, as cama- que os ambientes digitais contemporâneos pro-
das cognitivas responsáveis pela formação de piciam (afford) (Boyd, 2011). Com base na filo-
hábito e memória incorporada (embodied) ten- sofia da técnica de Gilbert Simondon, Lury e
dem a degenerar em adição – o lado obscuro, Day (2019) sugerem como a recursividade dos
mas não menos sistêmico, da meta corporativa sistemas algorítmicos contemporâneos produz
do “tempo de tela”. Aqui, a race to the bottom um modo de individuação fractal, que alia um
(corrida para o fundo) neoliberal se transmuta hiperindividualismo a um hiper-relacionalis-
numa luta neocortical pela atenção dos usu- mo. Assim, produzem-se perfis individuais que
ários, levando, nos termos de Harris (2017), operam como elos estáveis necessários ao flu-
a uma race to the bottom of the brain stem.2 xo da economia de dados, ao mesmo tempo em
Neoliberalismo e plataformização se sincroni- que os “conteúdos” desses perfis não são fixos
zam, assim, ao ritmo da competição spence- nem isolados, mas coemergem continuamente
riana pela existência, em que perfis on-line e com outros perfis-em-rede num ritmo sempre
sujeitos off-line precisam fazer cada vez mais intensivo. Esse modo de subjetivação parado-
apenas para conseguirem seguir existindo en- xal, que propiciou em 2018 o que chamei do
quanto tais: nos termos de Chun, “se atualiza- “corpo digital do rei” (Cesarino, 2019), espelha
rem para continuarem iguais”. a individuação-em-rede do neoliberalismo con-
Chun nota, ainda, o enraizamento des- temporâneo, notadamente o colapso de contex-
se espaço-tempo na experiência(ilusória) de to entre indivíduo e empresa (ou pessoa incor- Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

desintermediação propiciada pela arquitetura porated) (Brown, 2015; Dardot; Laval, 2016).
das plataformas. O sistema de peritos preva- Esses perfis, e as subjetividades off-li-
lente no período keynesiano-fordista – centra- ne que eles ajudam a conformar, são perfor-
do na ciência, mas com a lógica da expertise mativos, emergindo a partir de uma lógica do
se estendendo à política partidária, jornalismo marketing de influência cujo objetivo é pro-
profissional, sistema educacional, jurídico-le- duzir sujeitos influenciáveis, e não cidadãos
gal etc. (Cesarino, 2021) – é deslocado assim autônomos e reflexivos (Mirowski, 2019). Essa
por formas “eu-pistêmicas” (Zoonen, 2012), lógica privilegia sistemas algorítmicos homofí-
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Termos como neocórtex e “cérebro reptiliano” denotam licos, ou seja, que produzem conexão por meio
camadas cognitivas responsáveis pela articulação da me- da identidade, e não da diferença ou da alea-
mória incorporada (embodied), hábito e afetos, que são o
alvo da economia comportamental e outras especialidades toriedade. Na interação com o mundo off-line,
que subsidiam o design das arquiteturas das plataformas
(Chun, 2016; Marres; Stark, 2020). essa arquitetura acaba gerando subprodutos,

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AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

como políticas de forte viés identitário (Pinto nos de Laclau (2013), subsumindo “a política”
Neto, 2018), além do acentuado antagonismo no “político”. Wendy Brown (2019) analisa em
amigo-inimigo observado nas múltiplas itera- termos similares, e com base em Nietzsche, o
ções da nova direita radical pelo mundo (Fie- tipo de niilismo que se intensifica no capitalis-
litz; Marcks, 2019). mo neoliberal: não uma ausência de valores,
Como argumentou Connolly (2021), a mas sua desvinculação de uma base moral or-
relação de causalidade entre infraestruturas gânica, levando a um transacionalismo e poli-
de mídia e a política a elas associadas não é, tização explícitos, como no trumpismo.
e nem pode ser, direta ou linear. Os mesmos É sintomático da transversalidade da
vieses algorítmicos que produzem os públicos- atual crise que Phillip Mirowski (2019) note
-em-rede (Boyd, 2011) têm, na interação com um movimento semelhante, ao que Brown des-
usuários reais, levado a efeitos antiestruturais creve para a mobilização neoconservadora dos
na forma de públicos refratados (Abdin, 2021) “valores”, da mobilização neoliberal dos “fa-
que operam também de forma sistêmica, po- tos”. À medida que a ciência passa a se orientar
rém fora do previsto pelas plataformas. Entre pela lógica do “mercado de ideias”, a “verdade
esses efeitos “uncanny” (Gray, Bounegru; Ven- se desvencilha da argumentação” (p. 9) e se tor-
turini, 2020) estariam o antagonismo de base na cada vez mais performativa. Com efeito, o
cismogênica e a mímese inversa característi- modo como o estado de crise permanente des-
cos dos populismos, conspiracionismos e ne- loca valores de uma base sociotécnica coerente
gacionismos contemporâneos, cuja dinâmica se e institui a busca por um acesso não mediado às
baseia no escalamento de oposições binárias e fontes autênticas da “verdade” ecoa as formula-
inversões antiestruturais do tipo redpilling3 (Ce- ções clássicas de Thomas Kuhn (2017) sobre o
sarino, [2021?]; Leirner, 2020). que ocorre com fatos em contextos de crise de
Este é um dos sentidos em que podemos paradigma. Os efeitos desse estado liminar pa-
pensar a irrupção dos populismos autoritários recem reverberar a dinâmica sistêmica que na
aspirantes a fascismo (Connolly, 2017) pelo antropologia se convencionou chamar de “in-
prisma sistêmico ou infraestrutural. Uma das volução”: um estado contraditório de aumento
muitas dimensões da dialética a partir da qual intensivo da complexidade interna de um sis-
essas forças emergem “nas ruínas do neolibe- tema apenas pela repetição de padrões formais,
ralismo” (Brown, 2019) converge com a tese sem a produção de mudança ou criatividade
antropológica de Louis Dumont (2000) sobre o reais (Geertz, 1969).
totalitarismo como “englobamento do contrá- Ora, esta é precisamente a dinâmica ne-
rio” da ideologia individualista moderna. Em oliberal-digital descrita por Chun (2016), re-
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

