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TEMAS E TEORIAS

DA FILOSOFIA

Autoria: Prof. Daniel Nery da Cruz

2ª Edição
Indaial - 2019

UNIASSELVI-PÓS
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
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Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD:


Carlos Fabiano Fistarol
Ilana Gunilda Gerber Cavichioli
Jóice Gadotti Consatti
Norberto Siegel
Julia dos Santos
Ariana Monique Dalri
Marcelo Bucci

Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2019


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

C957t

Cruz, Daniel Nery da

Temas e teorias da filosofia. / Daniel Nery da Cruz. – Indaial:


UNIASSELVI, 2019.

144 p.; il.

ISBN 978-85-7141-420-4
ISBN Digital 978-85-7141-421-1
1.Filosofia. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 100

Impresso por:
Sumário

APRESENTAÇÃO.............................................................................7

CAPÍTULO 1
A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLO-
GIA, LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL...........................9

CAPÍTULO 2
O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE...........................55

CAPÍTULO 3
A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA .............................................99
APRESENTAÇÃO
Há mais de 2.500 anos a filosofia emerge como não aceitação da explicação
supersticiosa da realidade. A característica fundamental do saber filosófico já é
expressiva pela própria etimologia da palavra filosofia, que significa relação, um
vínculo com o saber, amor e desejo em conhecer. Se a filosofia é uma relação,
é possível ensiná-la ou aprendê-la? Podemos dizer que quem ensina deve
manifestar esse relacionamento com o conhecimento, não superficialmente, mas
por uma vivência ou como forma de vida, maneira que os filósofos da Grécia
Clássica se envolviam com a racionalidade filosófica.

A aspiração pelo conhecimento como relação não significa meramente uma


transmissão de conteúdos, mas uma atividade ou um exercício espiritual para
a alma alcançar o verdadeiro conhecimento racional do cosmos e do próprio
homem. Para isso, é preciso estar em uma posição filosófica de aprendizado e
ensinamento, assim como o exemplo de Sócrates que adotava a postura não
de transmissor, mas de provocador de novas ideias em seus discípulos pela
maiêutica. Provocar no outro a vontade de esclarecer, de conhecer a realidade de
forma racional e comprometido com a verdade é tarefa do filósofo curativa, uma
vez que a doença da alma é a ignorância e a postura acrítica sobre a realidade.

Sob a consciência do conhecimento filosófico, como postura relacional,


apresentamos esta obra intitulada de Temas e Teorias da Filosofia, não como
uma receita pronta em que o leitor encontrará uma fórmula mágica que o
tornará conhecedor pleno sobre os assuntos aqui explorados, mas é um guia de
navegação e debate sobre algumas importantes correntes filosóficas da História
da Filosofia. O itinerário pelas teorias filosóficas tem seu ponto de partida na
Grécia Antiga, berço da filosofia, por isso, nossa investigação inicia explorando a
forma originalmente grega de conhecimento, a episteme theoretiké, desenvolvida
a partir do século VI a.C. Continuando pelas páginas do primeiro capítulo desse
exemplar, o leitor irá apreciar uma reflexão sobre: política e filosofia em Platão; a
educação como caminho à verdade; o desenvolvimento da ética e da moral no
pensamento de Sócrates e Aristóteles; o aristotelismo e sua influência na teoria
tomista; Aristóteles e a sistematização da lógica.

Já o segundo capítulo propõe o olhar voltado para a crise da antiga ciência


(baseada em Aristóteles e seguida pela Era Medieval) e o surgimento do
Racionalismo, ao propor a origem do conhecimento no sujeito do conhecimento,
ou seja, na razão, antes da experiência. Também veremos a corrente oposta ao
Racionalismo, a Empirista, que julga ser a gênese do conhecimento somente
a experiência. Outro ponto a ser explorado no segundo capítulo é a superação
da dicotomia entre Racionalismo e Empirismo proposta por Immanuel Kant, no
século XVIII, ao afirmar que o conhecimento só é possível pela conjunção entre
sensibilidade e entendimento. Ainda no segundo capítulo serão apresentadas as
interpretações kantianas sobre as ideias iluministas, como a saída do homem da
sua menoridade para a maioridade racional e a discussão sobre o positivismo e a
lei dos três estágios do entendimento humano, finalizando com a teoria marxista e
sua crítica ao idealismo no século XIX.

O terceiro e último capítulo trata sobre a crise da Filosofia Moderna. Nesse


contexto, a sociedade hierárquica parece perder força, há um declínio da
sociedade orgânica (hierárquica) por outros laços. As que antes tinham grande
prestígio e confiabilidade perdem seu prestígio, o sujeito perde o interesse em
se regular por princípios absolutos, não se afirma mais nenhum conteúdo, nem
Igreja, partido, exército, o trabalho etc. Já não funcionam mais como princípios
absolutos. “Todos os grandes valores que organizam as épocas anteriores
são aos poucos esvaziados de sua substância” (LIPOVETSKY, 2005, p. 18). O
homem parece não se sentir mais como pertencendo a quaisquer categorias, o
sentimento de pertencimento enfraquece, o que prevalece é o não se sentir de
lugar nenhum.

Com esse panorama, desenvolvemos, caro leitor, uma reflexão sobre


o século XIX e alguns dos principais críticos da modernidade, que detectam e
denunciam o desmoronamento do edifício da razão, tão caro para os racionalistas.
Exploramos, portanto, na última seção as ideias dos filósofos: Kierkegaard,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Horkheimer, Adorno, Lipovetsky, Bauman,
Gadamer, Heidegger, Freud e Foucault.

Desejamos a todos uma ótima e proveitosa leitura!

Prof. Daniel Nery da Cruz


C APÍTULO 1
A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS
CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E
MORAL

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo, você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Identificar e entender conceitos filosóficos básicos relacionados as questões


epistemológicas, educacionais, políticas e morais na Grécia Antiga.

� Entender a importância do desenvolvimento da filosofia na Grécia Antiga


para a formação do pensamento ocidental e suas bases cientificas e lógicas,
educacionais e políticas.

� Compreender como os gregos forjaram e sistematizaram a ética como


fundamento para o bem-viver entre os homens.
Temas e teorias da Filosofia

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

1 CONTEXTUALIZAÇÃO

As bases do pensamento filosófico-científico no ocidente estão alicerçadas na


Grécia Antiga, por isso nossa investigação inicia explorando a forma originalmente
grega de conhecimento, a episteme theoretiké, desenvolvida a partir do século
VI a.C. Desde então, o conhecimento racional segue sua trajetória e abrange as
várias áreas da compreensão humana, como a política, a educação, a ética, a
lógica e demais campos do saber. Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles e
os que vieram posteriormente elaboram teorias e reflexões que transformaram o
modo como o mundo era concebido.

Podemos notar que com a reflexão filosófica, a problematização do mundo


e da realidade passa a ser fundamental não somente para uma análise sobre o
fluxo das coisas, mas também para abordar o homem e as suas criações, como
a política, a educação, a lógica, a própria ciência e filosofia, a ética e tudo que
possa englobar uma teorização humana. Neste capítulo, serão abordadas as
seguintes temáticas determinantes para a história da filosofia: O conhecimento
filosófico como episteme theoretiké na Grécia Antiga; Política e filosofia em
Platão: A educação como caminho à verdade; O desenvolvimento da ética
e da moral no pensamento de Sócrates e Aristóteles; O aristotelismo e sua
influência na teoria tomista; Aristóteles e a sistematização da lógica. Os assuntos
explorados são envolvidos por um aspecto (não exclusivo) do conhecimento e sua
fundamentação, passando pelas ideias de Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de
Aquino e alguns logicistas contemporâneos.

2 O CONHECIMENTO FILOSÓFICO
COMO EPISTEME THEORETIKÉ NA
GRÉCIA ANTIGA
Desde sua origem na Grécia Antiga a filosofia tem o propósito de alcançar
o real pelo caminho do conhecimento verdadeiro. O conhecer para os gregos
estava ligado a um ato específico de enxergar a realidade: a teoria. Tanto a
filosofia quanto a ciência nascem dessa maneira de saber, aliás, é impossível
falar de ciência sem recorrer ao problema originário da filosofia forjado no século
VI a.C na Grécia Antiga. É consenso entre os estudiosos que a filosofia foi criação
grega, não sendo derivada de outras civilizações, como as orientais. É justamente
essa forma de conhecer a realidade pela teoria que colocam os gregos em uma
situação de originalidade. pois mesmo que alguns conhecimentos científicos,

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Temas e teorias da Filosofia

astronômicos, matemáticos, geométricos, dentre outros, vieram do Oriente, foram


os gregos que sistematizaram racionalmente de forma teórica o que esses outros
povos fundamentavam na prática. Assim, não teria sido possível o saber filosófico
e científico se não fosse preservada e transmitida aos homens do Renascimento
tanto o theoreo como a atividade grega que era chamada de techne. Foi a junção
tardia dessas duas concepções que deu à ciência moderna seu caráter ativo de
agente transformador da realidade. Ciência é, portanto, uma atividade humana.
Não é um saber qualquer, é um saber eminentemente teórico. Saber, teoria e
atividade não são antagônicos.

Embora se possa dizer que o saber é um impulso próprio do homem e


exista desde que a consciência humana apareceu, o mesmo não se pode dizer
da teoria. Ela é uma construção do espírito relativamente recente. Theoreo, em
grego, quer dizer, ver. Teoria, portanto, originalmente é um ver. Um ver com os
olhos do espírito que só enxergam nas coisas o essencial. Seria, assim, uma
contemplação e, como tal aparta-se de toda atividade, mas desde o Renascimento
a ciência vem sendo também uma atividade de domínio da natureza. Vem sendo
um saber poder (frase renascentista). A princípio esse caráter de atividade foi de
natureza mágica, não durou muito, porque a magia foi substituída pela técnica
como atuação sobre o mundo.

Por sua vez, a teoria consistia tanto para a filosofia grega como para
a matemática, no pensar as coisas, não na totalidade dos seus atributos e
aparências, porém na abstração de tudo o que não fosse essencial para a
compreensão do que era pensado, isto é, no conceber as coisas e os fatos a
serem conhecidos, procurando encontrar neles certos dados considerados
essenciais para a sua descrição, explicação e compreensão.

A gênese do que são os dados essenciais abstraídos das coisas nos remete
ao espírito aventureiro dos gregos. Com as navegações entre suas diversas ilhas
interligadas, os gregos viajavam e descobriam “coisas novas”. Daí o interesse
grego pela consistência das coisas novas que encontravam nas viagens. Foi
natural que ocorresse a pergunta: em que consiste isso que se encontra pelo
mundo? Essa seria a gênese inicial da filosofia, qual em grego tem um sabor
especial: ti to on? O que é o ente? Daí os filósofos naturalistas, também chamados
de pré-socráticos, investigam a origem de todas as coisas (naturais) no princípio
(arché).

O que é o ente? ou o ti to on? É chamada hoje a pergunta ontológica e


deu origem ao tipo essencial do saber que chamamos teoria. Entretanto, não
existia antes daquela época o que chamamos ciência ou filosofia. Os filósofos
que insistiam na pergunta “o que é o ente?”, ou seja, qual é o ser do ente? O que
é aquilo que faz com que o tenha ser, seja? É uma pergunta sobre tudo aquilo

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

que se encontra no mundo. É uma pergunta fundamental que exige uma resposta
essencial. Será uma resposta ao que se chama em filosofia quididade. Os gregos
tinham para explicar isso a palavra ousia, no português, essência ou substância,
como também “entidade”. Está na procura da ousia a origem da teoria.

Note-se que nas suas origens gregas, em vez de ciência, como entendemos
hoje, há um tipo de saber que, por assim dizer, desapareceu: a episteme
theoretike, traduz-se por uma “competência em ver as coisas teoricamente e não
por uma “ciência teórica””. Se perguntarmos por filosofia em Aristóteles vamos
encontrar como resposta: episteme teórica dos primeiros princípios e das causas
(metafisica). Daí epistemologia, ou seja, o estudo relativo à ciência pela teoria ou
logos.

Para Heidegger (1997), a filosofia é um dialogar entre os filósofos, em


que eles se dispõem ao saber a partir do ser dos entes. Diz Heidegger (1997),
que a pergunta filosófica é pela quididade, entretanto, a quiditas se determina
diversamente em diversas épocas da filosofia. Nesta linha de pensamento a
filosofia mantém uma reflexão sobre o ser, isto é, a quididade, essência ou
consistência, o caráter original da filosofia: o espanto e a curiosidade.

O ponto de partida do conhecimento, segundo Platão e Aristóteles, é a


admiração; e admirar para os gregos tinha o sentido de espanto. Podemos dizer
que ao espantarmos com algo que nos inquieta despertamos uma postura ou
atitude de buscar conhecer ou descobrir o que se encontra por trás do véu que
encobre aquela realidade. Em sua obra Teeteto, Platão relata um diálogo entre
Sócrates e o matemático Teeteto que refletem sobre a natureza do conhecimento.

Platão considera a distinção filosófica do falso e verdadeiro como primordial


para iniciar qualquer tentativa de compreender o conhecimento. Interessante notar
que Sócrates compara o processo do conhecer com a profissão das parteiras.
Assim como elas, o filósofo é aquele que tem como função o parto das ideias ou o
auxílio da difícil tarefa de despertar a reflexão crítica, determinação dos princípios
e distinção do que é verdadeiro (ou seja, o conhecimento) e o falso.

Sócrates – A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às


parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém
homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu
trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte
consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma
dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e
falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou
igualzinho as parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo
grande fundo de verdade a censura que muitos me as assacam,
de só interrogar o outros, sem nunca apresentar opinião
pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de

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Temas e teorias da Filosofia

sabedoria (PLATÃO, 2001, 150 c-e).

Chisholm (1966), recorrendo às análises platônicas do Teeteto, elenca


as dificuldades encontradas no diálogo quanto à possibilidade de distinção do
conhecimento verdadeiro e da doxa (opinião). A primeira dificuldade está no
estabelecimento de verdades fundamentadas nas sensações. O indivíduo pode
se enganar devido à singularidade de cada sensação, isto é, o que se sente é
particular, não há como mensurar os sentidos dos outros para estabelecer uma
certeza absoluta sobre as opiniões de cada pessoa como verdadeiras. Sempre
há a tendência de dependência do estado mental e sensível de quem vivencia
a realidade. O perigo eminente é o relativismo. Platão coloca em equivalência a
aparência (que não conduz ao verdadeiro) e a sensação. Desse modo, identificar
conhecimento com sensação pode levar à redução de uma perspectiva individual,
com isso a limitação da possibilidade do conhecimento.

A distinção entre conhecimento e opinião verdadeira é outro problema que


surge no teeteto, assim, podemos considerar que existe diferença entre uma
pessoa que possua conhecimento e outra apenas com uma opinião verdadeira?
Responder esta questão proposta por Platão não é algo simples, mas identificamos
que o filósofo considera que a primeira pessoa tem mais vantagens em relação à
segunda, pois esta tem opinião certa, mas não sabe, não conhece, aquela tem o
conhecimento e também opinião verdadeira.

Dessa constatação podemos inferir que o que faz com que uma pessoa
tenha conhecimento sobre determinada situação e se distingue da mera opinião é
o que chamamos de justificação racional, ou seja, uma justificativa apoiada em
evidências lógicas.

A partir da justificativa racional é possível encontrar pressupostos


sistemáticos para explicação, por exemplo, da verdade científica estruturada na
modernidade pelo método cartesiano pautado no modelo racionalista e mecânico
de explicação das leis naturais. Isso não significa que os sistemas bem-sucedidos
que explicam racionalmente e justificam por meio de hipóteses que fundamentam
o conhecimento não possam entrar em crise e serem superados por outras
teorias mais avançadas. Um bom exemplo é a explicação aristotélica sobre o
Universo, em que as leis do mundo lunar (perfeitas e imutáveis) são diferentes
das leis do mundo sublunar (imperfeito). As investigações e experimentos de
Isaac Newton mostraram, por meio de sua teoria da física, que Aristóteles estava
equivocado, pois as leis do universo são as mesmas tanto no mundo lunar como
no sublunar. Nesse sentido, as crenças aristotélicas foram postas à prova pelos
modelos empiristas e racionalistas. É perceptível que os sistemas que explicam
racionalmente e justificam suas crenças distinguiriam o conhecimento da opinião.

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

Essa concepção sistêmica (explicada acima) reforça que o problema do


teeteto é vigente mesmo em tempos contemporâneos, pois não há como saber
se um sistema poderá vir a explicar fatos novos ou se precisará de novas bases
explicativas para tal. A história da ciência mostra muito bem como vários sistemas
perduraram por vários séculos, apesar de serem considerados posteriormente
como não corretos. Nisso, percebemos que o problema do teeteto é permanente,
pois distinguir conhecimento de opinião parece simplificar demais a querela,
uma vez que Platão chega a uma situação complexa em que o conhecimento
não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional
acrescentada a essa opinião.

Ora, será o cúmulo da simplicidade, estando nós à procura do


conhecimento vir alguém dizer-nos que é a opinião certa aliada
ao conhecimento, seja da diferença ou do que for. Desse modo,
Teeteto, conhecimento não pode ser nem sensação, nem
opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a
essa opinião (PLATÃO, 2001, p. 76).

1 Comente o interesse dos gregos antigos pela consistência das


coisas novas encontradas em suas viagens e a ligação desse fato
com o desenvolvimento da ontologia, gênese inicial da filosofia.

2 Como você analisa a consideração grega de encarar o saber


como um impulso próprio do homem existente desde que a
consciência humana apareceu e a teoria como uma construção
do espírito relativamente recente?

3 POLÍTICA E FILOSOFIA EM
PLATÃO: A EDUCAÇÃO COMO
CAMINHO À VERDADE
A filosofia e a política sempre estiveram em estreita relação, tanto que
em Sócrates a virtude é identificada com o viver bem ou a felicidade dentro da
cidade, ou seja, no âmbito político. Platão, como maior discípulo de Sócrates,
seguiu a herança do pensamento ético de seu mestre ao ponto de em sua teoria
política forjar o ideal de homem justo e virtuoso também relacionado ao problema

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Temas e teorias da Filosofia

epistemológico e educacional com a sua teoria das ideias. Vejamos como Platão
argumenta e correlaciona essas áreas do conhecimento.

Em sua obra A república, Platão precisa exatamente a coincidência da


verdadeira filosofia com a verdadeira política. A cidade autêntica ou o Estado que
tem como fundamento a virtude, a justiça e o bem só se mantêm nesse nível
saudável se o filósofo for o político ou o político ser o filósofo. Para chegar a tal
constatação, Platão (1956), argumenta que a construção de uma cidade deve ter
como base uma estrutura que leve em conta o conhecimento de vários assuntos,
principalmente o conhecer humano, e essa destreza tem o filósofo. O estado é o
reflexo de nossa alma, por isso o eixo central da discussão platônica na República
versa sobre a justiça e suas várias conexões com os diversos temas.

Uma cidade nasce pelo fato de não existir nenhuma pessoa autárquica, isso
quer dizer que não existe ninguém que se basta a si mesmo e necessita de outros
e de seus serviços, por exemplo, de homens que cuidam da alimentação, que
realizem o trabalho de habitação, da defesa e segurança, também de alguns que
governem.

Para tais atividades a cidade deve ser dividida em três classes: a primeira
é a dos lavradores, comerciantes e artesãos. Nesta classe prevalece em seus
homens o aspecto da alma da concupiscência. Para que a classe possa se tornar
boa é preciso que haja o exercício da virtude da temperança, ou seja, o domínio
e a disciplina em relação aos prazeres e instintos. A segunda é a dos guardiães.
Nesta classe deve prevalecer a força ou o lado irascível da alma e que conciliem
mansidão e ousadia, tais como os cães de guarda com o intuito de proteger
a Polis. Sua virtude deve ser a coragem. A terceira é classe dos governantes.
Nela seus integrantes devem cumprir com zelo a missão de administrar e amar
a cidade. A contemplação do bem e seu aprendizado capacitam os governantes
e devem prevalecer a virtude da sabedoria como aspecto fundamental de suas
almas. Portanto, temos que na cidade ideal prevalecem a temperança na primeira
classe; a fortaleza ou coragem na segunda; e a sabedoria na terceira, porém em
todas elas a justiça é a virtude que estabelece um nexo entre as três tornando
a cidade uma perfeita harmonia entre suas partes e como consequência a
sociedade como um todo reflete o bem que é distribuído. Cada cidadão dentro de
sua classe deve desempenhar bem sua função e obedecer ao que sua natureza
ordena. Dessa forma, na cidade prevalecerá a justiça.

Para que cada cidadão esteja em plena sintonia com sua função, Platão
elabora seu programa educacional da seguinte forma: uma cidade em harmonia,
com seus cidadãos, deve ter uma educação perfeita. Porém, a primeira classe
dos artesãos, lavradores e comerciantes apreendem seus ofícios facilmente na
prática e não necessitam de uma educação especial. Para os guardiões, Platão

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

propõe o ensino da ginástica e da música com o intuito de que a parte da alma


em que se encontra a coragem seja abastecida de exercícios desse nível,
fortalecendo mais os encarregados da segurança da Polis. Nessa classe tudo
deve ser compartilhado, ou seja, todos os seus bens são comuns, inclusive os
afetivos e familiares: homens, mulheres e filhos. Nessa espécie de comunidade
a propriedade de bens materiais é proibida. O sustento material da classe dos
guardiões deriva da classe inferior dos artesãos, comerciantes e agricultores.

Os filhos dos soldados são retirados imediatamente dos pais e alimentados


e cuidados em lugar reservado, sem a presença dos seus progenitores. O
objetivo de Platão era formatar uma grande família em que todos nutririam uns
pelos outros um sentimento de pais, mães e filhos. Numa situação de guerra, por
exemplo, todos redobrariam sua vontade de lutar e proteger uns aos outros, pois
a relação de sangue gera e desperta ainda mais o instinto de proteção. Também
era eliminado tudo aquilo que poderia gerar o egoísmo na forma de posse ou
postura privada. Tudo é de todos e tudo deve ser pensado na forma de bem
comum.

Já a classe dos governantes era destinada ao ensino da filosofia. Durava até


os 35 anos quando o indivíduo alcançava a maturidade intelectual. Entre os 30 e
os 35 anos ocorria o que era chamado de tirocínio mais complexo, era o período
do aprendizado da dialética. No espaço dos 35 aos 40 anos era o momento
de retorno ao contato com a realidade empírica e suas finalidades. Essas são
as fases para a formação do político-filósofo que deveria ter como finalidade a
contemplação do Bem ou da Verdade. Alcançar esse Bem é o objetivo máximo e
todo agir político deve estar fundamentado segundo as leis da justiça que brota
desse Bem.

A filósofa e teórica política Hannah Arendt em sua obra A Vida do Espírito


(2000) se opõe à teoria política platônica baseada no princípio de contemplação
ou do pensamento. Para ela a vida ativa e não a contemplativa é onde os homens
podem manifestar a pluralidade, participar da vida pública. A tradição filosófica
delimitou a política no caminho da contemplação e, como tal, forjou um sistema
que é passível de não participação das pessoas nas decisões públicas, pois
contemplar supõe estar sozinho, refletir com seu eu, tal como a proposta do
rei filósofo em Platão. Isso não promove a participação popular, e as decisões
são tomadas por uma pessoa ou um grupo unilateral, portanto não promove a
democracia. Arendt (2000) considera que pensar e conhecer são atividades
diferentes da política; porém o pensar filosófico é menos político, por estar
mais distante das aparências. Mesmo assim, ela não nega que a atividade do
pensar tenha uma importância para a política, pois incapacidade de pensar afeta
diretamente a política, por induzir as pessoas a normas de conduta prescritas
para uma sociedade em determinado tempo. O pensar pode auxiliar a política, a

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Temas e teorias da Filosofia

atividade do filósofo contribui realizando sua crítica desde fora.

Na modernidade há, para Arendt (2000), uma lamentável perda do sentido


original da ação política, isso pelo fato de ter acontecido a substituição do agir
pelo fazer. Arendt alerta ainda que, já em Platão, com a política fundamentada
no rei filósofo, governante da cidade, é criado um padrão que torna a política
semelhante à fabricação, pois os que estão no poder criam um objeto - o Estado
- assim como o artesão constrói sua arte. “Arendt pensa que Platão buscava fugir
à aleatoriedade e à imprevisibilidade da democracia, fundamentando a política
em ideias universais e verdadeiras; no entanto, ao agir assim, ele extingue a
pluralidade das pessoas” (FRY, 2010, p. 73).

A ação tem como característica seus aspectos inesperados e irreversíveis e,


segundo Arendt (2000), seguindo o modelo platônico da teoria universal, a política
é interpretada como uma forma de fabricação previsível, a isso ela denomina
“substituição do agir pelo fazer”. Isso significa um modelo político que trata as
pessoas como um objeto fabricado, como coisas. “A visão política de Arendt é
diferente porque mantém a importância da diversidade dentro da política e rejeita
a ideia de que a política possa ser fabricada pelos poucos que estão no comando”
(FRY, 2010, p. 74).

Alegoria da caverna

SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em


relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo
a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e
cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde
a infância, têm os homens, o pescoço e as pernas presos de modo
que permanecem imóveis e só veem os objetos que lhes estão
diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles,
a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo
e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um
pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem
entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos
maravilhosos que lhes exibem.

GLAUCO - Imagino tudo isso.

SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de


homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira.
Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa,
outros guardam em silêncio.

GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!

SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita, mas, dize-me: assim


colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo
mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que
lhes fica fronteira?

GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça
durante toda a vida.

SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver
outra coisa que não as sombras?

GLAUCO - Não.

SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te


parece que, ao falar das sombras que veem, lhes dariam os nomes
que elas representam?

GLAUCO - Sem dúvida.

SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as


palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem
articulados pelas sombras dos objetos?

GLAUCO - Claro que sim.

SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e


verdadeiro fora das
figuras que desfilaram.

GLAUCO - Necessariamente.

SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, caso se livrassem

17
Temas e teorias da Filosofia

a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos


um desses cativos desatados, obrigado a levantar-se de repente, a
volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia
fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o
deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra
antes via.

Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse


que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais
perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais
perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras
que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram.
Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de
que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora
contemplados?

GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.

SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos


para as sombras
que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais
visíveis que os objetos ora mostrados?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo


caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá
fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e
brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo
esplendor ambiente, ser-lhe-ia possível discernir os objetos que o
comum dos homens tem por serem reais?

GLAUCO - A princípio nada veria.

SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade


da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras,
depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas;
finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria
mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.

18
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

GLAUCO - Não há dúvida.

SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de


ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos,
depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.

GLAUCO - Fora de dúvida.

SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro,


compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo
governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que
ele e seus companheiros viam na caverna.

GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas


conclusões.

SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de


seus companheiros de
escravidão e da ideia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os
parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a
sorte dos que lá ficaram?

GLAUCO - Evidentemente.

SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e


recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a
sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que
precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o
mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que
falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos
e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero,
levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às
primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?

GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de


sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.

SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso


homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo

19
Temas e teorias da Filosofia

lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe


ficariam os olhos como submersos em trevas?

GLAUCO - Certamente.

SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa - porque bastante


tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à
obscuridade - tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este
respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos
em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter
subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e
que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a
liberdade, mereceria ser agarrado e morto?

GLAUCO - Por certo que o fariam.

SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda


a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos
dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é
a luz do sol. O cativo que sobe a região superior e a contempla é a
alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres
saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe
se é verdadeiro. Quanto a mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos
extremos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, a qual
só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se
impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom,
criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da
verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre
ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares
e públicos.

FONTE: Extraído de A República de Platão (1956, p. 287-291).

20
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

Assista ao filme Matrix relacionando-o à teoria das ideias de Platão


na alegoria da caverna.

Matrix
Ficha Técnica e Premiações
Título original: The Matrix
Lançamento: 1999 (EUA)
Elenco: Laurence Fishburne (Morpheus); Carrie-Anne Moss (Trinity);
Hugo Weaving (Agente Smith); Keanu Reeves (Thomas A. Anderson
/ Neo); Joe Pantoliano (Cypher); Marcus Chong (Tank); Julian
Arahanga (Apoc); Matt Doran (Mouse); Belinda McClory (Switch);
Gloria Foster (Oráculo); Ray Anthony Parker (Dozer).
Duração: 136 min
Gênero: Ficção Científica
Direção e roteiro: Andy e Larry Wachowski
Produção: Joel Silver
Música: Don Davis
Fotografia: Bill Pope
Direção de arte: Hugh Bateup e Michelle McGahey
Figurino: Kym Barrett
Edição: Zach Staenberg
Efeitos especiais: Mass. Illusions, LLC / Manex Visual Effects /
Amalgameted Pixels
Estúdio: Village Roadshow Productions
Distribuidora: Warner Bros.

1 Considerando o texto sobre a alegoria da caverna, comente


e analise qual a importância da formação do filósofo para a
governança da cidade.

2 Como você interpreta a visão platônica de que somente o filósofo


tem capacidade de governar a cidade? Quais impactos dessa
ideia para a formação política Ocidental?

21
Temas e teorias da Filosofia

4 O DESENVOLVIMENTO DA ÉTICA
E DA MORAL NO PENSAMENTO DE
SÓCRATES E ARISTÓTELES
Nascido em Atenas em 470/469 a.C., Sócrates é considerado o filósofo
mais influente de sua época e tem sua contribuição reconhecida em todas as
épocas posteriores, inclusive a nossa. Ele não escreveu nenhuma obra, o que
foi ensinado era transmitido pela palavra viva por meio de diálogos, da oralidade
dialética. O pensamento socrático foi escrito por seus discípulos, dentre eles, o
que mais escreveu foi Platão, inclusive muitas vezes tornando Sócrates porta-
voz de suas doutrinas. Por esse motivo, em muitos casos torna-se difícil saber o
que realmente é uma ideia apenas socrática ou se houve uma remodelação dos
pensamentos platônicos.

A importância do pensamento socrático foi tamanha que a história da filosofia


passou a ser dividida em antes e depois de Sócrates. Esse critério, além de outros,
tem um fundamento na mudança de perspectiva de investigação socrática, que
abandonou a especulação em torno da origem da arqué (princípio) na natureza
para estudar o homem como objeto de conhecimento. Tal mudança representa
um marco na história da filosofia, inaugurando o chamado período antropológico.

Seu interesse na problemática do homem desenvolveu uma série de


conclusões e contribuições para o campo da ética e da moral no Ocidente. A
descoberta da essência do homem como psyché, ou seja, como alma, distingue
esse ser de todos os outros seres, pois a alma é a razão relativa à nossa
capacidade de pensar e operar eticamente. A alma é, nesse sentido, a consciência
e a personalidade intelectual e moral.

Sócrates, consequentemente à descoberta do homem como ser intelectual


e moral, traz para o debate a relação do homem consigo mesmo pelo cuidado
de si. Cuidar da alma é a atividade mais nobre e ensinar isso aos homens é uma
tarefa fundamental do educador. Se a alma é o homem, o corpo é instrumento da
psyché, pois a alma ordena ao conhecimento. Daí é preciso conhecer o interior
da alma humana, que, diferentemente do corpo é imaterial, imortal e conduz à
verdade. Sócrates, desse modo, traz como base de sua doutrina o “conhece a ti
mesmo” e dessa decisão há o vínculo do modo e atividade de aperfeiçoamento
do ser enquanto areté, que os gregos denominavam como aquilo que faz com
que uma coisa se torne boa ao que ela foi destinada a ser. Por exemplo, uma
árvore é enquanto areté quando ela se realiza perfeitamente enquanto árvore, se
desenvolvendo a ponto de crescer, florescer, dar bons frutos... Areté seria o que
denominamos hoje como virtude. A virtude para os gregos, então, estava em tudo,

22
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

inclusive nas coisas inanimadas, mas qual é a virtude do homem? A virtude do


homem está no que a alma deve ser, ou seja, boa e perfeita. Sócrates identifica
dessa forma a virtude como ciência, pois ela é a ciência, o contrário dela é a
ignorância ou vício.

Os valores verdadeiros para Sócrates estão ligados à alma e não às coisas


externas como riqueza, honra, poder etc. Sócrates opera nesse sentido uma
grande mudança no quadro tradicional de valores e o conhecimento científico
está relacionado a própria alma do homem.

Para Sócrates ninguém pratica o mal voluntariamente, pois o homem


por natureza procura sempre o bem. Quando uma pessoa pratica o mal é por
ausência de conhecimento do bem que ela age dessa forma, nesse sentido, o
mal seria involuntário e o homem que o faz engana-se ao esperar que da sua
ação possa extrair um bem. Quem conhece o bem não poderá cometer o mal.
O bem é a condição necessária para evitar o mal. Essa postura de Sócrates é
muito criticada, mas também há o entendimento que ele chega a esse excesso
de racionalismo devido aos filósofos gregos não desenvolverem uma reflexão
aprofundada sobre a vontade, isso vai ocorrer com a ética dos cristãos e o
desenvolvimento da ideia de livre-arbítrio. Faltaria em Sócrates o entendimento
de que “para fazer o bern também é necessário o concurso da ‘vontade’” (REALE;
ANTISSERI, 2007, p. 97).

Um outro conceito norteador da doutrina da ética socrática é a enkráteia ou


o domínio de si mesmo pela razão. As paixões e os impulsos são como os tiranos
da alma e o autodomínio, sendo que base da virtude equilibra o homem em suas
ações, sendo senhor de si, controlando sua animalidade. Dominar o corpo e seus
instintos é dar ao homem sua verdadeira liberdade, essa libertação não conhece
aquele que é escravo do corpo, pois ser livre é dominar seus próprios instintos
pela sabedoria da alma.

Também, o conceito de felicidade tem relação com a determinação da alma.


Sócrates recorre e sistematiza o conceito grego de eudaimonia, ou seja, aquilo
que faz com que haja ordem e fruição da alma e promova uma vida agradável.
Essa ordem ou harmonia interior identifica-se com a felicidade. O homem virtuoso
tendo essa harmonia interior não será perturbado pelas intempéries provocadas
por fatos naturais e até mesmo a própria morte. Tendo vivido com integridade e
voltado para o bem e exercício da virtude, o homem não deve viver angustiado
com a vinda da morte, pois se existir um além-mundo ele será premiado, não
havendo, também terá tranquilidade ao perceber que viveu uma vida harmoniosa.
Uma vida virtuosa vale a pena independente de qualquer coisa, pois na virtude
já se encontra um prêmio em si mesma. Ser feliz é possível nesta vida seguindo
o caminho da virtude. Discutimos até aqui a formação ética em Sócrates, iremos
agora explorar o pensamento sistemático em Aristóteles sobre o agir humano.
23
Temas e teorias da Filosofia

4.1 ÉTICA E POLÍTICA EM


ARISTÓTELES
Para Aristóteles, a ética é teleológica, ou seja, tem uma finalidade que é a
busca do Bem ou da felicidade do homem. A ética se articula com a política, pois
é na vida social que o indivíduo deve exercer sua virtude procurando a felicidade
na relação com os outros. Para entendermos a teoria moral aristotélica vejamos
antes em que campo científico ele inclui a política e a ética.

As ciências para Aristóteles estão divididas em três ramificações, vejamos


quais:

• Ciências produtivas: relacionadas à produção de algum objeto, por


exemplo, a confecção de uma mesa, uma cadeira etc.
• Ciências Teoréticas: relacionadas ao estudo teórico, por exemplo, fazem
parte dessa classe a matemática, a física, a psicologia, a filosofia.
• Ciências práticas: campo do saber em que se encontram a ética e
a política. É esse o nosso interesse maior aqui, pois nele Aristóteles
esclarece as normas e as boas formas de agir, o que é correto fazer.

