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Modelos de Atencao a Satide no SUS: Transformacao, Mudanca ou Conservagao? Carmen Fontes Teixeira * Ana Luiza Queiroz Vilasbéas INTRODUGAO, A reorganizagio dos servigos e a reorientagio das préticas e do processo de trabalho ent sattde tem sido um dos temas centrais do debate conceitual e politico no & bito do SUS. A trajetéria desse debate tem sido marcada pela critica e redefinicao de ideias oriundas de movimen- tas internacionais de reforma dos sistemas de saitde, as quais se articulam, dinamicamente, propostas surgidas da experimentagao prética e elaboragio de alternativas que refletem a especificidade das condigSes nas quais se desenvolve 0 processo de reforma sanitaria no Brasil. 0 objetivo deste capitulo é delimitar algumas ques- tdes que permeiam o debate conceitual ¢ definem as op- ‘6es politieas colocadas aos gestores do SUS no que diz: respeito a mudanga e transformagdo do modelo de aten: fo a satide, ou seja, a forma de organizacdo do processo de produgao de agoes e servigos de satide “Tratamos de apresentar, inicialmente, uma breve revisio conceitual, com vistas a subsidiar a compreensio das caracteristicas dos modelos vigentes e das propos: tas alternativas de mudanga da légica econdmica, Orgs- nizacional e téenico-operacional que preside a produgio e constimos das agées e servigas de savide. Em seguida, deserevemos os modelos de atencio existentos antes do desencadeamento do processo de reforma do sistemés modelos ainda hoje hegemdnicos, isto é, permanecem Vi: tentes, extruturando préticas e processos de trabalto, ainda que se enfrentem, cotidianamente, com a Introd: so de propostas de mudanca Em ums segundo momento, apresentamos — leer caracterizagao das propostas de reorganizacao das pet cas e dos servigos de satide emanadas dos movimento: © reforma em satide no ambito internacional, ov se}. Sie Propostas que surgiram nos centros hegeménicos, ms f uais “dialogaram” criticamente 0% pesquisadores leiros que se dedicam a este tema. Ei tamos as principais “propostas alternativas”, identifican- do seu contexto de emergéncia, suas bases conceituais € suas caracteristicas organizacionais, ou seja, 0s aspectos que propdem mudar nos modelos hegeménicos, seja pela introdugio de elementos novos, seja pela redefinigio dos antigos. Finalmente, sistematizamos algumas informagdes que oferecem uma visio panordmica da situacéo atual do SUS em termos do proceso de mudanga do modelo ‘deatengéo, problematizando até que ponto as politicas e estratégias implementadas estdo contribuindo para o al: cance da integralidade da atengio & saiide da populagao, principio estruturante do modelo que se pretende alcan- ‘gar, € quis so os principais desafios que se colocam aos formuladores de politicas e gestores do sistema. ASPECTOS CONCEITUAIS (0 que vem a ser um “modelo de atengio & saiide”? ‘A revisio da literatura latino-americana e brasileira sobre o tema revela que 0 interesse em definir e concei- tuar “modelo de atencio” surgiu no contexto do debate internacional sobre reformas do sistema de saiide, es- pecialmente com a proposta de organiza¢a0 dos Siste- mas Lacais de Saitde, fomentada pela Organizacao Pan- -Americana da Satide (OPAS) ios atios 1980. No Brasil, esse debate deu lugar & elaboragio de varias definigoes, baseadas em enfoques tedrico-conceituais distintos. ‘primeir@yielas parte da definigao apresentada pela OPAS (1992), segundo a qual “modelo de atengao” 6 uma forma de organizagao das unidades de prestagio de servigos de satide, ou seja, uma maneira de organi- zagao dos estabelecimentos de saiide, a saber, centros ide, policlinicas e hospitais. Nessa perspectiva, a organizacéio dos servigos pode assumir um formato de rede, entendida como conjunto de estabelecimentos vol- tados para a prestacao de servicos do mesmo tipo (por 287 288 Segéo IV + HEMISFERIO SUS exemplo, rede ambulatorial, rede hospitalar), ou | por ser vigos de distintos niveis de complexidade tecnolégica, interligados por mecanismos de referéncia e contrarre- feréncia, constituindo assim, redes integradas de aten- Go a problemas ou grupos populacionais especificos, as quais constituem a base operacional de sistemas de satide (Mendes, 2009). possbilidades de organiaagao do processo de prestagdo de servigos de satide em unidades ou estabelecimentos de satide A época da implantagdo do Sistema Unificado Des- centralizado de Satide (SUDS), entre 19 de necessidades de satide da populacio atendida, Dessa ellexio.surgiu, inclusive, a proposta de organizagao da ‘Vigilancia da Saiide, entendida como uma forma de orga- nizacdo das prdticas de satide que contempla a articula- sao das ages de promogiio da saiide, prevencio e controle “Ge Fiscos, assisténcia e reabilitacdo, de modo a se desen- volver tima atencio integral a problemas de satide e seus determinantes, a necessidades e demandas da populagdo em territérios especificos (Paim, 1993b; Teixeira, Paim & Vilasbéas, 1998). A terceira definigao-fundamenta-se na identificagao dos elementos estruturais do processo de trabalho em satide ¢ considera que “modelos assistenciais” podem ser entendidos como “combinagées de saberes (conhecimen- tos) e técnicas (métodos e instrumentos) utilizadas para resolver problemas e atender necessidades de satide in- dividuais ¢ coletivas, nao sendo, portanto, simplesmente uma forma de organizacao dos servicos de sadde nem tampouco um modo de administrar (gerir ou gerenciar) um sistema de satide”, Nessa perspectiva, os modelos as- sistenciais so “formas de organizacdo das relagdes en- tre sujeitos (profissionais de satide e usuarios) mediadas por tecnologias (materiais e ndo materiais) utilizadas no processo de trabalho em satide, cujo propésito é intervir sobre problemas (danos e riscos) e necessidades sociais de satide historicamente definidas” (Paim, 2002). ‘Além dessas definigdes, pode-se conceber “modelo de atengio” de maneira sistémica, articulando trés dimep- sées: uma Gerencial, relativa aos mecanismos de conducio do processo de reorganizagao das agdes e servigos; uma oFGanizativa, que diz respeito ao estabelecimento das re- lagées entre as unidades de prestagio de servigos, levan- do em conta a hierarquizagio dos niveis de complexidade tecnolégica do processo de producdo das agdes de saiide; ea dimensio propriamente técnico-assistencial, du opera- tiva, que diz respeito as relagdes estabelecidas entre 0(8) sujeito(s) das préticas e seus objetos de trabalho, relagdes, esas mediadas pelo saber e tecnologia que operam no processo de trabalho em satide em varios planos, quais, sejam, os da promogio da satide, da prevengao de riscos e agravos, da recuperagio e reabilitacao (Teixeira, 2003) Bssa_concepeao contempla, portanto, desde o nivel “micro”, das praticas (Boxe 21.1) realizadas nas diversas, linhas de agdo do sistema, passando pelo nivel “meso”, de articulagdo dos servigos e estabelecimentos de saiide em redes até o nivel macro, que contempla a estrutura. ao de sistemas que envolvem, além das praticas e ser- vigos de saiide, as ages politico-gerenciais que conferem organicidade e sustentabilidade ao processo de presta- Gao de servigos & populagao. ~ Praticas de sade As praticas de sade podem ser promocionais, preventivas, assistenciais ou reabiltadoras. As praticas de promocao da sal- de so medidas inespecificas de melhoria das condigdes eras, de vida e trabalho, incuindo acGes de educagio e comunicacso fem saiide