momentos de liminaridade e crise, a ênfase no sultado de uma lógica performativa baseada


individualismo e na identidade levaria à sua na competição spenceriana e na segmentação
contrapartida antiestrutural: um coletivismo homofílica. Numa lógica que guarda similari-
radicalmente antagonístico. Como nos fascis- dades com o que se convencionou chamar de
mos clássicos (Paxton, 2008), a irrupção deste audit culture (Fisher, 2009; Strathern, 2000), os
último em contextos de crise estaria desvenci- sujeitos precisam se autoperformar de forma
lhada de uma base orgânica coerente, subsu- cada vez mais intensiva apenas para consegui-
mindo a seleção de conteúdos particulares à rem continuar existindo ou seu “vácuo” será
sua mecânica formal – nos termos heideggeria- ocupado por outro perfil empreendedor de si. O
título do livro de Chun, updating to remain the
3
Red pill refere-se à inversão figura-fundo propiciada pela same, ecoa essa dinâmica involutiva, em que
pílula vermelha do filme Matrix, em que ao protagonista é
oferecida a opção de acessar o mundo real, oculto por trás mudança e complexificação “internos” tendem
do mundo confortável, porém falso, produzido por máqui-
nas que parasitam corpos humanos. a repetir e intensificar padrões formais já ope-

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Letícia Cesarino

rativos no sistema, sem uma injeção de diver- bre a “tempestade perfeita” que foi a vitória de
sidade real que permitisse sua “evolução” na Jair Bolsonaro em 2018 (Cesarino, 2019; Junge,
relação com o entorno (Luhmann, 2016). O fato 2019; Kalil et al., 2018; Leirner, 2020; Rocha,
de, com a plataformização, os sistemas algorít- 2021). Trata-se de um fenômeno complexo
micos operarem cada vez mais em “ambientes com inúmeras dimensões relevantes, dentre as
de testagem total” (Marres; Stark, 2020) que quais o papel das inovações comunicacionais
utilizam como input dados que eles próprios assentadas na dependência cada vez maior
produzem é mais um indicativo da tendência dos eleitores brasileiros com relação a conte-
involutiva que caracteriza tanto a economia de údos circulados nas novas mídias. É sintomá-
dados quanto o neoliberalismo contemporâneo tico que o icônico ano de 2013 também seja
(Peck; Theodore; Brenner, 2012). Contra a ca- o marco da virada na venda de smartphones
misa de força dessa temporalidade involutiva, no Brasil. Como em muitos países que tiveram
irromperiam os messianismos, punitivismos, suas “primaveras” no vácuo da crise financei-
populismos, conspiracionismos e outras forças ra de 2008, as potencialidades revolucionárias
políticas e espirituais que prometem repurifi- daquele momento único acabaram sendo, em
cação e regeneração completa de um sistema larga medida, canalizadas eleitoralmente por
não apenas compreendido, mas principalmen- uma nova direita ao mesmo tempo neoconser-
te sentido (Connolly, 2021), como irreversivel- vadora e anti-establishment (Brown, 2019).
mente corrompido e decadente. Já foram bastante notadas e trabalhadas,
Resta saber se esse estado liminar se en-em diversos países, as convergências entre
contra em vias de ser deslocado por um novo affordances das mídias digitais contemporâ-
“paradigma” (Kuhn, 2017) emergente, ou se, neas e a dinâmica semiótica da política popu-
pelo contrário, ficaremos presos a uma tempo- lista em noções como populismo algorítmico
ralidade paradoxal de crise permanente com a (Maly, 2019), métrico (Varis, 2020) ou digital
rotinização de muitos de seus “sintomas mór- (Cesarino, 2020; Silva, 2020). As novas tecno-
bidos” (Brown, 2020). Estaria a ancoragem da logias cibernéticas operam transversalmente
democracia contemporânea na infraestrutura às mídias tradicionais, permitindo conectar
cibernética das novas mídias levando a arran- insatisfações e sentimentos anti-establishment
jos híbridos (Bickerton; Accetti, 2021; Davies, outrora difusos e construir equivalência entre
2021) nos quais a temporalidade de crise e a eles (Gerbaudo, 2018), corroendo assim a es-
gestão dos seus efeitos contraditórios se pere- fera pública liberal a partir de seu interior. O
nizam em novas recombinações? A transposi- outro lado da construção da equivalência – no
ção do populismo bolsonarista de uma gramá- caso do bolsonarismo, entre os “patriotas” – é a
tica de ruptura radical a uma forma paradoxal construção da diferença em termos antagonís- Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

