Você está na página 1de 3

NASCIMENTO E AFIRMAÇÃ O DA REFORMA JEAN DELUMEAU

A reforma: por quê?


As causas da reforma sã o complexas.
O essencial: o Protestantismo dá ênfase a três doutrinas principais: a justificaçã o pela fé, o
sacerdó cio universal, a infalibilidade pela bíblia. Essa teologia respondia certamente às
necessidades religiosas do tempo, sem o que ele não teria conhecido o sucesso que
foi o seu.
A tese segundo a qual os reformadores teriam deixado a Igreja romana porque ela estava
repleta de devassidõ es e impurezas é insuficiente. As causas da Reforma foram entã o mais
profundas que os desregramentos e excessos de seus membros.
Se tantas pessoas na Europa, de níveis culturais e econô micos diferentes, optaram pela
Reforma, foi por esta ter sido em primeiro lugar, uma resposta religiosa a uma grande
angústia coletiva. A Guerra dos Cem anos, a Peste Negra, numerosas crises, o Grande
Cisma que se prologou por 39 anos ante a estupefaçã o indignada do mundo cristã o, a
ameaça turca crescente, dentre outros, tantos acontecimentos que abalaram e
desorientaram os espíritos. Os indivíduos e sociedades pesaram as consciências e se
sentiram culpados. Só o pecado pode explicar tantas desgraças. Sem dú vida os cristã os
dessa época viam a si mesmos como seres impuros, rebaixados em chafurdo pelos seus
pecados.
Difundiu-se a crença de uma vingança de Deus contra o pecador. Neste contexto a justiça
dos homens se torna mais dura que nunca, ocorreu uma espécie de horror religioso ao
pecado que foi combatido ardorosamente. Numa época de superstiçã o generalizada
acreditou-se na realidade dos sabá s diabó licos e dos voos de feiticeiras; encorajaram a
busca e a puniçã o das pessoas suspeitas de se haverem entregue a Sataná s.
Porque já haviam acontecido tantas desgraças, se esperavam piores. Acreditava-se que o
mundo estava perto do fim, pregadores exaltados e muitas vezes suspeitos falavam à s
multidõ es da ruína pró xima de Roma e da Igreja e lhes faziam entrever horríveis
catá strofes. A vinda do anticristo, muitas vezes predita, parecia agora iminente.
Instaurou-se uma angustia que oprimiu as massas e as elites no fim da idade média. Mais
ainda que o juízo final e o inferno, a morte é o grande tema da iconografia da Idade Média
da findar.
Nunca foi tã o difundido o culto dos santos quanto no final do século XV e começos do XVI.
Eram disputadas suas relíquias, suas imagens se multiplicavam quase lhes conferindo
valor de talismã s. Ia renascendo o politeísmo, particularmente por meio do culto dos 14
santos auxiliadores.
Os santos nã o protegiam apenas contra doença e a morte, davam também “garantias para
o além”. Venerar as relíquias deles, dava direitos a indulgências. Estas tiveram no findar
da Idade Média, um sucesso extraordiná rio. O pecador poderia escapar ao inferno
passando uma espécie de cheque na ocasiã o de prestar contas.
A Igreja ensina com segurança que, para obter indulgências, é necessá rio se confessar e
comungar. Por outro lado, ela nã o fazia depender em absoluto a recepçã o de uma
indulgência do pagamento duma esmola. Porém — nã o tenhamos dú vidas— as
populações do Ocidente medieval, exaltadas, pouco instruídas, por vezes à beira do
desespero, acreditaram ser possível “comprar” a salvação. Ou antes tentaram
acreditar que tal comércio era praticável.
Isso reflete a confusã o religiosa do final da IM, os fieis em que o Grande Cisma e os outros
males da época tinha ativado ainda a necessidade de crer, se sentiram provavelmente mal
enquadrados, mal protegidos, abandonados até pela Igreja.
O povo cristã o andava à deriva. Para que se aquietasse a angú stia, seria preciso que fosse
tomado em mã os de forma segura. A Reforma protestante primeiro, a Reforma cató lica
depois se esforçaram cada uma à sua maneira por responder a esta necessidade.

