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DIREITO CONSTITUCIONAL I

REGÊNCIA DO PROFESSOR REIS NOVAIS 2020/2021

BALTAZAR OLIVEIRA
Baltazar Oliveira

Índice
INTRODUÇÃO À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO ............................................................................................ 5
PARTE I – FORMAS POLÍTICAS.................................................................................................................. 7
1. TIPO HISTÓRICO DE ESTADO ........................................................................................................... 7
A) Estado de Direito ................................................................................................................. 8
B) Alteração dos elementos do Estado de Direito na sua evolução ....................................... 11
C) Justiça constitucional e o novo constitucionalismo ........................................................... 14
D) Papel da Constituição num Estado de Direito democrático ............................................... 15
E) Estado autocrático do século XX ........................................................................................ 18
F) Estado fundamentalista islâmico ....................................................................................... 20
2. FORMA DE GOVERNO.................................................................................................................... 24
3. REGIME POLÍTICO .......................................................................................................................... 25
A) Regimes de Estado autocrático.......................................................................................... 26
B) Monarquia constitucional .................................................................................................. 27
C) Governo representativo liberal e democracia representativa ........................................... 28
4. PARTIDOS POLÍTICOS E SISTEMA ELEITORAL ................................................................................. 31
A) Democracia representativa e partidos políticos ................................................................ 31
B) Sistema eleitoral ................................................................................................................ 32
C) Sistema maioritário e sistema proporcional ...................................................................... 33
D) Modalidades dos sistemas eleitorais ................................................................................. 34
E) Sistema eleitoral em Portugal ............................................................................................ 37
5. FORMA DE ESTADO ....................................................................................................................... 39
A) Estado unitário simples ...................................................................................................... 39
B) Estado federal .................................................................................................................... 40
C) Estado regional .................................................................................................................. 42
6. FORMAS POLÍTICAS NA HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO PORTUGUÊS................................. 43
A) Cronologia da história constitucional portuguesa ............................................................. 44
B) Constituições monárquicas ................................................................................................ 45
C) Constituição de 1911 ......................................................................................................... 47
D) Constituição de 1933 ......................................................................................................... 48
E) Constituição de 1976 ......................................................................................................... 49

PARTE II – SISTEMA DE GOVERNO ......................................................................................................... 51


1. SISTEMA DE GOVERNO .................................................................................................................. 51
A) Dificuldades de construção de uma tipologia de sistemas de governo ............................. 52
B) Perspetivas de análise do sistema de governo .................................................................. 53
C) Comparação entre sistemas de governo parlamentar e presidencial................................ 60

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2. PARLAMENTARISMO ..................................................................................................................... 63
A) Parlamentarismo de gabinete e parlamentarismo de assembleia ..................................... 63
B) Parlamentarismo racionalizado ......................................................................................... 65
3. PRESIDENCIALISMO ....................................................................................................................... 66
A) Sistema presidencial clássico ............................................................................................. 66
B) Funcionamento prático e dificuldades de exportação ....................................................... 67
C) Presidencialismo adaptado ................................................................................................ 69
4. IMPEACHMENT PRESIDENCIAL ...................................................................................................... 71
A) História: impeachment na Inglaterra e sua importação ..................................................... 71
B) Impeachment nos Estados Unidos ..................................................................................... 72
C) Impeachment na América Latina ....................................................................................... 76
5. SEMIPRESIDENCIALISMO: TEORIA ................................................................................................. 80
A) Origens............................................................................................................................... 80
B) A descoberta do semipresidencialismo e a questão da designação .................................. 82
C) A autonomia do semipresidencialismo .............................................................................. 83
D) Expansão territorial............................................................................................................ 89
E) Definição ............................................................................................................................ 93
6. SEMIPRESIDENCIALISMO: CARACTERIZAÇÃO ................................................................................ 96
A) Os poderes do Presidente na definição do semipresidencialismo ..................................... 96
B) Poder de dissolução do Parlamento .................................................................................. 98
C) O equilíbrio no semipresidencialismo .............................................................................. 101
D) Variáveis dinâmicas de funcionamento do semipresidencialismo ................................... 103
7. SEMIPRESIDENCIALISMO: MATRIZES ........................................................................................... 107
A) As matrizes do semipresidencialismo .............................................................................. 107
B) Matrizes francesa (Presidente-liderante) e portuguesa (Presidente-moderador) ........... 109
C) Matriz austríaca (Presidente-cerimonial)......................................................................... 112
D) Finlândia .......................................................................................................................... 115
E) Novas democracias na Europa Central e de Leste ........................................................... 116

PARTE III – MATRIZ PORTUGUESA DE SEMIPRESIDENCIALISMO.......................................................... 119


1. SISTEMA DE GOVERNO PORTUGUÊS COMO SISTEMA SEMIPRESIDENCIAL................................. 119
A) A posição do Presidente da República no sistema político .............................................. 119
B) A responsabilidade do Governo perante a Assembleia da República .............................. 123
C) Conclusão ........................................................................................................................ 124
2. A FORMAÇÃO DA MATRIZ PORTUGUESA DE SEMIPRESIDENCIALISMO ...................................... 125
A) Origem da estrutura jurídico-constitucional semipresidencial ........................................ 125
B) Origem da matriz portuguesa de semipresidencialismo.................................................. 126
C) O primeiro ano – Presidente suprapartidário .................................................................. 127

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D) Os primeiros anos – Presidente interveniente................................................................. 129


3. A REVISÃO CONSTITUCIONAL DE 1982 ........................................................................................ 134
A) Contexto .......................................................................................................................... 134
B) Alterações ........................................................................................................................ 134
C) Estatuto constitucional do Presidente da República........................................................ 136
4. A ESPECIFICIDADE DO SISTEMA DE GOVERNO PORTUGUÊS ....................................................... 142
A) A revisão de 1982 na construção da matriz portuguesa de semipresidencialismo ......... 142
B) Presidente garante, regulador, moderador e arbitral ...................................................... 143
C) Não há bicefalia do executivo: quem governa é o Governo ............................................ 144
D) Presidente com poder de conformação política autónoma e não dependente da maioria
parlamentar ................................................................................................................................ 145

Bibliografia:

– Teoria das Formas Políticas e dos Sistemas de Governo, Jorge Reis Novais

– Em defesa do Tribunal Constitucional, Jorge Reis Novais

– Semipresidencialismo, Jorge Reis Novais

Notas:

– Estes resumos foram elaborados com base na bibliografia indicada para Direito Constitucional
I e II no ano letivo de 2019/2020, sob a regência do Sr. Professor Jorge Reis Novais.

– Antes da sua divulgação, não foram revistos (por falta de tempo) os seguintes pontos:

 Estado fundamentalista islâmico – Parte 1 / Cap. 1 / Ponto F


 Presidencialismo – Parte 2 / Cap. 3
 Impeachment presidencial – Parte 2 / Cap. 4
 Expansão do semipresidencialismo – Parte 2 / Cap. 5 / D
 Equilíbrio em semipresidencialismo – Parte 2 / Cap. 6 / C
 Variáveis dinâmicas de funcionamento do semipresidencialismo – Parte 2 / Cap. 6 / D
 Matrizes francesa e portuguesa de semipresidencialismo – Parte 2 / Cap. 7 / B
 Sistema de governo da Finlândia – Parte 2 / Cap. 7 / D
 Especificidade do semipresidencialismo português – Parte 3 / Cap. 4

– Em 2021, saiu uma nova edição do manual Semipresidencialismo que não foi usada para estes
resumos, mudando um pouco a arrumação das matérias.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DA CONSTITUIÇÃO1

Constituição em sentido material


 Refere-se às matérias constitucionais. Duas matérias constam necessariamente de uma
Constituição de Estado de Direito, como estabelece o artigo 16º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão: direitos do homem e separação de poderes. Ou seja,
a uma Constituição material corresponde à matéria dos direitos fundamentais e das
formas políticas (tipo histórico de Estado, forma de governo, regime político, forma de
Estado, sistema de governo, sistema eleitoral, sistema de partidos).
 É um acervo de princípios fundamentais estruturantes referentes às várias formas
políticas; é aquilo que confere unidade, substância e identidade à Constituição; é a
manifestação de uma ideia de Direito que prevalece em certo tempo e lugar; é o que
permanece enquanto mudam os preceitos através de sucessivas alterações à
Constituição.
 É frequente as Constituições sintetizarem os princípios que dão o seu cerne material.
Na Constituição portuguesa de 1976 esses princípios constam dos artigos 1º, 2º e 288º.
 Todos os Estados têm uma Constituição em sentido material.

Constituição em sentido formal


 Tem um procedimento específico de formação e (em geral) de modificação, permitindo
distinguir normas constitucionais, que gozam de força jurídica suprema, de normas
infraconstitucionais ou ordinárias.
 Nem todos os Estados têm Constituição formal. Ainda assim, onde se encontra
Constituição em sentido material moderno emerge, uma Constituição em sentido
formal. A única exceção é o Reino Unido.
 Caso especial do Reino Unido – Constituição material sem Constituição formal – nunca
houve, no Reino Unido, uma Assembleia Constituinte que elaborasse uma Constituição.
No Reino Unido, não se distingue norma constitucional de norma ordinária. A ausência
de Constituição formal explica-se pelas caraterísticas peculiares do seu
desenvolvimento constitucional e do seu sistema jurídico.

1
Matéria a ser dada, em princípio, em Direito Constitucional II. Ficam algumas referências importantes para Direito
Constitucional I, que podem não ser objeto de avaliação. Para um maior desenvolvimento, ver a sebenta de DC II.

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Requisitos da Constituição em sentido formal:


 Intencionalidade de formação – intenção originária de elaborar uma Constituição; dos
trabalhos de uma Assembleia Constituinte resultou uma Constituição.
 Força jurídica especial – força jurídica superior das normas constitucionais
relativamente a quaisquer outras normas vigentes na ordem jurídica.
 Sistematização própria

Distinção entre norma constitucional e norma ordinária


 Norma constitucional – têm um valor superior, estão no topo da ordem jurídica.
 Norma ordinária – têm um valor inferior; são normas infraconstitucionais.

Classificação de Constituições segundo o critério ontológico de Loewenstein:


 Constituições normativas – intenção originária de limitação do poder e realização
efetiva desse objetivo na realidade constitucional – própria dos Estados de Direito.
 Constituições nominais – intenção originária de limitação do poder, mas não efetividade
prática na realidade constitucional – própria de regimes instáveis e de democracias e
Estados de Direito de realização frustrada.
 Constituições semânticas – eventual aplicação efetiva na realidade constitucional, mas
ausência de intenção limitativa do poder logo no momento constituinte originário –
próprias de Estados autocráticos e regimes ditatoriais que instrumentalizam a
Constituição como fator, não de limitação, mas de mera legitimação do poder.

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PARTE I – FORMAS POLÍTICAS

1. TIPO HISTÓRICO DE ESTADO

Tipo histórico de Estado refere-se às diferentes concretizações que o Estado assume ao


longo da história moderna. São critérios de distinção de diferentes tipos histórico de Estado:
i) O tempo histórico,
ii) A forma como se concebem os fins do Estado,
iii) A forma como se concebe a relação Estado-indivíduo,
iv) Os direitos que se reconhecem ao indivíduo face ao Estado.

Os tipos históricos de Estado a estudar cabem no Estado moderno, que se desenvolve


na Europa a seguir à Idade Média, portanto, a partir do séc. XIV. É caracterizado por:
 Soberania – poder supremo no plano interno e independente no plano externo.
 Nacionalidade – há, tendencialmente, uma correspondência Estado-Nação.
 Laicidade/secularidade – separação entre Estado e Igreja; na Idade Moderna, a Igreja
perde poder, que se vai concentrando no monarca, até ao absolutismo, em que o Rei é
o Estado.

São tipos históricos de Estado (dentro do Estado moderno):


 Estado absoluto
o Estado absoluto patrimonial
o Estado absoluto de polícia
 Estado de Direito
o Estado de Direito liberal
o Estado social e democrático de Direito
 Estado autocrático dos séculos XX e XXI
o Estado autocrático de matriz conservadora e reacionária
o Estado autocrático de matriz revolucionária e anticapitalista
o Estado autocrático de matriz teocrática, como o Estado fundamentalista islâmico

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O Estado absoluto é o tipo histórico de Estado que vigorou entre os séculos XIV e XVIII.
Havia uma concentração absoluta dos poderes no Rei, que não eram limitados juridicamente.
Não existia Constituição, separação de poderes, instituições representativas ou direitos
fundamentais. Podemos distinguir duas fases do Estado absoluto:
 Estado patrimonial → o reino é propriedade feudal do Rei.
 Estado de polícia (de polis, cidade) → o déspota esclarecido/iluminado intervém de
forma absoluta na vida política, social e económica.

A) Estado de Direito
Estado de Direito é o Estado organizado e limitado juridicamente, com vista à garantia
dos direitos fundamentais dos cidadãos sob a sua jurisdição, ou seja, os direitos reconhecidos
por força da dignidade da pessoa humana, e em que, por força da separação de poderes
instituída pela Constituição, os poderes públicos deixam de poder dispor livremente.

Advento do Estado de Direito:


 O desaparecimento das barreiras feudais (Estado feudal) da Idade Média e a centralização
do poder do Antigo Regime (Estado absoluto) constituíram fatores de desenvolvimento da
burguesia comercial e financeira até ao séc. XVIII.
 Todavia, a atividade económica precisa de um quadro de previsibilidade e segurança: os
agentes económicos têm de saber as regras do jogo. Essas eram, contudo, mudadas ao
gosto do Monarca absoluto, que fazia as leis e nomeava os juízes que as fiscalizavam. Assim,
o absolutismo veio a mostrar-se um entrave ao desenvolvimento da burguesia esclarecida
e cosmopolita que, face a este cenário de incerteza e insegurança, sente a necessidade de
participar politicamente. Abre-se caminho para as revoluções liberais.
 Com as revoluções americana (1776) e francesa (1789) surge um novo tipo histórico de
Estado: o Estado de Direito/Estado Constitucional. A revolução portuguesa deu-se em 1820.
 Em Portugal, França e EUA, o Estado de Direto surgiu através de uma rutura com a ordem
anterior, isto é, através de uma revolução. Contudo, noutros contextos, o Estado de Direito
surgiu de formas diferentes. Na Alemanha, desenvolve-se de forma gradual através de um
compromisso com a monarquia tradicional. A Grã-Bretanha nunca conheceu o Estado
absoluto, surgindo o Estado de Direito através de uma consolidação das instituições e da
aceitação progressiva da ideia de limitação jurídica do poder, que se consagra, com a
Glorious Revolution (1688), na soberania do Parlamento e na inviolabilidade das liberdades
fundamentais. Ainda hoje o Reino Unido não tem Constituição.

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Conceção liberal de Constituição = direitos fundamentais + separação de poderes


 A noção de Constituição que nasce das revoluções liberais é traduzida no artigo 16.º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789):
“Só há Constituição onde há direitos do homem e separação de poderes”
 É certo que a Constituição americana, na sua versão originária (1787), era praticamente só
separação de poderes. Mas em 1789, com a aprovação da Bill of Rights (primeiras dez
emendas à Constituição), passou a ser direitos fundamentais e separação de poderes.
 Direitos fundamentais (direitos do homem): direitos que as pessoas e os cidadãos têm face
aos poderes públicos, reconhecidos pela Constituição por força da dignidade da pessoa
humana.
 Separação de poderes: repartição dos poderes por vários órgãos, que têm competências
pré-determinadas pela Constituição. Limita os poderes públicos, evitando a concentração
de poderes. É instrumental relativamente ao objetivo principal de qualquer Estado de
Direito: a garantia dos direitos fundamentais.
 Várias designações para o ideal da limitação jurídica do Estado com vista à proteção dos
direitos fundamentais: Estado de Direito, Rechtsstaat, État constitutionnel, rule of law,
império da lei.

1ª fase – Estado de Direito liberal:


 No advento do Estado de Direito havia uma afirmação política, social e económica da
burguesia, que dominava o Parlamento. As revoluções liberais tinham sido feitas em nome
de conceções burguesas dos direitos dos cidadãos (liberdade, segurança e propriedade),
condicionadas pelos ideais supremos de autonomia privada e segurança da propriedade.
Verificava-se a hegemonia do liberalismo no plano ideológico. Assim, à primeira fase do
Estado de Direito chama-se Estado de Direito liberal.
 Havia sufrágio restrito, pois só o homem branco, alfabetizado e proprietário era cidadão, já
que só o reduzido grupo a que pertencia tinha interesse na preservação da sociedade.
Considerava-se que a população não proprietária aproveitaria o direito de voto para
expropriar a burguesia. A associação de trabalhadores e os direitos de exercício coletivo
eram considerados uma sobreposição do coletivo ao individual e, consequentemente,
entraves à liberdade.
 Havia uma conceção de Estado como Estado mínimo, abstencionista ou guarda-noturno.
Devia ser mantida uma estrita separação entre Estado e economia, entre Estado e
sociedade, que não interferisse com a autonomia económica e moral dos cidadãos e que
permitisse o livre desenvolvimento da personalidade de cada um. A vida económica era
entregue ao mercado livre e à sua própria dinâmica de autorregulação. Como dizia Adam
Smith, o bem-estar coletivo resultaria naturalmente da livre concorrência entre produtores
e consumidores, sem interferências exteriores, sendo os agentes económicos comandados
por uma mão invisível que, através das leis da oferta e da procura, ira garantir prosperidade

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e bem-estar gerais. Os únicos fins do Estado são garantir a paz social, a segurança dos bens
e das vidas, a abstenção da vida privada e a garantia dos direitos fundamentais.
 A conceção das relações Estado-cidadãos era uma em que imperasse a previsibilidade e a
segurança, com a transformação progressiva de toda a atividade do Estado em atuação
fundada, organizada e vinculada juridicamente segundo regras gerais pré-estabelecidas.
Racionalizar o Estado é, então, e em contraposição com os exigências da razão do Estado
de polícia do Antigo Regime, assegurar que a intervenção estatal não ultrapasse níveis
mínimos e previsíveis, isto é, que o Estado não ultrapasse os seus fins garantistas e invada
a esfera da vida privada. Para que a atuação dos poderes públicos seja previsível e assegure
os direitos fundamentais, o Estado está limitado e organizado juridicamente. Há uma
submissão do Estado ao Direito:
o Império da lei – estabelecimento de uma hierarquia jurídica entre os diferentes atos
do Estado que permita controlo judicial baseado na verificabilidade objetiva da
conformidade dos atos com princípios legais e constitucionais pré-estabelecidos.
o Princípio da legalidade/princípio da legalidade da administração – os atos da
administração só são válidos se não contrariarem a lei (preferência de lei), e se tiverem
habilitação na lei, isto é, se tiverem base legal (reserva de lei), garantindo a
previsibilidade da atuação dos poderes públicos.
o Justiça administrativa – o Estado é pessoa jurídica titular de direitos e deveres, que se
relaciona com outros sujeitos de Direito com os particulares, através da lei e dos
Tribunais.
 A conceção de direitos fundamentais era uma de direitos individuais e direitos negativos:
os que exigem que o Estado se abstenha. O direito fundamental por excelência era o direito
de propriedade.

2ª fase – Estado social e democrático de Direito


 Na transição do séc. XIX para o XX, com a 1ªGG, e com as crises do pós-1ªGG (anos 1920 e
1930), há uma crise do otimismo liberal e dos pressupostos do Estado de Direito liberal. A
confiança numa economia livre da intervenção estatal era agora abalada nos países
capitalistas desenvolvidos. Surgem várias alternativas ao modelo do Estado de Direito
liberal, como o comunismo da revolução russa, o fascismo italiano e o nazismo alemão. Na
direção oposta, as Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919 dão origem ao
Estado social e democrático de Direito, que se generaliza no pós-2ªGG.
 O Estado social e democrático de Direito assume integralmente, como legado do Estado de
Direito liberal, o ideal de limitação jurídica do Estado com vista à garantia dos direitos
fundamentais dos cidadãos. Todavia, constata o esgotamento do modelo de separação do
Estado da vida social e económica, que passa a ser encarada como algo a ser regulado pelo
Estado, agora empenhado na intervenção e planificação da economia, na produção de bens
e serviços, na criação de infraestruturas, na redistribuição da riqueza, na justiça social e na
prossecução da igualdade material, e não só da igualdade perante a lei.

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 O Estado social apresenta uma dinâmica bidirecional:


o Estadualização da sociedade – maior presença do Estado na vida dos cidadãos,
através de uma política económica intervencionista e da providência de condições de
vida aos cidadãos.
o Socialização do Estado – que reconhece e estimula a pressão e o controlo da
sociedade sobre o Estado e a ação permanente e institucionalizada de partidos
políticos, grupos de interesse e organizações sociais.
 A conceção de direitos fundamentais é uma de direitos positivos: direitos a serem
realizados, efetivados, pelo Estado, que tem um papel ativo na garantia dos direitos
fundamentais.

B) Alteração dos elementos do Estado de Direito na sua evolução


Embora os dois elementos fundamentais das revoluções liberais e do
constitucionalismo se tenham preservado em ambos os tipos históricos de Estado de Direito,
eles adquiriram conteúdos normativos distintos ao longo do tempo. As conceções de direitos
fundamentais e separação de poderes variaram rápida e substancialmente desde o séc. XVIII,
de acordo com os pressupostos filosóficos e ideológicos de cada época. A realização do Estado
social e democrático de Direito vai alterar o entendimento desses dois princípios fundamentais
do Estado de Direito.

No plano dos direitos fundamentais


O cidadão-burguês do Estado de Direito liberal (homem, branco, proprietário) tinha os
meios necessários para, sem auxílio do Estado, garantir o bem-estar da sua família. Importante
para ele era salvaguardar os direitos à propriedade, à livre iniciativa económica, à autonomia
privada, à liberdade de contratar sem influências externas. Contudo, com o progressivo
alargamento da cidadania até ao sufrágio universal, os direitos, liberdades e garantias do
Estado de Direito liberal são reinterpretados – ganham um novo conteúdo normativo. Por
exemplo:
 O princípio da igualdade permitia, no Estado de Direito liberal, a discriminação racial.
 A greve passou de crime (séc. XVIII) a direito fundamental (hoje).
 Hoje, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão chamar-se-ia, porventura,
“Declaração dos Direitos das Mulheres e dos Homens, das Cidadãs e dos Cidadãos”.

Enquanto as liberdades negativas clássicas necessitavam de uma abstenção do Estado,


os novos direitos sociais requerem uma intervenção positiva estatal, destinada a conferir-lhes
realidade existencial, garantindo a possibilidade do seu exercício efetivo e igualitário pelos
cidadãos.

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 Alarga-se o elenco de direitos considerados fundamentais e constitucionalmente


garantidos, passando o Estado a ter o dever de os assegurar – a partir do momento em que
a esmagadora maioria dos novos cidadãos não dispõe de meios próprios para aceder aos
bens essenciais que devem estar acessíveis a todos numa sociedade democrática fundada
na dignidade da pessoa humana, os direitos sociais (económicos, sociais e culturais) passam
a ser considerados direitos fundamentais. Para as novas conceções de justiça social e
igualdade material tão importante como a liberdade de contratar ou a propriedade era o
direito ao trabalho, à saúde, o acesso à educação ou o direito a um horário de trabalho e a
férias pagas. Verifica-se um processo de jusfundamentalização dos direitos sociais, que
exigem prestações positivas materiais a realizar pelo Estado.
 O Estado está obrigado a promover o acesso de todos os cidadãos aos bens
jusfundamentalmente protegidos – é necessário garantir uma igualdade material, e não
uma mera igualdade jurídico-formal, entre todos os cidadãos. O Estado não se limita a
proclamar a existência das liberdades negativas, mas preocupa-se também em garantir a
possibilidade do seu exercício efetivo por parte de todos, prevenindo eventuais abusos,
assegurando as condições da igualdade material no seu exercício, regulando prováveis
conflitos de direitos e colisões entre os direitos fundamentais e outros bens dignos de
proteção jurídica.
 Os direitos fundamentais são agora concebidos não só como direitos de defesa contra os
abusos dos poderes públicos, mas também como valores que se impõem a toda a sociedade
e que, sem prejuízo da autonomia privada, repercutem nas relações jurídicas privadas – o
Estado assume novos deveres que vão além do mero respeito pela autonomia individual; é
agora obrigado a respeitar, mas também a proteger os direitos fundamentais de agressões
perpetradas pelos particulares e entidades privadas. O exercício dos direitos tradicionais do
Estado de Direito liberal passa a ser condicionado por uma nova perspetiva de integração
comunitária e de vinculação social.
 Esta vinculação social dos direitos afeta particularmente a área das relações de produção e
reflete-se numa alteração das conceções do direito de propriedade, que perde o seu
anterior caráter absoluto, de medida suprema de todos os outros direitos, para ceder
perante uma conceção de dignidade da pessoa humana.
 Há um alargamento do direito de voto e um aprofundamento das regras da democracia
política.
 Surgem novos tipos de direitos atinentes à corresponsabilização social de todos e às
exigências de solidariedade geracional e universal, como os direitos ambientais, os direitos
próprios de certas categorias sociais (crianças, mulheres, minorias sociais, étnicas e sexuais)
e os direitos dos povos à identidade cultural e ao desenvolvimento.

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No plano da separação de poderes


A separação rígida entre funções legislativa, executiva e judicial passa a ser entendida
como um processo de distribuição e integração racionalizadas das várias funções e órgãos do
Estado, de forma a limitar as possibilidades de exercício arbitrário do poder.

i) Progressiva diluição das fronteiras entre legislativo e executivo, que fazem ressurgir
preocupações no âmbito da separação e interdependência de poderes:
 Aumento considerável da atividade legislativa por parte dos Governos,
institucionalizando-se uma competência legislativa própria ou delegada pelo
Parlamento.
 Parlamentos invadem a área tradicionalmente reservada ao Governo, na medida em
que o conteúdo das leis aprovadas perde o seu caráter geral e abstrato para atender a
necessidades quotidianas e pontuais e de categorias particulares de cidadãos. Surge a
figura das leis-medida, destinadas a responder a necessidades governativas concretas.
Excecionalmente são até aprovadas leis individuais que configuram a prática, pelo
órgão legislativo, de atos administrativos, ainda que sob a forma de lei.

ii) Mecanismos de limitação efetiva do poder que, durante o Estado de Direito liberal,
não existiam ou não eram valorizados:
 Reconhecimento e encorajamento do pluralismo, dos direitos da oposição, das minorias,
de alternância política e da importância da opinião pública e de uma imprensa livre.
 Divisão vertical ou territorial de funções, através da regionalização ou da
descentralização política e administrativa.
 Repartição social de funções, com o aprofundamento dos mecanismos de democracia
participativa e de integração dos cidadãos e das suas associações na vida política e no
próprio exercício das funções estatais.
 Novos mecanismos de racionalização da democracia representativa e de limitação do
poder, como a limitação temporal de cargos públicos, a instituição de sistemas de
governo mais complexos e a valorização de escolhas institucionais decisivas para a vida
política, como as referentes ao sistema eleitoral e ao sistema de partidos.

iii) Reforço da separação e independência do poder judicial, que é revalorizado no


conjunto dos poderes do Estado – surgimento generalizado da justiça constitucional2.

2
Desenvolvido no ponto seguinte – Parte I / Cap. 1 / Ponto C) – páginas 14-15

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C) Justiça constitucional e o novo constitucionalismo


A justiça constitucional não nasceu como uma escolha consciente, um qualquer
trabalho de engenharia jurídica, mas sim como algo inerente à natureza do trabalho judicial.
 Nasceu nos Estados Unidos sem que a Constituição dissesse algo sobre o tema, como
consequência natural do funcionamento das instituições de Estado de Direito, a partir do
momento em que se assume a Constituição como norma jurídica suprema.
 Apesar de a Constituição americana não dar expressamente aos juízes o poder de fazerem
fiscalização da constitucionalidade das leis, eles começaram naturalmente a desenvolver
essa atividade como algo inerente à própria função judicial de aplicação do Direito. Se a
norma constitucional é considerada norma jurídica, superior à lei ordinária, então o juiz
deve recusar-se a aplicar qualquer lei aprovada pelo Governo ou pelo Parlamento que a
contrarie a Constituição, considerando-a inconstitucional. Foi isto que os juízes americanos
começaram a fazer desde 1803, ano em que o Supremo Tribunal, presidido pelo juiz
Marshall, reconheceu o caráter superior da norma constitucional face à norma ordinária,
ao julgar o emblemático caso Marbury v. Madison, em que se estabeleceu o princípio da
judicial review (fiscalização judicial da constitucionalidade). Foi dessa forma que, mesmo
no silêncio da Constituição, nasceu, como inevitabilidade, a justiça constitucional.
 Para este desenvolvimento precoce da justiça constitucional nos EUA contribuiu a
desconfiança dos revolucionários para com o poder legislativo, dada a má experiência com
o Parlamento britânico (que cobrava impostos desmesurados aos norte-americanos). Por
outro lado, não tendo havido absolutismo na América, o “governo dos juízes” não era
temido como na Europa. Assim, os juízes não se limitavam a avaliar o cumprimento da lei,
podendo recusar legislação que atentasse contra os direitos fundamentais, considerando-
a inconstitucional.

Já na Europa, durante século e meio (até aos anos 1950), havia Constituição, mas não
era levada a sério como norma jurídica, pelo que não havia justiça constitucional.
 No Estado de Direito liberal europeu, a Constituição tinha uma natureza de documento
fundador e programático, com valor político e simbólico, mas não aplicado pelos Tribunais
e nunca invocado como fundamento para a eventual desaplicação, por
inconstitucionalidade, de leis em vigor. Ao contrário dos americanos, os europeus, desde
o tempo das revoluções liberais, desconfiavam dos juízes, nomeados pelo monarca
absoluto, pois receavam que a casta judicial se pudesse converter num obstáculo às
transformações sociais, Era temido o “governo dos juízes”.
 Até à 2ªGG, era possível o recurso à justiça administrativa como forma de controlar a
legalidade da atuação da Administração. Porém, a função legislativa estava isenta de
qualquer controlo, por se considerar que a lei era justa e garantia dos direitos. A
supremacia que tinha o Parlamento pode ser expressa na máxima de Rousseau “a lei é
intrinsecamente justa”, por ser feita pelos representantes do Povo. Para Montesquieu le
juge est la bouche qui prononce les paroles de la loi (o juiz é a boca que pronuncia as

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palavras da lei), visto que os juízes se limitavam a aplicar a lei, mecanicamente, não
apreciando a constitucionalidade dos atos do Parlamento (que podia violar direitos
fundamentais, por exemplo aprovando leis racistas), mas apenas dos da Administração.
 Foi necessário que a Europa vivesse a experiência dramática dos regimes totalitários do
séc. XX, muitas vezes democraticamente eleitos e apoiados entusiasticamente pela maioria
da população, para que os europeus se convencessem da necessidade de proteger as
liberdades e os direitos fundamentais contra as maiorias no poder. Só no pós-guerra, com
o Estado de Direito social e democrático, se perdeu a confiança na justiça e racionalidade
imanentes à lei e se verificaram as insuficiências da justiça administrativa verificadas na
garantia dos direitos fundamentais, cujas violações não foram apenas praticadas pela
administração e pelo legislativo, mas também no decurso da atividade das magistraturas
judiciais. Para proteger os direitos fundamentais face às maiorias no poder, a instituição
mais adequada era e é a justiça constitucional.

Novo constitucionalismo:
 No pós-2ªGG passa a atribuir-se a um poder judicial independente o controlo da
constitucionalidade dos atos legislativos e administrativos e a garantia dos direitos
fundamentais. Há um surgimento generalizado da justiça constitucional, posta em prática
pelos Tribunais Supremos ou por Tribunais especialmente criados para o efeito, os
Tribunais Constitucionais. Nos Estados europeus, predominam os segundos, já que quando
aderiram à ideia de institucionalização de uma justiça constitucional, os europeus não
entregaram essas funções, como algo natural, ao poder judicial comum (como nos Estados
Unidos) mas criaram, nas próprias Constituições aprovadas após a 2ªGG, uma nova
instituição, o Tribunal Constitucional.
 Há também um reconhecimento do caráter formalmente superior das normas
constitucionais relativamente às leis ordinárias. A revolução constitucional do pós-guerra
inverteu o lema “direitos fundamentais à medida da lei” para “lei à medida dos direitos
fundamentais”.

D) Papel da Constituição num Estado de Direito democrático


Papel de uma Constituição em Estado de Direito e democracia:
i) Sendo a democracia o regime que funciona segundo a regra da maioria, e correndo ela
o risco de se ver corrompida pela decisão dessa maioria, a Constituição limita maiorias
circunstanciais ao respeito pelos direitos fundamentais e pela separação de poderes.
ii) A Constituição é norma jurídica vinculativa para os poderes públicos.
iii) A Constituição institui uma justiça constitucional que garante a sua supremacia face aos
poderes públicos.

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i) A Constituição limita maiorias circunstanciais ao respeito pelos direitos fundamentais


e pela separação de poderes.
 Sendo a democracia, na sua formulação mais simples, o regime que funciona segundo a
regra da maioria, tal regime corre o risco permanente de se ver corrompido pela própria
decisão da maioria. Como a experiência histórica demonstra, um poder eleito
democraticamente pode aproveitar a sua supremacia conjuntural para subverter as regras
do funcionamento democrático e para afetar os interesses e direitos dos que divergem
dessa maioria, dos que se opõem aos titulares conjunturais do poder político.
 Assim, a maioria só pode governar de acordo com regras pré-estabelecidas. Nesse sentido,
a Constituição salvaguarda um conjunto de valores, direitos e princípios que devem ser
permanentemente preservados da decisão da maioria que governa. A Constituição
assegura a garantia dos direitos fundamentais e da separação de poderes contra as
maiorias políticas conjunturais.
 Por isso, a democracia constitucional é uma democracia limitada pelos valores
constitucionais, na medida em que as maiorias que governam ficam privadas de dispor
livremente dos interesses, bens e direitos protegidos pela Constituição, que delimita toda
uma área de reserva que a maioria política têm de respeitar e que só pode invadir de forma
condicionada, limitada e vigiada.
 A Constituição serve para limitar, controlar e vigiar os governantes e, dessa forma, garantir
a liberdade dos governados; significa sempre limites dos governantes, problemas para o
Governo, dificuldades no livre desenvolvimento da sua ação. Uma Constituição que não
incomode o Governo, que não perturbe a sua ação, não é verdadeiramente uma
Constituição ou, rigorosamente, não é uma Constituição normativa, que funciona como
norma jurídica e se impõe à vontade dos governantes.

ii) A Constituição é norma jurídica, vinculativa para os poderes públicos


 Em Estado de Direito democrático, a Constituição não é apenas um documento com valor
moral, político e simbólico, um conjunto de princípios éticos e de justiça em que a
sociedade se revê. É, sobretudo, Direito, norma jurídica vinculativa para os poderes
públicos, que ficam juridicamente subordinados ao seu cumprimento e obrigados a um
conjunto de deveres relativos ao respeito, proteção, garantia e promoção dos direitos
constitucionais. É a lei fundamental que regula o funcionamento dos órgãos do Estado e
dos poderes públicos.
 Não obstante a Constituição ser Direito criado pelo Estado, este fica juridicamente
vinculado a observá-la, já que o Estado é Estado de Direito, o que significa que ele próprio
está vinculado aos direitos fundamentais e ao império da lei. Nesse sentido, e por força da
Constituição, o Estado é ficcionado como pessoa jurídica, igual às pessoas comuns. É
obrigado a relacionar-se com as outras pessoas jurídicas sob a égide do Direito, sob o
império da lei e de boa-fé; é obrigado a respeitar os compromissos que assumiu, observado
os direitos e os princípios constitucionais a que se tenha vinculado.

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iii) A Constituição institui uma justiça constitucional que garante a sua supremacia face
aos poderes públicos
 Para assegurar a subordinação do Estado, que tem o monopólio da força coerciva, à
Constituição, às normas jurídicas que limitam e vinculam os poderes públicos, bem como
a conformidade dos seus atos a essas normas e o respeito pelos direitos fundamentais, a
Constituição institui um poder judicial independente com a especial competência de
administrar a justiça em matéria jurídico-constitucional, ou seja, de fiscalizar a
constitucionalidade das leis. Assim, em Estado constitucional, os poderes públicos só
governam nos limites da Constituição, fixados por um Tribunal Constitucional ou Supremo
Tribunal.
 Da mesma forma que o poder judicial garante a observância do Direito em vigor pelos
cidadãos, também garante a observância, pelos poderes públicos, da Constituição, norma
jurídica à qual estão especialmente vinculados (as imposições constitucionais dirigem-se
aos poderes públicos, e não aos cidadãos). Assim, cabe também ao poder judicial
independente verificar se os poderes públicos respeitam as imposições que a Constituição
lhes dirige, designadamente, verificar se o Governo e o legislador aprovam leis
inconstitucionais, se violam os direitos fundamentais
 Desta forma, o edifício do Estado de Direito democrático só fica coroado com a instituição
de uma justiça constitucional.

Importância da justiça constitucional:


 Em democracia, a possibilidade de uma lei aprovada pela maioria (por um Governo ou por
um Parlamento democraticamente eleitos) ser anulada por um Tribunal é problemática.
De facto, uma entidade não escrutinada democraticamente vem revogar a decisão da
maioria democrática, fazendo prevalecer a vontade da minoria. A justiça constitucional é,
de algum modo, uma instituição contra maioritária.
 Porquê admitir uma instituição contra maioritária no regime em que é a maioria que
governa, o regime democrático? Porque não se pode prescindir de uma justiça
constitucional para garantir a supremacia da Constituição, que pretende ser norma jurídica
vinculativa para a maioria política e os poderes públicos, e não apenas retórica política ou
obrigação moral.
 Praticamente todos os Estados de Direito tem uma justiça constitucional nestes moldes,
que tem o poder de revogar, por inconstitucionalidade, as decisões do legislador
democrático. A inexistência de uma justiça constitucional forte em ordens jurídicas
democráticas e de Estado de Direito é excecional, verificando-se, em geral, em
democracias de inspiração britânica e onde, historicamente, tanto o funcionamento do
regime democrático como a garantia dos direitos fundamentais se puderam estabilizar sem
a necessidade dessa instituição.

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E) Estado autocrático do século XX


O Estado social e democrático de Direito não foi, no pós-1ªGG, a única alternativa ao
Estado de Direito liberal. Surgiram outras propostas que, ao contrário do Estado social e
democrático de Direito, punham em causa os princípios fundamentais do Estado de Direito
liberal, rejeitando as ideias de Estado de Direito, de democracia, de direitos fundamentais e de
Constituição como mecanismo de limitação jurídica do poder. Assim, e apesar de situado
cronologicamente na fase constitucional, a Constituição no Estado autocrático dos séculos XX
e XXI perde o caráter material que lhe conferiu o liberalismo, ou seja, deixa de ser um estatuto
jurídico com o objetivo de limitar o poder e garantir os direitos fundamentais através da
separação de poderes, sendo rebaixada a um instrumento de legitimação formal do poder, que
pode manipular as normas constitucionais e fazer delas letra-morta.

Estado autocrático de matriz revolucionária e anticapitalista


 Teve como matriz a experiência desenvolvida na Rússia após a Revolução de 1917, inspirada
na crítica marxista do sistema capitalista (Estado soviético). A teoria de Marx e Engels tinha
como objetivos uma transformação revolucionária da sociedade, a socialização dos meios
de produção e a instauração de um Estado transitório de ditadura do proletariado, como
meio para alcançar uma sociedade sem classes e sem Estado: a sociedade comunista.
 Contudo, a revolução socialista fora pensada para países capitalistas desenvolvidos, onde a
revolução industrial tinha feito do proletariado uma classe maioritária e politicamente
preparada para assumir os destinos da sociedade. Acabou por se verificar que a Revolução
Russa, como todas as que nela se inspiraram, surgiu num país economicamente atrasado e
com um proletariado débil.
 O Partido Bolchevique (depois Partido Comunista), através de insurreição armada, saiu
vitorioso da revolução, embora tenha alcançado menos de 25% dos votos na eleição para
a Assembleia Constituinte. Decidido a conservar o poder a todo o custo, adaptou, sob a
égide de Lenine, os ideais marxistas à sociedade e à revolução russa. Surge o marxismo-
leninismo.
 Numa fase de transição, o Estado soviético, ao contrário do que se propunha na teoria
originária, começa a reforçar-se a expandir-se de forma desmesurada, à medida das
crescentes necessidades de defesa do regime soviético face ao cerco capitalista. Em vez de
socialização, há uma estatização dos meios de produção: não são os coletivos de
trabalhadores e as organizações sociais que detêm e gerem os meios de produção
coletivizados, mas sim o aparelho de Estado partidariamente hegemonizado pelo Partido
Bolchevique.
 As instituições da democracia representativa, dita democracia burguesa, são suprimidas. O
pluralismo político dos tempos da Revolução dá origem a um regime de partido único que
controla todas as organizações sociais e todo o aparelho do Estado. Há uma completa
identificação Partido/Estado e o controlo absoluto da vida política por esse partido.

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 No plano da relação Estado-indivíduo, é rejeitada qualquer ideia de limitação jurídica dos


poderes. A conceção de direitos fundamentais do Estado de Direito, como direitos
individuais contra o Estado, é contraditória com a natureza do Estado Soviético. Já que o
Estado soviético é um Estado dos trabalhadores, supostamente dirigido pelos mesmos, a
ideia de reconhecimento de direitos fundamentais dos cidadãos contra o Estado é
logicamente excluída, pois ninguém precisa de direitos contra si próprio. Os direitos
fundamentais são condicionados e funcionalizados em função dos interesses do regime
definidos em cada momento pelo partido único, e só são reconhecidos na condição de não
serem exercidos à margem ou contra o poder instituído.
 Estas conceções, que começaram por ser justificadas como exceções, acabaram por ser
progressivamente teorizadas como elementos estruturais indispensáveis ao novo modelo
de Estado soviético, vindo a ser consagradas constitucionalmente e a ser sistematizadas na
“teoria marxista-leninista do Direito e do Estado”.
 Este novo tipo histórico de Estado, que marcou a história do séc. XX, foi mais tarde
reproduzido na China, Europa de Leste, América e África. Todavia, com a queda do muro
de Berlim, houve um desmoronar do modelo como alternativa ao Estado de Direito, apenas
subsistindo experiências residuais, como a China e a Coreia do Norte.

Estado autocrático de matriz reacionária e conservadora


 Entre as duas Guerras emerge uma nova corrente de pensamento conservador,
reacionário, antiliberal e antidemocrático. Anti-socialista e anticomunista, é frontalmente
oposta à ideia de luta de classes, ao internacionalismo, ao movimento operário
independente e ao sindicalismo livre. O regime democrático e liberal era considerado
decrépito e incapaz de resistir à ameaça soviética que, no seu entender, pesava sobre a
sociedade ocidental.
 Havia um culto dos valores da autoridade, da superioridade nacional ou rácica e do
expansionismo territorial. Recusavam-se por isso os mecanismos de escolha democráticos,
entregando os destinos do país e a regeneração política e social às elites nacionais ou a um
indivíduo predestinado a encarnar o espírito da Nação ou Povo. Para os novos reacionários,
a defesa dos valores que, no seu entender, caracterizavam o legado essencial da sociedade
ocidental só podia ser feita através de um Estado forte, autocrático e totalitário.
 Este indefinido corpo ideológico inspirou as experiências do fascismo italiano (1922 a 1943),
do nazismo alemão (1933 a 1945), do salazarismo (1932 a 1976), do franquismo (1939 a
1975) e de outras, nomeadamente na Grécia, Turquia, Polónia e Hungria.
 Com as adaptações necessárias à sua transplantação para outros contextos, é possível
delinear um conjunto de características que permitem a autonomização de um Estado
autocrático conservador do século XX. Na base da organização política destas experiências
está a atribuição ao poder instituído de uma autoridade plena e ilimitada. Recusam-se
direitos e liberdades dos indivíduos contra o poder, que pode ser designado como Estado,
Nação ou comunidade. Não se concebem fins ou atividades particulares imunes à

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intervenção autoritária do poder estatal. Quando existe, o partido único transforma-se


numa entidade pública confundida com o Estado. O poder e controlo sobre o aparelho do
Estado concentram-se num grupo reduzido ou mesmo numa só pessoa, o ditador. Ao
Estado totalitário não se reconhecem limites.
 O valor da pessoa humana não reside em si mesma, mas é reconhecido à medida da sua
integração no Estado ou nos corpos sociais intermédios, a Nação, a corporação ou a família.
 Proclama-se o caráter dogmático do Estado, esteja ele identificado com uma ideologia, uma
religião, uma raça ou uma comunidade nacional. Rejeita-se o pluralismo, os mecanismos e
instituições da democracia representativa (negando-se a possibilidade de existência de uma
oposição legítima), a dissidência política e os direitos de oposição e das minorias sociais,
étnicas ou religiosas.
 Após a II Guerra Mundial, este modelo de Estado perdeu irreversivelmente qualquer
viabilidade como alternativa ao Estado de Direito. Subsistiu por mais algumas décadas, de
forma decrépita, em experiências periféricas, como Portugal e Espanha. Renasceu
esporadicamente em golpes militares na América Latina. Nos nossos dias, refugia-se, de
forma nunca abertamente assumida, em círculos intelectuais e académicos nostálgicos das
velhas ditaduras, bem como nos movimentos populistas conservadores do séc. XXI.