de governo parece iluminar dimensões possí- ticos, isto é, de uma fronteira amigo-inimigo
veis desses futuros incertos. (Laclau, 2013). Estudos realizados a partir de
diversos ângulos analíticos demonstraram
a centralidade desta última para a vitória de
TEMPORALIDADES BOLSONARIS- Bolsonaro em 2018. Da anticorrupção ao anti-
TAS petismo, do antipoliticamente correto ao anti-
globalismo – inúmeros significantes flutuantes
do inimigo foram microdirecionados para e a
2018: Ruptura e messianismo partir de segmentos diferentes como o lavaja-
tismo, o conservadorismo religioso, os libertá-
Diferentes perspectivas analíticas e em- rios ou neoliberais, os militares e polícias, en-
píricas já foram acionadas para lançar luz so- tre outros (Cesarino, 2019, 2020; Junge, 2019;

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AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

Kalil et al., 2018; Rocha, 2021). memes, vídeos, áudios, textos, canções e core-
Menos notado tem sido o papel da tem- ografias que inundaram o ecossistema digital
poralidade de crise para a eficácia do populis- performaram uma poderosa metaforização re-
mo digital bolsonarista. A política no país já se cíproca entre corpo do líder e corpo político
encontrava em estado liminar desde ao menos do povo e da nação, propiciada pelos loops
2013, aprofundado pelo lavajatismo e pelo mo- algorítmicos da internet participativa. Esta era
vimento pró-impeachment que caracterizaram simbolizada de forma icônica pelas versões di-
o interregno entre as eleições de 2014 e 2018. gitais da camiseta que o candidato vestia no
A partir desse pano de fundo preexistente, a dia da facada, na qual ao slogan verde e ama-
campanha pró-Bolsonaro buscou aprofundar e, relo “meu partido é o Brasil” se contrapunha o
ao mesmo tempo, tomar as rédeas da metafísica vermelho-sangue do ferimento desferido pelo
da desordem vigente, principalmente por meios inimigo.4 Naquele momento, o corpo do candi-
digitais. A esse respeito, cabe ressaltar que a dato penetrado pela faca – numa extraordiná-
nova direita bolsonarista, como outras (Maly, ria coincidência, bem ao lado da palavra “Bra-
2019), sempre foi explícita em sua intenção sil” – tornou-se o país sangrado pela corrupção
“metapolítica”: os segmentos olavista e cristão da “esquerda”.
evangélico em particular, mas também o militar A facada tornou palpável a já corrente
e o ultraliberal, operam politicamente por vias narrativa de perseguição do candidato pelo
oblíquas, quando não frontalmente opostas, aos “sistema” e de que apenas sua vitória poderia
mecanismos institucionais da política liberal- impedir um iminente processo de destruição
-democrática (Leirner, 2020; Teitelbaum, 2020). econômica e moral do país, encapsulado na
Eleições já, em si mesmas, são momen- ameaça da “venezuelização”. Segundo o ar-
tos liminares e, portanto, de perigo (Douglas, gumento benjaminiano de Coronil e Skurski
2010), em que a abertura para a transição de (1991), eventos de violência em situações de
poder faz entrever a lacuna entre o vazio do crise “forçam os limites do permissível”, fa-
cargo e a fonte da soberania – no caso, o povo zendo que “biografia individual e história co-
(Laclau, 2013). As eleições de 2018, ponto cul- letiva se unam momentaneamente, e história
minante de um longo período em si liminar, e corpo se tornem terrenos uns dos outros”
parecem ter acirrado esse seu caráter metapo- (p. 289-290). A partir desse momento, pode-se
lítico. Marcante, naquele momento, foi a na- argumentar que a campanha Bolsonaro aden-
tureza messiânica assumida pela campanha trou o domínio metapolítico da temporalidade
Bolsonaro na esteira do ataque a faca sofrido messiânica, prometendo um desenlace defini-
pelo candidato no início de setembro. Muito tivo à metafísica da desordem vigente há anos.
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