Com relação à ética, temos três obras atribuídas a Aristóteles: A Ética a


Nicômaco, a Ética a Eudemo e o tratado conhecido como Magna Moralia.

Depois das "ciências teóricas”, na sistematização do saber, vêm as "ciências


práticas", que dizem respeito à conduta dos homens e ao fim que eles querem
atingir, tanto considerados como indivíduos, quanto como parte de uma sociedade
política.

O estudo da conduta ou do fim do homem como indivíduo é a "ética"; o estudo


da conduta e do fim do homem como parte de uma sociedade é a "política". O
conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas
tendem subordinam-se a um "fim último", que é o "bem supremo", que todos os
homens concordam em chamar de "felicidade".

4.2 O QUE É A FELICIDADE?


Como vimos, a ética aristotélica é teleológica, busca o fim em si mesmo ou
o bem, a felicidade dos homens. “[...] a felicidade, acima de tudo o mais, parece
ser absolutamente completa nesse sentido uma vez que sempre optamos por
ela mesma e jamais como um meio para algo mais [...]” (ARISTÓTELES, 2002,

24
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

p. 49). Quando nos referimos ao “em si mesmo” significa que para Aristóteles
a felicidade deve ser compreendida como a busca por ela mesma, ela é em si
mesma o maior bem a se alcançar, se queremos viver uma vida de acordo com o
bem não devemos procurar exteriormente, mas na própria felicidade.

Uma coisa buscada como uma finalidade em si mesma é mais


completa do que uma buscada como um meio para alguma
coisa mais e que uma coisa jamais como um meio para
alguma coisa mais e que uma coisa jamais eleita como um
meio para qualquer coisa mais é mais completa do que coisas
eleitas tanto como finalidades em si mesmas quanto meios
para aquela coisa; em conformidade com isso, chamamos de
absolutamente completa uma coisa sempre eleita como uma
finalidade e nunca como um meio (ARISTÓTELES, 2002, p.
48-49).

Constata-se que pela argumentação, que é a felicidade “a mais desejável de


todas as boas coisas” (ARISTÓTELES, 2002, p. 49). Podemos aristotelicamente
considerar que:

a) Para a maioria das pessoas a felicidade é o prazer e o gozo, mas uma vida
gasta com o prazer, segundo Aristóteles, é uma vida que torna "semelhantes aos
escravos", e "digna dos animais".
b) Para alguns, a felicidade é a honra, mas a honra é extrínseca, ou seja, não
é em si mesma, necessita de algo externo para existir, portanto é dependente e
condicionada a que as pessoas te honrem.
c) Para outros, a felicidade está em juntar riquezas. Para Aristóteles, esta é a
mais absurda das vidas, chegando mesmo a ser vida "contra a natureza", porque
a riqueza é apenas meio para outras coisas, não podendo, portanto, valer como
fim.

As pessoas ordinárias identificam como algum bem óbvio e


visível, tais como o prazer, ou a riqueza ou a honra, umas
dizendo uma coisa e outras algo diferente; na verdade, com
muita frequência o mesmo indivíduo diz coisas diferentes em
ocasiões diferentes: quando fica doente, pensa ser a saúde
a felicidade; quando é pobre, julga ser a riqueza a felicidade
(ARISTÓTELES, 2002, p. 42).

O bem supremo realizável pelo homem (e, portanto, a felicidade) consiste


em aperfeiçoar- se enquanto homem, ou seja, naquela atividade que diferencia
o homem de todas as outras coisas. Assim, não pode consistir no simples viver
como tal, porque até os seres vegetativos vivem; nem mesmo viver na vida
sensitiva, que é comum também aos animais. Só resta, portanto, a atividade da
razão. O homem que deseja viver bem deve viver, sempre, segundo a razão.

25
Temas e teorias da Filosofia

Aristóteles identifica que cada um de nós é alma, mas também ressalta


que é a alma a parte mais elevada do homem. A alma sendo parte dominante
deixa, assim, claro que cada um é sobretudo intelecto. Os valores da alma são
considerados, então, supremos, mesmo assim Aristóteles não menospreza os
bens materiais, ele reconhece que necessitamos deles, mesmo que não sejam
condição necessária para a felicidade, podem, com sua ausência, comprometer
nossa tranquilidade.

4.3 AS VIRTUDES ÉTICAS E AS


VIRTUDES DIANOÉTICAS
O homem sendo prioritariamente razão deve saber que não é apenas razão.
Na alma humana existe algo oposto a ela, mas que ao mesmo tempo participa
dela. Para explicar melhor podemos dizer que a parte vegetativa da alma não
tem participação no aspecto racional, porém temos a faculdade do desejo, do
apetite, que participa da racionalidade ao escutar e obedecer a razão. Aristóteles
chama o domínio dessa parte da alma de virtude do comportamento prático ou
virtude ética. Pela repetição ou hábito esse tipo de virtude é adquirido. As virtudes
éticas são muitas e cada uma corresponde ao controle de impulsos e paixões ou
sentimentos que possam se manifestar por excesso ou falta.

A razão deve ser, portanto, a moderadora dos excessos e das faltas,


intervindo, impõe a justa medida ou o meio termo entre os extremos. A
coragem, por exemplo, é o meio termo entre a covardia e a audácia. O meio
termo é vitória da razão sobre os instintos. A Justiça é destaque dentre todas
as virtudes éticas porque é pela "justa medida" que se distribuem os bens, as
vantagens, os ganhos e seus contrários.

A perfeição da alma racional como tal é chamada por Aristóteles de virtude


"dianoética". As virtudes dianoéticas são a "sabedoria" (phronesis) e a "sapiência"
(sophia). Elas são divididas em duas porque a alma racional tem dois aspectos:
um que é voltado para as coisas mutáveis, da vida do homem; e outro aspecto
voltado para as coisas imutáveis, das realidades necessárias. A sabedoria tem
como função dirigir a vida do homem para o bem, deliberando corretamente sobre
o que é bom ou ruim para ele. A sapiência, por sua vez, consiste no conhecimento
das realidades supremas, as que estão acima do homem, é o que Aristóteles diz
ser a ciência theorétika.

26
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

4.4 OS PROCESSOS PSÍQUICOS E O


ATO MORAL
Aristóteles teve ainda o mérito de haver tentado superar o intelectualismo
socrático. Percebeu que uma coisa é "conhecer o bem" e outra é "fazer e realizar
o bem". Procurou determinar os processos psíquicos pressupostos pelo ato moral.

A escolha, para Aristóteles, é vinculada ao ato de deliberação. Para alcançar


certos fins podemos estabelecer, conforme a deliberação, quais são os meios
para tal execução. Há fins mais longínquos e outros mais próximos. A escolha
tem seu modo operante nestes últimos. Desse modo, a escolha condiz aos meios
para alcançar os fins. A escolha, então, nos torna responsáveis, mas isso não
quer dizer que ela necessariamente nos torna bons ou ruins. Ser bom ou ruim
depende dos fins e não são objetos de escolha, mas da vontade.

A vontade parece querer sempre o que é o bem, ou seja, aquilo que parece
revestido de bem. Por isso, para ser bom, é necessário um querer o bem, e isso
somente o homem virtuoso reconhece como o bem verdadeiro.

4.5 A POLÍTICA
Aristóteles definiu o homem como animal político, isso quer dizer que não
simplesmente o classificou como animal social, mas que vive em sociedade
politicamente organizada. Para os gregos, a natureza do bem do indivíduo é a
mesma do bem da cidade, pois o interesse público é o mais belo de todos os
interesses. Desse modo, a cidade está para o indivíduo e o indivíduo está para a
cidade.

Sabemos que na Grécia Antiga nem todos eram cidadãos, pois para alcançar
esse nível a pessoa precisava participar da administração pública, fazendo parte
das assembleias e do governo da cidade. Era preciso ter o tempo livre para se
dedicar aos assuntos da coisa pública, por isso nem operários nem escravos
poderiam ser cidadãos. O escravo, por exemplo, era considerado um instrumento
que servia para produção de artefatos e objetos para o uso. O escravo é daquela
forma por natureza. Os antigos pensavam que era necessário ter escravos
porque a própria vida exige isso da natureza. Por isso laborar significava ser
escravizado pela necessidade, escravidão está inerente às condições da vida
humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só
podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à
necessidade. A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fardo

27
Temas e teorias da Filosofia

pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a


um animal doméstico. Assim, qualquer alteração na condição do escravo, “como
alforria, ou qualquer mudança de circunstâncias políticas gerais que elevasse
certas ocupações a um nível de relevância pública, significava uma mudança na
natureza do escravo” (ARENDT, 2007, p. 94-95).

4.6 O ESTADO
Na cidade ainda prevalecia a constituição, ou seja, a estrutura ordenadora da
cidade, e dela emana todo o funcionamento de todos os cargos, principalmente
da autoridade soberana. Aristóteles destaca que o poder soberano pode ser
exercido:

1. por um só homem;
2. por poucos homens;
3. pela maior parte.

E quem governa pode governar:

a) segundo o bem comum;


b) no seu interesse privado.

Então, são possíveis três formas de governo correto e três de governo


corrupto:

Formas corretas de governo Formas corruptas de governo


Monarquia Tirania
Aristocracia Oligarquia
Politia Democracia
FONTE: O autor

Aristóteles entende por "democracia" um governo que, desleixando o bem


comum, visa a favorecer de maneira indébita os interesses dos mais pobres e,
portanto, entende "democracia" no sentido de "demagogia". Para ele o erro na
forma de governo demagógico está em considerar que, como todas as pessoas
são iguais em sentido de direito de liberdade, logo, todos podem também ser
iguais também em tudo.

Aristóteles afirma que, em abstrato, são melhores a monarquia e a


aristocracia, mas, na realidade, considera que, no concreto, sabendo como os

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Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

homens são, a melhor forma de governo é a politia, que é um meio termo entre a
monarquia e a aristocracia.

4.7 O ESTADO IDEAL


O fim do Estado moral é o incremento dos bens da alma, ou a virtude como
sustentáculo, a alma deve ter uma correspondência entre o estado e o cidadão.
Aristotelicamente falando, a cidade perfeita deve ser na medida certa, nem muito
populosa e nem muito pequena. Seu território também deve obedecer a essa
regra, grande o bastante para suprir as necessidades, sem excessos.

Os cidadãos, que governam a cidade, serão os protetores quando jovens,


passando por conselheiros e posteriormente sacerdotes. Assim, há uma conexão
que se adequa na medida correta aos moldes de Aristóteles, ou seja, a polis é
dirigida pela força que há nos jovens e a sabedoria e bom senso dos mais velhos.

A cidade alcançará sua felicidade de acordo com a felicidade de seus


cidadãos, por isso, quanto mais virtuoso se possa formar o cidadão mais justo e
feliz será o Estado.

ÉTICA DAS VIRTUDES: UMA ALTERNATIVA PARA PENSAR O


PROBLEMA DA PUNIÇÃO

A PROPOSTA DA ÉTICA DAS VIRTUDES

Até há pouco tempo existia um consenso entre os estudiosos da


punição de que o consequencialismo, a deontologia ou uma teoria
mista dessas duas vertentes eram as únicas teorias normativas que
podiam justificar a punição de um cidadão pelo Estado. Consciente
dessa realidade, Matthew Schaeffer, em um texto intitulado
virtue ethics and the justification of punishment, descreve que os
filósofos dessas teorias, em debate, tentaram melhorar e definir
justificativas consequencialistas para a punição, outros defendem
uma postura deontológica e ainda há aqueles que tentaram evitar
fraquezas percebidas em ambas (deontologia e consequencialismo),
construindo teorias mistas de justificação.

Schaeffer esclarece que nos primeiros sessenta anos do século XX

29
Temas e teorias da Filosofia

todas as tentativas de justificar a punição estavam niveladas em


consequências, deveres ou em ambas. “Virtue ethics re-emerged in
the late 1950s, with Elizabeth Anscombe’s important article ‘Modern
Moral Philosophy’, and has established itself as a major approach
in normative ethics” (AMAYA, LAI, 2012, p. 1). Em 1958, Elizabeth
Anscombe defende que deontologia e consequencialismo são
incoerentes em uma concepção de lei ética. Como alternativa a essas
teorias, Anscombe propõe o retorno da ética das virtudes aristotélica.

A partir dessa investigação, muitos filósofos seguiram nessa esteira


e a ética das virtudes entra em cena como uma concorrente para
o consequencialismo e a deontologia. Essa iniciativa levou alguns
filósofos a declararem a ética das virtudes como tendo um completo
status de uma teoria.

[....] O procedimento investigativo de Schaeffer leva em conta, em


primeiro lugar, que a ética das virtudes diz que o Estado deveria
punir X se, e somente se, a pessoa totalmente virtuosa puniria X. Em
segundo lugar, constatado isso, realiza o discernimento da natureza
da virtude e o conjunto de virtudes que possui a pessoa totalmente
virtuosa. Nesses dois passos é possível discernir o que a pessoa
totalmente virtuosa faria se estivesse em suas mãos a decisão de
punir ou absolver o indivíduo infrator.

Essas são informações básicas que já nos mostram o fundamento da


ética das virtudes, a saber: a pessoa virtuosa, ou seja, diferentemente
das outras teorias normativas (deontologia e consequencialismo,
mista), a pessoa virtuosa é a medida da decisão, uma vez que ela
está imbuída das virtudes. Schaeffer realça que a natureza da virtude
é constituída de caráter eudaimonista. O vício, por sua vez, é a
antítese da eudaimonia.

Ainda seguindo na esteira aristotélica, ele apresenta os dois tipos


de virtude. A virtude moral que é um traço de caráter “multitrack”
composta de emoções, escolhas, reações emocionais, valores,
desejos, atitudes, interesses, expectativas e sensibilidades. O outro
tipo de virtude é a intelectual, tendo como característica nos permitir
ou ajudar a adquirir conhecimento. Um exemplo é a sabedoria prática,
virtude intelectiva que permite conhecer o fim definitivo da ação e até
mesmo os meios para o efeito.

Então, quais virtudes a pessoa virtuosa possui? Schaeffer elenca


quatro: sabedoria prática; justiça; benevolência e misericórdia. O

30
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

critério para a escolha foi a relevância delas para a questão da pena.


[...].

A primeira, a sabedoria prática, tem uma relevância especial, pois


ela perpassa o interior de cada uma das virtudes. A justiça e a
benevolência são por excelência importantes para a questão da
pena, já a misericórdia é a única como firma Schaeffer que prima
facie parece silenciar exigências da justiça.

Schaeffer (2010, p. 40) adota algumas estratégias para discernir o


que uma pessoa que possui essas quatro virtudes faria em relação à
punição, ou seja, que possua o controle de jure do Estado:

[...] A sabedoria prática determina o fim da ação. Para isso ela vai
primeiramente assumir que a atividade racional constitui eudaimonia,
pois somos seres racionais; em segundo plano, ela se move sobre
o juízo de quais “modos de ser” são racionais; terceiro, a sabedoria
prática etiqueta esses “modos de ser” como virtudes e todos os
outros como vícios. A sabedoria prática, por exemplo, julga que a
média (coragem) entre o excesso de imprudência e a deficiência da
covardia é racional. Assim, o excesso de imprudência e a deficiência
da covardia são vícios, ou seja, os extremos irracionais.

A sabedoria prática mostra que a coragem é um modo de ser racional


e, portanto, uma virtude. A sabedoria prática então é um julgamento
legítimo sobre determinadas ações. Além de ser a sabedoria prática
a virtude controladora da pessoa totalmente virtuosa, ela ainda é o
elemento constituído de todas as virtudes, pois todas elas devem se
manifestar em ações.

Aristóteles (2001, p. 93), diz que “na justiça se resume toda a


excelência”. Pensando na virtude da justiça como excelência ela se
divide em duas espécies: distributiva e comutativa. A primeira é a
distribuição justa e equitativa dos produtos comuns, como o dinheiro,
a liberdade, honra etc. A segunda é a igualdade de troca de bens
entre os cidadãos.

A pessoa justa possui o traço da justiça, uma combinação de vida


interior relevante e sabedora prática. A pessoa justa, assim, pode fixar
ou determinar ações particulares tanto em matéria de distribuição
quanto comutativa. Schaeffer supõe que a pessoa justa no controle
de jure do Estado fará sempre justiça, uma vez que é de sua índole
essa ação. Ele dá um exemplo de uma pessoa que frauda idosos,

31
Temas e teorias da Filosofia

a pessoa justa irá punir apenas com algum tipo de multa, serviço
comunitário ou encarceramento? Importante lembrar que a pessoa
justa é preocupada com os fatos que são relevantes à justiça. No
caso de Ane, que fraudou cidadãos idosos, houve um prejuízo
financeiro e psicológico, e ela agiu de forma moralmente responsável.
Na perspectiva da pessoa justa a justiça distributiva esgrime que o
Estado restrinja a liberdade civil de Ane (o Estado deve distribuir de
acordo com o mérito ou demérito e Ane já não merece a liberdade).

Já pela ótica da justiça comutativa há a exigência da restituição


financeira e moral. É difícil definir um princípio sobre quando a
pessoa justa vai punir um cidadão, isso vai depender do caso e de
suas particularidades. O que fica evidente é que a pessoa justa está
sempre disposta a ofuscar a injustiça e louvar a justiça. Com essa
premissa, Schaeffer (2010, p. 43) conclui em três pontos as ações e
razões para se acreditar no julgamento da pessoa justa: (I) a pessoa
justa sabe que a justiça deve ser feita e a injustiça deve ser evitada;
(II) a pessoa justa deveria sempre, não importa as circunstâncias,
julgar que a punição de um cidadão inocente é injusto, uma vez que
uma pessoa inocente não pode merecer punição para o que ela não
fez; (III), portanto, a pessoa justa, necessariamente, jamais deve
punir um cidadão inocente.

Quanto à virtude da benevolência, é um tipo de vida interior conjugada


com a sabedoria prática direcionada para o bem-estar dos outros. A
pessoa benevolente se contenta quando os outros fazem o bem. A
pessoa benevolente tem como fim corrigir ou determinar quais ações
são benevolentes.

Mantendo o mesmo procedimento que adotou na análise das outras


virtudes, Schaeffer propõe que supondo a pessoa benevolente tendo
controle de jure do Estado como ela agiria em relação à punição?
Ela irá realmente punir? Uma pessoa benevolente desprezaria
punir um cidadão inocente, pois punir um inocente é injusto. Uma
questão paradoxal parece destoar na reflexão: pode o amante dos
outros infligir danos ou privações sobre aqueles que ama? Essa
problemática poderia colocar em risco o plano de justificar a punição
sob a ética das virtudes, porém o castigo pode afetar positivamente
o bem-estar tanto dos que sofreram os danos quanto dos que
provocaram os danos, os infratores. Como o Estado que é direcionado
para fazer o bem dos cidadãos utiliza da punição para com seus
súditos? Schaeffer (2010) propõe quatro maneiras para se pensar a
justificativa da punição e com isso pode afetar agressores e o público

32
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

em geral. (i) A dissuasão: punição, por vezes, impede o agressor e o


público em geral de cometer crimes semelhantes no futuro e, assim,
promover o bem-estar público geral. (ii) Incapacidade: punição, sob
a forma de encarceramento, pode impedir os delinquentes de repetir
seus crimes, assim, promover o bem-estar do público em geral. (iii)
Comunicação Moral: a punição comunica que certas ações são a
antítese de um bem-estar da pessoa, promovendo o bem-estar dos
infratores e do público em geral. (iv) Reforma: a punição, quando
conduzida de forma adequada, pode obrigar os infratores a desprezar
a imoralidade de suas ações havendo envolvimento na autoreforma
e assim promover o bem-estar dos infratores e do público em geral
(uma vez que haverá menos crime). Desse modo, é mister considerar
que a pessoa benevolente punirá sim o agressor, sem deixar de
pensar no seu bem-estar e, ao mesmo tempo, com isso promover
o bem do público em geral. É então a benevolência uma virtude que
justifique a punição.

O exposto até aqui foi uma incursão na visão de M. Schaeffer sobre


a justificativa da punição pela ética das virtudes. Vimos algumas
das virtudes que ele apontou como fundamentais para essa defesa.
Continuando explorando sua análise, agora com uma diferença,
tentarei propor uma implementação e problematização a partir da
virtude da misericórdia. Gostaria de esclarecer que considero a
mais problemática das virtudes para a defesa de uma justificativa
da punição pela ética das virtudes. Schaeffer não aprofundou muito
algumas questões referentes à misericórdia. Após essa minha
incursão irei corroborar o que Schaeffer defende, ou seja, que
é possível justificar a punição via ética das virtudes. O que farei é
contribuir implementando a virtude da misericórdia.

Historicamente a clemência ou misericórdia aparece na república de


509 a.C. a 27 a.C. e era uma atitude própria dos romanos em relação
aos povos dominados pelo império. Em 100 a.C. – 44 a.C., o conceito
ganha aspecto político com o governo de Júlio Cesar. Ele chegou
até mesmo a oferecer cargos de honra, indicando que esqueceu
as ofensas. Importante destacar também a importância de Sêneca
que propôs um modelo de tratado sobre a clemência. O objetivo
dessa obra era orientar o imperador Nero em suas ações pessoais
como também do seu governo. A clemência poderia ter um papel
de entendimento e admiração. Importante destacar que a clemência
não poderia servir de brecha para que o criminoso fugisse da pena.
Sêneca destaca que o homem deve ser responsável por seus atos,
pois ele teve a oportunidade de viver segundo a virtude e escolheu

33
Temas e teorias da Filosofia

viver contrariamente.

A clemência do governante deveria ser produto de uma deliberação


racional, não podia, portanto, ser confundida com piedade: “a
compaixão não observa a causa do castigo, mas o infortúnio do
criminoso. A clemência se aproxima da razão” (SÊNECA, 1990, p.
46).

Tanto em Aristóteles como em Tomás de Aquino e também em


Sêneca, a misericórdia deve ser uma atitude de reflexão racional.
Também Sêneca está ciente de que a clemência deve estar a favor
da justiça e revela equilíbrio em sua aplicação. Nessa breve avaliação
histórica percebemos que a misericórdia tem importância na política.
Fica claro também que os respeitados autores escreveram sobre
a misericórdia e têm a consciência de que o homem clemente não
deixaria de punir o culpado, as circunstâncias são levadas em conta
para não haver injustiça.

Nesta reflexão, assumimos que a misericórdia é um traço de caráter,


uma combinação de vida interior e sabedoria prática que tem como
fim limitar ou apagar a punição por compaixão para com os infratores.
Claro que isso deve ser exercitado sem desrespeitar as exigências da
justiça, ou seja, deve não anular ações da justiça, mas também não
provocar uma deliberação irresponsável destoando a harmonia entre
as virtudes em geral. Todas as virtudes na pessoa totalmente virtuosa
se respeitam mutuamente, representando uma harmonia interior para
a decisão, a ação do agente. Desse modo, a pessoa misericordiosa
mantém uma relação saudável com a justiça, a benevolência e a
sabedoria prática com o intuito de promover o bem-estar dos infratores
e do público em geral. A misericórdia está entre a hiper-misericórdia e
a impiedade, ela é a justa medida entre esses extremos.

Então, novamente seguindo o procedimento adotado por Schaeffer,


pergunta-se o que deveria uma pessoa totalmente misericordiosa
fazer em relação à punição? Respostas: (i) A pessoa misericordiosa
deveria constantemente limitar apenas a apagar punições; (ii) A
pessoa misericordiosa nunca iria apenas limitar ou apagar punições;
(iii) A pessoa misericordiosa faria, na ocasião, apenas limitar ou
apagar punições. Essa última resposta (iii) é a indicada por Schaeffer
como a correta. Sua justificativa baseia-se em que a pessoa
misericordiosa julga que uma limitação ou supressão, uma punição
justa é misericordiosa se, e somente se, o infrator em questão
sinceramente exibe remorso e pretende abster-se de novas infrações.

34
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

O problema que surge está na realização dessa bicondicional


que raramente é satisfeita uma vez que muitos infratores não se
arrependem. Essas limitações ou apagamentos das punições podem
afetar infratores e cidadãos, mas a pessoa misericordiosa, por agir na
justa medida, não iria esvaziar as prisões nem irresponsavelmente
colocar em risco a sociedade. Essas falhas pertencem ao vício da
hipermisericórdia. O remorso sincero do criminoso pode apagar a
punição.

Quando a pessoa misericordiosa age sobre isso, age


misericordiosamente, mas a questão que se esgrime é como saber
se realmente o delinquente não está mentindo? Será que realmente
ele está arrependido? Será que não irá mais cometer o erro? Como
saber a resposta para essas questões se não podemos penetrar nos
estados mentais da pessoa? Essa é a problemática que pretendo
agora discutir e que Schaeffer percebe, mas limita-se a discutir.
Acredito que explorar isso possa reforçar e complementar a tese da
justificativa da punição pela ótica da ética das virtudes, pois creio
que a misericórdia é a mais frágil para que a teoria passe à prova.
No entanto, ela pode ser reforçada e ganhar robustez a ponto de ser
considerada forte tanto quando as outras.

Primeiro, é preciso dirimir a dúvida mais comum quando se fala


da misericórdia, a saber, se ela realmente pode ser considerada
uma virtude. Podemos recorrer a Tomás de Aquino, que seguindo
na esteira de Aristóteles, discute essa questão. Na suma teológica
explica que a misericórdia implica dor com a miséria alheia e esta
pode ser considerada de algum modo um movimento de apetite
sensitivo. Com essa interpretação a misericórdia é paixão e não
virtude. Como relatamos anteriormente, o auxílio da sabedoria prática
pode considerar a paixão como apetite intelectivo enquanto ela não
nos direciona a não sermos confortáveis com o mal feito ao outro, ou
seja, não nos agrada saber que o mal feito ao outro é efetivado.

FONTE: CRUZ, D. N. da. Ética das virtudes: uma alternativa para


pensar o problema da punição. In: Filosofia, ensino, diálogos e
perspectivas de investigação. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018. P.
163-179.

35
Temas e teorias da Filosofia

1 No texto acima, percebemos como a ética das virtudes aristotélica


ainda é importante ao debate filosófico e político, mas também
há um interesse por outras áreas, como o direito, por exemplo.
Discorra como a ética das virtudes pode auxiliar na questão da
punição de um indivíduo pelo Estado.

2 Interprete e esclareça a afirmação de Aristóteles de que o “homem


é um animal político”.

3 Analise como Sócrates relaciona o conceito de areté ao problema


antropológico contido no “conhece a ti mesmo”.

4 Explique por que a ética aristotélica é denominada teleológica?

5 O ARISTOTELISMO E SUA
INFLUÊNCIA NA TEORIA TOMISTA
Não é pretensão nossa realizar uma investigação de todas as correntes
em todas as épocas do desenvolvimento da filosofia, mas realizar o estudo de
algumas temáticas inerentes ao saber filosófico em vários períodos. A seguir
temos uma cronologia resumida desses períodos:

QUADRO 1 – PERÍODOS DA FILOSOFIA


Antigo Medieval Moderna Contemporânea
Pré-socráticos (VII – VI Patrística (I ao VIII Renascimento (XIV ao Idealismo (XIX d.C.)
ao V a.C.) d.C.) XVI d.C.)
Socráticos (V ao IV Escolástica (IX ao XIV Racionalismo e Empir- Positivismo (XIX – XX
a.C.) d.C.) ismo (XVI ao XVIII d.C.) d.C.)
Helenismo (IV a.C. ao Existencialismo (XX
I d.C.) d.C.)
FONTE: O autor

Conscientes da cronologia apresentada, podemos agora explorar as


ideias desenvolvidas pela filosofia cristã, na Idade Média, influenciada pelo
aristotelismo. Focaremos apenas nas ideias de Tomás de Aquino, por ser o

36
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

principal representante da escolástica. O século XIII da era cristã caracteriza-se


filosoficamente pelo pensamento escolástico. Não por acaso foi nesse período
também que tivemos o surgimento das primeiras universidades e a criação das
ordens religiosas como os dominicanos e franciscanos. O frade Tomás de Aquino
(1224-74) pertencia aos dominicanos e também atuou em algumas universidades
da época. Mesmo a partir da metade do século XII já haviam surgido a
Universidade de Salerno (1050), de Bolonha (1088), posteriormente a de Paris
(1214), na Inglaterra surge a de Oxford, e assim, muitas foram surgindo. O fato
é que nessas instituições eram ensinados diversos saberes, inclusive o direito
à medicina. Foi despertado o interesse pelas obras aristotélicas, principalmente
pelos estudiosos árabes que estavam desenvolvendo a ciência natural ainda
pouco explorada. As universidades atraiam mestres e estudantes de diversas
localidades do mundo que se reuniam em determinada cidade para seus estudos.
Daí o termo universitas ser utilizado para representar esse conjunto de pessoas
de diferentes regiões.

As obras de Aristóteles chegaram a ser proibidas de serem ensinadas já


em 1215 e continuariam com muitas proibições. Porém, a Igreja percebeu que
as Universidades poderiam desenvolver sistematicamente um saber que pudesse
combater à heresia e com isso preservar a doutrina cristã. O pensador de maior
influência nesse período foi Tomás de Aquino.

Tomás de Aquino tem sua originalidade reconhecida por desenvolver uma


filosofia própria e atingir questões de suma abrangência em todas as reflexões da
filosofia. Podemos dizer que ele forjou um grande sistema filosófico e teológico
tendo Aristóteles como base. Isso trouxe uma grande mudança, pois até então o
que prevalecia era a teoria platônico-agostiniana. Tomás de Aquino traz à luz que
a filosofia de Aristóteles tem compatibilidade para desenvolver a filosofia cristã.

Várias são as obras de Aquino, dentre elas temos: De ente et essentia (sobre
a essência, 1242-43); Suma contra os gentiles (suma contra os gentios, 1258-60);
De veritate (sobre a verdade, 1256-59) e sua principal obra Summa Theologica
(1265-73).

Admirador de Aristóteles, a quem chamava na suma teológica de o filósofo,


elabora um sistema que concilia o pensamento cristão com o aristotelismo. Sendo
sua obra muito extensa e complexa analisaremos aqui não seu sistema em
detalhes, mas focaremos no argumento das cinco vias da prova da existência de
Deus que Tomás de Aquino trata na suma teológica e que mostra a cristianização
do pensamento aristotélico para, a partir da luz natural da razão, chegar ao
conhecimento da existência divina. Neste argumento, como veremos, se articulam
a razão e a fé, tema central de discussão da filosofia medieval.

37
Temas e teorias da Filosofia

O primeiro argumento é o do movimento (baseado na Física, VIII, de


Aristóteles). A caracterização fundamental do movimento é a passagem do ato
para potência. Tudo que está em movimento ou se move é movido por algo
imóvel. Se assim não fosse haveria uma regressão ao infinito, o que não se pode
admitir. Deus então é a causa primeira de todo o movimento, ou seja, ele é o motor
imóvel que move tudo no universo, mas não é movido, ele é o Primeiro Motor.
A segunda via denominada de causa eficiente tem base também na metafísica
(II) de Aristóteles. Esse argumento diz que nada pode ser causa eficiente de si
mesmo, caso contrário seria causa anterior a si mesmo. E se não é possível a
admissão de uma regressão infinita de causas, Deus é a Causa Primeira de tudo.
O argumento cosmológico é a terceira via, recorrendo às noções aristotélicas
de necessidade e contingência direciona-se para a necessidade da existência
do cosmos. A natureza tem sua constatação contingencial, porém deve haver
algo incontingente, pois caso contrário não existiria nada. O que não existe só
pode começar a existir a partir de algo já existente anteriormente. Portanto, é
necessário que algo exista antes. Deus é esse primeiro ser existente, necessário
para a existência de tudo. Ainda com base na Metafísica de Aristóteles, Tomás de
Aquino chega à quarta via denominada de graus da perfeição. Todas as coisas
são predicáveis, têm qualidades em maior ou menor grau. Se temos esse grau
comparativo de maior ou menor, o parâmetro é o máximo. Deus, portanto, é
esse Ser Perfeito que tem o máximo de perfeição. A quinta e última via é a do
argumento teleológico. Deve haver um fim ou finalidade na natureza ou causa
final. A causa final da natureza é Deus, pois tende para sua finalidade inteligente.

Como vimos, é incontestável a influência do pensamento metafísico


aristotélico na filosofia tomista. Claro que na Idade Moderna essa teoria foi muito
contestada, mas é inegável a contribuição de Tomás de Aquino para a revelação
de Deus pela luz natural da razão, passando pela esfera dos sentidos. Essa
valorização naturalista é herança aristotélica e cabe ressaltar sua importância
para a mudança de perspectiva que vai se apresentando, pois se podemos
provar Deus naturalmente é despertado o interesse pela investigação do mundo
natural. Também, a difusão do pensamento de Aristóteles via Tomás ascende a
curiosidade de descobertas das investigações científicas, seja contestando seus
argumentos (como fez Galileu ao demonstrar que Aristóteles estava equivocado
ao dizer que dois objetos de diferentes pesos lançados de uma mesma altura
o mais pesado cai primeiro) seja complementando. Nos séculos subsequentes
a Tomás, na modernidade, por exemplo, ocorre uma grande metamorfose no
Ocidente, sem dúvida o pensamento tomista contribuiu para sua formação.

38
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

1 Disserte sobre as cinco vias da prova da existência de Deus pela


luz natural da razão e associe os argumentos aos defendidos por
Aristóteles em sua metafísica.

6 ARISTÓTELES E A
SISTEMATIZAÇÃO DA LÓGICA
Veremos agora como Aristóteles sistematiza a lógica. Gostaríamos de
ressaltar que não estamos explorando aqui os assuntos com uma sequência
cronológica, mas por uma abordagem temática sobre temas filosóficos.

No sistema epistemológico aristotélico a lógica não faz parte da divisão


das ciências, ela é um organon, ou seja, um instrumento de auxílio para todas
as áreas do conhecimento e não entra no esquema geral porque constitui uma
propedêutica para todas as ciências. A lógica é a base do pensamento e identifica
qual a estrutura do raciocínio e de suas demonstrações e quais seus tipos.

O conjunto de escritos de Aristóteles denominados de organon caracteriza


a lógica com o termo de analítica. A analítica vem do grego análysis e significa
solução. Dada uma conclusão, é investigada sua consistência de acordo com os
elementos que fizeram com que chegássemos àquela afirmação, tais elementos
são as premissas. Dentro dessas premissas encontramos ainda outros elementos
importantes para a formação do raciocínio investigado.

Para Aristóteles, o elemento mais simples da lógica é a categoria, pois é o


que legitima uma conexão que dá sentido a uma frase. Por isso ele elenca as
seguintes palavras sem conexão ou categorias: substância, a quantidade, a
qualidade, a relação, o onde, o quando, o estar em uma posição, o ter, o fazer ou
o sofrer. Essas categorias só têm sentido quando estão conectadas com o sujeito.
Aristóteles também utiliza essas categorias na metafísica para denominar o que
podemos dizer sobre o ser.

Na lógica as categorias são fundamentas para o entendimento da proposição.


Se analisarmos a afirmação “Pedro anda”, temos que “Pedro” é classificado na
categoria substância e “anda” na do fazer. Se afirmo que “Pedro foi hoje para a
escola”, hoje é referente à categoria quando; e escola a lugar.

39
Temas e teorias da Filosofia

O objeto da lógica é a proposição, que expressa através de palavras e frases


os juízos que o pensamento formula. Já o raciocínio pode ser denominado como
o encadeamento dos juízos. Aristóteles forjou com isso o estudo da conexão
das proposições que ele chamou de silogismo. Na análise do pensamento é
fundamental levar em consideração alguns princípios básicos: da não contradição,
do terceiro excluído e de identidade.