F) Estado fundamentalista islâmico


Características gerais:
 O Estado fundamentalista islâmico surge a partir dos anos 1980, com a revolução iraniana
de 1979. Vem pôr em causa as características fundamentais do Estado moderno:
o Soberania – é entendida como soberania divina, e não a soberania popular do
Estado de Direito.
o Nacionalidade – não é relevante para o EFI; o importante é a comunidade de fieis,
que se distingue dos infiéis.
o Laicidade – o Estado fundamentalista islâmico é um Estado confessional.
 Verifica-se a definição confessional do Estado, a adoção do Islão como religião oficial, a
elevação dos valores islâmicos a valores constitucionais, a adoção da soberania divina como
a única reconhecida pelo Estado e o reconhecimento da shari’a como lei vigente ou fonte
de Direito. No plano constitucional formal há uma diversidade significativa nas referências
ao Islão, que pode ser a religião do Estado ou religião oficial. A shari'a (lei islâmica,
simultaneamente norma jurídica, moral e religiosa e que determina como o muçulmano se deve comportar)
pode ser considerada a fonte de todo o Direito. Na Arábia Saudita o Corão (livro sagrado que
recita a palavra de Deus) e a Sunnahh (reportório de caráter normativo retirado dos ensinamentos do
profeta) são considerados a própria Constituição. Por outro lado, há também experiências
constitucionais, apesar de minoritárias, e não obstante a dominância social da religião, em
que o Estado se declara como secular, como a Turquia.

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 Porque a soberania constitucional é divina, a lei é interpretada através de escrituras ou de


intérpretes qualificados, e não pode existir separação de poderes ou independência do
poder judicial. Mais importante que a vontade popular expressa em eleições, é a vontade
divina, interpretada pelos clérigos/jurisconsultos.
 Há uma recusa do princípio da separação entre esfera pública e esfera privada, entre Estado
e Igreja, política e religião, e uma indistinção entre lei divina e norma jurídica, religiosa e
moral. A natureza teocrática do EFI obriga ao apoio discriminatório à confissão religiosa, às
mesquitas e às escolas islâmicas, impõe o cumprimento das conceções de inspiração
religiosa a todos os cidadãos, muçulmanos ou não, e implica a limitação dos direitos
constitucionalmente reconhecidos e a recusa do princípio da igual dignidade da pessoa,
nomeadamente na discriminação entre homens e mulheres e entre crentes e infiéis.
 Não há liberdade de expressão, de pensamento ou de criticar e abandonar a religião oficial,
havendo uma imposição totalitária do fanatismo religioso e da forma de vida por ele
determinada.

História:
 Na governação islâmica clássica havia um equilíbrio institucional (esta é uma interpretação
controversa) em que os clérigos/jurisconsultos (considerados herdeiros do profeta,
interpretavam a lei e legislavam) tinham uma posição cimeira enquanto autoridade religiosa
e legal que o califa (sucessor ou representante do mensageiro de Deus) tolerava, reconhecia e
favorecia. Não existindo regras de sucessão (pelo menos entre os sunitas), a assunção do
poder como califa perante a comunidade dependia de uma legitimação religiosa, moral e
legal fornecida pelos jurisconsultos. Se aos clérigos cabia criar lei, o califa administrava as
condições da sua aplicação, assegurando a observância pelos juízes estatais das regras da
shari’a tal como tivessem sido apuradas pelos jurisconsultos.
 O poder político na governação islâmica clássica acabava por ser limitado, já que estava
condicionado pela observância das regras vigentes, como as da shari’a. Ao contrário do que
acontecia no ocidente, a indissociação das esferas religiosa, moral, política e legal era um
fator de moderação do poder político, que trazia previsibilidade e estabilidade à vida social
e constituía garantia da propriedade face ao poder.
 Nos séculos XVIII e XIX diversas convulsões internas e eventos político-militares com a
Rússia e com as potências europeias iniciaram o declínio do Império Otomano (que viria a
cair com a 1º Grande Guerra). Esta crise deste centro institucional do Islão foi imputada ao
domínio avassalador da religião na sociedade, relativamente ao que se passava no ocidente.
 O Tanzimat (séc. XIX) foi o período de reformas com vista à modernização, secularização e
à ocidentalização do Império, que se traduziu em mais pluralismo e liberdade religiosa e na
aprovação de uma Constituição escrita (1876), ainda que efémera. A função legislativa foi
atribuída a assembleias de caráter parlamentar, houve uma estatização e burocratização
do sistema de justiça e um processo de codificação legal, que significava a positivação da

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shari’a. Estando a lei divina acessível aos juízes e aos tribunais estatais, a função dos
clérigos/jurisconsultos tornou-se dispensável.
 Este processo de reformas culminou no fim da governação islâmica clássica, mas levou ao
estabelecimento de regimes ditatoriais, nacionalistas, repressivos, corruptos e dotados de
poder não limitado, que alienavam o apoio popular, sustentando-se na força militar e na
adesão das elites locais. Por beneficiarem de apoios frequentes dos Estados Unidos e de
países europeus, criou-se na esmagadora maioria da população (pobre, excluída e
profundamente religiosa) um sentimento de hostilidade ao processo de ocidentalização e
ao ocidente, e uma associação da secularização (acompanhada da desvalorização social dos
clérigos) às experiências dos regimes ditatoriais. O Tanzimat foi socialmente percebido
como uma tentativa de marginalização da religião e como o advento da opressão, do
autoritarismo e da corrupção. No plano das relações internacionais, a secularização
coincidia com a inferiorização do mundo muçulmano face ao ocidente, alimentando-se o
sentimento de frustração e humilhação nacional e religiosa.
 Enquanto no ocidente a confusão entre Estado e igreja, e política e religião, foi um fator de
opressão, intolerância, perseguição e justificação para a instauração de um poder absoluto,
no mundo muçulmano aconteceu o oposto. A memória das tentativas de secularização
contrasta com uma memória da anterior governação islâmica clássica de equilíbrio,
contrapeso e moderação das tendências autoritárias do poder político.
 Na década de 30 do séc. XX começa a criar-se uma nostalgia em relação à época dourada,
apelando-se a um reatamento dos laços com o Islão e com a shari’a. Movimentos islâmicos,
alguns transnacionais, fazem um apelo generalizado e bem-sucedido ao renascimento do
Estado islâmico, propondo-se a realizar os valores islâmicos de justiça e bem, e a pôr termo
à corrupção e à arbitrariedade dos governos, devolvendo prestígio à comunidade islâmica
no mundo.
 Com a Revolução iraniana de 1979 o fundamentalismo islâmico ganha um novo folego. Os
clérigos/jurisconsultos não recuperaram apenas uma posição social cimeira, mas
governaram de forma exclusiva, sem limites e concessões no monopólio da interpretação
e aplicação da lei divina, legitimados pelo líder supremo da revolução, Khomeini. Depois da
revolução o projeto de instauração de um Estado fundamentalista replicou-se pelo mundo
islâmico. Se a religião servia outrora de limitação do poder estatal, surge agora como a base
religiosa de um poder jurídico-clerical radical e autoritário.

Compatibilidade do EFI com o Estado de Direito democrático:


 Pela via revolucionária ou pela via democrática, forças políticas islâmicas, sustentadas em
massivo apoio popular, chegam ao poder, implementam programas de confessionalização
do Estado e instauram regimes ditatoriais e autocráticos. Em eleições democráticas, a
instauração de um programa de adoção da shari’a como fonte de Direito obtém resultados
expressivos, e resulta invariavelmente na instituição de regimes autoritários. Já programas
de secularização, reforma, ou ocidentalização, falhando no apoio popular, só se sustentam
à custa da imposição da força militar e da repressão das forças islâmicas. Aprisionadas neste

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dilema, populações de maioria muçulmana estariam condenadas a viver em ditadura e


opressão.
 Surge a questão de saber em que medida movimentos ou Estados que assumem o caráter
confessional do Estado, mas que proclamam a ideia de eleições democráticas e da eleição
de titulares de cargos de poder, são compatíveis com a democracia e com o Estado de
Direito.
 Em teoria, não há à partida uma incompatibilidade insuperável entre Islão e democracia,
podendo admitir-se a existência de parlamentos democraticamente eleitos com a função
legislativa. Estas assembleias, politicamente hegemonizadas por partidos islâmicos,
procederiam à codificação da shari’a, o que constituiria uma verdadeira democratização da
lei divina, e sustentariam a confessionalidade do Estado. Assim, numa visão de democracia
assente exclusivamente na regra da maioria, ela não seria posta em causa.
 Apesar disso, e podendo o Estado Islâmico funcionar temporariamente em termos
democráticos, seria provável que uma inicial ditadura da maioria rapidamente transitasse
para uma ditadura de um grupo, de uma casta ou de uma confissão religiosa.
 No entanto, as maiores dúvidas de compatibilidade residem na relação problemática entre
Estado de Direito democrático e Estado islâmico. Quando se coloca a questão da soberania
constitucional, verifica-se que o Islão repugna a hipótese de soberania popular, que existiria
em prejuízo da soberania divina, segundo a qual quaisquer normas (mesmo que aprovadas
por assembleias parlamentares) que contrariem os valores islâmicos, são nulas. Tal
significaria a rejeição da admissibilidade constitucional de eventuais vitórias de forças
políticas seculares, ou anti-islâmicas.
 Outras questões são igualmente inultrapassáveis, como o não reconhecimento do princípio
da separação de poderes e a rejeição da igual dignidade da pessoa humana, expressa na
discriminação entre homens e mulheres, entre crentes e infiéis, e no acesso a cargos
políticos. Também as liberdades de expressão, pensamento e de ter, não ter, abandonar ou
criticar uma religião são postas em causa.
 Há, pois, uma incompatibilidade estrutural entre Estado de Direito democrático e
confessionalização do Estado. Assim, as modalidades benignas de Estado islâmico, seriam
consideradas de tipo de Estado de transição, e as modalidades fundamentalistas seriam de
tipo de Estado autocrático.

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2. FORMA DE GOVERNO

A forma política forma de governo depende de um único aspeto:


§ tempo e modo de sucessão no órgão chefe de Estado.

São formas de governo:


 Monarquia → cargo de caráter vitalício.
 República → mandato temporariamente limitado.

No entanto, monarquia e república acabam por se distinguir em função da via,


hereditária ou não hereditária, da sucessão dos titulares do órgão de chefia do Estado.

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3. REGIME POLÍTICO

O regime político refere-se às diferentes modalidades de exercício de poder político no


Estado constitucional, considerando:
i) O relacionamento institucional que se estabelece entre governantes e governados,
ii) Titularidade e exercício efetivo do poder constituinte originário e derivado,
iii) A existência, natureza e peso e das instituições representativas dos cidadãos,
iv) Os graus e formas de participação dos governados no exercício do poder,
v) O papel das eleições, a existência de pluralismo e o reconhecimento dos direitos de
oposição e alternância do poder.

São regimes políticos:


 Estado autocrático
o Monarquia absoluta
o Ditadura
 Estado de Direito
o Monarquia constitucional
 Monarquia limitada
 Monarquia orleanista
 Monarquia parlamentar
o Governo representativo liberal
o Democracia representativa

Principais regimes políticos da atualidade:


 Regimes de democracia representativa – legitimidade democrática; renovação eletiva
dos mandatos; participação dos governados no exercício do poder através de um direito
igual à representação em instituições democráticas, construídas com base no
pluralismo de expressão, de organização e de alternativa.
 Regimes ditatoriais – concentração de poderes; inexistência de pluralismo, eleições
democráticas e direitos fundamentais.
 Regimes de transição

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A) Regimes de Estado autocrático


Monarquia absoluta Ditadura

> A ausência de pluralismo político e de verdadeira divisão de poderes determina a


simplicidade e uniformidade de regimes políticos de monarquia absoluta e ditadura.

> Regime típico do Estado


absoluto do séc. XVIII. > Regime político típico das várias formas de Estado
autocrático dos séculos XX e XXI, como o Estado
> Existe atualmente na Arábia fundamentalista islâmico e o Estado fascista.
Saudita.

> Ausência de pluralismo político, de direitos fundamentais, de liberdades democráticas, de


alternância do poder, de oposição e de eleições livres.

> Não têm Constituição ou têm Constituição semântica ou nominal.


> No plano das relações internacionais é importante a existência de uma Constituição, que
garante alguma legitimidade, ainda que falsa.

> Legitimidade monárquica > Pretensa legitimidade democrática, segundo um conceito de


de fundamento divino ou Povo que se identifica com uma raça, grupo social ou
racional. O Rei é a origem e comunidade religiosa; teoricamente o Povo tem a titularidade
fundamento do poder. do poder.

> Arbitrariedade no exercício


> Mesmo que haja diferenças na estruturação jurídica dos
do poder. Concentração de
poderes, há sempre uma concentração efetiva do poder num
todos os poderes no
grupo restrito ou numa só pessoa que se proclama intérprete
monarca.
privilegiado ou exclusivo dos desígnios do Povo.
> Todo o exercício da
> Consoante o grupo restrito que detém o poder, existem
autoridade pública (da
ditaduras: pessoal, de partido único (ou do seu chefe), militar,
administração pública aos
de uma casta ou confissão religiosa, de um clã ou de uma
Tribunais) é feito em nome
família, ou a combinação destas possibilidades.
do Rei.

> Instituições representativas e eleições livres e democráticas


ou não existem ou são artifícios formais utilizados para fins de
> Ausência de instituições
propaganda. Mesmo quando as eleições são teoricamente
representativas.
livres, o contexto prévio, de falta de pluralismo e liberdade de
expressão, já condicionou o resultado.

> Relacionamento entre governantes e governados: os súditos não participam no exercício


do poder político.

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B) Monarquia constitucional
Monarquia limitada Monarquia orleanista Monarquia parlamentar

> Monarquia constitucional: forma de governo monárquica com Constituição.

> Séculos XIX, XX e XXI


> Século XIX
> Regime político sem
> Resulta do processo
> Dominante no século XIX identidade individualizada;
revolucionário francês que
pode surgir como governo
substitui os Bourbon pelos
representativo ou como
Orléans.
democracia representativa.

> Existência de pluralismo de instituições representativas. Respeito pelos direitos


fundamentais e pelas liberdades democráticas. Cada vez mais de um regime para o seguinte.

> Constituição normativa, que limita juridicamente o poder político, ou seja, há separação de
poderes. O Rei está sujeito a regras jurídico-constitucionais previamente estabelecidas.

> Legitimidade monárquica: > Compromisso entre > Legitimidade democrática.


o Rei é origem e legitimidades monárquica e > Constituição exclusivamente
fundamento do poder democrática. aprovada pelos representantes
político. > Constituição resulta de pacto do Povo reunidos em
> Carta Constitucional entre Rei e Parlamento: é Assembleia Constituinte.
aprovada e dada ao Povo aprovada por uma Assembleia Monarca assina ou promulga a
pelo Rei, que aceita Constituinte popular, mas Constituição (ato formal e
autolimitar o seu poder. sujeita a sanção real. simbólico).

> Dualidade Rei (executivo) / Parlamento (legislativo)


numa estruturação compromissória dos poderes.

> Rei mantém o executivo, mas > Monarca desprovido de


> Rei tem posição central no perde o poder moderador, poder político relevante.
regime; detém poderes saindo as instituições > Executivo politicamente
executivo e moderador. representativas reforçadas. responsável perante
> Governo responsável > Governo politicamente Parlamento.
perante Rei. responsável perante Rei e
Parlamento.

> Parlamento com maior poder


> Parlamento parcialmente > Poder reside no Povo e é
e relevância. Peso da câmara
eletivo: câmara alta não exercido através dos
baixa predominante ou até
eletiva atenua o poder da representantes eleitos no
exclusivo; ou câmara alta
câmara baixa eletiva. Parlamento.
eletiva.

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O poder moderador, um quarto poder, teorizado por Benjamin Constant após o


Congresso de Viena, confere grande intervenção ao Rei nos vários poderes (legislativo,
executivo e judicial), sob a pretensa de moderar os seus impulsos. Algumas das prerrogativas
do monarca são: nomear/exonerar juízes, membros do governo e da câmara alta do
Parlamento, exercer o direito de veto e destituir a câmara baixa.

C) Governo representativo liberal e democracia representativa


Governo representativo liberal Democracia representativa

> Regime típico do Estado de Direito liberal > Estado de Direito social e democrático
> Séc. XIX até pós 1ªGG > Séculos XX e XXI

> Há uma grande afinidade nos princípios e valores de ambos os regimes, que assentam nas
ideias de soberania popular, democracia e dignidade da pessoa humana.
> Contudo, só com o sufrágio universal se tiram todas as consequências do princípio
democrático. Um eleitorado constituído por todos assegura verdadeiro pluralismo político,
alternância no poder e eleição livre e regular dos titulares do poder. Assim, só a democracia
representativa é verdadeiramente democrática.

> Constituição normativa, aprovada por uma Assembleia constituinte democraticamente


eleita, e que limita juridicamente o exercício do poder político.

> Legitimidade unicamente democrática,


> Legitimidade democrática plena.
ainda que seja embrionária.
> Alargamento progressivo do sufrágio
> Sufrágio restrito (censitário, capacitário,
eleitoral ao longo do séc. XX, até chegar ao
rácico e masculino) – limitação imposta pela
sufrágio universal, que resulta numa grande
ideologia liberal da época e pelos interesses
heterogeneidade ideológica, social e cultural
económicos que lhe estavam associados.
do eleitorado.
> Ao Povo correspondem apenas as classes
> O Povo é considerado como Povo de todos
proprietárias, uma minoria da população que
os cidadãos, de todas as pessoas sob
constitui uma massa eleitoral homogénea,
jurisdição do Estado, sem discriminação
com a mesma mundividência e os mesmos
económica, de sexo, de religião ou de raça.
interesses políticos e económicos.

> Em ambos os regimes políticos há separação de poderes

> O Parlamento é o centro do poder político.


Os deputados têm um mandato nacional e
representativo, o que quer dizer que cada
deputado não representa apenas os eleitores
do círculo pelo qual foi eleito, mas todos os

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cidadãos, sendo portador de uma vontade


própria.
> O governo representativo é, pois, o regime
baseado na eleição dos representantes do
Povo ao Parlamento.
> O executivo é um órgão colocado
progressivamente sob a dependência do > Quanto ao relacionamento jurídico-
Parlamento e perante ele exclusivamente institucional entre os órgãos de poder político
responsável. em Estado de Direito de democracia
> O chefe de Estado não é um órgão representativa, ver forma política “sistema de
politicamente ativo, pois apenas tem poderes governo”.
formais, simbólicos e representativos. Pode
ser um Rei (monarquia parlamentar), ou um
Presidente da República (república
parlamentar), normalmente designado ou
eleito pelo Parlamento e que, em geral, pode
ser por ele destituído.

> Devido à restrita conceção de Povo, as > Corpo eleitoral, que se identifica com a
eleições ganham um caráter de designação do população adulta, é diversificado, disputando-
candidato, pertencente às classes se interesses contraditórios.
proprietárias, que apresenta maior > Assumem uma função de avaliação política
competência, habilitação e peso local do exercício do mandato do executivo
(caciquismo). anterior, dando origem à formação de um
> O candidato não se apresenta a eleições novo Governo.
com programa eleitoral nem vinculado a um > Eleição constitui instrumento institucional
compromisso político com os eleitores, tendo fundamental de participação no exercício do
grande autonomia e vontade própria. poder, da sua fiscalização e de garantia da sua
> A autonomia dos eleitos confere grande alternância.
peso e legitimidade ao Parlamento, saindo > Mais que a designação da pessoa a exercer
reforçado face aos outros órgãos. o mandato de Deputado, as eleições
Paradoxalmente, é a fraca legitimidade constituem uma representação de interesses
democrática dos Parlamentos que lhes dá o diversos e uma escolha entre orientações
prestígio de que beneficiavam no séc. XIX. políticas e programas de governo
> Sistema eleitoral pouco desenvolvido. Tende essencialmente diferentes.
a ser maioritário e uninominal. > Sistema eleitoral tende a ser proporcional.

> A heterogeneidade do eleitorado,


> Os partidos políticos ainda não fazem sentir
transporta-se para os partidos, que são muito
a sua presença, como se virá a projetar nos
diferenciados entre si, preservando uma
séculos XX e XXI.
história e uma identidade próprias.

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> Numa primeira fase, surgem organizações > A escolha do programa de governo é
políticas pouco estruturadas, sendo clubes de decisiva, adquirindo os partidos uma
reflexão e discussão, ou comitês eleitorais de importância muito maior.
apoio a candidatos, mas sem caráter de > São essencialmente partidos de massas,
permanência e sem ligação entre si. Nos que querem recrutar o maior número de
Parlamentos, os grupos parlamentares não aderentes. Caracterizam-se por deter a quase
têm grande coesão, disciplina e vinculação exclusividade da representação política
partidária. Têm intervenção limitada, mesmo (porque detêm a quase exclusividade da
em períodos eleitorais. competência para a apresentação de
> Só numa fase posterior surgem candidaturas). São estruturas de caráter
verdadeiramente partidos políticos. São permanente, com forte disciplina interna e
essencialmente partidos de quadros, uma direção centralizada. Os grupos
organizados em torno de notáveis locais, que parlamentares são assentes na solidariedade
dispõem de grande influência no seu círculo partidária e na disciplina interna, procurando
eleitoral. Não se preocupam com o uniformizar o sentido de voto dos seus
recrutamento de um grande número de Deputados, que são condicionados por
aderentes, não se estruturam de forma arriscarem o futuro da sua carreira política ao
centralizada, não dispõem de uma direção divergirem da orientação da direção
unificadora e têm uma grande fragilidade partidária. Assim, os deputados têm curta
programática. autonomia na atuação parlamentar.
> Há uma transferência do mandato dos
deputados para os partidos; a maioria dos
deputados não são sequer conhecidos pelos
eleitores.

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4. PARTIDOS POLÍTICOS E SISTEMA ELEITORAL

A) Democracia representativa e partidos políticos


Pode dizer-se que a democracia representativa é um Estado de partidos: são os partidos
políticos, enquanto mediadores da representação política, que conferem ao voto dos cidadãos
um peso efetivo. Sem a transferência de poder dos Deputados para os partidos e para os grupos
parlamentares, os cidadãos não teriam o poder de escolher, punir ou retribuir o Governo em
funções, e de escolher um novo Governo. Sem partidos políticos, e sem voto retributivo, não
haveria democracia dos dias de hoje. Um cidadão descontente com o Governo atual, se o
pretende substituir por um diferente, tem novo poderoso instrumento no voto retributivo, ou
seja, nas próximas eleições penaliza o partido do Governo, votando num partido da oposição.
Nas últimas décadas, as democracias ocidentais e os partidos tradicionais atravessam uma crise
de representatividade e legitimação, expressa em grandes taxas de abstenção. A globalização da
comunicação e os novos meios de comunicação potenciam o desinteresse pela vida política, a
dissolução de uma anterior fidelidade do eleitorado, e consequentemente, uma volatilidade e
instabilidade dos sistemas partidários. O populismo e a comunicação informal de massas vêm afirmar
que a desilusão relativa à política através da crítica generalizada e indiferenciada aos políticos e aos
partidos, glorificando a abstenção e o desinteresse. A mobilização de camadas excluídas por parte de
projetos populistas antidemocráticos que promovem uma pretensa regeneração do sistema político,
alimentada pela falta de cultura democrática e pela propagação organizada de desinformação, pode
traduzir-se numa ameaça para a democracia representativa.
Paradoxalmente, a geração supostamente mais informada e preparada de sempre sofre do
maior analfabetismo político, e aceita passivamente ser governada por outros, conformando-se a viver
numa sociedade programada por princípios nos quais não se revê. Ainda assim, a abstenção não é um
mal absoluto a combater a todo o custo. A existência de uma fração da população que decide
sistematicamente não votar, por não ter interesse e não estar informada, ainda que tenha esse direito
ao seu dispor, pode ser uma defesa da racionalidade, ao salvaguardar a votação de um voto de sentido
aleatório ou arbitrário. A existência de níveis significativos de abstenção é perfeitamente integrável
numa democracia representativa e não constitui um verdadeiro risco para o sistema político.
Verifica-se uma marketização das campanhas eleitorais e a transformação dos partidos em
máquinas propagandísticas de apoio a candidaturas que, em caso de sucesso, redistribuem cargos no
aparelho do Estado aos respetivos militantes. Tendências estas associadas à progressiva transformação,
aos olhos do eleitorado, das eleições parlamentares em eleições para Primeiro-Ministro,
desvalorizando-se o papel dos Parlamentos e Deputados, e contribuindo para o afastamento desses dos
eleitores. Como solução para esse afastamento têm surgido mecanismos, inspirados na política norte-
americana, de eleição de líderes partidários em primárias, que as alargam a simpatizantes, reduzindo a
influencia dos aparelhos partidários, e constituindo um importante fator de renovação democrática.

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B) Sistema eleitoral
Sistema eleitoral:
 Em sentido lato – inclui normas sobre delimitação, número, magnitude, agregação e
sobreposição dos círculos eleitorais, capacidade eleitoral ativa e passiva, competência
para a apresentação de candidaturas, regime de votação e contagem e método
eleitoral.
 Em sentido restrito (método eleitoral) – método de conversão do número de votos
obtidos por cada candidatura em número de mandatos parlamentares.

Conceitos introdutórios:
 Capacidade eleitoral ativa – capacidade para eleger (direito de voto); em Portugal
adquire-se aos 18 anos.
 Capacidade eleitoral passiva – capacidade para ser eleito; em Portugal adquire-se aos
18 anos, exceto para Presidente da República (35 anos).
 Sufrágio universal – todos os cidadãos adultos têm direito de voto.
 Sufrágio restrito – restrições ao direito de voto, em função de requisitos patrimoniais
(sufrágio censitário), raciais (sufrágio rácico), de sexo (sufrágio masculino) ou de
instrução (sufrágio capacitário).
 Maioria relativa – maioria dos votos
 Maioria absoluta – mais de 50% dos votos

Com a passagem do governo representativo liberal para o regime de democracia


representativa, e a progressiva universalização do sufrágio, a questão da representação
parlamentar plural adquiriu uma relevância até aí desconhecida. Se no governo representativo
se tratava de escolher os mais capazes de um corpo social e politicamente homogéneo, na
democracia representativa outras preocupações se levantam – preocupações/finalidades do
sistema eleitoral em democracia representativa:
 Representatividade – justiça na representação das várias correntes políticas existentes
numa sociedade plural e democrática.
 Governabilidade – capacidade de produção de governos estáveis e de uma governação
eficiente.
 Responsabilidade – responsabilização dos eleitos perante os eleitores.
 Integração – capacidade de chamar à vida política e social todos os cidadãos,
designadamente os pertencentes a setores minoritários, marginalizados ou excluídos.
 Renovação – capacidade de abertura e de integração na vida política de novas
formações, ideias e interesses surgidos na sociedade.

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C) Sistema maioritário e sistema proporcional


Historicamente, o método adotado era o maioritário. O sistema proporcional surge no
século XIX, num novo contexto de sociedades divididas política, sociológica e etnicamente,
quando se generalização preocupações de justiça na representação de novos grupos. É o
método dominante na Europa, pese embora a responsabilidade histórica que lhe é
comummente assacada de ter permitido a chegada ao poder de correntes extremistas, como
o partido nazi. Diz-se que o séc. XIX foi o século dos sistemas maioritários, o séc. XX o dos
sistemas proporcionais e o séc. XXI o dos sistemas mistos.

Sistema maioritário Sistema proporcional

> Os mandatos são atribuídos a cada uma das


> Os mandatos são atribuídos, em cada candidaturas de forma tendencialmente
circunscrição, à candidatura que tenha obtido proporcional ao número de votos obtido.
a maioria dos votos.
> O número total de mandatos
> Normalmente a eleição é feita em círculos correspondente a cada círculo eleitoral é
eleitorais uninominais com a mesma fixado em função da respetiva população.
população (embora também possa ser em
círculos plurinominais). > Tende a gerar multipartidarismo.

> Tende a gerar bipartidarismo e > Assegura maior justiça da representação,


bipolarização. pluralismo, renovação, integração e a
estimulação de coligações interpartidárias.
> Assegura maior estabilidade,
governabilidade, responsabilidade dos eleitos > Provoca fragmentação partidária, dificulta a
e personalização do voto. formação de maiorias parlamentares sólidas,
gerando instabilidade governativa.
> Dificuldade em assegurar justiça na
representação, renovação e integração da > Dificuldade em garantir responsabilidade e
totalidade da população. personalização do voto, porque se vota numa
lista partidária, e não numa pessoa.

Advertência: a distinção entre os dois sistemas funda-se na técnica utilizada para


converter votos em mandatos, e não na composição mais ou menos proporcional da
assembleia parlamentar. Um Parlamento eleito por sistema maioritário pode ter uma
representação das forças políticas concorrentes mais proporcional que a de um outro em que
se tenha recorrido ao sistema proporcional.
A adoção de determinado método eleitoral condiciona o comportamento do eleitor,
que na eleição seguinte tende a votar considerando os prováveis efeitos do seu voto,
influenciando, a prazo, os resultados eleitorais. Por exemplo: um sistema eleitoral maioritário,
sobretudo de maioria relativa, tende, normalmente, a gerar sub-representação dos partidos
pequenos, dado que esses partidos raramente chegam à frente em cada círculo eleitoral,
independentemente do seu peso nacional. Em sucessivas eleições, os eleitores mais

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pragmáticos, percebendo que o seu voto não está a eleger deputados, tendem a votar de forma
útil em partidos com maiores possibilidades de eleger no respetivo círculo, ainda que mais
afastados das suas posições. Assim, ao efeito de sub-representação, acresce o efeito de
polarização do voto nos partidos maiores, o que tendencialmente gera menos partidos com
representação parlamentar e consequentemente maior possibilidade de formação de maiorias
absolutas de sustentação de governos estáveis. É o que acontece nos Estados Unidos, onde só
têm representação os dois maiores partidos: Partido Democrata e Partido Republicano.

D) Modalidades dos sistemas eleitorais


Modalidades de sistema maioritário
Círculos:
 Uninominais – é eleito o candidato que alcançar a maioria necessária – eleições
parlamentares no Reino Unido e nos EUA; cerca de metade dos deputados alemães.
 Plurinominais – lista que alcança maioria necessária elege todos os mandatos –
Assembleia Nacional portuguesa na Constituição de 1933; grandes eleitores do colégio
eleitoral que elege o Presidente dos EUA (em 48 Estados).
 Binominais – eleições legislativas na Inglaterra no séc. XVIII.

Eleição a uma volta:


 Maioria relativa – é eleito quem tem mais votos – first past the post do Reino Unido.
 Maioria absoluta – segunda volta instantânea ou sistema maioritário combinado com
voto preferencial alternativo – cada eleitor ordena os candidatos por ordem de
preferência. Se nenhum dos candidatos obtém maioria absoluta, elimina-se o candidato
menos votado. Procede-se à transferência das seguintes preferências dos eleitores do
candidato eliminado para os restantes, até que um obtenha, após transferências
sucessivas, maioria absoluta – eleições presidenciais irlandesas.

Eleição a duas voltas:


 Maioria relativa – eleições legislativas em França – acedem à segunda volta os
candidatos com mais de 12,5% dos votos, sendo eleito o vencedor da segunda volta.
 Maioria absoluta – eleições presidenciais em Portugal e França – dois candidatos mais
votados na primeira volta acedem à segunda.

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Modalidades de sistema proporcional


 Voto único transferível (método de Hare) – eleitor ordena os candidatos de acordo com a sua
preferência. Não há necessidade de obter maioria absoluta. É eleito quem alcança um quociente pré-
determinado na primeira preferência ou após transferências das preferências dos votos sobrantes.

 Sistemas de divisor comum – como o método de d’Hondt (eleições legislativas portuguesas).


 Sistemas de quociente – calcula-se um quociente necessário para a obtenção de cada mandato (valor
obtido através de diferentes métodos que assentam genericamente na divisão do número de votos pelo
número de mandatos). Cada lista obtém um número de mandatos correspondente ao número de vezes
que preenche inteiramente o quociente. Os restantes mandatos são distribuídos de acordo com
diferentes métodos.

 Sistemas de compensação – há mais que um nível de circunscrições territoriais para a


atribuição de mandatos. Para além das circunscrições locais, há outras regionais ou uma
nacional em que se atribuem mandatos com base nos votos sobrantes de cada lista que
não serviram para a eleição no primeiro nível por não atingirem o quociente necessário
– Assembleia Legislativa da R.A. dos Açores: cada ilha constitui um círculo eleitoral com
pelo menos dois deputados; há ainda um círculo eleitoral de compensação,
correspondente a toda a Região, que elege 5 deputados.

Sistemas mistos (ou com tendência dominante de um deles, mas com elementos corretivos do outro)
 Sistema misto é aquele que colhe elementos de cada um dos dois grandes sistemas,
agregando vantagens de ambos.
 Uma modalidade de sistema misto é a agregação simples dos dois métodos, isto é, a
eleição, de forma independente, de parte dos deputados através de um sistema e parte
através de outro – Rússia, Japão e Itália, onde se elege cerca de ⅔ dos deputados em sistema
de representação maioritária uninominal (first past the post) e um cerca de ⅓ em círculos
plurinominais com representação proporcional.

 Mas os sistemas mistos mais promissores são os sistemas proporcionais com adoção de
corretivos (ver abaixo).

Sistemas proporcionais com adoção de corretivos – três modalidades


1) Sistema proporcional com bónus eleitoral – atribui-se um prémio ou bónus de
maioria à lista mais votada. Se nenhuma lista obtiver maioria absoluta (e eventualmente
ultrapassar uma percentagem mínima), são lhe atribuídos mandatos suplementares de forma
a alcançar uma maioria absoluta dos deputados (na Grécia a lista mais votada tem um bónus
de 50 deputados) – este sistema assegura maior estabilidade e governabilidade, mas tem como
consequência uma sub-representação injustificada dos partidos que não ganharam o bónus.

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2) Sistemas proporcionais personalizados – sistema proporcional com corretivo de


personalização, utilizando-se simultaneamente o método maioritário – Alemanha é o
paradigma:
 Cada eleitor dispõe de dois votos: (i) um voto para a eleição, por maioria relativa, num círculo uninominal
local, de um candidato apresentado por um partido; e (ii) outro voto para a eleição, por sistema
proporcional, num círculo plurinominal regional (do estado federado, Land), de uma lista apresentada
por um partido.

 Procedimento: distribuição do número de mandatos que cada partido ganhou nos círculos plurinominais;
os deputados eleitos em círculos uninominais são deduzidos ao número de mandatos que cada partido
ganhou, em cada Land, nos círculos plurinominais – ex: o partido SPD elegeu, na Baviera, 25 deputados
pelo círculo plurinominal correspondente ao Estado. Nos círculos uninominais elegeu 15 deputados.
Então, esses 15 vão ser deduzidos aos 25; o SPD só elege 10 deputados pelo círculo plurinominal.

 No caso de um partido eleger mais deputados pelos círculos uninominais do que pelos círculos
plurinominais, procede-se a um aumento do número total de deputados, que assegure
proporcionalidade (aos mandatos extra chama-se de overhang seats)-

 Há ainda uma cláusula barreira – um número mínimo de votos ou mandatos a conseguir para poder ter
representação parlamentar – de 5% ou de três deputados eleitos em círculos uninominais.

3) Sistemas proporcionais com voto preferencial – a preocupação corretiva prende-se


com a escolha dos candidatos dentro de cada partido, através da ordenação da lista pelo
eleitor.
 Sistemas de lista não bloqueada – só se pode votar numa lista – duas opções.
o Eleitor vota numa lista, que pode ordenar.
 Se não ordena e há pré-ordenação – está a concordar com a pré-ordenação dos
candidatos apresentada pelo partido.
 Se não ordena e não há pré-ordenação – está apenas a dar um voto ao partido,
não favorecendo nenhum candidato individual.
o Eleitor vota num partido ou num candidato (a segunda opção é a escolhida pela
generalidade dos eleitores) – Brasil e Finlândia – todos os votos do partido e dos
seus candidatos são adicionados. A atribuição dos mandatos aos partidos faz-se de
forma proporcional ao número de votos obtidos na soma anterior. São eleitos por
cada partido os candidatos mais votados até preencher os mandatos atribuídos. Os
candidatos, ainda que propostos pelos partidos, fazem campanha autónoma.
 Sistema de lista aberta – eleitor tem direito a tantos votos quantos mandatos a atribuir
no círculo em que vota – pode concentrar os votos no mesmo candidato ou distribuí-
los por vários candidatos de diferentes listas.
 Sistemas de lista bloqueada – lista pré-fixada, insuscetível de ordenação. Este não é um sistema misto,
mas o sistema proporcional clássico.

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Os sistemas proporcionais personalizados e os sistemas proporcionais com voto


preferencial têm as vantagens ao sistema maioritário clássico:
 Maior participação eleitoral.
 Personalização do voto.
 Responsabilização do eleito, mais dependente do eleitor do que da direção partidária.

Contudo, também apresentam algumas desvantagens:


 Aumento significativo da complexidade da votação, que pode ser problemática em
sistemas já estabilizados.
 Categorias de candidatos e de deputados, consoante as circunstâncias da sua eleição.
 Diluição da disciplina partidária e diminuição da qualidade técnica dos candidatos.
 Sobretudo no voto preferencial, estimula-se a competição intrapartidária e o
desenvolvimento de campanhas individuais, à margem dos partidos, com a tendência
para o estabelecimento de redes de financiamento próprio e as inevitáveis
consequências do populismo e do localismo.
 No caso do Brasil, por exemplo: candidatos muito populares, como o palhaço Tiririca,
jogadores de futebol ou personalidades de televisão fazem eleger outros candidatos
menos populares pela sua lista. Tal leva a que candidatos eleitos (à custa de outros dos
mais populares) possam ter menos votos que outros não eleitos (de outras listas).
Ademais, há um desconhecimento das linhas programática dos partidos, podendo os
eleitores que votam num candidato do seu agrado acabar, sem ter noção disso, por
eleger partidos com ideologias das quais discordam, inclusivamente extremistas.

E) Sistema eleitoral em Portugal3


“O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos
cidadãos portugueses” (121º/1), sendo eleito “o candidato que obtiver mais de metade dos
votos validamente expressos, não se considerando como tal os votos em branco” (126º/1). Se
nenhum dos candidatos obtiver esse número de votos, proceder-se-á a segundo sufrágio, a que
concorreram apenas os dois candidatos mais votados que não tenham retirado a candidatura
(126º/2 e 3). O sistema é, pois, um sistema maioritário a duas voltas, por maioria absoluta.
O sistema eleitoral português para a Assembleia da República é um sistema de
representação proporcional (113º/5), com recurso ao método de D’Hondt em círculos distritais
(149º/1), ou seja, um sistema proporcional de divisor comum. A partir da 4ª revisão
constitucional (1997) admite-se a possibilidade de círculos uninominais (149º/1) e de um
círculo nacional (149º/2), ou seja, a possibilidade de adoção de um sistema de compensação

3
Explicação do Professor Pedro Delgado Alves

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com um corretor à proporcionalidade (no sentido de garantir maior responsabilidade e


personalização do voto). É proibido o estabelecimento de uma cláusula barreira (152º/1).

Explicação do método de d’Hondt constante da Lei eleitoral para a AR:


1) Apura-se em separado o número de votos recebidos por cada lista no círculo eleitoral
respetivo.
2) O número de votos apurados por cada lista é dividido, sucessivamente, por, 1, 2, 3, 4,
5, etc., sendo os quocientes alinhados pela ordem decrescente da sua grandeza numa
série de tantos termos quantos os mandatos atribuídos ao círculo eleitoral respetivo.
3) Cada lista recebe tantos mandatos quantos os seus termos na séria estabelecida pela
regra anterior.
4) No caso de restar um só mandato para distribuir e de os termos seguintes da série
serem iguais, o mandato cabe à lista que tiver obtido menor número de votos.

Problemas na evolução recente do sistema eleitoral português para a AR:


 Círculos eleitorais muito pequenos diminuem a proporcionalidade do sistema porque
apenas dão espaço a partidos de maior dimensão para ser competitivos, acabando por
provocar o voto útil nos maiores partidos ou determinar a não representação de
parcelas relevantes do eleitorado.
 Círculos eleitorais muito grandes tornam difícil ao eleitor conhecer os eleitos e
assegurar a qualidade da representação por essa via.
 Sendo o sistema de lista bloqueada, são as direções partidárias que elaboram as listas,
não tendo os cidadãos poder de escolha individual dos deputados.

Soluções:
 Reforma profunda do sistema com várias propostas no sentido da adoção de sistemas
de tipo alemão/neozelandês.
 Círculo nacional de compensação, evitando distorções à proporcionalidade.
 Fundir círculos de menor dimensão e/ou distribuir número de mandatos a eleger em
cada círculo de forma mais equilibrada.

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5. FORMA DE ESTADO

A forma política forma de Estado refere-se à estruturação interna do poder estatal, e


com a unidade/pluralidade do ordenamento jurídico-constitucional. São critérios distintivos:
i) existência de uma ou várias Constituições,
ii) existência de um ou mais poderes constituintes,
iii) existência de um ou mais ordenamentos jurídicos originários,
iv) existência de um único poder político ou de vários conjuntos de instituições de governo.

São formas de Estado:


 Estado unitário
o Estado unitário simples – Irlanda
o Estado unitário regional
 Integral – Espanha
 Parcial ou periférico – Portugal
 Estado composto
o Estado Federal – Estados Unidos da América
o União Real – Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte; Reino Unido de
Portugal, do Brasil e dos Algarves
 União pessoal – União Ibérica (1580) – vários Estados partilham o órgão de chefe de Estado

A) Estado unitário simples


É aquele Estado em que existe um único ordenamento jurídico originário, uma única
Constituição, um único centro de decisão política e um conjunto único de instituições de
governo. O Estado unitário pode desenvolver-se de forma:
 centralizada – os fins públicos são prosseguidos apenas ou sobretudo pelo Estado e os
seus órgãos.
 Descentralização administrativa – funções administrativas, do Estado, são prosseguidas
por outras pessoas coletivas, para além do Estado. Pode dizer-se que, em democracia
política, o Estado unitário é apenas um modelo teórico, já que, na atualidade, todos os
Estados unitários democráticos praticam a descentralização administrativa.
o Descentralização funcional ou institucional – Estado confia funções
administrativas a pessoas jurídicas que não dependem diretamente do Governo

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que não estão integradas no Estado – institutos, associações, empresas e


fundações públicas, ordens profissionais, federações desportivas.
o Descentralização territorial – o Estado reconhece autonomia administrativa a
entidades de base territorial e social, as autarquias locais, que são pessoas
coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos próprios e que visam a
prossecução dos interesses das populações respetivas.
o Descentralização político-administrativa, de base territorial – Estado regional
 Desconcentração administrativa – repartição interna de competências por vários
órgãos dentro da mesma pessoa jurídica (seja Estado, autarquia, instituição) num
quadro de organização hierárquica em que o exercício das competências não está
concentrado no topo. Os órgãos superiores delegam noutros órgãos competências que
lhes estavam originalmente atribuídas.

B) Estado federal
É aquele Estado em existe uma pluralidade de Constituições, de ordenamentos jurídico-
constitucionais e conjuntos de instituições de governo, entre os quais, um respeitante a todo o
território (Estado federal), ao qual se subordinam e em que se integram os Estados membros
da Federação ou União (Estados federados).
 No plano externo, só o Estado federal tem personalidade jurídica reconhecida como Estado
soberano e por isso só ele pode gozar dos atributos tradicionalmente reconhecidos aos
Estados soberanos, como a condução das políticas externa e de defesa.
 No plano interno, o Estado federal dota-se de órgãos próprios e exerce funções típicas de
qualquer Estado. As Constituições dos Estados federados têm de respeitar a Constituição
federal, não podendo, sob pena de inconstitucionalidade, violar os limites positivos e
negativos que ela lhe imponha. A partir do momento em que constituam a Federação, os
Estados federados não a podem abandonar, exceto por vontade do Estado federal. Não
obstante, respeitados esses limites, os Estados federados são ainda verdadeiros Estados, já
que elaboram as suas próprias Constituições e, no domínio das suas competências, têm
estrutura, órgãos e atividade tipicamente estaduais.
 Em termos jurídicos o Estado federal é ficcionado como a vontade de agregação de vários
Estados que, com a aprovação de uma Constituição federal, constituem juntamente um
novo Estado; os Estados federados, anteriormente soberanos, passam a integrar-se, então,
na estrutura do novo Estado federal, a favor do qual abdicaram de uma parcela da sua
soberania. É o caso dos EUA. Contudo, em termos históricos, nem sempre se verifica este
cenário: o Estado brasileiro federal resultou da desagregação jurídica de um Estado
brasileiro unitário.