se discutiu sobre o real peso desse evento no Enquanto um tipo de “iluminação pro-
resultado das eleições, mas não resta dúvida fana” (Benjamin, 1996), este evento ajuda a
de que ele influenciou a própria dinâmica da compreender o poder das inversões não line-
campanha durante o primeiro turno eleitoral, ares avançadas por Bolsonaro, notadamente
uma vez que a decolagem de Bolsonaro nas sua redenção do Regime Militar como período
pesquisas de intenção de voto se deu, parado- livre de corrupção e crime – ao menos, para os
xalmente, na ausência da sua presença física “cidadãos de bem” e verdadeiros patriotas. A
da esfera pública. promessa do líder antissistema de restaurar,
Como argumentei anteriormente (Cesa- em definitivo, a segurança e a ordem colocan-
rino, 2019), as affordances fractais das novas do o país “sob nova direção” manteve muitos
mídias permitiram que um corpo digital de se-
guidores, os autodesignados “marqueteiros do 4
No evento real não houve hemorragia externa, sendo o
sangue editado digitalmente nas representações circula-
Jair”, assumisse a campanha em seu lugar. Os das na época.

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Letícia Cesarino

seguidores afetivamente engajados na campa- dores, mas protagonistas da política e das de-
nha como numa batalha de vida ou morte pelo cisões sobre o futuro do país – como há muito
futuro do país (Junge, 2019) – ou, como colo- não acontecia.
cou Ernesto Araújo no seu blog da época (sig- Diante da grande intensividade do ritmo
nificativamente chamado “Metapolítica 17”), de engajamento e fluxo massivo de conteúdos
na sua “partida de futebol mais difícil”. Como nos grupos de WhatsApp e outras plataformas
é característico de lideranças carismáticas de durante várias semanas, não me surpreendeu
viés messiânico, as credenciais antissistema do à época que a sensação geral, com o resultado
candidato envolviam a performance de inver- eleitoral positivo, tenha sido não apenas de
sões estruturais, tais como nos casos de Bolso- alegria mas de alívio. Era o horizonte do fim
naro e Trump, um linguajar e comportamento da temporalidade de crise: o Brasil estava final-
que batiam de frente com os protocolos e eti- mente entregue à vontade popular, representa-
quetas do establishment político. Nos termos da de forma não mediada pela única liderança
douglasianos de Luhrmann (2016), o elemento autêntica capaz de repurificar a política e o
tabu aparece nessa situação como seu oposto, o país. A maioria dos grupos de que participei
sagrado: justamente pelo seu caráter antiestru- durante a campanha logo se desfez, e os demais
tural, ele se coloca como único agente capaz de se reorganizaram no sentido de acompanhar as
regenerar o sistema em bases totalmente novas ações do novo governo e se manterem vigilan-
(Douglas, 2010; Mazzarella, 2019). tes contra ameaças renovadas por parte de ve-
A possibilidade dessas temporalidades lhos e novos inimigos. Para os que restaram na-
e inversões não lineares era sustentada não quele ecossistema, uma batalha crucial havia
apenas pelas affordances espaciais de ruptura sido vencida, mas a guerra é sempre renovada.
com as mídias tradicionais e de desintermedia-
ção entre líder e seguidores (Gerbaudo, 2018),
mas também pelas affordances temporais de 2020: Rotinização e parasitismo
crise permanente e “colapso de contexto” en-
tre evento e narrativa inerentes à economia da Quando passou de candidato antissis-
atenção (Boyd, 2011; Chun, 2016). No What- tema a governo, Jair Bolsonaro inicialmente
sApp e em sua ecologia de mídias mais ampla, manteve o espírito da sua campanha ao recu-
notícias alarmistas em sites de “mídia alterna- sar coalizões com forças político-partidárias
tiva”, áudios anônimos supostamente vazados tradicionais, com exceção de nomes do Par-
por whistleblowers com acesso ao campo ini- tido Democratas (DEM). Ao mesmo tempo,
migo, narrativas conspiratórias elaboradas em foi capaz de manter a lealdade de um núcleo
detalhes vívidos em texto e vídeo retinham a duro significativo de apoiadores, enquanto os Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

atenção e o engajamento do “exército do Jair” demais segmentos da sua base eleitoral foram
no interior do ecossistema digital bolsonarista. mudando com o tempo. Ao longo do primeiro
O engajamento era periodicamente renovado ano de governo, seu populismo antissistema
por meio de pequenas tarefas e missões, como parece ter menos se alterado do que se virado
repassar conteúdos, atrair novos eleitores, des- para dentro, no sentido de expurgar “inimi-
monetizar canais e perfis de celebridades da gos internos” em desalinhamento com o líder
esquerda, e ações off-line, como participação (Leirner, 2020).
em manifestações de rua ou registro em vídeo Com a irrupção da crise pandêmica, ex-
das urnas eletrônicas no dia da eleição (Cesa- purgos de grande repercussão levaram junto
rino, 2020). Foi, em suma, uma campanha com parte da base bolsonarista, como a saída do
um caráter literal de entretenimento. Os elei- Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, e
tores se sentiram, assim, não meros observa- do Ministro da Justiça Sérgio Moro em abril de

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AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

