ARTIGO ARTICLE
Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade
Abstract This essay seeks to conduct in-depth Resumo Neste ensaio busca-se aprofundar a re-
analysis of qualitative research, based on bench- flexão sobre o processo de análise na pesquisa qua-
mark authors and the author’s own experience. litativa a partir de autores referenciais e da expe-
The hypothesis is that in order for an analysis to riência da própria autora. O texto está organiza-
be considered reliable, it needs to be based on struc- do em forma de decálogo por meio do qual é trata-
turing terms of qualitative research, namely the do o tema processualmente. A hipótese é de que
verbs ‘comprehend’ and ‘interpret’, and the nouns uma análise para ser fidedigna precisa conter os
‘experience’, ‘common sense’ and ‘social action’. termos estruturantes da investigação qualitativa
The 10 steps begin with the construction of the que são os verbos: compreender e interpretar; e os
scientific object by its inclusion on the national substantivos: experiência, vivência, senso comum
and international agenda; the development of tools e ação social. A seguir a proposta avança por 10
that make the theoretical concepts tangible; con- passos que se iniciam na construção científica do
ducting field work that involves the researcher objeto pela sua colocação no âmbito do conheci-
empathetically with the participants in the use of mento nacional e internacional, na elaboração
various techniques and approaches, making it de instrumentos que tornem concretos os concei-
possible to build relationships, observations and tos teóricos, na execução de um trabalho de cam-
a narrative with perspective. Finally, the author po que envolva empaticamente o investigador no
deals with the analysis proper, showing how the uso de vários tipos de técnicas e abordagens, tor-
object, which has already been studied in all the nando-o um construtor de relações, de observa-
previous steps, should become a second-order con- ções e de uma narrativa em perspectiva. Por fim,
struct, in which the logic of the actors in their a autora trata da análise propriamente dita, mos-
diversity and not merely their speech predomi- trando como o objeto, que já vem pensado em to-
nates. The final report must be a theoretic, con- das as etapas anteriores, deve se tornar um cons-
textual, concise and clear narrative. truto de segunda ordem, em que predomine a ló-
1
Centro Latino-Americano Key words Qualitative analysis, Qualitative re- gica dos atores em sua diversidade e não apenas as
de Estudos de Violência e
search, Comprehension, Interpretation, Dialectics suas falas, dentro de uma narrativa teorizada, con-
Saúde (Claves), Escola
Nacional de Saúde Pública textualizada, concisa e clara.
(Ensp), Fundação Oswaldo Palavras-chave Análise qualitativa, Pesquisa
Cruz. Av. Brasil 4036/700,
qualitativa, Compreender, Interpretar, Dialetizar
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ.
maminayo@terra.com.br
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Minayo MCS
Neste artigo apresento uma reflexão sobre o pro- As premissas para a discussão da análise qualita-
cesso de análise qualitativa de estudos com base tiva estão apresentadas em forma de decálogo, na
empírica. O texto tem duas fontes de inspiração: busca de facilitar a compreensão para os que bus-
a primeira são os vários autores com os quais cam se familiarizar com a abordagem qualitativa.
venho dialogando durante mais de 25 anos. A Primeiro: Conhecer os termos estruturantes
segunda é minha própria vivência como investi- das pesquisas qualitativas. Sua matéria prima é
gadora, orientadora de teses e de dissertações e composta por um conjunto de substantivos cujos
como professora na área de saúde coletiva. sentidos se complementam: experiência, vivência,
Começando pela minha experiência, ressalto senso comum e ação. E o movimento que informa
que de todas as demandas que recebo de estu- qualquer abordagem ou análise se baseia em três
dantes e colegas, a mais recorrente diz respeito a verbos: compreender, interpretar e dialetizar8.
como fazer análise do material qualitativo. É como O termo experiência utilizado historicamente
se todas as outras fases da pesquisa, a prepara- por Heidegger9, diz respeito ao que o ser humano
ção do projeto e o trabalho de campo configu- apreende no lugar que ocupa no mundo e nas
rassem etapas muito simples e fáceis de serem ações que realiza. O sentido da experiência é a
resolvidas, em contraposição às dificuldades de compreensão: o ser humano compreende a si
como tratar os achados empíricos e documen- mesmo e ao seu significado no mundo da vida9.
