Mariana Figueredo2
(...) Se houvesse tempo para voltar, eu teria continuado. Se houvesse tempo para continuar,
eu teria vivido. (Sandman, Neil Gaiman).
Sinto que devo fazer uma mimese da minha primeira resenha em que divago sobre a
importância de sermos lembrados ‘’Às vezes conseguimos esse efeito, outras, somos esquecidos tão
rapidamente como um cair de folhas no outono, por mais que saibamos que estará lá, não nos
importamos o suficiente para lembrarmos de observar o primeiro cair’’. Daqui em diante tudo que
posso sugerir são opiniões de lembranças que não são minhas, mas que ainda sim abraço ao que foi
apresentado.
Querido leitor, não quero lhe apresentar um resumo sobre este livro, não por julgar sua
interpretação, mais sim porque acredito que estragaria todas as possíveis opiniões que poderia ter,
admito com muita maestria que sou do tipo de pessoa que é movida por aquilo que acredita e que
não perde a segurança nos momentos tempestuosos. Quando somos estudantes de História,
aprendemos na marra que a partir da narrativa pode se encadear cenários distintos mais ainda com
pontos semelhantes, por muito tempo a história foi dos vencidos e opressores, hoje aqueles que não
tiveram voz e espaço vem ganhando narrativas. Em palavras simples esse livro é sobre acreditar no
extraordinário, verdade do cotidianos, do senso-comum e a esperança de uma abstração que
sobreviveu e vingou com magnitudes global.
Ao meu ver, dividir essa história seria como perder momentos cruciais ao mesmo tempo,
não consigo refletir sem fazer isso. Posso divagar sobre inocência e os devaneios de Ti Noel, o
espírito de Mackandal, a representação da ilusão do Mousieur Lenormand, a infelicidades dos
sonhos não concretizados da Mademoiselle Floridor, a paixão pela vida de Paulina Bonaparte junto
ao seu escravo Solimán e essência cruel de Henri Christophe. Posso dividir em Cuba e Haiti. Posso
mediar essa divagação entre a voz dos vencidos junto com suas crenças míticas nas deidades e nas
forças surpreendentes, com a busca por recordações de um continente tão longínquo. O autor nos
mostra a coexistência fria e dura do tempo e espaço de dois mundos do colonizador e do
colonizado. Aqui Carpentier faz algo sublime em transparecer a derrocada da realidade do mundo
dos senhores, da sua estabilidade até o momento de ruína total em contraponto temos a veracidade
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Trabalho referente à avaliação da disciplina História da América II, ofertada pela Universidade Federal da
Bahia, e ministrada pela professora Iacy Maia Mata durante o segundo semestre de 2022.
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Graduanda em História pela Universidade Federal da Bahia.
dos ideias que se perpetua inabalado mesmo em tempos tempestuosos pela busca de liberdade do
escravo. Caro leitor, pretendo juntar todas essas narrativas em pontos cruciais, não prometo
conseguir com êxito e coerência, mas trazer algo satisfatório e singelo que traga a sua leitora um
leque de pensamentos com esse livro, assim como me trouxe.
Nada é tão bonito e singelo quando acreditamos em nossas ideias. A revolução de
Mackandal é movida pelo limite, repulsa, nojo, cansaço, a crueldade da exploração do seu povo,
pela força em suas lendas, pela fé dos oprimidos. Devo salientar que pensar, associar ou até mesmo
dizer que esse movimento de revolução foi encadeado pelas concepções das fagulhas iluminista
europeia e continuar perpetuando uma ideologia opressora e colonizadora, pois este levante foi
forjada pela realidade do sofrimento da escrividão junto a centeia de liberdade, justiça e religião. A
verdadeira revolução surgiu e se concretizou na América com a voz dos próprios oprimidos na
América.
Mackandal é apresentado como melhor amigo de Ti Noel, fascinava em muitos dos seus
diálogo o jovem rapaz sobre a cultura negra, falava sobre como um verdadeiro guerreiro se portava,
assim como um líder e demonstra domínio sobre a mandinga A figura do negro Mackandal
fascinava Ti Noel e muitos outros escravos. Ele foi visto como uma espécie de ser sobrenatural.