Na proposição identificamos duas propriedades lógicas: a extensão e a


compreensão. Na extensão é possível identificar o conjunto dos elementos que
constituem aquele termo, exemplo, se tenho a palavra ser humano, ela expressa
todas as pessoas que possam ser designadas por tal conceito. Já a compreensão
é o conjunto de propriedades pertencentes ao ser humano, exemplo, Maria,
João. Posso ainda designar esse homem como animal, racional, vertebrado etc.
estaremos no âmbito da compreensão. O termo nos limites da maior extensão
tem uma compreensão menor e o termo nos limites de uma maior compreensão
tem uma extensão menor. Se classificarmos o gênero desse termo, teremos
uma maior extensão e uma compreensão menor, como exemplo temos o animal.
Se a classificação for pela espécie temos uma extensão média e também uma
compreensão média. Como exemplo temos a palavra homem. Se a classificação
for pelo indivíduo teremos uma extensão menor e uma compreensão maior.
Exemplo: Pedro.

Dentro da proposição os termos são os predicados que predicam um


sujeito. Ao dizer, João é magro, estamos declarando, a partir do verbo ser (é), as
propriedades do Sujeito (João) e do predicado (magro). Isso significa que há uma
declaração do que é pensado e de sua expressão pelo juízo. Desse modo, ao
afirmar que S é P tenho uma proposição afirmativa, ao dizer que S não é P tenho
uma proposição negativa.

As proposições podem se classificar pela qualidade ou quantidade. Na


divisão qualitativa temos:

• as afirmativas: S é P;
• as negativas: S não é P;
• nas quantitativas temos: as universais: Todos os S são P, quando forem
afirmativas ou Nenhum S é P quando negativas;
• particulares afirmativas: alguns S são P ou negativas Alguns S não são
P;
• singulares: este S é P ou negativa este S não é P.

Toda proposição precisa obedecer a regras que possam garantir sua


estrutura e argumentação: são os princípios de:

1. Identidade: podemos exemplificar ao afirmar que um ser vai ser sempre


40
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

idêntico a si mesmo quando A é A.


2. Princípio de não contradição: um ser não pode ser e não ser ao mesmo
tempo idêntico a si mesmo, A tem que ser A, não pode ser não A numa mesma
relação.
3. Terceiro excluído: duas proposições não podem afirmar algo de um mesmo
sujeito e predicado sendo que uma afirme uma coisa e outra a negue. É impossível
algo ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo, ou é falso ou verdadeiro, não pode
haver uma terceira possibilidade. Posso afirmar que A é B ou não B, nunca posso
conceber uma terceira opção.

A partir da formulação desses princípios podemos distinguir as proposições


em: Contraditórias: quando duas proposições com o mesmo sujeito e predicado
são uma afirmativa e universal (Todos os S são P) e outra negativa particular
(Alguns S não são P); também quando acontece uma universal negativa (Nenhum
S é P) e afirmativa particular (Alguns S são P). Contrárias: acontece quando
temos uma das proposições sendo universal afirmativa (Todo S é P) e uma
outra sendo universal negativa (Nenhum S é P); ou quando ocorre que uma das
proposições é particular afirmativa (Alguns S são P) e a outra é particular negativa
(Alguns S não são P).

O silogismo aristotélico é baseado na ideia do raciocínio por inferência, ou


seja, o ato de inferir é a retirada de uma proposição como conclusão. No silogismo
temos sua constituição divididas em três proposições: premissa maior, premissa
menor e conclusão. Assim, temos:

• Todos os homens são mortais (premissa maior ou universal).


• Sócrates é homem (premissa menor).
• Logo, Sócrates é mortal (conclusão).

Esse tipo de raciocínio é denominado de dedução ou inferência silogística e


tem a seguinte fórmula:

• A é verdade de B.
• B é verdade de C.
• Logo, A é verdade de C.

Também podemos usar inferências negativas:

• Nenhuma divindade é mortal (A é verdade de B).


• Zeus é divindade (B é verdade de C).
• Logo, Zeus não é mortal (A é verdade de C).

Sendo a lógica o estudo de métodos usados para distinguir o raciocínio

41
Temas e teorias da Filosofia

correto do incorreto, podemos afirmar que ela se interessa com a forma do


argumento e não com o seu conteúdo.

Também a lógica só se interessa com a validade do argumento e não com


a sua verdade, mas tudo que é lógico tem sentido, mas nem tudo que é lógico
é verdadeiro. Sobre a Verdade e falsidade, Irving M. Copt (1981), no seu livro
Introdução à Lógica, destaca que elas podem ser predicadas das proposições,
nunca dos argumentos. Do mesmo modo, propriedades de validade ou invalidade
só podem pertencer a argumentos dedutivos, mas nunca a proposições. Há uma
ligação entre a validade ou invalidade de um argumento e a falsidade e verdade
das premissas e da conclusão, porém tal conexão não é simples, pois há alguns
argumentos válidos que contêm apenas proposições verdadeiras, como no
exemplo:

• Todas as baleias são mamíferos.


• Todos os mamíferos têm pulmões.
• Portanto, todas as baleias têm pulmões.

No entanto, há argumento que pode conter somente proposições falsas, e


mesmo assim ser válido, como no exemplo a seguir:

• Todas as aranhas têm seis pernas.


• Todos os seres de seis pernas têm asas.
• Portanto, todas as aranhas têm asas.

O argumento acima é válido, pois, se suas premissas fossem verdadeiras,


sua conclusão teria também que ser verdadeira, mesmo se de fato fossem falsas.

A lógica ocupa uma área de relevância e tem uma extensão muito maior do
que a que apresentamos aqui, apenas sinalizamos os aspectos fundamentais do
silogismo aristotélico que podem ser aprofundados nas leituras que recomendamos
neste estudo. O pensamento lógico de Aristóteles permaneceu por mais de dois
mil anos quase que intacto e só após o surgimento da lógica simbólica, no século
XIX, da Era Cristã é que houve uma ampliação da lógica aristotélica. Pensadores
como Gottlob Frege, Georg Cantor, George Boole, Giuseppe Peano, Bertrand
Russell, Ludwig Wittgenstein, dentre outros, partiram das ideias de Aristóteles
para tornar o raciocínio lógico aplicável. Podemos afirmar que o desenvolvimento
dos computadores e dos sofisticados smartphones e aplicativos que são de
grande utilidade hoje só são possíveis por causa das análises aristotélicas.
Vejamos adiante algumas teorias da lógica a partir do século XIX.

42
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

1 Assinale a premissa maior do seguinte argumento: “Nem tudo


o que brilha é ouro, assim como o ouro não é o único metal
precioso, porque somente os metais preciosos brilham”.
a) ( ) Nem tudo o que brilha é ouro.
b) ( ) O ouro não é o único metal precioso.
c) ( ) Somente os metais preciosos brilham.
d) ( ) Nenhum ouro é metal precioso.

2 Considere as afirmativas:
I - A lógica é o estudo de métodos usados para distinguir o
raciocínio correto do incorreto.
II - A lógica só se interessa com a forma do argumento e não com o
seu conteúdo.
III - A lógica só se interessa com a validade do argumento e não
com a sua verdade.
IV - Tudo que é lógico tem sentido, mas nem tudo que é lógico é
verdadeiro.

Assinale a alternativa verdadeira:


a) ( ) Apenas I e II são corretas.
b) ( ) Apenas I e III são corretas.
c) ( ) Apenas II e IV são corretas.
d) ( ) Apenas I e II são falsas.
e) ( ) Todas estão corretas.

3 Assinale a conclusão do seguinte argumento: “Vossos déspotas


governam pelo terror. Sabem que quem teme a Deus nada mais
teme; portanto, erradicam da mente, através dos seus Voltaire,
dos seus Helvetius e do resto desse bando infame, aquela
espécie única de medo que gera a verdadeira coragem” (Edmund
Burke).

a) ( ) Vossos déspotas governam pelo terror.


b) ( ) Vossos déspotas sabem que quem teme a Deus nada mais
teme.
c) ( ) Vossos déspotas erradicam da mente, através dos seus
Voltaire, dos seus Helvetius e do resto desse bando infame,
aquela espécie única de medo que gera a verdadeira coragem.

43
Temas e teorias da Filosofia

6.1 REDUÇÃO DA LÓGICA À


MATEMÁTICA?
Os matemáticos do final do século XIX tinham como uma das suas metas
obterem um rigor conceitual em noções de cálculo infinitesimal. Essa intenção
teve como programa o chamado “aritmetização da análise’’, ou seja, reduzir os
conceitos da análise, por exemplo a matemática que tem os números reais como
base, aos conceitos da aritmética que utiliza como base teórica os números
naturais e racionais. De modo geral foi Peano (1899) quem deu a fundamentação
suficiente para toda a aritmética posterior com a chamada metalógica.

Frege (1848-1925), Cantor (1845-1918) e o próprio Russell (1872-1970) não


estavam convencidos dessa base constituída pela aritmética. Então buscaram uma
alternativa mais profunda: conduzir a aritmética reduzindo o conceito de número
natural ao conceito lógico de classe, ou seja, definir os números em conjuntos.
Desse modo a teoria mais apropriada para a investigação dos fundamentos da
matemática era a lógica das classes. A matemática passa a ser caracterizada nem
tanto pelo seu conteúdo, mas pela forma. A partir de então, essa ciência tem uma
nova direção. Matemáticos como Hilbert (1862-1943) iniciam discussões sobre o
valor, limites e axiomatização entre lógica e matemática.

No início do século XX muitas dúvidas começam a desfigurar a confiança


que os matemáticos tinham no grau de perfeição da lógica. Muitos paradoxos,
especialmente se tratando de teoria dos conjuntos começaram a assombrar os
especialistas lógicos. O grande sonho dos matemáticos no início do século XX
era reduzir a matemática à lógica, mas com o surgimento desses paradoxos veio
a dúvida: será que o uso dos axiomas de um sistema rigidamente lógico poderia
realmente nunca cair em uma contradição? A partir daí surgem a logicista, a
formalista e a intuicionista, três grandes correntes ou escolas lógicas que tinham
como intuito resolver o problema dos paradoxos.

E aqui chegamos ao cerne da questão proposta, pois a teoria da escola


logicista propõe a redutibilidade das proposições da matemática a proposições da
lógica. E é nessa escola que os três grandes teóricos, Russell, Peano e Frege, se
encontram. Platonistas, acreditavam num mundo objetivo, existente por si, em que
entes e relações matemáticas são descobertas e não inventadas por ninguém,
elas existem sem a interferência do sujeito. A criação de uma linguagem perfeita
pela lógica seria o início do pensamento filosófico para esses autores.

Frege procurou em suas obras apresentar o cálculo proposicional,


introduzindo assim o uso de qualificadores e regras de inferência primitivas. Seria

44
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

então, nesse caso, criar um sistema capaz de transformar todas as demonstrações


matemáticas em raciocínios dedutivos. Para isso ele criou um vocabulário fixo
ou um conjunto dos modos de tradução. A construção de qualquer frase com o
seu significado, como o raciocínio é deduzido, ou seja, como no raciocínio se
deduzem a partir dos anteriores, passos novos. Frege faz assim a transição da
lógica para a logística ou a redução da matemática à lógica.

De forma unívoca, a lógica matemática tem como característica ter construído


uma linguagem simbólica a fim de ter uma representação do pensamento. Cada
signo só pode ter um único significado a fim de evitar ambiguidades e contradições
no modo de conceber o conhecimento. Assim, existem propriedades específicas
para a linguagem lógico-matemática, a saber: as ideias devem ser representadas
por sinais; não há exigência de uma linguagem natural para sua tradução; e há a
substituição da forma gramatical pela forma lógica.

6.1.1 O platonismo matemático


O platonismo matemático tem por pretensão garantir a existência de
entidades abstratas da matemática, tais como os números, funções e conjuntos.
Nele, as verdades matemáticas são descobertas e não criadas. Proposições
matemáticas que ainda não foram demonstradas têm um valor de verdade, ainda
que não se saiba como demonstrá-las.

Com a matemática de Russell em Principles, as proposições de implicação


formal desembocam em um platonismo matemático. Assim, se entendo prova
como uma determinada sequência de proposições com propriedades formais, as
verdades matemáticas não são criadas, apenas descobertas. Números não são
criados, mas descobertos.

Assim como Frege, Russell concebe números como conjuntos de conjuntos


de mesma cardinalidade. O número 1 tem a definição de todos os conjuntos
unitários de objetos, o 2 o conjunto de todos os pares. Porém, surge uma
dificuldade ao afirmar, por exemplo, que exista no universo apenas 9 objetos
primitivos. Desse modo o número 9 tem a definição de ser o conjunto cujo único
elemento é o conjunto de todos os objetos existentes. Porém, se observarmos o
conjunto que define o número 10 será vazio, por existir somente nove objetos.
Isso ocorrerá com o 11, 12 e sucessivamente. A conclusão que se chega é que
todos os números maiores que 9 são iguais, ou seja, vazios, por isso temos um
conjunto vazio, e assim a aritmética entra em crise. E é isso que Russell vai tentar
evitar.

45
Temas e teorias da Filosofia

O conjunto assim definido subsiste independentemente da


existência de qualquer objeto primitivo. Como todo conjunto
com a mesma extensão é idêntico, só existe um conjunto
vazio. Logo, poder-se-ia definir o número 1 como conjunto que
contém como único elemento o conjunto vazio. Desse modo,
já teríamos dois conjuntos, que poderiam ser elementos de
um terceiro conjunto, e assim ad infinitum. Ou seja, como na
definição de Von Neumann, tem-se: 0 =  1 = {} 2 = {, {}}
3 = {, {}, {, {}}} (IMAGUIRE, 2005, p. 15).

A alternativa de Russell para a solução do problema foi definir 0 como o
conjunto das coisas que tenham a condição impossível.

É interessante notar no modelo de Russell o que corresponde


(em The dictionnaire, coluna da direita) a cada um dos números
naturais. `` zero`` é interpretado como o cardeal da classe
vazia; Esse cardeal é o conjunto dos conjuntos que podem
ser coordenados com a classe vazia. Mas tais conjuntos,
obviamente, devem estar vazios; Além disso, existe apenas
uma classe vazia, da qual resulta que “zero”: {} (KLIMOVSKY,
2005, p. 238).

Outro exemplo interessante é o procedimento de Russell e Von Neumann em


que cada número é um elemento de toda cadeia subsequente:

No procedimento de Russell e Von Neumann, anteriormente


proposto, cada número é um elemento de todos os números
subsequentes: 12, 23, 34... e, assim, cada número
pertenceria a um outro nível lógico. Consequentemente, a
função proposicional "... é o número de cadeiras desta sala"
pertenceria a diferentes níveis lógicos, dependendo do número
atribuído, por exemplo: Um é o número de cadeiras desta sala.
Dois é o número de cadeiras desta sala (IMAGUIRE, 2005, p.
16).

Porém, se no caso, a mesma função proposicional pertence ao mesmo tempo


a diferentes níveis lógicos, a teoria entra em crise. Então o argumento de infinitos
objetos primitivos aqui precisa de outra forma de garantia. Russell alimenta-se
de argumentos platônicos para resolver a querela. Um deles é o encontrado no
diálogo de Parmênides: inicia-se supondo existir 1, ou seja, que 1 é, e como o
Ser 1 não pode ser idêntico ao elemento 1, se deduz que existam duas coisas: o
1 e o Ser. Logo também existe o 2, e por conseguinte existem o 1, o Ser e o 2. Já
existem três coisas. E se resolver prosseguir, teremos uma linha infinita.

É possível demonstrar a existência dos números independentemente da


experiência sensível pelo simples fato de eles não serem seres palpáveis,
visíveis. Por exemplo, ninguém nunca viu uma árvore de números (embora
possa imaginar), números não estão na natureza, porém, ela tem relação

46
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

com os números. Como pode uma coisa física ter relação com uma coisa não
física? Nisso está a base de uma teoria do dualismo platônico, os números são
elementos da alma racional, do pensamento, ao contrário do corpo físico que
é do mundo sensível e traz confusão e ilusão. Os números fazem parte do ser
inteligível e assim como a alma que é inteligível está em um corpo sensível, os
números povoam o pensamento para darem sentido às coisas sensíveis que o
homem tem contato. Na verdade, o argumento demonstrado tem ligação com um
mundo real cotidiano. Por exemplo, em tempos passados, os homens utilizavam
uma técnica muito diferente para contar um rebanho. Tinha-se para cada animal
uma pedra que, ao final do dia, ao recolher os animais, tendo uma falta, sobrava
uma pedra. Assim ele sabia que estava com um animal a menos. A pedra foi
substituída por símbolos numéricos. Contar agora e ter memorizado o número
de animais é bem mais prático que juntar pedrinhas. A conclusão que chegamos
aqui é que os números existem bem antes de nossa necessidade, ou seja, os
homens dessa época necessitavam de alguma coisa para não perderem animais,
eles sabiam que juntando as pedrinhas com a mesma quantidade de animais
tinham um sistema de exatidão. Os números, desse modo, são descobertos pela
necessidade e não inventados pelos humanos, eles são entidades em si.

7 A LÓGICA E A TEORIA DAS


DESCRIÇÕES DEFINIDAS
DE RUSSELL: COMO EVITAR
COMPROMISSOS ONTOLÓGICOS
COM ENTIDADES INEXISTENTES?
Para uma a maior compreensão da teoria das descrições de Russell é
recomendado antes saber que ele de início apoiou a teoria fregeana dos nomes.
Porém, a teoria fregeana manifesta dificuldades de interpretação nas análises de
sentenças em se tratando de nomes a objetos não existentes. A saída de Frege,
obviamente, foi buscar a referência para esses nomes sem referentes. Para ele
essa referência é a classe zero, mas ao buscar o valor de verdade delas fica a
pergunta: elas são verdadeiras ou falsas? Uma saída para esse problema é a
renúncia em atribuir valor de verdade para tipos de sentenças dessa natureza
e Frege parece ser favorável com isso, mesmo ferindo o princípio do terceiro
excluído.

Russell então não concorda com a suspensão do princípio do terceiro


excluído e resolve buscar uma solução para o problema fregeano. A partir do

47
Temas e teorias da Filosofia

trabalho de Alexius Meinong, que mostra que mesmo os objetos dessa natureza
deveriam ter uma referência ontológica, pois sua negação implicaria também sua
existência.

Em 1905 Russell apresenta o desenvolvimento de sua teoria em On Denoting,


este trabalho tem por pretensão mostrar que frases denotativas significam objetos
de modo determinado ou indeterminado. Russell deseja, em On Denoting, propor
uma análise formal dessas expressões, sobretudo para descrições definidas
como “o atual rei de Franca”, que, embora denotativas, nada denotam (BRITO,
2003, p. 55).

Na sentença “o atual rei de França é calvo”, se não houver nenhum rei de


Franca, fica a pergunta: como atribuir um valor de verdade a essa sentença?
Se atribuirmos falsidade a frase ficaria “o atual rei da França não é calvo”. Isso
não pode ser considerado já que não existe nenhum atual rei da França em que
se possa fazer uma afirmação. Considerando isso, pareceria certo afirmar a
sentença “o atual rei de França não existe”. Aqui surge outro problema, para negar
a existência do objeto em questão é preciso verificar se o objeto particular que se
nega de fato não existe. Para atribuir um valor de verdade à sentença, antes de
tudo, é preciso afirmar sua existência que é o objeto negado na sentença.

Brito (2003) dá uma visão geral do desenvolvimento das sentenças


construídas com descrições definidas em Russell:

O eixo central da teoria de Russell está em tomar, na


formalização, a variável, e não as constantes, como noção
fundamental (Russell, 1905, p.42). Isso implica compreender
o caráter singular determinado das sentenças construídas
com descrições definidas como um traço derivado, e não
essencial, de tal modo que essas sentenças possam ser
reproduzidas formalmente por meio de uma sentença
particular, mas indeterminada. A ideia é a de que a variável,
ligada por um operador, está pelo objeto referido, o que
garante a singularidade da denotação, mas não compromete
a sentença com nenhuma determinação antecipada do objeto,
uma vez que a variável está por um objeto, se houver um que
a sentença denote, qualquer que ele seja. A determinação
do objeto é dada somente pelo predicado que acompanha a
variável, e no caso das descrições definidas, esse predicado
constitui-se da própria descrição que a expressão fornece do
objeto que denota (BRITO, 2003, p. 56).

A teoria das descrições tem como ponto fundamental garantir a unicidade


da denotação. Russell dá sua contribuição também introduzindo uma identidade
para o objeto referido pela descrição. Desse modo, a descrição deve identificar
um objeto. A variável deve especificar o objeto da descrição. Se houver outro
objeto nessa mesma condição, então ele deve ser idêntico ao primeiro.

48
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

Assim, segundo a teoria da denotação de Russell, a sentença


“o atual rei de Franca é calvo”, deveria ser parafraseada do
seguinte modo: não é sempre falso de x, que x seja o atual
rei de Franca e que x seja calvo, e a sentença “se y é o rei
de Franca, então y é idêntico a x” é sempre verdadeira de y
(BRITO, 2003, p. 56-57).

Descrições definidas fazem nada mais que introduzir os objetos indiretamente


no discurso, elas descrevem-nos. Elas são assim, nomes que servem para
denotar objetos que não temos contato imediato.

O PENSAMENTO – UMA INVESTIGAÇÃO LÓGICA

Assim como a palavra “belo” assinala o objeto da estética


e “bem” assinala o objeto da ética, assim também a palavra
“verdadeiro” assinala o objeto da lógica. De fato, todas as ciências
têm a verdade como meta, mas a lógica ocupa-se dela de forma bem
diferente. Ela está para a verdade aproximadamente como a física
está para o peso ou o calor. Descobrir verdades é a tarefa de todas
as ciências: cabe à lógica, porém, discernir as leis do ser verdadeiro
(Wahrsein). Emprega-se a palavra “lei” em dois sentidos. Quando
falamos de leis morais e de leis jurídicas, referimo-nos às prescrições
que devem ser obedecidas, mas com as quais os acontecimentos
nem sempre estão em conformidade. As leis da natureza constituem
a generalização dos acontecimentos naturais, com as quais estes
sempre estão de acordo. É mais neste segundo sentido que falo
de leis do ser verdadeiro. É verdade que aqui se trata não tanto de
um acontecer, mas sobretudo de ser. Das leis do ser verdadeiro
decorrem prescrições para asserir (Fünwahrhalten), para pensar,
julgar, raciocinar. E, nesta acepção, pode-se também falar de leis do
pensamento. Aqui corremos o perigo de misturar coisas distintas.

Talvez se tome a expressão “lei do pensamento” como “lei da


natureza”, entendendo por essa expressão a mera generalização do
processo psíquico de pensar. Neste sentido, uma lei do pensamento
seria uma lei psicológica. E, assim, poderíamos vir a acreditar que a
lógica trata do processo psíquico de pensar e das leis psicológicas
a que este se conforma. Isto seria, porém, desconhecer a tarefa
da lógica, pois não se dá à verdade o lugar que lhe cabe. O erro, a
superstição têm suas causas, assim como as tem o conhecimento
correto. Tanto a asserção do falso como verdadeiro, quanto a

49
Temas e teorias da Filosofia

asserção do verdadeiro como verdadeiro têm lugar segundo leis


psicológicas. Uma derivação a partir de tais leis psicológicas e
uma explicação de um processo psíquico que resulta em uma
asserção jamais poderão substituir uma demonstração de algo que
foi considerado verdadeiro. As leis da lógica não poderiam também
estar envolvidas nesse processo psíquico? Não quero entrar nesta
discussão, mas quando se trata da verdade, a mera possibilidade
não basta. Pois é também possível que um componente não lógico
esteja envolvido em tal processo e o tenha desviado da verdade. Só
depois de conhecer as leis do ser verdadeiro é que poderemos nos
decidir a esse respeito; mas sendo assim, poderemos ao que parece
prescindir de explicar o processo psíquico, se o que importa é decidir
se o asserir como verdadeiro - momento em que o processo termina
- se justifica ou não. A fim de evitar qualquer equívoco e impedir que
se apaguem as fronteiras entre psicologia e lógica, atribuo à lógica a
tarefa de descobrir as leis do ser verdadeiro (Wahrsein), e não as leis
do asserir como verdadeiro (Fürnwahrhalten) ou as leis do pensar.
O significado da palavra “verdadeiro” se explica pelas leis do ser
verdadeiro.

FONTE: FREGE, G. O pensamento: uma investigação lógica.


Investigações lógicas. Tradução de Paulo Alcoforado. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002, p. 11-12.

1 No texto acima, Frege esclarece que compete à lógica discernir


as leis do ser verdadeiro. Qual a intenção do autor em formular
uma distinção entre a lógica e as outras áreas do conhecimento?

2 Encontre no texto um trecho que explique como a lógica não pode


ser confundida com um processo psíquico e se posicione a favor
ou contra essa ideia.

50
Capítulo 1 A ABORDAGEM FILOSÓFICA NOS CAMPOS DA EPISTEMOLOGIA,
LÓGICA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA E MORAL

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru: EDIPRO, 2002.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Nova Cultural Ltda., 2000.

AQUINO, T. de. Suma Teológica. V. 1, parte I. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola,
2001.

ARENDT, H. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2007.

ARENDT, H. A Vida do Espírito. Trad. Antônio Abranches. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 2000.

BRITO, A. N. de. Nomes próprios: semântica e ontologia. 1. ed. Brasília: Editora


da UnB, 2003.

CRUZ, D. N. da. Ética das virtudes: uma alternativa para pensar o problema da
punição. In: Filosofia, ensino, diálogos e perspectivas de investigação. Rio
de Janeiro: Multifoco, 2018.

CHISHOLM, R. O problema do critério. In: Teoria do Conhecimento. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1966.

COPY, I. M. Premissas e Conclusões e Reconhecimento de argumentos. In:


Introdução à Lógica. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1981.

FREGE, G. O pensamento: uma investigação lógica. Investigações lógicas.


Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

FRY, K. A. Compreender Hannah Arendt. Petrópolis: Vozes, 2010.

HEIDEGGER, M. 1997a. A questão da técnica. Cadernos de Tradução, 2:40-93.

IMAGUIRE, G. O Platonismo de Russell na metafísica e na matemática.


Kriterion, Revista de Filosofia, 2005. http://www.scielo.br/pdf/kr/v46n111/
v46n111a02.pdf. Acesso em: 16/05/2019.

PLATÃO. Teeteto – Crátilo. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001.

51
Temas e teorias da Filosofia

PLATÃO. A República. 6. ed. São Paulo: Atena, 1956.

REALE, G.; ANTISSERI, D. História da filosofia. filosofia page antiga. V. 1, 3.


ed. São Paulo: Paulus, 2007.

KLIMOVSKY, G.; BOIDO, G., Las desventuras del conocimiento matemático.


Buenos Aires: AZ Editora, 2005.

VARGAS, M. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa - Omega, 1994.

52
C APÍTULO 2
O PROJETO FILOSÓFICO DA
MODERNIDADE

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo, você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender a teoria do conhecimento moderno pela crítica que os modernos


realizaram à antiga ciência.

� Distinguir o aspecto meramente observacional e especulativo da filosofia e do


método experimental defendido na nova ordem cientifica.

� Desenvolver uma reflexão sobre o período moderno e a contribuição da filosofia


na formação das bases científicas iniciadas com a descoberta do sujeito
racional.

� Perceber como o projeto racionalista foi expandido nas teorias iluministas e


positivistas, bem como criticado pelo marxismo.
Temas e teorias da Filosofia

54
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
O pensamento filosófico moderno tem seu desenvolvimento mais
característico no início do século XVI, influenciado por diversos acontecimentos
como o Renascimento, o enfraquecimento da unidade política, religiosa e
espiritual, a contestação das ideias, até então vigentes, como as contidas na Bíblia,
a descoberta do novo mundo, a perda de prestígio da Igreja, o fortalecimento da
Reforma. Nesse contexto, a ordem do mundo é abalada, tudo parece fora de
lugar, até mesmo a Antiga Ciência, baseada nos princípios aristotélicos, perde seu
vigor com as novas descobertas científicas que colocavam à prova experimental
as teorias de Aristóteles.

Com o desabamento do Mundo Antigo baseado na busca da verdade,


o ceticismo parecia ter razão. Quem garante que essa nova ciência que surge
desbancando a Antiga também não será contestada por outros equívocos?
Tal provocação levou René Descartes a buscar uma segurança para a ciência
nas regras do método, a partir daí podemos dizer que a modernidade ganha
(ao menos no sentido epistemológico) novos contornos por ser guiada pela
metodologia racional. Temos, então, o surgimento do racionalismo, ao propor a
origem do conhecimento no sujeito do conhecimento, ou seja, na razão, antes da
experiência.

Opostamente surge, também, a corrente Empirista, julgando que a gênese


do conhecimento é a experiência, a mente surge como uma folha em branco e
a vivência a preenche. Veremos alguns filósofos defensores dessas importantes
correntes. A superação da dicotomia entre racionalismo e empirismo será posta
por Immanuel Kant, no século XVIII, ao propor que o conhecimento só é possível
pela conjunção entre sensibilidade e entendimento. Entenderemos, ainda, como
Kant interpreta as ideias iluministas, como a saída do homem da sua menoridade
para a maioridade racional. Por fim, discutiremos o positivismo e a lei dos três
estágios do entendimento humano e embarcaremos na teoria marxista e sua
crítica ao idealismo no século XIX.

2 O DISCURSO DO MÉTODO
E O ARGUMENTO DO COGITO
CARTESIANO
A Era Moderna é o período histórico que começa no século XVI e vai até
o século XIX. Contudo, ela vai muito além de um período histórico. Em sua
formação, a modernidade pode ser denominada como um vasto conjunto de
55
Temas e teorias da Filosofia

acontecimentos sociais, históricos, políticos e econômicos de suma importância


para as mudanças ocorridas nos últimos quinhentos anos no Ocidente.
Entretanto, delimitar a modernidade em seus acontecimentos não é tarefa fácil;
há muita controvérsia em sua definição e sobre quando ela realmente começou.
Na filosofia, é comum situar o seu início em torno do século XVII com as ideias
de René Descartes e o advento da nova ciência que tem como base a razão, a
ordem e a medida. Michel Foucault (1984) afirma que o tempo moderno é uma
problematização da atualidade e caracteriza a filosofia como um discurso sobre a
modernidade.

A modernidade é caracterizada pela ideia de progresso, de valorização


do novo, do pensamento como critério de validade e certeza, e da oposição à
tradição, de valorização do indivíduo ou da subjetividade como lugar da certeza, da
verdade e origem dos valores, em oposição à tradição, isto é, ao saber adquirido,
às instituições, à autoridade externa (MARCONDES, 2004). Touraine (1994), por
sua vez, alerta sobre a grande dificuldade de definição da modernidade, porém
garante ser característica dela estar livre da antiga organização baseada no ser
divino e também livre para a busca do saber científico.

Sugerimos a leitura da obra Crítica da Modernidade, de Alain


Touraine.

FONTE: TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. 10. ed. Petrópolis:


Vozes, 2012.

Segundo os ideais da modernidade, a sociedade deve traçar seu destino livre


de referenciais absolutos, controladores do agir humano, a ciência toma um lugar
de destaque e as atividades religiosas são relegadas para a vida privada. Sabe-
se que na Idade Média tudo era determinado pelo divino, Deus é o centro da vida
social, política, cultural..., representado pelas autoridades eclesiásticas (padres,
bispos, papa) que interpretavam a vontade divina.

Assista ao filme O Nome da Rosa. Direção de Jean-Jacques


Annaud. Elenco: Sean Connery, Christian Slater, Elya Baskin,
Valentina Vargas, entre outros. Lançamento em 24 de setembro de
1986 (EUA).

56
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

Com a inauguração dos tempos modernos, o homem torna-se o centro,


sujeito, agente transformador, construtor do mundo, critério de certeza, em que
tudo se subordina à razão. A ideia de sujeito, de agente transformador, forjada
na modernidade, tem gênese em uma série de eventos ocorridos desde antes do
século XVI, no âmbito da economia, da política, da cultura e da religião. Assim,
podem-se citar, entre outros, as grandes navegações e a conquista do novo
mundo que dão uma nova cosmovisão ao homem europeu no contato com as
culturas ameríndias, bem como o Renascimento e a Reforma Protestante que
trouxeram mudanças cruciais no campo filosófico e que minaram as bases da
sociedade medieval. Marcado “por uma verdadeira paixão pelas descobertas”,
o movimento renascentista contribuirá na construção de uma nova sabedoria:
“eruditos redescobrem as antigas doutrinas filosóficas e científicas, forjadas pelos
gregos, e em nome das quais torna-se possível constituir uma sabedoria nova,
oposta às concepções que prevaleceram na Idade Média” (PESSANHA, 2004, p.
7).
O Renascimento traz em seu bojo a desestruturação em todas as áreas:
a unidade política, religiosa e espiritual é balançada. Todas as ideias, até
então vigentes, são contestadas: a autoridade da Bíblia é posta à prova pelas
descobertas científicas, o prestígio da Igreja e do Estado são abalados pela
Reforma e as guerras contínuas provocadas por fatores políticos ou religiosos. A
dúvida invade o homem ocidental que descobre novas ideias diferentes das que
eram aceitas sem refutação “e passa a saber que há outros povos bem diferentes
vivendo segundo padrões bem diferentes daqueles que lhe pareciam os únicos
legítimos” (PESSANHA, 2004, p. 7).

Com todos esses acontecimentos, a realidade parecia desordenada,


esfacelada e sem referência, era preciso encontrar um eixo ou método para
fundamentar o mundo. “É aqui que a razão entra como aquela que vai restituir a
unidade perdida, pois ela está para além das culturas e é universal” (CRUZ, 2011,
p. 35). “A razão é um elemento comum a todos os seres humanos e, por isso,
assume a condição de fundamento a partir do qual o mundo deve ser organizado”
(HANSEN, 1999, p. 37). O novo edifício do saber é reconstruído pela razão, como
destaca Cassirer:

A razão desliga o espírito de todos os fatos simples, de todos,


de todos os dados simples, de todas as crenças baseadas
no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; só
descansa depois que desmontou peça por peça [...] Mas,
após esse trabalho, impõe de novo uma tarefa construtiva [...];
deverá construir um novo edifício, uma verdadeira totalidade
(CASSIRER, 1992, p. 32-33).

Nem as instituições, nem a vontade divina garantem e definem o sentido do


agir do homem, mas o próprio sujeito é quem dá significado a sua existência.

57
Temas e teorias da Filosofia

O próprio indivíduo é responsável pelo progresso ou decadência da sua vida.


Outro fato foi o desenvolvimento do Movimento Iluminista, propagador do projeto
moderno, que devotou uma confiança cega e ilimitada na razão. A razão teria
chegado a tal estágio de desenvolvimento que ela seria capaz de dissipar as
trevas da ignorância que obscurecem o espírito humano (MONDIN, 1980).

Assista ao documentário A Revolução Francesa, The History


Channel®

Elenco: Edward Herrmann narrador; George Ivascu


Robespierre; Phillip Levine Marat; Rodica Lazar; Marie Antoinette;
Tomi Cristin Danton. Lançamento: 2005.

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=tHkcp0f2kwc>. Acesso


em: 27 set. 2019.