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 Surgido inicialmente nos Estados Unidos, este modelo foi exportado para a Suíça, Alemanha
e muitos estados americanos, como o Brasil e a Argentina, tornando-se a forma de Estado
predominante no pós I Guerra Mundial.
 Várias razões levam à adoção desta forma de Estado: conferir uma organização política
estadual aos grandes espaços em termos de igualdade e paridade; integrar culturas e
nacionalidades diferentes no mesmo Estado; encontrar novas modalidades de divisão
territorial do poder para uma melhor garantia das liberdades; por razões de afinidade
política com Estados vizinhos que tradicionalmente se tomam como modelo e que tinham
adotado essa forma de Estado.

O cidadão do Estado federal fica sempre sujeito a duas instâncias de poder político e a
dois ordenamentos jurídicos, integrados, mas sobrepostos: o do Estado federal, e o do Estado
federado em que o cidadão se encontre circunstancialmente; e integra-se e exerce os seus
direitos de participação política nos dois ordenamentos, votando, por exemplo no Brasil, para
a eleição do Congresso Federal e para a eleição do Governador do seu Estado federado. Assim,
do ponto de vista jurídico-constitucional, o Estado Federal apresenta-se através de uma dupla
estrutura:
 Estrutura de sobreposição - instituições refletem a relação de subordinação dos Estados
federados ao Estado Federal:
o A autonomia constitucional dos Estados federados não é plena, já que as suas
Constituições têm de respeitar condições negativas (como o quadro constitucional da
distribuição de competências, atribuições e poderes entre Estado federal e Estados
federados) e positivas (como a forma de governo republicana – EUA) que a Constituição
federal estabelece.
o O Direito e as decisões políticas federais prevalecem sobre o Direito e as decisões
políticas dos Estados federados. Assim, é atribuída aos tribunais federais a competência
para julgar não só questões suscitadas pela aplicação do Direito federal, como questões
entre Estados federados ou entre estes e o Estado federal. O Estado Federal fiscaliza e
garante o cumprimento da Constituição e das leis federais por parte dos Estados
federados. Esta foi uma das razões que proporcionaram o surgimento precoce da
instituição de uma justiça constitucional nos EUA.
 Estrutura de integração – instituições traduzem o processo de integração dos Estados
federados na Federação:
o Os Estados participam, enquanto tal, na reforma/emenda da Constituição federal.
o Os Estados federados participam, de forma institucionalizada, na formação da vontade
política do Estado federal, através de uma câmara parlamentar própria (normalmente
o Senado) constituída por representantes dos Estados, que podem ser designados pelos
órgãos dos estados ou ser eleitos pelas suas populações. O número de representantes
de cada Estado pode ser o mesmo para cada Estado federado ou ser função da sua
população.

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C) Estado regional
Estado unitário regional, Estado regional ou Estado autonómico é o Estado que
reconhece a entidades territoriais, as Regiões Autónomas, autonomia político-administrativa.
 É uma classificação polémica, havendo quem a integre nas outras formas de Estado.
 Um Estado regional reconhece às Regiões Autónomas uma autonomia tal que lhes permite
o exercício de funções políticas e não meramente administrativas. Desde a faculdade de
legislar, até à existência de órgãos de governo próprio que representam a população
respetiva e desenvolvem, dentro das suas competências, programas e iniciativas políticas
diferentes e até divergentes das do Governo nacional. São estas faculdades legislativas e de
governo que distinguem a autonomia das Regiões Autónomas dos poderes meramente
executivos e regulamentares que o Estado unitário reconhece às autarquias locais.
 É relativamente fácil distinguir o Estado federal do Estado regional parcial, como o
português, em que apenas parte do território é constituído por regiões autónomas, já que
um Estado federal organiza todo o seu território em Estados federados. Noutros casos,
como o Espanhol (Estado regional integral), em que todo o território está dividido em
regiões autónomas, torna-se, no plano prático, e apenas nesse plano, mais complicado
fazer essa distinção. Esse facto vem agravar-se pelo facto de existirem regiões autónomas
nos Estados regionais que dispõem de maior autonomia, identidade regional ou até
nacional, que as que se encontram nos Estados federados. Algumas dessas regiões aspiram
até à independência.
 Já no plano jurídico, as diferenças entre Estado federal e Estado regional estão
perfeitamente estabelecidas.
o Mesmo que mais profunda no plano prático, a autonomia das Regiões Autónomas
distingue-se da dos Estados federados por não ser uma autonomia constitucional.
o Enquanto as Constituições dos Estados federados são aprovadas ou reformadas pelos
seus órgãos, e entram em vigor independentemente da aprovação do Estado federal,
os Estatutos de Autonomia das R.A. têm de ser aprovados (e por vezes desenhados)
por órgão soberano do Estado central.
o Os Estados federados participam na formação de uma vontade estadual através de
uma câmara parlamentar própria (Senado), enquanto as Regiões Autónomas não estão
representadas, enquanto R.A, nos Parlamentos nacionais. Os seus deputados
representam toda a nação, e não só os círculos pelos quais foram eleitos (ainda que na
prática a sua preocupação central sejam os interesses da sua região).
o Os Estados federados participam na reforma da Constituição federal, enquanto as
Regiões Autónomas não têm esses poderes.

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6. FORMAS POLÍTICAS NA HISTÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO


PORTUGUÊS

Tipo histórico de Estado:


 Estado de Direito liberal: 1822 a 1926, com vários interregnos autocráticos
 Estado autocrático de inspiração fascista: 1926 a 1974
 Estado social e democrático de Direito: 1976 aos dias de hoje

Forma de governo:
 Monarquia: até 1910
 República: 1910 aos dias de hoje

Regime político:
 Estado autocrático, monarquia absoluta: até 1820, 1823-26, 1828-34
 Estado de Direito, monarquia parlamentar: 1822-23 e 1836-38
 Estado de Direito, monarquia limitada: 1826-28, 1834-36 e 1842-1910*
 Estado de Direito, monarquia orleanista: 1838-42
 Estado de Direito, governo representativo: 1911-26
 Estado autocrático, ditadura: 1917-18 e 1926-74
 Estado de Direito, democracia representativa: 1976 aos dias de hoje
* A partir de 1852, a Carta de 1826 (de monarquia limitada) evoluiu no sentido da monarquia orleanista

Forma de Estado:
 União real: 1815 a 1825
 Estado unitário simples: 1825 a 1976
 Estado unitário regional: 1976 aos dias de hoje

Todas as Constituições portuguesas nasceram em rutura com o status estabelecido.

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A) Cronologia da história constitucional portuguesa


Instabilidade constitucional: 1820 a 1842
 1820 → Revolução liberal
 1822 a 1823 → primeira vigência da Constituição de 1822 (monarquia parlamentar)
 1823 e 1824 → Vila-Francada (que leva à suspensão da Constituição por D. João VI) e
Abrilada, insurreições absolutistas organizadas por D. Miguel
 1823 a 1826 → período sem Cons tuição (monarquia absoluta)
 1826 a 1828 → primeira vigência da Carta Constitucional de 1826 (monarquia limitada)
 1828 a 1834 → abolição da Carta por D. Miguel (monarquia absoluta)
 1832 a 1834 → guerra civil entre absolu stas e liberais; liberais vitoriosos
 1834 a 1836 → segunda vigência da Carta Constitucional de 1826 (monarquia limitada)
 1836 → Revolução de Setembro
 1836 a 1838 → segunda vigência da Constituição de 1822 (monarquia parlamentar)
 1838 a 1842 → vigência da Constituição de 1838 (monarquia orleanista)

Estabilidade constitucional: a partir de 1842


 1842 → golpe de Estado pacífico de Costa Cabral, que restaura a Carta
 1842 a 1910 → terceira vigência da Carta Constitucional de 1826 (monarquia limitada)
 1851 → golpe da regeneração, que derrota o cabralismo, crescentemente autoritário
 1852 e 1885 → Atos Adicionais à Carta, aproximando-a da monarquia orleanista;
consenso em torno da Carta revista; fim da luta entre vintistas/setembristas e cartistas
 1910 → implantação da República a 5 de outubro
 1911 a 1926 → vigência da Constituição de 1911 (governo republicano representativo)
 1917 a 1918 → interregno de Sidónio Pais (ditadura)
 1926 a 1933 → ditadura militar, instaurada pela Revolução de Maio
 1933 a 1974 → vigência da Constituição de 1933 (ditadura de inspiração fascista)
 25 de abril de 1974 → Revolução de Abril
 25 de abril de 1975 → eleição da Assembleia Constituinte
 25 de abril de 1976 → Cons tuição de 1976 (democracia representativa)
 1982 → primeira revisão constitucional; acaba com a dualidade de legitimidades,
revolucionária e democrática, e reduz o conteúdo ideológico da Constituição.

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B) Constituições monárquicas
Constituição de 1822 Carta Constitucional de 1826 Constituição de 1838

Tipo histórico de Estado: Estado de Direito liberal

> Afirmou-se pelos princípios do > Mantém e aperfeiçoa as


liberalismo radical. É uma liberdades e garantias
Constituição de Estado de Direito consagradas na Constituição de
liberal, cujo objetivo fundamental 1822: instituição do princípio
da não retroatividade da lei, > Alagamento de
é assegurar os direitos individuais algumas liberdades e
dos cidadãos e a limitação dos consagração das liberdades de
deslocação, emigração, garantias relativamente à
poderes. Constituição de 1822:
trabalho e empresa e
> Liberdades e garantias com prenúncio de liberdade de direito de associação,
algumas limitações: censura religião. liberdade de reunião,
eclesiástica à imprensa, direito de resistência e
manutenção da escravatura e > Enquanto nas outras direito de petição contra
reserva da liberdade de culto aos Constituições os direitos inconstitucionalidades.
estrangeiros. fundamentais são tratados no
início do texto constitucional,
> Tímidos direitos sociais, como os aqui são tratados no último
direitos ao ensino e à assistência. artigo.

Monarquia parlamentar Monarquia limitada Monarquia orleanista

> Legitimidade monárquica: D. > Legitimidade pactícia:


Pedro IV, de sua livre e as Cortes Constituintes,
> Legitimidade puramente espontânea vontade, através eleitas pelo Povo,
democrática: a soberania reside da outorga da Carta à Nação, aprovam a Constituição,
na nação e é aos Deputados decide autolimitar os poderes que carece de sanção da
eleitos que compete fazer a que detinha por direito Rainha D. Maria II.
Constituição, não dispondo o Rei próprio. > Conteúdo
de poder constituinte (é obrigado > Esta origem monárquica compromissório entre
a assinar a Constituição). reflete-se na garantia e princípio monárquico da
proteção dos títulos da nobreza Carta e princípio
no papel supremo ao Rei. democrático de 1822.

> Rei é centro do poder > Rei perde o caráter de


> Rei sem poderes políticos
político. centro do poder que a
relevantes.
Carta lhe atribuía.
> Nomeia e demite os Secretários > Certa divisão de poderes
> Não decreta a
de Estado, mas todos os seus atos > Rei é detentor dos poderes Constituição, perde o
são referendados por eles. Tem executivo e moderador, poder moderador, não
poder de veto meramente podendo interferir ativamente elege membros do
suspensivo, não participa na nos outros poderes. Convoca Parlamento e todos os

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revisão constitucional e não pode extraordinariamente as Cortes, seus atos carecem de


dissolver as Cortes. nomeia os Pares, dissolve a referenda ministerial.
> Responsabilidade dos Câmara dos Deputados, recusa > Apesar disso tem veto
Secretários de Estado perante o a sanção das leis, nomeia e absoluto sobre as leis e
Parlamento pela prática de atos demite Ministros, nomeia e pode dissolver a Câmara
ilícitos iria, possivelmente, evoluir suspende magistrados. dos Deputados.
para responsabilidade política. > Só os atos do poder > Dupla responsabilidade
> Sendo uma Constituição de executivo, e não os do poder do Governo perante o Rei
monarquia parlamentar, tudo se moderador, carecem de e perante as Cortes.
joga nas relações Cortes/Governo. referenda ministerial.

> Cortes bicamerais.


> Cortes unicamerais de grande
natureza democrática; não há > Câmara dos Pares é > Cortes bicamerais e
câmara alta ou aristocrática composta por membros exclusivamente eleitas,
(incomum à época). vitalícios e hereditários por sufrágio direto.
nomeados pelo Rei, sem
> Sufrágio direto, mas restrito a > Atenuação das
número fixo.
mulheres e analfabetos. restrições censitárias da
> A Câmara dos Deputados Carta.
> Capacidade eleitoral passiva
eleita por sufrágio indireto e
com restrições censitárias.
censitário.

> União real (Reino Unido de


Portugal, do Brasil e dos Algarves)
criada por D. João VI em 1815. É a
única Constituição portuguesa
que não é de Estado unitário.
> Estado unitário > Estado unitário
> Rei, Cortes e Conselho de Estado
comuns aos dois Reinos; previa-se
a existência de uma regência no
Brasil (delegação do poder
executivo nomeada pelo Rei).

O regime político da Carta evolui, entre 1942 e 1910, no sentido de uma monarquia
orleanista. Os Atos Adicionais de 1852 (solução de compromisso entre as linhas
radical/setembrista e cartista) e de 1885 democratizaram a Carta, instituindo: a eleição direta
para a Câmara dos Deputados, reduções nas restrições censitárias, eleição de alguns Pares, a
referenda ministerial para os atos do poder moderador e restrições do poder de dissolução do
Rei. Há assim uma atenuação progressiva do poder do Rei e a institucionalização da dupla
responsabilidade do executivo perante Rei e Parlamento. A própria Carta previa isto, já que
remetia a aprovação de futuras revisões constitucionais para as Cortes, embora com sanção
real.

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C) Constituição de 1911
As consequências da alteração da forma de governo não foram muito além de uma
maior amplitude da conceção de igualdade perante a lei, com a consagração (normal numa
primeira constituição republicana) da extinção dos privilégios de nascimento, dos foros de
nobreza e dos títulos nobiliárquicos.
Como é natural numa Constituição de Estado de Direito liberal, a Constituição de 1911
limita-se a declarar direitos e garantias individuais e a regular a organização dos poderes
públicos, não havendo qualquer menção à organização económica ou atribuição de tarefas ao
Estado nesse domínio. Há uma instauração plena da liberdade religiosa (que até aí não tinha
sido assumida), a abolição da pena de morte para crimes militares (a revisão constitucional de
1916 veio reintroduzir, por virtude da 1ªGG, a pena de morte para esses crimes) e a
consagração do habeas corpus, mas não são ainda consagrados direitos sociais, para além dos
direitos ao ensino e à assistência.
O regime político é de governo representativo republicano, uma vez que, mesmo não
havendo sufrágio censitário, os cidadãos eleitores não ultrapassavam os 9% da população:
mulheres e analfabetos não tinham capacidade eleitoral. Apesar disso, houve um
reconhecimento constitucional dos partidos políticos e dos grupos parlamentares.
A Constituição de 1911 é uma Constituição de república parlamentar. O Congresso
bicameral, eleito por sufrágio direto, é o centro de toda a vida política. O Presidente da
República era irrelevante e embora fosse, em conjunto com os Ministros, titular do poder
executivo, tinha o seu estatuto político diminuído por ser eleito e poder ser destituído pelo
Congresso. Não pode ser reeleito, não tem direito de veto e todos os seus atos carecem de
referenda ministerial. Ao contrário do que acontece com o sistema de governo parlamentar,
não pode dissolver o Congresso, o que deixa o executivo exclusivamente dependente do
Parlamento. A revisão constitucional de 1919, após o sidonismo, racionalizou o sistema,
atribuindo ao Presidente da República a faculdade de dissolver o Parlamento, como é natural
num sistema parlamentar.
Numa altura em que a fiscalização da constitucionalidade era desconhecida na
generalidade dos países europeus (e até ao pós 2ªGG) e em que a garantia da Constituição era
assumida pelo Parlamento, a Constituição de 1911 é uma das primeiras Constituições
europeias a consagrar o sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade das leis e dos
diplomas emanados do executivo. A adoção deste sistema de fiscalização foi incentivada pela
prática inconstitucional, reiterada durante a vigência da Carta, de aprovação dos “decretos
ditatoriais”, isto é, a prática pelos executivos de, sem competência para tal, legislarem
enquanto o Parlamento estava dissolvido, com a garantia de que o futuro Parlamento, onde
estavam seguros de alcançar maioria, ratificaria a inconstitucionalidade. Esta desvalorização da
Constituição justificou a atribuição a órgãos independentes – os Tribunais – as funções de
garantia da Constituição. A adesão a este sistema aconteceu também por influência da
Constituição republicana brasileira de 1891, que acolhe o que era praticado nos EUA desde o
início do século XIX e segundo o qual os tribunais comuns teriam competência para aplicar ou
não leis consoante o juízo de constitucionalidade que delas fizessem.

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Em 1918, Sidónio Pais, que tinha chegado ao poder na Revolução de Dezembro de 1917,
fez uma rutura constitucional que teria, caso fosse bem-sucedida (não o foi porque Sidónio foi
assassinado, em dezembro de 1918), alterado o sistema de governo para presidencial, com
eleição direta do Presidente por sufrágio universal masculino. O Senado teria representação
territorial e das várias categorias profissionais.

D) Constituição de 1933
A Constituição de 1933 é uma Constituição de Estado autocrático de inspiração fascista,
com forte inspiração na experiência italiana. Não só pelo seu conteúdo e contexto, mas pelo
próprio processo de aprovação: é a única Constituição portuguesa que, reclamando-se de uma
pretensa legitimidade democrática, não é aprovada por uma Assembleia Constituinte eleita
pelo Povo. Ao invés disso, foi elaborada por um grupo restrito sob a égide de Salazar e
plebiscitada nacionalmente, numa votação para a qual os abstencionistas foram legalmente
considerados votos a favor do projeto. O regime político é de ditadura.
Numa primeira leitura, parece reconhecer o catálogo dos direitos e liberdades
consagrados nas Constituições anteriores. Todavia, o próprio artigo que reconhecia os direitos
(artigo 8.º) remetia para leis especiais a regulamentação de direitos políticos mais elementares,
como a liberdade de pensamento e os direitos de reunião e associação, impondo, quanto à
liberdade de expressão, o seu controlo preventivo e repressivo. Na prática, estas leis
restringiram drasticamente os direitos aparentemente consagrados na Constituição.
Diferentemente do que sucedera no Estado de Direito liberal, tendencialmente
abstencionista, esta Constituição tem uma muito maior preocupação com os direitos sociais,
dado o caráter intervencionista do Estado Novo, manifestada no tratamento que se dá à
família, ao ensino, à propriedade ou à contratação coletiva. Assim, a Constituição de 1933
assume-se pragmática, dirigente, regulamentadora da organização económica, atribuindo ao
Estado tarefas de planificação, coordenação e direção económicas.
Por influência direta do fascismo italiano, qualifica-se o Estado como república
corporativa, considerando-se que é através das sociedades primárias – família, organismos
corporativos e autarquias locais – que os indivíduos participam na vida da Nação. Estes
organismos tinham a sua constituição e funcionamento dependentes de autorização e controlo
do Estado, integrando-se no aparelho do Estado e tendo representação na Câmara Corporativa.
Quanto à organização política, havia uma relevância do chefe de Estado, que era eleito
por 7 anos, podendo ser reeleito. Tinha importantes poderes, como nomear e demitir
livremente o Presidente do Conselho de Ministros (PCM), dissolver a Assembleia Nacional e
direito de veto, e a não era responsável perante qualquer órgão, embora quase todos os seus
atos careçam de referenda ministerial. A eleição do Presidente era, inicialmente, direta.
Em 1958, no pós-2ªGG, para mostrar que em Portugal existia uma aparência de
democracia, na cena internacional, o regime permite que às eleições presidenciais se candidate
um candidato da oposição, Humberto Delgado. Contudo, o General sem medo (mais tarde

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assassinado pela PIDE) adquiriu apoio popular enorme, especialmente após responder a um
jornalista, quando essa lhe perguntou o que faria a Salazar caso fosse eleito, “Obviamente,
demito-o!”. O candidato do regime, Américo Thomaz, ganhou as eleições. Este episódio levou
à revisão constitucional de 1959, que alterou a eleição do PR, passando esse a ser eleito por
um colégio eleitoral cuja composição era controlada pelo regime.
A Assembleia Nacional surge numa posição subalternizada, pois tinha apenas 90
Deputados, a sua sessão legislativa durava apenas 3 meses e não podia demitir o Governo (ou
seja, não havia responsabilidade política do Governo perante a AN). Não era o principal órgão
legislativo, já que as leis que aprova restringem-se às bases gerais dos regimes jurídicos e que
outros órgãos, como a Câmara Corporativa e especialmente o Governo, tinham uma
competência legislativa muito mais alargada.
O Governo é o principal órgão político no regime de 1933, não só pelas competências
que lhe eram atribuídas pela Constituição, mas porque, na prática, o Presidente do Conselho
de Ministros (PCM) era o ditador-líder do regime. Era o órgão legislativo por excelência: até à
revisão constitucional de 1945 podia legislar em situações de urgência e necessidade pública
ou mediante autorização legislativa; a partir daí, os seus poderes legislativos foram equiparados
aos da Assembleia Nacional. Por outro lado, o chefe de Governo que dependia unicamente da
confiança política do chefe de Estado, acabou por transformar o Presidente numa figura
subordinada e politicamente dependente do Governo. Não só porque quase todos os seus atos
careciam de referenda governamental, mas também porque a liderança política do regime era
exercida pelo PCM, que concentrava nas suas mãos todo o poder de iniciativa e decisão,
sobrepondo-se ao chefe de Estado, cuja sobrevivência acabava por depender da confiança
política do PCM.
Embora o caráter autocrático do regime retirasse alcance prático ao princípio da
fiscalização da constitucionalidade, a Constituição de 1933 manteve esse instituto, embora com
uma reserva: a inconstitucionalidade orgânica e formal dos diplomas mais importantes era
apreciada pela Assembleia Nacional.

E) Constituição de 1976
A Constituição de 1976 é uma Constituição de Estado social e democrático de Direito.
Consagrou, de forma pioneira, um extenso elenco de direitos fundamentais e direitos sociais,
ainda que a doutrina tradicional portuguesa e a jurisprudência constitucional tenham, na
prática, frustrado quase integralmente o alcance desta inovação. Sendo a primeira Constituição
portuguesa de regime político de democracia representativa, teve extremo cuidado com a
igualdade de participação política (pela primeira vez há sufrágio universal), a proporcionalidade
da representação (adoção do sistema eleitoral proporcional), o pluralismo e o papel
determinante dos partidos políticos.
Durante um período de transição previsto, que terminaria com a revisão constitucional
de 1982, verificou-se uma dualidade de legitimidade, de poder e de simbologia entre a

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legitimidade democrática e a legitimidade revolucionária (traduzida na presença dos militares


no Conselho da Revolução).
Instituiu pela primeira vez o Estado unitário regional, havendo duas Regiões
Autónomas, coincidentes com os Arquipélagos dos Açores e da Madeira, que têm autonomia
político-administrativa e órgãos legislativos e de governo próprios, cujas competências estão
reguladas nos respetivos estatutos político-administrativos aprovados pela AR.
É adotado o sistema de governo semipresidencial, em que o Presidente da República é
eleito diretamente pelos cidadãos, mas que não governa, tendo funções de caráter moderador,
regulador e arbitral.

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PARTE II – SISTEMA DE GOVERNO

1. SISTEMA DE GOVERNO

O sistema de governo considera apenas as relações internas ao corpo de governantes


e às instituições de governo de dado país. Refere-se às diferentes modalidades de
relacionamento jurídico-institucional entre os órgãos que exercem o poder político,
considerando também:
i) As competências e poderes respetivos,
ii) A forma como são designados os seus titulares,
iii) A interdependência entre órgãos,
iv) As relações de responsabilidade e confiança política entre eles.

São sistemas de governo:


 Parlamentarismo
o de assembleia ou de gabinete
o clássico ou racionalizado
 Presidencialismo
o clássico ou adaptado
 Semipresidencialismo
o matrizes: francesa, austríaca, portuguesa, Europa central e de leste
 Sistema diretorial (Suíça)

Advertência: a ideia de que no sistema parlamentar há um maior peso do Parlamento,


no sistema presidencial um maior peso do Presidente e de que o sistema semipresidencial é
um intermédio entre ambos é errada. O Primeiro-Ministro britânico (sistema parlamentar) e o
Presidente francês (sistema semipresidencial), fora de períodos de coabitação, têm
substancialmente mais poderes que o Presidente americano (sistema presidencial). Por outro
lado, um sistema parlamentar é perfeitamente compatível com a possibilidade de
concentração quase absoluta dos poderes no Governo, como se assistiu com a suspensão do
Parlamento britânico pelo Primeiro-Ministro durante o processo do brexit.

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Dois critérios de distinção dos sistemas de governo:


i) Posição relativa do chefe de Estado no plano do exercício do poder político;
ii) Responsabilidade política do Governo (executivo) perante o Parlamento.

Sistema parlamentar Sistema semipresidencial Sistema presidencial

Chefe de Estado não tem Presidente eleito por sufrágio popular, que pode exercer
i) poderes significativos, mas poderes políticos significativos.
apenas formais/simbólicos. (no presidencialismo exerce sempre)

Governo não eleito é responsável politicamente perante o Executivo liderado pelo


ii) Parlamento, isto é, pode ser demitido pelo Parlamento. Presidente não responsável
Diarquia: Chefe de Estado e Chefe de Governo distintos perante o Parlamento.

A) Dificuldades de construção de uma tipologia de sistemas de governo


1. O estudo do sistema de governo parte do pressuposto de que o regime em estudo é
um regime de democracia representativa e de Estado de Direito, com separação de poderes. A
questão do sistema de governo em ditadura é irrelevante. Fazer a análise da forma como se
relacionam os vários órgãos em países em que tudo depende da vontade do ditador seria
puramente artificial, sendo apenas necessário identificar a fonte ou sede do poder ditatorial e
revelar os mecanismos políticos e jurídicos que, eventualmente, encobrem a correspondente
concentração de poderes. Assim, no estudo do sistema político de países que não são de Estado
de Direito democrático, releva o regime político, o tipo de Estado ou processo de transição.
Que sentido teria a discussão sobre o sistema de governo da Guiné-Bissau, quando nesse país
se regista uma sucessão interminável de golpes de Estado e crises de instabilidade? De que
serviria estudar os poderes de PR e PM na Rússia, onde hoje Medvedev é PM e Putin é PR, e
amanhã Medvedev é PR e Putin é PM, se os poderes se concentram sempre em Putin? Ao
estudar o sistema de governo de um país onde os poderes são arbitrariamente exercidos por
um autocrata podia até incorrer numa dissimulação da natureza ditatorial de um regime. Esta
conclusão não significa que haja uma menor importância dos problemas suscitados pela
tentativa de implementação de determinado sistema de governo nesses países. Pelo contrário,
hoje, grande parte do interesse no estudo dos sistemas de governo orienta-se para responder
à questão de qual o sistema de governo mais adequado para Estados não desenvolvidos que
procuram construir um regime democrático. No entanto, a resposta a este de problemas exige
um conhecimento preciso dos sistemas de governo, que só pode ser apurado a partir das
experiências de Estado de Direito democrático.
Dizer que o sistema de governo só releva em democracia representativa não contradiz
o pressuposto de que o sistema de governo é definido constitucionalmente, e não na realidade

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de funcionamento do respetivo sistema? Não. É necessário saber ler a Constituição. Num


Estado em que a Constituição seja nominal ou semântica, em que não é aplicável
verdadeiramente, ela serve apenas para encobrir e legitimar um regime de concentração de
poderes, e não para os limitar juridicamente.
2. A concretização do sistema de governo numa ou noutra modalidade de
funcionamento não se decreta, não pode ser imposta pela Constituição, já que depende de
circunstâncias de ordem prática. Assim, quando determinado sistema de governo funciona
deficientemente, suscitando crises, falta de governabilidade, instabilidade, é sempre
necessário verificar se a responsabilidade reside no plano jurídico-constitucional e no próprio
sistema de governo, ou se em circunstâncias objetivas de ordem prática. Se for esse o caso,
alterar o sistema de governo poderá até agravar o problema. Na raiz de praticamente todas as
análises erróneas sobre sistemas de governo está a negligência da importante distinção entre
o que é o sistema de governo (determinado pela Constituição), e a forma como esse sistema
funciona em certo momento.
3. Na fixação dos critérios que permitem construir uma tipologia dos vários sistemas de
governo, incorremos num raciocínio circular. Definimos, em abstrato, os sistemas de governo
em função de características presentes em sistemas concretos tidos como modelos ou anti-
modelos. Mas só poderíamos saber se são modelos ou anti-modelos se verificássemos a sua
compatibilidade com uma definição abstrata de sistema de governo. Por sua vez,
fundamentamos essa definição abstrata em elementos dos modelos ou anti-modelos a que
inicialmente nos referimos… Era suposto partir-se de uma definição em abstrato para depois
se verificar se o caso concreto é integrável na definição. Na sua definição de
semipresidencialismo, REIS NOVAIS tem como pressuposto a recusa da qualificação dos
sistemas de governo português e francês como parlamentares ou presidenciais.
4. Ao determinar o sistema de governo de um país, deve ter-se em atenção o que diz a
Constituição ou a realidade do funcionamento prático desse sistema?

B) Perspetivas de análise do sistema de governo


Podemos distinguir duas perspetivas de análise (entre outras) dos sistemas de governo:
i) A perspetiva jurídico-constitucional – no plano da definição do sistema de governo.
ii) A perspetiva política – no plano do funcionamento prático, da realidade política de
cada momento.

Perspetiva sociológica/jornalística: atende exclusivamente ao plano da realidade política de


cada momento, desqualificando o discurso jurídico dos constitucionalistas. O sistema de governo
expressaria relações de poder fático, real, contestável no dia-a-dia da vida política e não apurável a
partir da análise de textos legais. Essa forma política seria determinada em função da apreciação realista
das práticas dominantes em cada momento, sendo ontem parlamentar, amanhã presidencial.

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Ora, um discurso jurídico-constitucional adequado não deve ignorar nem menosprezar


o plano de funcionamento prático dos sistemas de governo, mas tem consciência de que se
trata de um plano diferente do jurídico-constitucional, e sobretudo, como é rigoroso, não utiliza
nem confunde a utilização dos mesmos termos, tipos e designações num e no outro plano.

Considere-se a seguinte hipótese: quer-se estudar o eventual poder presidencial de


demissão do Primeiro-Ministro no sistema de governo francês.
 Um constitucionalista dir-nos-á que não pode. A Constituição não o permite, e em
Estado de Direito um PR só pode exercer poderes constitucionalmente previstos.
 Por outro lado, um politólogo defenderá que o Presidente da República não só pode
demitir o Primeiro-Ministro, como tal prática tem sido habitual nas últimas décadas.
 Ambas as respostas estão corretas, embora digam respeito a diferentes perspetivas de
análise do sistema de governo francês. Mas devemos ter em atenção o que diz a
Constituição ou o que se passa na realidade? O sistema de governo é um problema
jurídico-constitucional ou uma questão de ordem prática? Duas perspetivas de análise
– jurídica e política – estão em confronto?

O estudo dos sistemas de governo deve assentar em três premissas:


i) É a Constituição que determina o sistema de governo.
ii) É preciso saber ler a Constituição.
iii) Uma coisa é o sistema de governo; outra são as possibilidades de funcionamento
prático desse sistema de governo, que variam em função de fatores conjunturais.

i) É a Constituição que determina o sistema de governo


Em Estado de Direito democrático, a Constituição é normativa, e é a Constituição que,
primária e superiormente, define normativamente o sistema de governo.
 Qualquer que seja a perspetiva de análise, no cerne do conceito de sistema de governo está
numa definição jurídico-constitucional. O que está em causa quando se fala de sistema de
governo é o relacionamento entre os diferentes órgãos que exercem poder político; e em
Estado de Direito, é a Constituição que define essas relações.
 É que, independentemente das relações de força que se estabeleçam no dia-a-dia e do
poder fático de cada órgão, em Estado de Direito nunca será admitido, sob pena de
inconstitucionalidade, que seja exercido um poder não permitido pela Constituição.
Segundo o princípio da competência, que em Estado de Direito tem de ser estritamente
observado, os titulares do poder político só podem exercer os poderes que lhes foram
atribuídos numa repartição jurídico-constitucional de competências.

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 Podemos dizer que, na prática, o sistema funciona de forma muito diferente daquela que
foi imaginada pela Constituição ou que a margem de variação de funcionamento é muito
ou pouco ampla, mas isso é um outro problema. Se a Constituição cumpre a sua função, se
é normativa, então o sistema de governo só pode mudar após uma revisão constitucional
ou a aprovação de uma nova Constituição.
 Por isso faz sentido debater-se se o sistema de governo mudou com uma revisão
constitucional, mas não faz sentido discutir-se se mudou com certas eleições ou com certo
ato do Presidente da República. Dizer que o sistema de governo mudou porque o
Presidente da República esteve adormecido nos últimos anos é um absurdo, e tão grave
seria afirmar que ontem o sistema foi parlamentar porque o PR tinha uma grande dor de
cabeça e não interveio politicamente, e que hoje, terminada a dor de cabeça, é presidencial,
porque o PR decidiu demitir o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.
 Haverá sempre algum jornalista ou politólogo a dizer, com grande sucesso mediático, que
em política o que conta é a realidade, e que a Constituição não é aplicada. Mas tal não é
verdade, porque em Estado de Direito a Constituição é aplicada, e mesmo nos casos em
que a sua violação não tem sanção jurídica efetiva, há sempre sanção política que recai
sobre quem a desrespeita, e que é tão mais desqualificante quanto mais estabilizado estiver
o Estado de Direito e mais desenvolvida for a cultura política democrática.
 E se é a realidade que define o sistema de governo, e a Constituição é letra morta e pode
ser manipulada pelos agentes políticos, qual o interesse em fazer revisões constitucionais?
 A verdade é que, no plano da realidade, as circunstâncias mudam muito rapidamente. Hoje
um Governo é forte e tem um Primeiro-Ministro forte, mas amanhã ambos podem ser
fracos, porque houve eleições ou uma cisão no grupo parlamentar. Hoje, um Parlamento
não passa de uma câmara de eco do que diz o Governo, mas, amanhã, pode condicioná-lo,
obrigá-lo a passar legislação, demiti-lo. Em função dessas alterações, o mesmo sistema que
ontem era parlamentar amanhã pode ser semipresidencial… Como se pode definir um
sistema de governo com base numa realidade que pode mudar todos os dias, em função
de fatores conjunturais?
 Uma análise comum dos sistemas de governo, da perspetiva política (ou da sua combinação
com a perspetiva jurídico-constitucional), passa pela introdução de um esquema de fases e
de ciclos de funcionamento prático do sistema ou de grelhas comparativas de poderes.
Assim, podia concluir-se que um sistema de governo (parlamentar, presidencial ou
semipresidencial), tem fases (fase parlamentar, fase presidencial ou fase semipresidencial)
de acordo com o peso que têm, em cada momento, Parlamento, Presidente e Governo. Um
sistema semipresidencial (no plano jurídico) podia estar numa fase parlamentar,
presidencial ou até semipresidencial (no plano da realidade prática). A comunicação deixa
de ser possível e a confusão invade o mundo jurídico, que se devia caracterizar pela
segurança e pelo rigor.

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ii) Saber ler a Constituição


Lendo as Constituições italiana, espanhola ou alemã (de sistemas de governo
parlamentar), verificamos que os poderes atribuídos aos chefes de Estado não são muito
diferentes dos poderes atribuídos aos Presidentes da República pelas Constituições francesa e
portuguesa (de sistema semipresidencial), que dizemos terem poderes significativos. Assim,
um jornalista ou politólogo, orgulhoso do seu realismo, dirá: de que serve ler a Constituição, se
a Constituição britânica diz que a Rainha pode dissolver a Câmara dos Comuns, quando não
pode? Se a Constituição espanhola diz que cabe ao Rei o comando supremo das forças
armadas, quando não cabe? Se Constituições de sistemas diferentes dizem literalmente quase
o mesmo quanto aos poderes do chefe de Estado, então seria a prática, e não a Constituição
que nos esclareceria sobre o sistema de governo de um dado país. Concluirão a Constituição
não passa de letra morta, e é violada consciente, frequente e impunemente. Estariam errados.
Esta crítica confunde aquilo que a Constituição diz, com aquilo que a Constituição dita.
Qualquer leigo pode soletrar a Constituição, mas dificilmente perceberá o seu sentido
normativo. E enquanto o leigo não tira conclusões apressadas (e erradas), o “especialista”
considera a Constituição inútil.
Tudo residirá em saber ler a Constituição. Há que fazer a distinção entre enunciado
normativo (o enunciado linguístico, literal, que contém a norma) e norma (que é interpretada
a partir do enunciado normativo e que vincula juridicamente).
 Ora, se o sentido normativo de “a pena de morte é proibida” corresponde ao seu sentido
literal, em normas como “o Rei tem o poder de dissolver as Cortes” e “todos têm direito a
uma habitação condigna”, o sentido literal e o sentido normativo divergem muito.
 Quando se lê na Constituição portuguesa que “todos têm direito a uma habitação
condigna” e se constata que, na realidade, existem milhares de sem-abrigo, há quem
conclua que a Constituição é letra morta, que não serve para nada ou que está a ser violada.
Todavia, esse preceito estabelece algo de substancialmente diferente daquilo que,
aparentemente, se soletra na sua leitura. A Constituição não é letra morta, não está a ser
violada e não é inútil, pelo simples facto de nem toda a gente ter uma habitação condigna.
 O enunciado normativo “todos têm direito a uma habitação condigna” não significa que
todos possam exigir ao Estado uma habitação condigna, mas apenas que o Estado está
juridicamente obrigado a (i) atuar no sentido de, a prazo, garantir que todos possam ter
uma habitação condigna e (ii) não praticar atos ou admitir comportamentos que, sem
legítima justificação, se traduzam em prejuízo de acesso a uma habitação condigna.
 O leigo e o “especialista”, ficariam surpreendidos quando verificassem que o Tribunal
Constitucional, com base nessa norma, pode invalidar uma lei sobre arrendamento urbano
aprovada pela Assembleia da República, ou revogar uma decisão de despejo decretada por
um tribunal de instância inferior.

Esta sofisticação interpretativa também se verifica com normas relativas a sistema de


governo, que não podem ser percebidas no seu sentido normativo sem se ter em conta o

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conjunto sistemático da Constituição e o contexto da realidade política e constitucional em que


se inserem, de democracia representativa, sem ter em conta fatores determinantes como a
questão da legitimidade, a mediação dos partidos políticos, a importância dos sistemas
eleitorais, da disciplina de voto, dos grupos parlamentares.
 A Constituição espanhola dá ao Rei o poder de dissolver as Cortes, assim como a
Constituição portuguesa dá ao Presidente da República o poder de dissolver a Assembleia
da República. Sendo a letra das duas Constituições idêntica nesse aspeto, o sentido
normativo das duas normas constitucionais é muito diferente. Enquanto o PR português
pode dissolver a AR com plena autonomia, o Rei espanhol só pode dissolver as Cortes
quando o Presidente do Conselho de Ministros lho peça. Se, eventualmente, o Rei
dissolvesse as Cortes contra a vontade do PCM, tal ato seria inconstitucional.
 Em Estado de Direito democrático, a interpretação da Constituição à luz do princípio da
legitimidade democrática é fundamental para a determinação do sistema de governo.
Fundando-se a legitimidade democrática em eleições, se a Constituição atribui uma
competência a um chefe de Estado eleito pelo Povo, investido de legitimidade democrática,
então a norma constitucional está a atribuir poder efetivo a tal órgão. Contrariamente, se
a Constituição atribui a mesma competência política a um chefe de Estado não eleito, que
não recolheu de uma eleição livre e participada legitimidade democrática, então há razões
jurídicas e constitucionais para concluirmos que a competência que lhe foi meramente
atribuída pelo enunciado normativo, na realidade esconde outra norma.
 Os poderes atribuídos ao Rei espanhol são poderes nominais ou formais, pois ele não tem
a legitimidade democrática para os exercer. Quem os exerce e se responsabiliza por eles é,
de facto, o Governo. Algumas Constituições consagram que este tipo de atos, praticados ao
abrigo dos poderes formais de chefes de Estado não eleitos, tenham de ser, para
adquirirem existência jurídica, referendados pelo Primeiro-Ministro ou por outro membro
do Governo, o autor oculto do respetivo ato, que na realidade prática o praticou, e que por
ele se responsabiliza. O instituto da referenda ministerial ilustra o caráter fictício dessa
distribuição de competências. Este é o princípio geral de interpretação da Constituição de
sistema parlamentar.
 Por que razão as coisas não ficam claras no texto constitucional? Por múltiplas possíveis
razões, de natureza histórica e cultural, para dar dignidade constitucional a órgãos não
democraticamente legitimados, como Monarcas constitucionais ou Presidentes que apenas
desempenham um papel simbólico.

Na determinação da legitimidade democrática de um órgão, há que atender às


seguintes especificidades sobre sistemas eleitorais em Estado de Direito democrático:
 Eleição direta – o titular do cargo político é escolhido diretamente pelo Povo.
 Eleição indireta – o titular do cargo político é eleito, por exemplo, por um colégio eleitoral.
 Eleição por sufrágio popular – é a eleição que confere verdadeira legitimidade democrática,
podendo essa escolha popular fazer-se por eleição direta ou, em certas condições, por

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eleição indireta. Refere-se a qualquer eleição em que os eleitores são chamados a votar
com o fim específico e imediato de escolher uma pessoa para o exercício de um cargo,
independentemente das particularidades procedimentais da eleição. É certo que a
legitimidade democrática é tanto mais forte quanto mais atual e imediata for, pelo que ela
estará indiscutivelmente presente numa eleição universal e direta. Mas, admite-se que
mesmo uma eleição formalmente indireta possa proporcionar uma igual legitimidade
democrática, desde que os eleitores votem com a intenção específica de escolher um
candidato e o seu voto tenha essa virtualidade.
 A distinção é importante ao analisar a legitimidade democrática de Presidentes eleitos
indiretamente por um colégio eleitoral, mas com a particularidade dos elementos desse
colégio terem sido escolhidos através de eleição popular com o estrito e específico fim de,
por sua vez, designarem o titular do órgão a eleger de acordo com o sentido político da
escolha popular, como é o caso do Presidente dos Estados Unidos4.