destinadas a subsidiar a adogao de modos de vida saudaveis. As praticas preventvas, por sua vez, incluem medidas especticas de prevenclo de rscos e danos & sade das pessoas, a exemplo das aces de vigilancia epidemiol6gica e sanitiia. AS praticas assistenciais referem-se a cuidados dispensados a pes- 'soas doentes, podendo ser realizadas em diversos espacos: na ‘moradia, nas escolas, ambientes de trabalho e servicos de sade. ‘As praticas reabiltadoras incluem medidas de recuperacio da satde e reabiltado de fungdes vitas, a exemplo de locomocio, ‘meméri, fala etc, e geralmente so destinadas a pessoas que ‘apresentam deficiéncias genético-hereditaias ou sequelas de doencas e acidentes. ‘Nessa perspectiva “ampliada’, a transformagio do mo- delo de atencdo, para ser concretizada, exige a formulagio ¢ implementagao de politicas que criem condigées para ‘as mudangas no nfvel “micro”, ou seja, com o desenca- deamento de processos politico-gerenciais que criem condigées favordveis para a introdugdo de inovacdes nas, dimensdes gerenciais, organizativas e téenico-assisten- ciais propriamente ditas, isto 6, no ambito das préticas de satide. ‘\~ Essas mudangas podem incidir tanto sobre o contetido das pratioas como na forma de organizagio do processo de trabalho nos estabelecimentos de satide nos diversos niveis de complexidade, e também na forma de organizagdo das unidades em redes territorializadas de servigos que con- templem principios de economia de escala na distribuigéo territorial dos recursos e, ao mesmo tempo, busquem 0 ajuste possivel entre o perfil de oferta de agées e servigos ¢ ‘(as necessidades e demandas da populagdo (Teixeira, 2003). MODELOS DE ATENCAO HEGEMONICOS De modo bastante sintético, é fm afirmar - Capitulo 21 + Modelos de Atencio a Satide no SUS: Transformagao, Mudanca ou Conservagéo? modelo médico-assistencial hoapitalocéntrico & 0 modelo sanitarista. —AS bases conceituais ¢ organizacionais do modelo médico-assistencial hospitalocéntrico fundamentam-se na clinica, forma de organizagio da prética médica sur- gida na Europa do século XVIII, a partir da redefiniga0 o/papel'do hospital, que passou a ser um lugar de ob- servagao, classificagio e tratamento dos doentes (Fou- cault, 2011). Centrado na figura do médico, esse modelo tornou-se 0 espaco de reprodugio da chamada miedicina Gientifica desenvolvida a partir da segunda metade do séeulo XIX. Inicialmente organizado sob a forma da chamada me- dicina liberal, praticada fundamentalmente em consul- ‘6rios, esse modelo passou a organizar-se, progressiva- mente, sob a forma empresarial, na medida em que se dava a incorporagio de tecnologias produzidas a partir do intenso desenvolvimento cientifico observado na se- gunda metade do século pasado, o que fortaleceu ex- traordinariamente o papel do hospital e da rede de servi- 08 de apoio diagnéstico e terapéutico, Com isso, alterou- “se significativamente a maneira de financiamento dos servicos, que passaram do pagamento direto existente nna época da chamada “medicina liberal” para 0 paga- mento indireto, por meio dos sistemas de seguro-satide ‘ou dos sistemas de seguridade social, nos quais 0 Estado assume o financiamento dos servigos. (© outro modelo, por seu turno, desenvolveu-se a par- tir das iniciativas desencadeadas com a intervengio do Estado sobre as condigées de vida e satide da populacao, {sto é, em uma perspectiva radicalmente diferente da pro cura individual por euidados médicos. Jé no século XVIII, ‘com o Estado absolutista, surgi a Policia Média, na Ale- manha, ago estatal voltada fundamentalmente para 0 controle dos nascimentos e das mortes mediante 0 contro- Ie das doengas, principalmente as epidemias. No século XIX, na Franca, surgiu a Higiene; disciplina que subsi- dio uma ampla intervengio estatal sobre 0 espago ur- ano, principalmente sobre as condigles de saneamento, moradia, cemitérios etc., também visando ao controle das Condigdes de vida e satide da populagao. Na Inglaterra, esse perfodo, surgiu a Saiide Pabliea, conjunto de me- ddidas desenvolvidas pelo Estado para o controle de am- bientes, a exemplo de moradias e fébricas, bem como para agdes de “educagdo sanitéria”, visando a difusio de conhe~ ‘cimentos que subsidiassem “comportamentos saudéveis? osen, 1994) (© Brasil, pela posigdo que ocupava no cendrio inter- nacional durante o perfodo colonial, no perfodo do Impé- Hoe na primeira Repiblica, softeu a influéncia direta do ‘que se passava na Europa, principalmente na Franca ¢ na Alemanha, centros hegeménicos do desenvolvimento da medicina cientifica, ensinada nas Escolas Médicas da Bahia e do Rio de Janeiro, bem como sofreu a influén- 289 cia da Inglaterra, principalmente em raziio do dominio exercido pelo imperialismo britanico apés as guerras napoleénicas. Mais tarde, j4 no periodo republicano, © Rio de Janeiro, capital da Repablica, sera 0 condrio do surgimento de nossa Satide Publica, com o trabalho de- ‘senvolvido por Oswaldo Cruz no combate 4 epidemia de febre amarela. Rsses fatos constituem as origens do que veio a se tornar o “modelo médico-assistencial” 0 “modelo sani- tarista’, vigentes no Brasil & época em que se desenca- deou o movimento pela reforma sanitédria, Revisemos, portanto, brevemente, suas prineipais caracteristicas. Modelo médico-assistencial ‘medicina liberal, inicialmente privilégio de poucos que podiam pagar diretamente pelas consultas, geralmente prestadas nos domicifios, ao qual se acrescentava a préi- tica médica exercida nos hospitais das Santas Casas de Miserieérdia. Apenas nos anos 1920, os trabalhadores ‘comecaram a se organizar e fundaram Caixas de Aposen- tadorias e Pensées, que tinham entre suas atribuigdes a provisdo de recursos para compra de medicamentos, ‘No periodo Vargas, a partir da década de 1930, 0 Estado passou a responsabilizar-se pela assisténcia mé- dica ao contingente de trabalhadores inseridos no mer- cado formal de trabalho e seus dependentes, com a or- ganizagio dos Institutes de Aposentadorias e Pensdes (IAP). Estes progressivamente passaram a contar com servicos préprios, configurando-se uma “medicinal pre- videneiéria” caracterizada pela énfase no atendimento | individual, centrado no profissional médico e realizado principalmente no ambiente hospitalar. Paralelamente, | populagao que nao tinha condigdes de pagar pelos ser- | vigos nem era “trabalhador com carteira assinada’, ou | seja, a grande maioria da populacio pobre, era atendi- da (ou no) como “indigente” nos servigos assistenciais ‘mantidos pelas secretarias estaduais ¢ algumas secre- tarias municipais de saide (Oliveira & Teixeira, 1979). | ssa situaglo se manteve no periodo pée-1945, quan- do ocorreu a expansio da cobertura assistencial dos tra- balhadores vinculados aos IAP, que passaram a creden- ciar médicos e comprar servigos de hospitais privados, contribuindo assim para a expansio da rede particular. ‘A partir de 1964, esse processo se intensificou com a conformagio de empresas médicas, que passaram a ser financiadas pela expansio das diversas modalidades de seguro, assegurados por empresas piblicas ou privadas ou financiados por usustios individuais e suas familias. Esse processo estruturou as bases dos dois sistemas de prestacdo de servigos de satide existentes na época fem que se comegou a discutir a possibilidade de uma 290 ampla reforma sanitaria: de um lado o sistema pablico, constituide por um conjunto heterogéneo de instituigdes em varios niveis de governo, e