Para Touraine (1994), a distinção do iluminismo para a filosofia precedente


é a sua intenção de estender a todos os homens o que tinha sido propriedade
de apenas alguns, a saber, uma existência conduzida em conformidade à razão.
Uma autonomia que leva o indivíduo à busca do saber, assim incita Kant (1974),
em seu opúsculo sobre o esclarecimento, “Sapere Aude”, “pois é do exercício livre
e autônomo da razão que o ser humano alcançará o progresso, a tranquilidade e
o bem-estar” (CRUZ, 2011, p. 36). Como afirma Lyon (1998, p. 14), “[...] a ênfase
ao movimento progressivo da história foi facilmente combinada com a convicção
de que as coisas, de uma maneira geral, estavam melhorando, especialmente sob
o impacto do pensamento iluminista emergente”.

A modernidade alicerça o conhecimento em um paradigma natural, não


relacionado a crenças religiosas, o que vale é o que se pode mensurar “e o
indivíduo só está submetido às leis naturais” (TOURAINE, 1994, p. 20). Na ciência,
o pensamento deve ser absolutamente transparente e a todos deve refletir essa
transparência sendo organizada pela razão que, “nesse sentido, nada mais é do
que cálculo, isto é, adição e subtração [...]” (HOBBES, 2002. p. 39).

Podemos afirmar que a modernidade construiu um personagem


independente, livre das pressões tradicionais. Fazer a pergunta, o que é o sujeito
ou o que se entende por sujeito, deve levar o investigador a buscar respostas nas
duas “figuras da modernidade: a racionalização e a subjetivação” (TOURAINE,

58
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

1994, p. 218). Dessa maneira “o logos divino que atravessa a visão pré-moderna é
substituído pela impessoalidade da lei científica, mas também e simultaneamente
pelo eu do sujeito” (TOURAINE, 1994, p. 218).

Em 1611, o poeta inglês, John Donne, exprimiu sua preocupação e a


inquietude provocadas pelo desaparecimento da antiga ordem das coisas.

A nova filosofia põe tudo em dúvida, o elemento do fogo está


extinto, o sol está perdido, e também a terra, e nenhum espírito
humano tem com o que se orientar para a procura. E os homens
confessam livremente que este mundo está em ruínas, quando
entre os planetas e firmamento eles procuram tantos mundos
novos. Eles veem então que tudo está de novo pulverizado
em átomos, tudo está em pedaços, toda a coerência perdida
(DONNE, 1949, p. 202).

2.1 O RACIONALISMO E EMPIRISMO


E A TEORIA DO CONHECIMENTO
René Descartes (1596-1650), de certa forma, também estava angustiado
com o desaparecimento dessa antiga ordem e as novas ciências que estavam
surgindo, por isso ele traz uma nova ótica a partir de outra proposta científica e
filosófica: a ideia de sujeito. Nessa época de inovações e incertezas, Descartes
deu uma nova perspectiva no campo epistemológico. Abandonando uma visão
cosmológica do homem, centralizada na autoridade e na religião, ele propõe um
olhar centrado na certeza do conhecimento a partir do próprio indivíduo. Esse
fundamento antropológico deu origem ao chamado racionalismo.

A intenção era encontrar um método seguro e indubitável para as novas


ciências, “em uma época em que haviam afirmado e se desenvolviam com vigor
novas perspectivas científicas e novos horizontes filosóficos” (REALE; ANTISERI
2004, p. 287), Descartes desenvolve uma metodologia fundamentada no
conhecimento a partir de “[...] regras que se fundamentam na certeza adquirida de
que o ‘nosso eu’ ou a consciência de si como realidade presente se apresenta com
as características da clareza e da distinção” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 293).
Por isso, a respeito do método, Descartes afirmava: “Formei um método pelo
qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento,
e de elevá-lo pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu
espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar” (DESCARTES,
2004, p. 36).

Cruz (2011) destaca que esse método é pautado na chamada “Dúvida

59
Temas e teorias da Filosofia

Metódica”. Ele começa duvidando de tudo, a reviravolta causada pelo cogito (EU)
está na desconfiança dos sentidos que podem enganar. Duvidando até mesmo
de sua própria existência, Descartes conclui: “A noção que possuo do espírito
humano, enquanto é uma coisa pensante e não extensa, em comprimento,
largura e profundidade e que não participa de nada que faz parte do corpo, é
incomparavelmente mais clara do que a ideia de qualquer outra coisa corporal”
(DESCARTES, 2004, p. 291).

Ainda na análise de Cruz (2011), Descartes, desconfiando de todos os


sentidos e das opiniões que enganam o gênero humano e não garantem uma
certeza sobre as coisas existentes, encontra segurança no próprio indivíduo
que, com a capacidade de se autoconhecer, define-se claramente como um
ser pensante, traduzido nas clássicas palavras: “cogito ergo sum” (penso, logo
existo). Descartes parte do pressuposto de que o sujeito, antes de procurar
conhecer o objeto, precisa voltar-se para si mesmo e, a partir daí, o conhecimento
é comprovado. Esta consciência cartesiana restabelece o que a dúvida
metódica havia desconstruído, colocando a comprovação do conhecimento,
exclusivamente, no sujeito.

Através do cálculo matemático e de dispositivos puramente racionais,


Descartes afirma que, o que está imerso no seu “se duvido penso”, a convicção
de existir e esse existo do eu é dependente do pensamento, pois o pensamento
é o fundamento da consciência, assim, naturalmente há uma separação entre
a subjetividade e a objetividade. Esta objetividade, agora, é dominada pelo Eu,
ou seja, a substância pensante (res cogitans) mantendo o domínio sobre a res
extensa (matéria). A razão é o instrumento por excelência da conquista do sujeito
que, com o novo método garantirá a não desarticulação das novas formas do
saber.

As consequências dessa descoberta mostram como o pensamento


cartesiano desencantou o mundo, separando-o de Deus. A comunicação entre
eles agora é feita através do homem em uma nova reformulação de Protágoras:
“o homem é a medida de todas as coisas”. Cada coisa é posta em seu lugar:
Deus como criador; “o homem como criatura feita à imagem e semelhança de
Deus e cujo pensamento é a marca que o “Artesão Divino” deixou no seu trabalho
e a natureza agora “desencantada” servindo para a utilidade do sujeito” (CRUZ,
2011).

Com Descartes o sujeito, agora, “obedece a si mesmo e não a forças


exteriores” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 305). Centralidade da razão é definida
no “res cogitans”, no eu interior, em que deve haver uma perfeita harmonia entre a
realidade subjetiva e objetiva. Assim, o racionalismo cartesiano é considerado um
dos marcos da modernidade por colocar a ciência em novos trilhos com formação

60
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

do sujeito moderno, desde sua época até os dias atuais. Não há dúvidas que o
sujeito cartesiano e o avanço da razão fizeram uma rápida difusão do projeto
moderno, conduzindo o indivíduo em direção às grandes descobertas, a começar
por si mesmo de tal forma que, sabendo de suas capacidades racionais,
transforma-se em um ser da ação, confiante e determinado a mudar os antigos
paradigmas da sociedade (CRUZ, 2011).

No entanto, a euforia provocada pelo ideal moderno de racionalidade,


pautada na absolutização da razão como ferramenta de progresso, entrou em
crise e conduziu inúmeras ações que não estavam descritas nas páginas da
grande enciclopédia: confecção de bombas atômicas, massacres totalitários,
guerras mundiais, dentre outros atos destruidores. Eis que tudo isso levou o sujeito
a não mais confiar no projeto da razão como libertadora das mazelas humanas.
O indivíduo entra, em oposição a racionalização exagerada, no universo das
emoções. A promessa iluminista não conseguiu concretizar seus princípios.

A razão, com a promessa de uma vida de progresso, levando o sujeito a


se identificar e confiar plenamente na ciência, não conseguiu sua finalidade e a
história veio mostrar, principalmente no século XX, que o uso da razão lançou
o homem ao pior dos pesadelos. “A sociologia, por exemplo, que prometia
conseguir o equilíbrio nas relações sociais, presenciou contraditoriamente o caos
contemporâneo produzido pelo perverso e desumano uso da razão” (CHAUÍ,
2003, p. 60).

Habermas (1990), em o Discurso filosófico sobre a modernidade, critica


a concepção de razão fechada em si mesma baseada no conhecimento
centrado na relação sujeito objeto. Ele busca uma filosofia que seja pautada na
comunicabilidade dos sujeitos frente aos novos paradigmas da modernidade.
Essa razão moderna está centrada na sua autoafirmação e na autoafirmação
da subjetividade, justamente, nesse ponto, Habermas alerta sobre o perigo do
purismo da razão: “Só a razão reduzida à capacidade subjetiva de entendimento
e de atividade teleológica corresponde à imagem de uma razão exclusiva que,
quanto mais aspira triunfante às alturas, se desenraiza até finalmente cair, vítima
da força da sua oculta origem heterogênea” (HABERMAS, 1990. p. 284). Veremos
mais sobre a crise do pensamento filosófico moderno e alguns de seus críticos no
Capítulo 3.

Na história da filosofia, especialmente no início do século XVII, surgem,


no campo da epistemologia, duas correntes que buscavam discutir a origem
do conhecimento: O racionalismo (como vimos representado por Descartes) e
o empirismo (representado por Locke, Hume e outros). Indagações: Como o
ser humano conhece e faz o processamento dos conteúdos transformados em
ideias que lhes são passados? E como o homem pode conhecer o mundo e o

61
Temas e teorias da Filosofia

organizar em forma de ideias no seu intelecto? São questões instigadoras para o


aparecimento do racionalismo e do empirismo.

Vimos que, para o racionalismo, o sujeito a conhecer as coisas pela


razão, ou seja, ele chega à verdade pela razão e a própria razão é a origem
do conhecimento a ponto de ser o fundamento do método cartesiano. Ainda
podemos verificar que o racionalismo defende que o sujeito nasce com algumas
ideias, não vem ao mundo com a mente desprovida de ideias, daí ser uma das
características dessa corrente o inatismo. Já o empirismo sustenta que o sujeito,
para conhecer, não deve partir da razão para conhecer, mas da experiência. Sem
recorrer primeiramente à experiência, não pode haver conhecimento de nada.

Uma indagação nos inquieta: Não vimos no primeiro capítulo que os gregos
antigos como Platão, Sócrates e Aristóteles já não discutiam sobre o problema do
conhecimento? Sim, na Antiguidade, o conhecimento era pauta de discussões
e se identificava com a verdade, por isso o conhecer era o remédio para a
doença da ignorância. A diferença que podemos detectar entre os antigos gregos
e os modernos é a indicada por John Locke (1632-1704) em sua obra Ensaio
sobre o entendimento humano (Primeira publicação em 1690). Esses escritos
de Locke levaram-no a ser considerado o iniciador da teoria do conhecimento,
diferentemente dos gregos, ele inova ao propor uma análise de cada forma de
conhecimento que possuímos, detectando a origem e formação de nossas ideias,
o objetivo das teorias forjadas, a extensão do que conhecemos e também as
capacidades do sujeito cognoscente e sua relação com os objetos apresentados
à cognição. Eis o entusiasmo de Locke ao descobrir que o caminho correto é o de
examinar o intelecto humano:

Após termos por certo tempo nos confundido, sem nos


aproximarmos de nenhuma solução acerca das dúvidas que
nos tinham deixado perplexos, surgiu em meus pensamentos
que seguimos o caminho errado, e, antes de nós nos iniciarmos
em pesquisas desta natureza, seria necessário examinar
nossas próprias habilidades e averiguar quais objetos são e
quais não são adequados para serem tratados por nossos
entendimentos (LOCKE, 1979, p. 26).

A problemática epistemológica tornou-se central e examinar a capacidade


do homem de conhecer diferencia a investigação dos antigos gregos, que não
realizavam esse inquérito sobre o modo como conhecemos, pois o conhecimento
era identificado como verdade e, nesta, não há engano, erro ou equívocos.

Os gregos indagavam: como o erro é possível? Os modernos


perguntaram: como a verdade é possível? Para os gregos, a
verdade era aletheia, para os modernos, veritas. Em outras
palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar
como os relatos mentais - nossas ideias - correspondem ao

62
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar dessas


diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar
filosoficamente proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles,
qual seja, começar pelo exame das opiniões contrárias e
ilusórias para ultrapassá-las em direção à verdade (CHAUÍ,
2000, p. 144).

Claro que precisamos lembrar que os filósofos modernos, que antecederam,


de certa forma, o que viria a ser o exame da capacidade humana, foram Descartes
e o inglês Francis, porém quem formula uma teoria do conhecimento propriamente
dita é John Locke.

Bacon e Descartes procuraram examinar o que causava o erro, tendo como


base de investigação os preconceitos e o senso comum, ao elaborar sua teoria da
crítica dos ídolos (em grego eidolon significa imagem).

Para Bacon, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens formadoras de


opiniões e preconceitos engessados na sociedade, que ofuscam a verdade do
conhecimento. São elas:

• Ídolos da caverna: significam as opiniões formadoras de erros e defeitos


nos seres humanos. Brotam de nossos órgãos dos sentidos. O nosso
intelecto, segundo Bacon, pode corrigir mais facilmente esses ídolos.
• Ídolos do fórum: formados nos homens pela linguagem e das relações
com os outros. Não são fáceis de serem dirimidas, mas podem ser
vencidas pelo intelecto.
• Ídolos do teatro: formadas pelos poderes exercidos pelas autoridades
que levam as pessoas a organizarem suas opiniões pelas imposições
advindas de suas leis e decretos de maneira inquestionável. Somente
uma mudança social e política pode exterminar esse tipo de malefício.
• Ídolos da tribo: decorrente de nossa natureza, esses ídolos só serão
vencidos com uma reforma na própria natureza humana.

Bacon era otimista e acreditava que haveria um grande avanço técnico e


também mudanças sociais, políticas, filosóficas e científicas se ocorresse uma
grande reforma nos fundamentos do conhecimento, por isso ele inicia seus
escritos descrevendo os principais ídolos que levam o homem ao erro de se
afastar da verdade.

Destacamos aqui alguns filósofos que debateram o problema do


conhecimento na modernidade. Claro que existem muitos outros como Hume,
Berkeley, Spinoza e Pascal, por exemplo, afinal, a modernidade é celeiro de
teóricos dessas duas correntes, mas o que tivemos como finalidade aqui é
esclarecer como a problemática do conhecimento é central para o desenvolvimento

63
Temas e teorias da Filosofia

do racionalismo ao discutir que a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão


que opera por si mesma, independente da experiência sensível e controladora da
própria sensibilidade e também o empirismo ao enobrecer que a fonte de qualquer
conhecimento é a experiência sensível, origem das ideias da razão e controladora
do que a própria razão realiza.

Mesmo com essas divergências é possível identificar que as duas vertentes


procuram partir do entendimento humano como sendo o elemento da indagação
filosófica na modernidade.

1 O problema do conhecimento ganha novo status na modernidade


com John Locke, filósofo empirista, considerado o iniciador da
teoria do conhecimento. No Ensaio Acerca do Entendimento
Humano investigou a natureza, a origem e o alcance do
conhecimento humano. Com base no Capítulo 1 da obra de
Locke, construa uma reflexão com argumentos que fortalecem a
doutrina das ideias pelo empirismo em contraponto à doutrina das
ideias inatas de Platão e Descartes.

2 Pesquise e discuta as etapas do método de Descartes ressaltando


sua relevância para o desenvolvimento da ciência moderna.

3 O ILUMINISMO E A PROPOSTA
KANTIANA DA MAIORIDADE
RACIONAL
O filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), em um escrito publicado em
1784 intitulado O que é o Iluminismo? ou Aufklärung, na língua alemã, ressalva
que o iluminismo é a saída do homem do estado de menoridade que ele deve
imputar a si mesmo. Minoridade é a incapacidade de recorrer-se ao seu próprio
intelecto sem necessitar ser guiado por outro. Seguia o lema “Sapere Aude” como
impulso e convocatória aos homens para a busca do conhecimento livre de uma
imposição externa.

Lembrando que o Iluminismo é um movimento intelectual que surgiu nos


séculos XVII e XVIII e se desenvolveu na Inglaterra, França e Holanda e, de

64
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

certa forma, se expandiu por toda a Europa propondo uma nova interpretação
do saber, dos valores e das Instituições, manifestando pública e coletivamente a
mudança para uma nova ordem social, econômica e política, tendo como guias
a razão, condutora da liberdade humana. A ideia de modificação de tudo, até
mesmo no âmbito do sagrado, expressa bem essa nova forma de pensamento e
crítica aos tradicionais mecanismos de organização da sociedade. Os principais
representantes do Movimento Iluminista foram: Diderot, D’Lambert, Rousseau,
D’ Holbach, além de médicos, advogados, parlamentares e outros filósofos
conhecidos. A seguir, as características do Movimento Iluminista:

• Tem o posicionamento absolutamente contra todo tipo de


conservadorismo e tradicionalismo.
• A defesa da razão como única faculdade humana com a capacidade
de iluminar as trevas da Idade Média que ainda estavam presentes na
sociedade da época (século XVII).
• Crença de que a razão expurgaria toda a superstição e acabaria com
todo mal que a humanidade produz.
• Otimismo no progresso da humanidade.
• Defesa dos direitos naturais e inalienáveis dos homens: a vida, a
liberdade, a propriedade.
• Posicionamento antimetafísico.
• A experiência e a observação são as bases do conhecimento.
• Define a ciência como único caminho para o progresso da humanidade.

Outra característica do Iluminismo é a questão da defesa da autonomia do


homem, isto é, ele é senhor de sua vida. Podemos, aqui, voltar a Kant e perceber
nessa afirmação a proposta do “Aufklärung”, que segue com fidelidade os
propósitos e princípios do Iluminismo em sua forma mais pura.

A resposta de Kant à pergunta sobre o que é o Iluminismo parte sempre


da passagem do estado de menoridade para a maioridade. Para tal feito, é
necessário coragem para se servir do próprio entendimento. Maioridade pode
ser interpretada no sentido de autonomia. Aliás, na pergunta sobre o que é o
Iluminismo, temos implícitas em suas respostas tanto a autonomia (ser seu
próprio guia) como a heteronomia (dependência de outro e de uma coletividade).

Para Kant é um dever do homem a sua saída da menoridade, pois mesmo


que não se realize, necessariamente, é interesse da razão a realização. Daí ser
um dever de cada pessoa emancipar-se. Emancipação e esclarecimento passam
a ser sinônimos. Kant ainda verifica que alcançar a maioridade e emancipar-se
não é fácil, pois a humanidade, acostumada com a domesticação por meio de
seus tutores, tomam a cargo sua supervisão.

65
Temas e teorias da Filosofia

Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado


doméstico e preservado cuidadosamente estas tranquilas
criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho
para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-
lhes, em seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar
sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande,
pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de
algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar
tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer
outras tentativas no futuro (KANT, 2011, p. 64).

Lendo esse trecho do Kant, aparentemente ele está responsabilizando a


menoridade aos tutores, que impedem os indivíduos de alcançarem a maioridade
e fazerem uso do seu próprio entendimento, porém, é possível (mesmo com as
dificuldades de libertação tanto pela ação dos tutores quanto pela incapacidade
dos próprios homens) que haja um público que se esclareça a si mesmo,
tornando mais concreta essa possibilidade se tiverem a liberdade. Nesse estágio,
Kant (2011) afirma ser inevitável a propagação do espírito emancipatório, pois
encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até
entre os tutores estabelecidos da grande massa, que depois de terem sacudido
de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma
avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por
si mesmo.

Kant sintetiza que este esclarecimento, porém, nada mais se exige senão
LIBERDADE, e a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar
liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões.
Daí, Kant exclamar os limites da liberdade:

Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não


raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O
financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote
proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no
mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que
quiserdes, mas obedecei!) (KANT, 1985, p. 104).

“A autonomia demonstra que o homem tem a capacidade (Vermögen) de ser


dono de si, livre de toda dependência diferente da razão” (BRESOLIN, 2013, p.
169). Por isso, há uma identidade entre ser moral e ser autônomo, isso significa
que uma ação, para ser revestida de valor moral, deve estar vinculada à própria
razão. A validade de uma lei moral deve obedecer a esse princípio para ser
legítima. A heteronomia ocorre ao contrário, quando se caracteriza que “a vontade
não se dá a lei a si mesma, mas é sim um impulso estranho que dá a lei” (KANT,
1995, p. 90).

Kant explica que o valor da ação moral não se encontra no que deve ser

66
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

esperado dela, no seu efeito de retorno, não reside também em algum princípio
que necessite solicitar sua mobilidade para o efeito esperado. A validade da
ação moral está na forma como a máxima é apresentada, por exemplo, se houve
influência sentimental ou de terceiros, ela não será uma ação moralmente válida,
até porque, perde o caráter de universalidade. Temos que a ação deve estar
em concordância com a intenção do agente para ser validamente aceita. A razão
deve determinar a intenção do agir, com isso, recebe seu revestimento moral.
Se o ato realmente tem como característica esse formato, outros seres racionais
podem validar tal ação de forma igual.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant esclarece que a


ação deve ter como único guia a razão, portanto, o agir deve ser independente
da influência da vontade, por isso a autonomia da vontade é apresentada como
princípio supremo da moralidade. Dessa forma, as leis morais não podem ter como
fundamento a vontade. A possibilidade de uma ação ser moral é apresentada por
Kant pela concordância com o princípio da autonomia. E ao apresentar o princípio
da autonomia, Kant já nos remete ao conceito de heteronomia.

Em virtude desta consequência inevitável, porém, todo o


trabalho para encontrar um princípio supremo do dever era
irremediavelmente perdido; pois o que se obtinha não era
nunca o dever, mas sim a necessidade da ação partindo de
um determinado interesse, interesse esse que ora podia ser
próprio ora alheio. Mas então o imperativo tinha que resultar
sempre condicionado e não podia servir como mandamento
moral. Chamarei, pois, a este princípio, princípio da Autonomia
da vontade, por oposição a qualquer outro que por isso atribuo
à Heteronomia (KANT, 2007, p. 75).

A autonomia, opostamente à heteronomia, promove a liberdade; ser


autônomo significa ser livre. Ao falar em liberdade, Kant esclarece que há dois
tipos: a negativa e a positiva:

• Liberdade negativa: ocorre se a liberdade for definida pela independência


da vontade em relação à lei natural dos fenômenos (objetos) e ter
independência em relação aos conteúdos da lei moral. Nisso, temos o
sentido negativo ou excludente.
• Liberdade positiva: ocorre quando a liberdade está em condições de
determinar-se por si mesma, ou seja, de se autodeterminar. Temos,
então, o sentido positivo de liberdade, que Kant chama de autonomia.

Para Kant, todas as morais que têm como base os conteúdos comprometem
a autonomia da vontade, implicando em sua dependência, em relação às coisas
e, consequentemente, a lei da natureza e, por conseguinte, comportando a
heteronomia da vontade. Se observamos por essa ótica, anteriormente a Kant,

67
Temas e teorias da Filosofia

todas as teorias morais dos filósofos desenvolvidas e mensuradas revelam-se


heterônomas, ou seja, falazes.

[...] deve-se destacar que todo tipo de ética que se baseie


na busca da felicidade é heterônoma, porque introduz fins
materiais, com toda uma série de consequências negativas. A
busca da felicidade polui a pureza da intenção e da vontade,
posto que aponta para determinados fins (para aquilo que
se deve fazer e não para o como se deve fazê-lo) e assim a
condiciona (REALE; ANTISERI, 1990, p. 917).

Por isso a busca da felicidade impurifica a pureza da INTENÇÃO e da


VONTADE, dando lugar aos imperativos hipotéticos e não categóricos. Aqui, há
uma diferença da ética grega antiga que tinha como meta a eudemônica (busca
da felicidade). Com Kant, devemos agir pelo DEVER e, ao ser assim, temos a
dignidade de felicidade.

Antes de Kant, todas as éticas determinavam, primeiramente, o que é o


bem moral e o mal moral, para depois deduzir a lei moral. Na teoria kantiana
essa lógica é invertida: primeiro há a determinação da lei moral e, em seguida, o
conceito de bem e mal.

Estamos diante de um rigoroso formalismo e podemos nos perguntar como


Kant pensava em colocar em prática tal teoria, ou seja, como é possível passar
do imperativo categórico que apenas prescreve a forma para a concretude de
seus conteúdos?

Kant responde a isso recorrendo ao conceito de natureza, ou seja, pelo


entendimento do conjunto de leis que se concretizam de forma necessária,
sem nenhuma exceção. Pela elevação da máxima (subjetiva) para o nível de
universalização, temos condições de fazer o reconhecimento se ela é moral ou
não. Olhar as ações da ótica universal e ver se elas são moralmente boas ou não.

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a


capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é,
segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para
derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade
não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina
infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são
conhecidas como objetivamente necessárias, são também
subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade
de escolher só aquilo que a razão, independentemente da
inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer
dizer como bom (KANT, 2007, p. 47).

A teoria ética kantiana é, dessa forma, baseada na racionalidade humana


e rejeita as chamadas éticas heterônomas, cujo princípio moral é derivado de

68
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

uma fonte externa, por exemplo, o bem supremo ou Deus. Na Fundamentação


da Ética dos Costumes, Kant elabora e formula o imperativo categórico, ou uma
ética que tem como princípio básico o dever. Nas duas obras, Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788), a posição
de Kant é deontológica porque parte do dever, como fato da razão.

3.1 FUNDAMENTAÇÃO DA
METAFÍSICA DOS COSTUMES
Metafísica dos Costumes é o mesmo que Ética Metafísica ou Ética Filosófica,
doutrina do comportamento, dos costumes que tira a sua prescrição não da
autoridade, mas da razão. Estendendo a relação entre filosofia e metafisica
também à ética, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes pretende dar
uma fundamentação filosófica à ética.

Daí a necessidade de uma Crítica da Razão Prática antes de tratar da


construção do sistema da ética. O objetivo da Crítica da Razão Prática é fazer uma
crítica da Ética Filosófica (Razão Prática), entretanto, esta não vai criticar a razão
prática do mesmo modo que a Crítica da Razão Pura criticou a Razão Teórica.
Faz uma crítica da razão prática empiricamente condicionada, pretendendo dessa
forma determinar a vontade. Como vimos, Kant mostra que existe uma razão
pura prática que escapa aos condicionamentos externos, demonstrando que o
conceito de liberdade em âmbito prático supõe que só a razão pura pode ser
prática e não a razão limitada empiricamente. Assim, chegamos à lei moral como
imperativo categórico.

Demonstrado que a razão pura pode determinar sozinha a vontade, daqui


parte a análise dos diversos tipos de imperativos que constituem a tese central da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a parte da analítica da Crítica da
Razão Prática. Assim, podemos determinar os seguintes princípios práticos e sua
divisão:

Princípios práticos: proposições que contêm uma determinação universal


da vontade, sob as quais encontram-se numerosas regras práticas. Exemplo de
princípio prático: “Cuida de sua saúde”, porém, nesse princípio, encontramos
regras morais particulares como “faça esportes”, alimente-se adequadamente”.
Os princípios práticos se dividem em: máximas (subjetivas) que valem apenas
para os sujeitos que as propõem; e imperativos (objetivos), princípios práticos
válidos para todo ser racional.

69
Temas e teorias da Filosofia

As máximas se caracterizam por terem validade somente para os indivíduos


que os propõe, porém não são válidas para todos os homens, por isso são
subjetivas. Exemplo de máxima: “vinga-te de toda ofensa que receberes”. Os
imperativos, por sua vez, são princípios práticos objetivos, pois são válidos para
todos. São mandamentos ou “deveres”, normas que expressam a necessidade
objetiva da ação. Os Imperativos são divididos em:

• Imperativos hipotéticos (se... então): valem na condição de que se


queira o objetivo para o qual estão voltados.
• Imperativos categóricos (deves...): determinam a vontade,
categoricamente, sem nenhuma condição, não tendo em vista
nenhum efeito desejado. A essência do imperativo categórico consiste
precisamente em sua validade em virtude de sua forma de lei, ou
seja, por sua racionalidade. Por isso, a essência da moral em Kant é a
adequação da vontade à forma da lei. O princípio da moralidade não é o
conteúdo, mas a forma.

Kant ainda fala da diferença entre lei moral e lei jurídica. A jurídica ordena a
ação; a moral ordena o princípio da ação. A lei civil é um caso de lei heterônoma,
pois ela coage externamente o indivíduo, podendo cumpri-la por medo da punição.
Neste caso, o movente da lei civil é sensível.

3.1.1 Teste da generalidade: as fórmulas


do imperativo categórico
Não é feita sobre a necessidade de não se contradizer, mas para verificar se
a lei é ou não compatível com a moral. Estes imperativos constituem o teste da
generalização e, com isso, se elimina o juízo moral de todo subjetivismo.

• Aja de modo tal que a tua máxima se torne lei universal (essa é a única
fórmula que aparece na Crítica da Razão Pura).
• Aja prescindindo de tudo aquilo que é ligado ao próprio eu
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes).
• Aja respeitando em cada homem a sua humanidade como fim e não
como meio.

A presença da lei na consciência ou o fato da razão se manifestar no


imperativo que me ordena querer segundo a pura forma da lei, ordena-me
substancialmente à liberdade. Por isso não se trata de um juízo analítico, mas
sintético, a priori, pois me diz algo de novo. “Como é que é possível uma tal

70
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

proposição prática sintética a priori? E por que é que ela é necessária? – eis
um problema cuja solução não cabe já nos limites da Metafísica dos Costumes.
“(KANT, 2007, p. 91).

A existência da lei moral (dos imperativos categóricos) não tem necessidade


de ser justificada ou provada, ela se impõe à consciência como um fato da razão.
Do fato da razão se deduz a liberdade. A liberdade é a característica própria
daquela vontade que pode ser determinada pela pura forma da lei. A boa vontade,
por exemplo, deve ser aquela categoria como boa sem limitação, ou seja, a priori,
sem influências externas, por isso ela é formal, independentemente do conteúdo.
Além de ser formal, a boa vontade é racional. Ao investigar a boa vontade não
precisamos investigar as consequências de um comportamento de uma pessoa
dotada da boa vontade, não é necessário fazer uma avaliação empírica para saber
o que é uma boa vontade. Por isso Kant indaga onde é que reside a vontade:

Não pode residir em mais parte alguma senão no princípio da


vontade, abstraindo dos fins que possam ser realizados por
uma tal ação; pois que a vontade está colocada entre o seu
princípio a priori, que é formal, e o seu móbil a posteriori, que
é material, por assim dizer numa encruzilhada; e, uma vez que
ela tem de ser determinada por qualquer coisa, terá de ser
determinada pelo princípio formal do querer em geral quando a
ação seja praticada por dever, pois lhe foi tirado todo o princípio
material (KANT, 2007, p. 30).

Se não precisamos avaliar o conteúdo, nem fazer as avaliações empíricas da


boa vontade, isso significa que ela é válida por si mesmo, ou seja, é apriorística.
Nesse sentido, podemos inferir que a vontade para Kant é formal, racional e
apriorística. Reforçando, então, que a ação do sujeito e o seu pensamento devem
estar de acordo, isso significa que sua ação deve ter como partida uma motivação
interna do querer, autônoma, não um motivo externo, heterônoma.

Não basta que a ação seja realizada conforme o dever, para ser moral a
ação deve ser realizada por dever. A vontade deve ser determinada somente pela
lei, não por outros motivos externos ao dever, e o único sentimento admitido é o
do respeito à lei, enquanto suscitado pela própria razão.

Sobre os postulados da Razão Prática e o seu primado em relação à Razão


Pura, Kant formula os seguintes pontos:

• As ideias da Razão Pura (liberdade, alma, Deus) tomam-se postulados


da Razão Prática. Como a lei moral é um fato inegável, assim a realidade
desses postulados é inegável.
o Primeiro Postulado: a liberdade – é a condição do imperativo e
dele deriva. Kant recorre ao conceito de causalidade para explicar

71
Temas e teorias da Filosofia

o postulado da liberdade, pois a categoria de causa é pura e é em


si mesmo aplicável, tanto ao mundo numênico (de causa livre)
quanto ao mundo fenomênico (causa mecânica). E embora seja
teoricamente impossível a aplicação da “causalidade ao númeno, no
entanto, é possível sua aplicação à vontade pura no campo da moral
e, assim, é possível conceber a vontade pura como causa livre”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 387). Partindo dessa análise, o homem
pode ser visto como pertencente aos dois mundos. No fenomênico
ele se apresenta condicionado às leis da mecânica determinado por
essa causalidade, mas também ele descobre ser livre e inteligível
pela lei moral.
o Segundo Postulado: Deus – faz corresponder em outro mundo aquela
felicidade que compete ao mérito e que não se realiza neste mundo.
Para Kant, a busca da virtude nunca gera a felicidade, isso porque,
como já vimos, o que nos leva à moral é ter como fundamento o
eudaimonismo. Buscar a virtude não leva à felicidade, pelo menos
neste mundo fenomênico, governado por leis mecânica e não morais.
A busca da virtude torna o homem digno de felicidade. Para Kant, é
um absurdo ser digno de felicidade e não ser feliz, por isso de ele
formular o postulado de um mundo inteligível, de um Deus que possa
adequar a felicidade aos méritos e aos níveis da virtude. Isso significa
que a lei moral ordena o indivíduo ser virtuoso, tornando-o digno de
felicidade. Isso torna legítimo o postulado da existência de Deus e
que garante a correspondência em outro mundo da felicidade por
mérito. A ausência desse postulado levaria a uma absurda situação,
totalmente contrária à própria ideia de razão.
o Terceiro Postulado: a alma – Para Kant, a adequação da lei moral
com a vontade é a santidade. Como a santidade é uma exigência
categórica e ninguém neste mundo pode realizá-la de forma
concreta, ela só poderá ser encontrada em um progresso ao infinito.
Este é possível pressupondo uma existência e uma personalidade do
próprio ser racional que perdure ao infinito. Esse progresso, cada vez
mais, deve se aproximar daquela adequação completa. Porém, esse
progresso infinito só é possível pela existência de um ser racional
que perdure infinitamente. Segundo Kant, isso recebe o nome de
alma imortal.

72
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

Fundamentação da Metafísica dos Costumes


O imperativo categórico

Cada coisa da natureza opera segundo leis. Só um ente


racional tem a faculdade de agir segundo a representação de
leis, isto é, segundo princípios, ou uma vontade. Visto que para a
dedução de ações de leis requer-se razão, a vontade não é senão
uma razão prática. Se a razão determina inevitavelmente a vontade,
então as ações de um tal ente, conhecidas como objetivamente
necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a
vontade é uma faculdade de escolher somente aquilo que a razão,
independentemente das inclinações, conhece como praticamente
necessário, isto é, como bom. Mas se a razão não determina, por
si só, suficientemente a vontade, então esta está submetida ainda
a condições subjetivas (a certos incentivos), que nem sempre
concordam com as condições objetivas; em uma palavra, se a
vontade não é em si plenamente conforme a razão (como nos
homens é efetivamente o caso), então as ações que são conhecidas
objetivamente como necessárias são subjetivamente contingentes,
e a determinação de uma tal vontade conforme as leis objetivas é
necessitação [Nótigung], isto é, a relação de leis objetivas com uma
vontade não totalmente boa é representada como a determinação da
vontade de um ente racional em verdade mediante fundamentos da
razão, os quais, porém, em decorrência da natureza dessa vontade,
não são necessariamente seguidos por ela.

A representação de um princípio objetivo, na medida em que é


obrigatória para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão),
e a fórmula do mandamento chama-se imperativo.