Perspetivas de análise do sistema de governo: uma dicotomia mal construída


Não há, ao contrário do que frequentemente se insinua, uma contraposição entre as
perspetivas jurídico-constitucional e política de análise dos sistemas de governo.
 Como foi dito, não é possível interpretar os enunciados normativos respeitantes às relações
entre os órgãos que exercem poder político, e extrair o seu sentido normativo, sem ter em
conta a realidade constitucional própria das democracias representativas. O sentido
normativo a extrair do texto seria incompreensível sem o reconhecimento das múltiplas
possibilidades de concretização que, em função da realidade política, a norma comporta.
 Por isso, a perspetiva jurídica só é adequada quando considera a dimensão política da
norma constitucional e da sua aplicação, quando tem em conta o fenómeno político
momento da interpretação da norma. Em contrapartida, um olhar político que ignore o
essencial da dimensão jurídico-constitucional falha, pois em Estado de Direito democrático,
qualquer possibilidade de análise rigorosa de uma realidade política é conformada pela
norma constitucional.
 Por exemplo, quando a norma constitucional diz que o Governo responde politicamente
perante o Parlamento e que, por isso, o Parlamento pode demitir o Governo, tal não
significa que o Parlamento possa, em quaisquer circunstâncias, demitir o executivo.
Quando os constituintes aprovaram tal norma constitucional não desconheciam, antes
pressupuseram, que o Parlamento seria constituído por grupos parlamentares ligados a
partidos políticos, sem cuja existência e presença ativa, a própria democracia
representativa não faria sentido. Assim, se um Governo é formado com o apoio de um
partido político que, por sua vez, dispõe de uma maioria absoluta no Parlamento, é certo
que, havendo disciplina partidária, esse Governo não será demitido pelo Parlamento e que
muito provavelmente será a própria atividade do Parlamento a ser condicionada e até
dirigida pelo Governo. A norma constitucional está a ser cumprida porque integrava, desde

4
Ver página 66 – eleição do Presidente dos Estados Unidos

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a sua origem, essa mesma possibilidade de convergência política. O legislador constituinte


sabe que as relações entre Parlamento e Governo, em democracia representativa,
funcionam desta forma: um Governo apoiado por uma maioria absoluta atua de forma
práticamente incondicionada por eventual ação do Parlamento; já um Governo minoritário
é fortemente condiconado pela vontade expressa pelo Parlamento. O instituto da
responsabilidade política do executivo perante o Parlamento foi pensado e aprovado pelos
Constituintes para funcionar exatamente nestes moldes.

iii) Modalidades de funcionamento prático do sistema de governo


Se é verdade que o estudo de um sistema de governo parte sempre da Constituição,
também é verdade que não podemos dominar verdadeiramente o conhecimento de um
sistema de governo se desconhecermos as suas modalidades de funcionamento prático.
 Um certo sistema de governo pode, na prática, funcionar de formas extraordinariamente
diferentes. Por exemplo, Itália, Reino Unido, Espanha e Alemanha são todos sistemas
parlamentares, mas o funcionamento prático desses sistemas diverge, por vezes,
radicalmente. Será, então, que a definição constitucional não tem interesse e que é mais
relevante centrarmo-nos na análise do funcionamento prático de cada sistema de governo?
Não, pois é através da análise dessa definição constitucional que podemos prever as várias
modalidades de funcionamento prático. Dizer apenas como um sistema funciona na
prática, qualquer um diz: basta olhar e descrever.
 Esta variedade de possibilidades de funcionamento prático acontece porque um sistema
de governo é uma definição constitucional que comporta múltiplas possibilidades de
funcionamento prático, construída intencionalmente para ter essa maleabilidade. E
nenhumas dessas modalidades são mais ou menos legitimas, ou mais ou menos
constitucionais, que outras; desde que se mantenham dentro desse quadro jurídico-
constitucional.
 Por outro lado, uma modalidade prática de um sistema de governo pode até coincidir com
uma modalidade prática de um sistema de governo distinto. O sistema de governo
português (semipresidencial) pode, em certas circunstâncias, funcionar da mesma forma
que o sistema espanhol (parlamentar), quando o PR português opta por ser não
interventivo e a relação entre Governo e Parlamento é semelhante nos dois países. Mesmo
nesses casos, em que modalidades de funcionamento prático de sistemas de governo
distintos coincidem, faz sentido distinguir o sistema de governo a que pertencem, porque
amanhã um resultado eleitoral diferente pode mudar radicalmente o seu funcionamento
prático, mas não muda o sistema de governo, definido no plano jurídico-constitucional,
porque não muda a Constituição.
 Então, atendendo a que um sistema de governo é definido na Constituição, mas que se
concretiza sempre na realidade, pode sugerir-se o compromisso metódico de definir um
outro conceito que descrevesse a realidade prática, que captasse o fenómeno político
como ele se vive quotidianamente. Certos autores propõe uma nova forma política que tem
como objeto a realidade política. Para REIS NOVAIS, tal não se justifica porque as

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designações “sistema de governo” e “funcionamento do sistema de governo” são


suficientes. Apesar disso, não merecendo grandes objeções a criação dessa nova forma
política, a ser criada, ela não deve adotar as designações dos sistemas de governo –
parlamentar, presidencial e semipresidencial – erro cometido frequentemente pelos tais
“especialistas”.

C) Comparação entre sistemas de governo parlamentar e presidencial


Sistema parlamentar Sistema presidencial
Origem: presidencialismo norte-americano
Origem: parlamentarismo britânico
> É um produto artificial da teoria política,
> Ao contrário dos restantes países
construído pelos founding fathers, como
europeus, a Grã-Bretanha não conheceu
contraponto ao sistema parlamentar
uma longa fase de Estado absoluto, mas sim
britânico, substituindo-se a figura do Rei por
um lento processo de consolidação das
um Presidente eleito, simultaneamente
instituições democráticas, a partir da
chefe de Estado e líder do executivo. O
Glorious Revolution. Houve um progressivo
executivo é o Presidente; é unipessoal, e
afastamento do Rei do poder executivo,
não colegial.
entregando-o a um PM sustentado por uma
maioria parlamentar. > Também no presidencialismo se afirmam
dois polos de exercício do poder: Presidente
> Assim, foram-se afirmando dois polos de
e Parlamento/Congresso, ambos com
poder político: Parlamento e Gabinete
legitimidade eletiva. Ao contrário do que
(liderado pelo PM). O Gabinete sai do
acontece no parlamentarismo britânico,
Parlamento, perante o qual responde
onde só o Parlamento é eleito, há uma
politicamente, podendo ser por ele
dupla legitimidade democrática, própria,
demitido. Foram-se consolidando
independente, não derivada. Por essa razão,
instituições como o bipartidarismo, o
não existem relações de confiança e
sistema eleitoral uninominal, a disciplina
responsabilidade entre eles, ou seja, um
partidária, a normalidade da alternância no
órgão não pode demitir o outro.
poder, o parlamentarismo maioritário e a
estabilidade governativa. > Quando adotado por outros Estados
(presidencialismo adaptado),
> Foi reproduzido nas restantes democracias
nomeadamente os da América Latina,
europeias, na passagem do Estado absoluto
apresenta um funcionamento irregular e é
para o Estado de Direito, mas com
sujeito a adaptações, como seja a adoção de
diferenças substanciais.
um executivo colegial.
> Dominante na Europa
> Dominante na América
Características constitucionais Características constitucionais
> O executivo forma-se em função da > Executivo liderado pelo Presidente não é
composição política do Parlamento e é responsável pelo Parlamento, ou seja, a sua

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politicamente responsável perante o formação e subsistência não dependem do


mesmo, o que se traduz na possibilidade de mesmo.
demissão do primeiro pelo segundo. > Presidente eleito por sufrágio popular,
> Chefe de Estado (Rei ou Presidente) não é pelo que exerce poderes políticos
eleito por sufrágio popular, não tendo significativos, incluindo a chefia do Estado e
legitimidade para exercer poderes políticos a chefia do executivo. É órgão-chave da vida
significativos. É figura formal, quase política.
decorativa. > Dada a dupla legitimidade eletiva,
> Governo e Parlamento podem ver o seu Presidente e Congresso não podem ser
mandato/legislatura involuntariamente demitido/dissolvido, nem por morte do
interrompidos por razões políticas: Governo Presidente (que será substituído pelo VP).
pode decidir ou forçar a dissolução do Há uma rigidez dos mandatos que não
Parlamento, e Parlamento pode demitir permite que se realizem eleições fora do
Governo. tempo previsto.
> Chefe de Estado e Chefe de Governo são > Impeachment e checks and balances.
pessoas diferentes.

Equilíbrio do sistema e responsabilidade política:


 Tanto o sistema parlamentar como o sistema presidencial têm as mesmas preocupações,
ainda que com maior ou menor expressão, de eficiência, representatividade,
responsabilidade, estabilidade, flexibilidade e adaptabilidade, e de garantir uma verdadeira
separação e divisão de poderes, um equilíbrio harmonioso do sistema.
 O instituto que melhor reflete a preocupação de equilíbrio é o da responsabilidade política
entre os órgãos que exercem poder político, isto é, a obrigação que um órgão tem de
prestar contas. Não se trata apenas de responder ao que é perguntado, mas também de
responder pelo que lhe é perguntado. A questão-chave da regulação e equilíbrio centra-se
assim em torno das relações de dependência/independência entre diferentes órgãos.
 Em democracia, os órgãos eleitos por sufrágio popular respondem perante o eleitorado,
que nas eleições seguintes pode premiar a sua atuação, reelegendo-os, ou sancioná-la, não
renovando o seu mandato, através do voto retributivo. Preferencialmente, em democracia
de massas, essa retribuição é mediada pelo partido político a que pertence o titular do
órgão em julgamento político.
 Já quando aos órgãos que não são eleitos por sufrágio popular (é o que acontece com o
Governo português, que é nomeado pelo PR, tendo em conta a composição da AR), essa
responsabilização faz-se, ao longo do mandato, perante um órgão eleito, especialmente o
órgão de que dependeu a respetiva nomeação. Nesta situação, a responsabilização só é
efetiva se o órgão perante o qual se responde tem a possibilidade de julgar os titulares dos
órgãos que respondem, eventualmente, fazendo cessar o seu mandato. Daí que se siga que,
em sentido estrito, só há verdadeira responsabilidade política do Governo perante o
Parlamento quando o segundo tem a possibilidade de demitir o primeiro.

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Os sistemas parlamentar e presidencial regulam a questão da responsabilidade política


e do equilíbrio do sistema de forma radicalmente diferente:

Sistema parlamentar Sistema presidencial


Equilíbrio por integração Equilíbrio por separação

> Não sendo o Governo eleito, a sua


responsabilização faz-se perante o órgão
> Dupla legitimidade eletiva. Presidente e
eleito de que dependeu a sua nomeação, o
Congresso tem legitimidade própria, não
Parlamento.
derivada, independente, porque são eleitos
> Assim, se a atuação de um Governo, pelo Povo. Se a sua atuação ao longo do
suportado por determinada maioria mandato/legislatura anteriores merecer o
parlamentar, merece assentimento popular, assentimento da população, serão reeleitos.
os eleitores votarão nos candidatos
> Não há, nem pode haver verdadeira
apresentados pelos partidos que compõem
responsabilidade política entre Presidente e
essa maioria parlamentar.
Congresso. Sendo eleitos pelo Povo, só
> Parlamento pode demitir Governo e devem responder politicamente perante
Governo pode fazer dissolver o Parlamento. esse. A relação entre Presidente e Congresso
Há uma relação contrabalançada através da é a de um casamento sem divórcio.
recíproca capacidade de
> Reciprocamente condicionados através de
dissolução/demissão. Em alternativa,
um sistema de checks and balances,
quando Governo não pode fazer dissolver o
Presidente e Congresso tem de conviver
Parlamento, se há uma demissão do
indissoluvelmente até ao termo dos
Governo, são convocadas eleições
respetivos mandatos e legislatura.
legislativas, acabando por haver essa
dissolução.

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2. PARLAMENTARISMO

Parlamentarismo é o sistema de governo de democracia representativa que reúne as


seguintes características:
i) Nula ou muito reduzida presença política do chefe de Estado.
ii) Governo não eleito responsável politicamente perante o Parlamento.

O sistema parlamentar pode ser:


i) Relativamente ao funcionamento prático: maioritário ou de assembleia.
ii) Em termos jurídicos: clássico ou racionalizado.

A) Parlamentarismo de gabinete e parlamentarismo de assembleia

Sistema maioritário, de gabinete Sistema puro, de assembleia


ou de Westminster ou continental

> A chave para distinguir estes dois modos de funcionamento do parlamentarismo é o fator
responsabilidade política do Governo perante o Parlamento. Tudo residirá em saber se, à
partida e durante o seu mandato, o Governo dispõe de um apoio parlamentar sólido e
maioritário ou não.

> Exemplo típico: Reino Unido > Exemplo típico: Itália


> Há maioria parlamentar absoluta > Não há maioria parlamentar absoluta
> Governo maioritário, forte e estável > Governo minoritário ou de coligação, fraco,
> Com apoio sólido de uma maioria instável, dependente
parlamentar absoluta e coesa, o Governo > Sendo Governo minoritário, não dispõe do
tem a garantia de que o Parlamento não apoio de uma maioria parlamentar, só
põe em causa as suas decisões, que vai sobrevivendo com o assentimento da oposição
governar com total liberdade e eficácia
durante toda a legislatura > Programa de Governo negociado, fazendo-se
concessões à oposição
> Apesar de formalmente depender da
confiança política do Parlamento, na > Leis, medidas e orçamentos do Governo
prática essa não vai faltar ao Governo estão sujeitos a negociação e correm o risco de
ser recusados
> Partidos políticos institucionalizados,
com disciplina partidária, ligação forte e > Parlamento pode aprovar medidas de que o
permanente aos grupos parlamentares, Governo discorde, impor-lhe objetivos e limites

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garantindo apoio parlamentar ao contrários ao seu programa


Governo previsível, estável, certo > Governo sob ameaça de demissão, pode cair,
> Primeiro-Ministro será o líder do e cai muitas vezes
partido mais votado e apresentou-se a > Parlamento não se deixa condicionar:
eleições como candidato a PM domina, impõe regras, marca a agenda, é o
> Após as eleições e a formação do centro do poder
Governo, o centro de poder desloca-se do > Atenção pública e mediática repartida entre
Parlamento, que perde peso político, para os dois órgãos
o Governo, figura central da vida política.
> Sendo Governo de coligação, tudo dependerá
> É o Governo que fixa a ordem do dia; da solidez da aliança
tem poderes na gestão do dia-a-dia
parlamentar, decide o que é votado > A diferente proveniência política dos
membros pode gerar desacordo interno no
> Interesse dos media e dos cidadãos Governo, pondo em risco a sua sobrevivência
centra-se no Primeiro-Ministro e, por vezes, impondo a sua recomposição
> Sistemas eleitorais maioritários a uma > Em última instância convocam-se eleições
volta geram bipartidarismo, tendendo a
levar à formação de Governos > Sistemas eleitorais proporcionais geram
maioritários, e consequentemente, multipartidarismo, tendendo a levar à
parlamentarismos de gabinete formação de Governos minoritários ou de
coligação, e consequentemente, a
parlamentarismos de assembleia

No mesmo país, com as mesmas regras constitucionais, mas sob diferentes


circunstâncias, um sistema parlamentar pode ser de gabinete ou de assembleia. A possibilidade
de funcionamento de cada momento é determinada por circunstâncias jurídicas (como o
sistema eleitoral) mas também práticas, conjunturais, aleatórias que resultaram na existência
ou inexistência de uma maioria absoluta no Parlamento.
Não é pelo facto de o sistema funcionar de um dos modos que isso altera a sua natureza
estrutural de sistema parlamentar. Nenhum dos modos de funcionamento, de gabinete ou de
assembleia, é mais legítimo, mais parlamentar ou mais constitucional que o outro. A
identificação de um sistema não depende da conjuntura, mas sim da definição constitucional,
que permite ambos os modos de funcionamento. O Reino Unido não é um sistema parlamentar
de gabinete, o Reino Unido tem funcionado como um sistema parlamentar de gabinete.

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B) Parlamentarismo racionalizado
Através da engenharia constitucional, e sem pôr em causa a natureza parlamentar do
sistema, pode recorrer-se a mecanismos jurídico-constitucionais que atenuem artificialmente
os fatores mais inconvenientes e geradores de instabilidade num dado sistema parlamentar,
garantindo maior governabilidade. Assim, em oposição ao sistema parlamentar clássico, surge
o sistema parlamentar racionalizado. Alguns dos mecanismos de racionalização são:
 Limites jurídicos à dissolução do Parlamento – como a prévia rejeição do programa de
Governo.
 Moção de censura constitutiva ou positiva – Espanha e Alemanha – para que a aprovação
parlamentar de uma moção de censura possa resultar na demissão do Governo, exige-se
que o Parlamento, quando aprove essa moção, aprove simultaneamente um novo Primeiro
Ministro, Governo ou programa de Governo que substituam o demitido. Tal torna muito
difícil para o Parlamento demitir Governos, porque obriga as oposições a concordar num
candidato alternativo a Primeiro Ministro.
 Possibilidade de um governo minoritário fazer excecionalmente aprovar leis fundamentais
e indispensáveis à governação, como a lei do orçamento, mesmo sem o aval das oposições
– França – tais leis serão consideradas aprovadas, mesmo sem os votos necessários, desde
que as oposições não demitam o Governo ou não apresentem uma alternativa ao mesmo.
Este mecanismo garante uma maior governabilidade, especialmente em sistemas que
tendem a resultar em governos minoritários (que o Parlamento não consegue substituir),
desprotegidos contra maiorias negativas pontuais que as oposições possam formar.
 Atribuição de prémios de maioria à lista mais votada – Grécia – atribuição de um número
extra de Deputados à lista mais votada, para que alcance maioria absoluta, ou se aproxime
dela, garantindo maior governabilidade.
 Diminuição da magnitude dos círculos eleitorais – que faz reduzir a proporcionalidade e a
possibilidade de eleição dos partidos mais pequenos, facilitando a construção de maiorias.
 Fixação de barreiras eleitorais – Alemanha – exigência de obtenção de uma percentagem
mínima a nível nacional para se poder ter representação parlamentar.

O sucesso destes mecanismos de racionalização tem levado a que, por vezes, se tirem
conclusões opostas a esse facto. Assim, há quem alegue que “como na Alemanha raramente
há apresentação de moções de censura então a moção de censura constitutiva não tem
utilidade”. Todavia, a conclusão devia ser a contrária, pois existência destes mecanismos
constitui, na verdade, um importante dissuasor. Quando se sabe que a aprovação da moção de
censura contém aquele requisito de exigência agravada, o efeito político e mediático de
anunciar essa moção, condenada ao fracasso, esvai-se.

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3. PRESIDENCIALISMO

Presidencialismo é o sistema de governo de democracia representativa que reúne as


seguintes características:
i) Chefe de Estado eleito por sufrágio popular, dotado de poderes significativos, incluindo
a liderança do executivo.
ii) Executivo não politicamente responsável perante o Parlamento.

A) Sistema presidencial clássico


O sistema presidencial surge e desenvolve-se nos EUA, confundindo-se, por isso, a
análise do presidencialismo com a análise do sistema de governo norte-americano. Podemos
fazer coincidir o presidencialismo norte-americano com o sistema presidencial clássico.
 A Constituição dos Estados Unidos da América estabelece uma separação de poderes por
três órgãos: Presidente, Congresso e Tribunais.
 O Presidente dos Estados Unidos, simultaneamente chefe de Estado e chefe do executivo,
é o centro da vida política. Desempenha importantes funções como a representação
externa do Estado, o comando das forças armadas, a nomeação de altos funcionários, a
promulgação e veto de leis e a chefia da administração federal. Uma especificidade do
sistema constitucional norte-americano é a inexistência de um Governo colegial. O
executivo é unipessoal, ou seja, é constituído unicamente pelo Presidente, auxiliado pelo
Vice-Presidente, pelos chefes dos vários departamentos da administração e por outros
colaboradores.
 A eleição do Presidente é por um colégio eleitoral composto por grandes eleitores, por sua
vez eleitos pela população de cada Estado, por listas, num sistema maioritário. O número
de grandes eleitores de cada Estado corresponde à soma dos seus dois Senadores com o
número de Representantes que tem na câmara baixa do Congresso. A eleição presidencial
é, assim, indireta, mas apenas formalmente. A intervenção dos partidos no processo
eleitoral transforma-a numa eleição direta, conferindo ao Presidente a legitimidade
democrática de que necessita para exercer os poderes que lha são atribuídos pela
Constituição. É direta, na prática, porque quando os cidadãos escolhem os grandes
eleitores, o fazem em função da sua filiação partidária. Assim, ao votar numa lista estão a
votar no candidato presidencial apresentado oficialmente pelo partido dessa lista5.
 Este sistema eleitoral, pensado no e para o século XVIII, apresenta hoje enormes
deficiências. Os seus objetivos de garantir uma eleição representativa, desapaixonada e que
não resultasse num peso excessivo dos estados maiores, alcançados através da eleição
indireta, do sistema maioritário em cada estado e do maior peso de estados com menor

5
Ver páginas 57-58 – princípio da legitimidade democrática do Presidente dos Estados Unidos

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Baltazar Oliveira

população, permitiram a eleição de Presidentes com menos votos que o candidato


derrotado.
 O poder legislativo é conferido a um Congresso bicameral. Cada um dos 50 Estados é
representado por dois Senadores na câmara alta (o Senado), e por Representantes, em
número proporcional à sua população, na câmara baixa (a Câmara dos Representantes).
 O poder judicial é detido pelo Supremo Tribunal e por outros tribunais inferiores. O
Supremo Tribunal é constituído por 9 juízes nomeados pelo Presidente e confirmados pelo
Senado.

Não obstante a marcada separação entre Presidente e Congresso, dada a


impossibilidade de demissão/dissolução entre os dois órgãos, eles mantêm entre si uma
relação de equilíbrio por separação6, através de um poderoso sistema de checks and balances,
ou freios e contrapesos, que impedem tendências autoritárias do Presidente e a concentração
de poderes num dos órgãos.
 O Presidente dispõe de poderes que lhe dão grande margem de negociação. Pode
apresentar iniciativas legislativas (apresentadas por congressistas que lhe sejam afetos),
regulamentar legislação aprovada pelo Congresso, emitir ordens executivas, vetar leis (que
o Congresso dificilmente ultrapassa) e nomear juízes federais.
 O Congresso dispõe de instrumentos como a aprovação do orçamento, que lhe permite
inviabilizar medidas que o Presidente queira desenvolver, recusar dotações orçamentais
propostas por esse e paralisar as atividades do executivo. Pode ainda confirmar ou recusar
nomeações presidenciais para altos cargos da administração federal ou para juízes do
Supremo Tribunal, não ratificar acordos internacionais já aprovados pelo Presidente,
constituir comissões parlamentares de inquérito às atividades da Administração,
desenvolvendo uma fiscalização sistemática da atividade do executivo, e recorrer ao
processo de impeachment para destituir o Presidente ou juízes.
 O Supremo Tribunal, independente, foi pioneiro no poder da fiscalização da
constitucionalidade das leis e na instituição de uma justiça constitucional. Pode declarar leis
do Congresso e atos normativos do Presidente inconstitucionais7.

B) Funcionamento prático e dificuldades de exportação


A particularidade do sistema presidencial relativamente aos outros reside no facto do
equilíbrio entre órgãos detentores de poder político se fazer por separação. A relação
institucional entre Presidente e Congresso é a de um casamento sem divórcio: são obrigados a
conviver um com o outro, sem possibilidade de demissão/destituição, até ao termo do
mandato ou legislatura, mesmo que entre eles haja uma oposição sistemática e radical. Assim,

6
Ver página 62 – equilíbrio por separação (presidencialismo) e equilíbrio por integração (parlamentarismo)
7
Ver páginas 14-15 – precocidade americana na instauração da justiça constitucional

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o maior risco do sistema presidencial é o de oposição frontal entre Presidente e Congresso, que
leve a bloqueios geradores de ingovernabilidades. Por essa razão, o sistema deve comportar
mecanismos de resolução de conflitos, de superação dos bloqueios. Mas os mecanismos
normalmente utilizados – demissão do executivo ou dissolução do Parlamento – são
incompatíveis com o presidencialismo. É necessário recorrer ao compromisso e à cedência,
como acontecia nos Estados Unidos.
Todavia, esta forma de resolução de conflitos, que perdurou nos EUA até
recentemente, é inviável na Europa, dada a diferente natureza dos partidos políticos e da vida
política norte-americanos quando comparados com o sistema partidário e a política europeia.
 Europa: os partidos constituem-se como forças de combate, disciplinados, unidos em torno
de objetivos opostos, agregados por décadas de tradição, interesses de classe, história
própria, afinidades religiosas e especificidades linguísticas e regionais, não sendo fácil
resolver conflitos entre partidos através da cedência. Cada vez que houvesse, num eventual
sistema presidencial, uma dissonância entre as maiorias parlamentar e presidencial, o mais
provável seria um bloqueio que durasse até ao termo da legislatura ou mandato.
 EUA: tem (tinha) sido impedida uma eventual oposição frontal e sistemática entre
Congresso e Presidente porque:
o A direção nacional dos partidos não impõe um funcionamento em bloco aos
congressistas, ou seja, não há disciplina partidária. Assim, os congressistas exercem o
mandato com enorme autonomia do partido, ainda que a prejuízo de essa vagatura de
influência sobre eles seja preenchida, entre eleições, por lobbies. Tal reduz a atividade
partidária a períodos de campanha eleitoral, sendo os partidos autênticas máquinas de
apoio a candidaturas, mantidas em hibernação até às eleições seguintes.
o Não há uma demarcação ideológica clara, estável e previsível entre os dois principais
partidos que não permita resolver disputas programáticas. Assim, as maiorias no
Congresso dependem menos da vontade dos partidos e mais da vontade individual de
cada Congressista, não havendo tendência para o bloqueio do sistema.

Concluindo, o sistema presidencial norte-americano só é exportável para experiências


políticas em que a separação de poderes e o equilíbrio institucional estejam enraizados na
comunidade política (incluindo através da participação independente do poder judicial) e em
que, simultaneamente, o risco de bloqueio com raiz partidária ou ideológica esteja excluído ou
seja muito improvável. É essa a razão por que muitas vezes, sobretudo na América Latina, o
funcionamento do sistema presidencial corre o risco de degenerar, pela frequência de tais
conflitos, e pela frequência com que são resolvidos com concentração de poderes, golpes
antidemocráticos ou recurso de meios ilícitos para conquistar maiorias de apoio. O sistema
presidencial tem dificuldades de exportação.

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C) Presidencialismo adaptado
O sistema de governo norte-americano é um modelo puro e perfeito de
presidencialismo (visto que é um produto da teoria política, concebido propositadamente para
os EUA). Contudo, na transplantação desse sistema para outros contextos, com adaptações às
realidades concretas de cada país, num modelo de presidencialismo adaptado, torna-se
bastante mais difícil conceber um sistema tão estável como o norte-americano. Como foi
explicado, foram mesmo fracassadas todas as tentativas (em democracia) de sistema
presidencial na Europa. Já nos países da América Latina o sucesso é maior, ainda que com
grandes riscos de disfuncionalidade e extrema dificuldade de adaptação.
 Nestes países, havendo consonância entre Presidente e Congresso, o sistema funciona de
forma imperfeita, já que essa consonância em democracias não consolidadas estimula a
concentração de poderes e o risco de um exercício autoritário dos mesmos pelo Presidente.
Assim, o Parlamento tende a deixar de funcionar como um contrapeso e o poder judicial
independente fica progressivamente constrangido no exercício das suas funções.
 Por outro lado, não havendo consonância entre os dois órgãos, qualquer divergência pode
conduzir a bloqueios institucionais, a permanente e sistemático confronto. Tal leva a que,
em contextos como o dos países da América Latina, de ausência de regimes democráticos
estabilizados e de profundas clivagens políticas e sociais, com fragmentação parlamentar,
e em que os executivos não dispõem de apoio maioritário sólido do Congresso, uma via de
adaptação do presidencialismo seja recorrer à constituição de Governos de aliança
multipartidária.
 A formação destes executivos de coligação, muitas vezes formados por vias ilegítimas
(como a corrupção de congressistas da oposição, através da compra de apoios pontuais ou
sistemáticos para o garantir a viabilidade ao executivo), é depois pretexto para a instituição
do compadrio e dos negócios partidários não sustentados em diferenças ideológicas, como
seria exigível em democracia. A existência de coligações deste tipo, eventualmente muito
amplas e constituídas sem critério transparente e previsível pelo cidadão, no momento da
escolha eleitoral, funciona como pretexto para a desresponsabilização, impossibilitando o
eleitorado de dar uso a um voto retributivo.
 Até aos anos 80 do século XX, uma via de resolução de bloqueios e crises políticas em países
da América Latina foi a dos interregnos autocráticos ou dos golpes de Estado que
instauravam ditaduras militares que só na aparência podem ser consideradas sistemas de
governo presidencial. A partir dos anos 80 surgiu, como forma de resolução desses mesmos
bloqueios e crises políticas, com grande repercussão, o impeachment como mecanismo de
responsabilização política.
 O funcionamento do presidencialismo num quadro como o da América Latina,
insuficientemente institucionalizado e caracterizado pela fragmentação, incipiência,
regionalismo, instabilidade e inconsistência ideológica, afigura-se muito arriscado. Estas
experiências contrastam com a norte-americana, definida por uma Constituição
impenetrável, onde não existem bloqueios e o sistema funciona de forma estável. O sistema
parlamentar de assembleia seria, porventura, o modelo ideal de sistema de governo neste

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tipo de circunstâncias, em que não é possível a constituição de governos monopartidários


com apoios parlamentares sólidos.
 Uma adaptação sensível feita por alguns países da América Latina ao presidencialismo
clássico (que tem um executivo unipessoal) é a adoção de um executivo colegial de tipo
europeu, eventualmente com Primeiro-Ministro, com Ministros subordinados ao
Presidente, mas responsáveis individualmente perante o Parlamento. Em qualquer caso,
esta variante de estruturação jurídica não afeta a natureza e racionalidade do
presidencialismo adaptado.

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4. IMPEACHMENT PRESIDENCIAL

A) História: impeachment na Inglaterra e sua importação


O impeachment nasceu em Inglaterra, no final do século XIV, ainda que tenha sido
utilizado intermitentemente até cair em desuso, no séc. XVIII. Não podendo o Rei ser
diretamente responsabilizado perante o Parlamento (the King can do no wrong), o
impeachment tinha como alvo preferencial funcionários corruptos (que beneficiavam da
proteção dos Tribunais ou do monarca) e aqueles a quem se imputava o bad advice
relativamente aos atos que tinham o beneplácito da Coroa. Visava também os juízes que
protegiam os servidores do Rei de fiscalização parlamentar. A acusação era elaborada pela
Câmara dos Comuns, e o julgamento realizado pela Câmara dos Lordes, que na altura também
funcionava como Tribunal Supremo. A especificidade era a de que na decisão do impeachment
participavam todos os membros da Câmara e a condenação era decidida por maioria de votos, enquanto
na generalidade dos outros processos de recurso quem decidia eram apenas os Law Lords.
Este instituto evoluiu, mais tarde, para um processo parlamentar orientado para a
defesa da ordem constitucional contra o abuso de poder, aplicando-se a qualquer pessoa,
servidor público ou particular. Era uma forma de defesa das prerrogativas do Parlamento
contra potenciais tentações de poder absoluto. Tinha como fundamentos o abuso do exercício
de autoridade, a incompetência, a má administração, a negligência, o incumprimento do dever,
e tudo o que, no século XVIII, era abrangido pela expressão high crimes and misdemeanors.
Independentemente da gravidade, aquilo que estava em causa era um delito político, uma
lesão culposa dos interesses do Estado e da sociedade, não tendo de ser obrigatoriamente um
crime.
Não se pode caracterizar a natureza do impeachment como exclusivamente política já
que durante algum tempo, enquanto meio de atuação parlamentar, os processos de
impeachment concorriam com os de bill of attainder, (leis penais individualmente
condenatórias e eventualmente retroativas), e tanto uns como outros podiam visar particulares
e não apenas servidores públicos, e ambos podiam ter uma natureza criminal. O impeachment
podia ter consequências penais muito para além de uma mera remoção do cargo público, como
a pena de morte. Em sentido contrário, em presidencialismo, julga-se apenas a autoridade, com a
eventual remoção do cargo, mas nunca o homem, ficando a sanção penal a cargo dos tribunais.
Em Inglaterra, o recurso ao impeachment acabou por resultar na institucionalização
progressiva da responsabilização política dos membros do executivo perante o Parlamento já
que, como muitos dos acusados tinham cargos políticos, renunciavam ao cargo antes de
concluído o processo. Ao mesmo tempo caiu em desuso a condenação dos conselheiros da
coroa, ou seja, o impeachment.
Este instituto inglês serviu de inspiração para que vários países europeus importassem
a responsabilização política dos governos para os seus sistemas parlamentares. Inicialmente
indiferenciadas, as responsabilidades política e criminal passaram a ser julgadas
autonomamente, nos Parlamentos e nos Tribunais. Eventualmente, no caso da

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responsabilidade criminal de titulares de órgãos de soberania por crimes praticados no


exercício das suas funções, combinava-se a iniciativa parlamentar de acusação com a decisão
condenatória a cargo do poder judicial.
Nos EUA, o impeachment foi também configurado como um procedimento político,
estritamente separado do procedimento criminal pela prática dos mesmos atos, mas com a
diferença de que não constituía um instrumento de responsabilização política. O impeachment
norte-americano foi posteriormente importado para muitos países da América Latina, ainda
que com algumas adaptações.

B) Impeachment nos Estados Unidos


Impeachment é o processo de acusação e julgamento de um titular de um cargo político
conduzido pela assembleia parlamentar e tendente à remoção desse titular por prática de atos
considerados inadmissíveis e incompatíveis com a função. Rigorosamente, impeachment é a
designação atribuída à primeira fase do processo de destituição, a fase de acusação, que é seguida da
fase de julgamento.
 Todos os regimes democráticos têm instituídos processos de julgamento de órgãos de
soberania por crimes cometidos no exercício dessas funções. Porém, em presidencialismo,
esse instituto assume um relevo próprio, visto que é uma exceção ao princípio fundamental
do presidencialismo de separação e interdependência dos poderes, ou seja, de
impossibilidade de destituição/demissão de um dos dois órgãos (Presidente e Congresso)
pelo outro.
 Assim, a existência do impeachment sem a reciprocidade de o chefe de Estado poder
destituir o órgão legislativo, bem como a inexistência de um controlo jurisdicional
independente que verifique a observância dos requisitos constitucionais do impeachment
pelo Congresso, vem questionar a racionalidade e equilíbrio inerentes ao sistema
presidencial, em que se deve pressupor que os mandatos de Presidente e Congresso são
levados até ao fim.
 Mas no contexto da formação do sistema de governo norte-americano compreende-se a
opção pelo impeachment. A adoção, pelos EUA, deste instituto que vinha do seu
colonizador (o impeachment em Inglaterra tinha uma imagem democrática, de mecanismo de
salvaguarda do poder do Parlamento contra tentações autocráticas), no preciso momento em
que esse o deixou cair em desuso, justifica-se pela necessidade de dar resposta a atos
inadmissíveis por parte do Presidente que adquire, pela primeira vez, poderes fortes e
intervenientes, mas que não pode ser destituído por razões de discordância política, e cujo
mandato não depende da vontade de um executivo colegial em que o Presidente se integre.
O impeachment era a única válvula de segurança nas mãos de um Congresso que se
deparasse com um Presidente autoritário, com um novo Monarca.
 Ademais, como na Convenção constituinte se previa que o Presidente acabaria por ser
muitas vezes eleito pelo Congresso (sempre que o colégio eleitoral não alcançasse uma

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maioria absoluta a favor de um candidato), então não seria intrinsecamente contraditório


que o Congresso destituísse o Presidente em circunstâncias extraordinárias.
 Se essa ideia era verdadeira nos moldes em que funcionavam as eleições presidenciais do
século XVIII, quando o Presidente passou a ser eleito, na prática, diretamente, tendo uma
legitimidade democrática tão forte como a do Congresso, um instituto como o
impeachment passou a ser incoerente na lógica de separação de poderes do
presidencialismo. No entanto, a necessidade dos dois terços dos Senadores para destituir
o Presidente tem permitido salvaguardar o sistema de um uso abusivo do instituto.
 Num balanço retrospetivo, pode defender-se que essa opção foi acertada, já que tem
havido uma contenção na utilização deste instrumento (pelo menos até recentemente),
que adquiriu um importante efeito dissuasor, salvaguardando a normalidade
constitucional. Esta circunstância contrasta, contudo, com algumas experiências latino-
americanas, como a brasileira, em que o impeachment tem sido utilizado como
instrumento de responsabilização política dos Presidentes.

Características fundamentais do impeachment nos EUA – regime constitucional:


 Podem ser sujeitos a impeachment os servidores públicos, incluindo juízes e o
Presidente.
 Cabe à Câmara dos Representantes o poder de formalizar a acusação, sob proposta do
seu Comité Judiciário após realização de um inquérito.
 Cabe ao Senado, sob a presidência do Juiz-Presidente do Supremo Tribunal, o poder de
julgar, devendo a condenação do acusado ser aprovada por uma maioria de dois terços.
A adoção do requisito de dois terços equipara o impeachment às decisões mais solenes da
ordem constitucional, que também exigem essa maioria, como as emendas constitucionais e a
superação do veto presidencial.
 As consequências da condenação são a remoção do cargo e a inabilitação para exercer
cargos públicos, não podendo ainda o condenado ser objeto de posterior indulto
presidencial.

O impeachment apresenta uma natureza política já que:


 A iniciativa e o julgamento são da competência de órgãos políticos.
 A decisão é tomada com base numa avaliação política sobre a oportunidade do
processo e sobre as consequências que devem ser imputadas aos atos e
comportamentos do acusado.
 Também as consequências da condenação são políticas: remoção do cargo e eventual
inabilitação para o exercício de funções públicas.
 Havendo, na Convenção Constituinte dos EUA, uma intenção inicial de dar o poder de
julgar o impeachment ao Supremo Tribunal, essa orientação foi expressamente

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rejeitada, a favor do Senado, privilegiando-se a conceção de que este instituto deve


assentar numa avaliação política sobre a adequação da eventual continuidade no cargo.
 A Constituição acolheu uma clara separação entre o processo de impeachment
(orientado para avaliar uma eventual falha de integridade e adequação do Presidente
ao cargo) e o processo criminal que venha a ocorrer pela prática dos mesmos atos,
conduzido pelos Tribunais.
 A Constituição fixa numa fórmula intencionalmente indeterminada (high crimes and
misdemeanors) os fundamentos do impeachment, que contrasta com a necessidade de
conteúdo bem mais determinado de uma norma que determine juízos criminais.
 Embora com alguma controvérsia na doutrina, considera-se que o impeachment não
está sujeito a judicial review, isto é, controlo de constitucionalidade.
 Esta é uma natureza política sui generis, tão distinta da responsabilização dos
executivos em sistema parlamentar ou semipresidencial, em que uma mera
discordância política é fundamento legal para a destituição.

A distinção entre impeachment em presidencialismo e destituição em


parlamentarismo/semipresidencialismo pode ser atenuada. Quando a observância dos limites
materiais do impeachment, por parte dos Congressos, não é juridicamente sindicável, pode, na
prática, ser apenas necessária uma maioria de dois terços para condenar o Presidente (e não
ser necessário o respeito por esses requisitos materiais, como o fundamento da acusação).
Realmente, enquanto questão política, não é aconselhável que o impeachment esteja sujeito
(e não está, no entendimento dominante), a controlo de constitucionalidade, a não ser no
preenchimento de requisitos formais e orgânicos.

O facto de não ser atribuída a última palavra sobre o destino político do acusado ao
Supremo Tribunal em processo de judicial review pode ser deduzido dos seguintes elementos:
 Sentido literal da Constituição, que diz que a Câmara dos Representantes tem o “sole
power” de acusar e que o Senado tem o “sole power” de julgar.
 O facto de os juízes do Supremo Tribunal, que fariam a eventual judicial review, serem
nomeados pelo Presidente e serem um número reduzido, o que os deixa mais sujeitos
a pressões políticas.
 Se a decisão final sobre a destituição do Presidente fosse do Supremo Tribunal, esse
órgão estaria encarregue de decidir dois processos previstos constitucionalmente como
autónomos, o impeachment e um eventual processo criminal.
 Seria irracional deixar decorrer um dramático, moroso e complexo processo de
impeachment que poderia vir a ser anulado pelo Supremo Tribunal. E nesse caso, o
Presidente manter-se-ia em funções numa posição politicamente insustentável.

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Mesmo aderindo a esta conceção, dominante, segundo a qual não há judicial review, o
processo de impeachment nos EUA é regulado juridicamente pela Constituição. O facto de a
presidência do processo de condenação ser do Juiz-Presidente do Supremo Tribunal reforça
esta ideia de sujeição do processo à legalidade. Portanto, mesmo que a decisão do Congresso
não seja sujeita a controlo judicial, a esse órgão são aplicáveis as disposições constitucionais,
nomeadamente o respeito pelo fundamento de impeachment “treason, bribery and other high
crimes and misdemeanors”. E por mais indefinida que seja essa norma, não são admissíveis
discordância ou desconfiança política como fundamentos da destituição.
A fórmula “high crimes and misdemeanors” gera algumas dúvidas sobre os
fundamentos que justificam o recurso ao impeachment.
 Sabemos que a desconfiança ou discordância políticas não podem ser fundamentos.
 Também se pode concluir que os atos incluídos em “high crimes and misdemeanors”
têm de ser tão ou mais graves que “treason and bribery”.
 Exige-se que o que esteja em causa seja um delito contra o Estado e a sociedade,
revelador da falta de integridade ou inaptidão, necessárias ao exercício da função
presidencial. O objetivo do impeachment não é a punição, mas a proteção da sociedade
e do Estado de um risco da permanência em funções do Presidente.
 É necessário que os atos apreciados pelo Congresso sejam tão graves e inadmissíveis ao
ponto de ser necessária uma destituição do Presidente antes do próximo ato eleitoral.
A avaliação da gravidade do ato e do risco da permanência em funções do Presidente
devem sustentar-se num consenso social expresso numa maioria de dois terços do
Senado.
 A existência de um crime não é condição suficiente para a abertura do processo. Uma
infração que que nada revele sobre a eventual inaptidão do Presidente não deve ser
objeto de acusação. Não faria sentido um Presidente ser sujeito a um processo de
impeachment por conduzir em excesso de velocidade. Por outro lado, a prática de um
crime também não é condição necessária para que um Presidente pode ser removido
do cargo. Por exemplo, se foi de férias enquanto o país se deparava com graves
incêndios florestais, o Presidente não cometeu um crime, mas deve ser destituído.
 Tendo havido uma rejeição da admissibilidade dos bill of attainder na Constituição,
pode concluir-se que o impeachment não aceita qualquer retroatividade da norma
sancionatória. Assim, o procedimento deve incidir sobre um delito que qualquer pessoa
razoável pudesse ter percebido ser abusivo ou inadmissível.

Existe um grande desfasamento entre as expectativas dos constituintes e o impacto


prático que o impeachment teve nos Estados Unidos.
 Em mais de 200 anos de Constituição, nenhum Presidente foi formalmente destituído. Pese
embora que Richard Nixon o iria ser, se não tivesse renunciado ao cargo, e que ainda houve
mais quatro casos de impeachment, mas que não resultaram em condenação: Andrew
Johnson, Bill Clinton e Donald Trump (duas vezes). Todos os restantes casos de

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impeachment não são muito significativos, dizendo respeito, principalmente, a juízes. A


condenação de Nixon, na sucessão do escândalo de Watergate, verificar-se-ia, sem dúvidas, por
uma reunião de graves circunstâncias: transgressões inadmissíveis, elevada taxa de desaprovação
popular do Presidente e uma profunda crise do sistema político e dos valores da sociedade
americana, motivada pelo fracasso da guerra do Vietnam.
 Este desfasamento entre expectativa e realidade deve-se em parte ao requisito de dois
terços dos Senadores para condenar o Presidente que, conjuntamente com o sistema
bipartidário americano, exige um grande consenso entre os dois partidos (Partido
Democrata e Partido Republicano). Assim, este requisito tem, a título permanente, um
efeito dissuasor que inibe iniciativas de impeachment abusivas ou implausíveis, ao contrário
do que acontece noutros presidencialismos com sistemas multipartidários e instáveis.
 Ainda assim, verificaram-se, pelo menos, dois processos de impeachment contra
Presidentes sem qualquer fundamento, como são os casos dos Presidentes Tyler e Clinton.
Desde a tentativa de destituição do último (1999), que se tem verificado o recurso
constante a este instituto na política norte-americana. Tal é sintoma da cada vez maior
divisão, polarização e radicalização ideológica da sociedade americana o que, por outro
lado, torna cada vez mais inviável o acordo de dois terços do Senado. Assim, só seria
possível destituir um Presidente nos dias de hoje numa situação de prática de atos graves
e inadmissíveis, de grande descontentamento popular relativamente ao Presidente, e de
afrouxamento dos laços de fidelidade entre congressistas filiados no partido que apoia o
Presidente.

C) Impeachment na América Latina


A importação do impeachment para países da América Latina, como a do
presidencialismo norte-americano, obrigou a adaptações e deu origem a um padrão de
utilização significativamente diferente, ainda que com estrutura, objetivos e natureza
semelhantes às dos EUA.
 Os fundamentos que legitimam o recurso ao impeachment (nos EUA treason, bribery and
other high crimes and misdemeanors), diferem muito de país para país: no Paraguai e na
Argentina esse fundamento pode ser um simples “mau desempenho”, na Colômbia
“indignidade por má conduta”, e no Brasil a prática de “crimes de responsabilidade”. A
noção crimes de responsabilidade é tão equivocada e imprecisa como a norte-americana high
crimes and misdemeanors. Pelos verdadeiros crimes que cometesse, o Presidente respondia
perante o Supremo Tribunal; pelos crimes de responsabilidade, que não são verdadeiros crimes,
mas infrações políticas e constitucionais, responderia perante o Congresso. Na generalidade dos
países latino-americanos constitui fundamento para impeachment a prática de delitos
contra a Constituição ou contra as leis. Dado o amplo espectro de possibilidades de
fundamentação do impeachment nestes países, essa fundamentação surge nalguns
sistemas confundida com responsabilidade criminal, enquanto noutros com

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responsabilidade política. Assim, pode haver uma maior ou menor judicialização, ou


politização, do instituto.
 A importação do impeachment pelos países da América Latina foi também acompanhada
de algumas adaptações no plano orgânico, como, por exemplo, a condução da fase de
acusação a cargo de uma assembleia parlamentar e o julgamento a cargo de um Supremo
Tribunal ou de um Tribunal Constitucional, em alguns países.
 Contrariamente ao expectável, vista a instabilidade política que predominou na região e a
sucessão de crises políticas que ocorreram até aos anos 80, a prática real do impeachment
foi ignorada como via de resolução de bloqueios até esse período. Recorria-se a golpes de
estado e ditaduras militares em situações de bloqueio institucional.
 Com a fase de democratização que ocorreu na América Latina a partir dos anos 60, e com
a rejeição nacional e internacional da intervenção dos militares na vida política,
desenvolveu-se uma tendência nítida, a partir dos finais do séc. XX e até aos dias de hoje,
para destituir ou forçar a destituição dos Presidentes como forma de solucionar situações
de crise. Quando as elites deixam de olhar para os militares como meio de afastar
Presidentes indesejáveis, o impeachment e outros meios legalmente previstos ganham
protagonismo como instrumentos de resolução de bloqueios institucionais.
 Este instituto que devia, na sua conceção originária, ser utilizado em caso de abuso dos
poderes presidenciais grave e inadmissível, tem sido instrumentalizado para demitir
Presidentes impopulares por maiorias no Congresso suportadas por um apoio popular
conjuntural, mas massivo. Tem havido, na América Latina, um recurso ao impeachment
como instrumento de responsabilização política, de censura política do Presidente pelo
Congresso. Este mecanismo de resolução de bloqueios institucionais tem a vantagem
acrescida de não pôr em causa a continuidade de funcionamento do regime democrático,
quando comparada com a anterior solução.