do outro o sistema priva- do, composto por empresas médico-hospitalares, servi- 505 ambulatoriais, elinicas e polictinicas. Cabe enfatizar entretanto que, do ponto de vista da organizacao do processo de prestagio de servigos, tanto hos servigos ptiblicos como nos privados reproduzia-se 0 modelo médico-assistencial hospitalocéntrico, ainda que no mbito do sistema piblico esse modelo convivesce com modelo sanitarista, 10 veremos a seguir. No sistema piiblico, ademais, grande parte da rede assistencial cra composta por servigos-privados-contratados e convenia- 05, 0 que levou alguns autores a considerar, ou privatista o modelo assistencial i Acriagao do Sistema Unico de Saiide (SUS), a partir das lutas pela Reforma Sanitaria nos anos 1980, no con. texto da redemocratizacio do pafs, implicou a “integra- ‘s@0” dos servigos piblicos das diversas instituigées, que passaram ao comando tinico em cada esfera de governo, ou seja, ao comando do Ministério da Satide (que incor. porou o antigo Inamps), ¢ ao comando das secretarias estaduais ¢ municipais de satide em seus respectivos territérios Com isso, 0 SUS “herdou” 0 modelo de aten; dico-assistencial hospitalocéntrico e privatista, ‘Wo-se, assim, um-espago de conflitos e negociagies e em torno das propostas dé mudanga ou conservagao do modelo de atengao. Essés processos ocorrem tanto no Ambito do Ministério da Saiide como no das secreta- rias estaduais e municipais de satide, cendrio em que se enfrentam e articulam propostas politicas e estraté- | gias de reorganizagao do tnodelo de atengao em varias de \ suas dimensées. Modelo sanitarista’ Embora seja possivel identificar o desenvolvimento de algumas ages de controle sanitrio no Brasil Colénia e Império, os estudiosos do tema concordam em datar 0 surgimento de uma acdo organizada do Estado brasilei- ro na Repiiblica Velha, com as “campanhas sanitérias” de controle-de epidemias que ameacavam o desenvolvi- mento econémico do pais (febre amarela, variola, peste), realizadas sob comando de Oswaldo Cruz, no Rio de Ja- neiro, no inieio do século XX. Seguindo 0 processo que caracterizou o desenvol- vimento cientifico-téenico e organizacional na Area, 0 modelo sanitarista incorporou, ao longo do século XX, além das campanhas, que ainda subsistem, a elabora- sio e implantagao dos programas especiais de controle de doengas e outros agravos, camninhando, a partir dos ‘anos 1970 para a implantagao de sistemas de vigilancia ¢m satide, processo ainda em curso no ambito do Si Segdo IV + HEMISFERIO SUS As campanhas sanitérias caracterizam-se por seu cardter esporddico ou por sua realizagao periddica, de acordo com as caracteristicas epidemioldgicas da doen- a ou agravo que se pretende erradicar ou controlar. Os programas especiais, também chamados “programas verticais", resultaram da institucionalizacao de algumas campanhas, ganhando permanéneia nas estruturas bu-~ roeriticas das instituigdes piiblicas de satide, a exemplo dos programas de controle da malaria, tubercul mais recentemente, dos programas de controle da.den. gue, AIDS, hipertensao, diabetes etc. A implantagio de sistemas de vigilincia em sade, por stia vez, tem origem de um lado na andlise critica acerca das insuficiéncias das campanhas e programas, , do outro, na constatacdo de que, ainda que se alcance “controle” de determinadas doengas e agravos, é neces- sdrio manter uma vigilancia permanente sobre casos, a exemplo de éventuais surtos de doencas transmissiveis e riscos como aqueles decorrentes da exposigio da popu- lacao a fatores ambientais, biolégicos e sociais. - Nessa perspectiva, em meados dos anos 1970 instituida a legislacao especifica que tornou obrigatéria @ notificagio” de doangas_transmissiveis-selecionadas, \ agravos inusitados a saide pibliea-e situagdes-de cala- midade publica que oferecam riscos & satide, sendo eria- do 0 Sistema Nacional de Vigilancia Epidemiolégica, no qual se pretendia incluir 0 conjunto de servigos de satide piiblicos e privados, desde entao responsiveis pela pro- dugio de informacdes a serem analisadas pelos érgios cespecificos de vigilancia criados no ministério da satide e nas secretarias estaduais de satide. Além disso, foram sendo desenvolvidas agées de Vigi- lancia Sanitéria, as quais eram inicialmente realizadas de modo burocrético e cartorial, limitando-se, na maio- ria das vezes, ao fornecimento de alvarés para o funcio- namento de estabelecimentos comerciais cujos produtos € servigos podem oferecer riscos a satide, como farmé- cias, restaurantes, hotéis, elfnicas, hospitais, saldes de beleza, entre outros (Costa, 1999) A partir dos anos 1990, o processo de descentrali- zacao da gestao do SUS levou a criagdo de estruturas administrativas em secrétarias estaduais e municipais responsdveis pela execusdo de agées de vigilancia. No Ambito nacional, a coordenagao das ages de vigilancia epidemiolégica e ambiental passou a ser responsabili- dade da Secretaria de Vigilancia em Satide (SVS), que reuniu no Ministério da Saiide o programas especiais © as agdes de vigilincia epidemiolégica realizadas por érgios federais distintos. Mais recentemente, a SVS incorporou a responsabilidade por agies de vigilan- cia ambiental, desenvolvendo sistemas de informagao acerca da qualidade da agua, do ar e do solo em parce- ria com outros érgios governamentais que atuam na rea de meio ambiente. Capitulo 21 + Modelos de Atencdo a Saude no SUS: Transformagio, Mudanca ou Conservagao? 291 Tabela 21.1 + Caracteristicas dos ‘modelos de atengéo* prevalentes no Basi Modelo Sujeito Objeto Meios de trabatho Formas de organizagao Masico-assstencial dco Doangaedowriey Teenologia méca Rede de servos de de (individuo} __ Hospital Sanitarista Seniors Modelos de transmissao; Tecnologia sanitaria (educagdo Campanhas sanitérias doengas Por outro lado, com a Reforma do Estado, em 1999, \ foi criada a Agéncia Nacional de ‘Vigilancia Sanitaria (An- visa), que passou a se responsabilizar pela coordenacio nacional da politica e das agdes nessa area, desenca- deando um processo de constituigaio do “sistema nacio- nal de vigilancia sanitéria’, que inclui a articulagao com os érgiios existentes nas secretarias estaduais, bem como a criag&o e o fortalecimento de setores correlatos nas secretarias municipais de savide. PROPOSTAS DE MUDANCA DO MODELO DE ATENCAO Pelo exposto anteriormente, pode-se constatar que 0 modelo de atencio a satide hegeménico no Brasil é 0 modelo médico-assistencial hospitalocéntrico, que su- bordina, inclusive, as agdes e servigos modelo sanitarista implement (Tabela 21.1). Por suas caracteristicas intrin tretanto, esse modelo vem apresentando sinais de uma “crise permanente”, caracterizada pela tendéncia ine- xordvel de elevagdo de custos, redugfo da efetividade diante das mudancas do perfil epidemioldgico da popu- lacdo, crescente insatisfacao dos profissionais e traba. Ihadores de saude ¢ por iltimo, mas no menos impor- tante, pela perda de credibilidade ¢ confianca por parte da populagdo usudria. ~“Essa crise comegou a ser identificada e analisada j4 no infcio dos anos 1970, apontando-se, além dos determi- nantes estruturais (subordinagao & légica do capital, isto 6, a mercantilizagdo dos servicos de satide), as caracte, risticas especificas do sistema piiblico de sade brasilei 16, marcado pela baixa cobertura assistencial, além da ineficiéneia administrativa, ineficdcia técnica e auséncia de coordenagaio interinstitucional. Esse “diagndstico” encontra-se