Sofre um acidente na máquina de cortar cana, evento este que é narrado quase como invisível pela
tamanha indiferença de todos. Agora maneta, não era útil para boa parte das atividades da fazenda,
então é designado para acompanhar o rebanho pastando. Em seu tempo livre, o escravo descobre
uma variedade de fungos e plantas venenosas. Como um ‘’invalido’’ tornou-se quase um oculto,
mesmo antes do seu acidente, Mackandal já era um invisível para a sociedade branca, sem voz,
mais uma mão de obra entre centenas, em sua primeira oportunidade forge para além da montanha
onde começa aprender a fundo o vodu.
O contraste entre cristianismo e vodu é sintetizado no catolicismo, em que os santos são
substituídos por versões negras e as práticas religiosas são adaptadas às tradições africanas. Os
senhores diferem dos escravos não apenas pelo poder que exercem, mas por suas vidas
extravagantes, como peças e óperas, que, independentemente da cor da pele do senhor, criam um
grau de irrealidade e fantasia. Escravos fugitivos mantinham suas crenças livremente em seus
abrigos, com resultado, o vodu era o sinônimo de libertação, portanto o vodu encorajava os escravos
a se unir à rebelião. Assim o opõe a outra religião, a religião do governante, que se concentra no
reino dos céus na salvação da alma na vida eterna em outro mundo, e que vê nas desigualdades
deste mundo uma manifestação da vontade divina.
A partir daí, inicia-se uma onda de envenenamentos e mortes inexplicáveis, causando furor
nos comandantes. Os senhores saíam à procura de Mackandal e este, para fugir à captura, passa a
disfarçar-se, metamorfoseando-se em vários insetos, animais e aves. Quatro anos duraram suas
metamorfoses até que retornasse à vestimenta de homem. Mackandal aparece e é capturado em um
dos seus suplícios e queimado vivo. Pela primeira vez entendemos a analogia com o título, mesmo
queimado vivo, ele continua neste mundo, metamorfoseando muito além do carnal e sim no âmbito
do imaginário das ideias de liberdade e união do povo escravizado que sabiam que Mackandal
sempre estariam protegendo eles.
Com o fluxo que abrangem dois pólos, se intercalando nas perspectivas das suas ações,
nunca perdendo o foco no oprimido, acaba deixando leques de interpretações para nós leitores deixa
ao nosso critério sermos juízes de ações. Ao meu ver duas coisas contraditórias podem não ser
mutuamente excludentes, basta que estejam ligadas por metáfora, deste modo não a lados inocentes
nessa história pois no final das últimas linhas ainda é um retrato fiel das feridas da dominação
européia no continente. As três insurreições estão sob a perspectiva dos nativos, tanto que o ataque
aos brancos sempre são planejados com um ritual para o panteon africano. Vinte anos depois de
Mackandal, uma nova insurreição ganha força de escravos liderada pelo jamaicano Boukman. Esse
evento foi especialmente sagrento e cruel, houve muitos assassinatos de famílias brancas e a
repressão foi ainda maior, vitimando muitos negros. Orquestra o ataque levando aos homens a
notícia da Declaração promulgada na França da libertação dos negros. Proclamando palavras
poéticas ao mesmo tempo perturbadoras ‘’O deus dos brancos ordena o crime. Nossos deuses nos
pedem vingança. Eles conduzirão nossos braços e nos darão assistência. Quebrem a imagem do
deus dos brancos, que tem sede de nossas lágrimas; escutemos em nós mesmos o chamado da
liberdade!”. E quando chegou a hora como o coro de milhares de caracóis, os negros pegaram nas
ferramentas e saíram sugando as mãos no sangue da vingança. A rebelião acabou e a cabeça de
Bouckman cortada. A colônia em ruína.