Os principais meios, diretos e indiretos, de afastamento de Presidentes impopulares e


sem apoio parlamentar, pelo Parlamento, são o impeachment, a declaração parlamentar de
inaptidão e a renúncia, com ou sem convocação de eleições.
 A declaração parlamentar de inaptidão física ou mental do Presidente para o exercício do
cargo é normalmente aprovada por maioria simples ou absoluta, e é motivada por
desacordo político entre Parlamento e Presidente. Este funcionamento não diverge do das
moções de censura em sistemas parlamentares e semipresidenciais.
 A renúncia é resultado de prévia pressão parlamentar, em antecipação de processos de
impeachment ou de declaração de inaptidão. Assim, o que realmente acontece é uma
destituição que surge formalmente como renúncia.
 O recurso padronizado e patológico a esses instrumentos aparece como uma forma de
responsabilização política dos Governos em presidencialismo adaptado, colocando em
causa os princípios presidencialistas da rigidez dos mandatos de Presidente e Congresso e
de separação e interdependência.

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 Apesar de possíveis dúvidas de constitucionalidade acerca desse tipo de funcionamento,


estas interrupções legais de mandatos têm-se verificado sem pôr em causa o
funcionamento democrático dos sistemas políticos dos países da América Latina. O
impeachment surge assim como um mecanismo constitucionalmente previsto de
interrupção dos mandatos presidenciais, normalmente desencadeado e estimulado por
grandes mobilizações populares, como resposta institucional a escândalos de corrupção,
abusos de poder ou graves crises económicas.

Mesmo quando se cumprem os requisitos constitucionais (materiais, formais e


orgânicos) do impeachment há uma diferença quando se compara esse instituto no
presidencialismo adaptado à natureza originária do presidencialismo clássico: a destituição não
se deve a atos presidenciais graves, à preservação da ordem constitucional, à proteção do
Estado e da sociedade, mas sim a um distanciamento entre Presidente e Congresso, que se
encontra enfraquecido.
 Suscita-se então a dúvida se os vários mecanismos de interrupção de mandatos
presidenciais, pelo Congresso, funcionam ou não benignamente, como válvulas de
segurança que evitam crises do regime democrático, abuso de poderes presidenciais ou
conflitos institucionais entre Congresso e Presidente.
 Uma utilização frequente e indiscriminada do impeachment põe em causa vantagens do
presidencialismo como a estabilidade governativa, a independência do executivo e o
balanceamento de poderes, assentes em mandatos rígidos que são cumpridos até ao fim e
na não interferência do Parlamento na atividade do executivo. Verificando-se estas
condições, haveria condições ótimas para governar e o Presidente poderia ser
responsabilizado no fim do seu mandato com o voto retributivo dos eleitores.
 Estando o Presidente dependente da não formação de uma maioria parlamentar que o
possa destituir, ele passa a estar obrigado a negociar com a oposição e a fazer coligações
pós-eleitorais (características de sistemas partidários fragmentados e não ideologicamente
diferenciados) que lhe permitam concluir o seu mandato, vendo a sua posição institucional
enfraquecida. Essa dependência é ainda agravada pelo facto de o Presidente não possuir a
ameaça do poder de dissolução, que o deixasse remeter para o eleitorado a arbitragem do
eventual conflito entre os dois órgãos, e assim dissuadir o Parlamento de criar bloqueios
desnecessários.
 Por outro lado, poderia dizer-se que o maior perigo para estas democracias não é um
Presidente debilitado, mas um Presidente que abusa dos seus poderes, face a Parlamentos
enfraquecidos. Nessas situações, o recurso ao impeachment deixa de ser um meio forte
contra Presidentes fracos, e passa a ser um meio fraco contra Presidentes fortes. O
mecanismo de interrupção do mandato presidencial é ineficaz e impraticável nestas
situações de verdadeiro abuso de poder presidencial e de risco de instalação de poder
ditatorial em presidencialismo adaptado com maioria parlamentar sólida.
 Há ainda que referir que em presidencialismo, e ao contrário do que acontece nos outros
sistemas de governo, a destituição do Presidente significa a sua morte política. Assim, o

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Baltazar Oliveira

cargo de Vice-Presidente assume uma relevância não constitucionalmente prevista e não


consentânea com a sua irrelevância ao momento da própria eleição. Assumindo de forma
intercalar o lugar do Presidente destituído, o VP acaba por deter uma posição chave no
sistema político e na hipótese de remoção do Presidente durante o seu mandato. Correm-
se riscos de acontecer o que se passou em 2016 no Brasil, após o impeachment de Dilma
Rousseff. O VP Michel Temer assumiu a presidência e implementou um programa político
não só nunca sujeito a aprovação popular, como radicalmente diferente do da sua
antecessora e muito impopular.
 Apesar destes aspetos negativos, o impeachment em presidencialismo adaptado permite
superar bloqueios institucionais, interrompendo presidências sem apoio popular ou
parlamentar, ineficazes ou corruptas, sem pôr em causa o funcionamento democrático do
sistema. Ou seja, mesmo quando se processa em situações de instabilidade e radicalização
de posições, o sistema político sofre uma regeneração com a destituição do Presidente.

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5. SEMIPRESIDENCIALISMO: TEORIA

A) Origens
Com o objetivo de superação dos defeitos estruturais do parlamentarismo de
assembleia, de tipo francês, ou continental (cuja instabilidade se atribui ao excessivo poder das
assembleias parlamentares) surgiram, nos períodos de reconstrução que se seguiram às duas
guerras mundiais, diferentes tentativas de racionalização dos sistemas de governo.
 Numa primeira estratégia, mecanismos de racionalização8 como a moção de censura
positiva (consagrada nas Constituições alemã de 1949 e espanhola de 1978) vieram trazer
mais estabilidade e governabilidade aos quadros parlamentares. Uma segunda orientação
pretende revalorizar o órgão chefe de Estado, através da sua eleição popular.
 A inovação “chefe de Estado eleito por sufrágio popular” veio pôr em causa a dicotomia
clássica “Presidentes eleitos na América, chefes de Estado representativos e não eleitos na
Europa”, adquirindo uma enorme importância na história da evolução dos sistemas de
governo da europa do séc. XX. Recuperou-se, de algum modo, a tradição dualista das
monarquias orleanistas do século XIX, agora adaptadas à forma republicana de governo e
colhendo a legitimidade democrática do outro lado do Atlântico, que permite ao Presidente
exercer poderes significativos. O PR surge então como um terceiro novo polo de poder
democrático que veio acautelar os perigos das concentrações de poder dos
parlamentarismos, sejam de Gabinete ou de Assembleia.
 Quando comparada com a outra estratégia de racionalização do sistema parlamentar, esta
era muito mais controversa, pois a esquerda era, tradicionalmente, muito mais reativa a
qualquer hipótese de reforço dos poderes presidenciais. A memória da II República
Francesa (de Napoleão Bonaparte) tinha ensinado à Europa que um Presidente eleito
diretamente rapidamente podia transformar-se num imperador. Em contraponto, a direita
tinha uma aversão histórica à concentração de poder nas assembleias parlamentares,
favorecendo propostas de reforço dos executivos. Assim, a eleição direta dos Presidentes
foi progressivamente adotada na Europa por partidos de direita ou conservadores, com a
oposição dos setores de esquerda.
 Este processo refletiu-se em várias experiências constitucionais, como a Constituição alemã
de Weimar de 1919, a finlandesa de 1919 (primeiramente a eleição do PR era por colégio
eleitoral, e só mais tarde substituída por eleição direta), a austríaca de 1929 e a francesa de
1958-62, e encontrou acolhimento nas várias vagas de democratização da segunda metade
do século XX. Se, em 1950, havia na Europa apenas três Presidentes eleitos, em 2000 já
havia vinte.

8
Ver página 65 – mecanismos de racionalização do parlamentarismo

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Baltazar Oliveira

O reconhecimento do semipresidencialismo como sistema de governo novo e


autónomo tem como principal marco a experiência da V República francesa.
 Antes da aprovação da Constituição de 1958, havia duas tendências em confronto: De
Gaulle propunha que o PR fosse o centro do poder e que tivesse poderes de direção e
arbitragem; Michel Debré defendia um sistema parlamentar racionalizado, em que o
Governo fosse liderado por um Primeiro-Ministro. Curiosamente, Debré, tido como pai da
Constituição, foi Primeiro-Ministro sob a presidência do General De Gaulle.
 A Constituição veio estabelecer um compromisso entre as duas tendências, mantendo uma
clara base parlamentar, mas com vários elementos de racionalização e abertura à
intervenção presidencial. Instituiu um Primeiro-Ministro que determina a política da nação
e um Presidente da República que pode presidir ao Conselho de Ministros, que tem poderes
moderadores e um perfil autónomo e de arbitragem, acima do combate político do dia-a-
dia, não dependendo dos partidos, como queria De Gaulle.
 Essa preocupação com a independência do PR levara De Gaulle a ter reservas quanto à
eleição direita do Presidente, pois temia que potenciasse uma influência excessiva dos
partidos. Evitando essa influência, a eleição presidencial nem podia ser direta, nem pelo
Parlamento, o que justificou a eleição indireta do Presidente por um colégio de notáveis
dominantemente das províncias, onde a influência partidária seria menor. Paradoxalmente, se
De Gaulle queria um Presidente interventivo, centro do poder, então deveria defender a sua eleição popular,
que lhe permitisse recolher uma legitimidade democrática tal para exercer os seus poderes de forma efetiva.

 Na prática, o regime veio a forçar os limites do quadro constitucional, já que o Presidente


De Gaulle se passou a assumir, progressivamente, como centro da vida política, detentor
de um poder, na prática, cada vez mais hegemónico, que pouco tinha a ver com o perfil
típico do Presidente de sistema parlamentar. Tal aconteceu devido a diversas circunstâncias
da política francesa, como a questão colonial, mas também devido à personalidade e
carisma popular de De Gaulle.
 Era necessário perceber se a dimensão “presidencializante” do sistema de governo francês
tinha sido um parêntesis, que acabaria com o fim da questão colonial e com o sucessor de
De Gaulle, voltando-se ao funcionamento parlamentarista normal e ao apagamento do
Presidente da República, ou se se estava a formar um novo modelo, diferente dos dois
sistemas clássicos (parlamentar e presidencial), e em que o centro de poder se deslocava
do Parlamento para o Presidente e o executivo.
 Embora a primeira hipótese fosse a mais acolhida, a reforma constitucional de 1962 veio
determinar a evolução do sistema de governo francês no sentido da segunda. Essa reforma
alterou um único aspeto da Constituição: a eleição do Presidente da República passou a ser
por sufrágio direto e universal a duas voltas. Esta alteração, aparentemente pontual, veio
conferir ao PR a legitimidade democrática necessária para exercer os poderes significativos
que a Constituição lhe atribuía. Se, durante um período indefinido de transição, o General
De Gaulle já os exercia na prática, a reforma constitucional veio permitir que os Presidentes
que lhe sucedessem exercessem esses poderes de direito.

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Baltazar Oliveira

 Como dizia DUVERGER, a reforma constitucional de 1962 não veio dar mais poderes ao
Presidente da República, mas veio dar-lhe poder. A mudança na eleição do Presidente
francês alterou o sistema de governo de um parlamentarismo racionalizado para um
sistema a que se pode chamar, ainda que com a objeção da maioria dos autores franceses,
de semipresidencialismo.

B) A descoberta do semipresidencialismo e a questão da designação


A ideia de reconhecer o semipresidencialismo como novo sistema de governo data de
1970, quando MAURICE DUVERGER considera que a V República francesa, mas só após a
reforma constitucional de 1962, passou a viver sob tal sistema.
 Muito poucos tiveram, na altura, a noção do alcance da reforma constitucional de 1962, e
dos que tiveram, apenas DUVERGER se apercebeu de que o sistema de governo mudara.
Com a revisão de 1962, uma prática política desenvolvida desde 1958, sob a égide do PR
De Gaulle, foi consagrada constitucionalmente. A eleição popular do Presidente da
República deu origem a um novo princípio de interpretação da Constituição9, e por isso, os
poderes atribuídos ao PR deviam ser reinterpretados. São agora poderes reais, efetivos,
fruto da legitimidade democrática indiscutível que tem o Presidente da República.
 Mas DUVERGER não deteta apenas a novidade e autonomia do semipresidencialismo
(francês), como o inscreve na linhagem das Constituições finlandesa de 1919, de Weimar
de 1919 e austríaca de 1929, irlandesa e 1937 e islandesa de 1944. Ou seja, este novo
sistema de governo não seria uma novidade absoluta, uma vez que se podia inscrever na
linha das tentativas de racionalização que os sistemas parlamentares vinham
experimentando nas décadas anteriores.
 Como é comum nos meios académicos, a descoberta do semipresidencialismo foi mal
recebida pela generalidade da doutrina francesa. Seria estranho se os especialistas que se
habituaram a qualificar o sistema de governo da V República como parlamentar
racionalizado, presidencial ou hiperpresidencial, acedessem a reconhecer que o seu objeto
de estudo era, afinal, um novo sistema de governo, que tinha estado à sua frente sem que
o tivessem notado, e ainda por cima com uma designação estranha.
 Ao contrário do que aconteceu progressivamente por todo o mundo, os especialistas
franceses recusaram-se a reconhecer a autonomia do novo sistema de governo e a sua
designação. Para a doutrina tradicional, o dito semipresidencialismo, longe de constituir um
novo sistema, era um híbrido que ora funcionava como sistema presidencial, como
acontecia em França, ora como sistema parlamentar, como ocorria na Áustria.

9
Ver páginas 56-58 – princípio da legitimidade democrática na interpretação constitucional

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Baltazar Oliveira

Tal como se deve a MAURICE DUVERGER a descoberta do semipresidencialismo


enquanto sistema de governo novo e autónomo, também a ele se deve a designação proposta
para esse sistema, que tem sido o tema preferido da discussão sobre semipresidencialismo.
Todavia, essa é uma falsa questão, que desvia a discussão do novo sistema de governo para
uma discussão superficial: a designação é indiferente; “semipresidencialismo” generalizou-se.
 Não obstante, semipresidencialismo não é, de facto, a designação mais feliz. Adicionar um
prefixo à designação de um sistema já existente, para um sistema que se pretende como
novo e autónomo é diminuir, à partida, o novo sistema e menorizar o alcance da sua
autonomia. “Semipresidencialismo” sugere que esse sistema de governo tende para o
presidencialismo, mas que fica a meio caminho, que é um presidencialismo adaptado,
menor ou de compromisso. Ademais, a designação sugere uma aproximação privilegiada a
um dos dois sistemas clássicos, quando o semipresidencialismo está tão próximo do
presidencialismo como do parlamentarismo.
 Quando chamado a justificar a designação escolhida, DUVERGER deu variadas e não muito
convincentes explicações. O que parece explicar a escolha terminológica do autor é apenas
a concentração de poderes que havia, à altura, no Presidente da República francês, aliada
à não perfeita distinção entre quadro jurídico-constitucional do sistema de governo (que
define o sistema) e funcionamento prático do sistema de governo. Foi uma escolha mais
jornalística que científica. Se fosse possível a DUVERGER estar completamente ciente da
distinção entre os planos jurídico-constitucional e do funcionamento prático, nada
justificaria a designação adotada, e sobretudo nada justificaria a escolha de acrescentar um
prefixo à designação de um dos dois sistemas e governo autónomos.
 Inúmeras hipóteses de designação do sistema de governo francês foram sugeridas como
alternativa: presidencialista maioritário, sistema presidencialista com regime
semipresidencial, primeiro-presidencialismo, nem parlamentar nem presidencial,
parlamentar com presidência forte, parlamentar monista ou dualista, entre tantos outros.
 Mas só fará sentido substitui a designação deste terceiro sistema de governo se essa nova
designação apresentar claras vantagens comunicativas. Todavia, tal designação não existe,
e nem faz sentido procurá-la, estabelecida que está a expressão “semipresidencialismo”,
hoje quase tradicional.

C) A autonomia do semipresidencialismo
Cabe agora justificar a autonomia do semipresidencialismo, isto é, o porquê de o
considerar um novo sistema de governo, ao lado dos dois sistemas clássicos, o parlamentar e
o presidencial. A recusa em reconhecer um novo sistema é claramente desmentida por uma
realidade com mais de meio século de existência: o sistema de governo da V República francesa
não se confunde nem com o sistema parlamentar, nem com o sistema presidencial. Para os
que identificavam o sistema francês como presidencial, os três períodos de coabitação
entretanto ocorridos deveriam ter sido suficientes para comprovar o erro.

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Baltazar Oliveira

Duas ordens de argumentos estão na base da recusa da autonomia do semipresidencialismo:


i) Não existe uma prática semipresidencial de funcionamento dos sistemas de governo.
ii) O semipresidencialismo é uma sucessão alternada de fases de sistema parlamentar e de
sistema presidencial.

E duas razões justificam a autonomia do semipresidencialismo:


i) Atendendo ao plano jurídico-constitucional, a organização do poder político que se
encontra numa Constituição de semipresidencialismo é substancialmente diversa
daquela que se encontra numa Constituição de um dos outros sistemas.
ii) Atendendo ao plano do funcionamento prático, o semipresidencialismo comporta um
espectro de possíveis modalidades de funcionamento que lhe é próprio, e que não
encontramos num dos outros sistemas de governo.

Indo primeiro à recusa da autonomia do semipresidencialismo: ambas as críticas falham


por não conseguirem apreender adequadamente a relação complexa entre o plano jurídico-
constitucional e o plano da prática política no domínio dos sistemas de governo.

i) A duvidosa existência de uma prática semipresidencial de funcionamento dos sistemas de


governo
Quando se analisa os exemplos do velho semipresidencialismo (os da época de
DUVERGER), imediatamente se percebe que não é possível identificar traços comuns nem uma
afinidade de funcionamento que justificasse a autonomização deste terceiro sistema de
governo. Não há nada em comum entre a parlamentar Irlanda e a hiperpresidencial França;
entre o PR austríaco e o PR finlandês, entre Portugal e a República de Weimar.
 O problema, é que esta análise está a pressupor, erradamente, que o sistema de governo
é definido no plano da realidade política, do funcionamento prático, quando ele se define
no plano jurídico-constitucional10. E nesse segundo plano, os países referidos têm sistemas
de governo quase iguais. Aplicando essa análise aos sistemas de governo clássicos, também
não haveria parlamentarismo ou presidencialismo. O contraste entre as realidades políticas
italiana e britânica (ambos sistemas parlamentares) e entre a norte-americana e a brasileira
(ambos países presidenciais) é enorme. Os sistemas de governo são mesmo assim: definem-
se constitucionalmente, podendo ter várias modalidades de funcionamento prático.
 O que explica que esta crítica seja apenas dirigida ao semipresidencialismo, e não aos
sistemas de governo clássicos, é uma razão histórica. Porque quando o sistema de governo
nasceu como tema de direito constitucional e ciência política, os sistemas clássicos já
estavam perfeitamente consolidados e já eram vistos como distintos.

10
Ver páginas 54-55 – é a Constituição que determina o sistema de governo

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Baltazar Oliveira

 Se o critério não for a definição constitucional, mas o funcionamento prático, ou o do peso


relativo de cada órgão em cada momento, então conclusões surpreendentemente
absurdas se podem tirar: o sistema francês é presidencial, o dos Estados Unidos
semipresidencial, o italiano parlamentar, o do Reino Unido primo-ministerial, a alemão de
chanceler e o da Suíça referendário. E todos estes sistemas seriam isso, exceto quando não
o são. O sistema de governo do Reino Unido era primo-ministerial, mas após eleições que
não resultassem numa maioria absoluta, passaria a ser sistema parlamentar…

A contribuição de DUVERGER para o argumento:


 É certo que o pai deste novo sistema de governo alimentou, involuntariamente, a ideia de
uma precária autonomia do semipresidencialismo, ao dar-lhe essa designação.
 DUVERGER insistiu sempre no facto de o semipresidencialismo se definir com base nas suas
características jurídico-constitucionais, e no de ser nesse plano que se revelaria a
autonomia enquanto sistema de governo; todavia, há também alguma ambiguidade nos
textos do autor, que não distingue adequadamente o plano jurídico constitucional do plano
da realidade prática do funcionamento dos sistemas de governo.
 A orientação principal da sua investigação foi a de verificar o porquê de Constituições muito
semelhantes se projetarem em modalidades de funcionamento prático tão distintas,
especialmente no que diz respeito ao estatuto e poderes do Presidente. Ao analisar essas
modalidades de funcionamento prático, e eventualmente cedendo às críticas, DUVERGER
dá um salto injustificado e começa a distinguir entre semipresidencialismos de aparência
semipresidencial (Áustria, Irlanda e Islândia), e semipresidencialismos de prática
semipresidencial (Weimar, Finlândia, França e Portugal).
 Houve uma invasão do plano prático na definição do sistema de governo. Uma certa prática,
de Presidentes meramente representativos, mesmo que concretizada num quadro de
Constituição semipresidencial, retiraria aos respetivos sistemas de governo o atributo
semipresidencial; passavam a ser semipresidencialismo aparentes. Esta ambiguidade
contribuiu para estimular muitas das confusões já faladas. Primeiro, porque utiliza o termo
“semipresidencial” para qualificar tanto o sistema (definido constitucionalmente), como a
prática. Segundo, porque pareceria assim haver um sistema semipresidencial
constitucional, mas duas práticas: prática semipresidencial ou prática parlamentar.
 Aquando da primeira coabitação (em França), em 1986, DUVERGER deixa implícito que o
verdadeiro semipresidencialismo ocorre quando, no plano prático, o peso institucional do
Presidente da República e do Parlamento se equilibram (ou seja, nas fases de coabitação).
Seria esse o verdadeiro sentido da prática semipresidencial. Para o autor, só em 1986 a
Constituição de 1958, uma Constituição de semipresidencialismo, seria finalmente
aplicada. Ou seja, o semipresidencialismo de 1962 a 1986 era menos semipresidencial, ou
menos constitucional, que o semipresidencialismo de 1986 a 1988. Seria como dizer que
Itália é mais parlamentar que o Reino Unido, berço do parlamentarismo, porque o
Parlamento italiano tem mais poder que o Parlamento britânico.

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 Então não existiria semipresidencialismo quando o Presidente é meramente cerimonial,


(daí DUVERGER excluir os semipresidencialismos aparentes da família semipresidencialista)
ou quando o Presidente é dominante (como em França entre 1962 e 1986). Assim sendo,
só existindo semipresidencialismo em fases de coabitação, a autonomia deste novo sistema
de governo estava em causa.
 Uma outra concessão que DUVERGER fez aos críticos da seu excessivo juridicismo, e que o
levou a preocupar-se demasiado com a realidade política, foi a de elaborar grelhas de
transformação do quadro constitucional de poderes presidenciais em prática política
semipresidencial ou de ordenar os vários semipresidencialismos em pseudo-rankings, graus
ou escalas. Não há aí nada de errado, mas também não há nenhuma utilidade que justifique
o esforço. É uma metodologia de resultados inócuos, meramente descritivos, sem
consequências analíticas e muito menos normativas.

ii) O semipresidencialismo enquanto pretensa sucessão de fases presidenciais e parlamentares


A recusa do conceito de semipresidencialismo, pela maioria dos autores franceses,
obriga-os a qualificar o sistema de governo francês ou como parlamentar ou como presidencial.
 Optando por uma ou por outra, tinham de ter em consideração que o funcionamento do
sistema de governo podia variar muito em função do fator “existência/inexistência de uma
maioria parlamentar absoluta de apoio ao Presidente”. Admitindo que até 1986 o sistema
fosse presidencial, presidencialista ou hiperpresidencialista, estes autores teriam de ter
uma solução para a hipótese de o Presidente perder o apoio da maioria parlamentar
(coabitação). Rejeitando o semipresidencialismo, a resposta só poderia ser que, nessas
situações, o sistema era parlamentar.
 A originalidade do sistema francês residia então no facto de ele alternar, dependendo das
circunstâncias, entre fases presidenciais e fases parlamentares. Autores como VEDEL
afirmavam que o semipresidencialismo francês não seria uma síntese entre os dois sistemas
tradicionais, mas uma alternância de fases presidenciais e parlamentares.
 Na base desta crítica à autonomia do semipresidencialismo está, mais uma vez, a errada
conceção que faz assentar a classificação dos sistemas de governo no plano da realidade
política, ou uma compreensão inadequada da natureza jurídico-constitucional dos vários
sistemas de governo.
 Esta ideia de fundo foi tratada ambiguamente por DUVERGER, pelas razões já explicadas,
mas também porque o autor não se preocupou em sustentar a ideia de
semipresidencialismo como síntese autónoma construída a partir desses elementos,
porque não estava interessado em trabalhar em sínteses conceptuais, mas apenas em
construir um modelo analítico capaz de explicar a diferença de concretizações que as
Constituições de semipresidencialismo experimentavam na prática política do mesmo país
ou na comparação das várias experiências constitucionais.

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A concessão do semipresidencialismo como uma alternância de fases ou sistemas


presidenciais e parlamentares é refutável pelos simples factos de que:
 nem a “fase presidencial”, isto é, em que o Presidente é apoiado por uma maioria
parlamentar absoluta, se confunde com o presidencialismo – como se pode confundir
com presidencialismo o episódio em o Presidente Chirac, apoiado por uma maioria
absoluta, dissolveu o Parlamento (1997)?
 nem a “fase parlamentar”, em que não há uma maioria parlamentar de apoio ao
Presidente, mas sim de apoio a um Primeiro-Ministro de uma cor política diferente (ou
seja, em períodos de coabitação), se confunde com o parlamentarismo – como se pode
confundir com parlamentarismo o episódio em que o Presidente Sampaio dissolveu o
Parlamento, contra a vontade do Governo e da maioria absoluta dos deputados (2004)?
 Como poderia Portugal ser caracterizado de semipresidencialista, nesta lógica, se
estaria ininterruptamente, desde 1976, em fase parlamentar?

Assim, o semipresidencialismo não é um sistema construído a partir de uma qualquer


sucessão de sistemas ou fases presidenciais e parlamentares que se justapõe sucessivamente.
O semipresidencialismo é sim, um sistema diferente e autónomo, que colhe elementos
dos sistemas tradicionais. É-o, como foi dito, por duas ordens de razões:
i) Atendendo ao plano jurídico-constitucional, a organização do poder político que se
encontra numa Constituição de semipresidencialismo é substancialmente diversa
daquela que se encontra numa Constituição de um dos outros sistemas.
ii) Atendendo ao plano do funcionamento prático, o semipresidencialismo comporta um
espectro de possíveis modalidades de funcionamento que lhe é próprio, e que não
encontramos num dos outros sistemas de governo.

i) No plano jurídico constitucional


O semipresidencialismo combina elementos dos dois sistemas clássicos de uma forma
particular, fazendo dele um sistema autónomo:
 Recolhe do presidencialismo a eleição popular do Presidente da República (que pode
exercer poderes significativos).
 Recolhe do parlamentarismo a responsabilidade política do Governo perante o
Parlamento.

Nem parlamentarismo, nem presidencialismo, podem ser confundidos, na análise das


características constitucionais fundamentais de cada um desses sistemas, com o
semipresidencialismo. Essa autonomia constitucional tem a sua prova inequívoca no facto de,
para adotar um sistema semipresidencial, ser necessário elaborar uma nova Constituição ou
fazer uma revisão constitucional.

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ii) No plano do funcionamento prático


Atendendo ao plano do funcionamento prático, o semipresidencialismo comporta um
espectro de possíveis modalidades de funcionamento que lhe é próprio, específico, e que não
encontramos num dos outros sistemas de governo.
Pode acontecer que, em certas circunstâncias, o semipresidencialismo funcione como
um outro sistema de governo. Por exemplo, se o Presidente da República português decidir ter
uma intervenção completamente apagada, o nosso sistema funciona de forma muito
semelhante à do sistema parlamentar espanhol. Mas o espectro de possibilidades de
funcionamento de cada um dos três sistemas de governo não se confunde com o dos restantes.

Cada sistema de governo tem um espectro de modalidades de funcionamento


autónomo:
 As modalidades de funcionamento prático do parlamentarismo são determinadas pela
existência/inexistência de uma maioria parlamentar absoluta de apoio a um Governo. Se
essa maioria existe (Governo maioritário), há um parlamentarismo de Gabinete; se não
existe (Governo minoritário), há um parlamentarismo de Assembleia.
 As modalidades de funcionamento prático do presidencialismo são determinadas pela
relação executivo/Congresso: se o Presidente tem perante si um Congresso que o controla
e bloqueia a sua governação, se, contrariamente, governa com total margem de ação, ou
até se há uma concentração de poderes.
 As modalidades de funcionamento prático do semipresidencialismo dependem de
inúmeros fatores que fazem a sua complexidade: existência/inexistência de maioria
parlamentar absoluta de apoio ao executivo; quem é o líder da maioria parlamentar, PR ou
PM; se PR e PM são do mesmo partido ou se se opõem; se PR é partidariamente
empenhado, ou se assume um perfil suprapartidário; se PR pretende ou pode liderar o
Governo ou participar na governação ou se está limitado a um papel de moderação e
arbitragem; a personalidade do PR; leitura que o PR faz dos poderes presidenciais; entre
outros. Assim, só em semipresidencialismo podemos encontrar uma situação de
coabitação, uma situação em que o Presidente governa indiretamente através do Primeiro-
Ministro, ou uma situação em que o Presidente moderador arbitra, com efetividade e
autonomia, conflitos entre Parlamento e Governo.

O semipresidencialismo é, pois, o sistema mais complexo, porque o leque das suas


possibilidades de concretização é o mais amplo, já que há mais fatores de ordem conjuntural
suscetíveis de influenciar o funcionamento prático. Essa maior complexidade nada tem a ver
com falta de autonomia, pelo contrário, ilustra a autonomia política e científica do
semipresidencialismo como sistema próprio.

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D) Expansão territorial
O semipresidencialismo desenvolveu-se, numa primeira fase, na primeira metade do
século XX, na República de Weimar (1919), na Finlândia (1919), na Áustria (1929), na Irlanda
(1937) e na Islândia (1944). À exceção da Finlândia, que teve um desenvolvimento particular11,
todas as outras experiências têm em comum, hoje, o facto de seu Presidente da República estar
apagado, tornando o funcionamento do seu sistema de governo quase indistinto do
funcionamento dos sistemas parlamentares. Não fossem os desenvolvimentos posteriores,
como os estudos de DUVERGER sobre o semipresidencialismo francês, só por estas
experiências não se justificaria mobilizar todo um arsenal doutrinário de estudo de um novo
sistema de governo.
A experiência semipresidencial da V República francesa (1958/1962) não era
confundível nem com o sistema parlamentar, nem com o sistema presidencial. Se inicialmente
a presença dominante dos vários Presidentes da República ainda justificava a doutrina
negacionista que considerava o sistema francês um presidencialismo, a partir da primeira
coabitação, em 1968, mesmo os mais céticos autores franceses foram obrigados a reconhecer
o evidente: o sistema francês não se enquadrava num dos dois sistemas de governo clássicos.
Ainda assim, as experiências existentes não eram suficientes para que se reconhecesse a
autonomia do terceiro sistema de governo. O semipresidencialismo seria algo de
especificamente francês, a que se deveria juntar, quando muito, a experiência relativamente
marginal da Finlândia.
Em 1976, a experiência portuguesa vem garantir um novo fôlego ao
semipresidencialismo. A III República portuguesa é interessante pelo seu inegável sucesso
político. Num país sem tradição democrática, saído de um longo período de ditadura, através
de um processo revolucionário desencadeado por um golpe militar, com um sistema partidário
em formação, num contexto de grandes dificuldades económicas, os mais de 40 anos de
semipresidencialismo demonstram a adequação da escolha feita pela Constituição de 1976.
Quando se avalia a aptidão do semipresidencialismo em Portugal, com um sistema partidário
típico da Europa do Sul, o termo de comparação só pode ser o sistema parlamentar (dada a
inviabilidade do sistema presencial12). Nas condições pós-revolucionárias da época, o sistema
parlamentar não podia ter proporcionado condições de integração, representação,
estabilidade e governabilidade que o semipresidencialismo conseguiu assegurar, seja no
período de transição, com presença dos militares no poder político, seja nas frequentes
situações de ausência de uma maioria parlamentar absoluta, ou até em situações de maioria
absoluta, em que o contrapoder do Presidente, inerente ao semipresidencialismo, veio trazer
equilíbrio e moderação.

A experiência portuguesa foi a primeira experiência de um país europeu que, saído de


uma ditadura e obrigado a construir um novo quadro constitucional democrático, encontrou
no semipresidencialismo uma resposta à questão do sistema de governo a adotar. Não é por

11
Ver páginas 115-116 – sistema de governo finlandês
12
Ver páginas 67-68 – dificuldades de exportação do presidencialismo

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acaso que sucessivas vagas de países europeus que chegaram à democracia após períodos
prolongados de ditadura vieram posteriormente a seguir o percurso trilhado pela democracia
portuguesa em 1976. Aquilo que o semipresidencialismo promete a este tipo de sociedades
saídas de longos períodos de ditadura é a expectativa de algo tão velho quanto o próprio Estado
de Direito: separação de poderes e equilíbrio.
 Tanto o sistema presidencial como o parlamentar são, para os novos países democráticos,
uma aposta arriscada, no depositar unilateral de expectativas numa única fonte de poder,
seja o Presidente, seja o binómio Parlamento/Governo. Como não ter em conta os perigos
da tendencial concentração de poderes ou da instabilidade governativa, ambos igualmente
ameaçadores para a sobrevivência do novo regime democrático?
 Quase que intuitivamente, as novas democracias orientam-se para a separação e
interdependência de poderes, moderação e equilíbrio de não colocar todas as esperanças
num único centro de poder efetivo. A dupla eleição (e consequente legitimidade
democrática) repartida entre Presidente e Parlamento surgem como uma opção de bom
senso, tanto mais quando a debilidade e fragmentação do novo sistema partidário privam
o Parlamento de um exercício do poder com uma legitimação indiscutível e de se constituir
como exclusiva referência política de unidade nacional. Quando se compensam essas
deficiências através da sagração democrática do Presidente da República, mas se previnem
os riscos de um autoritarismo pessoal, é o caminho ao semipresidencialismo.
 Mas a criação de um novo centro de poder em semipresidencialismo, quando comparado
com os sistemas clássicos, se bem que proporciona mais divisão e equilíbrio de poderes,
acarreta também um risco desconhecido pelos outros sistemas: o risco de conflito entre PR
e PM na liderança do executivo. Algumas experiências nas novas democracias surgidas com
a desagregação do bloco soviético podem ilustrar estes riscos. Numa democracia não
perfeitamente estabilizada, os conflitos entre esses dois centros de poder executivo
estimulam os perigos de bloqueio institucional, ou, alternativamente, de centralização
tendencialmente autoritária num desses polos, normalmente o Presidente.
 De qualquer forma, as alternativas não abundam: ou se aposta no parlamentarismo, ou no
semipresidencialismo. Numa sociedade de transição, normalmente envolvida em grandes
dificuldades económicas, o risco de instabilidade política e de desagregação social apela à
criação de um executivo forte, de uma liderança individual que possa funcionar como
referência nacional do novo regime democrático, incluindo na representação do país na
cena internacional. Porém, nessa altura, o reforço unilateral da posição política do
Presidente proporciona a emergência de conflitos entre as duas instituições, ambas
igualmente legitimadas numa eleição popular. Ainda assim, há uma diferença substancial.
A criação de um novo polo de poder democraticamente legitimado por uma eleição
popular, o Presidente, conduz necessariamente ao presidencialismo ou ao
semipresidencialismo.
 Enquanto para superar um conflito institucional entre Presidente e
PM/Governo/Parlamento, o presidencialismo não tem qualquer válvula de segurança, o
semipresidencialismo é bastante mais flexível, assegurando mecanismos institucionais

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(acionamento ou ameaça de demissão do Governo ou dissolução do Parlamento) que


permitem superar o conflito sempre que ele atinge pontos de iminente rutura. A
experiência portuguesa ilustra, ao longo de vários mandatos presidenciais, a eficácia desses
mecanismos de solucionamento de crises institucionais, mas também a forma como o
semipresidencialismo reduz a um nível praticamente irrelevante, ou perfeitamente gerido
pelo sistema, o risco de conflito entre PR e PM.
 No fundo, acaba por ser a estabilidade e consistência do sistema partidário entretanto
instituído, e não do sistema de governo, o principal fator de que depende um
funcionamento equilibrado de um sistema político. Um sistema partidário fragmentado,
formado por inúmeras organizações partidárias artificialmente constituídas e
programaticamente inconsistentes, qualquer sistema de governo funciona mal. Também
neste domínio a experiência portuguesa ao contrário de várias das experiências da Europa
Central e de Leste, tem ainda interesse pela demonstração prática de que o
semipresidencialismo pode, mesmo nas condições de uma democracia consolidada e de
um sistema partidário sólido, plural e ideológica e programaticamente heterogéneo,
conferir mais representatividade, equilíbrio e flexibilidade ao funcionamento do sistema
democrático, sem perdas de governabilidade e estabilidade.
 Independentemente do juízo que se possa fazer sobre o contributo da experiência
semipresidencial portuguesa, é indiscutível que ela constituiu a primeira expressão pré-
anunciadora da difusão generalizada do semipresidencialismo a que se assistiu a partir da
década de noventa do século passado.

Durante o último quartel do século XX, o semipresidencialismo alastrou-se às mais


diferentes regiões, sendo hoje um sistema de governo alternativo aos sistemas clássicos.
Todavia, muitas das novas experiências dificilmente podem ser consideradas democracias
representativas. Olhando apenas à existência formal dos traços normalmente associados ao
semipresidencialismo, encontramo-lo hoje pelo menos nos seguintes países: Guiana, Peru,
Senegal, Mail, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Namíbia, Sri Lanka, Coreia do
Sul, Timor-Leste, Mongólia, Roménia, Polónia, Bulgária, Lituânia, Croácia, Eslovénia e
Eslováquia. A difusão do semipresidencialismo em África pode ser explicada pelo mimetismo
das Constituições dos antigos países colonizadores: Portugal e França.
Do conjunto de países da Europa Central e de Leste que pertenciam ao antigo bloco
soviético, e que hoje vivem num quadro democrático estabilizado, só a Hungria, Estónia e
Letónia não adotaram o semipresidencialismo, mas sim o parlamentarismo.
A opção destes países pelo semipresidencialismo é explicada pela escolha
racionalmente fundada nas características do semipresidencialismo, quando comparadas com
as alternativas dos sistemas clássicos. Duas justificações: por um lado, a inadequação dos
modelos clássicos às realidades políticas desses países, especialmente quando se trata do
parlamentarismo; por outro, a maior flexibilidade de funcionamento proporcionada pelo
semipresidencialismo, designadamente quando comparado com o sistema presidencial.

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Apesar da sua maior difusão em termos globais, os sistemas clássicos carecem de


condições precisas para poderem funcionar em condições ótimas. Ademais, apresentam,
relativamente ao semipresidencialismo, um espectro bastante mais estreito de possibilidades
de funcionamento, o que na falta das referidas condições ótimas, é suscetível de gerar
bloqueios, concentração exagerada de poderes, insabilidade e algum defice de
representatividade integração.
 O presidencialismo convive mal com situações de divergência ou oposição sistemáticas
entre Presidente e maioria parlamentar. Mesmo não havendo um sistema partidário
estabilizado, com disciplina partidária e demarcação ideológica e programática bem
definidas, a simples divisão, corrente nestes países da primeira fase da democratização,
entre os blocos dos “ex-comunistas” e dos “não-comunistas”, que era uma divisão
ideologicamente enraizada, e potenciadora de conflitos sistemáticos, poderia,
especialmente nesses primeiros tempos, conduzir facilmente a bloqueios institucionais. Por
outro lado, um quadro de falta de sólida tradição democrática, fazer assentar o
funcionamento do sistema político num executivo presidencial não politicamente
responsável perante o Parlamento podia abrir um perigoso caminho de tendencial
concentração de poderes no Presidente, perigo esse que seria potenciado pela inexistência
de um sistema de controlos atuados por um poder judicial ainda incipiente.
 O sistema parlamentar requer uma sólida tradição democrática e um sistema partidário
consolidado, com blocos políticos suscetíveis de gerar soluções governativas estáveis ou
propostas claras de oposição e alternância democráticas. Nada disto existira, naturalmente,
nas novas democracias da Europa Central e de Leste. Com um parlamento fragmentado,
dividido entre forças partidárias pouco significativas ou em permanente recomposição,
com uma componente significativa de deputados independentes ou não partidários, não é
possível encontrar soluções governativas estáveis, maioritárias e programaticamente bem
identificadas, nem confronta-las com verdadeiras alternativas de governo geradas pelas
oposições. Da mesma forma, as eleições parlamentares, que hoje são momentos
institucionalizados e programados no tempo de avaliação dos desempenhos dos executivos
e, consequentemente, oportunidades de retribuição/sanção do Governo em funções, não
podem desempenhar adequadamente esse papel em contextos de parlamentos
pulverizados e de governos não partidariamente identificados. Sem essa dimensão de
efetivo controlo popular da atuação dos governantes proporcionada pela realização de
eleições gerais periódicas, o sistema parlamentar é uma casca vazia e a vida política um
simulacro de democracia.

O semipresidencialismo não produz, miraculosamente, uma resposta a todas estas


deficiências, mas apresenta vantagens decisivas face à rigidez dos pressupostos para um bom
funcionamento que limita objetivamente a adequação dos sistemas clássicos: maior
flexibilidade, maior equilíbrio, divisão de poder, capacidade de integração e capacidade de
superação de bloqueios.

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E) Definição
Para REIS NOVAIS, semipresidencialismo é o sistema de governo de democracia
representativa que reúne as seguintes características:
i) Presidente eleito por sufrágio popular que pode exercer poderes constitucionais
significativos;
ii) Governo politicamente responsável perante o Parlamento.

A definição apresentada foi adaptada da definição de DUVEGER, que falava em


“Presidente com poderes significativos” enquanto REIS NOVAIS prefere “Presidente que pode
exercer poderes significativos”. De qualquer modo, o essencial, para ambos, é que o Presidente
tenha poderes significativos constitucionalmente atribuídos, e a possibilidade de os poder
exercer (e não que os exerça).
Consciente da circularidade de raciocínio inerente à definição dos sistemas de governo
em função de resultados pré-estabelecidos13, REIS NOVAIS reconhece que o pressuposto
implícito à definição proposta é a recusa em qualificar como presidencial ou como parlamentar
os sistemas de governo de França e Portugal. E a definição apresentada é a única definição
correta de semipresidencialismo porque é a única que permite abrigar esses dois países no
sistema semipresidencial. Não deve haver nenhuma definição, entre nós, que dispense a
qualificação ajustada do sistema de governo português.

SARTORI considera característica essencial do semipresidencialismo a bicefalia do


executivo, ou seja, a existência de uma responsabilidade dual no exercício do poder executivo,
repartida entre PR e PM.
 O autor define semipresidencialismo como o sistema de governo em que (i) o chefe de
Estado, que é eleito por sufrágio popular, sendo independente do Parlamento, partilha o
poder executivo com o Primeiro-Ministro e em que (ii) tanto o PM como o Governo são
institucionalmente autónomos do Presidente, na medida em que a respetiva subsistência
política depende do Parlamento e do apoio de uma maioria parlamentar.
 Para REIS NOVAIS, essa é uma definição admissível. Contudo, a ideia de uma necessária
dupla liderança do executivo é inadequada, já que há semipresidencialismos em que o PR
se exclui voluntariamente ou está constitucionalmente excluído do exercício de reais
poderes executivos, mas em que, ainda assim, exerce poderes de moderação, arbitragem
e garantia. Esta definição é redutora, pois identifica o semipresidencialismo com o sistema
de governo francês, e imprestável, uma vez que não permite incluir Portugal (que para
SARTORI é um parlamentarismo). Não confundir “bicefalia” (chefe de Estado e chefe de Governo
distintos) com “bicefalia do executivo” (chefe de Estado e chefe de Governo repartem poder executivo). A

13
Ver página 53, ponto 3 – circularidade de raciocínio na fixação dos critérios de uma tipologia de sistemas de
governo

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primeira é própria dos sistemas parlamentar e semipresidencial; a segunda ocorre nalguns


semipresidencialismos.