na base do movimen- to pela Reforma Sanitaria Brasileira, tendo estimulado a claboragio da proposta de criagio do SUS, cujos prinef- pios e diretrizes apontam para a necessidade de supera- ‘lo desses problemas, especificamente no que diz respei- to a busca de universalidade, integralidade e equidade na prestagio de servigos, sendo possivel acrescentar a necessidade de garantia da qualidade, 0 atendimento as fatores de risco das diversas ‘em saide, controle de vetores, imunizacao etc) Programas especiais, Sistemas de vigiincia epidemiolégica, sanitéria e ambiental necessidades prioritérias de satide da populagéo e a hu- manizagao da atengao. Nessa perspectiva, tém sido elaboradas varias pro- ostas de mudanga do modelo (Silva Jiinior, 1998), o que demanda, portanto, que se analisem suas origens, bases conceituais e organizacionais e, principalmente, 0 modo ‘como elas tém sido incorporadas ao cotidiano da gestao do SUS. Para isso, consideramos necessério fazer uma dis- tingdo entre as propostas oriundas de movimentos ideols- gicos de reforma em satide, elaborados nos “centros hege- ‘ménicos”, a exemplo dos EUA e do Canada, e as propostas alternativas elaboradas por pesquisadores brasileiros do campo da Satide Coletiva, construfdas a partir da critica “refuncionalizacao” das ideias originais propostas pelos movimentos de reforma difundidos no cendrio internacio- nal. Disso tratamos nos itens a seguir. Propostas dos movimentos ideolégicos de reforma em satide Ao longo do século XX surgiram varios movimentos ideoldgicos' na area da satide, propondo a introdugao ou revisio de conceitos e estratégias, isto é, concepgdes acerca da satide-doenca e das formas de organizagao das respostas sociais aos problemas e necessidades de satide, especialmente as formas de organizagio da produgao de ages e servigos, Aemergéncia desses movimentos, seja no ambito do ensino das profissées de satide, seja no ambito da orga- nizagdo dos servigos, tem como determinante a crise do modelo médico-assistencial prevalente nas sociedades capitalistas contempordneas. Além disso, o surgimento de cada movimento ideoldgico especifico, como a medici- na preventiva, nos anos 1940, a medicina comunitaria e @ medicina familiar, nos anos 1960, a atengao primaria a satide, nos anos 1970-1980, a promogao da satide, nos anos 1980-1990, ¢ o debate atual em torno dos determi- nantes sociais da satide respondem a determinagdes con- junturais, "Um movimento ideolégico resulta da mobilizaglo de pessoas, gru os e instituigdes em torno de ideias relativas a determinado tema implica, geralmente, uma mudanga no contetido e na forma como este é tratado em determinado momento histérico. 292 SegioIV + HEMISFERIO sus Ao deixarem seus paises de origem e se difundirem para outras sociedades, entretanto, suas nogées e valo- res podem ser ressignificados e suas propostas podem Passar por uma “refuncionalizagdo”, na medida em que sejam apropriadas por sujeitos sociais com interesses distintos. No Brasil, esses movimentos tém influencia- do a formulagio de politicas e estratégias de mudanca na formagao de pessoal e na organizagao dos servigos de satide nos tiltimos 30 anos, valendo a pena, portanto, re- visar suas bases conceituais, Medicina preventiva, comunitdria e familiar A'medicinerproventivé foi um movimento surgido nos EUA em reagio da Associaga Americana A ‘possibilidade de intervengao estatal na organizagio social da assisténcia, Representando “uma leitura liberal e civil” Grouca, 2003) da prétiea médica, a medicina preventiva colocou-se como uma proposta de reforma parcial da pré- tica médica a partir de mudangas no ensino meédico, para que o profissional viesse a adquirir uma “atitude preven- tiva” e incorporasse, a sua pritica, condutas preventivas e nao apenas condutas diaghdsticas terapéuticas. Para 1880, © contetido do ensino deveria integrar os conheci- mentos da Satide Piblica com a clinica, incorporando dis- ciplinas como epidemiologia, demografia, estatistica, ad- ministragdo e ciéncias sociais, especialmente as “ciéncias da conduta”, permitindo ao médico o desenvolvimento de ‘uma “visio integral” do paciente. As bases conceituais da i entiva_in- clufam uma concepsao dindmica da satide e da doenca, entendidas como parte de um processo continuo, a par- tir do qual é possivel estabelecer uma “histéria natural” base para a reorganizagdo da pratica médica. Conforme definem Leavell & Clark (1978: 15), “Histéria Natural da Doenga (HND) é o nome dado ao conjunto de processos interativos compreendendo as inter-relagdes do agente, do suscetivel e do meio ambiente que afetam o processo global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forcas que criam o estimulo patogénico no meio ambiente, ou ‘em qualquer outro lugar, até as alteragdes que levam a um defeito, invalidez, recuperaco ou morte”. A nogdo de HND incorpora uma visao dinamica do processo satide- -doenga e possibilita o estabelecimento de “niveis de pre- secundaria e tercidria, de acordo com © momento do processo da HND no qual se da a interven- fo (Figura 21.1), Os conceitos basicos da medicina preventiva foram mantidos no corpo doutrinério dacinedicina comunita- ria, movimento ideolégico surgido nos anos 1960, tam- bém nos EUA, no contexto da luta da populagao negra pelos direit ivis. A principal diferenca em relagdo & medicina prevent va, do ponte de vista tedrico, é 0 fato de a medicina comunitéria incorporar a comunidade como seu objeto de conhecimento e intervengao, ¢ ‘supe- vando, assim, a visdo individualista da clinica, presente no movimento preventivista (Donnangello, , 1976; Paim, 1986a). Em consequéncia dessa opgio com relagao ao ob- jeto, a medicina comunitaria tratou de incorporar co- nhecimentos, métodos e téenicas que possibilitassem HISTORIA NATURAL E PREVENCAO DE DOENCAS* Interelagso entre Wore Def, ivabiez oeiTe, suscarivee HORIZONTE CLINICO _ f Airagées de tecos AMBIENTE que produzem F ateragaes de tecidos Recupergio ESTIMULO a doenga INTEGRACAO—> ‘SUSCETIVEL-ESTIMULO REAGAO —> ee “ov, Petodo de pr-patagénese Proto de patogenese PROMOCAO | REABILIT/ Beets rAGAO | PROTEGAO ESPECIFICA DIAGNOsTICO | “Precoce | RATAMENTO —/_LIMITAGAO DE / MEDIATO” —AOMPNCAS AOE Proven pina I Proves ecu NIVEIS DE APLICAGAO DAS MEDIDAS PREVENTIVAS Figura 21.1 + Diagrama da HND. Fonte: Paim JS, 1994, Capitulo 21 + Modelos de Atencio a Saude no SUS: Transformacéo, Mudanca ou Conservacao? o reconhecimento das necessidades de saude da popu- ‘40, suas caracteristicas econémicas e culturais, va- Torizando a utilizagao da sociologia e da antropologia. Do ponto de vista da organizagao das praticas) a prin- cipal caracteristica da médicina comunitéria foi arti- cular a nogao de “niveis de prevengao” incorporada no discurso da medicina preventiva ao estabelecimento dé “niveis de atencdo” a saiide no ambito de “sistemas ‘deservigos de satide”, além de eleger a “participagio comunitéria” como uma de suas prititipais diretrizes estratégicas. ‘As concepcdes da medicina comunitaria foram di- fundidas internacionalmente a partir dos anos 1970, “H partir do movimento ideolégico-em torno da Aten- cao Primaria & Satide (APS). A APS, concebida como estratégia_dé reorganizagéo do8_servicos (Starfield, 2002), tem subsidiado a elaboracao e implementacio de politicas de descentralizagao da gestio © redefinicio da oferta de servigos de satide em sistemas de satide. Sua reducdo a um “pacote de servigos basicos de sati- de” para