O autor descreve Paulina Bonaparte de uma pura ironia como o sol em um bela manhã
chuva, linhas sobre linhas é descrito seu amor pelo exotico trópico, sua alegria de viver, a riqueza a
rodiava, sua satisfação em ser desejada (foi uns das primeiras vezes que eu li uma sexualização de
um corpo não negro e sim branco) e seu envolvimento com o escravo Solimán. Somos sempre
apresentados ao mundo com seus polos opostos, os escravos vivem como se a morte fosse uma
amiga íntima, tomando seu chá das cinco, uma representação do ser livre, a busca final quando
esperança vai embora, o encontro final com paz, já os brancos vem morte como uma tortura, o
desprezo, o medo, a bargalha sem filtro, o final dolor de uma vida bem vivida. Paulina é o contraste
perfeito desse pensamento começa desespera-se e teme o trópico quando seu marido Leclerc adoece
do “vômito negro”, a ponto de participar dos rituais vodus, a reverenciar as crenças e ritos mágicos
conduzidos pelo negro Solimán. Acabei fazendo uma associação entre Paulina Bonaparte e Dora do
auto da compadecida, mesmo com as traições ela amava o marido, tentou salvá lo de todas maneira
possível, quando por fim perde a luta o enterrou e partiu da terra que a muito tempo era epíteto da
alegria e o lucros e agora não passava de um mausoléu e transtornos para brancos na colônia
francesa.
Mousieur Lenormand de Mezy é a representação da crítica de Carpentier sobre a exploração
francesa na ilha haitiana ao ponto de doer os olhos ao imaginá-lo. Quando somos apresentados por
Ti Noel ao Mousieur notamos como a vida luxuosa dos colonos frances na ilha, seus atos
libertinosos em contraponto o movimento religioso cristã da ilha, a cultura europeia que os senhores
fazem questão de exporta para dá um ar ‘’civilizado’’, Mousieur tratar seus escravos como
marionetes sem pensamentos ou relevância apenas algo lucrativo e seu próprio prazer, não
acreditando na sua capacidade de agência. Os colonos exploravam em altíssimo grau e os
subestimavam demais para acreditar na possibilidade de uma reação em larga escala, uma vingança,
uma libertação, logo ele percebe o erro deste pensamento é uns dos primeiros a notar como a
religião tornou-se um elo nos levantes.
Ti Noel vê estourar a rebelião de escravos no Haiti, com os insurgentes matando os
colonizadores e destruindo tudo. Lenomard de Mezy foge rapidamente para a ilha de Santiago de
Cuba junto com o que sobrou da elite da colônia, os ratos foram os primeiros a fugirem, torna-se
um bêbado endividado, não se conformando com a declaração dos direitos e as consequência dos
conflitos internos franceses que ‘’facilitou’’ o afrouxamento dos controles na colônia e desencadeou
a derrota, morre sozinho, divagando sobre o tempo de plumas do império Francês.. Em Cuba, o
tratamento aos escravos era mais brando, os brancos eram menos pomposos e remuneravam os
escravos no natal, de modo que Ti Noel, vendido para um senhor local, pôde comprar sua liberdade
e se tornar um homem livre.
Depois de longos anos fora de casa Ti Noel agora um homem livre e solitário volta para
Saint Domingue, em seus versos descreve em êxtase como seu país está mudado um lugar repleto
de palácios, com uma fortaleza de janelas arqueadas, terraços, estátuas, jardins, pérgolas,
riachos artificiais, militares vestidos de branco, jovens capitães, palácios, coroas de
plumas, igrejas adornadas, mas logo ver um belo sonho torna-se um pesadelo. Ti Noel viu o sonho
da construção de um grande império dos negros livres na América transformar-se em um mimese
brutesca dos governos e dos ideais dos brancos opressores. Henri Christophe, o rei negro, traiu as
expectativas ao buscar copiar o regime colonizador, ao adotar a religião e a praticar a opressão que
eram características dos antigos senhores.
Escravizou inúmeros crianças, grávidas, mulheres e velhos para construir seus monumentos
pois acreditava que uma sociedade liderada por negros poderia ser tão grandiosa quanto uma
europeia, dando sequencia a uma ideologia de influência europeia, e não de seus ancestrais. Ti Noel
assim como eu, considerava que o pior de tudo era ser espancado por um semelhante,que entendia
aquela dor e lutou para se libertar dela, mas que agora usufrui dela para seu próprio gozo.