2020. O núcleo duro entendia este como um jamento ou articulação centralizados no gover-
processo necessário de depuração: como sinte- no federal. Essa “experimentação no limiar da
tizou um meme que circulou à época, “o bolso- crise” ecoa o modo como o neoliberalismo se
narismo não está diminuindo, mas se lapidan- replica pela circulação de “políticas rápidas”
do”. A base agregada pelo populismo digital emuladas localmente, sem um planejamento
em 2018 foi assim gradativamente perdendo central (Peck; Theodore; Brenner, 2012). Na
algumas de suas camadas mais “externas”: o prática, isso significa que o presidente tem
lavajatismo, parte da “antiga direita” e mesmo operado fundamentalmente por delegação: aos
do partido pelo qual Bolsonaro se elegeu e do trabalhadores da saúde, aos militares, aos em-
qual se retirou, o Partido Social Liberal (PSL). presários, aos planos de saúde, aos médicos,
Em contrapartida, fortaleceu-se o núcleo duro aos indivíduos e famílias, e até aos inimigos,
militarista, evangélico, olavista e guedista – como o governador de São Paulo, João Dória.
em suma, a coalizão neoliberal-conservadora Ao mesmo tempo, segue atuando como agente
que espelha, justamente, a inflexão iliberal e desestabilizador, alegando estar sendo impedi-
autoritária do neoliberalismo contemporâneo do de atuar pelos defensores do establishment,
discutida acima. como governadores e prefeitos e o Supremo
Este trabalho sugere que, embora te- Tribunal Federal.
nha se acomodado ao establishment político Marcos Nobre (2020) tem destacado esse
a partir do pacto com o Centrão em meados caráter parasitário do governo Bolsonaro, que,
de 2020, Bolsonaro manteve a temporalidade como no neoliberalismo de modo mais amplo
de crise permanente como fundamento do seu (Peck; Theodore; Brenner, 2012), se desenvol-
modo de governo. A dimensão messiânica de ve numa relação paradoxal de dependência
2018 se perenizou, dando lugar a um estado de quanto ao próprio “sistema” a que alega se
entropia epistêmica (Cesarino, 2021; Leirner, opor. Cabe lembrar que essa sempre foi uma
2020) a partir do qual o presidente passou a característica do populismo bolsonarista, que
atuar por meio da delegação ambígua a tercei- vicejou ao longo dos anos parasitando tanto
ros, sem se responsabilizar de fato pela gestão “amigos” – a simbologia do movimento pró-
da crise pandêmica (Nobre, 2020). Tanto esse -impeachment, a pauta do lavajatismo, dos
modus operandi quanto sua eficácia relativa, evangélicos, da alt-right – quanto “inimigos” –
que tem impedido uma queda em popularida- na sua relação de codependência cismogênica
de grande o suficiente para sancionar o avanço e de mímese inversa com a esquerda (Leirner,
das dezenas de pedidos de impeachment pro- 2020; Cesarino e Silva [2022]). É característico
tocolados, estão em linha com a inflexão spen- dos populismos, especialmente aqueles “as-
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

ceriana do neoliberalismo de viés conservador. pirantes a fascismo” (Connolly, 2017), serem


A doutrina neoliberal de base hayekia- vazios de conteúdo, uma vez que sua função
na visava deslegitimar e deslocar a agência do é fundamentalmente performativa: a de cons-
Estado planejador que atua numa temporalida- truir o “povo” (Laclau, 2013). Como nos fas-
de de médio prazo, substituindo-a pelo tempo cismos históricos (Paxton, 2008), seu conteú-
pontuado do livre fluxo de agentes empreen- do programático é renovado a partir dos loops
dedores em mercados competitivos cuja eficá- entretidos com uma base formada por níveis
cia é emergente, e não deriva do tipo de previ- mais ou menos fortes de adesão. As platafor-
sibilidade em que se ancoram as políticas pú- mas, que se baseiam na circulação de conteú-
blicas (Dardot; Laval, 2016; Mirowski, 2019). É do gerado pelos próprios usuários, permitem
precisamente o que vemos na crise pandêmica que esse tipo de crowdsourcing ocorra de forma
no Brasil, que tem sido gerida de forma ad hoc contínua, oferecendo métricas em tempo real
por agentes públicos e privados sem um plane- para a gestão do ajuste entre líder e seguidores