populacdes pobres constit i ‘ixos das propostas preconizadas pelo Banco Mundial na década de 1990 para paises em desenvolvimento (Costa, 1996). Alideia de eleger a “familia” como foco do cuidado & satide é um dos elementos centrais do mavimento ideo- ‘Tégico da medicina familiar, também surgido nos anos 1960, no contexto da busca de alternativas que garan- tise a manutengao da hegemonia da pritica-médica clinica © hospitalocéntrica. Diante da crescente incor- poragdio teenolégica ao Cuidado individual, da tendéncia A especializacdo e superespecializagio médica e das criticas quanto a “desumanizacdo" do atendimento, a medicina familiar busca resgatar a formagio do “clini- co geral” capaz de prestar cuidados integrais a familia, porta de entrada para os servigos especializados (Paim, 19868). = ‘A meditina familia \se diferencia da medicina pre- ventive-porque nao é uma proposta de mudanga de ati- tude do médico em geral, e sim a criago de uma nova especialidade: a do “médico generalista”, daf que sua for- maga deveria ser feita, inclusive, nos cursos de pés-gra- duagio (residéncias em Medicina Geral e Comunitsria). Do ponto de vista conceitual, a medicina fami icagio tecnoldgica proposta pela medicina co- ‘munitdria e, do ponto de vista organizativo, assimila 0 processo de capitalizagao da assisténcia ambulatorial e laboratorial, expressando-se na valorizagio das “clini- cas" ¢ “policlinicas” (empresas médicas). No Brasil, esses movimentos influenciaram a intro- dugao dé mudangas na formacao de pessoal em satide no mbito universitério, a exemplo da criagao dos departa. mentos de Medicina Preventiva nas escolas médica e de pFogramas de pés-graduagio em Medicina Comunitéria 293 residéncias em Medicina Geral e Comunitdria. Tam bém influenciaram a elaboragao de propostas de mudan- ‘ca nas politicas e na organizacio dos servigos publicos de satide, como os Programas de Extensdo de Cobertura nos’anos 1970, assim como a proposta de implantagao dos Sistemas Locais de Satide (SILOS), na época da im- plantagao do SUDS e, mais recontemente, no contexto de ‘construgio do SUS, a Politica de Atengo Basica (Brasil, 2011) e a Estratégia de Satide da Familia Giovanella & Mendonga, 2008). Promogéio da satide, “nova” satide publica e determinantes sociais da satide ‘Além dos movimentos ideol6gicos que propdem mu- dangas na organizagéo da prética médica, adjetivada como “preventiva”, “comunitéria” ou “familiax”, surgiram ‘movimentos que propdem mudancas na forma de inter- io do Estado sobre os problemas e necessidades de “saiide da populagao, sugerindo ampliagao, redefinigao ou redugio das fungSes e responsabilidades historicamente ‘Na contemporaneidade, 0 primeiro movimento com essa abrangéncia foi articulado em torno da promocaio da _satide, entendida como uma “nova perspectiva” com re- lagao as politicas de satide. 0 documento que sistemati- za as propostas desse movimento 6 @Relatério Lalonde (1974), ponto de partida para a reformulagio da polfti- ca de saide canadense, consubstanciada naCarta de~ ‘Ottawa>)de 1986. Esse movimento traz uma inovagao coneaittial em relagio ao processo satide-doenca, com a redefinigo e atualizagio do “modelo ecolégico” me- diante a elaboracdo da proposta de “campo da satide” (Dever, 1984). “Atualizacdo”, “redefinigao”, e nao subs- tituigdo por um modelo radicalmente distinto, porque 6 principio que rege 0 modelo ecolégico é © mesmo que rege 0 modelo do “campo da satide”, ou seja, a ideia de “multicausalidade” dos fenémenos relacionados com 0 processo satide-doenca. Apenas os “fatores causais”, an- teriormente organizados na triade agente-hospedeiro- -ambiente, passam a ser dispostos em um modelo com- posto pela biologia humana, ambiente, estilos de vida e sistemas de servigos de saide (Figura 21.2). Do ponto de vista da prética, a promogdo da saide também se diferencia dos movimentos anteriores, prin- cipalmente porque desloca radicalmente o eixo organi. zacional da atencdo & Saiide da figura do médico para a ‘agfo social e politica em torno da criagio e manutengdo de condigées saudaveis de vida. Coerentemente com a concepgao de “campo da satide”, essas ages podem ser ‘desenvolvidas om planos distintos, incluindo desde mu- dangas nos “estilos de vida” das pessoas, até interven- ‘¢0es ambientais e mudaneas nas politicas econdmicas ¢ sociais, inclusive mudancas na organizagao dos sistemas e servicos de satide. 294 Segdo IV + HEMISFERIO SUS UM MODELO EPIDEMIOLOGICO PARA ANALISE DA POLITICA DE SAUDE (DENVER, 1988) MATURIDADEE |__[ BIOLOGIA HERANCA ENVELHECIMENTO | HUMANA GENETICA SOCIAL | RECUPERACAQ, [Pacotsaico } roe Ok. yremniencao |[ cURATVO | PSIGOLOGICO AMBIENTE ge epmEMoLd ORGAN i [ Paicordaico | ISE DA — PoLMén DE SAUDE sivas FisiCO PREVENTIVO — PARTICIPAGAO NO RISCOS DA enprecorRecos [—| qcESTOPEMBA | | gtivibabe OE OCUPACIONAIS LAZER See eee eee PADROES DE ‘CONSUMO, Figura 21.2 + Diagrama do campo da sade. As ideias e propostas em torno da promogio da sai- de tém sido absorvidas por organismos internacionais nacionais. A Organizagdo Mundial da Satide (OMS) lai ou o Programa das Cidades Saudiveis em 1994 e es mulou a revalorizagio da gestdo local, municipal e dis- trital, propondo a articulacao de politicas intersetoriais voltadas para a melhoria da qualidade de vida das pes- soas e dos diversos grupos populacionais (Ferraz, 1999; Teixeira, 2002). Esse processo tem repercutido no Bra- sil, estimulando 0 desencadeamento de um conjunto de iniciativas em varios nfveis de governo, principalmente a partir de meados dos anos 1990, proceso que culmi- now com a aprovacio da Politica Nacional de Promogao da Saiide, em 2006 (Brasil, 2006). Enquanto os canadenses discutiam a possibilidade de reorientar sua politica de savide com base na “pro- mogao da satide”, surgiu, nos EUA, outro movimento es- pecificamente voltado para proposi¢ao de mudancas nas priticas de Saiide Piblica. Originario do relatério da “Comissdo para o Estudo do Futuro da Satide Publica” (Institute of Medicine, 1988), esse movimento inspirou 0 debate acerca da dicotomia Saiide Puiblica-Assisténcia ‘Médica e gerou a elaboragio de propostas em torno das “tarefas basicas” da nova Sade Piblica, quais sejam: prevengio das doencas infecciosas; promogio da satide; melhoria da atengdo médica e da reabilitacio (Terris, 1992) Na América Latina, esse movimento se traduziu na proposta de definigio das Fungées Essenciais da Satide Pablica, difundida pela OPAS durante os anos 1990, pe- riodo de ascensao do neoliberalismo e do debate em tor- no da redefinigdo e reduedio do papel do Estado, inclusive no ambito das politicas sociais e de satide em particular. No Brasil, esse movimento repercutiu principalmente no debate em torno da definigao das fungdes e compe- téncias das secretarias estaduais de satide, por conta do proceso de descentralizagao da gestdo do SUS (OPAS! CONASS, 2007), Mais recentemente, a QMS desencadeou um movi- mento internacional voltado para @ anilise da situago “de satide e seus determinantes sociais, promovendo in- clusive a organizagdo de comissées encarregadas desse trabalho como forma de sensibilizar os governos a adota- rem politicas intersetoriais voltadas para a melhoria das condigdes de vida e sade das populagées, Esse movimen- to fundamenta-se em uma concepoio abrangente de sat de, sistematizada no diagrama proposto por Dahlgren & Whitehead (1991), que incorpora, além dos deter Tes Ccondmicos € sociais, os detarm sinantes biolégicos (ge- nético-hereditatios),intetpondo entre eles a agao social organizada em redes de apoio (suporte a vida e & satide), constituidas por Organizagdes governamentais e no go- vernamentais, ou seja, associagies comunitérias e movi- ‘mentos sociais (Figura 21.8). Ainda que esquemético, o diagrama apresentado na Figura 21.3 “atualiza” de certo modo o debate acerea dos fatores de risco e de protegio que atuatn na determiins- ‘do do processo saiide-doenca em populagées, indicando a possibilidade de desenvolvimento de intervengées que extrapolam a agdo do Estado e de governos, convocando. 