Como descrever Henri Christophe? Uma figura quase alegórica de Napoleão, se auto
proclama rei do Haiti, tão cruel e sanguinário como um colonizador francês. Estes últimos podiam
ser violentos, e frequentemente eram, mas tinham interesses bem materiais para preservar a vida e a
saúde dos escravos, pois estes eram ativos econômicos, itens para a colheita. Já para o novo poder
real, a morte de um negro nada custava ao tesouro público, como uma formiga que facilmente
poderia ser substituida por outra entre milhões. Devo salientar que as linhas que prossegue a morte
de Henri Christophe são de uma descrição espantoso do imaginário literário, ao trair seu povo ao
buscar os ideias brancos, seus ‘’súditos’’ enchem a noite com sons de tambores, com chamados de
montanha a montanha, subindo das praias e das cavernas, retumbando tambores que
invocavam Bouckman. Seu final é mesquinho e fraco, não teve coragem para lutar pelo ''reino'' que
acreditava ao mesmo tempo sabia que não iria sobreviver contra as forças místicas que viam em seu
encontro, os últimos leais ao rei conseguiram tirar seu corpo e o levaram para sua Cidadela La
Ferrière em fora construida com tanta sangue negro, no final das contas seu grande morumento
tornou-se mausoléu da sua derrocada.
Guardo essas últimas linhas que me cabe a Ti Noel, não posso mentir na minha primeira
leitura não conseguir ter apreço pelo personagem, mas vir seu valor na segunda revisão. Ao
entender o coração de Tio Noel a primeira coisa que vem em mente seria o poema Tabacaria de
Fernando Pessoa (se você chegou até aqui, acredito que deveria ler um trecho desse poema ‘’ Fiz de
mim, o que não soube…’’), sinto que ele é o coadjuvante da sua própria história, um personagem
sem lugar de pertencimento, um solitário, alguém que entende o medo e o respeito, uma
representação da memória do povo haitiano, com todas as desgraças que os seguiram.
Tendo Ti Noel como o narrador quase central, temos a alegria de notar a liberdade de
ironizar e ridicularizar de maneira calorosa os hábitos europeus. Um homem sem cultura e que
interpreta sempre no nível dos sentimentos os acontecimentos que presenciou. Ti Noel é um
sobrevivente que lutou pra ser livre, a todos que conheceu durante a vida não esqueceu dos
ensinamentos e os passou para seus filhos, conhecia o mundo a sua interpretação. Ele presenciou o
Haití ser uma colônia, se libertar, ser um reino e agora, as terras são dominadas pelos mulatos que
governam a República do Haiti. Os novos governantes instituíram o trabalho obrigatório, mais uma
vez, a maré traz consigo a violência e a opressão sobre o solo.
No final termina recluso na antiga fazenda que trabalhou durante anos, o único lugar que
chamou de casa, enlouquecendo lentamente como vento. Ti Noel torna-se rei, um rei com seu poder
adquirido pelo que sofreu nesse mundo. Um rei do seu próprio mundo, do seus próprio ato de
lembrar, com medo que a dor volta-se para lhe assombrar, o último com seu nome, mas que levava
consigo uma vida de certezas que no reino dos céus não há grandeza a conquistar, pois a incógnita
já está solucionada. Mas, no reino deste mundo, o homem “esmagado pelo sofrimento e pelas
tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, poderá encontrar sua grandeza,
sua máxima medida”.
A pergunta que não quer calar estamos tão envolvidos nessa narrativa, que viramos ouvintes
das memórias de senhor solitário que não conhece mais a realidade que vive? Será que este é o
maior truque de Carpentier mostrar através do imaginário de alguém que não compreende mais a
veracidade que vive e em seus poucos momentos de lucidez nos conta como sobreviveu a todos
aqueles fatos, trazendo representações metafóricas que transbordam significado, compreendendo o
real maravilhoso em sua forma mais pura?