Todos os imperativos são expressos por um dever-ser e


mostram através dele a relação de uma lei objetiva da razão com
uma vontade que, de acordo com sua constituição subjetiva, não
é necessariamente determinada por ela (uma necessitação).
Eles dizem que seria bom fazer ou deixar de fazer alguma coisa,
entretanto o dizem a uma vontade que nem sempre faz algo pelo fato
de ser-lhe representado que seja bom fazê-lo. Praticamente bom,
porém, é algo que determina a vontade mediante as representações
da razão, por conseguinte, não a partir de causas subjetivas, mas

73
Temas e teorias da Filosofia

objetivamente, isto é, a partir de fundamentos que são válidos para


todo ente racional enquanto tal. Ele distingue-se do agradável como
algo que tem influência sobre a vontade só por meio da sensação
a partir de simples causas subjetivas, que só valem para este ou
aquele, e não como princípio da razão que vale para qualquer um.

Logo, uma vontade perfeitamente boa estaria do mesmo modo


submetida a leis objetivas (do bem), mas nem por isso poderia ser
representada como obrigada a ações conformes as leis, porque ela,
por si mesma, de acordo com sua constituição subjetiva, somente
pode ser determinada pela representação do bem. Por isso, para a
vontade divina, em geral, para uma vontade santa, não vale nenhum
imperativo; o dever-ser encontra-se, aqui, no lugar errado, porque
o querer por si mesmo concorda com a lei. Por isso, imperativos
são somente fórmulas para expressar a relação de leis objetivas do
querer, em geral, com a imperfeição subjetiva da vontade deste ou
daquele ente, isto é, da vontade humana.

Ora, todos os imperativos ordenam ou de modo hipotético


ou categórico. Os hipotéticos representam a necessidade
prática de conseguir uma ação possível como meio para algo
diverso que se quer (ou que, enfim, possivelmente se queira). O
imperativo categórico seria aquele que representa uma ação como
objetivamente necessária por si mesma, sem relação com um outro
fim.

A dependência da faculdade de apetição de sensações chama-


se inclinação e, esta, portanto, prova sempre uma carência; mas a
dependência de uma vontade – contingentemente determinável – de
princípios da razão chama-se interesse. Portanto, este só se encontra
em uma vontade dependente, que não é sempre por si conforme a
razão; na vontade divina não se pode conceber nenhum interesse,
mas a vontade humana pode, por sua vez, tomar interesse por algo,
sem agir por interesse, em virtude disso. O primeiro caso significa o
interesse prático na ação, o segundo, o interesse patológico no objeto
da ação. O primeiro, mostra somente uma dependência da vontade
de princípios da razão em si mesma, o segundo, a dependência de
princípios da vontade em vista da inclinação, já que a razão fornece
apenas a regra prática de como remediar a carência da inclinação.
No primeiro caso interessa-me a ação, no segundo, o objeto da ação
(na medida em que me é agradável). Vimos, na primeira seção, que
em uma ação por dever não se tem que prestar atenção no objeto,
mas na própria ação e em seu princípio na razão (na lei).

74
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

Visto que toda lei prática representa uma ação possível como
boa, e por isso como necessária para um sujeito determinável,
praticamente pela razão, todos os imperativos são fórmulas da
determinação da ação, que é necessária segundo o princípio de uma
vontade de algum modo boa. Ora, se a ação for boa, meramente,
como meio para alguma outra coisa, então o imperativo é hipotético;
se for representada como em si, boa, por conseguinte, como
necessária em uma vontade em si conforme à razão, como princípio
da vontade, então ele é categórico.

Logo, o imperativo diz que ação possível através de mim seria


boa, e representa a regra prática em relação a uma vontade que não
executa imediatamente uma ação por ela ser boa, em parte porque o
sujeito nem sempre sabe que ela é boa, em parte porque, ainda que
o soubesse, as máximas do sujeito poderiam contudo opor-se aos
princípios objetivos de uma razão prática.

Portanto, o imperativo hipotético diz somente que a ação é


boa para algum objetivo qualquer, possível ou efetivo. No primeiro
caso, ele é um princípio problematicamente prático; no segundo,
um princípio assertoricamente prático. O imperativo categórico, que
declara a ação por si como objetivamente necessária, sem relação
com qualquer objetivo, isto é, também sem qualquer outro fim, vale
como princípio apoditicamente prático.

Pode-se conceber o que somente é possível mediante forças


de qualquer ente racional como um objetivo possível também para
qualquer vontade e, por isso, os princípios da ação, na medida
em que for representada como necessária para atingir um objetivo
qualquer possível por esse meio, são de fato em número infinito.
Todas as ciências têm alguma parte prática qualquer que consiste
em problemas [que supõem] que um fim qualquer seja possível a
nós, e de imperativos de como ele possa ser alcançado. Por isso,
estes podem ser chamados, em geral, de imperativos da habilidade.
O problema, aqui, não é, de modo algum, se o fim é racional e
bom, mas somente o que se tem de fazer para alcançá-lo. As
prescrições para o médico curar radicalmente uma pessoa e para um
envenenador seguramente matá-la, são de mesmo valor, na medida
em que cada uma serve para alcançar perfeitamente o seu objetivo.
Pelo fato de que na infância não se sabe com que fins precisaríamos
deparar-nos na vida, os pais procuram deixar seus filhos aprender
uma variedade de coisas e zelam pela habilidade no uso dos meios

75
Temas e teorias da Filosofia

para toda sorte de fins arbitrários, para nenhum dos quais podem
determinar se ele, por acaso, pode, efetivamente, tornar-se no futuro
um objetivo de seu educando, cujo respeito é, entretanto, possível
que ele algum dia viesse a tê-los, e esta preocupação é tão grande
que os pais habitualmente se descuidam de formar e corrigir o seu
juízo sobre o valor das coisas que eles, porventura, quisessem tomar
por fins.

Existe, todavia, um fim que se pode pressupor como efetivo em


todos os entes racionais (desde que os imperativos se adaptem a
eles, a saber, enquanto entes - dependentes) e, portanto, um objetivo
que eles não apenas por acaso possam ter, mas acerca do qual
se pode pressupor com certeza que todos o têm com base, numa
necessidade natural, e este é o objetivo da felicidade. O imperativo
hipotético, que representa a necessidade prática da ação como meio
para a promoção da felicidade, é assertórico. Não se pode apresentá-
lo simplesmente como necessário para um objetivo incerto,
meramente possível, mas para um objetivo que se pode pressupor
com certeza e a priori em todo homem, porque ele pertence a sua
essência. Ora, pode-se chamar a habilidade, na escolha dos meios
para o seu máximo bem-estar próprio, de prudência”, no sentido mais
estrito. Portanto, o imperativo que se refere à escolha dos meios
para a felicidade própria, isto é, o preceito da prudência, é sempre
hipotético: a ação não é ordenada absolutamente, mas apenas como
meio para um outro objetivo.

Finalmente há um imperativo que, sem pôr no fundamento como


condição qualquer outro objetivo a ser alcançado mediante uma
certa conduta, ordena imediatamente essa conduta. Este imperativo
é categórico. Ele não diz respeito à matéria da ação e ao que deve
seguir-se dela, mas à forma e ao princípio do qual ela mesma
decorre, e o essencialmente bom da ação consiste na disposição
[Gesinnung], seja qual for o seu resultado. Este imperativo pode
chamar-se de imperativo da moralidade [...].

O imperativo categórico é, pois, um só e, em verdade, age


somente de acordo com aquela máxima, pela qual possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne uma lei universal.

Ora, se desse imperativo único podem deduzir-se, como a partir


de seu princípio, todos os imperativos do dever, então, ainda que
deixemos em suspenso se aquilo que chamamos de dever não é, de
modo geral, um conceito vazio, pelo menos poderemos indicar o que

76
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

pensarmos com ele e o que esse conceito quer expressar.

Visto que a universalidade da lei, segundo a qual os efeitos


ocorrem, constitui aquilo que propriamente se chama de natureza no
sentido mais universal (segundo a forma), isto é, a existência das
coisas na medida em que é determinada segundo leis universais,
assim, o imperativo universal do dever, poderia também ser do
seguinte teor: age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se
mediante tua vontade a lei universal da natureza.

FONTE: KANT, I. Fundamentação da metafísica dos


costumes. Lisboa: Edições 70, 1995.

1 Relate qual o sentido da Fundamentação da Metafísica dos


Costumes em Kant.

2 Sobre os imperativos categórico e o hipotético, qual a diferença


básica?

3 Faça uma análise da importância do imperativo: “Age como se a


máxima de tua ação devesse tornar-se, mediante tua vontade, a
lei universal da natureza”.

4 Os postulados kantianos são fundamentais para garantir a


moralidade segundo Kant. Comente cada postulado e argumente
a ligação que cada um mantém com a boa ação.

4 O POSITIVISMO E A LEI DOS TRÊS


ESTÁGIOS DO ENTENDIMENTO
HUMANO
Fundador do positivismo francês, Augusto Comte (1798-1857), de
naturalidade francesa, nascido em Montpelier, desenvolve a lei segundo a qual a

77
Temas e teorias da Filosofia

humanidade passa por três estágios de desenvolvimento. Por isso, em seu Curso
de Filosofia Positivista (1830-1842), Comte relata que descobre uma grande lei,
que cada ramo do conhecimento humano passa de forma necessária por três
estágios distintos:

a) o teológico;
b) o metafisico;
c) o positivo.

Segundo Comte, no primeiro estágio temos uma base necessária para que
a inteligência humana inicie sua trajetória; no segundo, temos apenas como
característica sua transição; e o terceiro, é definitivo, é o estado fixo. Podemos
dizer, então, que no estágio teológico temos a infância, no metafísico a juventude
e o positivo a maturidade humana.

No Curso de Filosofia Positiva (1830-1848), ressalta-se que no estágio


teológico os fenômenos são fundamentados no sobrenatural, já no estágio
metafísico são vistos sob a perspectiva e em função de essências, ou seja, ideias,
forças abstratas. Somente no estágio positivo o homem não mais volta-se a
fundamentos absolutos e para fundamentar o conhecimento no raciocínio e na
observação.

Sendo superior, o estágio positivo deixa claro que já não é mais necessário
empregar métodos metafísicos, pois a filosofia positiva deve conduzir a sociedade
ao rigor da pesquisa científica, pois ela é capaz de finalizar o estado de crise
e a profunda desorganização das civilizações. Sem o conhecimento dos fatos
políticos não há resolução de crises sociais, por isso Comte empenha-se no
desenvolvimento da física social ou da sociologia científica.

A pesquisa das leis é o que gera conhecimento científico e nos auxilia a


prever os fenômenos para o benefício da humanidade. A fórmula dele é: ciência,
logo previsão; previsão, logo ação.

Considerado um dos criadores da sociologia, Comte procura fazer a


conciliação de elementos da proposta política de reforma social aos da política
tradicional, por isso um dos lemas de sua corrente liberal tem como base a ordem
e o progresso da humanidade, que só alcançaria tal nível pela ciência, como a
necessidade de progresso. Por isso o famoso lema do positivismo comtiano, "o
amor pela ordem e Progresso”, daí a influência do positivismo, até mesmo no
Brasil, que carrega em sua bandeira a inscrição “Ordem e Progresso”.

78
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

A lei dos três estágios

Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência


humana em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro
voo mais simples até nossos dias, creio ter descoberto uma grande
lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e
que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base
de provas racionais fornecidas (p. 3) pelo conhecimento de nossa
organização, quer na base de verificações históricas resultantes dum
exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de
nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos,
passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado
teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico
ou positivo. Em outros termos, o espírito humano, por sua natureza,
emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações,
três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente
e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em
seguida, o método metafísico, finalmente, o método positivo. Daí
três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre
o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira
é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira,
seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a
servir de transição. No estado teológico, o espírito humano, dirigindo
essencialmente suas investigações para a natureza íntima dos
seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam,
numa palavra, para os conhecimentos absolutos, apresenta os
fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes
sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária
explica todas as anomalias aparentes do universo. No estado
metafísico, que no fundo nada mais é do que simples modificação
geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por
forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas)
inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes
de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados,
cuja explicação consiste, então, em determinar para cada um uma
entidade correspondente. Enfim, no estado positivo, o espírito
humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas,
renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer
as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente
em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da

79
Temas e teorias da Filosofia

observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis


de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então
a seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação
estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos
gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a
diminuir.

FONTE: COMTE, A. Seleção de textos de José Arthur


Giannotti. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

1 Comente a lei dos três estágios do desenvolvimento humano


apontada por Comte.

2 Como você interpreta o lema “o amor pela ordem e progresso” na


teoria positivista de Comte?

3 Como a pesquisa das leis auxilia e prevê os fenômenos para o


benefício do homem?

5 A TEORIA MARXISTA E SUA


CRÍTICA AO IDEALISMO
O desenvolvimento da teoria de Karl Marx recebe grande influência da
filosofia de Hegel, tanto que sua teoria se enquadra na chamada esquerda
hegeliana, uma vez que suas análises são de críticas contrárias ao idealismo
proposto nos textos hegelianos.

Marx reconhece a grandeza e profundidade do pensamento de Hegel, mas,


já num dos seus primeiros textos denominado de Crítica da filosofia do direito de
Hegel publicado em 1844), aparece nítido seu afastamento da teoria hegeliana ao
fazer uma crítica sobre a filosofia do direito de Hegel, que afirmava que a situação
histórico-política poderia ser explicada pelas instituições políticas e jurídicas, e
o Estado, em suas diversas manifestações, pode ser explicado por si mesmo

80
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

em relação ao desenvolvimento do chamado espírito humano. Para Marx, a


explicação não pode ter como base essa vertente, mas o resultado das condições
materiais e econômicas da vida é que leva ao status em que a sociedade se
apresenta em relação às posturas políticas, jurídicas e estatais.

Marx afirma que a filosofia de Hegel é ideologia, pois interpreta o mundo de


cabeça para baixo. Hegel faz a transformação de fatos históricos em verdades
filosóficas. Há nessa forma de pensar que a ordem existente é legitimada pelas
puras necessidades racionais. Os efeitos identificados por Marx, nessa teoria, é
o de subordinação da sociedade civil ao Estado e “a de inverter o sujeito e o
predicado: os indivíduos humanos, isto é, os sujeitos reais, tornam-se, em Hegel,
predicados da substância mística universal” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 173).
Marx (2008) mostra que assim como não é a religião que cria o homem, mas
o homem que cria a religião, do mesmo modo não é a Constituição que cria o
povo, mas o povo que cria a Constituição. Por isso ele afirma que Hegel acredita
estar descrevendo a essência do Estado, mas na verdade ele está descrevendo e
também legitimando o Estado.

Enquanto a direita hegeliana procurava justificar o cristianismo e o Estado


existente, a esquerda, sempre em nome da dialética hegeliana, transformava
o idealismo em materialismo, fazendo da religião cristã fato antropológico,
combatendo, dessa forma, a política com fundamentos democráticos mais
radicais.

Marx continuará suas críticas em A sagrada família e, posteriormente, com A


ideologia alemã amplia a discussão a Stirner e Feuerbach.

O que era defendido pela esquerda hegeliana é a convicção de que as


cadeias humanas verdadeiras estão inseridas nas ideias. É preciso haver uma
modificação no modo de pensar, ou seja, mudar a consciência, pois mesmo que
os jovens hegelianos tenham frases de efeito muito profundas, eles propagam um
conservadorismo extremo. Há um combate, então, contra frases e não contra um
mundo real, daí a percepção de um mundo de cabeça para baixo e, portanto, uma
realidade baseada em um pensamento ideológico. Por isso, Marx interpreta que
os jovens hegelianos não tinham nada de radical. Para acontecer uma verdadeira
radicalização é necessário libertar o homem, como ato histórico e não ideal; a
concretização deve acontecer por condições históricas pela agricultura, pelo
comércio e pelo estado da indústria. Os hegelianos tradicionalmente mantêm a
separação da teoria e da prática, Marx fará, então, a união delas.

Marx recorre aos economistas clássicos, como Smith, Ricardo, Pecqueur


e Say, de certa forma, continua as obras desses teóricos, desenvolvendo com
bases rigorosamente científicas a teoria sobre a derivação de valor do trabalho.

81
Temas e teorias da Filosofia

Segundo Marx, o valor das mercadorias é determinado pelo quanto de trabalho


é necessário para a produção. Antes havia a interpretação burguesa da relação
entre objetos, ou seja, troca de mercadorias, Marx interpreta e evidencia relações
entre os homens.

Dessa forma, podemos entender que a economia política enxergava nas leis
um fato de eternidade delas, isso significa que as leis eram tidas como imutáveis
da natureza. Há nesse pensamento uma absolutização ou transformação
de um fato em lei eterna e, portanto, ideologia. Os estudos dos economistas
clássicos levam à conclusão de que quanto maior o aumento da produção, mais
empobrecimento o operário sofre.

A economia política não explica por que as coisas são do jeito que são,
apenas explica que são assim, não há uma proposta questionadora, não mostra
como essas leis derivam da essência da propriedade privada, apenas expressa o
processo que acontece na realidade por fórmulas gerais, abstratas que recebem
validade e força de leis.

Ao tentar mostrar que a propriedade privada é fato e não lei, Marx,


contrariamente a essa estrutura forjada, explica que o capital é a propriedade
privada dos produtos do trabalho alheio. A propriedade privada não é de
forma absoluta, mas é o produto que resultou consequentemente do trabalho
expropriado.

Sendo fato, a propriedade privada deriva da alienação do trabalho. Marx faz


uma analogia ao que acontece na religião, em que o homem quanto mais coloca
em Deus, menos conserva em si mesmo, o operário, de forma semelhante, coloca
sua vida no objeto. A vida deixa de ser dele, pertencendo ao objeto. O objeto ou
produto, por sua vez, tem existência fora do homem e independente e estranho a
ele.

Marx e Engels, no manifesto comunista, reverenciam muito Babeuf, Saint-


Simon, Fourier e Owen, expoentes dos tipos de socialismo da época, por
detectarem o antagonismo das lutas de classes e ao mesmo tempo fornecem um
bom conteúdo para a ideia de revolução operária. O problema que Marx e Engels
perceberam nesses teóricos foi a falta de uma visão sobre a atividade histórica
autônoma do proletariado. Há uma identificação da exploração do proletariado
pelo capitalismo, mas não aponta rotas de fuga para tal. Acabam por se identificar,
por isso, com um conservadorismo, Marx e Engels propõem um outro socialismo
científico, capaz de dar uma solução aos males identificados.

82
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

5.1 A CRÍTICA A RELIGIÃO


Marx está de acordo com Feuerbach quanto à teoria de que a religião seja
antropologia, porém ele não resolveu o problema. Para Marx, o problema está em
entender por que o homem cria a religião. Segundo ele, o homem se aliena ao
criar um Deus imaginário e se autoprojetar Nele. Isso ocorre quando, na sociedade
de classes, é impedido o desenvolvimento da realização da humanidade. Para
superar essa alienação é necessário mudar as condições de vida que a nutre, não
basta apenas denunciar. O Estado e a sociedade que produzem a religião, que
para Marx é consciência invertida do mundo, pois a religião é a teoria invertida
deste mundo.

A religião é o ópio do povo, mas Marx não a ironiza, por perceber que ela
não é invenção de padres enganadores, ela é, antes de tudo, uma invenção de
uma sociedade sofrida, oprimida, que busca consolo em um mundo fantasioso.
Para eliminar essas fantasias é preciso acabar com as situações que a criaram.
Por isso, nas Teses sobre Feuerbach, Marx ressalta que “[...] os filósofos apenas
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-
lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 538).

A primeira tarefa filosófica é a de desmascarar a alienação religiosa, isso


pode ser pela demonstração de que suas formas não são sagradas. Temos, em
Marx, uma mudança em referência a Feuerbach: o que era antes uma crítica do
céu, passa a ser uma crítica à terra. Ao invés de uma crítica à teologia temos uma
crítica à política.

5.2 O TRABALHO E A ALIENAÇÃO


Os homens postos agora no plano da terra, percebemos que eles estão
alienados, pois perdem seu valor de seres humanos pela alienação do seu
trabalho. Os homens perdem o valor de homens em si e são rebaixados a
mercadorias. Opostamente, a sociedade de operários julga as pessoas pelas
funções que exercem no processo do trabalho.

As análises de Marx levam a enxergar que o homem, no estado de


alienação, não é autônomo nem está em condições de se realizar transformando
e humanizando a natureza, impulsionando os projetos e planos do próprio
homem. Encontramos na obra A Ideologia Alemã, que essa atividade (o trabalho),
verdadeiramente humana, é também produção da história:

O primeiro pressuposto de toda a história humana é,

83
Temas e teorias da Filosofia

naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos [...].


Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência,
pela religião, pelo que se queira. Eles mesmos começam a se
distinguir dos animais tão logo começam a produzir os seus
meios de vida, um passo condicionado pela sua organização
corporal. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, a sua vida material. O modo pelo
qual os homens produzem os seus meios de vida depende,
inicialmente, da constituição mesma dos meios de vida
encontrados aí e a ser produzidos. Este modo da produção
não deve ser considerado só segundo o aspecto de ser a
reprodução da existência física dos indivíduos. Ele já é uma
maneira determinada de atividade desses indivíduos, uma
maneira determinada de manifestar em sua vida, um modo de
vida determinado. Os indivíduos são assim como manifestam
a sua vida. O que eles são, coincide, portanto, com a sua
produção, tanto com o que produzem quanto também como
produzem. Portanto, o que os indivíduos são, depende das
condições materiais da sua produção (MARX; ENGELS, 2008,
p. 11).

Também nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx reafirma:

Claro que o animal também produz. Constrói um ninho,


moradas para si, tal como a abelha, castor, formiga etc. Só que
produz apenas o de que precisa imediatamente para si ou seu
filhote; produz unilateralmente, ao passo que o homem produz
universalmente; produz apenas sob o domínio da necessidade
física imediata, ao passo que o homem produz mesmo livre
da necessidade física imediata e só produz verdadeiramente
sendo livre da mesma; só produz a si mesmo, ao passo que
o homem reproduz a natureza inteira; o seu produto pertence
imediatamente ao seu corpo físico, ao passo que o homem se
defronta livre com o seu produto. [...] Por ela [a produção do
homem] a natureza aparece como a sua obra e a sua realidade
efetiva. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida
genérica do homem: ao se duplicar não só intelectualmente tal
como na consciência, mas operativa, efetivamente e, portanto,
ao se intuir a si mesmo num mundo criado por ele (MARX,
1983, p. 156-157).

Nestes escritos, Marx quer demonstrar que é possível que o homem viva ou
pode fazer-se humanamente, ou seja, humanizar a natureza juntamente a outros
homens, segundo suas necessidade e ideias. Nesse sentido, o trabalho social
é antropógeno, distinguindo os homens dos outros animais. Marx detecta pela
ótica histórica que o homem trabalha pela sua subsistência. A divisão do trabalho
acaba por mutilar a criatividade humana e “ao operário aliena-se a matéria-
prima; alienam-se os seus instrumentos de trabalho; o produto do trabalho
lhe é arrancado” (REALE; ANTISSERI, 2005, p. 176). Com isso, o operário é
mercadoria nas mãos do Capital, daí o significado da alienação do trabalho que
para Marx brotam também outras formas de alienação, por exemplo, Estado pela

84
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

política e a religião.

Marx considera que para o homem se libertar dessa sujeição é necessária


uma luta de classes com intuito de eliminar o trabalho alienado e a propriedade
privada. A alienação do trabalho consiste no dado de que o trabalho é externo ao
operário no sentido de não ser parte dele, por isso o homem não se afirma em
seu trabalho, ele o nega, é insatisfeito, infeliz, seu corpo é exposto e definhado
no processo, além de não desenvolver livremente uma energia física e espiritual.
O homem só poderá sentir-se senhor de si fora do trabalho, pois, pelo contrário,
ele sente-se fora de si. Isso evidencia que o trabalho é caracterizado como
forçado, não constituindo uma necessidade satisfeita, mas apenas um meio para
a satisfação de necessidades alheias.

Além de perceber que a alienação do operário significa que o seu trabalho


se torna objeto, ou seja, que existe exteriormente, Marx também descobre que
ele é independente e estranho a ele, significando que o trabalho tem um poder
em si mesmo, ou seja, a vida dada ao objeto mostra-se contrária e estranha ao
próprio ser humano. O operário alienado no seu objeto mostra que quanto mais
há produção do operário, menos ele tem para consumir, e quanto maior valor
produz, menor dignidade e valor obtém.

5.3 MATERIALISMO HISTÓRICO


Após a teoria da alienação temos a teoria do materialismo histórico. Segundo
Marx, materialismo histórico tem como característica quando a consciência não
determina o ser dos homens, mas é o ser social que determina a consciência. É
a teoria que afirma ser a estrutura econômica que determina a superestrutura das
ideias, por isso a verdadeira história é a dos indivíduos concretos, da sua ação
e transformação da natureza e das condições materiais. Aquilo que os homens
são depende dos modos de produção, de suas condições materiais, por isso a
essência do homem está em sua atividade produtiva. Tal é a análise de Marx:

• Primeiramente, apresenta que a história do homem deve levar em


consideração a criação dos meios apropriados para satisfação das
necessidades vitais.
• A satisfação da necessidade básica gera várias outras, aumentando as
necessidades, a família não é mais suficiente.
• A família não bastando mais com o aumento das necessidades, tem-se a
criação de outras relações sociais.
• Com o aumento de outras relações sociais tem-se o aumento da
produtividade por causa do aumento populacional.

85
Temas e teorias da Filosofia

• Com o aumento da população, cria-se a divisão do trabalho.


• A divisão do trabalho manual e intelectual faz surgir a ilusão de que há
uma separação entre consciência ou espírito e matéria e história.
• Essa separação faz gerar uma classe que vive do trabalho alheio.

A consciência e as ideias derivam da estrutura econômica e histórica.


Qualquer forma ideológica, seja ela moral, religiosa, metafísica não têm
autonomia e até mesmo não têm história, pois ao mudar a base econômica elas
mudam também. Por isso as ideias dominantes de uma época são sempre as
ideias de uma classe dominante, como afirmam Marx e Engels. Essas ideias são
tidas como ideologia, sua ótica histórica está de cabeça para baixo e se justifica
pela moral, as leis, a filosofia e a ordem social.

O materialismo de Marx, além de histórico é dialético e tem influência da


filosofia hegeliana. É característica da dialética hegeliana a apresentação das
oposições das determinações, isso chamou a atenção de Marx, mas ele inverte sua
lógica, pois considera que é preciso inverter sua teoria que se encontra de cabeça
para baixo. Isso significa que para Marx não são as ideias, a superestrutura, que
determinam os modos de produção, mas os modos de produção, a estrutura
econômica é que determinada o modo de pensar, as ideias, a superestrutura.
Desse modo, a dialética hegeliana é colocada de pé, transportada das ideias
para a história, do pensamento para os fatos. Cada momento histórico gera
contradições internas, estas são o elemento do desenvolvimento. A dialética,
portanto, é o fundamento para as mudanças na realidade histórica, como uma
lei que, inevitavelmente, fará a passagem de uma sociedade capitalista para a
comunista, mascando o fim da alienação e exploração humana.

5.4 AS LUTAS DE CLASSE


No manifesto comunista (1848), escrevem Marx e Engels:

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo,


membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores
e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e
envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta,
que terminou sempre com a transformação revolucionária da
sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em
conflito (MARX; ENGELS, 2008, p. 8).

Daí afirmarem Marx e Engels que toda história de qualquer sociedade


existente até o momento é a história da luta de classes, que de um lado há o
opressor e do outro o oprimido. Por exemplo, surgem na era moderna duas
classes: burguesia e proletariado.

86
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

Engels explica em versão inglesa do manifesto (1988) que a burguesia é


entendida como a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de
produção e empregadores dos assalariados. Já o proletariado é entendido como
a classe dos assalariados modernos, que não tendo meios de produção próprios
são obrigados a vender sua força de trabalho para viver. Num processo histórico
e dialético, a classe burguesa surge dentro da sociedade feudal, representa a sua
negação e a supera.

O exercício da indústria feudal ou corporativa, até então em uso, não foi mais
suficiente. Em seu lugar apareceu a manufatura. A divisão do trabalho entre as
diversas corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria
fábrica. Nesse meio-termo cresciam os mercados. A manufatura também deixou
de ser suficiente. A invenção das máquinas a vapor revolucionou a produção
industrial. A indústria manufatureira foi substituída pela grande indústria moderna.
Em lugar do segmento industrial médio entraram os milionários da indústria, os
burgueses modernos.

Quando as relações feudais da propriedade já não mais correspondem às


forças produtivas, em seu lugar apareceu a livre concorrência. Assim como a lei
dialética existe, como a burguesia é a contradição interna do feudalismo, assim
também o proletariado é a contradição interna da burguesia.

A burguesia se desenvolve e cresce como tal, alimentando em si mesma o


proletariado. A burguesia não apenas produziu as armas que a levarão à morte,
mas também gerou homens que empunharam aquelas armas, os proletários. Em
lugar de operários isolados e em concorrência, o progresso da grande indústria
cria uniões de operários organizados e conscientes de sua própria força e missão.

5.5 FETICHISMO E MERCADORIA


Em O Capital, Marx faz uma análise sobre a mercadoria, logo no início da
obra ele trabalha a ideia implícita no valor e uso de troca mercadológica. O valor
de uso tem como fundamento a qualidade que a mercadoria apresenta. Duas
mercadorias diferentes podem ser trocadas, por exemplo, 20 quilos de açúcar
por 20 metros de tecido. Mas o que essas duas mercadorias diferentes têm em
comum para que possam ser trocadas? Marx responde que o valor de troca é a
característica em comum existente entre as duas, por isso não é exagero dizer
que o valor de troca é aquele fator idêntico entre diferentes mercadorias que as
torna trocáveis dependendo das proporções, mais que em outras.

O valor de mercadoria para Marx é mesurado pela quantidade de trabalho

87
Temas e teorias da Filosofia

necessária para a produção da mercadoria. As mercadorias são medidas e


determinadas pelo tempo de trabalho que foi usado para a concepção delas. Para
mais praticidade do processo de trocas, houve uma substituição da troca direta
pelo uso da moeda. Isso explica que falar da mercadoria em si, sem levar em
consideração o fato de que ela provém do trabalho humano, transforma-a em
fetiche. Marx tenta esclarecer que o processo de troca de mercadorias é mais do
que uma reação entre coisas, mas também uma relação entre as pessoas, entre
os seres humanos. Por isso ele faz a crítica à economia clássica que mantém
esse caráter reducionista.

O trabalho também é mercadoria que o proletário (dono da força de trabalho)


vende para o capitalista (proprietário do capital) em troca de salário. O pagamento
que o capitalista faz ao operário é medido pelo valor que a mercadoria tem,
ou seja, assim como qualquer outra mercadoria, a remuneração pela força de
trabalho será realizada tendo como base a quantidade de trabalho necessário
para sua produção. Isso significa que o trabalhador receberá apenas o necessário
para manutenção de sua vida. Seria uma subsistência.

A ideologia alemã

Até hoje, os homens têm criado para si, constantemente,


concepções falsas sobre si mesmos, sobre o que eles são e o
que devem ser. Organizaram as relações humanas de acordo com
suas ideias de Deus, de homem normal etc. Os fantasmas de seus
cérebros tornaram-se seus senhores. Eles, os criadores, curvaram-
se diante das criaturas. Vamos libertá-los das quimeras, das ideias,
dogmas, seres imaginários, sob o jugo dos quais estão definhando.
Façamos rebelião contra o governo dos pensamentos. Vamos
ensinar os homens a trocar tais imaginações por pensamentos que
correspondam à essência humana, diz alguém; a assumir uma atitude
crítica diante das imaginações, diz um outro; a expulsá-las de suas
cabeças, diz o terceiro; e... a realidade existente vai desmoronar.

Essas fantasias inocentes e infantis são o germe da filosofia


jovem-hegeliana, que não só está sendo recebida pelo público
alemão com assombro e reverência, mas também é anunciada por
nossos heróis filosóficos com a consciência solene de seus perigos
de cataclisma e de sua brutalidade criminosa. O primeiro volume da
presente publicação tem o objetivo de desmascarar essas ovelhas,

88
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

que se consideram e são consideradas lobos, mostrando como seus


balidos consistem meramente numa imitação, em forma filosófica,
das concepções da classe média alemã. Assim, mostra-se também
como as bazófias desses comentadores de filosofia espelham
apenas os infortúnios das reais condições de vida na Alemanha. O
objetivo da publicação é desacreditar as contendas filosóficas com
as sombras da realidade, ao gosto da sonhadora e sonolenta nação
alemã.

Era uma vez um camarada bem-intencionado a quem ocorreu


a ideia de que os homens só se afogavam na água porque estavam
possuídos pela noção de gravidade. Se eles conseguissem expulsar
tal noção de suas cabeças - por exemplo, declarando tratar-se de
uma superstição, de uma ideia religiosa -, estariam resguardados de
todo e qualquer perigo que a água oferece. Durante toda a sua vida,
ele lutou contra a ilusão da gravidade, cujas consequências nocivas
eram comprovadas por todas as estatísticas, com novas e inúmeras
evidências. Esse camarada honesto era do mesmo tipo dos novos
filósofos revolucionários na Alemanha.

As premissas de que partimos não são arbitrárias, não se trata


de dogmas, mas de premissas reais, cuja abstração só pode ser
feita na imaginação. Trata-se dos indivíduos reais, sua atividade
e as condições materiais em que vivem, tanto aquelas que eles
já encontram existindo, quanto as produzidas em sua atividade.
Portanto, tais premissas só podem ser verificadas de um modo
puramente empírico.

A primeira premissa de toda história humana é, evidentemente,


a existência de indivíduos humanos. Por isso, o primeiro fato a
se determinar é a organização corporal desses indivíduos, e em
seguida sua relação com o resto da natureza. É claro que não
podemos investigar aqui nem a própria natureza física do homem,
nem as condições naturais em que ele se encontra - geológicas,
oro-hidrográficas, climáticas e assim por diante. A historiografia deve
sempre partir dessas bases naturais e sua modificação, no decorrer
da história, pela ação do homem.

É possível distinguir os homens dos animais pela consciência,


pela religião, ou pelo que quer que seja. Mas eles mesmos começam
a se distinguir dos animais logo que principiam a produzir seus meios
de subsistência, um passo que é condicionado por sua organização
corporal. Produzindo seus meios de subsistência, os homens estão

89
Temas e teorias da Filosofia

produzindo, indiretamente, sua própria vida material.

O modo como os homens produzem seus meios de subsistência


depende, em primeiro lugar, da natureza dos meios já existentes
que eles encontram e têm de reproduzir. Esse modo de produção
não deve ser considerado simplesmente como a reprodução da
existência física dos indivíduos. Trata-se sim de uma determinada
forma de atividade desses indivíduos, uma determinada forma de
dar expressão a suas vidas, um determinado modo de vida deles. A
maneira como os indivíduos expressam suas vidas é a sua maneira
de ser. Assim, o que eles são coincide com sua produção, tanto
com o que eles produzem, quanto com o modo como produzem. A
natureza dos indivíduos depende, então, das condições materiais
que determinam sua produção.

A produção de ideias, de concepções, de consciência é, a


princípio, diretamente entrelaçada com a atividade material e
o intercâmbio material dos homens, a linguagem da vida real.
Conceber, pensar os intercâmbios mentais dos homens, nesse
ponto, aparece como a emanação direta de seus comportamentos
materiais. O mesmo se aplica à produção mental, como se expressa
na linguagem da política, das leis, da moralidade, da religião e da
metafísica de um povo. Os homens são os produtores de suas
concepções, ideias etc., os homens reais, ativos, conforme são
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças
produtivas e do intercâmbio correspondente a essas, até alcançarem
suas formas mais elaboradas. A consciência nunca pode ser nada
mais do que existência consciente, e a existência dos homens é
seu próprio processo de vida. Se os homens e suas circunstâncias
aparecem de cabeça para baixo, como numa câmera obscura, em
todas as ideologias, esse fenômeno surge de seu processo de vida
histórico, assim como a inversão dos objetos na retina surge de seu
processo de vida físico.