5 pessoas € grupos sociais a se mobilizarem na defesa e Protepio de suas condigdes de Videre sade: Capitulo 21 + Modelos de Atencao 3 Satide no SUS: Transformagio, Mudanga ou Conservaca0? 295 Coolie PAA TCR Figura 21.3 + Diagrama dos determi Propostas redefinidas e/ou elaboradas no / ambito do SUS (0 -processo- de construslo-do-SUS-Tsir contitudo ‘um imenso e diversificado espaco de investigacao, expe- rimentagao e elaboragao de propostas alternativas que incidem sobre varias dimensdes e aspectos do modelo de atengio vigente. Para isso concorrem diversos pesquisa- dores e grupos de pesquisa que, além de tomar o SUS como objeto de estudos, se envolvem direta ou indireta- mente, por meio de assessorias e cursos, na formulagao e implementagio de propostas em diversos niveis, desde 0 nivel local, em unidades de satide especificas, até o nivel nacional. 0 registro e a anélise dessas experiéncias, bem como fa sistematizagio de suas bases conceituais, metodolégi- cas, organizacionais e politicas, constituem, hoje, um am- plo acervo de textos téenicos e produtos da prética cien- tifica nos quais podemos nos apoiar para caracterizar as prineipais propostas de mudanga do modelo de atengao elaboradas nos tiltimos 30 anos. Distritos sanitérios de Distritos Sanitéi Ieatiana em Sauide, ainda no perfodo anterior ao SUS, ‘quando da implantacao do SUDS, esten zi “meiros anos da-década de 1990 (Mendes, 1993; Teixeira & Melo, 1995) Inspirados na proposta de organizagao dos SILOS ena experiéneia das Unidades Santeérins Tacais (USL) tes 50 [imeretriade| | Patcloardo Intervengées sobre os DSS baseadas em evidéncias e promotoras da equidade em sade ‘da saide. (Dahlgren & Whitehead, 1991) do sistema de satide italiano, os DS constituiram uma estratégia de reorganizagao dos servigos que adoi ava a perspectiva sistémica, zando a base territorial como critério Tundamental para a definicao da popula ‘do coberta edo perfil de oferta dos servicos, levando em i diversos niveis de complexidade , principalmente, o perfil d da e a identificagio das necessidades de saiide da-populagio. a Do ponto de vista conceitual e metodol6gico, essa pro- posta retomava a proposta contida no método CENDES (OPS, 1965), articulando alguns de seus conceitos-chave com os avangos da geografia critica, da epidemiologia e do enfoque situacional de planejamento. Nesse sentido, contemplava a delimitagao dos territérios corresponden- tes a area de abrangéncia da rede de servicos, nos quais se recortava a area de abrangéncia de cada unidade, espago esquadrinhado a partir das possibilidades tecno- légicas abertas com o geoprocessamento de informagées (Kadt & Tasca, 1993). A incorporacio do enfoque situacional do planejamen- to em satide, por sua vez, subsidiava a andlise de situa- 8e8 a partir da identificagio e descrigio de problemas, possibilitando uma (re)articulagao entre a epidemiolo- gia, o planejamento e as ciéncias sociais, voltadas para a construgao do(s) objeto(s) de intervengao, fossem doen- gas, agravos ou determinantes das condigdes de satide (Teixeira, 1993, 1994; SA & Artmann, 1994). Oferta organizada/acées programéticas de saude No mesmo contexto em que se desenvolveu a implan- taco dos distritos sanitérios, foi elaborada uma andlise critica da légica de atendimento a “demanda esponta- 296 ‘ea, que caracterizava os estabelecimentos de satide da rede publica, propondo-se a articulagdo dessas ages com “oferta organizada” de servigos e as agoes previstas nos “programas especiais”, apontando, assim, o que poderia + feito em cada unidade para a reorganizagio da oferta ‘esarvigos, tendo em Vista'a racionalizagio da oferta e a integralidade da atengio a satide da populagao (Teixeira & Paim, 1990). : Paralelamente, a experiéncia desenvolvida em um Centro de Satide-Escola do Municipio de So Paulo, con- duzida pelo grupo do Departamento de Medicina Preven- tiva da USP, constituiu o solo onde germinou a reconcei- tuago da proposta de programagio em satide, entendida como forma de reorganizacio do processo de trabalho em satide, Nessa perspectiva, a definig&io de “ages programa- lades e proble- as especificos da populagéo usudria da unidade bisica dé satide passa a ser ponto de partida para a reorientagao a Tgica de atengio a saiide com énfase na incorporagdo de uma perspectiva epidemioldgica e social Gchraiber, 1990, 1996). Ambas as propostas tém como foco a reorganizacio do processo-de trabalho e do processo de produgao de gos desenvolvido em uma lnidade de saiide, seja tomando como ponto de partida a possibilidade de ar- ‘Yiculagio das diversas “ofertas” disponiveis na unidade, ‘seja partindo da identificado.das necessidades sociais de satide para a redefinigdo do perfil de oferta dos servi- ‘qos segundo grupos populacionais especificos. Vigilancia da saide No Brasil, a Vigilancia da Satide (VISAU), como pro- posta alternativa de mudanga'dos modelos de atengdo ‘hegeninicos, surge no final dos anos 1980 e inicio dos ‘anos 1990, em um momento de elaboracdo e experimen- tagio localizada de distritos sanitarios, com o apoio da OPAS e da Cooperagao Italiana em Satide (Mendes, 1993; Paim, 1993b; Teixeira & Melo, 1995). A partir da.“ funcionalizagio” do modelo da HND (Leavell & Clark, 1978), da incorporagao do debate do movimento pela promogao da sade e dos pressupostos do modelo da determinagio social do processo satide-doenca em cole- tividades humanas, a VISAU tomao ideal da integrali- dade da atengdo como imagem-objetivo a nortear arran- jos teenologicos entre praticas articuladas voltadas para o controle de determinantes, riscos e-agravas a-satde. Essa proposta assume como objeto de trabalho 0s. problemas de satide que incidem e1 © populagées que vivem em ‘determinados territ operacionatizagao da VISAU implica arranjos tecnol6 cos que arttculam a dimensio gerencial@ dimensio téc- nica das"praticas de saude. O ponto de partida para o desenvolvimento de ages da VISAU consiste na delimi- taco de um territério-populagio sobre o qual profissio- IV + HEMISFERIO Sus nais de satide e representantes da populagio organizada iro discutir e deliberar sobre os problemas de sade e propor intervengées que incidam sobre seus determi- nantes e condicionantes. O proceso de deliberagio s0- bre os problemas e respectivas intervengées apoia-se em abordagens participativas de planejamento, em especial aquelas baseadas no enfoque estratégico-situacional do planejamento em satide, inspiradas nas contribuigdes de Carlos Matus e Mario Testa (Teixeira, 1993) "As intervengdes propostas para enfrentar os proble- mas de satide prioritarios incluem desde agbes de contro. ledos determinantes, especialmente aquelas que exigem a conjugagio de esforgos de articulagdo intersetorial, passando por agdes de protegio especifica, de prevencdo de riscos atuais ou potenciais, de triagem e diagnéstico precoce, até a redugio de