12
Letícia Cesarino

(Varis, 2020). Esse tipo de causalidade ciber- investimento apostando em outro ativo, que
nética se alinha ao espaço-tempo não linear da vai na direção oposta. Desse modo, o presiden-
internet contemporânea, favorecendo “formas te pode até não arriscar o suficiente para ga-
de autoridade” que operam “numa lógica cir- nhar muito, mas consegue manter um núcleo
cular, e não teleológica, focada na performance duro de apoiadores grande o suficiente para le-
de símbolos de poder ao invés de na entrega vá-lo ao segundo turno em 2022 (Nobre, 2020).
de resultados de políticas” (Davies, 2021, p. 9). Além disso, minimiza perdas entre este e ou-
Assim, o presidente e seus aliados têm tros segmentos da população ao manter uma
apostado menos na resolução da crise do que margem de “negabilidade plausível” (Hodges,
na manutenção da sua temporalidade e de 2020) ampla o bastante para modular seu dis-
um ambiente de desinformação que garan- curso a cada situação, evitando que causalida-
ta sua sobrevivência política até as próximas des e, portanto, responsabilização lhes sejam
eleições. Esse ambiente, cuja infraestrutura já atribuídas de forma linear e inequívoca. Essa
se encontrava disponível nas mídias digitais estratégia deixa em aberto, ainda, a possibili-
(Gray; Bounegru; Venturini, 2020), é constan- dade de reivindicar retrospectivamente crédito
temente cultivado pelas próprias ações e de- por medidas que não foram iniciadas ou im-
clarações ambíguas do presidente, seus filhos plementadas por ele, como o auxílio emergen-
e membros do seu governo. Como resultado, o cial e a Coronavac.
período da crise pandêmica no Brasil tem sido Com efeito, essa atuação por delegação a
marcado por uma sucessão de medidas ad hoc partir de um pano de fundo de crise permanen-
desvencilhadas de qualquer fundamento téc- te, que pode parecer paradoxal na perspectiva
nico-científico coerente (Casarões; Magalhães, da política tradicional, tem se mostrado uma
2021). No lugar de medidas coordenadas de forma eficaz de defletir responsabilização pelos
isolamento social, por exemplo, Bolsonaro in- efeitos devastadores da pandemia. Mesmo com
ventou um “isolamento vertical” que respon- o acirramento das mortes, tanto de “CPF” quan-
sabilizasse as famílias pela (impossível) prote- to de “CNPJ”, persiste um patamar significativo
ção dos seus membros mais vulneráveis, como de brasileiros que parecem incapazes de traçar
idosos e pessoas com comorbidades. Mesmo qualquer causalidade à figura do presidente.
suas referências ao chamado tratamento preco- Entretanto, aqui como na campanha de 2018,
ce sempre foram ambíguas. Ao mesmo tempo essa eficácia não advém apenas dos vieses in-
em que fazia propaganda das caixas de cloro- fraestruturais da plataformização e de uma boa
quina diretamente aos seus seguidores, ele os estratégia comunicacional. Para funcionarem,
direcionava a recorrerem a seus médicos para táticas precisam ganhar tração no substrato
a decisão. Quando fez o exame de Covid-19, se social existente. E, nesse sentido, o presiden- Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

recusou durante vários dias a mostrar o resul- te-influenciador parece de fato encontrar fortes
tado. Após inicialmente negar ou minimizar a ressonâncias (Connolly, 2021) com o conjunto
vacina, passou a alegar que sempre a buscou. de seus seguidores: assim como parte da popu-
Afirmou que seria o último brasileiro a ser va- lação brasileira pareceu nunca ter demonstra-
cinado e, por fim, decretou sigilo sobre a infor- do a expectativa de uma política pública bem
mação. E os exemplos se sucedem num padrão planejada, universalmente justa e que lhes ofe-
bastante previsível. recesse condições para sustentar medidas de
Esse pano de fundo de entropia ou alta contenção do vírus, como o isolamento social
equiprobabilidade permite o que chamei de (Cesarino e Silva [2022]), Bolsonaro nunca co-
hedging narrativo, em analogia com uma estra- gitou tal plano de combate à pandemia.
tégia de gestão de risco no mercado financeiro É nesse substrato que vimos convergir,
que visa compensar potenciais perdas em um novamente, a gramática spenceriana da luta

13
AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

pela existência e a gramática antagonística do promissores que são plantados, escalonados e