EM DIREÇÃ O AO SACERDÓ CIO UNIVERSAL – ASCENSÃ O DO INDIVIDUALISMO E DO


ESPÍRITO LAICO

Era normal que o pecador se sentisse por vezes sozinho perante Deus numa época em que
o individualismo, sob todas suas formas, estava em processo de desenvolvimento. As
pessoas agora estavam sujeitas a um novo tipo de pecado: o da cobiça. Nobres e
burgueses abastados, construíam cada vez mais capelas particulares, sempre competindo
uns com os outros.
Um tal individualismo é evidentemente solidá rio de uma certa afirmaçã o do espírito laico.
DEPRECIAÇÃ O DO SACERDÓ CIO
A sociedade rural da alta IM permitia o desabrochar de uma cristandade comunitá ria
dominada pela hierarquia eclesiá stica e pelas abadias. Pelo contrá rio, a ascensã o da
burguesia e do artesanato, e mais geralmente do elemento laico, numa civilizaçã o mais
urbana, agora com a inserçã o do luxo, a afirmaçã o de um certo sentimento nacional, a
geral confusã o dos espíritos num clima de insegurança, em suma, os defeitos da Igreja
engendraram, no final da Idade Média, uma espécie de anarquismo cristã o. Numa
atmosfera de confusã o das hierarquias e dos valores, os fiéis sã o distinguiam tao
nitidamente o sacro do profano, o padre do leigo.
A BÍBLIA, HUMANISMO E REFORMA
-O APARECIMENTO DO LIVRO
Mais do que nunca, nesses tempos de confusã o, os fiéis tinham a necessidade de se
apoiarem sobre uma autoridade infalível, mas onde achar essa infalibilidade
tranquilizadora quando se duvidava do padre? Em quem depositar uma fé segura? Seria
no pró prio Deus. A bíblica se tornava assim o ultimo recurso, mas também a rocha que as
tempestades humanas nã o submergiriam. As multidõ es nã o sabiam ler, porém, as elites
dirigentes sabiam ler e cada vez mais se apaixonavam pela literatura.
A literatura em si se achou naturalmente reforçada e difundida pela descoberta da
imprensa. Do ponto de vista religioso, o aparecimento do livro impresso produziu uma
verdadeira revoluçã o, em relaçã o à s necessidades espirituais do tempo.
O humanismo, afinal de contas, foi muito mais religioso que se afirmou durante muito
tempo. Apesar de terem acontecido extravagâ ncias, todavia, no conjunto, os humanistas
foram espíritos religiosos, mas independentes!
Redescobrindo a Antiguidade, reatando com o verdadeiro Aristó teles, tornando-se leitores
de Platã o e Plotino, eles evoluíram a maior parte das vezes para uma concepçã o otimista
do homem. Descobriram na alma humana uma aspiraçã o natural para Deus (derrocada no
intermédio da Igreja) e descortinaram em cada religiã o uma manifestaçã o pelo menos
parcialmente vá lida desse impulso para o divino.
Os humanistas nã o negavam o pecado original, mas, em geral, nã o insistiam nele. Nã o iam
a Deus pelo caminho do desespero, que foi o de Lutero. Significa isso que o humanismo
podia ser integrado exatamente como é pela teologia católica do tempo? Como L.
Febvre escreveu que houve, nã o uma Renascença, mas vá rias Renascenças, conviria dizer
o mesmo do humanismo: o plural fica melhor que o singular.
Reencontrando a Escritura, limpando-a à maneira de um quadro, das impurezas que a
obscureceriam, os humanistas aspiravam a uma religiã o simples, vivida, evangélica, cujos
dogmas deveriam ser poucos numerosos e na qual deveria se procurar e achar a paz de
espírito da imitaçã o de Jesus. As cerimô nias supersticiosas teriam que dar lugar a um culto
pró ximo daquele da Igreja primitiva.
Por conseguinte, o humanismo preparou a Reforma de dois modos: contribuiu para
aquele regresso à Bíblia que era uma das aspirações de época; chamou a atenção
para a religião interior, reduzindo a importância da hierarquia, do culto os santos e
das cerimônias, ao mesmo tempo.

Você também pode gostar