danos ‘siveis sequelas, mediante ages de reabilitacio. Nessa perspectiva, a VISAU est desenhada de modo que as intervengées sobre 03, | problemas de s de satide destinem-se, ‘W modo articulado, aos diversos niveis de prevencio (priméria, ‘secundaria e tercidria) nao apenas “noambi- to individual, como proposto pela medicina preventiva, imas também no ambitacoletivo ou populacional. ‘Desse modo, a VISAU busca pulacional” (promogiio) com 0 “enfoque de risco” (preven- Gao) € 0 enfoque clinico (assisténcia) constituindo-se em ‘um referencial para implantagao e reorganizagio de um conjunto de politicas € praticas que podem assumir con- figuragées esp de acordo com a situacdo de satide da populacdo em cada pais, estado ou municipio (terri- térios). ‘Oconjunto de praticas, saberes e tecnologias contem- plados nessa proposta pode ser visualizado no diagrama mostrado na Figura 21.4, que articula as estratégias vol- tadas para 0 controle de danos, riscos e causas, sugerindo uma integracao das politicas transetoriais, as vigiléncias e assisténcia médica, recortadas pela articulacao entre as intervengdes sociais organizadas e as agées programsti- cas definidas no Ambito dos servigos de satide, além de contemplar “o didlogo com as medidas preventivas pensa- das para o nivel individual, como se pode observar em sua parte inferior” do diagrama (Paim, 2008). Cabe ressaltar que a operacionalizagao dessa_pro- posta extrapola o conjunto de profissionais e trabalhado- ‘res de saiide 8 envalvar a populagio organizada. Nessa ~perspectiva, a intervengio também extrapola o uso dos conhecimentos e tecnologias médico-sanitérias e inclui tecnologias de comunicagio social que podem ser utili zadas para mobilizagio, organizacdo e atuacao dos di- versos grupos na promogao e na defesa das condicies de vida e satide. A proposta da VISAU, portanto, transcen- de os espagos institucionalizados do “sistema de servigos de satide” e se expande a outros setores e érgiios de aco governamental e no governamental. capitulo 21 + Modelos de Atencao & Satide no SUS: Transformacao, Mudanga ou Conservagao! 297 ‘CONTROLE ‘CONTROL ‘CONTROLE De DE De CAUSAS RiSCos DAN 2 Grupos de & Epidemioiogia —y? 2 | zg < o 68 Atuais > Cura 88 Indies _, Indcios _, casos-|—» Seauela 3 4B P| Riscos |» exposigso ——e| cieices.—» Nanos > ae Eg Potoneiis g 2 ‘Senso comum B | seroma ape Arle G Expostos 4 ‘aa Actes programas de sade feta organizada organizada Vigénci sentria a Polticas ables Vinci epidemictogica transotorais | I ae Assisténcia médico-hospital ee Diagnéstico | Limes Ps Protegdo eae Reabiitagao dasatse | dasaide recoce anos CConsciéncia sanitaria e ecolégica/educagdo em saide Figura 21 Acothimento/clinica ampliada ‘Ainda nos anos 1990, surgem os primeiros estudos do grupo de pesquisadores da Unicamp sobre gestdo e organizacao do trabalho no émbito das unidades de sai- de, base conceitual para a posterior formulagao de pro- postas que se tornaram conhecidas como o ‘modelo em defésa da vida”. Um dos pilares dessa proposta € a preo- cupagio com 0 acolhimento e estabelesimento de vinew los entre-os profissionais e a populagéo que deman« 08 servigos (Campos, 1994; Cecilio, 1994; Merhy, 1994; Franco, Bueno & Merhy, 1999). oe A organizagio de priticas de “acolhimento” A clien- tela dos servigos publicos de sade e 0 estabelecimento de vinculos entre profissionais e clientela implicam mu-_ dangas nna “porta de entrada” da populagao aos servigos com introdugdio de mudangas na reeep¢a0 ao usuario, no Diagrama da viilnca da saide. (Fonte: Paim JS, 2008) agendamento das consultas e na programagio da pres- tagio de servicos, de modo a incluir atividades derivadas na “releitura” das necessidades sociais de satide da po- pulagio (Merhy, 1994). Além de contribuir para a hu- manizagao e melhoria da qualidade da atengao, o acolhi- ‘mento pode ser entendido como uma estratégia de reo- ‘Fientagdo da atengao A demanda espontanea que pode “Wer eheitos significativos na racionalizagao dos recursos ¢ 6 relagdes entré 0s profissionaisde-satide € 0s usuarios, tanto do ponto de vista téenico-politico como ético Gola, 2006). ‘Um dos autores desse grupo posteriormente elaborou ‘uma proposta sistemética de reorganizagio da clinica, denominada “clinica ampliada”, cujos pilares si a cons. tituigdo de “equipes de referéncia”, o “apoio matricial” ¢ a “elaboracdo do projeto terapéutico singular” (Campos, 298 SegdoIV + HEMISFERIO sus 1999, 2003; Tesser, Neto & Campos, 2010). Trata-se de uma proposta que visa “ajudar usuarios e trabalhado- res de satide a lidar com’a complexidade dos sujeitos ¢ @.multiplicidade dos problemas de satide na atualida- de”, de modo a superar a fragmentagdo produzida pelos “recortes diagndsticos e burocraticos”, ao mesmo tempo: que estimula os usuérios, “buscando sua participagao e autonomia do projets terapeitico”. A difusao e incorporagao dessas ideias ao debate no Ambito das instituigdes gestoras do SUS, em nivel fede- ral, estadual e municipal, tém contribuido para a pro- blematizagao da chamada “(des)humanizagao” do aten- “dimento, subsi@iando a formuilagio da Politica Nacional dé Humianizagao, cujo objetivo & estimular o debate em torno dessas questées e propiciar o “aumento da eficdcia das praticas clinicas” (Deslandes & Ayres, 2005; Pasche & Passos, 2010). Satide da familia “Criado emi 1994, o Programa Satide da Familia (PSF) passou a ser tratado, no discurso governamental (Brasil, “1998), como estratégia de reorientagiio dos modelos de atencio vigentes no Brasif articulada ao processo de des- centralizagdo das ages e servigos de satide para os mu- nieipios brasileiros no final da década de 1990, Em agos- to de 2011, cerca de 101 milhées de brasileiros estavam vinculados a Unidades de Saiide da Familia. Recente- mente, o PSF foi reafirmado como estratégia prititaria Para a reorganizagao da atengao bésica na_atualizacao a Politica Nacional de Atengao Bésica a Satide (PNAB) reeditada em 2011 Brasil, 2011). A proposta de “Satide da Familia” implementada no SUS pode ser entendida como uma articulagdo de ele- mentos provindos de varios dos movimentos ideolégicos, bem como apresenta, em sua trajet6ria institucional, a in- corporagio de algumas propostas alternativas descritas anteriormente. De fato, Satide da Familia tem atraves- sado conjunturas politico-institucionais distintas, nas quais “dialoga” com diversas propostas, o que se traduz na incorporagdo de nogdes e elaboragao de diretrizes ope- racionais que enfatizam diversas dimensdes do processo de mudanga do modelo de atengaio. Assim, Satide da Familia de wulatinamente, de ser um programa que operacionalizava uma poutica de focalizagio da atengao basica em populagées excluidas do consumo de setvicos para ser considerado uma es- tratégia de mudanga do modelo de atengio A satide no SUS, nia Verdade, o instrumento de uma politica de uni- versaliza¢do da cobertura da atengio basica e, portanto, um espaco de reorganizagio do processo de trabalho em satide nesse nivel. “Mai isso, Satide da Familia passou a ser con- cebido como parte de uma estratégia maior de mudanca do modelo de atengao, na medida em que se conjugue com mudangas na organizagao da atencao de média e alta complexidade induzidas por politicas de regulagao controle, ao mesmo tempo que se articule com agies de Vigilancia epidemiol6gica e sanitéria e estimule a imple. ‘mentagio de agdes intersetoriais de promogio da satide e melhoria da qualidade de vida da populacio