Em contraste direto com a filosofia alemã, que desce do céu


para a terra, aqui nós ascendemos da terra para o céu. Isso quer
dizer que não partimos do que o homem diz, imagina ou concebe,
nem do modo como o homem é descrito em narrativas, pensado,
imaginado, concebido, a fim de chegarmos ao homem de carne e
osso. Partimos dos homens reais, ativos, e assim baseados em
seu processo real de vida, demonstramos o desenvolvimento
dos reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida. Desse
modo, os fantasmas que se formam nos cérebros humanos são,

90
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

necessariamente, sublimações de seu processo de vida material,


que é verificável empiricamente e fundado em premissas materiais.
Portanto, a moralidade, a religião, a metafísica, assim como todo o
resto das ideologias e suas formas correspondentes de consciência,
não conservam mais o seu semblante de independência. Elas não
possuem uma história, um desenvolvimento; são os homens que,
desenvolvendo suas produções materiais e seus intercâmbios
materiais, alteram junto com tais processos sua existência real, seu
pensamento e os produtos de seu pensamento. Não é a vida que se
determina pela consciência, mas a consciência que é determinada
pela vida. No primeiro método de considerar as coisas, o ponto de
partida é a consciência tomada como indivíduo vivo; no segundo, são
os próprios indivíduos vivos por si mesmos, como eles são nas suas
vidas, e a consciência é considerada unicamente como consciência
deles.

Esse método de consideração das coisas não é desprovido de


premissas. Ele parte das premissas reais e não as abandona em
momento algum. Suas premissas são os homens não em qualquer
isolamento fantástico ou definição abstrata, mas em seu processo
real de desenvolvimento, sob determinadas condições, perceptível
empiricamente. Logo que esse processo de vida ativo é descrito, a
história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como ela é para
os empiristas (eles mesmos ainda abstratos), ou uma atividade
imaginária de sujeitos imaginários, como ela é para os idealistas.

Onde a especulação termina - na vida real -, ali começa a ciência


real e positiva: a representação da atividade prática, do processo
prático de desenvolvimento dos homens. O discurso vazio acerca da
consciência se silencia, e o conhecimento real tem de tomar o seu
lugar. Quando a realidade é exposta, a filosofia perde seu meio de
existência como um ramo independente de atividade. No melhor dos
casos, seu lugar pode ser ocupado por um resumo dos resultados
mais gerais, as abstrações que despontam na observação do
desenvolvimento histórico dos homens. Vistas à parte, separadas
da história real, tais abstrações não têm em si mesmas valor algum.
Elas podem servir apenas para facilitar a organização do material
histórico, para indicar a sequência de seus estratos diferenciados.
Mas elas não fornecem de modo algum, como faz a filosofia, uma
receita ou esquema para arrumar metodicamente as épocas da
história. Pelo contrário, nossas dificuldades só começam quando nos
dispomos à observação e ao ordenamento - a exposição real - de
nosso material histórico, seja de uma época passada ou do presente.

91
Temas e teorias da Filosofia

A remoção de tais dificuldades é governada por premissas nas quais


é impossível nos determos aqui, e que só se tornarão evidentes
por meio do estudo do próprio processo de vida e da atividade dos
indivíduos em cada época.

FONTE: MARCONDES, D. Textos básicos de filosofia: dos


pré-socráticos a Wittgenstein. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

1 Qual a importância e por que a história é fundamental para a


análise de Marx e Engels?

2 Na Ideologia Alemã, qual entendimento podemos ter da ideia de


que a noção de ideologia é uma falsa consciência?

3 Marx faz uma profunda crítica à tradição filosófica. Comente


sobre esta afirmação.

4 O método proposto por Marx e Engels é crítico. Como você avalia


sua estrutura?

5 Em que sentido é apresentado o materialismo histórico e


dialético?

6 Qual a crítica que Marx faz a Hegel sobre a dialética?

6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Considerando e avaliando o que foi exposto no presente capítulo, podemos
dizer que o que mais caracteriza o período estudado é o teor crítico de suas
correntes teóricas, por isso o itinerário do conhecimento humano tem um impacto
profundo ao chegar ao período filosófico conhecido como modernidade, iniciado
por volta do século XVI. Nesse período a Europa está imersa em um ambiente
de mudanças e enfraquecimento da antiga ordem do mundo, no caso da ciência,
novas descobertas colocam no crivo da experimentação as ideias aristotélicas,

92
Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

base do conhecimento da Grécia clássica e da Era Medieval.

Com a descoberta do sujeito por Descartes e o método como critério para


a ciência surge o racionalismo que afirma ser a fonte do conhecimento a razão
humana, sendo a experiência secundária ao processo de cognição. Essa corrente
encontra sua oposição com a teoria empirista que afirma ser a experiência a
fonte do conhecimento, nossa mente é originalmente como uma folha em branco,
somente as sensações podem imprimir e preencher nosso aparato cognitivo com
as ideias. Tentando resolver essa dicotomia, Immanuel Kant propõe, no século
XVIII, que o conhecimento só é possível pela conjunção entre sensibilidade e
entendimento.

Como destacamos, a crítica é a alma da modernidade, não poderia ser


diferente ao debater a interpretação kantiana de que a Era Moderna traz em seu
bojo os ideais iluministas como a saída do homem de sua menoridade para a
maioridade racional. Essa postura só é possível pelo crivo crítico que cada homem
deve ter para ser autônomo no seu modo de pensar, sem necessitar de outros
para alcançar essa autonomia. De certa forma, também a corrente positivista,
com as leis dos três estágios busca essa autonomia assim como a teoria marxista,
que, como vimos, procurou superar o idealismo com sua denúncia ao modo como
a estrutura, infraestrutura e superestrutura forjam e alienam ideologicamente a
humanidade. Analisamos o questionamento como salutar para o desenvolvimento
de uma sociedade plural, mais justa e democrática, por isso, salientamos a
postura filosófica que tem como gênese a interrogação provocativa, implicando
sempre mais a inconformidade, ou seja, a permanência da argumentação crítica.

93
Temas e teorias da Filosofia

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Capítulo 2 O PROJETO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE

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95
Temas e teorias da Filosofia

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96
C APÍTULO 3
A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

A partir da perspectiva do saber-fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Entender os aspectos da crise da filosofia moderna mostrando como o conceito


de sujeito racional foi esvaziado na era contemporânea.

� Entender, através da leitura, como as teorias modernas, especialmente o


racionalismo, a hermenêutica e a fenomenologia estão presentes em várias
áreas do conhecimento humano e contribuem tanto para a percepção da
realidade como também para sua transformação.

� Perceber, após o entendimento sobre essas vertentes, que a crise da filosofia


moderna está relacionada ao esvaziamento e desconfiança dos ideais
modernos.
Temas e teorias da Filosofia

98
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

1 CONTEXTUALIZAÇÃO
FIGURA 1 – A EXALTAÇÃO DA RAZÃO

FONTE: <http://www.serdigital.com.br/gerenciador/clientes/
ttf/noticias/295.jpg>. Acesso em: 22 maio 2019.

Quando falamos de crise da razão certamente estamos referindo à descrença


que o homem passou a ter da teoria racionalista (endossada e superexaltada
pelo movimento iluminista), que prometia o desenvolvimento humano pelo
progresso científico. Claro que a crise da razão engloba uma ampla crítica e não
se resume somente ao julgamento da corrente racionalista, mas neste capítulo
iremos explorar com mais atenção esta análise que apresentamos. No século XIX
surgem os críticos da modernidade, que denunciam aquela “eufórica” forma de
pensar o mundo, detectando o esfacelamento da estrutura do edifício da razão,
construída pelo racionalismo cartesiano. Dentre esses teóricos, destacaremos,
neste capítulo, as ideias de Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl,
Horkheimer, Adorno, Lipovetsky, Bauman, Gadamer, Heidegger, Freud e Foucault.
Eles irão nos ajudar a entender algumas das principais questões da filosofia
contemporânea.

2 CRISE DA RAZÃO E DA
MODERNIDADE
Vimos, no segundo capítulo, o desenvolvimento da filosofia moderna a partir
das correntes racionalistas e empiristas, também observamos na teoria kantiana

99
Temas e teorias da Filosofia

uma continuação dessa tradição ao considerar aspectos básicos dela, como:


a centralidade da razão, o conhecimento como vetor de desenvolvimento da
humanidade, o método como fundamentação científica. Porém, no século XIX
surgem filósofos que vão criticar essa maneira de pensar ao detectar que muitas
dessas teorias apresentam fatores limitadores que não dão conta de explicar a
tão complexa totalidade do que é o homem e sua relação com o real. O novo
pensamento que desponta faz uma crítica à filosofia racionalista e de toda tradição
filosófica moderna, buscando novas alternativas de expressão. Esse movimento
ficou conhecido como idealismo pós-kantiano alemão, representado por filósofos
como Hegel, Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. É destaque que a filosofia
de Hegel não seguirá uma direção romantista, sendo também que ele irá receber
críticas em relação ao seu sistema filosófico juntamente com o kantiano. Vejamos
algumas das contribuições filosóficas que esses críticos da modernidade trazem
em suas teorias.

Schopenhauer (1788-1860) critica o racionalismo iluminista com certa


independência, pois ele não era filiado a nenhuma corrente ou escola de
pensamento. Posicionava-se contrário à teoria idealista de Hegel a ponto de o
considerar um grande charlatão. Professor em Berlim, Schopenhauer observava
o sucesso de Hegel, cujas aulas, lotadas de alunos, contrastavam com as suas,
sempre vazias. Após a morte de Hegel, em 1831, muda-se para Frankfurt e
dedica-se a escrever suas obras, destacando-se O mundo como vontade e
representação (suplementada em 1844) e Os trabalhos menores e acréscimos
(1851).

Mesmo sendo crítico de Hegel e Fichte, Schopenhauer permanece na


esteira do idealismo transcendental. Segundo sua teoria o mundo existe para a
subjetividade como representação, ou seja, o mundo, o objeto, é condicionado
pelo sujeito. O objeto é uma representação do sujeito, seja qual for sua origem.
O que seria a representação? Schopenhauer diz que ela é forjada pelas formas
da sensibilidade, ou pelo espaço e o tempo e pelo próprio entendimento como a
causalidade (mantém aqui características kantianas).

Dessa forma, a coisa em si, o real, não é penetrável pelo conhecer, tendo
acesso apenas pelas representações que o sujeito faz. Para ele podemos
ter conhecimento de nós mesmos, de nossa subjetividade pela reflexão e
autoconhecimento, por isso, o sujeito tem a capacidade de conhecer a si mesmo,
não somente a aparência. O sujeito tem a potencialidade de conhecer a si
mesmo enquanto sujeito, não como objeto, mas de modo direto, sem precisar
de conceitos, pela vontade. A vontade é a essência da subjetividade, ou seja,
do eu. A vontade escapa de ser objeto de conhecimento, mas faz comunicação
com o eu, mas Schopenhauer afasta-se da teoria kantiana ao mostrar que essa
vontade, por exemplo, a vontade de viver que cada sujeito tem, é somente

100
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

parte da vontade geral, isso significa que é no sentido imutável, eterno. Kant,
por sua vez, como vimos no capítulo anterior, elabora o que podemos chamar
de “metafísica da vontade”, perdendo o caráter de uma filosofia crítica tal como
ocorreu na discussão do idealismo transcendental.

Na teoria apresentada por Schopenhauer (2001) a existência individual perde


sua importância, uma vez que o indivíduo é uma parte do todo. Com a descoberta
disso, o intelecto supera, por exemplo, o medo de morrer, pois isso é característica
da vontade de viver do indivíduo, uma vez que a morte não elimina a vontade.
Nesse sentido, a vontade geral sobrevive à morte, não ao indivíduo. Este é fadado
à finitude, à limitação, ao sofrimento e à dor. Por isso que Schopenhauer acaba
legitimando uma “ética do suicídio”, ou seja, da aniquilação da individualidade.
Daí a característica do pessimismo de Schopenhauer. Ele afirma ainda que a
única maneira de superar essas limitações do indivíduo é apenas na experiência
artística e estética, principalmente na música, expressão mais pura da vontade
geral, e, portanto, é uma experiência do eterno. Podemos perceber, então, que a
sua teoria tem um certo teor romântico, típico de alguns escritores de sua época.

3 OS ESTÁGIOS DA EXISTÊNCIA EM
KIERKEGAARD
Outro pensador crítico da tradição moderna, considerado o primeiro
existencialista, Soren Aabije Kierkegaard, escritor dinamarquês que viveu entre
1813 e 1855, manifesta em suas obras um misto de filosofia, teologia, psicologia,
literatura, ficção e crítica literal. Oriundo de uma família de classe média, gastou
sua herança escrevendo muitos livros.

A vida desse filósofo foi marcada por acontecimentos decisivos para a


confecção de sua obra. Teve uma vivência intensa com um pai muito religioso
e melancólico (melancolia herdada por Kierkegaard), mas foi o rompimento do
noivado com Regine Olsen que acabou precipitando o início do seu trabalho
como escritor. Kierkegaard ainda passou por outro acontecimento que o levou
a compreender o significado do sofrimento e a necessidade de um indivíduo
autêntico, que resista à multidão. Esse acontecimento foi um envolvimento em
uma controvérsia em que ele foi atacado por um periódico satírico popular. Nisso,
abandona os planos de assumir um cargo de pastor.

No fim da vida promove uma campanha pública e solitária, na imprensa


popular, em uma revista fundada por ele contra a Igreja dinamarquesa. Com o
último número de sua revista (O instante) nas mãos, Kierkegaard desmaiou na
rua e foi levado ao hospital, mas morre poucas semanas depois.

101
Temas e teorias da Filosofia

Crítico de Descartes e Hegel, Kierkegaard quer realmente centrar sua


investigação nos dramas da vida cotidiana e não se preocupa tanto com uma
filosofia centrada exclusivamente com o conceito. Sua filosofia parte do interior da
existência e procura demonstrar aos seus contemporâneos a inadequação entre
o viver e a vida, e também ao existir dentro da própria vida.

Ao construir sua teoria sobre os estágios, Kierkegaard insere uma


fenomenologia e uma dialética da liberdade, ou seja, sem terminar num ponto
fixo. Ao fim do processo, descreve a tensão que caracteriza as possibilidades
de concretizar a aventura do deixar de ser para tornar-se homem, como evocou
Píndaro: “vem a ser, na própria experiência, aquele que tu és” (PÍNDARO apud
SCHUBACK, 1998, p. 193).

Descrevendo os estágios, fazem parte dos elementos literários: filmes,


fotografias, peças e poesias que têm como função reproduzir a condição do
homem. Dessa forma, quando Kierkegaard descreve alguns indivíduos como
Abraão, Édipo e Jó, não está fazendo uma análise literária, essas figuras são
espelhos que servem como metáforas para caracterizar alguma realidade humana
no drama, na comédia ou na tragédia, sendo dentro da existência, isso se faz
presente.

No estágio estético, temos que o indivíduo em sua singularidade vai se


deixando levar pelos vários momentos que estão apresentados aleatoriamente
e incapaz de um projeto e de uma decisão que comportem a radicalidade da
doação, como compromisso e responsabilidade, antes pauta sua vida no, e com o
efêmero, o acidental, passa o tempo que lhe foi destinado, inebriado e prisioneiro
das vaidades proporcionadas pelos meios financeiros da forca física e exuberante
da juventude.

No estágio ético, torna-se personificado na escolha de si mesmo e em uma


adequação à lei e aos valores universais. Então, temos, que para ele, o desespero
pode ser a passagem do estético para o ético e do ético para o religioso, isso
ocorre no arrependimento. Aqui, temos uma concepção contrária a Hegel, uma
vez que, existem nessa categoria, duas liberdades que não são mediadas. O
homem sabe e reconhece que é pecador e finito, escolhendo saltar nos braços
de Deus.

Metáfora escatológica, esse é o modo como Kierkegaard desenvolve os


estágios da existência. De um lado temos o estético, representando a queda,
o homem vivendo o momento e sem consciência do seu fim último, da sua
existência. Por outro lado, o ético caracterizando um homem que se encontra em
uma posição de salvador do mundo ao querer transformar a terra em um paraíso,
como nunca consegue, se frustra. Por último, temos o estágio religioso, que

102
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

nada mais é do que o reconhecimento do homem como um indivíduo insuficiente


para uma existência centrada em si mesmo e o reconhecimento de Deus como
realidade última.

4 HEIDEGGER, FREUD E FOUCAULT


Diferentemente de Kierkegaard, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-
1876) não fundamenta sua filosofia na dimensão religiosa, mas não deixa de
recorrer às ideias Kierkegaardianas, formulando a teoria da existência humana
em dois modos: o autêntico e o inautêntico. O modo de vida inautêntico é o que
corresponde em Kierkegaard ao estágio estético. Para Heidegger (1997), o homem
encontra-se nesse nível quando foge da angústia pela ideia da morte, distraindo-
se com preocupações imediatistas. O nível da existência autêntica corresponde
em Kierkegaard ao estágio ético, ocorrendo quando a pessoa assume a ideia de a
morte ser a possibilidade existencial, vivendo de forma intensa essa última etapa
que decorre da angústia que provém do conhecimento do fim da vida. Heidegger
(1997), propõe essa teoria não porque ele é um pensador existencialista, aliás ele
não se considerava desse modo, mas para entender de forma geral o ser.

Para Heidegger o homem é denominado de Dasein (ser ai), e é constituído


como o ser para a morte, única certeza em meio às possibilidades da vida humana.
Em sua obra Ser e Tempo ele tanta compreender o ser em uma perspectiva
antropológica, filosófica e fenomenológica. Por isso, Heidegger é referência
para a corrente existencialista, pois procura entender o homem e seu lugar
no mundo pela angústia, mostrando suas mazelas e sua interação. Heidegger
é considerado um dos críticos da modernidade, e seu pensamento denuncia a
forma como a instrumentalização da técnica no Ocidente destrói um olhar voltado
para a natureza, tida como um recurso inesgotável, quando na verdade tem suas
limitações.

Outro crítico da modernidade, Sigmund Freud (1856-1939), que no início


do século XX, também coloca em questão o otimismo racionalista. Para Freud
(1990), o ser humano tem a ilusão de que suas ações, pensamentos, sentimentos
e desejos estão sobre o controle da consciência, quando na verdade existe um
poder invisível que não percebemos, mas é de natureza psíquica e social e atua
em nossa vida, nossa consciência de forma oculta. Ele chama essa força de
inconsciente.

Essa descoberta trouxe uma reação também no campo filosófico, colocando


em questão a razão e o próprio sujeito do conhecimento. Outras questões são
colocadas para a reflexão filosófica no que tange a ética e as discussões morais.

103
Temas e teorias da Filosofia

O ser humano é questionado quanto a sua situação de liberdade frente ao


condicionado psíquico e histórico. Se há um condicionado dessas naturezas como
fica a questão da liberdade? Claro, não iremos aqui explorar profundamente essas
questões, apenas estamos mostrando como esses críticos da modernidade, como
Freud, trazem novas rotas para pensar a questão humana e como a filosofia,
agora, tem novos desafios com essas querelas.

O filósofo Michel Foucault (1926-1984) foi um dos herdeiros dessas novas


questões. Seguindo a corrente estruturalista (embora não se considerava), ele traz
a noção de que existe, na sociedade, estruturas inconscientes que determinam o
pensamento de um indivíduo em uma determinada comunidade histórica.

Foucault (2009), procura escavar na história os conceitos que afetaram


uma determinada época e sociedade e para entender como aquele povo se
comportava era necessário que alguém estivesse inserido naquela formação
discursiva. Por isso, que para ele, a história do pensamento deve ser encarada
como uma sucessão de discursos formados na história.

Considerando isso, ele considera que o progresso da ciência seja um


mito, pois se consideramos a psiquiatria ou a medicina, percebemos que o que
houve foi uma substituição de uma estrutura de pensamento por outra. Dessa
forma, ele acredita que o psiquiatra na modernidade, por exemplo, não tem uma
compreensão mais alargada da loucura do que em outras épocas. O que acontece
é que ele compreende a loucura servindo de um conjunto de conceitos de hoje
que em épocas passadas não eram os mesmos ou a compreensão não era a
mesma para o entendimento. A partir dessa constatação, Foucault desenvolve
sua análise sobre as estruturas sociais que legitimam a disciplina do indivíduo. O
hospital, a escola, o exército, o hospício, são analisados por ele na perspectiva
do poder disciplinar. Cada espaço desse tem como função, na modernidade
disciplinar, o indivíduo, e desse modo as instituições estabelecem as relações
de poder na sociedade por meio da punição. Por isso, era comum em hospícios
o tratamento com choques elétricos, duchas geladas e vários outros tipos de
castigos. A ideia seria produzir seres dóceis e que fossem úteis para o Estado.

5 NIETZSCHE E A CRÍTICA AOS


VALORES DA MODERNIDADE
Nietzsche é considerado um dos mais importantes críticos da modernidade,
por isso, nesta subseção, apresentamos algumas das suas principias ideias
contidas, em especial, em sua obra O Anticristo (1888), mas não apenas

104
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

pretendemos focar nela, faremos ligações também com outras obras do autor
a fim de termos um panorama da sua crítica ao cristianismo em outros textos.
Gostaríamos de deixar claro que, diferentemente de outras seções deste módulo,
iremos realizar uma crítica ao conteúdo aqui exposto.

Nietzsche é um pensador cuja sua crítica alcança os valores da tradição


filosófica clássica e moderna. Todas as suas obras trazem um caráter polêmico
e a defesa do que ele denominava de “filosofia afirmativa da vida”. Suas
principais obras são: Humano, Demasiado Humano (1876-1880); Assim Falou
Zaratustra (1883); A Genealogia da Moral (1887); Além do Bem e do Mal (1889);
O Crepúsculo dos Ídolos (1889); Vontade de Poder (1901). Destacaremos para
a compreensão de seu pensamento o livro O Anticristo (1888), apontando as
principais críticas que são tecidas contra a sociedade e seus princípios.

A profundidade da obra O Anticristo de Nietzsche traz consigo o objetivo


principal do escritor: a crítica dos valores estabelecidos pelo cristianismo,
propondo uma mudança com a criação de novos valores. O idealismo metafísico-
platônico é combatido por ter transformado o mundo em ilusão e com isso
colocando-o em grau de inferioridade. O próprio título pode justificar porque
Nietzsche dizia que o “cristianismo era um platonismo para o povo”. A crítica mais
acentuada é a exaltação da vida “além-túmulo” e o menosprezo pela vida terrena.
A vida deve ser vivida por ela própria, sem o sentimento de culpa da moral cristã.
Tentaremos expor aqui alguns aspectos que consideramos positivos e negativos
na obra O Anticristo, bem como uma análise sobre o que destacaremos.

Para Nietzsche (2009), realizar a crítica ao idealismo, ao evolucionismo,


ao positivismo e ao romantismo serve para mostrar como essas teorias são
“humanas, muito humanas” que pretendem ser verdades absolutas e eternas. É
preciso desmascará-las. Nietzsche vai além, e em nome do instinto dionisíaco
e do homem grego do século IV a.C., sadio, amante da vida terrena, anuncia
a “morte de Deus” e realiza também um ataque ao cristianismo, que ao colocar
sua visão, ofusca o mundo antigo e sua concepção grega do homem. Em outras
palavras, o cristianismo envenenou a humanidade. Indo mais fundo em suas
investigações, faz uma genealogia da moral e descobre que ela é a moral dos
escravos, dos fracos e ressentidos, dos vencidos contra a nobreza e o belo.

O cristianismo defende tudo o que é nocivo ao homem, pois considerou


pecado tudo o que é valor na terra. Para ele, o que é saudável ao homem é o que
produz mais poder, mais força, ao contrário do que defende o cristianismo, que
pegou para si tudo que é fraco, arruinado, ou o que é contrário aos instintos de
conservação da vida forte.

Sendo a religião da compaixão, o cristianismo faz com que a pessoa perca

105
Temas e teorias da Filosofia

força porque a compaixão interrompe a lei da seleção. “O cristianismo tomou o


partido de tudo o que é fraco, baixo e fracassado; forjou seu ideal a partir da
oposição a todos os instintos de preservação da vida saudável” (NIETZSCHE,
2002a, p. 9). O Deus cristão é a divindade dos doentes, pois é capaz de
contradizer a vida.

A figura do Cristo é tida por ele como cativante, a ponto de o considerar


“o homem mais nobre”, pois segundo ele, Cristo foi um espírito livre, mas
o evangelho morreu na cruz. Está claro, então, a distinção entre Jesus e o
cristianismo. E o evangelho foi transformado em ódio e ressentimento contra tudo
que é nobre e aristocrático, tendo como seu principal difusor Paulo, que foi o
maior dos apóstolos da vingança.

O problema que Nietzsche apresenta é o de saber que tipo de homem deve


ser criado, que tipo deve ser desejado como o mais valioso para viver e assim
garantir um futuro mais seguro. Esse tipo de homem já até existiu no passado,
mas não deu continuidade, pois sempre foi uma exceção, não a norma:

Este tipo mais valioso já existiu bastantes vezes no passado:


mas sempre como um afortunado acidente, como uma
exceção, nunca como algo deliberadamente desejado. Com
muita frequência esse foi precisamente o tipo mais temido; até
ao presente foi considerado praticamente o terror dos terrores;
- e devido a esse terror, o tipo contrário foi desejado, cultivado
e atingido: o animal doméstico, o animal de rebanho, a doentia
besta humana: o cristão [...] (NIETZSCHE, 2002a, p. 9).

Na Renascença, segundo Nietzsche, tentou-se a transvaloração dos valores


cristãos, que tentou vitória dos valores aristocráticos (nobres instintos). Segundo
ele o papa César Bórgia era a grande esperança da humanidade. Porém, o
monge Martinho Lutero ao chegar em Roma trouxe dentro de si todos os instintos
de vingança, indignado com a Renascença iniciou a “restauração da igreja” e com
isso a negação da “vida boa” do triunfo a tudo o que é elevado e belo.

A condenação do cristianismo, ao mesmo tempo, submete a moral a uma


grande crítica. E essa vai ser sua investida pela mudança nos valores. Por isso, não
somente no Anticristo, mas também na Genealogia da moral, Nietzsche procura
mostrar os mecanismos psicológicos que guiam a gênese dos valores. A moral
sendo para dominar os outros. Pode-se distinguir, assim, a moral aristocrática
(dos fortes) e a moral dos escravos (os fracos). A moral dos fracos faz com que
os escravos se opunham àquilo que não pertence a ela. A moral aristocrática é
a afirmação triunfante de si. A moral dos fracos gera o ressentimento, pois na
oposição com a moral dos fortes ela se depara com o seu “não eu”, aquilo que é
diferente dela. Nessa subversão é que nasce o ressentimento que é contra o amor

106
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

à vida, contra a força e faz com que o sacrifício, a submissão e o desinteresse


sejam elevados.

Esse tipo de moral dos fracos é consolidado por metafísicas que pressupõe
sustentá-lo em bases objetivas sem perceber que essas metafísicas são
invenções do que chamam de “mundos superiores”. Essas invenções são para
difamar o mundo terreno, este mundo, que para metafísicos como Platão é mera
aparência. Por isso a crítica ao cristianismo por abraçar esse tipo de metafísica e
por ter como base fundante essa moral dos fracos.

Um aspecto que talvez possa ser positivo é a percepção que Nietzsche tem
sobre o niilismo. O cristianismo teria como consequência o niilismo. O nada é o
que fica quando as ilusões perdem sua força. Entrando nesse estado procura-se
o sentido de todo acontecimento que ele não tem.

Agora, iremos destacar algumas colocações críticas sobre a visão de


Nietzsche exposta e tentar problematizar algumas de suas ideias no que concerne
ao que ele diz que vem depois do cristianismo, ou seja, o que ele colocou no lugar
do que foi desconstruído, teoricamente falando. Eis o que diz Nietzsche (2002b,
Fragmento 125) no trecho a seguir:

Deus está morto. Nós o matamos. Deus permanece morto.


E fomos nós que o matamos. Como nos consolar, nós, os
assassinos dos assassinos? Aquilo que o mundo possuía até
agora de mais sagrado e de mais poderoso perdeu seu sangue
sob nossos punhais. Quem limpará esse sangue de nossas
mãos? Que água instral poderá jamais nos purificar?

E ainda mais detalhadamente ele explica:

Deus está morto: "Nós o matamos; eu e vocês. Somos seus


assassinos!". Eliminamos Deus de nossas vidas; e, ao mesmo
tempo, eliminamos aqueles valores que eram o fundamento de
nossa vida; perdemos os pontos de referência, isso equivale a
dizer que desapareceu o homem velho, mesmo que o homem
novo ainda não tenha aparecido. Zaratustra anuncia a morte
de Deus; e sobre suas cinzas exalta a ideia do super-homem,
repleto do ideal dionisíaco, que "ama a vida e que, esquecendo
o céu, volta à sanidade da 'terra' ".

Esse anúncio da “morte do Deus Cristão” não significa que Nietzsche não
tenha apreço por Jesus Cristo, pelo contrário, ele nutre uma grande admiração
por sua figura, a ponto de o denominar como “o homem mais nobre”. Porém, o
cristianismo não é Cristo. Aqui consideramos um aspecto positivo que a obra traz,
essa distinção entre Cristo e o cristianismo. Na leitura do Anticristo temos a ideia
geral do que seja o cristianismo, ou seja, que é uma conjuração “contra a saúde,

107
Temas e teorias da Filosofia

a beleza, a constituição bem-sucedida, a vontade de espírito, a bondade da alma


e contra a própria vida". Eis a razão pela qual é preciso a transmutação de todos
os valores, dos valores que "dominaram até hoje".

Permita-nos ainda um comentário e uma reflexão sobre a afirmação “Deus


está morto”. Acreditamos que essa afirmação está intrinsecamente relacionada à
ideia exposta na obra O Anticristo. Nietzsche faz uma crítica a todo um sistema
metafísico sustentado pela ideia de Deus, de um ser superior, e almeja a partir
da “morte de Deus” a chegada de um “super-homem”. Essa crítica ao sistema
metafísico pode ser considerada um fator positivo, pois traz muito um alerta ao
olhar, não somente dos erros da religião, mas da arrogância da filosofia e das
ciências ocidentais, baseadas na racionalização platônica. Por outro lado, essa
ideia do “super-homem” traz um aspecto negativo que está também no Anticristo.
Ao que parece, essa ideia merece ser posta em suspeita, pois parece cair num
círculo vicioso, coloca no lugar de Deus ou do cristianismo uma outra entidade, o
“super-homem” com odor de resquícios metafísicos. Nessa esteira, Gray faz uma
crítica ao afirmar que quando “o super-homem de Nietzsche vê a humanidade
caindo num abismo no qual nada tem sentido. Por um supremo ato de vontade,
ele salva o mundo do niilismo. Zaratustra sucede a Jesus como o redentor do
mundo” (GRAY, 2006, p. 143).

Claro que Nietzsche não está preocupado se Deus existe ou não, mas
que a influência dos sacerdotes, os ritos, a moral por trás da teologia, são
decadentes e anuncia e denúncia o niilismo que é recorrente, ou seja, Nietzsche
está preocupado em condenar o espírito de sua época, em denunciar e anunciar
a morte dos ideais divinos, o fim da doença do cristianismo e o anseio por um
retorno ao homem saudável, à vida terrena.

Na obra O sofrimento de Deus, inversões do apocalipse os autores Boris


Gunjevic e Slavoj Zizek evidenciam a problemática moral da polêmica afirmação
da morte de Deus e da permissão de tudo recorrente desse evento (frase
atribuída à obra Os Irmãos Karamázov de Dostoiévsky), assim eles recorrem a
esta passagem:

Como vocês sabem, [...] Ivan o conduz (seu pai Karamazov)


pelas avenidas audaciosas por onde enveredara o pensamento
de um homem culto, e em particular, ele diz, “se Deus não existir
[...] – Se Deus não existir”, diz o pai, então tudo é permitido.
Noção evidentemente ingênua, pois nós, analistas, sabemos
muito bem que se Deus não existir então absolutamente mais
nada é permitido. Os neuróticos nos demonstram isso todos os
dias (LACAN, 1985, p. 165).

É interessante trazer aqui a impressão que Gunjevic e Zizek fazem a partir


dessa constatação de Lacan. Eles apresentam o oposto dessa tese: “se Deus

108
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

existir, então tudo é permitido”. “Não seria essa a definição mais sucinta do apuro
em que se encontra o fundamentalista religioso?” O plano de com a morte de
Deus abrir um leque de possibilidades, antes proibidas, parece esbarrar quando
percebemos que aquele que acredita plenamente em Deus percebe a si como
instrumento divino, e por isso pode fazer o que quiser, “pois seus atos são
redimidos de antemão, uma vez que representam a vontade divina [...]”.

Assim, também podemos pensar que o que Schopenhauer pensava como


a história, desprovida de qualquer sentido, era justamente o que Nietzsche mais
tarde chamaria de “morte de Deus”. Os cristãos definem a vida dos humanos
diferente da dos animais, pois os homens dão sentido à vida, diferentemente dos
animais que não fazem isso. Diferentemente de outros animais os homens têm
a liberdade dada por Deus para que possam escolher e dar significado a suas
vidas.

Para Nietzsche é com a morte de Deus que se abrem as possibilidades de


criação de novos valores autênticos. O cristianismo nega valores autênticos, nega
a vida. Assim, ele define o valor da vida em Além do Bem e do Mal: “Seja qual
for o ponto de vista filosófico no qual nos coloquemos, reconhecer-se-á que a
falsidade do mundo em que acreditamos viver, é a coisa mais verdadeira e firme
que nossa visão pode apreender” (NIETZSCHE, 1999 p. 53).

No Anticristo Nietzsche vai apresentar ideias como essas para alcançar a


“maldição do cristianismo”. Ele faz duras críticas ao evangelho e em algumas
análises não mostra solidez, muitas vezes parte do próprio evangelho escrito pelos
seguidores de Cristo para fazer tais observações, mas parece se esquecer que
esses escritos são praticamente o que se sabe de Cristo, no entanto, Nietzsche
tem uma admiração por Jesus. Ora! Se ele tem admiração por Cristo a ponto de o
chamar de “o mais nobre dos homens”, foi com base nos relatos dos evangelistas
que ele pôde conhecer a figura desse homem.

Se Nietzsche considera o evangelho como enganoso ele também se engana


ao considerar alguns “relatos” para daí extrair a nobreza do Cristo. Talvez, ele
alimentando um desejo de destruir as estruturas do cristianismo não percebeu
que quando se corta a cabeça de uma hidra, mais duas crescem no lugar. A
tentativa de esmagar cada uma pode não funcionar, mudar a tática talvez possa
trazer resultados tal qual Hércules queimando um tição logo após o corte, a ferida
pode ser cicatrizada, evitando a regeneração, mas no vazio que se abre não seja
entronizado um outro “Deus desconhecido” e que avaliemos bem o que é esse
apresentado “super-homem” para que não seja um broto híbrido renascido das
cinzas do que se acreditava que estava morto.