Uma outra conceção identifica, erradamente, o semipresidencialismo com a dupla


responsabilidade política do Governo perante Presidente e Parlamento. Esta confusão, hoje
relativamente esquecida, foi muito divulgada entre nós por dois motivos:
 Em primeiro lugar, porque esta dupla responsabilidade existia na Constituição portuguesa
até à revisão de 1982 (o Governo era politicamente responsável perante AR e PR). Pensava-
se, então, que essa característica era essencial ao semipresidencialismo. Daí as dúvidas de
alguns autores acerca da natureza do sistema de governo português depois da revisão de
1982, que veio suprimir essa dupla responsabilidade política (a subsistência do Governo
passou a estar unicamente dependente da AR). Em teoria, pode dizer-se que persiste a
responsabilidade do Governo perante o PR, até porque a própria Constituição o diz (art.
190º). Todavia, essa não é uma verdadeira responsabilidade política, mas sim uma
“responsabilidade institucional”, que consiste na obrigatoriedade constitucional que o PM
tem de manter o PR informado acerca da condução da política externa e interna do país.
Este dever de informação (que também existente no sistema parlamentar) é insuficiente
para se poder falar em responsabilidade política, o que implicaria o PR poder demitir o
Governo por discordância política (o PR só poder demitir o Governo quando tal se torne
necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, numa
lógica idêntica à do impeachment em sistema presidencial).
 Em segundo lugar, a confusão acerca da dupla responsabilidade como pretenso elemento
do semipresidencialismo nasceu de uma leitura errónea do sistema francês. Até 1986, o PR
francês tinha sempre a possibilidade fática, política, de exigir aos PMs que lhe
apresentassem um pedido de demissão, circunstância que foi erroneamente confundida
com poder constitucional do PR de demitir o PM. Tal poder não existe na Constituição
francesa. O PR pode, de acordo com circunstâncias políticas favoráveis, e frequentes, atingir
o mesmo resultado por outra via; mas isso é uma questão de relações de poder. Só em
1986, aquando da primeira coabitação, é que os autores franceses vieram a perceber que
não existia um poder presidencial, constitucional, de demissão do Governo. O Presidente
Mitterrand teve de aceitar o PM Chirac, que não escolhera, mas que fora imposto pela
maioria parlamentar. Esse erro revela a errada compreensão dos autores franceses acerca
da distinção dos planos jurídico-constitucional e de funcionamento prático.

Analisando a característica do semipresidencialismo de existência de um Presidente


dotado da possibilidade de exercer poderes significativos, importantes, de grande relevância
na vida política, levanta-se a questão de que poderes são esses. Os poderes presidenciais não
têm todos a mesma importância ou efetividade prática. A resposta a essa questão introduz uma
dose de subjetividade. Da mesma forma, essa subjetividade também existe quando se limita a análise
do semipresidencialismo às experiências de democracias representativas consolidadas.

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 Por isso, alguns autores, como ELGIE, propõem a exclusão da ideia de “poderes
significativos” da definição de semipresidencialismo, considerando que não era possível
chegar a conclusões objetivamente comprovadas e partilháveis a propósito do alcance dos
poderes do Presidente, ficando em causa a viabilidade científica da classificação. Da mesma
forma, propõem também a inclusão no semipresidencialismo de quaisquer países onde os
elementos formais da definição estejam presentes, seja o regime político democrático ou não.
 Assim, para ELGIE, semipresidencialismo seria o sistema de governo em que (i) o Presidente
é eleito pelo Povo para um mandato pré-estabelecido e (ii) o Governo e o Primeiro-Ministro
são responsáveis perante o Parlamento.
 Embora admissível, prefere-se a definição apresentada, porque faz ressaltar a diferença
específica material que separa semipresidencialismo de parlamentarismo: a possibilidade
constitucional que o PR tem de desempenhar um papel político relevante, se o quiser. Foi
esta diferença substancial, centrada no papel político real do PR, que fez nascer a
necessidade de autonomização científica de um terceiro sistema de governo. A diferente
forma de eleição seria insuficiente, por si só, para provocar esse apelo, como se via, aliás,
pela indiferença científica que mereceram as experiências irlandesa, islandesa e austríaca.
Logo é adequado que o elemento “Presidente que exerce poderes significativos”, capital
para a diferenciação do sistema parlamentar, figure na definição de semipresidencialismo.
 Em teoria, poderíamos conceber um Presidente da República eleito por sufrágio popular a
quem a Constituição não atribuísse quaisquer poderes. Faria sentido qualificar esse sistema
como semipresidencial?

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6. SEMIPRESIDENCIALISMO: CARACTERIZAÇÃO

Semipresidencialismo é o sistema de governo de democracia representativa que reúne


as seguintes características:
iii) Presidente eleito por sufrágio popular que pode exercer poderes constitucionais
significativos;
iv) Governo politicamente responsável perante o Parlamento.

A) Os poderes do Presidente na definição do semipresidencialismo


Quando se consideram as características essenciais do semipresidencialismo, a
“responsabilidade do Governo perante o Parlamento” é perfeitamente idêntica à do sistema
parlamentar. Como em parlamentarismo, maiorias parlamentares absolutas levam à formação
de governo fortes e estáveis, e Parlamentos fragmentados levam a formação de governos
minoritários ou de coligação, fracos e instáveis. As modalidades de funcionamento do sistema
de governo também são condicionadas por fatores de ordem política (como o sistema
partidário), de ordem jurídica (como o sistema eleitoral), ou de ordem constitucional (como a
introdução de mecanismos de racionalização). Sendo estas circunstâncias relativas à relação
Governo/Parlamento relevantes, elas não são definem a natureza de um semipresidencialismo.
A novidade, a especificidade, do semipresidencialismo reside no órgão Presidente da
República e na amplitude dos seus poderes. Falar de semipresidencialismo é falar do Presidente
da República, do lugar que ocupa no sistema político, das funções que desempenha, das
relações que mantém com os outros órgãos. A análise do semipresidencialismo tem de se
centrar na figura do Presidente, e particularmente nos seus poderes.

Ainda que variem muito em cada experiência constitucional, podem destacar-se alguns
poderes presidenciais típicos:
 Poderes de intervenção pontual, ainda que no seu conjunto deem consistência política
ao Presidente da República:
o Representação interna e externa do Estado.
o Nomeação do PM e do Governo, com maior ou menor influência e participação
do PR na formação, composição e funcionamento desse órgão.
o Demissão do PM e do Governo.
o Nomeação de titulares de altos cargos do Estado, civis e militares.
o Promulgação e veto de atos legislativos e regulamentares.
o Ratificação e negociação de convenções internacionais.

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o Comando das Forças Armadas.


o Marcação de eleições e convocação de referendo.
o Capacidade de fazer intervir a jurisdição constitucional.
o Poder de envio de mensagens ao Parlamento.
 Poder de dissolução do Parlamento – tem um efeito determinante no curso da política
do país, elevando o estatuto do Presidente no sistema político e potenciando os seus
restantes poderes.

Na análise destes poderes, várias circunstâncias podem levar a uma avaliação distorcida
do peso efetivo do Presidente.
 Não basta dizer que o Presidente tem certo poder sem ter em conta a margem efetiva
de decisão que tem o PR no seu exercício – uma coisa é o Presidente poder dissolver o
Parlamento livre e autonomamente; outra, é só o poder fazer se antes o Parlamento
tiver inviabilizado a formação de um governo.
 Não basta assinalar a presença de um poder, sendo necessário perceber o alcance
efetivo desse poder – uma coisa é o Presidente poder vetar uma lei que de seguida
pode ser confirmada pelo órgão que a aprovou, sendo o PR obrigado a promulgar;
outra, é a seguir ao veto o Parlamento só poder obrigar o PR a promulgar a lei caso
reúna maioria qualificada de dois terços dos Deputados.
 É um erro não distinguir entre eficácia, alcance e consequências políticas dos vários
poderes presidenciais não dando a devida relevância à presença ou ausência do mais
decisivo dos poderes do PR em semipresidencialismo: poder de dissolução do
Parlamento (que potencia os restantes poderes).

Além do critério dos poderes do PR, outro critério que pode avaliar a relevância política do PR em
semipresidencialismo é o da importância das várias eleições num dado sistema político. Se o PR desempenha
poderes significativos, a sua eleição é disputada, discutida e preparada com antecedência, convoca o
empenhamento militante dos partidos políticos e a atenção dos círculos mediáticos, e é mobilizadora do
eleitorado. Por essa razão, em parlamentarismo as eleições são as eleições parlamentares (aliás, só há essas),
enquanto em presidencialismo as eleições são as eleições presidenciais (embora haja outras). Já em
semipresidencialismo as eleições parlamentares e as presidenciais têm idêntico interesse e importância. Apenas
pontualmente este critério falha, como acontece nos casos da matriz austríaca (em que o Presidente, tendo
poderes significativos, não os exerce), ou por razões de conjuntura (por exemplo quando há a expectativa segura
de que o candidato incumbente irá ser reeleito).

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B) Poder de dissolução do Parlamento


O poder de dissolução do Parlamento coloca o PR, no plano jurídico-formal e no plano
da simbologia política, na posição de maior relevo da arquitetura constitucional. Amplitude do
poder presidencial de dissolução, quando exercido:
 Haja ou não maioria absoluta no Parlamento, e seja essa maioria favorável ou não ao PR,
ela pode ser posta em causa pelo poder de dissolução. Convocadas eleições, o eleitorado é
chamado a dar uma nova composição ao Parlamento, reforçando a sua legitimidade,
premiando ou sancionando a anterior maioria, resolvendo crises institucionais, superando
bloqueios ou arbitrando conflitos. Assim, o PR pode escolher o momento estrategicamente
mais oportuno, em função da sensibilidade do eleitorado em cada momento, para pôr
termo ao mandato de uma maioria política, fazendo-a perder o domínio absoluto do
Parlamento e obrigando-a a uma coligação, ou fazendo mesmo a oposição chegar ao poder.
 À partida, a duração de uma legislatura está pré-fixada, organizando-se a maioria vitoriosa
no sentido de pôr em prática as propostas mais impopulares nos primeiros anos, e as mais
eleitoralmente compensadoras nos últimos, especialmente no que diz respeito à política
económica. Assim, qualquer força política em funções governativas pretende controlar o
calendário político, ou pelo menos não ser surpreendida com a marcação de eleições para
um momento inoportuno, evitando ir a sufrágio em períodos de baixa popularidade. Ora,
em semipresidencialismo, não é o Governo que controla a data das eleições, como
acontece normalmente em sistema parlamentar (onde o PM “pede” ao chefe de Estado
que dissolva o Parlamento). Ao invés, é o Presidente que detém o poder de dissolução, um
poder que pode alterar a maioria no poder.
 Desta forma, nas relações de força entre os vários agentes políticos, um Presidente dotado
de poder de dissolução surge numa posição de proeminência, podendo fazer cessar a
legislatura, e consequentemente o mandato do Governo, enquanto o mandato do próprio
PR, eleito pelo Povo e senhor absoluto do seu mandato, é inatacável (exceto a situação
excecional de destituição do cargo por responsabilização criminal). Parlamento e Governo
encontram-se em posições fragilizadas, na dependência do PR.
 Este poder presidencial também pode ser utilizado para fins menos nobres, para a obtenção
de determinados resultados políticos que, segundo o curso normal do calendário político,
não seriam tão facilmente alcançados.

A importância do poder de dissolução não vem só do seu exercício efetivo, mas


principalmente da forma como potencia os efeitos dos restantes poderes do PR e eleva o
estatuto político e constitucional desse órgão.
 A eficácia e relevância dos restantes poderes presidenciais pode ser reduzida por vários
fatores:
o São poderes de exercício pontual – como acontece com vetos ou nomeações ou
pedidos de fiscalização da constitucionalidade.

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o Normalmente, nunca põem em causa o sentido geral do programa de ação da maioria


parlamentar/governamental – como acontece com vetos, nomeações ou pedidos de
fiscalização da constitucionalidade.
o Condicionamentos de ordem política – sempre que no Parlamento há uma maioria
absoluta liderada pelo Primeiro-Ministro, o alcance dos poderes do PR sofre uma
redução significativa. Por exemplo, o poder de veto do PR não tem a mesma eficácia
quando há uma maioria parlamentar que o pode contornar.
 Mesmo o poder de demissão do Governo, quando exista, não tem um alcance comparável
à destituição da AR, uma vez que, assentando o sistema semipresidencial na confiança
política do Governo perante o Parlamento, se o PR demitir o PM, a nova solução governativa
depende, em última análise, da vontade parlamentar. Basta que haja uma maioria absoluta
favorável ao anterior executivo para que o PR não tenha quaisquer hipóteses de forçar o
seu abandono. Assim, só pode condicionar a atuação parlamentar, se, entretanto, ameaçar
com a dissolução do Parlamento.
 No mesmo sentido, os poderes dos quais o PR pretenda dar indicações sobre a condução
geral dos destinos do país, como discursos, contactos com a população ou mensagens ao
Parlamento, só adquirem relevância, fazendo-se ouvir pela maioria parlamentar e Governo,
se tiverem por trás o poder de dissolução.
 O poder de dissolução é frequentemente designado em Portugal, em linguagem
jornalística, de “bomba atómica”. Tal como a bomba atómica, pode ter consequências
devastadoras, mas tem sobretudo um efeito dissuasor, o que dota o estatuto constitucional
do Presidente da República de uma relevância que a soma dos restantes poderes não
comportaria. Sem o poder de dissolução, o PR entraria na luta política dependendo do
espírito de cooperação dos restantes agentes políticos; com esse poder, esse espírito de
cooperação é lhes forçado. Um bom relacionamento institucional com o PR é, pois, um
seguro de vida para um PM que queira assegurar a realização de um programa nos tempos
definidos por si próprio e evitar que o Governo fique submetido ao sistemático exercício
dos poderes presidenciais, que poderão contribuir para o seu desgaste.
 A possibilidade de ativação do poder presidencial de dissolução, com as consequências
possivelmente nefastas para os agentes políticos, está sempre presente no seu espírito,
pelo que esses vão ter maior atenção aos pedidos e desejos do PR. Só através da força que
lhes é indiretamente conferida pelo poder de dissolução, é que os poderes presidenciais se
afirmam em conjunto e conferem um estatuto constitucional ao Presidente que faz desse
órgão a sede última de regulação de todo o sistema.

Foi por não terem consciência da importância do poder presidencial de dissolução que
os autores da revisão constitucional de 1982 falharam, marcando decisivamente o sentido da
evolução e institucionalização do nosso sistema de governo. Inicialmente tendo uma clara
intenção de depreciar o estatuto constitucional do Presidente da República, PS e PSD (que à
altura se encontravam em conflito com o Presidente Ramalho Eanes) acabaram por reforçar

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involuntariamente os seus poderes do PR, ampliando o seu poder mais decisivo, o poder de
dissolução da AR, e cortando onde não doía: no poder de demissão do Governo14.

JRN: é absurda a desconsideração da especial relevância do poder presidencial de dissolução nas análises
mais recentes que procedem a estudos comparativos dos poderes dos Presidentes de semipresidencialismo.
Mesmo os autores mais reconhecidos internacionalmente neste domínio atribuem o mesmo peso relativo a
qualquer um dos outros poderes, como o poder de veto, de forma completamente injustificada. Em geral, a
metodologia da moda na ciência política é atribuir uma cotação quantificada a cada um dos poderes de que os
Presidentes dispõem, constitucionais e fáticos, independentemente da maior ou menor relevância relativa do
poder em causa, pois, supõe-se, essa diferenciação significaria a introdução de fatores subjetivistas. Atribuída a
cotação parcelar naqueles termos, depois, é somar as cotações atribuídas e proceder ao ranking dos
semipresidencialismos consoante a cotação média ou total obtida. Porém, na avaliação comparativa dos poderes,
estes autores equiparam, em absoluto, o poder de dissolução e a sua força dissuasora ou a um poder convencional.
Como cada Presidente possui um poder, seja de dissolução, seja convencional, é atribuído um ponto a cada
Presidente. Este método distorce significativamente os resultados da avaliação relativa dos vários
semipresidencialismos a que se pretende proceder a partir da comparação dos poderes presidenciais.

Podem existir condicionantes ao exercício do poder presidencial de dissolução, que lhe


conferem maior ou menor força, e consequentemente, ao estatuto constitucional do PR.
 Condicionantes jurídico-constitucionais:
o requisitos temporais – ex: a Assembleia da República não pode ser dissolvida nos
seis meses posteriores à sua eleição (172º CRP)
o requisitos circunstanciais – ex: a AR não pode ser dissolvida durante a vigência do
estado de sítio (172º CRP)
o requisitos orgânicos – consulta de órgãos, com eventual parecer vinculativo – ex: o
PR português tem de ouvir o Conselho de Estado antes de dissolver a AR (133º CRP);
o requisitos materiais – restrições como “o PR não pode dissolver a AR por efeito de
rejeição do programa do Governo, salvo no caso de três rejeições consecutivas”
(versão original da CRP).
 Condicionamentos fáticos – quando o PR exerce o poder de dissolução contra a maioria
parlamentar/governamental, o balanço definitivo só lhe será favorável se o eleitorado
acompanhar o Presidente contra essa maioria. Assim, o poder de dissolução tem de ser
exercido com ponderação, senso político e em dueto: iniciado pelo PR, e acompanhado
em sintonia pelo eleitorado. Se a decisão do eleitorado contrariar as expectativas
(proclamadas ou implícitas) do PR, saindo a anterior maioria confirmada ou reforçada, é
o Presidente que sai enfraquecido na disputa, virando-se a dissolução contra ele, visto
que as eleições demonstraram a desnecessidade ou inconveniência da dissolução. Face

14
Ver Parte III / Cap. 3 / Ponto C) – impacto da revisão constitucional de 1982 nos poderes e estatuto constitucional
do Presidente da República

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a esse juízo de censura do ato de dissolução, cabe ao PR decidir se ainda possui


assentimento popular que lhe permita continuar condignamente em funções após o
desaire eleitoral, ainda que enfraquecido, ou se deve renunciar ao cargo.

C) O equilíbrio no semipresidencialismo
O equilíbrio é um objetivo de qualquer sistema de governo15:
 Em sistema parlamentar, o Parlamento pode demitir o Governo e o Governo pode fazer
dissolver o parlamento. Há um equilíbrio por integração.
 Em sistema presidencial, nem o Parlamento pode dissolver o executivo, nem o executivo
pode dissolver o Parlamento. Há um equilíbrio por separação.

Ao contrário da simplicidade dos sistemas clássicos, o equilíbrio no sistema


semipresidencial é mais complexo e sofisticado, e por isso mais controverso. Em
semipresidencialismo encontramos não dois, mas três órgãos politicamente ativos, sendo dois
deles eleitos pelo Povo. O poder de dissolução é a chave desse equilíbrio.
 Se o poder de dissolução não existe, o sistema semipresidencial fica estruturalmente
desequilibrado: o Parlamento pode destituir o Governo, mas não pode ser dissolvido. Não
há um contrapeso, ou há, mas atenuado, que compense esse desequilíbrio. O Presidente
poderá, eventualmente, após a destituição parlamentar do Governo, desempenhar algum
papel na nomeação do novo Governo, mas não mais que isso.
 Podia pensar-se que o Presidente poder dissolver o Parlamento sem qualquer contrapoder
seria também uma situação de desequilíbrio. Todavia, não é esse o caso, porque quando o
Presidente dissolve o Parlamento, são convocadas eleições, e o Povo é chamado a arbitrar
o conflito, podendo ou não secundar o Presidente. Caso a vontade popular não
corresponda à expectativa presidencial, o Presidente fica numa posição política muito
enfraquecida.
 A sofisticação e o equilíbrio estrutural do semipresidencialismo residem exatamente na
existência de um poder parlamentar de destituição do Governo que é equilibrado por um
poder presidencial de dissolução do Parlamento, sendo este, por sua vez, equilibrado pela
vontade do Povo expressa nas eleições parlamentares.

Mas segundo a definição apresentada, o poder de dissolução não é um requisito


necessário do semipresidencialismo; o critério relativo aos poderes presidenciais diz apenas
que “o Presidente da República pode exercer poderes significativos”, mas não exige qualquer
poder em concreto. Aliás, tendo em conta a Constituição e a prática efetiva dos vários sistemas
semipresidenciais, o poder presidencial de dissolução só existe, com alcance político global, em

15
Ver página 62 – equilíbrio nos sistemas de governo clássicos

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França e Portugal. Na generalidade dos velhos semipresidencialismos, o poder é apenas formal,


porque mesmo estando consagrado constitucionalmente, não é utilizado. Nos novos
semipresidencialismos da Europa Central e de Leste, no geral, não foi consagrado o poder
presidencial de dissolução; ou foi consagrado apenas em situações tipificadas e excecionais de
crise institucional.
É necessário ter em conta a situação das novas democracias da Europa Central e de
Leste, cujas particularidades (Parlamentos enfraquecidos e risco de concentração de poderes
na figura do Presidente) justificam a não consagração, ou a consagração com grandes limites,
do poder presidencial de dissolução (normalmente, a dissolução só é possível quando o
Parlamento rejeita a solução governativa que lhe é proposta, ou quando vota a desconfiança
do Governo). Porém, a prazo, consolidados os Parlamentos e os sistemas partidários das novas
democracias, a tendência será para o levantamento dos limites ao poder presidencial de
dissolução, pois só com um poder de dissolução incondicionado (com eventuais limites
temporais ou circunstanciais) o Presidente da República consegue (i) desenvolver as suas
potencialidades no equilíbrio do sistema e (ii) desempenhar um papel à altura das
responsabilidades o eleitorado nele deposita através do voto e que o sistema lhe atribui quando
o faz eleger por votação popular.

Pode acontecer, no entanto, não em termos estruturais, mas na prática conjuntural de


funcionamento do sistema político, que um Presidente, mesmo quando dotado do poder de
dissolução, não queira, não possa ou não deva proceder à dissolução do Parlamento, ainda que
o país se encontre numa crise institucional, por exemplo, numa situação em que o Parlamento
demita o Governo sem que se vislumbre uma alternativa estável no mesmo quadro
parlamentar. Numa situação em que a realização de novas eleições reproduziria,
invariavelmente, o mesmo quadro parlamentar, a dissolução do Parlamento não seria uma
solução, e por isso, se o Presidente optasse por ela, a instabilidade e a ingovernabilidade
perdurariam, com o acréscimo de outros inconvenientes: os custos políticos, económicos e
sociais de realizar eleições parlamentares supérfluas; e a debilitação política do Presidente, que
iria ser responsabilizado pelo insucesso das eleições, e impedido de recorrer de novo ao
mecanismo da dissolução.
Em circunstâncias em que não exista, constitucionalmente ou na prática, o poder de
dissolução há um risco de desequilíbrio, estrutural ou conjuntural, a favor do Parlamento.
Nestas situações, certos institutos podem desempenhar análogas funções de equilíbrio e de
racionalização do semipresidencialismo, atenuando os poderes fáticos de um Parlamento que
inviabilize a continuidade do Governo minoritário em funções, ou impeça o seu funcionamento
normal, mas sem viabilizar uma nova alternativa.
 Moção de censura construtiva ou positiva – é um dos mecanismos de racionalização do
sistema parlamentar que é hoje utilizada na Alemanha e em Espanha. A consagração
constitucional deste instituto garante, com efetividade, a subsistência de um governo
minoritário sempre que uma maioria parlamentar negativa o tente destituir sem apresentar
alternativa. Uma vez que os inconvenientes que este mecanismo pretende superar –

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Baltazar Oliveira

instabilidade e ingovernabilidade provocadas por essa situação – são comuns aos sistemas
parlamentar e semipresidencial, não a razão nenhuma para que não sejam adotados no
segundo, como já acontece na Polónia.

Contudo, em muitas situações de governo minoritário, uma conjugação das oposições


forma uma maioria parlamentar negativa que impede o Governo de desenvolver uma normal
função governativa. Assim, de nada serviria manter um Governo minoritário em funções se não
tivesse condições para governar, se não conseguisse fazer aprovar o orçamento e outras
importantes leis à execução do seu programa de governo.
 Nesta altura, outros mecanismos se devem conjugar com a moção de censura positiva,
cumprindo integralmente os fins de racionalização, estabilidade e governabilidade, mesmo
nas mais difíceis situações de Governos minoritários. Em França, por exemplo, um Governo
pode fazer passar leis no Parlamento sem a aprovação da maioria dos deputados. Se o
Governo considera a aprovação de uma lei decisiva para uma boa governação, mas sabe
que a oposição a inviabilizará, bastará, então, que o Governo empenhe expressamente a
sua responsabilidade política perante o Parlamento, em torno da aprovação da tal lei. Se o
Parlamento não aprovar, entretanto, uma moção de censura ao Governo, o texto da
proposta de lei em causa é considerado aprovado, mesmo sem votação, isto é, mesmo
sabendo-se que há uma maioria parlamentar que discorda do conteúdo.
 Com a adoção deste mecanismo, o Parlamento perdia a possibilidade de inviabilizar o
funcionamento regular de um Governo minoritário, embora sem o derrubar. Situação
muito comum entre nós, sempre que existem governos minoritários, é a de a AR manter o
Governo em funções, não o destituí, mas ao mesmo tempo queima-o em lume brando,
desgasta-o politicamente, impede-o de governar de acordo com o seu programa,
rejeitando sistematicamente as leis propostas. Assim, qualquer Governo, enquanto não
fosse demitido, por ter condições para governar, poderia responsabilizar-se plenamente e
com autonomia por essa governação, perante o Parlamento, e perante o eleitorado.
 A conjugação da moção de censura positiva (que exige que o Parlamento encontre uma
maioria positiva de apoio a um novo Governo, favorece a continuidade de funções do
Governo minoritário) com o mecanismo da confiança política (que impede que, se o
Parlamento mantém o Governo em funções, enquanto não o destitui, não o impeça de
governar) daria plena relação às relações entre Parlamento e Governo.

D) Variáveis dinâmicas de funcionamento do semipresidencialismo


Podem desenvolver-se, no semipresidencialismo, diferentes padrões ou modalidades
de funcionamento. Os poderes presidenciais podem ter alcance diverso em função de
circunstâncias políticas de ordem prática.
É no plano jurídico-constitucional que se faz a primeira definição do
semipresidencialismo, mas a Constituição não impõe nem limita as possibilidades de

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funcionamento prático das várias modalidades deste sistema de governo, podendo distinguir-
se vários fatores conjunturais, aleatórios e não inteiramente previsíveis, que condicionam o
funcionamento do sistema semipresidencial, independentemente do enquadramento
constitucional.

Vários fatores determinam as modalidades de funcionamento prático do


semipresidencialismo:
i) Fator determinante na relação Governo/Parlamento, tal como em sistema parlamentar:
 Existência/inexistência de maioria parlamentar absoluta
ii) Fatores que envolvem diretamente o Presidente, específicos do semipresidencialismo:
 Existência/inexistência de maioria parlamentar absoluta
 Confluência/oposição de maiorias parlamentar e presidencial.
 Existência/inexistência de Presidente militante.
 PR ou PM lidera a maioria, quando exista.
 Envolvimento, passado ou presente, do PR na vida política partidária.
 Perfil psicológico e tipo de personalidade do PR.
 Leitura que o PR faz dos poderes constitucionais e tipo de mandato que se
propõe a desempenhar.
 Circunstâncias do exercício do mandato do PR.

i) Ao considerar as características essenciais do semipresidencialismo, “responsabilidade do


Governo perante o Parlamento” é perfeitamente idêntica à do sistema parlamentar: em tudo
o que respeita às eleições parlamentares, à formação do governo, sua subsistência,
responsabilização e eventual demissão pelo Parlamento. Assim, o resultado das eleições
parlamentares influência enormemente a estabilidade e solidez da solução governativa, que
pode ser um governo maioritário, mais forte, ou um governo minoritário ou de coligação, mais
fraco.
ii) No semipresidencialismo, há que considerar um terceiro polo de exercício do poder
(diferentemente do que acontecia em sistema parlamentar, em que basta a análise das
relações Governo-Parlamento) para determinar as modalidades de funcionamento prático do
sistema.

Desta forma, o semipresidencialismo depende decisivamente da forma como o PR


assume o cargo, como se relaciona com os partidos e da existência ou inexistência de maioria
absoluta no Parlamento. Com maioria absoluta, o espaço de exercício dos poderes atribuídos
pela Constituição ao PR fica objetivamente reduzido, pois Governo e Parlamento asseguram
uma governação estável. Sem essa maioria, as dificuldades na relação entre esses dois órgãos

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fazem pressão a uma maior intervenção presidencial. Há, pois, uma relação entre maioria
parlamentar absoluta e margem de atuação presidencial (salvo certas exceções), que é
particularmente notória nos dois principais poderes presidenciais:
 Nomeação do Governo – não é um poder meramente formal, mas sim efetivo, pois é o
PR quem escolhe e nomeia o PM. Ainda assim, o Presidente tem que necessariamente
atender, em primeiro lugar, à composição política do Parlamento. Se o PM escolhido não
reúne o acordo da maioria parlamentar, o Governo é imediatamente derrubado ou nem
chega a entrar em funções, visto que o Governo depende politicamente do Parlamento.
Em situações de maioria absoluta, a margem de intervenção do PR é quase nula. O
Presidente só tem uma opção: nomear quem lhe for indicado por essa maioria. Mas se
nenhum partido ou coligação detém uma maioria, a margem de intervenção do PR
aumenta automaticamente: o Presidente tem de ponderar as várias hipóteses e ouvir a
opinião dos vários partidos acerca de quem deve ser nomeado Primeiro-Ministro. Em
certas situações, pode fazer escolhas realmente significativas. Assim, a margem de ação
do PR aumentou imediatamente pela inexistência de uma maioria parlamentar absoluta.
Em sistema parlamentar ou semipresidencial deve ser nomeado Primeiro-Ministro o líder do partido mais
votado? Para REIS NOVAIS, não. Em primeiro lugar, o importante para a nomeação do Governo não é ser
o mais votado, mas sim ter mais deputados no Parlamento. O Governo não responde diretamente perante
os eleitores, mas sim perante o Parlamento, e é do Parlamento que depende a nomeação, entrada em
funções e subsistência do Governo. Além disso, em certos sistemas eleitorais, um partido pode obter a
maioria dos deputados e não ser o mais votado. Em segundo lugar, essa opinião pressupõe que o partido
mais votado quer propor como PM o seu líder. Mas não tem de suceder sempre assim, como já aconteceu
em França. Em terceiro lugar, se o partido mais votado não tem maioria absoluta no Parlamento, a
situação complica-se, sendo chamado o Presidente da República a intervir.

 Veto – quando este poder de recusar a promulgação de diplomas é concedido ao PR, a


Constituição prevê normalmente a possibilidade de o Parlamento, com uma maioria
qualificada (por exemplo, absoluta), superar o veto presidencial, forçando o PR a
promulgar o diploma. Assim, não havendo maioria absoluta, o veto presidencial é
praticamente definitivo. Já em situações de maioria absoluta (e sobretudo quando essa
maioria é sólida, disciplinada e se dispõe a atuar contra a vontade do Presidente), poderá
ser mais facilmente superado, diminuindo a imagem do PR aos olhos da opinião pública.

Contudo, a complexidade do semipresidencialismo não permite que se tirem


conclusões lineares como “a existência/inexistência de maioria absoluta está diretamente
relacionada com a margem de intervenção presidencial, sendo essa maior quando não há
maioria absoluta”. O semipresidencialismo obriga a considerar inúmeras variáveis. Importa
conhecer qual a relação institucional, o posicionamento, a atitude do PR relativamente à
maioria que sustenta o Governo.
 Se o Presidente for militante e se identificar com a maioria parlamentar, sendo o seu líder
(situação francesa típica), a sua posição reforça-se. Neste caso, maiorias parlamentares
podem induzir uma conclusão inversa à apresentada, favorecendo a intervenção

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presidencial. O Presidente detém o controlo das três instituições políticas centrais:


Presidência, Parlamento e Governo. O PM adquire uma posição secundária, reforçando-se
a “componente presidencial” do sistema. O contrário acontece em situações de coabitação,
em que a maioria parlamentar, o Governo e o PM tem um projeto político oposto ao do PR.
 Se há um PR partidariamente independente, mesmo quando há maioria parlamentar a seu
favor, o PM é, em princípio, líder dessa maioria, o que tende para a redução dessa
“componente presidencial”. Nesta situação, encontramos uma variedade de nuances na
relação entre PR e PM: PR pode, não sendo ativo, ser a figura mais carismática da área
política de ambos, exercendo também grande influência, mas de forma diferente; PR e PM
podem ter uma relação política ou pessoal tensa; PR pode, mesmo convergindo com o PM,
manter uma distância do Governo; PR pode, pontual ou sistematicamente, ajudar o
Governo ou as oposições, contribuindo para a estabilidade ou desgaste do primeiro.

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7. SEMIPRESIDENCIALISMO: MATRIZES

A) As matrizes do semipresidencialismo
Os sistemas de governo apresentam padrões de funcionamento prático
significativamente distintos, em função dos contextos e da presença de circunstâncias de
natureza aleatória, conjuntural, não inteiramente previsíveis. Enquanto nos sistemas clássicos
a variedade de possíveis modalidades de funcionamento prático é relativamente limitada (duas
modalidades para cada), a enorme complexidade do semipresidencialismo16 confere-lhe um
espectro de possíveis modalidades de funcionamento muito mais amplo. Assim, podemos
elencar várias experiências de semipresidencialismo que, por um lado, apresentam um quadro
constitucional muito semelhante (já que qualquer sistema de governo é definido
constitucionalmente), mas por outro, um funcionamento prático muito diferente.
Note-se que, quando se fala em padrão de funcionamento, nele se integra a
inevitabilidade de, dentro desse mesmo quadro, se verificarem variações de relacionamento
político e institucional entre os órgãos que exercem poder político, próprias e específicas de
cada padrão e que conferem, por isso mesmo, a cada um deles, uma identidade.
Mesmo tendo em conta que: (i) a Constituição não impõe nem limita as possibilidades
de funcionamento prático, ou seja, há uma neutralidade/indiferença constitucional; e (ii) a
especificidade do funcionamento prático dos vários semipresidencialismos é essencialmente
determinada pelas eventuais variações que envolvam o órgão Presidente da República, como
o seu perfil psicológico, o mandato que se propõe a desempenhar e a leitura que faz dos
poderes constitucionais; verifica-se que, na prática, cada uma das várias experiências funciona
de forma estável e relativamente previsível. A Constituição austríaca não impõe que o
Presidente tenha um perfil cerimonial, assim como não proíbe que seja interventivo, mas a
verdade é que esse perfil cerimonial se mantém ao longo do tempo…
Não obstante, pode o PR, em semipresidencialismo, afastar-se do padrão dos seus
antecessores e introduzir um novo curso de funcionamento das instituições?
 Sem dúvida, a Constituição permite. Um Presidente eleito democraticamente tem a
legitimidade democrática que lhe permite o exercício efetivo (ou o não exercício) de todos
os poderes que a Constituição lhe atribui. Aliás, na eventualidade de o PR pretender infletir
o curso anterior, ele deve pré-anunciar essa sua intenção de mudança ao eleitorado e vê-
la sufragada na vitória eleitoral obtida, conferindo maior legitimidade à nova orientação
que pretenda imprimir ao mandato do PR.
 Apesar dessa possibilidade ser possível, ela não se concretiza, mantendo-se praticamente
inalterado o padrão de funcionamento ao longo dos anos, após um período inicial de
estabilização e de consolidação do sistema de governo. Caso se concretizasse, o risco e a
responsabilidade recairiam sobre quem alterasse o padrão, o que é difícil e improvável, mas
possível.

16
Ver páginas 103-106 – amplo espectro de modalidades de funcionamento prático do semipresidencialismo

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Assim, é possível subdividir o semipresidencialismo segundo diferentes matrizes,


famílias ou experiências de funcionamento padronizado, claramente distintas entre si, com
modos de funcionamento previsíveis. Mas o que justifica a diferenciação nessas várias
matrizes?
 As razões que, na génese do sistema, num contexto político específico, levaram os
constituintes de cada país a escolher a via semipresidencialista e a optar pela eleição
popular do PR.
 O funcionamento do sistema nos primeiros anos da sua formação – se o sistema é bem-
sucedido, particularmente nos primeiros anos, ou se há uma adesão, um assentimento
geral sobre o modo com vai funcionando, os agentes políticos e as populações
interiorizam como natural esse funcionamento, atuam em conformidade com ele e
criam expectativas quanto à sua continuidade. Assim, vai-se progressivamente
consolidando e institucionalizando um padrão de funcionamento que se tende a
reproduzir e perenizar quase como se fosse obrigatório, de forma quase-normativa,
tornando-se previsível. Contrariamente, se nesse período inicial se verificam bloqueios
ou disfuncionamentos que, mesmo parcialmente, podem ser imputados ao sistema de
governo, ou se verificam alterações profundas no contexto político que viu nascer o
sistema de governo, a respetiva reavaliação pode conduzir ao abandono do
semipresidencialismo.
 Quando se fala em matrizes do semipresidencialismo, é precisamente de experiências
bem-sucedidas, em que o sistema de governo perdura ao longo de décadas de forma
consistente, em que há uma institucionalização de um padrão típico de funcionamento,
que se adequa ao contexto político e cultural em que surge e às expectativas dos
interessados.
 Assim, se nos primeiros anos a figura do Primeiro-Ministro assume um papel dominante
relativamente à do Presidente da República, e os partidos apostarem as suas figuras
mais importantes nas candidaturas a Primeiro-Ministro, e este funcionamento for bem-
sucedido, será natural que os cidadãos tendam a olhar para o PM como órgão principal
e depositem nesse órgão o essencial das suas expectativas políticas.
 Desta forma, a reprodução natural de certos comportamentos induzidos pelo padrão
de funcionamento do sistema, irá alimentar a própria institucionalização desse padrão.
Isto é, o padrão de funcionamento vigente vai adquirindo uma dimensão normativa
informal que se projeta sobre agentes políticos e cidadãos, e é por eles aceite como se
o sistema não devesse ou até pudesse funcionar de outro modo.
 Por vezes, a própria doutrina constitucional tende a ver este fenómeno, não apenas
como natural, mas, erradamente, como favorecido pela Constituição, como sendo
resultado de uma pretensa coerção constitucional.

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Não se pode pretender chegar a uma classificação indiscutível e consensual quanto às


experiências integráveis em cada uma das matrizes. É que, no limite, se quisermos atender às
especificidades próprias de cada país em que vigora o semipresidencialismo, cada um deles
seria suscetível de ser individualizado numa matriz própria. Todavia, podemos destacar
características comuns a várias experiências que as permitem autonomizar num bloco,
enquanto matriz própria e diferenciada das dos restantes semipresidencialismos.

B) Matrizes francesa (Presidente-liderante) e portuguesa (Presidente-moderador)


Estudo da matriz francesa, em contraponto com a portuguesa, relativamente a dois
aspetos principais: (i) estruturação do executivo e (ii) natureza do mandato do Presidente.

i) Estruturação do executivo: bicefalia ou monismo


 Normalmente, em França, tanto o PR como o PM exercem funções executivas, de governo,
de condução dos destinos políticos do país. Há uma bicefalia do executivo, consolidada na
V República, mas que não provém de uma clara definição constitucional, sendo produto da
institucionalização de práticas políticas.
 A Constituição francesa de 1958 atribui ao PR a presidência do Conselho de Ministros, o
que indica uma partilha do poder executivo entre esses dois órgãos, mas também afirma
inequivocamente que é o Governo que determina a política da Nação. Ao PR ficam
reservadas competências como velar pelo respeito pela Constituição, assegurar o regular
funcionamento dos poderes públicos e a continuidade do Estado, garantir a independência
nacional, a integridade territorial e o respeito pelos tratados.
 Mas a norma constitucional tem uma natureza especial, que obriga a uma interpretação
não linear. No caso francês, o PR não tem o poder constitucional de demitir o Governo.
Contudo, tal tem acontecido inúmeras vezes. Recorrendo à sua influência pessoal, política
e partidária, o PR persuade o PM a apresentar a sua demissão, ainda que formalmente não
o demita. E não há qualquer inconstitucionalidade nisto: a Constituição não foi feita para
ter anjos como destinatários, a Constituição é o estatuto jurídico do político.
 Será então a atitude de assunção sistemática de poderes executivos por parte do PR
consentânea com o espírito da Constituição francesa? Sim, a prática é, pelo menos
remotamente, consentânea, numa interpretação extensiva do estatuto do PR e dos seus
poderes de arbitragem, de garantia do regular funcionamento dos poderes públicos ou de
garantia da independência nacional. Mas a assunção desses poderes executivos não é uma
imposição constitucional, podendo o PR abdicar deles, ou ser impossibilitado de os exercer,
em situações de coabitação.
 Na prática, o PR assume os poderes executivos tão amplamente como lhe permite o
equilíbrio conjuntural das forças políticas. Assim, quando a relação de forças lhe é favorável,
sendo apoiado por uma maioria parlamentar, o domínio das funções executivas e de

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governo é praticamente total por parte do PR francês. Por outro lado, quando tem de
disputar o poder com um PM adverso, apoiado por uma outra maioria parlamentar, vê-se
limitado por um contrapoder – há uma situação de coabitação.
 A bicefalia do executivo é um traço característico do semipresidencialismo francês, caindo
alguns autores no erro de a considerar uma característica do semipresidencialismo. Reduzir
o esse sistema de governo aos sistemas em que há uma diarquia de executivo, seria
restringi-lo ao sistema francês. O sistema português, por exemplo, seria deixado sem-
abrigo. Assim, a bicefalia do executivo não é característica do semipresidencialismo, mas
da matriz francesa de semipresidencialismo.
 A prática portuguesa, reiterada ao longo de quarenta anos, confirma: em Portugal quem
governa é o Governo e só ele. O PR desempenha importantes poderes, modera, arbitra,
intervém politicamente, por vezes de forma decisiva, pode opor-se pontualmente a certas
medidas do Governo ou à nomeação de altos funcionários, mas quem conduz, executa e se
responsabiliza pela política do país é única e exclusivamente o Governo, liderado com plena
autonomia pelo PM.
 Esta clara contraposição entre as matrizes francesa e portuguesa do semipresidencialismo
no domínio da estruturação dos poderes e funções executivas não é resultado direto de
uma diferente configuração constitucional do estatuto e dos poderes presidenciais, mas é
produto da prática institucionalizada da vida política dos dois países.

ii) Natureza do mandato do PR: Presidente militante ou Presidente garante


 Em França, a presidência é o objetivo central dos partidos, sendo disputada pelas figuras
mais carismáticas de cada força política: o líder de cada um dos blocos políticos é o
candidato natural a PR. Já em Portugal esses líderes disputam preferencialmente a
nomeação como PM. Tal acontece porque o Governo é o central na vida política do país,
enquanto em França quem desempenha esse papel é o PR. Assim, em Portugal, a
candidatura presidencial surge numa altura mais avançada da idade da carreira política do
candidato, como uma espécie de coroação política.
 Mas a explicação mais adequada para este fenómeno é outra, cronológica. Em França, o PR
é hoje proeminente porque as principais figuras políticas francesas se candidataram, no
passado, preferencialmente, a PR. Inversamente, em Portugal, essas figuras candidataram-
se a PM e só depois encararam a disputa da eleição presidencial.
 No que respeita à natureza do exercício do mandato, após a eleição presidencial, as
diferenças continuam a ser notórias. Em França o PR é consagrado como líder da maioria
que o elegeu e desenvolve essa função ao longo do mandato. Em caso de coincidência da
maioria parlamentar com a presidencial, passa a deter o controlo, direto ou indireto, das
três instituições (presidência, Parlamento, Governo), convertendo-se quase
exclusivamente no centro de decisão política fundamental. O Governo é de confiança e
responsabilidade presidencial, e o PM assume voluntariamente o lugar secundário na
diarquia do executivo, chefiado pelo PR. É um Presidente militante, politicamente

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empenhado num projeto próprio, associado a um partido ou coligação. Na própria


campanha eleitoral, cada candidato a PR se apresenta com um programa global de
Governo, assente no apoio de um partido ou coligação partidária.
 Pode suceder, no entanto, que eleito o PR ele se depare com uma maioria parlamentar
adversa, já em funções. Nesse caso, dissolve o Parlamento que se lhe opõe a fim de
conseguir uma maioria a favor do seu projeto de governo, já sufragado nas eleições
presidenciais.
 E se em eleições parlamentares, que decorram no curso do mandato presidencial, um bloco
político adverso ao PR conquistar maioria parlamentar, inevitavelmente mudando o
Governo? O PR tem de se conformar com um PM que se lhe opõe politicamente, numa
situação de coabitação. Não abdica do seu mandato nem do programa que o elegeu, mas
temporariamente é obrigado a ceder as funções executivas ao novo Governo, continuando
a ser líder do próprio bloco, como oposição. Aproveitará todas as ocasiões para se distanciar
ou criticar a política do Governo, preparando o próximo combate eleitoral, que terá como
candidatos os atuais PR e PM. Pode vetar ou demarcar-se de importantes leis do Governo
ou da nova maioria parlamentar, ou recusar-se a nomear certo funcionário ou Ministro,
obrigando o PM a uma solução de compromisso. Nas eleições seguintes, ou é eleito o PM
(pondo fim à coabitação) ou o PR (que vai dissolver o Parlamento). Por isso, as fases de
coabitação tendem a ser breves e vistas, em França, como situações precárias e de
transição.
 Em coabitação ou não, o PR é sempre um Presidente politicamente empenhado, militante,
que lidera um bloco político, de governo ou de oposição.
 A alteração constitucional francesa de 2000 veio alterar a duração do mandato do PR de
sete para cinco anos, passando a sua eleição a ocorrer pouco antes das eleições para a
Assembleia Nacional. Assim, o vencedor da eleição presidencial vê confirmada na eleição
para a Assembleia Nacional uma maioria coincidente. Há um semipresidencialismo francês
antes e um depois de 2000, passando a haver um aumento do papel do PR no sistema, que
pode ser mais poderoso que um Presidente em presidencialismo.
 Já em Portugal o PR pode ter um passado político, pode até ser um dirigente partidário,
mas uma vez eleito leva a sério o lema “Presidente de todos os Portugueses”
(curiosamente, um lema originalmente francês). Na noite das eleições declara desfeita a
maioria presidencial que o elegeu e possivelmente devolve o seu cartão de militante
partidário. Recusa sempre uma intervenção direta e parcial na disputa Governo/oposição.
 A eleição presidencial portuguesa assume um caráter radicalmente diverso da francesa,
não porque seja uma imposição constitucional, mas porque foi nesse sentido que se
desenvolveu a matriz portuguesa de semipresidencialismo. Tal poderia ser considerado
porque a Constituição determina que a apresentação de candidaturas não cabe a partidos,
mas a um conjunto de cidadãos eleitores. Contudo, apesar desta despartidarização
constitucional, os candidatos a PR só tem reais hipóteses de eleição, salvo certas exceções,
se apoiados por um dos dois grandes partidos.