populismo autoritário, ambas ancoradas na estilizados para emulação” (Peck; Theodore;
temporalidade de crise permanente. A pan- Brenner, 2012, p. 279).
demia da Covid-19 apenas acirrou e explici- Há, finalmente, um outro sentido em
tou a dimensão de “estado de exceção” dessa que a abordagem do presidente para a pan-
configuração (Mbembe, 2018), especialmente demia encontra forte ressonância com a con-
evidente no idioma militarista tão caracterís- figuração neoliberal de viés autoritário, no
tico do ex-capitão (Andrade, 2021). Com efei- qual crise permanente e estado de exceção se
to, metáforas do espaço-tempo da guerra são tornam a regra. Muitas de suas falas, como de
utilizadas com frequência por Jair Bolsonaro, que os brasileiros devem enfrentar o vírus sem
justificando, por exemplo, a utilização da clo- “mimimi” ou “frescura”, parecem buscar incu-
roquina e outros remédios sem comprovação tir na população disposições e afetos de esta-
de eficácia contra a Covid-19 do mesmo modo dos de guerra (TV Brasil, 04/03/2021). Ou seja,
que “na guerra do Pacífico, o soldado chegava os brasileiros, especialmente os mais vulnerá-
sem sangue e não tinha outro para doar. O pes- veis, devem estar preparados para morrer, ou
soal lá botou água do coco na veia. E deu cer- para verem seus familiares morrerem, se pre-
to. Imagina se fosse esperar uma comprovação ciso for. A agência do vírus aparece aqui como
científica” (09/04/2020, grifo nosso). um híbrido de força evolutiva, militarista e de
Navegando com destreza o colapso de mercado, que separa vencedores de perdedo-
contexto entre política e ciência que tem carac- res numa luta pela existência cuja justiça é
terizado a pandemia globalmente, o presiden- imanente e, em última instância, impenetrá-
te brasileiro legitima e encoraja a extensão do vel. Em vez de um combate plasmado em in-
estado de exceção e de sua temporalidade de tervenções amplas e planejadas, a luta contra
crise à própria ciência (Campinas, 2020). No o vírus torna-se, assim, uma guerrilha caótica,
vácuo da inação governamental prolifera, prin- sem comando central, em que indivíduos e fa-
cipalmente por vias digitais, não apenas o po- mílias devem desenvolver suas próprias estra-
pulismo médico (Casarões; Magalhães, 2020) tégias de sobrevivência e, em última instância,
e a ciência patriótica (Fonseca; Ribeiro; Nasci- a única agência capaz de mudar o rumo global
mento, 2020) de “cima pra baixo”, mas todo das causalidades é a vontade inescrutável de
um ecossistema de gestão da crise de “baixo Deus, energias positivas ou outras forças invi-
pra cima”, centrado notadamente no chamado síveis que possam influenciar a imunidade e o
tratamento precoce. Proliferando “sob o radar” processo de cura.
(Abidin, 2021) do establishment científico por
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

meio de infraestruturas digitais subterrâneas


propiciadas pela plataformização, esse ecos- CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
sistema se compõe a partir da confluência es-
pontânea de agentes em sua maioria privados: Esse artigo sugeriu que temporalidades
de médicos a planos de saúde, de empresários não lineares são uma dimensão importante
a pacientes-especialistas, incluindo, no caso para compreender as ressonâncias contempo-
brasileiro, algumas associações profissionais râneas entre diferentes forças e poderes que
(Cesarino; Silva, [2021?]).Na ausência de uma têm sustentado a virada autoritária recente
política pública de cuidado, resta a lógica do no Brasil e alhures. Neoliberalismo, platafor-
livre mercado e suas formas de acolhimento, mização, conservadorismo moral e religioso,
encapsuladas no “kit covid” enquanto “políti- punitivismo, táticas de guerra híbrida – to-
ca rápida” (fast policy) neoliberal que alcança dos operam segundo lógicas e dinâmicas que
ampla circulação “a partir de modelos locais deslocam a temporalidade linear da moderni-

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Letícia Cesarino

zação que, como muitos notaram, vem se de- diante do realismo capitalista – de que não há
sestruturando com o ocaso do paradigma ke- alternativa – ganha tração, assim, ao se fric-
ynesiano-fordista. A crise financeira de 2008, cionar com a densidade histórica particular de
que também marca o desenlace do processo de uma formação pós-colonial que, como notamos
plataformização da internet, parece ter acele- inicialmente com Schwarz, sempre operou
rado essa confluência, dando vazão dialética a numa disjunção contraditória entre os princí-
derivas “iliberais” em muitas democracias pelo pios igualitários e universalistas da democracia
mundo. O Brasil de Bolsonaro durante a pan- liberal, e uma realidade social desigual e perso-
demia da Covid-19 parece encapsular, talvez nalista. Os loops digitais pelos qual Bolsonaro
como nenhum outro lugar, a culminação dessa vem coemergindo com seus seguidores fazem
encruzilhada histórica. aflorar esse substrato histórico persistente e
Temos, aqui, uma confluência talvez trancam o país num ciclo infernal de impotên-
única entre a naturalização da desigualdade cia e ressentimento, em que a única saída pos-
e da luta pela existência do neoliberalismo de sível é do tipo messiânica: #EuAutorizo.
base spenceriana e o antagonismo amigo-ini- No atual contexto neoliberal, em que
migo em que se ancoram os populismos da o que era exceção – a crise – vira regra, essa
direita radical, o punitivismo, o militarismo, disjunção, que parecia paradoxal do ponto de
vertentes dispensacionalistas do cristianismo, vista da temporalidade linear do progresso, pa-
e mesmo a estrutura básica de storytelling da rece encontrar uma estranha contemporanei-
indústria cultural de modo geral (Andrade, dade. No ecossistema antilockdown e pró-tra-
2021; Comaroff; Comaroff, 2004; Connolly, tamento precoce (Cesarino; Silva, [no prelo]),
2017;). No contexto de crise aguda da pande- quando o senso comum fala em “salvar vidas”,
mia, todos esses parecem se confundir numa se refere menos ao planejamento tecnocrático
metafísica vitalista na qual é esperado que ape- de gestão biopolítica da pandemia do que a uma
nas os mais aptos vençam ou sobrevivam – e equação espontaneísta entre vida e trabalho –
não há nada que o Estado possa ou deva fazer precisamente, a promessa neoliberal (Dardot;
para redistribuir a justiça biopolítica. Nas pa- Laval, 2016), mas agora redimensionada para
lavras do presidente, após lamentar a marca de um contexto de catástrofe. Como vem notan-
200 mil mortes: “temos que enfrentar isso daí”, do Brown (2019), é a lenta destruição neolibe-
pois “a vida continua”.5 ral do “social” que vem tornando impensável,
A aceitação tácita da ideia de que é ina- para as pessoas, intervenções redistributivas e
dequado, e até antinatural, que um Estado re- planejadas mediadas por um Estado democra-
distributivo interfira na ordem espontânea (e ticamente responsivo. Vida é trabalho, pois a
desigual) das coisas e na liberdade soberana precarização neoliberal reduziu a vida à luta Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