No capítulo XLV do Anticristo, por exemplo, Nietzsche diz oferecer exemplos

109
Temas e teorias da Filosofia

do tipo de coisa que essa “gente insignificante” tinha dentro de suas cabeças e
que colocaram na “boca do mestre”. Ele parte principalmente resgatando partes
do evangelho escrito por Marcos. Bem, o difícil é saber qual critério Nietzsche teve
para considerar que essas passagens não foram o próprio Cristo que disse, uma
vez que ele busca no evangelho a fonte de pesquisa para descrever o “mestre”.

O que ele faz é buscar recortes de várias partes do evangelho que sejam
interessantes para pôr em evidência que o cristianismo terminou no próprio Cristo
e que os seguidores já iniciaram o processo de deformação do ensinamento.
Aqui, destacamos isso como aspecto negativo, pois não fica claro o que ele quer
com esses recortes.

Eis sua conclusão após ler o Novo Testamento, sua principal fonte de
pesquisa e crítica: “Em vão procurei no Novo Testamento por um único traço
de simpatia; nele não há nada que seja livre, bondoso, sincero ou leal. Nele a
humanidade nem mesmo dá seu primeiro passo ascendente - o instinto de
limpeza está ausente [...]” (NIETZSCHE, 2002, cap. XLVI).

Um traço que liga o Anticristo à Genealogia da Moral pode ser evidenciado


no conceito de “bom”. Este traço sinalizamos como positivo para a própria filosofia
moral, pois ele constrói uma importante análise da origem e uso de alguns
conceitos. Na Genealogia ele descreve que “o juízo ‘bom’” não provém daqueles
aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos,
superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a
seus atos como bons [...]” (NIETZSCHE, 2009, p. 16). Claro, não iremos aqui
desenvolver uma comparação com as duas obras, mas para fechar nossa crítica
é interessante notar que esse conceito de “bom” (muito usado pelos cristãos para
designar aquele que segue o bem ou o próprio cristianismo para Nietzsche), foi
distorcido, pois o bom mesmo era o nobre, que nutre a ideia de que seus atos
eram de primeira ordem em oposição a tudo aquilo que é baixo. Nesse sentido,
para ele houve um retrocesso quando o cristianismo, apropriando desse conceito,
e colocando “bom” como sinônimo do que é fraco (como no caso do amai os seus
inimigos) levou a humanidade ao fracasso. Assim, logo no início do Anticristo,
Nietzsche (p. 8) diz que “o que é bom? - Tudo que aumenta, no homem, a
sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? - Tudo que
se origina da fraqueza”. Essas ideias devem ser refletidas com bastante atenção
e cuidado, pois muito aqui é profundo e traz grandes contribuições para não
somente a filosofia, mas também lança luz sobre nossa época, nos faz entender
muitos acontecimentos e criticamente concordar ou discordar do autor.

A crise da modernidade, o individualismo, a política, as ideias niilistas, a


flutuação religiosa são temas que estão profundamente relacionadas aos escritos
nietzschianos. No Anticristo, percebemos um “espírito” angustiado por fazer parte
do contemporâneo, e nessa angústia almeja transvalorar os valores de uma
110
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

sociedade em ruínas, em decadência, mas a indagação que fica é: como será


que a sociedade imaginada por Nietzsche libertaria o homem realmente do que
ele mesmo denominou de “sujeira”? (eis mais um aspecto negativo). Parece que
as experiências das guerras mundiais, o Holocausto, por exemplo, mostrou o
quanto o discurso de uma humanidade, em que os valores expurgam os fracos,
não estão de acordo com muitos que defendem a dignidade do homem como
sendo portador de direitos, pelo menos no papel isso é defendido. Todo esforço
de Nietzsche foi o de mostrar e lutar contra a metafísica e o cristianismo, e a
transvaloração dos valores seguia como seu projeto para conseguir libertar a
humanidade do “ódio à vida”, e trazê-la para o mundo terreno, humano.

O ANTICRISTO

Olhemo-nos face a face. Somos hiperbóreos - sabemos muito


bem quão remota é nossa morada. “Nem por terra nem por mar
encontrarás o caminho aos hiperbóreos”: mesmo Píndaro, em seus
dias, sabia tanto sobre nós. Além do Norte, além do gelo, além da
morte - nossa vida, nossa felicidade [...] nós descobrimos essa
felicidade; nós conhecemos o caminho; retiramos essa sabedoria
dos milhares de anos no labirinto. Quem mais a descobriu? - O
homem moderno? - “Eu não conheço nem a saída nem a entrada;
sou tudo aquilo que não sabe nem sair nem entrar” - assim suspira o
homem moderno... Esse é o tipo de modernidade que nos adoeceu
- a paz indolente, o compromisso covarde, toda a virtuosa sujidade
do moderno Sim e Não. Essa tolerância e largeur (2) de coração
que tudo “perdoa” porque tudo “compreende” é um siroco (3) para
nós. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes modernas e
outros ventos do Sul! [...] fomos bastante corajosos; não poupamos
a nós mesmos nem os outros; mas levamos um longo tempo para
descobrir aonde direcionar nossa coragem. Tornamo-nos tristes; nos
chamaram de fatalistas. Nosso destino - ele era a plenitude, a tensão,
o acumular de forças. Tínhamos sede de relâmpagos e grandes
feitos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos,
da “resignação”... Nosso ar era tempestuoso; nossa própria natureza
tornou-se sombria - pois ainda não havíamos encontrado o caminho.
A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma
meta [...]

1 - Os Gregos acreditavam que no extremo Norte da Terra vivia um

111
Temas e teorias da Filosofia

povo que gozava de felicidade eterna, os hiperbóreos, que nunca


guerreavam, adoeciam ou envelheciam. Sem a ajuda dos Deuses,
seu território era inalcançável. (N. do T)
2 - Grandeza.
3 - Vento asfixiante, quente e empoeirado originário de desertos. (N.
do T.)

O que é bom? - Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder,


a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? - Tudo que se
origina da fraqueza. O que é felicidade? - A sensação de que o poder
aumenta - de que uma resistência foi superada.

Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo,


mas a guerra; não a virtude, mas a eficiência (virtude no sentido
da Renascença, virtu (1), virtude desvinculada de moralismos). Os
fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa
caridade.

E realmente deve-se ajudá-los nisso. 0 que é mais nocivo que


qualquer vício? - A compaixão posta em prática em nome dos
malogrados e dos fracos - o cristianismo...

1 - “Vir”, em latim, significa “varão”, “homem”. Ou seja, “virtu”, neste


“sentido da Renascença”, designa qualidades viris como força,
bravura, vigor, coragem, e não humildade, compaixão etc. (N. do T).

O problema que aqui apresento não consiste em rediscutir o lugar


humanidade na escala dos seres viventes (- o homem é um fim -):
mas que tipo de homem deve ser criado, que tipo deve ser pretendido
como sendo o mais valioso, o mais digno de viver, a garantia mais
segura do futuro. Este tipo mais valioso já existiu bastantes vezes
no passado: mas sempre como um afortunado acidente, como uma
exceção, nunca como algo deliberadamente desejado. Com muita
frequência esse foi precisamente o tipo mais temido; até ao presente
foi considerado praticamente o terror dos terrores; - e devido a esse
terror, o tipo contrário foi desejado, cultivado e atingido: o animal
doméstico, o animal de rebanho, a doentia besta humana: o cristão
[...] Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade
certamente não representa uma evolução em direção a algo melhor,
mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma ideia
moderna, ou seja, uma ideia falsa. O Europeu de hoje, em sua
essência, possui muito menos valor que o Europeu da Renascença;
o processo da evolução não significa necessariamente elevação,

112
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

melhora, fortalecimento. É bem verdade que ela tem sucesso em


casos isolados e individuais em várias partes da Terra e sob as mais
variadas culturas, e nesses casos certamente se manifesta um tipo
superior, um tipo que, comparado ao resto da humanidade, parece
uma espécie de super-homem. Tais golpes de sorte sempre foram
possíveis e, talvez, sempre serão. Até mesmo raças inteiras, tribos
e nações podem ocasionalmente representar tais ditosos acidentes.

FONTE: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Tradução André


Díspore Cancian, São Paulo. Versão para eBook, eBooksBrasil.com,
2002.

1 Disserte sobre a crítica de Nietzsche ao cristianismo.

2 Como você interpretada a frase do texto em que Nietzsche afirma


que “Somos hiperbóreos”?

3 Como Nietzsche entende a questão da moral?

4 Qual o objetivo da teoria dos estágios de Kierkegaard e sua


contribuição para a crítica à tradição filosófica?

6 CRISE DA RAZÃO
Vimos, no decorrer de nossa exposição, que desde Descartes, com a
descoberta do método, a razão passou a ser o fundamento de toda ordem, não
apenas científica, mas até mesmo política e moral na sociedade ocidental. A
centralidade do Eu pensante como critério de certeza, indubitável, abre uma nova
cortina na história do pensamento a ponto dessa nova fase ser considerada a
era das luzes, pois a razão seria a guia para dissipar as trevas da ignorância
e trazer a felicidade tão almejada pelos homens. A ciência, tendo como guia a
razão, garantiria um futuro promissor e levaria o homem a sua fase mais elevada.

113
Temas e teorias da Filosofia

A crise dessa percepção pode ser analisada pela concepção de


Max Horkheimer na obra Crítica da Razão Instrumental.

No século XVII, Descartes, com o Discurso do Método (1637), instaura uma


nova fase na história da epistemologia ao conceber o método racional de controle,
caminho seguro para que a nova ciência que despontava naquela época não
caísse em equívocos como aconteceu com o sistema aristotélico, por exemplo.
Com o fundamento no sujeito pensante e seguindo o método é possível conhecer
de forma clara e distinta as leis da natureza, por esse domínio. Com isso,
Descartes (1979), aponta que o homem ganha os benefícios oriundos da pesquisa
científica. O movimento iluminista, que ganha força no século XVIII, elevou de tal
forma esse objetivo cartesiano que a razão passou a ser vista como a grande luz
que dissiparia as trevas da ignorância humana. A confiança ilimitada na promessa
de progresso e da ordem logo influenciou todo o mundo ocidental, a ponto de
que todo o saber verdadeiro só provém da ciência e da técnica. O entusiasmo
era tamanho que o filósofo Immanuel Kant escreveu (como vimos anteriormente)
um artigo denominado O que é o Esclarecimento? com o objetivo de explicar que
essa nova forma de entendimento é a saída do homem de sua menoridade para a
maioridade racional, ou seja, a maturidade intelectual.

No ideal iluminista temos, então, um mundo ordenado, sólido, objetivo e


guiado pela razão que responde aos anseios mais caros para a humanidade. A
razão é, nesse sentido, um fim em si mesma, pois emancipa o sujeito de suas
mazelas, fortalecendo a ideia de ser humano, homem.

Já na Revolução Francesa é possível verificar o paradoxo nesse otimismo,


pois ao mesmo tempo que o movimento forjou a ideia de libertação, igualdade
e fraternidade, o elemento da barbárie, a guilhotina, foi usado para ceifar
milhares de vidas em nome da razão. Também, com as experiências da Primeira
e Segunda Guerras Mundiais, é perceptível como que elementos racionais
ajudaram a produzir a maior das formas de eliminação humana: o holocausto. É
nesse contexto que Max Horkheimer, ao escrever O Eclipse da Razão; Crítica da
razão Instrumental em 1947, procurará analisar o conceito de razão e verificar se
ele não incorreu em vícios.

Horkheimer (2000) afirma que o conceito de racionalidade é podre em sua


raiz. Sua doença está na ideia de que o sujeito racional deve dominar a natureza.

114
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

Isso significa que a razão deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um
instrumento de dominação, de poder. Sendo instrumento de poder, a razão
não é mais tida como objetivo de emancipar, mas por intermédio da técnica a
racionalidade é ofuscada pela cega e exacerbada fixação de produtividade. A
razão passa a ser ancilla administrationis (administração doméstica, empregada
da administração), pois renunciou a sua autonomia, e tornou-se um instrumento.

Horkheimer (2000) explicita que na sociedade industrial e midiática, que


instrumentaliza a razão, é preciso que a filosofia se volte para as vítimas desse
desastre. Pela ótica dessas vítimas, consideradas verdadeiros heróis, possa
iniciar o processo de cura da doença da racionalidade. Essas vítimas que
Horkheimer expõe são as pessoas dos campos de concentração.

Na mesma esteira de Horkheimer, Theodor Adorno (1995) sinaliza que


a crise da razão, com sua instrumentalização através da técnica e da ciência,
coisifica a consciência. Isso significa que as pessoas são coisificadas. Em uma
palestra ocorrida em 1969, intitulada Educação e Emancipação, Adorno diz que
para evitar Auschwitz é necessário que a razão seja direcionada como elemento
de crítica e análise social de emancipação das consciências para expurgar o
fetichismo provocado pela técnica, pelo sistema.

Outro teórico que estuda o fenômeno da crise da razão é Lyotard (1998).


Em sua obra A Condição Pós-Moderna ele verifica que num contexto de
instrumentalização da razão pelo poder há um enfraquecimento das metanarrativas
de legitimação dos dispositivos que fundamentam o saber científico e filosófico.
Segundo Lyotard (1998), a crença nos grandes relatos (como a ideia de sujeito
racional, a hermenêutica do sujeito, o ideal de trabalho etc.) foi corroída. A crise
do saber nas sociedades ocidentais está pautada numa imersão mercadológica
e produz um conhecimento voltado para manutenção do consumo. Os ideais
modernos parecem não mais responder aos anseios do mundo contemporâneo.
Lyotard (1998), chega a afirmar que no lugar daquela razão, que garantia
e assegurava o sujeito moderno, surge o vazio, quase que identificado com o
niilismo, que produziu uma onda de individualismo e busca interior.

É precisamente nesse vazio que o filósofo Gilles Lipovetsky (2005), em


sua obra A Era do Vazio trabalha também com a crise da razão. Para ele, foi
justamente o desencanto pela razão que provocou o deslocamento do sujeito não
mais direcionado por uma objetividade racional, mas agora é explorado o âmbito
das emoções. O vazio deixado pela razão é habitado pelos sentimentos, por isso,
Lipovetsky (2005), afirma que esta é a era do hiperconsumo, pois o mercado
explora os sentimentos das pessoas de forma exacerbada com o objetivo de
satisfazer o seu bem-estar pelo consumo. É a busca interior, Narciso não é mais
aquela figura fixa olhando a si mesmo no espelho, mas ele entra em órbita para si

115
Temas e teorias da Filosofia

mesmo. Eis o individualismo contemporâneo. Importante ressaltar que Lipovetsky


não vê a dissolução da ideia de sujeito cartesiano com pessimismo, Zygmunt
Bauman (2001), inclusive o critica por ter uma postura minimalista e não diante do
cenário apresentado, como fizeram outros pensadores como Horkheimer, Adorno
e Lyotard. No texto a seguir analisaremos a concepção de Gilles Lipovetsky,
denominada de hipermoderna. Veremos como o autor trabalha e o que restou
do sujeito cartesiano, que agora passa a ser o narcisista ou o homo psi. Nessa
análise, a crise da razão é a crise do indivíduo moderno.

PÓS-MODERNIDADE OU HIPERMODERNIDADE?
PENSANDO O SUJEITO CONTEMPORÂNEO SOB
AS ÓTICAS DE LIPOVETSKY E BAUMAN

LIPOVETSKY E A CONCEPÇÃO HIPERMODERNA


DE SUJEITO: O NARCISISTA

Se a modernidade era marcada pela ideia do indivíduo


autônomo, consciente dessa autonomia e protagonista do seu próprio
destino, a era atual leva ao extremo esse valor (CARDOSO, 2007),
produzindo uma nova personagem: o Narciso. Esse novo indivíduo
(homo psi) libera de forma intensa um amor por si mesmo, promove
uma deserção dos valores altruístas e acaba por instaurar um
processo de personalização, isolando-se em seu mundo subjetivo.
Na contemporaneidade, o hedonismo fundamentado no consumo
de massa torna-se o valor por excelência da cultura. O prazer e o
estímulo dos sentidos se tornam dominantes na vida comum. Essa
lógica hedonista é levada ao extremo, pois o homem contemporâneo
eleva exacerbadamente os valores da modernidade até seus mais
altos limites.

Assim, a pós-modernidade, lança o homem num infinito universo de


escolhas e promove de forma exacerbada o legado deixado pela
era moderna, mas essa euforia narcísica que toma o ser humano
como “senhor de si” e da natureza, acaba gerando uma crise de
identidade, pois não há mais referenciais, não há fundamento; na
pós-modernidade, o indivíduo “flutua sob o sol” sem rumo, esvaziado
de sentido. A pós-modernidade dissolveu o sujeito e inaugurou uma
época em que o mercado, seus produtos e serviços determinam a
vida das pessoas. O efeito disso é paradoxal, pois o “materialismo”

116
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

exacerbado das sociedades da abundância também tornou


possível a eclosão de uma cultura centrada na expansão subjetiva,
gerando um sujeito narcisista. O personagem pós-moderno forjado
pela sociedade consumista é o narcisista, caracterizado pela
dessubstancialização do sujeito. Com essa afirmação não se quer
dizer que o narcisismo é exclusividade de uma época. A ideia aqui
apontada é apenas uma derivação, um tipo de narciso desenvolvido
na pós-modernidade.

Caracterizando esse indivíduo, o jornal Le Monde publicou o


retrato falado do novo egoísta em ação. “Pragmatismo e cinismo.
Preocupações a curto prazo. Vida privada e lazer individual. Sem
religião, apolítico, amoral, naturista. Narcisista. Na pós-modernidade,
o narcisismo coincide com a deserção do indivíduo cidadão, que não
mais adere aos mitos e ideais de sua sociedade” (FERREIRA, 1991,
p. 101).

Lipovetsky vem dizer que esse sujeito está imerso, agora, num
deserto inédito que escapa das categorias niilistas ou apocalípticas.
O sujeito opera no vácuo, silenciando a existência cotidiana. Um
deserto paradoxal onde não há catástrofes ou tragédias e que
acabou por se identificar com o nada e a morte. As instituições,
os princípios absolutos esvaziam a tal ponto que não passam de
organismos desativados. Que ser ou que tipo de homem sobrevive
nesse ambiente? “O homo psi” (narciso).

Na era do espetacular, as antinomias duras, o verdadeiro e


o falso, o belo e o feio, o real e o ilusório, o sentido e o não-
sentido esmaecem, os antagonismos se tornam “flutuantes” e
começamos a compreender, sem ofender nossos metafísicos
e antimetafísicos, que hoje em dia é possível viver sem
finalidade e sem sentido, em sequências instantâneas, e isso
é uma novidade. “Qualquer sentido é melhor que nenhum
sentido” dizia Nietzsche, e nem mesmo isto ainda é verdade
hoje em dia, uma vez que a necessidade do sentido em si
mesma foi varrida e a existência indiferente ao sentido pode
desdobrar sem tragédia ou abismo, sem aspiração a novas
escalas de valores (LIPOVETSKY, 2005, p. 21).

“Ninguém está dando a mínima importância” (LIPOVETSKY, 2005,


p.19). Essa frase caracteriza como o vazio e em certa medida o
enfraquecimento das ideologias tiveram espaço na pós-modernidade,
porém parece que não trouxeram mais angústia, absurdo ou
pessimismo como esperavam os pessimistas. O que há, segundo
Lipovetsky, é um “afrouxamento pós-moderno”, não é uma tradução

117
Temas e teorias da Filosofia

de um deserto de revolta, gritos, o que reina é a indiferença. É nesse


ambiente de apatia e esvaziamento de sentido que nasce um sujeito
capaz de sobreviver no deserto. A pós-modernidade desenvolveu
Narciso. O sujeito não está mais orientado para o espaço público,
mas para si mesmo. Nesse sentido, o materialismo exacerbado
foi o que ajudou a tornar possível a grande expressão subjetiva. O
sujeito livre para escolher diante do universo de objetos oferecidos
no mercado e vivendo em uma “suavização” disciplinar tem o direito
de escolher o que lhe apraz segundo os seus desejos, desde que
eles não prejudiquem o outro.

Um grande impulso psíquico traduzido como “consumo de


consciência” cresce: ioga, expressão corporal, psicanálise, dinâmicas
de grupo e meditação transcendental. Tudo isso sintetiza esse
sujeito, o “homo psicologicus” obcecado por si mesmo. “A cultura
narcísica é a celebração da aparência física, o triunfo do espelho e o
culto da própria imagem” (PEREIRA, 2006, p. 3).

O esvaziamento do sujeito “permite uma radicalização da esfera


pública e assim uma adaptação funcional ao isolamento social”
(LIPOVETSKY, 2005, p. 37). Para sustentar essa lógica, é necessário
que o centro das atenções seja o Eu. Assim, o deserto social é
aproveitado como estratégia de sobrevivência.

O novo tipo de narcisismo não está estagnado. Olhando fixamente


sua imagem no espelho, o Narciso, discutido aqui, não é imobilizado,
contemplativo. Ele saiu, e se move em uma busca interminável de
si mesmo, num processo de flutuação “psi”. “Narciso se coloca em
órbita” (LIPOVETSKY, 2005, p. 37). Não se contentando em esvaziar
somente a esfera social, ele esvazia também o seu eu que flutua
sem direção, perde suas referências e sua unidade por excesso de
atenção.

As características de um sujeito determinado, forte, consciente de


si, controlador da sua vontade, agora parecem ofuscadas. Houve
uma grande dissolução daquele indivíduo guiado pela moderação
racional, pois agora ele entra num universo onde os impulsos
imperam ao máximo. A fraqueza da vontade chega ao seu mais alto
grau:

Trata-se da mesma dissolução do Eu que abre a nova ética


permissiva e hedonista: o esforço saiu da moda, tudo que
é constrangedor e disciplina austera desvalorizou-se em
benefício do culto ao desejo e de sua satisfação imediata,

118
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

tudo acontece como se a intenção fosse levar às últimas


consequências o diagnóstico de Nietzsche sobre a tendência
moderna de favorecer a fraqueza da vontade (LIPOVETSKY,
2005, p. 38).

O eu enfraquecido forjou uma sociedade atomizada e a consciência


“cool” anuncia a indiferença, porém “o enfraquecimento da vontade
não é catastrófico e nem prepara uma humanidade submissa
e alienada, ele não anuncia de modo algum a ascensão do
totalitarismo” (LIPOVETSKY, 2005, p. 30). É uma sociedade dirigida
do interior, e as escolhas dão o poder de decisão às pessoas. A
personalidade não pode ser mais imitativa e sim diferente, singular;
é um verdadeiro desprendimento do domínio do outro. É o processo
de personalização que liquefaz a identidade rígida do eu e suspende
o olhar do outro. O que Lipovetsky (2005, p. 40) quer deixar claro
é esse processo ou essa nova maneira de ver a pós-modernidade.
“A paixão narcisista não procede de uma alienação de uma unidade
perdida, não compensa uma falta de personalidade, mas sim, gera
um novo tipo de personalidade”. E de que é formado esse novo
tipo de personalidade? É composto de uma consciência nova,
indeterminada e flutuante. O eu está flutuando sem nenhuma fixação
ou referência numa velocidade de combinações.

O narcisista é um personagem entendido como preso a sua


intimidade e está sempre à procura dessa intimidade instantânea, de
muita excitação emocional, porém, sem envolvimento. O narcisista
é obcecado pela sua imagem, por isso sua aparência é sempre
valorizada e deve ser aceita pelos outros. Para isso, ele deve buscar
incessantemente a individualidade, pois a cultura do narcisismo
é uma cultura da sobrevivência que depende do espelho do outro
(GIDDENS, 2002).

O homem econômico do século XX deu lugar ao homem psicológico


ou narcisista, quando os sentimentos como a depressão, medo,
insegurança, vazio etc. aumentam sempre mais, por ser sem
limites, que vive em permanente estado de desejo, insatisfeito. “A
sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação”
(BAUMAN, 2007, p. 106). Uma imensa preocupação com o corpo
e sua perfeição estética angustia o sujeito contemporâneo. A idade,
as rugas, a obsessão pela saúde, a higiene, as ginásticas, a boa
alimentação, os esportes etc. tudo isso serve para demonstrar como
o narcisista vive à procura de bens e serviços que lhe garantam
beleza, sensualidade, popularidade, aparência física agradável e,

119
Temas e teorias da Filosofia

nessa esteira, o corpo também entra na lógica flutuante sem lugar


fixo, sempre em movimento.

Esse individualismo narcisista não acaba com as formas coletivas. O


que acontece é o seguinte: quando o indivíduo sai do seu isolamento
e engaja em ações coletivas, ele o faz por estratégia individualista,
os interesses particulares prevalecem sobre os sociais. Lipovetsky
não afirma que, com a sociedade hiperindividualista, findaram-
se as lutas sociais mesmo em meio ao individualismo. Existem
várias formas de engajamentos coletivos nesse tipo de sociedade.
A diferença está em não haver submissão a qualquer referencial
absoluto. A ação é livre das correntes tradicionais. Os princípios
modernos na contemporaneidade são readaptados para “uma
sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela
flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes
princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se
ao ritmo hipermoderno para não desaparecer” (LIPOVETSKY, 2004,
p. 26).

Nesse meio individualista, Narciso é frágil, fraco, incerto, flutuante,


vive sem sentido, porém consegue sobreviver num progresso
incessante das realidades individualistas e coletivas, subjacentes
ao código da subjetividade. Para muitos, esses indícios levam a
crer numa crise do sujeito em que as frustrações nos campos do
pensamento e da ética desacreditaram no indivíduo idealizado pela
modernidade.

FONTE: CRUZ, Daniel Nery da. Pós-modernidade ou


hipermodernidade? O sujeito contemporâneo sob a ótica de
Lipovetsky e Bauman. Revista Sapere aude, Belo Horizonte, v. 9, n.
18, p. 351-371, jul. - dez. 2018.

1 Com base nas análises de Gilles Lipovetsky sobre a era


contemporânea disserte sobre a visão positiva apresentada pelo
autor.

2 De acordo com o texto acima, como podemos identificar as


características do período moderno e do hipermoderno?

120
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO

A EDUCAÇÃO CONTRA A BARBÁRIE

No momento, refiro-me a uma outra questão. Penso que, além


desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie,
que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A
cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas,
não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais
importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo
ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E
como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto
foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não cumprimento
da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de
cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela
mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não
deveria existir.

Bem, na medida em que tais nexos, como o da falência da cultura,


a perpetuação socialmente impositiva da barbárie e este mecanismo
de deslocamento que há pouco descrevi, são levados de um modo
abrangente à consciência das pessoas, seguramente não se poderá
sem mais nem menos mudar esta situação, porém será possível
gerar um clima que é incomparavelmente mais favorável a uma
transformação do que o clima vigente ainda hoje na educação alemã.
Esta questão central para mim é decisiva; é a isto que me refiro com
a função do esclarecimento, e de maneira nenhuma à conversão
de todos os homens em seres inofensivos e passivos. Ao contrário:
esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente,
apenas uma forma da barbárie, na medida em que está pronta para
contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

Becker — Concordo inteiramente. Ainda mais quando eu temia nas


suas exposições iniciais que a desbarbarização deveria começar,
por assim dizer, com uma diminuição da agressão. O senhor já havia
respondido com a citação de Strindberg. Mas penso que precisamos
nos proteger de equívocos. Certamente o senhor conhece as
propostas um pouco surpreendentes de Konrad Lorenz, que
desenvolveu com suas exposições acerca da agressão o ponto de
vista de que, se quisermos preservar a paz mundial, será necessário
abrir novos campos às agressões dos homens.

121
Temas e teorias da Filosofia

E nessas considerações cabe, por exemplo, o campo esportivo há


pouco descrito pelo senhor ocupando o lugar da guerra a ser evitada.
Acredito que — por mais interessantes e estimulantes que sejam
as observações de Konrad Lorenz acerca das agressões entre os
animais — a conclusão a que se chega nestes termos, ou seja, a
recomendação de agressões de alívio, é muito perigosa.

Adorno — Ele conclui assim por razões de darwinismo social.


Também a mim ele parece extraordinariamente perigoso, porque
implica de uma certa maneira reduzir os homens ao estado de seres
naturais.
Becker — Não creio que esta seja a opinião de Lorenz.
Adorno — Não, não é, mas neste modo de pensar, como também
no de Portmann, seguramente existem certas tendências desse tipo.
Com a educação contra a barbárie no fundo não pretendo nada além
de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por
exemplo, agride um colega com rudeza ou se comporta de um modo
brutal com uma moça; quero que por meio do sistema educacional
as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à
violência física.
Becker — Quanto à aversão eu seria cuidadoso...
Adorno — Então pergunto se não existem situações em que sem
violência não é possível. Eu diria que neste caso trata-se de uma
sutileza. Mas creio que antes de falarmos sobre as exceções, sobre
a dialética existente quando em certas circunstâncias a antibarbárie
requer a barbárie, é preciso haver clareza de que até hoje ainda
não despertou nas pessoas a vergonha acerca da rudeza existente
no princípio da cultura. E que, somente quando formos exitosos no
despertar desta vergonha, de maneira que, qualquer pessoa se torne
incapaz de tolerar brutalidades dos outros, só então será possível
falar do resto.
Becker — Bem, a palavra “vergonha” é muito mais do meu agrado, do
que a palavra anterior, “aversão”. Existe uma literatura ampla a este
respeito que — como é do seu conhecimento — conduz a luta contra
a barbárie por meio de uma forma de descrição da barbárie que pode
ser apreciada. E na aversão exagerada frente à barbárie pode haver
elementos análogos. Nestes termos considero mais procedente a
sua afirmação de que é preciso gerar uma vergonha. Além disto, eu
diria que a educação (e por isto o termo “esclarecimento” talvez ainda
precise de esclarecimentos) nessas questões deveria se dar com
as crianças ainda bem pequenas. É necessário que determinados

122
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

desenvolvimentos ocorram num período etário — como diríamos


hoje — da pré-escola, onde não se verificam apenas adequações
sociais decisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também
ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas. E é preciso
reconhecer com bastante franqueza que em primeiro lugar sabemos
pouco acerca de todo este processo de socialização, e também ainda
temos pouco conhecimento cientificamente comprovado acerca de
que ações têm quais efeitos nesta idade. No fundo, o importante é
deixar as agressões se expressarem nesta idade, mas ao mesmo
tempo iniciar a sua elaboração. Mas é isto, precisamente, que coloca
as dificuldades maiores ao educador, deixando assim, bem claro, que
no referente a esse problema a formação de educadores encontra-
se engatinhando, se é que chegou a tanto.
Adorno — Como alguém que pensa psicologicamente, isto parece-
me ser quase uma obviedade. Isto deve-se a que a perpetuação da
barbárie na educação é mediada essencialmente pelo princípio da
autoridade, que se encontra nesta cultura ela própria. A tolerância
frente às agressões, colocada com muita razão pelo senhor como
pressuposto para que as agressões renunciem a seu caráter bárbaro,
pressupõe por sua vez a renúncia ao comportamento autoritário e
à formação de um superego rigoroso, estável e ao mesmo tempo
exteriorizado. Por isto a dissolução de qualquer tipo de autoridade
não esclarecida, principalmente na primeira infância, constitui um
dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização. Mas
eu seria o último a minimizar essas questões, pois os pais com que
temos de lidar são, por sua vez, também produtos desta cultura e
são tão bárbaros como o desta cultura. O direito de punição continua
sabidamente a ser, em terras alemãs, um recurso sagrado, de que as
pessoas dificilmente abrem mão, tal como a pena de morte e outros
dispositivos igualmente bárbaros.
Becker — Se concordamos acerca de como é decisiva a educação
na primeira infância, então provavelmente também concordamos em
relação a que a autoridade esclarecida, tal como o senhor a formula,
não representa uma substituição da autoridade pelo esclarecimento,
mas que neste âmbito e justamente na primeira infância precisa
haver também manifestações de autoridade.
Adorno — Determinadas manifestações de autoridade, que
assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas,
não se originam do princípio da violência, mas são conscientes, e,
sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para
a própria criança; quando os pais “dão uma palmada” na criança

123
Temas e teorias da Filosofia

porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento


de autoridade que contribui para a desbarbarização.

FONTE: ADORNO, T.W. Educação e Emancipação. Tradução e


Introdução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995, p.
163-166.

1 No texto acima, Adorno fala do caráter autoritário, da Educação


Após Auschwitz - Barbárie e Esclarecimento. Leia atentamente
os trechos sobre barbárie e autoridade e construa uma análise
crítica recorrendo às partes desse e de outros textos em que o
autor trata sobre a relação das pessoas que através da dor são
ensinadas a não atentar mais para a dor e, portanto, podem
infligir dor a outros.

2 Para Adorno Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará


existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as
condições que geram esta regressão. Pesquise e responda o
que o autor considera que deve ser realizado para evitar eventos
como o holocausto e qual o papel da filosofia para a emancipação
do homem?

6 A HOLÍSTICA E A COMPREENSÃO
DO TODO
A palavra holismo vem do grego holos, significando o todo ou a explicação
de que as partes não podem ser consideradas separadamente, mas devem ser
consideradas como um todo, conectadas em um sistema. Muitos são os teóricos
que tratam direta ou indiretamente com a questão do todo. Na antiguidade,
podemos destacar Parmênides (quando afirma a unidade superior do ser, ou
seja, os opostos são "ser" e o ser é o todo, o presente), os estoicos (com a
sincronia de tudo entre as emoções e a natureza), Aristóteles, em sua Metafísica

124
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

que já dizia que “o todo é maior do que a simples soma das suas partes”, na
modernidade Espinoza também avalia e defende que uma coisa só pode ser
conhecida quando a inteligência percebe como ela encontra seu lugar necessário
na totalidade das coisas. Por ser uma temática muito ampla, inclusive com muitos
outros pensadores que não citamos aqui, focaremos nosso estudo sobre uma
teoria contemporânea: a Gestalt. O motivo dessa nossa empreitada é justamente
pelo fato de que essa vertente se posiciona contra uma corrente filosófica que
já trabalhamos aqui, a saber: o empirismo. Também contra o intelectualismo. A
teoria da Gestalt, ou psicologia da forma, surge no início do século passado e
significa figura estruturada ou forma. O filósofo austríaco Cristian von Ehrenfels
foi o primeiro a apresentar os seus princípios básicos.

Segundo Chauí (2000, p. 152), tanto a fenomenologia de Husserl e a


Psicologia da Forma ou teoria da Gestalt, ambas são “contra o empirismo, que a
sensação não é reflexo pontual ou uma resposta físico-fisiológica a um estímulo
externo também pontual”. Contra o intelectualismo, que a percepção não é uma
atividade sintética feita pelo pensamento sobre as sensações.

O que há em comum entre empiristas e intelectualistas (mesmo com suas


discordâncias) é o julgar a sensação como uma relação de causalidade e efeito
inerentes ao nosso aparato corporal e às coisas. De um lado, temos as coisas com
suas qualidades, e do outro, nossos sentidos com seus receptores. Essas duas
esferas são tidas cada qual de forma isolada e justapostas, por isso a atividade
perceptiva era vista como a junção ou o somatório das partes, sintetizando o que
seria percebido.

Nesse sentido, fenomenologia e Gestalt mostram justamente o contrário,


sensações e percepções estão interligadas, pois sentimos e percebemos
as formas ou a totalidade das estruturas que são dotadas de significados e
sentidos. Podemos, por exemplo, perceber e sentir uma mesa, suas partes,
sua cor, tamanho, odor, figura, enfim, tudo ao mesmo tempo. A mesa não é tida
isoladamente em suas partes como o empirista poderia supor, também não é
um objeto não determinado que meu pensamento ainda dará sentido quando
comunicar às minhas sensações, como formulam os intelectualistas, portanto, a
cadeira não é nem um feixe de estímulos exteriores nem uma ideia, mas uma
cadeira percebida. Por isso a Gestalt sustenta que figura e fundo mostram nossas
percepções de forma totalizante, numa estrutura e não em sensações parciais.