tais. Essa preocupação procede, pois é diferente Por ser constitutiva da existência humana, a expe-
dos estudos quantitativos em que os dados co- riência alimenta a reflexão e se expressa na lingua-
lhidos de forma padronizada e tratados com téc- gem. Mas, a linguagem não traz a experiência pura,
nicas de análise sofisticadas oferecem ao pesqui- pois vem organizada pelo sujeito por meio da re-
sador certa segurança quanto à fidedignidade de flexão e da interpretação num movimento em que
seu estudo. Uma segurança que a rigor deveria o narrado e o vivido por si estão entranhados na
ser questionada1. No caso da pesquisa qualitati- e pela cultura, precedendo à narrativa e ao narra-
va, muitos outros problemas – que na verdade dor10. Já a vivência é produto da reflexão pessoal
são parte de sua própria contingência e condição sobre a experiência. Embora a experiência possa
– dificultam saber de antemão se as informações ser a mesma para vários indivíduos (irmãos
recolhidas e as análises elaboradas poderiam ser numa mesma família, pessoas que presenciam um
consideradas válidas e suficientes. fato, por exemplo) a vivência de cada um sobre o
Divido este trabalho em duas partes. Na pri- mesmo episódio é única e depende de sua perso-
meira, mostro que uma boa análise começa com nalidade, de sua biografia e de sua participação
a compreensão e a internalização dos termos fi- na história. Embora pessoal, toda vivência tem
losóficos e epistemológicos que fundamentam a como suporte os ingredientes do coletivo em que
investigação e, do ponto de vista prático, desde o sujeito vive e as condições em que ela ocorre. O
quando iniciamos a definição do objeto. Na se- senso comum pode ser definido como um corpo
gunda parte, discorrei sobre o processo da aná- de conhecimentos provenientes das experiências e
lise propriamente dito. das vivências que orientam o ser humano nas
Fazer ciência é trabalhar simultaneamente várias ações e situações de sua vida6,9-11. Ele se
com teoria, método e técnicas, numa perspectiva constitui de opiniões, valores, crenças e modos de
em que esse tripé se condicione mutuamente: o pensar, sentir, relacionar e agir. O senso comum
modo de fazer depende do que o objeto deman- se expressa na linguagem, nas atitudes e nas con-
da, e a resposta ao objeto depende das pergun- dutas e é a base do entendimento humano. Dado
tas, dos instrumentos e das estratégias utilizadas o seu caráter de expressão das experiências e vi-
na coleta dos dados. À trilogia acrescento sem- vências, o senso comum é o chão dos estudos
pre que a qualidade de uma análise depende tam- qualitativos. A ação (humana e social) pode ser
bém da arte, da experiência e da capacidade de definida como o exercício dos indivíduos, dos gru-
aprofundamento do investigador que dá o tom e pos e das instituições para construir suas vidas e
o tempero do trabalho que elabora. os artefatos culturais, a partir das condições que
Tento apontar algumas questões cruciais que eles encontram na realidade. O conceito de ação
oferecem as balizas da objetivação2,3 e do caráter está vinculado à noção de liberdade para agir e
incompleto, provisório4-6 e aproximativo do co- transformar o mundo que, para Heidegger4, não
nhecimento7. constitui um lugar e sim um complexo formado
pela significação das experiências que fazem do
ser humano um ser histórico.
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Por isso, neste texto, toda a reflexão supõe a nando-a um objeto pensado; para elaboração de
presença e o acompanhamento do pesquisador hipóteses coerentes com a pergunta e que possam
em cada passo do trabalho, num movimento ao guiar o trabalho; para construção dos instrumen-
mesmo tempo somativo e de superação da fase tos que devem traduzir os conceitos em itens ob-
anterior. A implicação do investigador no traba- serváveis ou em guias para conversas no campo;
lho se constitui numa perspectiva circular: “ele só para elaboração de uma narrativa sobre o objeto
conhece a realidade na medida em que a cria”25. que ao mesmo tempo leve em conta a preparação
Partindo dessa compreensão, considero que nem realizada cuidadosamente e a supere, trazendo
um bom técnico-analista de conteúdo pode ga- novas descobertas e relevâncias; para organizar,
rantir a qualidade de um texto final quando não categorizar, contextualizar e construir o relato fi-
se dá conta das condições de sua produção. nal, fruto sempre de uma análise provisória.
O reconhecimento de que existe uma polari- O percurso analítico e sistemático, portanto,
dade complementar entre sujeito e objeto no pro- tem o sentido de tornar possível a objetivação de
cesso qualitativo de construção científica leva, por um tipo de conhecimento que tem como matéria
sua vez, à necessidade de um esforço metodológi- prima opiniões, crenças, valores, representações,
co que garanta a objetivação, ou seja, a produção relações e ações humanas e sociais sob a perspec-
de uma análise o mais possível sistemática e apro- tiva dos atores em intersubjetividade. Desta for-
fundada e que minimize as incursões do subjeti- ma, a análise qualitativa de um objeto de investi-
vismo, do achismo e do espontaneísmo. Nesse sen- gação concretiza a possibilidade de construção
tido, sem contradizer o que falei no parágrafo an- de conhecimento e possui todos os requisitos e
terior, é preciso valorizar as técnicas: para revisão instrumentos para ser considerada e valorizada
sistemática ou narrativa da indagação inicial, tor- como um construto científico.
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