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 Embora desempenhe um papel político de relevo, o PR afasta-se voluntariamente de


qualquer pretensão de exercício de funções executivas. A sua intervenção desenvolve-se
no âmbito de funções de influência, regulação, moderação, arbitragem, integração política
nacional, garantia do regular funcionamento das instituições democráticas e de
preservação e promoção dos valores constitucionais. Por isso, e na lógica da matriz
portuguesa de semipresidencialismo, o PR deveria ser escolhido em função da respetiva
capacidade e das qualidades pessoais para desempenhar essas mesmas funções,
independentemente das suas conceções políticas e de um projeto político para o país.
Contudo, para a generalidade do eleitorado a disputa presidencial é como a disputa
parlamentar, um combate entre propostas políticas e ideológicas distintas e em oposição,
ainda que filtrada pelo carisma e qualidades pessoais de cada candidato. No fundo,
desenvolve-se um combate direita-esquerda (com a eventual exceção das reeleições de
resultado antecipadamente seguro), como em França.
 Aí reside uma contradição: antecipando a natureza não-partidária do futuro mandato, os
candidatos à eleição transformam a campanha eleitoral num verdadeiro jogo de sombras
em que a grande preocupação não é revelar e confrontar, mas antes ocultar as diferenças
ideológicas e as diferenças das respetivas propostas políticas para o país. Os temas mais
discutidos acabam por ser o sistema de governo, os poderes do PR em
semipresidencialismo, e como o candidato concebe o exercício desses poderes, como se
tratasse de um debate entre constitucionalistas ou como se para o eleitorado fossem
indiferentes as conceções políticas e ideológicas do PR.
 Apesar disso, quando o Presidente nomeia alguém para um alto cargo, quando promulga
ou veta uma lei politicamente sensível, quando suscita a intervenção do Tribunal
Constitucional ou quando dissolve a AR, é inevitável que a interpretação que o PR faz desses
atos seja fortemente influenciada pelas suas convicções e preferências políticas. Convém,
portanto, que o eleitorado esteja perfeitamente esclarecido quanto a esse aspeto. Em
qualquer dos casos, após a eleição, é esperado do PR uma intervenção ativa, mas acima do
confronto interpartidário quotidiano.

C) Matriz austríaca (Presidente-cerimonial)


Podemos destacar, relativamente às experiências austríaca, irlandesa e islandesa,
características comuns que permitem autonomizar os seus sistemas de governo numa matriz
austríaca de semipresidencialismo.
 O Presidente é eleito por sufrágio popular, mas, por razões diversas, não pode,
renuncia, ou é constrangido, na prática, a não investir a legitimidade democrática que
recolheu do voto popular no exercício efetivo de poderes políticos relevantes. Assim, o
PR limita-se a exercer funções meramente simbólicas, nomeadamente na
representação externa do Estado. É um Presidente representativo, cerimonial e
apagado, que não tem poderes na condução da vida política nacional.

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 Assim, o sistema funciona como um sistema parlamentar, deixando-se a condução


política do país a Governo e Parlamento.

Por essas razões, cria-se uma confusão entre a matriz austríaca do sistema
semipresidencial e o sistema parlamentar, que são, todavia, distintos.
 Alguns autores designam a matriz austríaca do semipresidencialismo como matriz
parlamentarizada do semipresidencialismo. DUVERGER designava Áustria, Irlanda e Islândia
de semipresidencialismos aparentes ou simbólicos, isto é, países com Constituições
semipresidenciais, mas que praticam efetivamente o parlamentarismo. Outros autores
integram mesmo estas experiências no parlamentarismo, considerando que os sistemas em
causa entraram num estádio de não retorno, ou seja, mesmo que os PRs quisessem alterar
o estado de coisas em que se encontram, já não o conseguiriam fazer. O erro destas
conceções é a já explicada confusão entre os conceitos de sistema de governo e de
funcionamento do sistema de governo17.
 Podia até defender-se que, chegando-se à conclusão que se criara, num dado país, a
convicção generalizada da existência de uma imposição normativa, embora não escrita, que
impediria definitivamente o PR de desempenhar um papel relevante, então esse sistema
seria, nos planos prático e jurídico, parlamentar.
 Mas o sistema de governo destes países distingue-se do sistema parlamentar: a partir do
momento em que um PR tem uma legitimidade democrática plena, ele pode exercer
poderes políticos significativos, sem que a Constituição seja invocada contra ele. Assim, o
turning point está sempre lá, até uma eventual revisão constitucional. Numa situação de
exceção, de crise, de bloqueio dos outros dois órgãos, o PR pode sempre invocar a
legitimidade democrática que possui para desenvolver, temporária ou continuadamente,
uma intervenção política significativa, direta e autónoma; e para tanto, não seria necessário
proceder a uma prévia revisão constitucional. O sistema é, por isso, semipresidencial.
 Assim, há um apagamento voluntário ou uma neutralização do PR, pelo menos em períodos
de normalidade constitucional. Ora, atentando à estabilidade política que se vive, não faria
sentido que a intervenção do PR se alterasse, mesmo invocando legitimidade democrática,
sob risco de introduzir incerteza e perturbação num quadro perfeitamente estável,
consolidado e consensual.

No caso da Áustria, o Presidente tem de ser eleito por maioria absoluta, o que lhe
garante a legitimidade democrática necessária para exercer poderes relevantes que a
Constituição lhe atribui. A doutrina assinala até alguma flutuação relativamente à intervenção
política do PR austríaco, que tem alguma margem de intervenção no poder de nomeação dos
governos, sobretudo quando não é evidente uma solução governativa, tendo em conta a
composição do Parlamento; na manutenção e estabilização de coligações de governo; e na
nomeação de altos cargos. De facto, alguns Presidentes recentemente eleitos têm pré-

17
Ver páginas 84-86 – Áustria como verdadeiro semipresidencialismo

113/146
Baltazar Oliveira

anunciado, na campanha eleitoral, que se dispunham a um exercício mais ativo dos seus
poderes presidenciais. Estes sinais confirmam a ideia de que a possibilidade de inflexão no
curso do perfil presidencial existe.

Se é verdade que no caso austríaco a Constituição atribui poderes significativos ao PR,


e que ele tem legitimidade democrática para os exercer, analisando as experiências que
potencialmente se enquadram na matriz austríaca do semipresidencialismo, como a Irlanda e
a Islândia, a presença desses requisitos é muito duvidosa, não devendo ser considerados
semipresidencialismos.
 Irlanda – poderes constitucionais muito limitados – são poderes presidenciais próprios
a faculdade de recusar uma dissolução parlamentar que lhe seja pedida pelo Governo
(mas só quando o Governo tenha perdido o apoio de uma maioria parlamentar), o
poder de recusar promulgar uma lei enquanto ela não seja previamente sujeita a
referendo popular ou haja nova eleição do Parlamento (mas apenas se a pedido da
maioria do Senado e de um terço dos Deputados), e o poder de suscitar a apreciação
preventiva da constitucionalidade de leis ao Supremo Tribunal (também com
limitações). Assim, o Presidente irlandês não tem uma capacidade efetiva de
participação política, que o distinga de um chefe de Estado representativo de um
sistema parlamentar. Ademais, se quando é eleito (por sufrágio popular e direto) o PR
possui uma legitimidade democrática que lhe permite exercer os poderes que a
Constituição lhe atribui, ele nem sempre ele recolhe essa legitimidade, já que quando
exista apenas um candidato presidencial, a eleição é dispensada.
 Islândia – legitimidade democrática questionável – há a possibilidade de renovação do
mandato sem eleições, caso não existam mais candidatos (o que depende da boa
vontade dos partidos). Ademais, a eleição presidencial não exige uma maioria absoluta
dos votos expressos, podendo o PR ser eleito com uma base eleitoral pouco expressiva.
Assim, e embora o PR islandês tenha poderes constitucionais muito relevantes, é
questionável a legitimidade democrática que recolhe da sua eleição, e que lhe retira,
juridicamente e não apenas na prática, a possibilidade de os exercer de forma efetiva.

A indiferenciação da matriz austríaca e do parlamentarismo coloca o enigma de por que


razão decidiram Áustria, Irlanda e Islândia consagrar a eleição por sufrágio popular e direito dos
seus PRs se não pretendem que eles deem uso a essa legitimidade reforçada. Há que ter em
conta o caráter decisivo das motivações de cada país adotar o semipresidencialismo (e a eleição
popular do PR), e dos anos de formação de cada sistema de governo.
 Na Áustria, a eleição popular do PR inseria-se, em 1929, no movimento de
racionalização do sistema parlamentar, objetivo que foi rapidamente inviabilizado pelo
advento do partido nazi. Após a II Guerra, reposta a Constituição de 1920/29, acabou
por haver um apagamento do órgão Presidente. As primeiras décadas de

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Baltazar Oliveira

semipresidencialismo austríaco assistiram à eleição de Presidentes social-democratas18,


o que se pode ter revelado decisivo na medida em que o partido social-democrata
austríaco nunca aderiu à consagração de eleição direta do PR, mantendo um registo
meramente representativo e não se orientando para a afirmação política do órgão, de
que foi titular durante anos sucessivos. Assim, estabilizou-se uma convenção
constitucional quanto à natureza da função presidencial, fruto de um pacto entre
sucessivos Presidentes sociais-democratas que assumiram um perfil representativo.
 Já a Irlanda e a Islândia, em tempos sujeitas ao Rei da potência que as dominava (Grã-
Bretanha e Dinamarca), consagraram a eleição popular dos seus Presidentes como
forma de os prestigiar face ao Rei, ainda que estes tenham um caráter simbólico ou
representativo.
 Estas evoluções foram marcadas, num processo de influência recíproca, por uma
orientação prioritária dos partidos para as eleições parlamentares, que acabou por
atribuir uma importância reduzida ao órgão Presidente, relativamente ao binómio
Governo/Parlamento.

D) Finlândia
O mais velho semipresidencialismo vivo, que durante muitos anos praticou o
semipresidencialismo, procedeu a alterações constitucionais que tornam incerto o sentido da
evolução seu do sistema de governo.
 O Presidente finlandês, que pode exercer poderes significativos, começou por ser eleito
indiretamente, por um colégio eleitoral, mas, após duas revisões constitucionais, passou a
ser eleito diretamente a duas voltas, por maioria absoluta.
 A Constituição finlandesa, mesmo após a reduções nos poderes presidenciais, institui uma
bicefalia do executivo parcelar, na medida em que atribui grandes poderes ao PR em duas
áreas fundamentais da política finlandesa: o PR é corresponsável pela condução da política
externa, domínio particularmente importante na medida em que tinha de lidar com o
poderoso vizinho soviético; e, após vários mandatos do Presidente Kekkonen, o órgão PR
adquiriu uma posição de grande relevo na formação e nomeação dos governos, num
contexto de fragmentação partidária após eleições inconclusivas, e de necessidade de
recorrer a coligações parlamentares multipartidárias, que deveriam contar com o aval ou
iniciativa presidencial. O facto de não haver limite temporal à reeleição do PR e de
dificilmente se formarem Governos maioritários (no cenário de fragmentação partidária)
reforçava ainda mais a estabilidade e continuidade dos seus mandatos, contribuindo para
o que alguns autores chamam de semipresidencialismo forte.
 Com a saída de Kekkonen, o desaparecimento da pressão soviética, a adesão à UE (e a
consequente diminuição do peso e da autonomia da política externa no conjunto da política

18
Ver página 80 – esquerda e direita na conformação dos semipresidencialismos

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Baltazar Oliveira

governamental, bem como o peso do PM na integração europeia), houve uma atenuação


do exercício de poderes presidenciais nos últimos mandatos. As alterações constitucionais
de 1991 e 2000 vieram acentuar este cenário: o PR passou a só poder dissolver o
Parlamento sob iniciativa do PM e passou também a ter de seguir as indicações do
Parlamento quanto à nomeação do PM e do Governo.
 Esta diminuição progressiva do peso do PR gerou uma espécie de "semipresidencialismo
residual”, pondo se a questão se a Finlândia não se devia enquadrar na matriz austríaca do
semipresidencialismo, ou até ser qualificada como um sistema parlamentar. Para REIS
NOVAIS, a caracterização da Finlândia como um semipresidencialismo de matriz austríaca
é apropriada. Em todo o caso, a efetiva neutralização da intervenção presidencial nestes
domínios dependerá da trajetória do sistema político-partidário finlandês dos próximos
anos, suscetível de proporcionar soluções governativas estáveis que dispensem a
intervenção arbitral, moderadora e mediadora do Presidente.

E) Novas democracias na Europa Central e de Leste


O fenómeno de adesão ao semipresidencialismo por grande parte dos países da Europa
Central e de Leste saídos da desagregação do antigo bloco soviético foi o derradeiro golpe aos
autores que resistiam à autonomização do semipresidencialismo como sistema de governo.
Apesar de os países da região apresentarem grande heterogeneidade (têm contextos
históricos, políticos, culturais e constitucionais profundamente diferentes) e um quadro
democrático não suficientemente estabilizado, é possível estabelecer alguns traços que são
comuns aos vários sistemas de governo e que venham futuramente a configurar uma matriz
própria de semipresidencialismo. Incluem-se nesse grupo de países Bulgária, Croácia, Eslovénia,
Eslováquia, Lituânia, Polónia, República Checa, Roménia e Sérvia. Adotaram o parlamentarismo Hungria,
Letónia e Estónia.

No plano jurídico-constitucional:
 O Presidente da República, eleito por sufrágio popular, não tem o poder de dissolução do
Parlamento ou, se o têm, só o pode exercer em termos muito estritos e
constitucionalmente pré-fixados (quando o Parlamento é incapaz de formar uma nova
solução governativa ou no âmbito de uma crise gerada pela demissão de um Governo), mas
nunca por razões estritamente políticas ou sujeitas exclusivamente à avaliação política do
próprio Presidente.
 Em contrapartida, e ao invés do que acontece na Europa ocidental, é aqui bem mais comum
a instituição de uma dupla responsabilidade do executivo perante Presidente e Parlamento,
com existência do poder presidencial de demissão do Governo. Nos países com bicefalia do
executivo, o Presidente tem importantes competências executivas, como a presidência do
Conselho de Ministros e a direção de certas áreas da governação, como a política externa

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e a política de defesa. Na Polónia, Lituânia e Roménia o Presidente pode até nomear e


coordenar alguns Ministros.
 Estes condicionalismos revelam uma vontade constituinte de prevenir desvios autoritários
do Presidente (ao condicionar o seu poder de dissolução) mas, em contrapartida, induz-se
a intervenção executiva dos Presidentes, eleitos por sufrágio universal e direto, o que lhes
confere um papel politicamente relevante.

No plano de funcionamento prático:


 A grande intervenção presidencial na vida política quotidiana reflete-se na imagem positiva
de que os Presidentes beneficiam da opinião pública destes países (em comparação com
PMs e outros políticos), potenciando o desenvolvimento de uma ambição presidencial que
tende a forçar até ao limite os seus poderes constitucionais. Essa ambição vai no sentido
do exercício ou interferência direta no exercício de poderes executivos, em detrimento de
uma orientação para uma intervenção moderadora ou arbitral, que só pode ser assumida
quando assenta no suporte institucional do poder de dissolução do Parlamento.
 A debilidade, fragmentação e instabilidade extremas dos sistemas partidário e parlamentar
destes países não permite que se construam maiorias políticas sólidas e estáveis. Os
mandatos parlamentares são repartidos por inúmeras forças políticas e por um grande
número de deputados sem vínculo partidário (ainda que eleitos por listas partidárias) e,
portanto, não sujeitos a disciplina de voto. Verifica-se uma situação de impotência do
Parlamento, que não consegue gerar maiorias sólidas e estáveis. Maiorias fazem-se,
desfazem-se e refazem-se ao sabor de alianças frágeis e acordos pontuais. Há até uma
inviabilidade prática na eventual adoção do sistema de governo parlamentar.
 Assim, a intervenção de uma instância externa como o PR, referência de estabilidade e
unidade, é decisiva. O chefe de Estado está compelido a uma intervenção política
permanente, que preencha a impotência do Parlamento e que não se resuma a um papel
de moderação e arbitragem. Essa intervenção é evidente no exercício do poder de
nomeação do Governo. Como o Parlamento é incapaz de gerar qualquer solução
governativa, o PR intervém ao formar “governos tecnocráticos" ou “governos de iniciativa
presidencial”, que beneficiam, à partida, do seu apoio expresso. Tal não se reflete
necessariamente num executivo bicéfalo, mas apenas numa dupla responsabilidade
política do Governo perante Parlamento e Presidente.
 A dificuldade de institucionalização de um regime plenamente democrático também reside
na ausência de sistemas testados e sólidos de checks and balances (de fonte parlamentar,
partidária ou judicial), o que tende a estimular a concentração autocrática de poderes num
Presidente, a quem já se atribuem constitucionalmente poderes significativos.
 A possibilidade de maior intervenção presidencial estimula conflitos recorrentes de disputa
da liderança executiva entre PR e PM (ditos intra-executivos) ou, com a instabilidade
institucional causada, entre PR e Parlamento. A ocorrência destes conflitos tem sido uma
constante, o que pode constituir uma característica comum que identifique estes

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semipresidencialismos. Estas controvérsias desencadeiam-se em torno da interpretação da


separação de poderes e dos limites constitucionais dos poderes do PR (questões como
nomeações presidenciais, políticas económicas, alterações constitucionais e questões de
defesa e relações externa), não tendo necessariamente na sua base diferenças ideológicas,
mas disputas de áreas de influência e de afirmação pessoal (em muitos dos casos PR e PM
até pertencem à mesma força política).
 A recorrência deste tipo de contendas tem contribuído para um reforço da imagem dos
Tribunais Constitucionais, chamados a arbitrar as disputas, e da importância institucional
dos mecanismos próprios do Estado de Direito, embora sob o risco de politização da justiça
constitucional.

A inexistência de um quadro democrático estabilizado na Europa Central e de Leste vem


pôr em causa a possibilidade de autonomização de uma nova matriz de semipresidencialismo
relativa às novas democracias da região. Em vários países, são feitas frequentemente revisões
constitucionais acerca de aspetos relevantes do sistema de governo, podendo até proceder-se
à sua alteração (a Moldávia conheceu, em dois anos, os três sistemas de governo). Ademais, só
se deve falar em verdadeira matriz ou integração numa matriz quando na experiência
constitucional em causa é possível destacar um padrão de funcionamento já testado num leque
alargado de circunstâncias em períodos de ciclos suficientemente diferenciados e longos, e
desenvolvido ao abrigo de um quadro constitucional estável.
Independentemente da sua qualificação como matriz autónoma, não é possível
enquadrar as experiências destes países em qualquer das restantes matrizes de
semipresidencialismo.
 Não é possível enquadrar na matriz austríaca porque nos semipresidencialismos da Europa
Central e de Leste os Presidentes, beneficiando da popularidade e prestígio, tendem a
afirmar uma presença política, frequentemente desenvolvida contra iniciativas
governamentais ou em oposição à orientação política do Parlamento, através de poderes
informais, do exercício regular dos poderes de veto ou do poder de nomeação do Governo.
 Não é possível enquadrar na matriz francesa porque a instabilidade dos sistemas partidários
e dos Parlamentos impedem a estabilidade que a liderança executiva do Presidente francês
precisa, por falta de apoio maioritário e estável no Parlamento. Ademais, há uma grande
relutância em admitir que os Presidentes possam continuar a desempenhar funções de
militância partidária após as eleições, sendo, em certos casos, proibido
constitucionalmente.
 Não é possível enquadrar na matriz portuguesa porque a debilidade de dissolução do
Parlamento pelos PRs os impede de desempenharem eficazmente o papel moderador e
arbitral que caracteriza o sistema português.

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PARTE III – MATRIZ PORTUGUESA DE


SEMIPRESIDENCIALISMO

1. SISTEMA DE GOVERNO PORTUGUÊS COMO SISTEMA


SEMIPRESIDENCIAL

O sistema de governo português é um sistema de governo semipresidencial. É-o porque


reúne as duas características que, em conjunto, definem o semipresidencialismo:
i) Existência de um Presidente da República dotado de uma legitimidade democrática que
lhe dá a possibilidade de exercício de poderes políticos significativos;
ii) Existência de responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República.

A) A posição do Presidente da República no sistema político


A possibilidade de exercer poderes significativos do Presidente da República quer dizer
que esse órgão tem a possibilidade de um exercício livre e autónomo das competências que
lhe são atribuídas pela Constituição, que possuem um alcance capaz de influenciar
substancialmente o curso normal da vida política. E o PR tem a possibilidade de exercer
efetivamente esses poderes porque eles lhe foram atribuídos pela Constituição, mas
principalmente porque recolheu a legitimidade democrática indispensável ao seu exercício.
 O Presidente da República português é eleito diretamente pelo Povo para um mandato de
cinco anos (limitado a uma reeleição consecutiva), através de um sistema eleitoral que lhe
garante, no mínimo, o apoio manifesto da maioria dos eleitores que expressarem
validamente o seu voto (a Constituição não considera válidos, para este efeito, os votos
brancos – art. 126º/1). Assim, se numa primeira volta nenhum dos candidatos alcançar uma
maioria absoluta, realiza-se necessariamente uma segunda volta entre os dois candidatos
mais votados, o que assegura que o PR venha a ser eleito com o apoio expresso daquela
maioria qualificada dos cidadãos que tenham participado na eleição.
 É certo que grande parte dos poderes significativos que o PR português pode exercer
corresponde à tradicional enumeração dos poderes atribuídos aos chefes de Estado
honoríficos dos sistemas parlamentares. Todavia, a legitimidade democrática que tem o PR
português, tão ou mais forte que a da AR, como qualquer Presidente em
semipresidencialismo, permite-lhe exercer, efetivamente, todos os poderes que a
Constituição lhe atribuí19. Por isso, o PR português pode praticar atos como a dissolução da
AR, mesmo que contra a vontade do Governo ou de uma maioria parlamentar.

19
Ver páginas 56-58 – princípio da legitimidade democrática na interpretação constitucional

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Baltazar Oliveira

Numa formulação praticamente copiada da Constituição francesa, a Constituição da


República Portuguesa estabelece no seu artigo 120º que “o Presidente da República representa
a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular
funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das
Forças Armadas.”
A Constituição atribui ao PR um conjunto de poderes nos seguintes domínios:
relativamente a outros órgãos (art. 133º), na prática de atos próprios (134º), no domínio das
relações internacionais (135º), em situações de emergência, de necessidade, ou de exceção
constitucional (138º). São estes alguns dos poderes do Presidente da República, ainda alguns
sejam condicionados:
 Dissolução da Assembleia da República e das Assembleias Legislativas das R.A; condicionantes:
o Temporais – não é permitida a dissolução nos seis meses seguintes às eleições para a
respetiva assembleia ou nos últimos seis meses do mandato do PR;
o Circunstanciais – não é permitida a dissolução em estado de sítio ou de emergência;
o Audição do Conselho de Estado e dos partidos representados na respetiva Assembleia.

 Nomeação do Primeiro-Ministro;
o em função dos resultados eleitorais, e ouvidos os partidos representados na Assembleia
da República (condicionantes não sujeitas a qualquer controlo para além da eventual
sanção política do eleitorado).
 Nomeação e exoneração dos restantes membros do Governo;
o Sob proposta do Primeiro-Ministro.

 Demissão do Governo;
o Ouvido o Conselho de Estado, e apenas se tal for necessário para garantir o regular
funcionamento das instituições democráticas – condicionante substancial, mas não
sujeita a qualquer controlo que não seja a eventual sanção política do eleitorado.
 Promulgação ou veto dos atos legislativos e dos decretos regulamentares e assinatura ou veto
de outros atos normativos;
o O veto é definitivo em relação aos diplomas aprovados pelo Governo; mas é suspensivo
para os da Assembleia da República. Para ser superado é necessária uma confirmação
parlamentar por maioria absoluta ou, no caso de diplomas mais importantes, uma
maioria qualificada de dois terços.
 Ratificação e assinatura das convenções internacionais, com a possibilidade de recusa de tais
atos.

 Iniciativa de fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade junto do TC.


 Nomeação e exoneração de altas figuras do Estado, como as altas chefias militares, o Presidente
do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República e os embaixadores;
o Sob proposta do Governo.

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Baltazar Oliveira

 Nomeação e exoneração dos Representantes da República nas Regiões Autónomas;


o Ouvido o Governo.
 A convocação do referendo e possibilidade de recusa de convocação que lhe seja proposta por
Governo ou pela Assembleia da República;
o A convocação depende da iniciativa do Governo ou da AR.
 Envio de mensagens à Assembleia da República ou às Assembleias Legislativas regionais.
 Comando supremo das Forças Armadas.
 Nomeação de membros do Conselho de Estado e do Conselho Superior da Magistratura.
 Presidência do Conselho de Ministros;
o Apenas a solicitação do Primeiro-Ministro;
 Marcação das eleições para o Presidente da República, para a Assembleia da República e para
o Parlamento Europeu.

 Declaração do estado de sítio e de emergência;


o Autorização da Assembleia da República e audição do Governo.
 Declaração de guerra e a feitura de paz;
o Proposta do Governo, autorização da AR e audição do Conselho de Estado.

A existência jurídica de alguns atos do PR depende da posterior referenda ministerial


(confirmação governamental), como a promulgação das leis. Todavia, à luz da natureza do
nosso sistema de governo semipresidencial, este requisito deve ser entendido como uma mera
formalidade, sob pena de inversão radical da distribuição constitucional dos poderes. De outra
forma, estar-se-ia a conferir ao Governo a última e decisiva palavra no domínio da função
legislativa, sobrepondo-se à Assembleia da República.

Não obstante os condicionamentos apresentados, praticamente todos os poderes


importantes do Presidente da República são de exercício livre, autónomo e substancialmente
incondicionado, como acontece com o poder presidencial de dissolução da AR, com os poderes
de nomeação e demissão do Governo, com o poder de veto, e muitos outros. Também os
poderes informais ou “poderes de influência” que o PR exerce quotidianamente, como o
contacto direto com as populações, as mensagens, os discursos ou os encontros semanais com
o Primeiro-Ministro têm grande impacto na vida política.

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Baltazar Oliveira

O poder presidencial de dissolução da Assembleia da República


O poder presidencial de dissolução da Assembleia da República é o poder de
interromper a legislatura em curso, no tempo e circunstâncias pelo Presidente escolhidas, e
marcar novas eleições legislativas. Pode alterar a maioria do Governo no poder e, com isso,
inverter abrupta e radicalmente o curso da vida política nacional. O Presidente da República
português pode exercer o poder de dissolução de forma livre, autónoma e materialmente
incondicionada, como, de facto, o tem feito repetidamente ao longo da nossa história recente.
Por vezes, exerce-o contra a vontade expressa da maioria parlamentar, mesmo quando essa
maioria seja absoluta, estável, e queira continuar a governar. As várias forças políticas
conhecem o pontencial impacto do poder presidencial de dissolução, e sabem que por isso não
podem desconsiderar a vontade do Presidente. Assim, o poder de dissolução vem potenciar o
peso dos restantes poderes presidenciais20.
Em várias situações ocorreram dissoluções não forçadas em que o Presidente da
República dissolveu a AR por vontade própria (e não porque foi forçado a isso, por exemplo,
pela perda de confiança de um Governo na AR) e em que houve uma alteração radical da
composição do Parlamento, originando-se Governos distintos dos anteriores. Recordemos
quatro episódios ocorridos com três Presidentes e, portanto, não algo que possa ser
configurado como uma intervenção pontual, mas sim como um padrão de comportamento:
i) Em 1983, após a queda do segundo Governo Balsemão, da AD (PSD/CDS), a mesma
maioria absoluta na AR queria formar um novo Governo liderado por Vítor Crespo. O
Presidente Ramalho Eanes dissolveu a AR mesmo contra a maioria dos deputados e do
Conselho de Estado. Após as eleições seguintes, entrou em funções o Governo do bloco
central (PS/PSD), liderado pelo PS de Soares.
ii) Em 1985, Cavaco Silva, chegado à liderança do PSD, rompe com o governo do bloco
central. Eanes dissolveu a AR e o Governo do bloco central foi substituído por um
Governo minoritário do PSD, de Cavaco Silva, com o apoio de CDS e PRD. O Partido
Renovador Democrático, o novo partido presidencial de Eanes, conseguiu um resultado
notável de cerca de 18% (embora viesse a desaparecer em poucos anos).
iii) Em 1987, formou-se na AR uma maioria parlamentar (PS/PRD/PCP) que aprovou uma
moção de censura contra o primeiro Governo Cavaco Silva (PSD, inicialmente apoiado
por CDS e PRD). Essa maioria parlamentar dispôs-se a formar Governo, mas o Presidente
Mário Soares optou por dissolver a AR. Após as eleições, o PSD formou o segundo
Governo Cavaco Silva, desta vez maioritário.
iv) Em 2004, o Governo Santana Lopes (PSD/CDS) dispunha de uma maioria parlamentar
sólida, mas mesmo assim o Presidente Jorge Sampaio dissolveu a AR, contra a vontade
expressa da maioria dos deputados. Com as eleições de 2005, entrou em funções um
Governo maioritário do PS de José Sócrates.

20
Ver páginas 98-101 – poder presidencial de dissolução em semipresidencialismo

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B) A responsabilidade do Governo perante a Assembleia da República


A responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República resulta do
facto de o Governo sair da AR, das eleições legislativas, o que significa que a AR pode pedir
contas ao Governo sobre a execução do seu Programa ou sobre a forma como conduz a política
nacional, mas sobretudo, que a AR pode demitir o Governo por razões de discordância política
(i) rejeitando o seu Programa do Governo, (ii) aprovando uma moção de censura ou (iii) não
aprovando uma moção de confiança.

i) Rejeição do Programa do Governo:


 Na formação do Governo, o artigo 187º da Constituição exige que o Presidente da
República nomeie o Governo “tendo em conta os resultados eleitorais”. Apesar do texto
constitucional não ser inequívoco neste aspeto, o melhor entendimento deste requisito
será o que considera tratar-se, em primeira linha ou, até, exclusivamente, dos
resultados eleitorais para a AR ou, mais rigorosamente, da composição da AR.
 De facto, como a subsistência do Governo depende da vontade do Parlamento, de nada
adentará ao Presidente da República nomear um Governo que tenha a oposição de uma
maioria parlamentar. É esta a análise que o PR deve fazer quando nomeia um Governo,
e não, como se ouve frequentemente, nomear o líder do partido mais votado.
 Nomeado pelo PR, o Governo tem de apresentar o seu programa à AR, embora o
programa não tenha de ser aprovado, nem sequer de ser votado (uma especificidade
do sistema português). O objetivo é facilitar a entrada em funções de Governos
minoritários, isto é, de Governos que não têm o apoio de uma maioria parlamentar
absoluta. Tal significa que, na prática, o programa só é votado pelo Parlamento se a
oposição apresentar uma moção de rejeição do programa ou se o Governo solicitar um
voto ou de confiança (art. 192º).
 Ainda no sentido de facilitar a passagem dos governos minoritários no Parlamento, o
programa só se considera rejeitado (e o Governo consequentemente demitido – art.
195º/1) se a moção de rejeição obtiver o voto favorável da maioria absoluta dos
deputados em efetividade de funções. Já na não aprovação de um voto de confiança,
independentemente do número de votos, o Governo não passa.

ii) Aprovação de uma moção de censura ou (iii) não aprovação de uma moção de confiança:
 Admitindo que o Governo passa na AR, a dependência parlamentar do executivo
mantém-se, através da possibilidade de aprovação de uma moção de censura por
iniciativa da AR (aprovada pela maioria absoluta dos Deputados em efetividade de
funções), ou da não aprovação de uma moção de confiança apresentada pelo Governo
(que fica destituído essa moção não for simplesmente aprovada).

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Logo, desde o início de funções, e ao longo de todo o mandato, o Governo depende


sempre da confiança política da Assembleia da República, o que acaba por condicionar, não
apenas a relação Governo/Parlamento, mas os próprios poderes presidenciais, relativamente
a ambos os órgãos. Assim, o funcionamento do sistema de governo português, como é típico
em semipresidencialismo, é determinado por três centros de poder – Presidente da República,
Governo e Assembleia da República. Tal quer dizer que, na nomeação do Governo, e ao longo
de toda a legislatura, o PR tem de ter em conta a composição da AR e a vontade da maioria
parlamentar. Desta forma, os próprios poderes presidenciais relativos à AR, como é o poder de
veto, diminuem ou aumentam consoante existe ou não uma maioria parlamentar absoluta que
se oponha à vontade do Presidente.

C) Conclusão
Considerar o sistema de governo português parlamentar, ou um parlamentarismo
racionalizado, como alguns fazem, seria um absurdo, pois nunca nesses sistemas seria possível
o Presidente da República exercer poderes políticos significativos, como o poder de dissolução,
de forma livre e autónoma, mesmo que, em parlamentarismo, a Constituição atribua ao PR
esses poderes de forma meramente formal e simbólica.
Também podemos concluir que o sistema de governo português não é presidencial, já
que, ao contrário do que acontece em presidencialismo, (i) o Parlamento pode ser destituído
pelo chefe de Estado e (ii) o Governo responde politicamente perante o Parlamento, não
apenas no mero sentido de que tem de prestar contas ao Parlamento – essa necessidade de
prestar contas existe em qualquer sistema democrático – mas no sentido de que o Parlamento
pode destituir o Governo ou impedi-lo de iniciar as suas funções.
Como explicado, o Presidente da República português é eleito por sufrágio popular e
pode exercer poderes significativos, e o Governo depende politicamente do Parlamento. Assim,
o nosso sistema de governo é um semipresidencialismo.

Ainda assim, cabe olhar às críticas a essa designação21. Para REIS NOVAIS, recusar a
qualificação de semipresidencialismo revela razões de pura discussão terminológica – como
fazem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, que se referem ao sistema português como
sistema “parlamentar, mas com componente presidencial”, “misto parlamentar/presidencial”
ou até como “o chamado semipresidencialismo” – ou de ignorância – como fazem alguns
autores estrangeiros, nomeadamente SARTORI.

21
Ver páginas 83 e 93-95 – designação do semipresidencialismo; definição de semipresidencialismo

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2. A FORMAÇÃO DA MATRIZ PORTUGUESA DE SEMIPRESIDENCIALISMO

A) Origem da estrutura jurídico-constitucional semipresidencial


Em grande medida, a origem do semipresidencialismo português deve-se à opção pela
eleição popular direta do Presidente da República, motivada pela aspiração do Povo à
democracia e à liberdade e pela ânsia de participação política, inexistentes no Estado Novo.
 Para alguns autores, a eleição direta do PR no período pós-ditatorial parece estranha, já
que a eleição poderia constituir um perigo de um novo autoritarismo individual. O episódio
Sidónio Pais (1918), com a associação de um projeto pessoal autoritário e a instituição da
eleição direta do PR, ilustra bem a força de atração entre as duas variantes. Porém, diversos
fatores levam a que se considere natural a adoção da eleição popular direta do PR após a
Revolução de Abril.
 Em primeiro lugar, havia a memória da eleição presidencial a que concorreu Humberto
Delgado (1958), o ponto alto da luta democrática contra a ditadura. Recuperava-se o ideal
da oposição democrática de eleição popular do PR. (Quando Humberto Delgado concorreu
às eleições presidenciais elas eram diretas. Com a eleição de 1958, fez-se uma revisão
constitucional que as tornou indiretas, passando o PR a ser escolhido por um colégio
eleitoral politicamente domesticado.)
 Em segundo, a escolha indireta do PR no Estado Novo, após 1958, associa esse órgão à sua
inutilidade, já que o seu titular era escolhido, na prática, pelo Presidente do Conselho de
Ministros. O Presidente da República tinha, durante o Estado Novo, uma má imagem, sendo
apelidado de “corta-fitas”. Assim, a eleição direta do PR surge como contraponto à
arquitetura constitucional do regime anterior, e vem dar resposta à ânsia de participação
política popular.
 Estabelecida a eleição direta do PR, o sistema de governo só podia ser um
semipresidencialismo. Dada a natureza do sistema partidário dos países europeus,
sobretudo dos países da Europa ocidental (disciplina partidária e diferenças ideológicas), o
presidencialismo não é viável. A eleição direta do Presidente da República, que lhe confere
uma posição de topo na hierarquia do Estado, não faria sentido num sistema parlamentar.

Não havia, à partida, uma ideia fixa sobre o sistema de governo a adotar na nova
Constituição. Entre abril de 1974 e novembro de 1975 (PREC), tudo estava em aberto: era um
período de instabilidade, de dualidade do poder e de confronto de diferentes projetos políticos
para o futuro, radicalmente opostos.
 O Programa do MFA (Movimento das Forças Armadas), primeiro documento constitutivo
do regime revolucionário, veio consagrar a eleição direta do Presidente da República.
 Contrariamente, a primeira Plataforma de Acordo Constitucional (I Pacto MFA/Partidos), de
em abril de 1975, optou pela eleição indireta do PR, por um colégio eleitoral composto
pelos membros da Assembleia do MFA e da Assembleia Legislativa. Compreende-se que,

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Baltazar Oliveira

numa fase de euforia revolucionária não se atribuísse a uma pessoa singular a


representação da República.
 O I Pacto MFA/Partidos instituía também a dupla responsabilidade do Governo perante a
Assembleia Legislativa e o Presidente da República. Esta ideia de dupla responsabilidade
permaneceu ao longo dos anos como um dos traços pretensamente identificadores do
nosso sistema de governo, havendo ainda hoje quem a considere, erradamente,
característica definidora do mesmo.
 Com o 25 de novembro de 1975 foram afastados os caprichos de arquitetura constitucional
revolucionaria de um Estado de poder popular e o bloco vencedor convergiu na construção,
bem-sucedida, de uma democracia representativa de tipo ocidental, ainda que com grande
presença dos militares no poder político.
 A Segunda Plataforma de Acordo Constitucional (II Pacto MFA/Partidos) celebrada em
fevereiro de 1976, quando a Assembleia Constituinte já estava em funcionamento (tinha
sido eleita a 25 de abril de 1975), consagrou o modelo, de compromisso entre partidos, de
dupla responsabilidade política do executivo do I Pacto, juntando-lhe de novo a eleição
popular direta do PR. Foi um acordo político fundador do nosso sistema semipresidencial,
que consagrou o sistema de governo semipresidencial na Constituição que entrou em vigor
a 25 de abril de 1976.

B) Origem da matriz portuguesa de semipresidencialismo


Estabelecido o sistema de governo, não estava claro, nem a Constituição o podia
determinar, que espécie de semipresidencialismo se desenvolveria em Portugal.
Quando falamos em semipresidencialismo as relações Governo/Parlamento são
idênticas às que ocorrem em parlamentarismo, logo o que interessa para determinar a
modalidade de funcionamento prático do nosso semipresidencialismo é o Presidente da
República22. É no plano dos poderes, natureza e intervenção do Presidente da República que
podemos distinguir os vários semipresidencialismos (porque também é nesse plano que reside
a diferença entre os sistemas semipresidencial e parlamentar). Por exemplo:
 Entre 1976 e 1979, sob a Presidência Ramalho Eanes, tivemos governos minoritários e,
excecionalmente, um governo de coligação maioritária, tal como tivemos, entre 1996 e
2004, sob a Presidência Jorge Sampaio, governos minoritários e, excecionalmente,
governos de coligação maioritária. Todavia, o funcionamento do nosso sistema de
governo foi completamente distinto num e no outro período.
 Também tivemos, entre 1987 e 1995, dois Governos Cavaco Silva, monopartidários
maioritários. E o sistema funcionou de forma muito diferente no período 1987/1991
(1º mandato do Presidente Soares) e no período 1991/1995 (2º mandato Soares).

22
Ver páginas 96-97 – os poderes do Presidente na definição do semipresidencialismo

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Baltazar Oliveira

Naturalmente, os primeiros anos são decisivos na formação do padrão de


funcionamento de qualquer sistema de governo. Em Portugal, os primeiros anos foram
particularmente importantes porque a população não tinha memória de uma experiência
democrática, dada a brevidade e as vicissitudes da democracia da Primeira República, e o longo
período de ditadura que se viveu durante o Estado Novo.
Assim, a atuação do primeiro Presidente da República, o General Ramalho Eanes, foi
determinante para a consolidação do que é a matriz portuguesa de semipresidencialismo.
Noutras circunstâncias, o nosso sistema de governo poderia ter evoluído para algo muito
diferente do que é hoje.
O sistema veio a consolidar-se com um Presidente da República garante, regulador,
moderador, suprapartidário, num padrão típico de funcionamento no que deu origem à matriz
portuguesa de semipresidencialismo.

Cabe agora entender porque o sistema de governo português não se consolidou no


sentido de uma das duas matrizes de semipresidencialismo que existiam à época.
 Não se consolidou no sentido da matriz francesa porque, logo no primeiro ano do sistema
de governo português, o Presidente adquiriu uma dimensão suprapartidária, que contrasta
com o Presidente militante francês, a principal figura do regime, que toma partido, lidera
uma força política, tem um programa de governo e concorre a eleições (PONTO C).
 Em contrapartida, nada garantia que os primeiros anos não gerassem uma evolução no
sentido das experiências semipresidenciais de tipo austríaco, com um Presidente apagado,
cerimonial, não interveniente, com a condução da vida política a ser gerida pelos polos
Governo e Parlamento. Contudo, entre 1976 e 1982, o Presidente Eanes empurrou o
Presidente da República para uma posição ativa, interventiva e influente (PONTO D).

C) O primeiro ano – Presidente suprapartidário


Logo no primeiro ano de vigência da nova Constituição fez-se a primeira eleição
democrática do Presidente da República e aí confluíram três fatores que condicionaram
decisivamente a natureza futura da matriz portuguesa de semipresidencialismo, no sentido de
um PR suprapartidário:
i) O Presidente da República Ramalho Eanes era um militar;
ii) Ramalho Eanes acumulou os cargos de PR e de Chefe do Estado-Maior General das
Forças Armadas;
iii) A candidatura presidencial de Ramalho Eanes foi nacional e suprapartidária.