Se a percepção fosse uma soma de sensações parciais e


se cada sensação dependesse dos estímulos diretos que as
coisas produzissem em nossos órgãos dos sentidos, então
teríamos que ver como sendo de mesmo tamanho duas linhas
que são objetivamente de mesmo tamanho. Mas a experiência
mostra que nós as percebemos como formas ou totalidades
diferentes (CHAUÍ, 2000, p. 153).

125
Temas e teorias da Filosofia

A seguir, temos um texto adaptado que esclarece bem os princípios da


Gestalt e quais suas principais bases teóricas. Após, apresentamos outro de Jean
William Fritz Piaget que trata das estruturas intelectuais. Vejamos:

A TEORIA DA GESTALT

A PSICOLOGIA DA FORMA

A Psicologia da Gestalt é uma das tendências teóricas mais


coerentes e coesas da história da Psicologia. Seus articuladores
se preocuparam em construir não só uma teoria consistente, mas
também uma base metodológica forte, que garantisse a consistência
teórica. Gestalt é um termo alemão de difícil tradução. O termo mais
próximo em português seria forma ou configuração, que não é muito
utilizado por não corresponder exatamente ao seu real significado em
Psicologia. No final do século passado muitos estudiosos procuravam
compreender o fenômeno psicológico em seus aspectos naturais
(principalmente no sentido da mensurabilidade). A Psicofísica estava
em voga. Ernst Mach (1838-1916), físico, e Chrinstiam von Ehrenfels
(1859-1932), filósofo e psicólogo, desenvolviam uma psicofísica com
estudos sobre as sensações (o dado psicológico) de espaço-forma
e tempo-forma (o dado físico) e podem ser considerados como os
mais diretos antecessores da Psicologia da Gestalt. Max Wertheimer,
Wolfgang Köhler e Kurt Koffka, baseados nos estudos psicofísicos
que relacionaram a forma e sua percepção, construíram as bases de
uma teoria eminentemente psicológica. Eles iniciaram seus estudos
pela percepção e sensação do movimento.

Os Gestaltistas estavam preocupados em compreender quais os


processos psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo
físico é percebido pelo sujeito com uma forma diferente do que ele é na
realidade. É o caso do cinema. Uma fita cinematográfica é composta de
fotogramas com imagens estáticas. O movimento que vemos na tela é
uma ilusão de ótica causada pelo fenômeno da pós-imagem retiniana
(qualquer imagem que vemos demora um pouco para se ‘apagar’ em
nossa retina). As imagens vão se sobrepondo em nossa retina e o que
percebemos é um movimento, mas o que de fato é projetado na tela é
uma fotografia estática, tal como uma sequência de slides.

A PERCEPÇÃO

A percepção é o ponto de partida e um dos temas centrais dessa


126
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

teoria. Os experimentos com a percepção levaram os gestaltistas ao


questionamento da psicologia associacionista. O Behaviorismo, dentro
de sua preocupação com a objetividade, estuda o comportamento
através da relação estímulo-resposta, procurando isolar um estímulo
unitário que corresponderia a uma dada resposta e desprezando
os conteúdos da consciência, pela impossibilidade de controlar
cientificamente essas variáveis. A Gestalt entende que é de suma
importância a disposição em que são apresentados à percepção os
elementos unitários que compõem o todo. Uma de suas formulações
bastante conhecidas é a de que “o todo é diferente da soma das
partes”. Ou seja, a percepção que temos de um todo não é o resultado
de um processo de simples adição das partes que o compõem. A
indissociabilidade da parte em relação ao todo permite que quando
vemos o fragmento de um objeto ocorra uma tendência à restauração
do equilíbrio da forma, proporcionando assim o entendimento do que
foi percebido. Esse fenômeno perceptivo é norteado pela busca de
fechamento, simetria e regularidade dos pontos que compõem uma
figura (objeto). Rudolf Arnheim dá um bom exemplo da tendência à
restauração do equilíbrio na relação parte-todo: “De que modo o sentido
da visão se apodera da forma? Nenhuma pessoa dotada de um sistema
nervoso normal apreende a forma alinhavando os retalhos da cópia de
suas partes [...] o sentido normal da visão apreende sempre um padrão
global”. Os fenômenos perceptivos que encontramos nas figuras a
seguir são explicados pelos psicólogos da Gestalt como sendo regidos
pela lei básica da percepção visual: qualquer padrão de estímulo tende
a ser visto de tal modo que a estrutura resultante é tão simples quanto
as condições dadas permitem.

127
Temas e teorias da Filosofia

Percebemos a Figura 1 como um quadrado e não como uma figura


inclinada ou um perfil, como na Figura 2, apesar dessas últimas
também conterem os quatro pontos. Se forem acrescentados mais
quatro pontos à Figura 1, o padrão mudará e então perceberemos
um círculo na Figura 3. Na Figura 4 é possível ver círculos ou
quadrados brancos nos centros dos traços em forma de cruz, mesmo
não havendo vestígios de seus contornos.

A BOA FORMA

A partir desses fenômenos da percepção, a Gestalt procura


explicar como chegamos a compreender aquilo que percebemos.
Se os elementos percebidos não apresentam equilíbrio, simetria,
estabilidade, simplicidade e regularidade, não será possível alcançar
a boa forma. O elemento que objetivamos compreender deve ser
apresentado em seus aspectos básicos, de tal maneira que a
tendência à boa forma conduza ao entendimento. Essa formulação
representa uma das consequências pedagógicas da psicologia da
Gestalt. O exemplo da Figura 5 ilustra a noção de boa forma. Temos
a convicção de que o segmento de reta a é maior que o segmento
de reta b, mas a realidade é que ambos têm o mesmo comprimento,
e, portanto, estamos diante de uma ilusão de ótica provocada por
um efeito de campo. Para tirar qualquer dúvida você pode medir as
retas ou desenhar inicialmente duas retas paralelas com o mesmo
comprimento e posteriormente acrescentar os demais traços que
constituem a figura. Faça o teste! É importante destacar que depois
de nos certificarmos de que se trata de uma ilusão, mesmo assim
continuamos sendo iludidos.

A maneira como estão distribuídos os elementos que compõem


as duas figuras não resultam em uma configuração com equilíbrio,
simetria, estabilidade, regularidade e simplicidade suficientes para
garantir a boa forma, ou seja, nesse caso as leis que comandam o

128
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

funcionamento da percepção nos impedem de perceber a realidade


tal qual ela é. Em outros casos, mais favoráveis, são essas mesmas
leis perceptivas que nos permitem compreender a realidade. A
tendência da percepção em buscar a boa forma permitirá a relação
figura-fundo. Quanto mais clara estiver a forma (boa forma), mais
clara será a separação entre figura e fundo. Quando isso não ocorre,
torna-se difícil distinguir o que é figura e o que é fundo, como é o caso
da Figura 6. Nessa figura ambígua o que é figura em um momento
torna-se fundo quando logo a seguir centramos o foco da percepção
no outro aspecto. É importante destacar que não é possível ver a
taça e os perfis ao mesmo tempo.

CAMPO PSICOLÓGICO

O campo psicológico é entendido como um campo de forças que atua


na percepção, nos levando a procurar a boa forma. Figurativamente
podemos relacioná-lo a um campo magnético criado por um imã (a
força de atração e repulsão). Esse campo de força psicológico tem
uma tendência que garante a busca da melhor forma possível em
situações que não estão muito estruturadas. Esse processo ocorre
de acordo com os seguintes princípios:

129
Temas e teorias da Filosofia

INSIGHT

A psicologia da Gestalt entende a aprendizagem como uma


decorrência da forma como as partes estão organizadas no todo.
As teorias associacionistas entendem que a aprendizagem ocorre
através da associação de elementos que anteriormente estavam
isolados e, assim, por um processo aditivo, passa-se de um
conhecimento simples a um complexo. Os métodos de alfabetização
podem nos auxiliar a pensar algumas questões relativas a diferentes
maneiras de conceber a aprendizagem. Os chamados métodos
sintéticos entendem que se deve inicialmente ensinar a criança
a nomear, grafar e reproduzir o valor sonoro de todas as letras

130
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

(elementos mais simples) e, depois disso, ela estará apta a associar


as letras entre si para formar sílabas. Na sequência ela associará
sílabas entre si para formar palavras e finalmente formará orações.
Os chamados métodos analíticos seguem um caminho exatamente
oposto, pois primeiramente é apresentado o todo (palavra, frase ou
texto), enquanto unidade de significação, e somente após partem
para o exame das partes e das relações que elas mantêm entre si
para formarem esse todo. Quanto à questão do insight, podemos
dizer que nem sempre as situações vividas por nós apresentam-
se de forma clara que permitam uma compreensão imediata.
Essas situações dificultam a aprendizagem porque não permitem
uma definição da figura-fundo, impedindo a relação parte-todo.
Acontece, às vezes, de estarmos olhando uma figura ou estarmos
pensando em algo que nos parece bastante obscuro e, de repente,
sem que tenhamos tido qualquer processo de compreensão aditivo
(somando as partes mais simples), a relação figura-fundo elucida-se.
A esse fenômeno é dado o nome de insight. O termo designa uma
compreensão imediata e súbita.

FONTE: BOCK, Ana Maria. Psicologias: uma introdução ao estudo


de psicologia. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 50-57.

A INTELIGÊNCIA E A PERCEPÇÃO

A percepção é o conhecimento que temos dos objetos ou dos


movimentos por contato direto e atual. [...] Segundo a Gestalt, as
estruturas intelectuais preexistem no todo ou em parte, desde o
primeiro momento, sob a forma de organizações comuns à percepção
e ao pensamento. Essa teoria descreve as leis da estruturação do
conjunto que regem tanto a percepção, a motricidade e as funções
elementares, como o próprio raciocínio e, particularmente, o
silogismo (Wertheimer). [...] A hipótese de uma relação estrita entre a
percepção e a inteligência foi sustentada, em todos os tempos, por
alguns e rejeitada por outros. Somente no século passado os autores
iniciaram a busca por apoio experimental para suas teses, sendo que
anteriormente inúmeros filósofos refletiram sobre esta questão. [...]
Hering (respondendo a Helmholtz) afirmava que a intervenção do
conhecimento intelectual em nada modificava uma percepção.

131
Temas e teorias da Filosofia

Experimentamos a mesma ilusão de ótica mesmo depois de


conhecer os valores objetivos dos dados percebidos. Assim concluía
que o raciocínio não intervém na percepção. [...] Von Ehrenfels
descobriu, em 1891, as qualidades perceptivas do conjunto, tais
como a de certa melodia que se reconhece, embora uma transposição
modifique todas as notas (não podendo nenhuma sensação
elementar permanecer a mesma). [...] Podemos esperar, segundo a
escola de Berlim, uma explicação acerca da inteligência a partir das
estruturas perceptivas, ao invés de fazer intervir, de maneira
incompreensível, o raciocínio na percepção como tal. [...] A teoria da
forma renovou a posição de um grande número de problemas e
sobretudo forneceu uma teoria completa sobre a inteligência que
permanecerá, mesmo para os seus adversários, um modelo de
interpretação psicológica coerente. A ideia central da teoria da forma
afirma que os sistemas mentais jamais se constituem pela síntese ou
pela associação de elementos, dados em estado isolado, antes de
sua reunião, mas consistem sempre em totalidades organizadas,
desde o início, sob uma forma ou estrutura de conjunto. Assim, uma
percepção não é mais síntese das sensações prévias: ela é regida
em todos os níveis por um campo, cujos elementos são
interdependentes pelo mesmo fato de serem percebidos em
conjunto. Um só ponto negro, por exemplo, visto numa grande folha
de papel, não seria percebido como elemento isolado, embora único,
conquanto se destaque como caráter de figura sobre um fundo
constituído pelo papel, e pelo fato de que esta relação, figura x fundo,
supõe a organização do campo visual inteiro. Isto é tanto mais certo
quando, a rigor, poderíamos ter visto a folha, como o objeto (a figura)
e o ponto negro, como um buraco, isto é, como a única parte visível
do fundo. Por que então preferimos o primeiro modo de percepção?
E por que se em vez de um ponto, víssemos três ou quatro bem
próximos, não poderíamos reuni-los em forma virtual de triângulos
ou quadriláteros? Porque os elementos percebidos em um mesmo
campo são, imediatamente, ligados em estruturas de conjunto,
obedecendo a leis precisas, que são as leis de organização. Estas
leis de organização que regem todas as relações de um campo são,
na hipótese gestaltista, apenas leis de equilíbrio, regendo, ao mesmo
tempo, as correntes nervosas, determinadas pelo contato psíquico
com os objetos exteriores, e pelos próprios objetos, reunidos num
circuito total, abarcando, pois, simultaneamente, o organismo e seu
meio próximo. Assim, deste ponto de vista um campo perceptivo (ou
motor etc.) é comparável a um campo de forças (eletromagnéticas
etc.) e é regido por princípios análogos de mínimum, de mínima ação
etc. Em presença de múltiplos elementos imprimimos-lhe, então,

132
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

uma forma de conjunto que não é uma forma qualquer, mas a mais
simples possível que exprime a estrutura de campo; serão, pois, as
regras de simplicidade, de regularidade, de simetria, de proximidade
etc. as que determinarão a forma percebida. Daí uma lei essencial
chamada de prenhez de todas as formas possíveis, a que se impõe
é sempre melhor, a melhor equilibrada. Demais, uma boa forma é
sempre suscetível de ser transposta, exatamente como a melodia,
da qual mudamos todas as notas. Mas esta transposição, que
demonstra a independência do todo em relação às partes, explica-se
também pelas leis de equilíbrio: as relações são as mesmas entre os
novos elementos que terminam na mesma forma de conjunto que as
relações entre elementos anteriores, não graças a um ato de
comparação, mas a uma reformação do equilíbrio, exatamente como
a água de um canal, que recobra a mesma forma horizontal, mas em
níveis diferentes, depois da abertura de cada comporta. A
caracterização dessas boas-formas, bem como o estudo dessas
transposições provocaram inúmeros trabalhos experimentais, de
verdadeiro interesse. O que se deve notar, antes de tudo, como
essencial à teoria, é que as leis de organização são concebidas
como independentes do desenvolvimento, e, por conseguinte,
comuns a qualquer nível. Fácil é de perceber esta afirmação, se a
limitarmos à organização funcional ou equilíbrio sincrônico dos
comportamentos, pois a necessidade desse último rege os níveis em
qualquer grau. [...] Assim, é que os psicólogos da Forma se
esforçaram, acumulando impressionante material, para mostrar que
as estruturas perceptivas são as mesmas na criança e no adulto e,
sobretudo, nos vertebrados de qualquer categoria. [...] Três
aplicações da teoria da forma ao estudo da inteligência devem ser
especialmente consideradas: a de Köhler, sobre a inteligência
sensório-motora, a de Wertheimer, sobre a estrutura do silogismo, e
a de Duncker sobre o ato da inteligência em geral. Para Köhler a
inteligência aparece quando a percepção não se prolonga
diretamente em movimentos suscetíveis de assegurar a conquista
do objetivo. Um chimpanzé, na sua jaula, procura alcançar uma fruta
que se encontra fora do alcance de sua mão; um objeto intermediário
é então necessário, e o seu emprego definirá a complicação própria
da ação inteligente. Em que consiste esta última? Se um bastão for
posto à disposição do símio, mas numa posição qualquer, será visto
como um objeto indiferente. Colocado paralelamente ao braço
poderá ser subitamente percebido como possível prolongamento da
mão. Até então sem significação, o bastão passa a tê-la, pelo fato de
sua incorporação na estrutura do conjunto. O campo, pois, passará a
ser reestruturado e essas súbitas reestruturações caracterizam,

133
Temas e teorias da Filosofia

segundo Köhler, o ato da inteligência: a passagem de uma estrutura


pior para uma melhor constitui a essência da compreensão, simples
continuação, consequentemente, mas mediata ou indireta da própria
percepção. Este mesmo princípio explicativo encontramos em
Wertheimer, na sua interpretação gestaltista do silogismo. A premissa
maior é uma forma comparável a uma estrutura perceptiva. Todos os
homens constituem um conjunto que se representa centrado no
interior do conjunto de mortais. A premissa menor procede do mesmo
modo: Sócrates é um indivíduo centrado no círculo de homens. A
operação que tirará de tais premissas a conclusão: portanto,
Sócrates é mortal, vem, consequentemente, apenas estruturar o
conjunto, fazendo desaparecer o círculo intermediário (homens),
depois de tê-lo situado com seu conteúdo no grande círculo (os
mortais). O raciocínio, é pois, uma recentração: Sócrates é como
descentrado da classe de homens para tornar a recentrar-se na
classe dos mortais. O silogismo depende assim da organização geral
das estruturas. [...] Finalmente, Duncker estuda as relações dessas
compreensões bruscas (Einsicht, Insight ou reestruração inteligente)
com a experiência, para dar o tiro de misericórdia no empirismo
associacionista, que a noção de Gestalt contradiz desde o princípio.
Ao analisar os diversos problemas da inteligência ele conclui que em
todos os domínios a experiência adquirida desempenha um papel
somente secundário no raciocínio. A experiência não tem significação
para o pensamento, senão em função da organização atual. A
estrutura do campo presente determina os possíveis apelos às
experiências passadas, ora tornando-as inúteis, ora disciplinando
uma evocação e uma utilização das recordações. O raciocínio é,
assim, um combate que forja suas próprias armas, e tudo se explica
por leis de organização, independentes da história do indivíduo,
assegurando, no total, uma unidade profunda das estruturações do
todo nível, desde as formas perceptivas elementares as suas mais
altas formas de pensamento [...].

FONTE: Fragmentos do capítulo 3 de: PIAGET, Jean. Psicologia


da inteligência. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1958. pág. 83-
92.; Adaptado por: UFRGS - FACED - Psicologia da Educação I -
Professor Paulo Francisco Slomp - slomp@ufrgs.br http://www.ufrgs.
br/psicoeduc

134
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

7 A CONSCIÊNCIA: ENTRE A
HERMENÊUTICA E FENOMENOLOGIA
Edmund Husserl (1859-1938), principal representante da corrente
fenomenológica, argumentava sobre importância das próprias coisas na
constituição na relação de conhecimento, daí o lema da fenomenologia: “De volta
às coisas mesmas”.

De modo geral, podemos dizer que a fenomenologia funda a filosofia


contemporânea, por isso é necessário o entendimento das três principais
correntes filosóficas anteriores que tratam sobre o problema do conhecimento,
ou seja, da relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível para a
compreensão da proposta fenomenológica de Husserl. Temos as três vertentes:

1. Realismo: vertente que sustenta o primado do objeto, sendo a representação


que realizada esta ligação aos próprios objetos, as coisas que são apreendidas
e impressas na mente. Nessa corrente, o conhecimento tem como base o
próprio objeto.
2. O idealismo: tem como base o próprio sujeito, ou seja, a mente ou as ideias
estabelecem o entendimento como correspondência que se inicia nas ideias
chegando às coisas.
3. A filosofia de Kant: entende que o conhecimento se dá na relação sujeito e
objeto, mas não mais com a disputa entre essas duas esferas, avalia dessa
forma a contribuição que cada parte oferece para o conhecimento.

Nessa terceira formulação temos uma síntese das duas esferas básicas,
forjando o próprio conhecimento. O conhecimento é pensado enquanto síntese,
formulado pelo próprio sujeito, com caráter formal, instituindo mecanismos lógicos
que estão presentes no aparato cognitivo. Sem o sujeito, o conhecimento não
seria possível, por isso, ele conhece o fenômeno, não a essência das coisas. O
fenômeno é aquilo que aparece ao homem, não sendo realidade em si mesmo. O
conhecimento do fenômeno se dá por uma estrutura formal e subjetiva implícita
no sujeito. Kant chama isso de elementos transcendentais do conhecimento,
ou os elementos a priori do entendimento. Isso significa que antes de qualquer
experiência a realidade é organizada no nosso aparato cognitivo. Todos os objetos
estão correlacionados com o sujeito que o conhece por meio da representação,
ou seja, na forma como os objetos são apresentados a nós em consonância com
a estrutura da nossa faculdade mental, nossas condições subjetivas.

Nessa relação sujeito e objeto o aprendizado pode ser interpretado como


uma assimilação das coisas pelo sujeito. Nesse entendimento as coisas

135
Temas e teorias da Filosofia

parecem transferidas da realidade ou do mundo para a consciência, tendo


como consequência a sucção do objeto pelo sujeito. Agora já podemos falar da
fenomenologia propriamente dita. É nesse ato de sugar os objetos pelo sujeito
que Husserl (1986), percebe o perigo que a teoria kantiana carrega, pois, a
relação sujeito e objeto, apresentada por essa vertente, desequilibra o modo
de conhecimento, no sentido de que as coisas estariam perdendo sua própria
realidade. Isso significa que as coisas perdem sua autonomia. Por isso a proposta
de Husserl de voltar às coisas mesmas, a importância delas para a estrutura de
relação do conhecimento. Sua tentativa é de dar autenticidade ao modo como o
processo do conhecer e sua relação sujeito e objeto é apresentado.

Husserl (1986), encontra um sujeito carregado de projeções que afeta as


coisas. Tais projeções recebem uma carga de ordem lógica, psicológica, de
hábitos, costumes, social etc. O sujeito faz toda essa projeção no mundo e depois
apreende esse mesmo mundo, ou seja, as próprias coisas projetas, contaminadas
pelo sujeito. Com o mundo contaminado, Husserl (1986), alerta que recolhemos
dele as coisas que nós mesmos colocamos, com isso a realidade fica submissa
com essa forma de conhecimento. Para escapar disso é necessário realizar
uma separação dessa carga naturalista, e posteriormente reconstruir o modo
como a consciência se relaciona com as coisas. Tal processo é conhecido como
purificação.

Na purificação posso pensar o processo de conhecimento desvinculado das


propostas realistas ou idealistas, isso significa que, me afastando da contaminação
das coisas pelo sujeito, posso redefinir a relação de outra forma. É justamente
isso que Husserl quer superar: a competição sujeito e objeto. Essa disputa não é
boa para explicar a nossa relação com o mundo. Husserl encontra o equilíbrio ao
verificar que nessa purificação há o óbvio: quando falo de consciência é sempre
relacionada à consciência de alguma coisa.

Ao declarar que a consciência é consciência de alguma coisa, isso já é uma


relação, ou seja, a consciência em si mesmo sempre reporta a alguma coisa,
defini-la já é uma consideração nessa forma de pensar. A consciência já é relação
porque ela não é considerada uma coisa, ou algo que se opõe a outras coisas,
ela se apresenta como um modo de ver ou um visar as coisas, por isso o sujeito
não pode ser considerado uma substância porque a consciência é apenas uma
maneira de olhar.

Aprender seria, então, essa forma de visar, não correndo mais o risco de
cairmos naquele modo em que as coisas são tragadas pela consciência. Temos
assim, a consciência como movimento de olhar e as coisas para que sejam visadas
pela consciência precisam que tenham autonomia. A isso, esse modo de visar
as coisas pela consciência, Husserl (1986), chama de intencionalidade. Afirmar

136
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

que tenho consciência de alguma coisa não é o mesmo que considerar minha
posse, mas que esse “de” me deixa consciente que a coisa permanece exterior a
mim. Essa autonomia nos garante que as coisas estão lá em sua solidez. Husserl
alerta que considerar a apreensão do conhecimento fora dessa concepção leva
ao psicologismo, que confunde a mente com o objeto do conhecimento.

Outra teoria que procura debater o problema do conhecimento (a partir do


texto) ficou conhecida através do círculo hermenêutico ou hermenêutica. Seu
principal representante é Hans Georg Gadamer (1900-2002). Gadamer publica
em 1997 obra Verdade e Método. Nela ele discute as principais querelas da
filosofia hermenêutica ao partir de textos com sentido e a interpretação realizada
pelo intérprete, que ao aproximar-se dos escritos encontra-se com a mente
semelhante a uma folha em branco.

O texto e a sua pré-compreensão são avaliados pelo intérprete com certas


expectativas que originam justamente de sua pré-compreensão. A etapa seguinte
do hermenêutico é a elaboração e revisão contínua, ou seja, fundamentado na
imersão do texto ulteriormente. Com esse primeiro esboço elaborado temos que
seus resultados são mais ou menos justos ou não, adequados ou não.

Eis que temos um problema que é o de saber se o esboço primeiro do texto


é realmente adequado, Gadamer (1998), explica que é a análise posterior que
garantirá se o esboço é correto ou não, se há uma correspondência ao que é dito
no texto. O que está em jogo é o texto e sua interpretação, esta pode mostrar-se
contraposta ao texto, havendo um choque, por isso o intérprete deve realizar um
segundo esboço e conseguinte uma outra interpretação para verificar se é ou
não adequada em relação ao texto e ao contexto. Gadamer (1998), salienta que
essa tarefa é infinita, sempre haverá um novo esboço e uma nova interpretação,
pois é tarefa do hermeneuta estar sempre atento às novas interpretações. Pode
acontecer, por exemplo, que uma interpretação pode ser melhor interpretada, ou
mesmo aquela anterior estiver incorreta e inadequada precisar ser revista. Mesmo
assim, a hermenêutica é possível, pois a cada período da história e de acordo
com o que o intérprete vive e sabe não pode haver exclusões de novos fatos que
podem modificar o sentido e automaticamente modificando também a partir de
interpretações mais adequadas.

Gadamer (1998), sinaliza que no processo de elaboração do texto aparece o


que ele chama de alteridade do texto, em suas palavras:

quem quiser compreender um texto deve estar pronto a deixar


que ele lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência
educada hermeneuticamente deve ser preliminarmente
sensível à alteridade do texto. Essa sensibilidade não
pressupõe 'neutralidade' objetiva nem esquecimento de si

137
Temas e teorias da Filosofia

mesmo, mas implica numa precisa tomada de consciência


das próprias pressuposições e dos próprios pré-juízos [...]
(GADAMER, 1998, p. 631).

É destaque o que Gadamer (1998), sinaliza como “consciência educada


hermeneuticamente”. É a partir desse fato que é possível a liberdade do próprio
texto, pois o intérprete ao se voltar para o texto, o escuta e dialoga com ele, a fala
o direciona à escuta, fase importante para que seja proposto um sentido, e após,
outro sentido mais adequado e melhor explicado do que o anterior. Esse processo
dá mais credibilidade e fará com que o texto apareça sempre mais como aquilo
que realmente é por sua alteridade. Gadamer (1998), quer demonstrar que o
texto tem vida autônoma e que o autor de texto é ocasional. O texto, em sua
autonomia, produz efeitos na história posterior e o autor não tem domínio sobre
esses acontecimentos nem pode prever seus impactos.

UMA IDEIA FUNDAMENTAL DA FENOMENOLOGIA


DE HUSSERL: A INTENCIONALIDADE

“Ele comia-a com os olhos”. Esta frase e muitos outros


sinais indicam suficiente a ilusão comum ao realismo, segundo
à qual conhecer é comer. A filosofia francesa, após cem anos de
academismo, ainda está nisso. Todos nós lemos Brunschvicg,
Lalande e Meyerson, todos acreditamos que o Espírito-Aranha atraía
as coisas para a teia, cobria-as com uma baba branca e as deglutia
lentamente, reduzia-as a sua própria substância. O que é uma
mesa, uma rocha, uma casa? Um certo conjunto de “conteúdos da
consciência”, uma ordem destes conteúdos. Oh, filosofia alimentar!
Contudo, nada parecia mais evidente: não é a mesa o conteúdo
atual da minha percepção, não é ela o estado presente da minha
consciência? Nutrição, assimilação. Assimilação – dizia Lalande –
das coisas pelas ideias, das ideias entre elas e dos espíritos entre si.
As rijas arestas do mundo eram roídas por essas diástases diligentes:
assimilação, unificação, identificação. Entre nós, os mais simples e
os mais rudes procuravam em vão algo sólido, algo, enfim, que não
fosse o espírito; por toda a parte, encontravam apenas uma névoa
branca e muito ilustre: eles próprios. Contra a filosofia digestiva do
empiriocriticismo, do neokantismo, contra todo o “psicologismo”,
Husserl não se cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas
na consciência. Veem esta árvore, seja. Mas estão a vê-la no próprio
lugar em que está: à beira do caminho, no meio do pó, só e retorcida

138
Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

pelo calor, à vinte léguas da costa mediterrânea. Não poderia


entrar na vossa consciência, porque não é da mesma natureza
que ela. Julgareis reconhecer, aqui, Bérgson e o primeiro capítulo
de Matière et Mémoire, mas Husserl não é realista: essa árvore
colocada num pedaço de terra gretada não constitui um absoluto
que entraria mais tarde em comunicação conosco. A consciência e
o mundo surgem simultaneamente: exterior por essência, o mundo
é por essência relativo a ela. É que Husserl considera a consciência
um fato irredutível que nenhuma imagem física pode representar.
Exceto, talvez, a imagem rápida e obscura do estouro [2]. Conhecer
é “estourar para”, arrancar-se da úmida intimidade gástrica para
prosseguir, por aí afora, para além de si, para o que se não é, por aí
afora, perto da árvore e, todavia, fora dela, pois escapa-se e repele-
me e eu não posso perder-me nela mais do que ela se diluir em mim:
fora dela, fora de mim. Não reconhecereis por acaso nesta descrição
as vossas exigências e pressentimentos? Sabíeis muito bem que
a árvore não era vós mesmos, que não podíeis fazê-la entrar nos
vossos estômagos obscuros e que o conhecimento não podia, sem
desonestidade, comparar-se com a posse. Ao mesmo tempo, a
consciência purificou-se, é clara como a ventania, já nada há nela,
exceto um movimento para fugir, um deslizamento fora de si. Se
por milagre entrásseis “em” uma consciência, seríeis arrastados
por um turbilhão e lançados fora, perto da árvore, em plena poeira,
pois a consciência não tem “interior”; é simplesmente o exterior dela
própria, e é essa fuga absoluta e essa recusa a ser substância que
a constituem como consciência. Imaginai agora uma série ligada de
estalidos que nos arrancam a nós próprios, que não deixam sequer
a um “nós mesmos” o tempo necessário para se formar atrás deles,
mas que nos lançam, pelo contrário, para além deles, na poeira
seca do mundo, na terra rude, entre as coisas; imaginai que somos
expulsos dessa maneira, abandonados pela nossa própria natureza
num mundo indiferente, hostil e teimoso; tereis compreendido o
sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta frase
famosa: “Toda a consciência é consciência de qualquer coisa.”
Pouco faltará para pôr cobro a essa mole filosofia da imanência, em
que tudo se faz mediante uma norma química celular. A filosofia da
transcendência põe-nos no grande caminho, no meio de ameaças,
sob uma luz ofuscante. Ser – diz Heidegger – é ser-no-mundo.

Compreenda-se este “ser em” no sentido de movimento. Se a


consciência tenta recuperar-se, se tenta coincidir enfim com ela
própria, a quente, com as janelas fechadas, aniquila-se. A esta
necessidade, que tem a consciência de existir como consciência

139
Temas e teorias da Filosofia

diferente dela, chama Husserl “intencionalidade”.

Falei primeiro do conhecimento para me fazer compreender melhor:


a filosofia francesa, que nos formou, já quase não conhece mais
nada além da epistemologia. Mas, para Husserl e os fenomenólogos,
a consciência que adquirimos das coisas não se limita ao seu
conhecimento. O conhecimento ou pura “representação” é apenas
uma das formas possíveis da minha consciência “de” esta árvore;
posso também gostar dela, receá-la, odiá-la, e esse exceder-se
da consciência por ela própria, a que se chama “intencionalidade”,
torna a encontrar-se no receio, no ódio, no amor. Odiar outrem é
ainda uma maneira de estourar para ele, é encontrar-se de súbito
em frente dum desconhecido de que se vê e se sente primeiramente
a qualidade objetiva e “odiável”. Aí está como, de repente, essas
famosas reações “subjetivas”, ódio, amor, receio, simpatia, que
flutuavam na salmoura malcheirosa do Espírito, se separam dele:
são apenas maneira de descobrir o mundo. As coisas é que se
revelam a nós imediatamente como odientas, simpáticas, horríveis
ou amáveis. Ser terrível é uma propriedade duma máscara japonesa:
é uma propriedade inesgotável, irredutível, que constitui a sua própria
natureza – e não a soma das nossas reações subjetivas a um pedaço
de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas
coisas. Restitui-nos o mundo dos artistas e dos profetas: espantoso,
hostil, perigoso, com ancoradouros de amor e de graça. Preparou o
terreno para um novo tratado das paixões que se inspiraria nessa
verdade tão simples e tão profundamente desconhecida pelos
nossos requintados: se amamos uma mulher, é porque ela é amável.
Eis-nos libertos de Proust! Libertos como Amiel, como uma criança a
quem se beija o ombro, as carícias, os carinhos da nossa intimidade,
porque no fim de contas, tudo está fora, tudo, até nós próprios:
fora, no mundo, entre os outros. Não é em nenhum refúgio que nos
descobriremos: é na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre
as coisas, homem entre os homens. Janeiro de 1939.

[1] SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Lisboa: Publicações Europa-


América, 1968.
[2] No original, éclatement. (N. do T.)

FONTE: SARTRE, Jean-Paul. Situações I. Lisboa: Publicações


Europa-América, 1968.

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Capítulo 3 A CRISE DA FILOSOFIA MODERNA

1 Qual a crítica fundamental que Max Horkheimer, ao


escrever O Eclipse da Razão: Crítica da razão Instrumental
faz sobre a razão moderna?

2 Adorno sinaliza a crise da razão pela sua instrumentalização


através da técnica e da ciência que coisificam a consciência.
Explique como acontece esse processo e qual o papel da
teoria crítica para a emancipação do homem?

3 Por que Edmund Husserl em sua fenomenologia toma


como tema básico o “voltar às coisas mesmas?”

8 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Apresentamos neste capítulo refletir sobre os aspectos da crise da filosofia
moderna ressaltando como o conceito de sujeito racional foi esvaziado dos seus
fundamentos. Vimos que com teorias modernas, especialmente o racionalismo e
o empirismo, a hermenêutica e a fenomenologia, presentes em várias áreas do
conhecimento humano, contribuem tanto para a percepção da realidade como
também para sua transformação.

A problemática apresentada é a da desconfiança e crítica do conhecimento


humano pautado nas bases teóricas da modernidade, daí as propostas das
correntes que apresentamos como projeto filosófico moderno (conferir Capítulo
2) são colocadas em análise, recebendo julgamentos de vários teóricos que
se opunham aos efeitos provocados pela forma como a razão foi conduzida no
Ocidente, inclusive com o seu uso instrumental para domínio e alienação dos
indivíduos.

Portanto, é papel da filosofia esclarecer e conscientizar, por essa razão os


críticos da modernidade, ao perceberem que os ideais do esclarecimento foram
ofuscados, denunciam aquela euforia que apresentava o mundo de forma positiva,
sendo que na realidade a promessa de libertação e autonomia do homem não foi
materializada. Foi detectada a ruína da estrutura do projeto da razão construída
pelo racionalismo cartesiano. Ideias como as de Kierkegaard, Schopenhauer,
Nietzsche, Husserl, Horkheimer, Adorno, Lipovetsky, Bauman, Gadamer,
Heidegger, Freud e Foucault, como observamos, nos auxiliam no entendimento
sobre as questões da filosofia contemporânea.
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Temas e teorias da Filosofia

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Temas e teorias da Filosofia

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