dos indivíduos e famílias parece advir, contu- pela sobrevivência entre indivíduos e famílias
do, menos de uma ideologia coerente do que (e agora, entre estes e o vírus). Voltamos nova-
de uma resignação diante do fato de que “não mente a Spencer. E na medida em que o neo-
tem dinheiro”, “o Brasil não é Europa”, “a cor- liberalismo tende globalmente a essa deriva, o
rupção quebrou o Brasil” (Cesarino, [2021?]). Brasil é lançado à vanguarda, pois sempre fo-
Essas reações são espontâneas, porém ativa- mos, de certa forma, neoliberais-spencerianos.
mente alimentadas por um líder paradoxal que
governa se recusando a governar; um soberano
que se recusa a decidir. A resignação global
Recebido para publicação em 20 de abril de 2021
Aceito em 22 de setembro de 2021
5
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expres-
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AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

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Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

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AS IDEIAS VOLTARAM AO LUGAR?...

PUTTING IDEAS BACK IN PLACE? LES IDÉES SONT-ELLES DE NOUVEAU EN PLACE?


non-linear temporalities in Brazil’s authoritarian temporalités non-linéaires dans le néolibéralisme
neoliberalism and its digital infrastructure autoritaire brésilien et de sa infrastructure
numérique

Letícia Cesarino Letícia Cesarino

The article approaches how the populist- L’article traite de la manière dont l’inflexion
authoritarian inflection of global neoliberalism populiste-autoritaire du néolibéralisme mondial a
has gained traction in Brazil through friction with gagné du terrain au Brésil par friction avec sa densité
its post-colonial historical condition, marked by historique post-coloniale, marquée par la disjonction
a disjunction between egalitarian, universalist entre des idéaux égalitaires et universalistes
liberal ideals and an unequal, particularistic social libéraux et une réalité sociale inégalitaire et
reality. I will pay special attention to infrastructural particulariste. Une attention particulière sera
convergences between neoliberalization and accordée à la convergence infrastructurelle
platformization, which, by creating a paradoxical entre néolibéralisation et plateformisation, qui,
temporality of permanent crisis, resonate with en consolidant une temporalité paradoxale de
“forces and powers” that also operate non-linearly crise permanente (Chun, 2016), fait place à des
according to a metaphysics of disorder, such as the résonances avec des “forces et des pouvoirs” qui
various forms of nostalgia, millenarianism, and opèrent aussi de manière non-linéaire selon une
traditionalism that follow the rise of the radical métaphysique du désordre, comme les diverses
right throughout the world. I developed this formes de nostalgie, millénarisme et traditionalisme
argument focusing on two moments of Bolsonarism: qui accompagnent la montée de la droite radicale
the populist messianism during the 2018 elections, dans le monde. Je développe l’argument à partir de
and its paradoxical routinization as a parasitic deux moments du bolsonarisme: le messianisme
government operating in a temporality of exception, populiste lors des élections de 2018 et, pendant la
during the Covid-19 pandemic. This article pandémie de covid-19, sa routinisation paradoxale
suggestes that, in the face of the illiberal drift of en tant que gouvernement parasite qui opère
contemporary neoliberalism, Bolsonarism propels dans une temporalité d’exception. Il est suggéré
Brazil into an avant-garde, putting ideas “back in que, face à la dérive illibérale du néolibéralisme
place”. contemporain, le bolsonarisme lance le Brésil sur la
avant garde, donc en remettant les idées “en place”.

Keywords: Neoliberalism. Platformization. Brazil. Mots-clés: Néolibéralisme. Plateformisation. Brésil.


Bolsonarism. Crisis. Bolonarisme. Crise.
Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-18, e021022, 2021

Letícia Cesarino – Doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia em Bekeley. Professora do


Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de Santa Catarina. Desenvolve pesquisas na área de antropologia digital, neoliberalismo,
cibernética e teorias de sistemas. Suas mais recentes publicações são: Pós-verdade e a crise do sistema
de peritos: uma explicação cibernética. Ilha Revista de Antropologia 23, nº 1 (24 de fevereiro de 2021),
p. 73-96; Antropologia digital não é etnografia. Civitas - Revista de Ciências Sociais 21, nº 2 (24 de agosto
de 2021), p. 304-15.

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