das areas cobertas pelo programa (Teixeira, 2003; Paim, 2008). — Apesar da importancia dessa estratégia para a ex- tensao de cobertura dos servigos, que vem sendo eviden- ciada pela enorme expansao do niimero de equipes do PSF implantadas em todo o pais ¢ pela reafirmagao da tengo basica como coordenadora do euidado no Decreto presidencial 7.508/2011 (Brasil, 2011), que regulamenta a organizaglo da assisténcia no ambito do SUS, ainda nio se pode afirmar que, no conjunto, as agbes e servigos ‘pFoduzidos signifiquem de fato a mudanga de conteido das pratieas e da maneira de organizacdo do proceso de ‘trabalho prevista nos documentos oficiais. Uni dos Fewultados indesejados desse processo tem sido o aumento da demanda por servigos de média e alta complexidade, decomente da extenso de cobertura da ‘tengo basica, o que estimulou a préoeupacao com a for- mia de implantacdo.e consolidaedodo PSF, principalmen- tenos municipios de grande porte, desencadeando-se, na conjuntura mais tecente, a implantagio dos Nicleos de Apoio & Satide da Familia (NASP), dotados de equipes multiprofissionais, ao mesmo tempo que se discute a pos- Sibilidade de integragao das agées de atencao individual com as agées de Vigiléncia em Saiide (Vilasbéas & Tei- xeira, 2007), bem como os desafios da formagao técnica e ética dos profissionais (Teixeira & Vilasbéas, 2010) CONSIDERACOES FINAIS © desafio de construir um modelo de atengao inte- gral a Satide no aple a Feorientagio das ‘Warias mentor — gerenc sistencial -, enfrenta uma série de obstaculos, entre “OS quais, sem davida, a recriacio permamente das condi- ‘es favordveis & reprodugdo do modelo médico-assisten- cial hospitalocéntrico-e do models sanitarista, Nesse sentido, é importante que se mantenha uma atualizagdo permanente dos estudos e pesquisas sobre as politicas e estratégias que vém sendo implementadas, de modo a se discutir até que ponto contribuem para a mudanga ¢ transformagio da organizagdo dos servigos, das priticas e dos processos de trabalho ou se contri- >buem para a manutencio da énfase historicamente con- cedida a expansio da assisténcia médico-hospitalar ¢ a0 desenvolvimento de campanhas, programas especiais € agdes de vigilancia epidemiolégica e sanitédria focaliza- das sobre problemas prioritarios de Satide Publica Apesar da incorporagio de algumas das propostas sl- termatiyas descritas anteriormente em documentos que jtulo 21 + ase. corfu Modelos de Atencao Satide no SUS: Transformacéo, Mudanga ou Conservaga0? 299 contm diretrizes politicns relativas chamada “reversio" do modelo de atencao, de modo a privilegiar a “atengio bi- snide oo monn tos ton moro eign cin is pessoas mediante a onganizagho de “odes integee, das” (Mendes, 2009, 2010; Kuschnir & Chomny. 2010) de saiide © a implantagio de “linhas de cuidado” com énfase no acolhimento © na humanizagio da atengio (Franco e Magalhies, 2004), é forgoso admitir que o modelo médico- -assistencial hospitalocéntrico e privatista mantém-se em sua posigdo hegeménica néo s6 no ambito do Sistema de Assisténcia Médico Supletiva (SAMS) como no SUS. Estudos recentes indicam que, no ambito do SAMS, esse modelo vem se “atualizando” mediante a incorpo- ragio de mecanismos oriundos da chamada medicina baseada em evidéncias ¢ nas andlises de custo-benefi Gio @ custo-efetividade das intervengbes que subsidiam a incorporacdo de medidas racionalizadoras, a exemplo dos protocolos assistenciais que, muitas vezes, “em vez de constituir uma tecnologia capaz de contribuir para & melhoria da qualidade da.atengio e de sua avaliagao, representam uma camisa de forga a qual se sujeitam mé- dicos e pacientes” (Paim, 2008: 558). ‘No que diz respeito ao SUS, observa-se uma tendén- cia recente ao fortalecimento desse modelo, na medida ‘em que o governo federal, além de manter o padrao de fi- haneiamento que destina a maior proporeo de recursos para a manutengao dos servicos_médico-assistenciais, a maior parte pertencente a rede privada contratada coneniada, tem estimulado a expansio e reforma da rede hospitalar piiblica, delegando, entretanto, a gestao dos hospitais a organizagdes privadas. ~ “Com isso, as secretarias estaduais e municipais de satide passaram a dedicar grade parte de seus esforgos e gastos na gestao do mix publico e privado de assisténcia individual @ saiide, ainda centrada no profissional médico, ‘0 iiesmo tempo que investem na implantacao de servigos especializados de urgéncia e emergéncia (GAMU), aten- ho odontolégica (CEO), atencio a satide mental (CAPS), bem como na implaritagdo das unidades de Pronto Aten- dimento (UPA) ¢ Nicleos de Apoio a Satide da Familia (NAS). “Todos esses servigos, ainda que necessérios, tendem a reproduzir 0 modelo assistencial centrade na. Clini- ca, para o'que-concorre; inclusive, 0 debate em tomo da “Clinica ampliada’ e outros dispositivos voltados para a melhoria do atendimento individual, em detrimento das agbes de Satide Coletiva, a exemplo das praticas de pro- moedo e vigildncia da satide, que continuam subalternas 20 modelo hegemdnico. ‘Alémrdisso; w insatisfacio ciéncia e a qualidade dos servis por exemplo, na tendéncia recent dicador paradoxal da insuficiéncia da populagdo com a insufi- igos prestados se expressa, te A “judicializagao”, in- da oferta e da expan- sibilidade (quase) ilimitada da demanda em fungio da continuidade do processo de “medicalizacao” que ocorre nas sociedades ocidentais, inclusive no Brasil. Essa insatisfagdo, por outro lado, tem contribuido para a expansao significativa da demanda por praticas alternativas ao sistema médico oficial, ou seja, a chama- das “racionalidades médicas_alternativas” (Luz, 2001, 2005), que se apresentam hoje como um diferencial de consumo para as elites vinculadas aos servigos priva- dos, mas também foram incorporadas ao SUS, mediante a formulacio e implementagéo da Politica Nacional de Préticas Integrativas e Complementares (Brasil, 2006), ‘que contempla a inser¢ao~da homeopatia, fitoterapia, acupuntura, crenoterapia € medicina antroposéfica nos servigos do SUS. - ~€abercomeluir que, apesar dos esforcos realizados ¢ dos avangos aleancados, a mudanca operada na organi- j0 dos no perfil das praticas de satide ape- 8 iperficié do modelo hegeménico, Desse “inodo, apesar do aumento extraordindrio na produgao de servigos basicos, cabe reconhecer que, em geral, o perfil de oferta de servicos reproduz, em escala ampliada, o mo- delo médico, assistencial, hospitalocéntrico. E ainda que {sso evidencie o atendimento a uma demanda reprimida historicamente em funco da insuficiéncia e ineficiéncia do sistema piblico do ponto de vista da cobertura, aces- sibilidade, integragio sistémica e qualidade de atengio, também evidencia 0 quao distante estamos de um siste- ma de saiide que opere segundo a logica da intervencao sobre determinantes, riscos e danos, juindo nao s6 para o cuidadoa satide, mas, sobretudo, para a melhoria da qualidade de vida da populacdo, ‘Tora-se fundamental, portanto, refletir sobre os li- mites ¢ possibilidades das priticas de atencdo a satide que vém sendo realizadas no SUS ¢ os desafios que se colocam aos profissionais do campo da Saiide Coletiva, no sentido de refinarem sua capacidade de anélise das necessidades e demandas em satide, de modo a contri- buirem para a articulagdo das respostas sociais possi- veis e necessarias no Ambito do sistema de satide e nos ‘espagos sociais mais amplos. 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