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i) O PR é militar – a cláusula militar implícita


Para alguns autores, haveria no II Pacto MFA/Partidos e na versão originária da
Constituição uma “cláusula militar implícita”, não escrita, mas eventualmente tida como
vinculativa, segundo a qual o primeiro Presidente da República deveria ser um militar. Seria um
compromisso entre Conselho da Revolução e Partidos que valia pelo período de transição que
se prolongaria até à primeira revisão constitucional (a realizar na segunda legislatura, após
1980). Nesse período de transição, enquanto as duas legitimidades – revolucionário-militar e
democrática – convivam, o Conselho da Revolução subsistia constitucionalmente como
instância de arbitragem e garantia da integração das Forças Armadas no sistema político.
Só após 1980 se elegeriam um novo PR e uma nova AR, com poderes de revisão
constitucional, e terminaria o ciclo revolucionário. A partir daí ocorreria o “regresso dos
militares aos quarteis”, seria extinto o Conselho da Revolução e redistribuídos os seus poderes.
O PR, eleito por sufrágio universal e direto, teria uma legitimidade democrática
indiscutível, merecendo o assentimento dos setores políticos mais adversos à intervenção
militar-revolucionária, por facto dessa legitimidade democrática. Por outro lado, sendo
Comandante Supremo das Forças Armadas, sendo militar, e sendo um dos vencedores do 25 e
novembro de 1976, o Presidente da República beneficiaria também do assentimento dos
militares, no exercício dessas funções de pacificação e subordinação dos militares ao poder
político democrático.
A partir do momento em que o Presidente era um militar, provavelmente haveria uma
não partidarização do cargo, ou seja, como militar, o PR deveria manter-se alheio à luta político-
partidária. O cariz de um Presidente não militante, não partidariamente empenhado,
característica fundamental da matriz portuguesa de semipresidencialismo, teria aí, em parte, a
sua origem. Apesar disso, nos primeiros anos de formação da matriz francesa de
semipresidencialismo, também o General De Gaulle, eleito Presidente da República, era um
militar, e não foi por isso que deixou de ser partidariamente empenhado.

ii) O PR acumula o cargo presidencial com o de Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas
Ramalho Eanes, um dos protagonistas do 25 de novembro de 1976, era Chefe de
Estado-Maior General do Exército quando foi escolhido como candidato presidencial, com o
apoio implícito do Conselho da Revolução. Esta circunstância já reforçava a ideia de um perfil
de independência partidária e de isenção política. Mas para além disso, já Presidente da
República, Eanes aceitou ser nomeado pelo Conselho da Revolução Chefe de Estado-Maior
General das Forças Armadas (CEMGFA), cargo que abandonaria em 1981. Dava continuidade à
opção do seu predecessor no cargo de PR provisório (não eleito), o General Costa Gomes, que
sendo CEMGFA, só aceitou a nomeação como PR se pudesse acumular os dois cargos. Para
JORGE MIRANDA, esta foi uma acumulação de cargos feita à margem da Constituição, mas
tolerada na perspetiva de assegurar uma subordinação das Forças Armadas ao poder político
democrático. A acumulação do cargo de CEMGFA exigiria um dever reforçado de isenção e
apartidarismo, já que o chefe das Forças Armadas não poderia tomar partido em questões
partidárias.

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iii) Candidatura presidencial nacional e suprapartidária


O principal fator que determinou a posição suprapartidária de Ramalho Eanes pode ser
explicado pelo facto de a sua candidatura ter surgido não como iniciativa de um partido, mas
como uma candidatura nacional, da democracia e da Constituição. Eanes era apoiado pelo
Conselho da Revolução e por todos os partidos vencedores do 25 de novembro. Era o candidato
do principal partido da esquerda (PS) e dos da direita (PPD e CDS), o candidato do Governo e
da oposição, o candidato dos dois partidos que marcaram até hoje a alternância democrática
no exercício do poder (PS e PSD). Por outro lado, a maioria presidencial que elegeu Eanes não
subsistiu após as eleições presidenciais de 1976. Assim, uma intervenção presidencial
partidariamente ativa ficou, à partida, excluída.

Concluindo, é certo que nenhum dos três fatores apresentados determina uma
consequência necessária de atuação presidencial suprapartidária, mas a sua combinação
construiu uma lógica nacional e despartidarizada de atuação presidencial que nunca mais se
perderia. Cumprir o mandato conferido pelos eleitores deveria ser respeitar essa lógica; e
qualquer atuação a favor de uma força política seria defraudar o mandato recebido. Assim, a
matriz portuguesa de semipresidencialismo, e a existência de um Presidente da República
“Presidente de todos os portugueses”, não partidariamente empenhado, que pauta a sua
atuação pelo interesse nacional, que funciona com plena independência das eleições
parlamentares e dos seus resultados, ficou originalmente pré-definida com a eleição
presidencial de 1976.

D) Os primeiros anos – Presidente interveniente


Como foi dito, nada garantia que os primeiros anos não gerassem uma evolução no
sentido das experiências semipresidenciais de tipo austríaco, com um Presidente apagado,
cerimonial, não interveniente, com a condução da vida política a ser gerida pelos polos Governo
e Parlamento. Contudo, alguns fatores vieram determinar um sentido diferente para a evolução
do nosso semipresidencialismo, empurrando o PR para uma posição ativa e influente.
 Entre esses fatores conta-se a personalidade do general Ramalho Eanes. O aspeto da
personalidade do PR tem uma grande relevância em semipresidencialismo. Em
parlamentarismo mesmo que o PR queira, não pode; em presidencialismo o PR pode e tem
de querer; em semipresidencialismo o PR pode, e pode querer ou não querer; a sua atuação
deve apenas corresponder à ideia que o eleitorado tinha em mente quando o elegeu. Ora,
podendo, Ramalho Eanes também queria.
 Outro importante fator terá sido a ausência de uma maioria parlamentar absoluta (fruto
das eleições de 1976) nos primeiros anos da vigência da Constituição (1976-1979). Se o
Parlamento não encontrou sozinho uma solução governativa sólida e estável, o PR foi
chamado a intervir. É verdade que com as eleições legislativas de 1979 e 1980 sucederam
governos de apoio maioritário sólido da Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM). E em 1983

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surgiu o bloco central (PS/PSD), também com maioria absoluta. Porém, o ativismo de Eanes,
o perfil interveniente do Presidente da República e a matriz portuguesa de
semipresidencialismo sobreviveram a essas maiorias absolutas.

A matriz portuguesa de semipresidencialismo foi-se construindo, ao longo dos anos de


formação, através de um processo de padronização de comportamentos e correspondente
assentimento/rejeição por parte do eleitorado. REIS NOVAIS distingue três marcos fundadores
do semipresidencialismo português que confirmam um Presidente da República ativo e
interveniente, afastando o nosso sistema da matriz austríaca de semipresidencialismo.
i) A demissão presidencial do II Governo Constitucional (de Mário Soares) em 1978;
ii) A reeleição do Presidente Ramalho Eanes em 1980;
iii) A guerrilha institucional e a revisão Constitucional de 1982.

i) Demissão do II Governo Constitucional


Em 1978 o Presidente Ramalho Eanes demitiu o II Governo Constitucional (PS/CDS). Os
ministros do CDS tinham abandonado o Governo, mas o PM Soares queria reconstruir o
executivo e confirmar o apoio parlamentar a uma nova solução governativa. O PR recusou essa
hipótese e demitiu o Governo contra a vontade de Soares.
A demissão do II Governo Mário Soares suscitou uma dúvida constitucional acerca dos conceitos
demissão/exoneração. PS e Soares defendiam que o poder presidencial de exoneração do PM era um poder
formal, meramente concretizador da anterior decisão tomada pelo Parlamento (o Presidente só podia exonerar o
Governo se esse perdesse expressamente o apoio parlamentar). Eanes sustentava que o PR tinha o poder, livre e
autónomo, de exonerar o PM, independentemente da vontade do Parlamento. A interpretação de Eanes valeu.
Foi a primeira vez que ficou clara a existência do princípio da legitimidade democrática em interpretação
constitucional23 subjacente a um sistema semipresidencial. Um Presidente da República eleito por sufrágio
universal e direto tem a legitimidade democrática que lhe permite exercer, efetivamente, e não apenas
formalmente, os poderes que a Constituição lhe atribuí. A revisão de 1982 veio depois distinguir os conceitos de
exoneração e de demissão.

Eanes afirmou o Presidente da República como um polo de poder político, evidenciando


que o nosso PR não é um Presidente simbólico ou cerimonial. Pela primeira vez (numa prática
depois sucessivamente reiterada) o Presidente deu uso à prerrogativa presidencial de avaliação
da viabilidade dos Governos, que veio a constituir o eixo principal da intervenção política
autónoma do Presidente português.
De seguida, e à margem da intervenção direta dos partidos com representação
parlamentar, Eanes nomeou três Governos de iniciativa presidencial, entre 1978 e 1979. O
primeiro, liderado por Nobre da Costa, um tecnocrata sem experiência política ou partidária,
não chegou a passar na AR. O segundo governo de iniciativa presidencial teve como PM Mota

23
Ver páginas 56-58 – princípio da legitimidade democrática na interpretação constitucional

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Pinto, um dissidente do PSD (algo que foi visto como uma provocação a Sá Carneiro). O terceiro
foi chefiado por Maria de Lourdes Pintasilgo (que tinha o objetivo de preparar as eleições). A
tensão que se verificou entre o Presidente Eanes e os líderes partidários Sá Carneiro e Soares
deveu-se também à instabilidade que o insucesso dessas experiências criou.

ii) Reeleição de Eanes em 1980


O segundo marco fundador do sistema semipresidencial português foi a reeleição de
Ramalho Eanes em 1980, com a derrota da estratégia de Sá Carneiro de alteração do sistema
político-constitucional no sentido de um semipresidencialismo austríaco.
As maiorias absolutas alcançadas pela AD nas eleições intercalares de 1979, e nas
legislativas de outubro 1980 mudaram profundamente as relações entre PR e Governo.
 Pela primeira vez havia uma maioria parlamentar absoluta estável, que deu origem a um
Governo anti-Presidente. A Aliança Democrática apresentou um candidato próprio às
eleições presidenciais, com o objetivo de derrotar Eanes: o General Soares Carneiro, que se
candidatou sob o lema “um Governo, uma maioria, um Presidente”.
 Confortável com as duas maiorias absolutas da AD, Sá Carneiro radicalizou o discurso anti-
Eanes, o alvo a abater, imputando-lhe um projeto pessoal anti-partidos e uma intenção de
destruir o PSD, e apostou tudo na eleição presidencial de dezembro 1980. Os líderes da AD
(Sá Carneiro, do PSD e Freitas do Amaral, do CDS) forçavam as divergências ao extremo,
anunciando que se demitiriam do Governo e que não aceitavam a recondução se Eanes
fosse reeleito. Se os portugueses queriam manter a AD no Governo, não podiam reeleger
Ramalho Eanes. Após a reeleição de Eanes, Freitas do Amaral, carismático líder do CDS, não aceita
integrar o novo Governo da AD, liderado por Balsemão. Só depois da queda do segundo Governo
da AD (primeiro Governo Balsemão), Freitas aceita voltar ao executivo.
 Estava em causa a profunda revisão constitucional que Sá Carneiro tinha em mente,
especialmente no domínio económico, já que o Governo da AD tinha sido muito limitado
por limites jurídicos da Constituição (ainda muito definida ideologicamente à esquerda) e
pelo Conselho da Revolução, que considerava inconstitucionais alguns projetos da AD,
nalguns casos enquanto a própria comissão constitucional dava parecer favorável.
 Mas uma revisão constitucional tem de ser aprovada por uma maioria de dois terços, ou
seja, o PSD tinha de ir ao encontro do Partido Socialista. O PS estava, contudo, alinhado
com o essencial da Constituição. Sá Carneiro tenta então o “golpe de mágica” do referendo
constitucional, que não estava, nem está, previsto na Constituição como mecanismo de
revisão. Seria uma inconstitucionalidade grave e manifesta, que Sá Carneiro justificava com
o respeito pela vontade popular e pela democracia, sob a retórica de uma Constituição
democrática contra uma Constituição marxista. Depois, era necessário que o PR
submetesse o projeto a referendo e promulgá-lo (inconstitucionalmente). Por isso, o
referendo constitucional era o essencial do programa de Soares Carneiro. O assentimento
que Soares Carneiro dava ao lema “um Governo, uma maioria, um Presidente” e a uma
estratégia inconstitucional, refletia o esvaziamento que o órgão Presidente da República

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iria ter e a posição de subordinação relativamente ao PM a que se iria submeter. A sua


eleição significaria o aborto do processo de formação da matriz portuguesa de
semipresidencialismo e um encaminhamento no sentido da matriz austríaca.

A reeleição de Ramalho Eanes significou a manutenção do sistema de governo como


estava a ser configurado, com um perfil interventivo do Presidente da República, pois veio
provar que não era apenas a ausência de uma maioria parlamentar/governamental sólida que,
entre 1976 e 1979, abria espaço à intervenção presidencial.
 Estava em causa, nas eleições presidenciais de 1980, o futuro do sistema de governo
português, o que tornou notável a vitória de Eanes à primeira volta, tendo em conta as três
grandes vitorias eleitorais da AD (umas eleições autárquicas e duas maiorias absolutas em
legislativas); a intensa oposição por parte da AD; a recente morte do seu líder, Sá Carneiro;
e as fragilidades do PS, enfraquecido pelos maus resultados eleitorais e pelas divergências
entre a direção do partido e o seu líder. Mário Soares tinha suspendido o seu mandato como
Secretário-geral do PS devido à recusa da direção do PS em não apoiar Eanes, na sucessão das
declarações em que o Presidente disse identificar-se com o programa da AD.
 Vendo-se envolvido numa guerrilha institucional com os partidos e os Governos da AD,
Eanes vê, na sua reeleição, o eleitorado a caucionar o seu ativismo e a legitimar o perfil do
Presidente da República interventivo, como terceiro polo de exercício efetivo de poder
político. Mesmo contra uma maioria que se opunha ativamente a Eanes, acusando-o de
foco de instabilidade e fonte dos males da democracia portuguesa, o PR conseguiu ser
reeleito, por um eleitorado que legitimou a presença de um PR interventivo.

Vitorioso em 1980, Eanes ganha um novo folgo para se contrapor à hostilidade da AD,
agora enfraquecida pela derrota nas eleições presidenciais e pela trágica morte do seu líder.
 O Presidente denuncia os perigos de concentração de poderes que se abrigavam no lema
“um Governo, uma maioria, um Presidente” e exalta as virtualidades constitucionais de uma
não consonância entre maioria parlamentar e Presidente da República.
 Os anos que se seguem ficam marcados pela guerrilha institucional entre Eanes e a AD, com
inúmeros episódios de disputa pessoal e política, inclusivamente em torno da atuação do
Conselho da Revolução e da fiscalização da constitucionalidade, no uso de vetos, alguns
“vetos de bolso”, disputas na política externa, nas visitas de Estado, nas relações com as
Forças Armadas, nas audiências presidenciais a sindicalistas em greve, no domínio
legislativo ou em controvérsias politicamente simbólicas, por exemplo, nas comemorações
do 25 de abril. A desconfiança e tensão entre Eanes e Balsemão chega ao ponto de o PR
pedir que as conversas de quinta-feira entre os dois passem a ser gravadas para evitar
duplicidades de interpretação do que foi dito.
 Neste quadro, Eanes desenvolve as virtualidades políticas de um poderoso novo canal de
contacto direto com as populações, que continuará a ser sistematicamente utilizado por
todos os Presidentes. Esse contacto era feito através de discursos e comunicações ao país

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e de viagens pelo território a convite de autarcas, através dos quais um PR pode reforçar a
sua imagem e implantação nacional, contactando com os notáveis locais e a sociedade civil.
O ónus pela não satisfação das aspirações ou das promessas é normalmente imputado ao
Governo a quem um Presidente não executivo se vê obrigado a endossar as reclamações.
 Eanes adota um discurso anti-centralista e anti-partidos contra a classe política de lisboa e
o monopólio dos partidos políticos, e a favor da regionalização, que ensaiava o que poderia
vir a ser o registo de um futuro partido presidencial que, desde 1979 (com a nomeação de
Nobre da Costa para PM), pairava como ameaça sobre o sistema partidário.

iii) A guerrilha institucional e a revisão constitucional de 1982


Perante a reeleição de Eanes, a maioria AD/PS (de que Soares retomara o controlo)
orienta a guerrilha institucional para um teatro de operações desfavorável ao Presidente da
República, o da revisão constitucional, que o PR é obrigado a promulgar. Tendo falhado o
projeto de profunda revisão constitucional no campo económico, com a estratégia do
referendo constitucional de Soares Carneiro, a revisão orienta-se agora para a o sistema de
governo. Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral têm agora o objetivo de, como acerto
de contas, reduzir os poderes e o estatuto presidencial do Presidente da República.

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3. A REVISÃO CONSTITUCIONAL DE 1982

A) Contexto
Com o início da II legislatura, em outubro de 1980, a Assembleia da República adquire
os poderes de revisão constitucional e o processo de transição determinado pelo II Pacto
MFA/Partidos, termina, extinguindo-se o Conselho da Revolução e pondo termo à presença das
Forças Armadas na vida política. Contra entendimentos que consideravam que a Constituição
de 1976 tinha instituído um regime de ditadura militar, cumpriu-se o compromisso de transição
celebrado entre militares e partidos. A presença dos militares na vida política do pós-25 de Abril
não foi algo unilateralmente imposto à sociedade, mas a modalidade de transição que a
sociedade escolheu através da mediação dos partidos políticos. O “regresso aos quarteis” dos
militares foi integral e exemplarmente cumprido, segundo os procedimentos politicamente
acordados e juridicamente vertidos na própria Constituição. Os militares subordinaram-se ao
poder político democraticamente eleito sem qualquer resistência.

O período 1976-1980 foi um período de tenção entre os líderes dos dois maiores
partidos (Sá Carneiro do PSD e Mário Soares do PS) e o Presidente Eanes por várias razões.
Assim, a revisão de 1982 adquiriu uma dimensão de ajuste de contas entre esses protagonistas
políticos, no sentido de redução dos poderes presidenciais e do seu estatuto constitucional.
 O PS, com a oposição de Mário Soares, tinha acordado com Ramalho Eanes, no processo
da sua reeleição, que se comprometia a manter o equilíbrio de poderes na revisão
constitucional se Eanes renuncia-se ao cargo de CEMGFA. Mas em 1981, quando Soares
retomou o controlo do PS, ressurgiu a questão da reavaliação dos poderes do PR no que
diz respeito à revisão constitucional.
 Mesmo após a morte de Sá Carneiro, o ajuste de contas entre AD e Ramalho Eanes
continuava, no sentido de redução dos poderes presidenciais e de redução do estatuto
do PR relativamente ao Governo.

B) Alterações
1) Extinção do Conselho da Revolução e criação de novos órgãos: O Conselho da
Revolução foi um órgão de soberania político-militar que existiu durante o período de
transição, até à sua prevista extinção, com a revisão constitucional de 1982. Era presidido pelo
Presidente da República e constituído por vários militares de alta patente. Na versão original da CRP, “o Conselho
da Revolução tem funções de conselho do Presidente da República e de garante do regular funcionamento das
instituições democráticas, de garante do cumprimento da Constituição e da fidelidade ao espírito da Revolução
Portuguesa de 25 de Abril de 1974 e de órgão político e legislativo em matéria militar”. Com a revisão
constitucional, as suas competências tiveram de ser redistribuídas.

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 As funções consultivas do Presidente da República passaram para um novo órgão, o


Conselho de Estado.
 As funções de fiscalização da constitucionalidade foram assumidas por outro órgão
criado em 1982, o Tribunal Constitucional.
 As competências políticas e legislativas em matéria militar passaram para o Governo e
para a AR, e em certa medida para o PR.

2) Poder presidencial de dissolução da AR: Até 1982 este poder era fortemente
condicionado, pois o PR precisava da autorização do Conselho da Revolução. A partir daí, o
Presidente passou a poder exercê-lo de forma livre e autónoma. Tem de ouvir o Conselho de
Estado, mas o seu parecer é apenas consultivo, e não vinculativo (art. 133º/e).
O poder de dissolução tinha outros condicionamentos materiais antes da revisão. O PR
não podia dissolver a AR em consequência da rejeição parlamentar do programa de governo, a
não ser no caso de ter havido três rejeições consecutivas do mesmo. Estaria também obrigado
a dissolver a AR quando esta tivesse recusado a confiança ou votado a censura ao Governo,
determinando por tais factos a terceira substituição do Governo. Estes condicionamentos
desapareceram com a revisão de 1982, mas outros foram introduzidos (172º):
 Condicionantes temporais – o PR não pode dissolver a AR nos seis meses que se seguem
à sua eleição ou no último semestre do mandato presidencial.
 Condicionantes circunstanciais – o PR não pode dissolver a AR durante o estado de sítio
ou de emergência (já existiam na versão original da CRP).

3) Poder presidencial de demissão do Governo: Até 1982 o PR tinha o poder de


livremente demitir o Governo, sob a cobertura do poder de exoneração do Primeiro-Ministro,
que era interpretado como poder de demissão do Governo. Entendia-se, e bem, que o PR podia
exonerar o PM livremente, fruto da sua legitimidade democrática indiscutível e da
responsabilidade política do Governo perante ele. Depois da revisão, distinguiram-se os
poderes de exoneração do PM e demissão do Governo e o PR passou a só poder demitir o
Governo “quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das
instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado” (195º/2). Antes da revisão, a distinção
entre “demissão do Governo” e “exoneração do PM” não era inequívoca. Depois clarificou-se:
exoneração passa a ser o ato jurídico-formal de terminar as funções de Primeiro-Ministro, que ficará
em gestão após a demissão do seu Governo e que será exonerado quando um novo PM o substituir.

4) Responsabilidade do Governo perante o PR: Até à revisão, o Governo era


politicamente responsável perante a AR e perante o PR, o que significa que o Governo tinha de
prestar contas a cada um desses órgãos, que o podiam demitir por razões de discordância
política. Após 1982, a Constituição passou a distinguir a responsabilidade do Governo perante
os dois órgãos, qualificando como política a responsabilidade que o Governo tem perante a AR

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(art. 191º/1). A Constituição não qualifica expressamente a responsabilidade do Governo


perante o PR, mas essa tem sido entendida como “institucional”, já que, como se viu, o PR
perdeu o poder de demitir o Governo (a não ser quando tal se torne necessário para assegurar
o regular funcionamento das instituições democráticas). Como espécie de compensação pelo
desaparecimento da responsabilidade política do Governo perante o PR, a revisão
constitucional de 1982 consagrou essa responsabilidade como um dever informação, já que o
PM deve “informar o PR acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e
externa do país” (art. 201º/1/c).

5) Poder presidencial de nomeação das altas chefias militares: A versão original da


Constituição nada dizia sobre a nomeação das chefias militares. No entanto, a lei ordinária
atribuía ao PR os poderes de nomear e exonerar o CEMGFA, o Vice-CEMGFA os CEMs dos três
ramos das Forças Armadas. Com a revisão, esses poderes passaram a ser definidos pela
Constituição, sendo atribuídos ao PR, mas sob a proposta do Governo (art. 133º/p).

6) Poder presidencial de veto: A revisão constitucional de 1982 veio introduzir ao poder


presidencial de veto:
 Uma clarificação – a versão original da CRP estabelecia um prazo para vetar, mas não
um prazo para promulgar, aproveitando-se disso o Presidente Eanes, que dava uso aos
“vetos de bolso”. A revisão de 1982 veio estabelecer, naquele que era o entendimento
melhor da doutrina, a obrigatoriedade de promulgação ou veto pelo PR nos prazos
estabelecidos (20 dias para diplomas da AR e 40 dias para diplomas do Governo), não
podendo ficar em silêncio.
 Uma modificação – que veio alargar o elenco de diplomas que precisa de uma maioria
de dois terços dos deputados para superar um veto presidencial, quando normalmente
essa maioria é apenas uma maioria absoluta (art. 136º/3).

7) Responsabilidade política do Governo perante a AR: Antes de 1982, para que a AR


demitisse o Governo, era necessário serem aprovadas duas moções de censura com pelo
menos trinta dias de intervalo. Depois da revisão, a aprovação de uma só moção de censura
passou a ser suficiente para demitir o Governo (195º/1/f).

C) Estatuto constitucional do Presidente da República


A interpretação mais vulgarizada sobre o que aconteceu na revisão constitucional de
1982 é relativamente simples: os poderes do Presidente da República foram reduzidos.
 A revisão teria restringido o poder de demissão, o mais importante dos poderes
presidenciais, e o poder de nomeação das altas chefias militares, que tinham uma enorme

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importância na vida política da época e na sociedade portuguesa. Atendendo a estas


reduções, aparentemente drásticas, conhecendo as relações de tensão entre os partidos e
o Presidente Eanes entre 1976 e 1982, e as intenções de PS e PSD, faria todo o sentido que
houvesse uma redução dos poderes presidenciais e do estatuto constitucional do PR.
 Os partidos tinham ameaçado, e cumpriram com a ameaça. O próprio Presidente Eanes
amplificou a ideia, pondo a circular que se os partidos persistissem com a revisão no sentido
de redução dos poderes presidenciais renunciaria ao mandato de PR e candidatar-se-ia de
seguida a PM, reativando a ideia do partido presidencial. Consumada a revisão, Eanes
comunicou ao país a sua discordância acerca das alterações constitucionais e do caráter
secreto dos acordos entre os partidos da revisão, anunciado que iria passar a utilizar mais
o poder de veto, supostamente o único poder significativo que lhe restava para controlar a
atuação do Governo.

Enraizado o mito urbano acerca da pertença redução dos poderes presidenciais com a
revisão de 1982, importa perceber porque é falso, e porque na verdade houve uma ampliação
substancial dos poderes do Presidente da República. Para REIS NOVAIS, nenhuma das
alterações introduzidas pela revisão constitucional de 1982 significou uma redução, pelo
menos significativa, dos poderes presidenciais ou uma degradação do seu estatuto
constitucional. Contrariamente, várias das alterações feitas traduziram-se num aumento dos
poderes presidenciais.

1) Porque não houve redução dos poderes presidenciais: poder de demissão do Governo
Relativamente ao poder presidencial de demissão do Governo, ele foi formalmente
restringido, uma vez que o Presidente da República, que antes podia demitir o executivo de
forma livre e incondicionada, passa a poder fazê-lo apenas “quando tal se torne necessário para
assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de
Estado”. Todavia, na realidade prática, política, esta alteração não tem o alcance que
normalmente se lhe atribui, já que:
 O que são “instituições democráticas” e o que é ou não é o “regular funcionamento das
instituições democráticas” são conceitos indeterminados; e cabe apenas ao Presidente da
República decidir quais são as instituições democráticas e se está em causa o regular
funcionamento das instituições democráticas.
 O juízo de avaliação de quando a demissão do Governo é necessária para assegurar o
regular funcionamento das instituições democráticas é feito pelo PR. A sua interpretação
até pode ser abusiva ou errada, mas é a única juridicamente relevante. (Sobre esse juízo:
pode haver irregular funcionamento das instituições democráticas e a demissão do Governo nada
contribuir para resolver o problema. Se for a AR a funcionar regularmente, a demissão do Governo
não seria constitucionalmente admissível.)
 A Constituição podia ter atribuído o controlo da regularidade constitucional deste ato a um
outro órgão, como o Tribunal Constitucional, mas não o fez. Logo, por mais errada ou

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inconstitucional que seja a decisão do PR, ela não está sujeita a controlo ou sanção
jurisdicional, mas apenas a sanção política. Se o PR emite um decreto de demissão do
Governo, o Governo fica juridicamente demitido, inapelavelmente.
 A relevância desta limitação no poder de demissão no funcionamento do sistema político e
no alcance global dos poderes presidenciais é mínima ou, pelo menos, não tem, nem de
longe, a importância que lhe foi dada na altura, e que ainda é hoje lhe é atribuída.
o O Presidente francês tem um perfil interventivo, executivo, partidariamente ativo, líder
de uma maioria de governo ou de líder da oposição. Por isso se fala em afrancesar o
nosso sistema de governo quando se quer reforçar os poderes presidenciais. No
entanto, mesmo com esse perfil, o Presidente francês não tem o poder de demissão
do Governo. E mesmo assim, na realidade, muitas vezes força o PM a apresentar-lhe
um pedido de demissão. O PR português tem esse poder na Constituição, mesmo que
enfraquecido, mas nunca o usa. E o Presidente francês não tem esse poder na
Constituição porque, em semipresidencialismo, o poder de demissão do Governo não
é tão importante como muitas vezes se pensa.
o Porque o Governo depende politicamente do Parlamento, tem sempre o seu apoio, ou
pelo menos, a sua não oposição. Se há maioria absoluta na Assembleia da República, o
poder presidencial de demissão não existe na prática, pois a última palavra é sempre
do Parlamento. Como a composição do Parlamento não foi alterada, mesmo que o PR
demita um Governo, de seguida vai ter de nomear o Governo que a maioria
parlamentar indicar; qualquer outro será rejeitado. Assim, o poder de demissão só será
significativo quando não há maioria parlamentar absoluta de sustentação de um
Governo, ou seja, quando um Governo é minoritário (ou de coligação); mas mesmo aí,
o novo Governo, nomeado pelo PR, necessita do aval do Parlamento. De qualquer
forma, se uma maioria dos deputados concorda com a demissão do Governo, então a
Assembleia da República pode demiti-lo ela, não sendo necessária a demissão pelo PR.
o Quando o PR quer acabar com um Governo, ele não deve demiti-lo, mas sim dissolver
a Assembleia da República.
o Se um Presidente demite um Governo sem as garantias de posterior colaboração
parlamentar arrisca um desastre, como aconteceu com a demissão do II Governo
Soares e a nomeação dos três Governos de iniciativa presidencial indigitados pelo
Presidente Eanes. Essa experiência foi tão malsucedida que nunca mais foi repetida.

Mesmo tendo sido a intenção dos partidos reduzir o poder presidencial de demissão do
Governo, mesmo que o Presidente Eanes tenha ficado convencido de que tal aconteceu,
mesmo tendo em conta que o esse poder foi restringido em termos jurídico-formais, e
admitindo também que possa haver circunstâncias excecionais em que o poder de demissão
revele uma importância pontual, não houve uma redução significativa dos poderes
presidenciais ou do estatuto constitucional do Presidente da República, já que: (i) é o PR quem,
em última análise, continua a decidir, como antes da revisão e (ii) tanto o poder de demissão,
como a sua limitação não são politicamente significativos.

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2) Porque não houve redução dos poderes presidenciais: poder de nomeação das altas chefias
militares
Outra “prova” da restrição dos poderes presidenciais em 1982 foram as alterações
verificadas no poder presidencial de nomeação e exoneração das altas chefias militares. Dado
o peso que as Forças Armadas tinham na época, esta alteração atraiu a atenção da opinião
pública e foi percebida como uma drástica redução do estatuto constitucional do PR.
 Antes da revisão era a lei ordinária (e não a Constituição) que atribuía ao PR o poder de
nomear as chefias militares (CEMGFA, Vice-CEMGFA e CEM dos três ramos das Forças
Armadas). Após 1982, o PR manteve esse poder, mas deixou de o exercer autonomamente,
pois ficou sujeito, para nomear e exonerar, às propostas do Governo.
 Parece evidente que houve uma redução dos poderes presidenciais. Contudo, o Presidente
da República não tinha o poder constitucional de nomeação e exoneração das altas chefias
militares. Esse poder foi-lhe atribuído, ainda que de forma não autónoma (como acontece
com outras nomeações presidenciais para altos cargos, como o de Procurador-Geral da República
ou o Presidente do Tribunal de Contas), pela revisão constitucional de 1982.
 Assim, a revisão veio proteger juridicamente o PR de eventuais maiorias parlamentares que
quisessem reduzir os seus poderes, pois antes da revisão o poder presidencial de nomeação
das chefias militares era um poder de consistência precária, que o legislador ordinário podia
modificar ou suprimir a qualquer altura, alterando a lei ordinária que o consagrava. Aliás, o
Presidente Eanes encontrava-se, nessa altura, nas mãos de uma maioria parlamentar
qualificada (AD e PS de Soares) que conseguiria superar um eventual veto presidencial a
uma alteração dos seus poderes de nomeação das chefias militares.
 E mesmo sendo um poder partilhado, o poder presidencial de nomeação das chefias
militares continua a ser um poder significativo, ainda que o seu alcance vai varie em função
de circunstâncias de natureza conjuntural, como as relações entre PR e PM.
 Considerando que este poder de nomeação, antes de 1982, não estava constitucionalizado,
pode dizer-se que a solução da revisão, isto é, de partilha do poder entre PR e Governo, foi
uma solução equilibrada, que não envolve uma redução dos poderes presidenciais ou do
estatuto constitucional do Presidente da República. Ainda que tenha significado, na prática,
uma restrição da margem de decisão de que o PR dispunha na altura, essa diminuição não
tem o alcance que normalmente lhe é atribuído, uma vez que o anterior poder de
nomeação derivava, não da Constituição, mas da lei ordinária.

3) Porque houve reforço do estatuto do RP no sistema de governo: vários poderes


Várias alterações feitas pela revisão constitucional de 1982 se traduziram num aumento
dos poderes presidenciais ou num reforço do seu estatuto no sistema de governo.
 Desde logo, a definição constitucional do Presidente da República vem reforçar o seu
estatuto, substituindo a definição minimalista da versão originária da CRP (“O Presidente
da República representa a República Portuguesa e desempenha, por inerência, as funções de
Presidente do Conselho da Revolução e de Comandante Supremo das Forças Armadas”) pela

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definição abrangente que hoje vigora, praticamente copiada da Constituição francesa


(“O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência
nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por
inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”).
 Aumento da abrangência de matérias que necessitam de uma maioria parlamentar
qualificada de dois terços para superar o veto presidencial. Esta alteração, acentuada
nas revisões constitucionais seguintes, tem uma grande importância pois permite ao PR
obstruir a atividade legislativa do Governo, na medida em que, existindo uma maioria
parlamentar absoluta, é a exigência da maioria de dois terços que confere efetividade
ao poder de veto e peso político ao PR. Daí que o Presidente Eanes ameaçasse com um
aumento no recurso ao poder de veto em caso de redução dos poderes presidenciais
na revisão de 1982.
 Aumento dos poderes de nomeação dos altos cargos do Estado.
 Presidência do Conselho Superior de Defesa Nacional.
 Requerer ao TC a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão.

4) Porque houve reforço do estatuto do RP no sistema de governo: poder de dissolução da AR


Independentemente do alcance das outras alterações feitas em 1982, a mais
importante e decisiva foi a relativa ao poder presidencial de dissolução da Assembleia da
República, o mais importante dos poderes do Presidente da República24, a chave do sistema de
governo português. Esse poder foi claramente ampliado já que:
 Se antes o Presidente da República necessitava de um parecer favorável do Conselho da
Revolução (e tinha de respeitar as condicionantes anteriormente explicadas), após 1982 o
PR pode dissolver a AR por sua vontade própria (também respeitando as condicionantes
temporais e circunstanciais). É certo que tem de ouvir o Conselho de Estado, mas o parecer
desse órgão não é vinculativo. No ano seguinte à revisão, o PR Ramalho Eanes quis dissolver
a AR, pediu parecer ao Conselho de Estado, que foi negativo, mas dissolveu a AR na mesma.
 Desapareceram as condicionantes materiais anteriores a 1982 (o PR só podia dissolver a AR
por rejeitar o programa do Governo na terceira vez consecutiva, e tinha de dissolver a AR à
vez que o Governo perdesse a confiança da AR pela terceira vez), o que ampliou o poder de
dissolução. O PR passou a poder dissolver como quis.

Este reforço notável do poder presidencial de dissolução é evidenciado pelo aumento


notório do número de vezes a que o PR lhe deu uso, já que:
 Entre 1976 e 1982 houve uma demissão do Governo decidida pelo Presidente (1978 –
uma demissão que resultou nos três governos de iniciativa presidencial, criando

24
Ver páginas 98-101 e 122 – poder presidencial de dissolução em semipresidencialismo; poder de dissolução do
Presidente português

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instabilidade e levando à necessidade de dissolução da AR de 1979), e uma dissolução


da AR (1979).
 Após 1982 não houve nenhuma demissão do Governo por iniciativa do PR (houve
demissões, mas por força de moção de censura, de rejeição parlamentar do programa
de Governo ou na sequência de pedido de demissão do PM), mas houve seis dissoluções
da AR por ele decididas (ainda que duas delas – 2002 e 2011 – politicamente pacíficas).

Concluindo, quando se consideram perdas e ganhos na revisão de 1982, só um


Presidente distraído teria recusado trocar o poder de dissolução pós-1982 pelo poder de
demissão anterior a essa data. É um enigma como Ramalho Eanes e os partidos (que tiveram a
intenção de reduzir os poderes presidenciais) ficaram convencidos de que os poderes
presidências foram restringidos. Pode encontrar-se uma explicação para esse enigma quando
se considera o ambiente da época, os projetos de vingança, as expectativas sobre o que se
esperava da revisão e a unanimidade da doutrina em acolher a tese da diminuição de poderes.

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4. A ESPECIFICIDADE DO SISTEMA DE GOVERNO PORTUGUÊS

A) A revisão de 1982 na construção da matriz portuguesa de semipresidencialismo


A saturação da discussão sobre a redução dos poderes presidenciais, nos anos que se
seguiram à revisão de 1982, obscureceu a enorme relevância dessa revisão no plano da matriz
portuguesa de semipresidencialismo.
O ponto central da importância da revisão de 1982 para o sistema de governo
português é o do desaparecimento da responsabilidade política do Governo perante o
Presidente da República, passando essa responsabilidade apenas a “institucional”.
 A partir de 1982 só a AR pode demitir o Governo por razões de discordância política. O
Governo é nomeado pelo Presidente da República, mas em função dos resultados eleitorais
(ou seja, da composição da AR), e não da sua adesão a um projeto político ou programa
governativo do PR. O Governo não é o Governo do Presidente. Por exemplo: após a eleição
presidencial de 1986, o Presidente Mário Soares pediu ao PM Cavaco Silva que pusesse o seu lugar à
disposição. À luz da Constituição em vigor, Cavaco recusou, e bem. Com a revisão de 1982 desapareceu a
responsabilidade política do Governo perante o PR, logo, o Governo minoritário de Cavaco Silva não precisava
de ser apadrinhado pelo recém-eleito Presidente Soares.

 Também o Presidente da República não se responsabiliza pela condução da política do


Governo. Não há diarquia do executivo: quem governa é o Governo. O Presidente não
governa nem participa na governação; e a responsabilização política do Governo é
exclusivamente feita perante a Assembleia da República. Reciprocamente, o Presidente não
faz oposição política ao Governo em funções.

A revisão acentuou a diferença entre “presidir” (papel do Presidente da República) e


“exercer o papel do executivo” (papel do Governo).
 Reforço substancial do poder de demissão da AR – potencia a capacidade de
intervenção política autónoma, de “presidir”, do Presidente da República, que tem um
papel de garantia, regulação, moderação e arbitragem. É responsável pelo regular
funcionamento das instituições democráticas, pela unidade do Estado, a independência
nacional e o cumprimento da Constituição.
 Supressão da responsabilidade política do Governo perante o PR (ou seja, redução do
poder de demissão do Governo) – diminuíram-se os poderes presidenciais executivos e
de direção política. Em Portugal, o Presidente não governa: quem governa é o Governo.

Esta configuração do perfil político e constitucional do Presidente da República, e a


construção da matriz portuguesa de semipresidencialismo, já se desenhavam, jurídica e
politicamente, desde 1976, mas tiveram como marco decisivo a revisão constitucional de 1982,
que reforçou o estatuto e o papel do Presidente da República no sistema de governo, isto é,
reforçou a sua habilitação jurídica e prática para “presidir”.

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Este percurso poderia, eventualmente, ter ido longe de mais na supressão dos poderes
do presidente da República, no sentido da matriz austríaca de semipresidencialismo. O
Presidente Eanes foi decisivo, nos anos que se seguiram à revisão, para impedir essa trajetória.
Não se precisou de refugiar no poder de veto para evidenciar a enormes possibilidades de
intervenção autónoma que a Constituição proporciona ao Presidente da República. Já não
poderia proclamar, como fizera nas vésperas da revisão de 1982, que caberia ao PR a “missão
de orientação superior da nossa vida política”. Mesmo que essa afirmação fosse concebível
antes da revisão, era impossível após 1982. Mas a sua margem de intervenção seria confirmada
nos anos seguintes por Eanes e pelos seus sucessores.

B) Presidente garante, regulador, moderador e arbitral


Comparando as Constituições portuguesa e francesa, não encontramos grandes
diferenças no texto, e na definição do Presidente da República. No entanto, podemos dizer que
só em Portugal essa definição é levada a sério. Ou seja, encontramos na definição do artigo
120º os verdadeiros contornos jurídico-constitucionais onde se inscreve o perfil político e
constitucional que o PR português tem assumido, e assumiu no próprio momento do
nascimento do regime, particularmente distinto do perfil do Presidente francês (um perfil
militante, portador de um programa político de governo, líder de uma maioria governativa ou
líder da oposição).
Afastando-se de um perfil executivo, o PR português também não se confinou a um
entendimento restritivo daquela definição constitucional que o conduzisse ao perfil cerimonial
característico da matriz austríaca de semipresidencialismo. Ao invés, o PR português, em todos
os mandatos presidenciais, afirmou-se como um Presidente ativo, relevante, que exerce de
forma autónoma e efetiva poderes ou intervenções de significativo impacto político,
eventualmente em divergência ou mesmo em oposição frontal às maiorias parlamentares e
governamentais.

Assim, o Presidente português tem um perfil:


 Não executivo – o exercício dos poderes presidenciais não assenta numa lógica de
realização de um programa de governo próprio, de interferência ou partilha do poder
executivo com o Governo ou de disputa do poder político com a maioria parlamentar;
 Suprapartidário, nacional, independente, imparcial – mesmo quando tem um passado
de líder partidário, de ex-PM, a vitória das eleições presidenciais marca a assunção de
um papel totalmente diverso; o Presidente desfaz, na noite eleitoral, a maioria que o
elegeu e afirma-se “Presidente de todos os portugueses” (lema originalmente francês),
afastando-se (pelo menos no plano dos princípios) da lógica partidária e de fação;
assume-se imparcial na luta Governo/oposições e partidariamente isento.
 Garante – do normal funcionamento das instituições;

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 Moderador, regulador e arbitral – dos vários poderes e interesses políticos, partidários


e sociais.

Mais, é em função destes parâmetros o mandato presidencial é julgado: o PR será


politicamente censurado se se converte em Presidente cerimonial ou, ao invés, se enveredar
por um ativismo presidencial alinhado por uma lógica de prossecução de um programa
governamental próprio ou identificado com um partido ou fação político-partidária. Ao longo
de quatro décadas de semipresidencialismo podemos identificar situações em que o PR se
comportou de forma partidarizada e faccional, ou em que ajudou a força partidária de onde
provém. Mas mesmo quando isso sucede, o PR nunca assume tal vinculação partidária e rejeita
sempre essa imputação: a sua intenção proclamada, o seu programa, é sempre o de um
Presidente da República suprapartidário, independente, nacional, imparcial.

C) Não há bicefalia do executivo: quem governa é o Governo


Para alguns autores, é característica essencial e distintiva do semipresidencialismo a
bicefalia ou diarquia do executivo, isto é, o exercício conjunto do poder executivo por PR e PM.
A experiência portuguesa é a prova de que esta tese está errada: o semipresidencialismo
português não tem bicefalia do executivo.
O art. 120º CRP define o Presidente da República como um órgão que “representa a
República, garante a independência nacional, a unidade do estado e o regular funcionamento
das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas”,
portanto, a contrario, um órgão sem quaisquer atribuições diretas de poder executivo. Já o art.
182º CRP diz que “o Governo é o é o órgão de condução da política geral do país e o órgão
superior da Administração Pública”, atribuindo-lhe inequivocamente a exclusiva liderança do
poder executivo. Assim, não há em Portugal bicefalia do executivo. O executivo é uno e
exclusivamente exercido pelo PM, que lidera um Governo próprio, independentemente do
Presidente. Além de apoiada no texto constitucional, a ideia de exclusividade e de autonomia
plena no exercício do poder executivo por parte do Governo tem sido consensualmente
assumida e aceite desde o início de vigência da CRP76 até hoje. (Em França a definição
constitucional é muito semelhante e há, na prática, bicefalia do executivo.)
Em Portugal quem governa é o Governo e exclusivamente o Governo. Não há nenhum
domínio em que o PR decida ou participe da condução ou orientação da política a prosseguir.
Mesmo quando o Governo tem afinidades políticas ou partidárias com o PR, ele é
completamente autónomo na definição, prossecução e execução da política e programa de
governo e são o PM, os Ministros e o Governo no seu conjunto que se responsabilizam
exclusivamente por elas.
De facto, há intervenções pontuais do PR catalogáveis como tipicamente executivas ou
governativas e eventualmente suspeitas de invasão ilegítima da área própria do Governo. No
entanto, tais intervenções são vistas como patológicas e nenhum dos protagonistas assume

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uma intenção de partilha ou disputa do poder executivo com o Governo. Pelo contrário, uma
acusação desse tipo é imediatamente rejeitada pelos “acusados” no sentido de que nem
invadiram nem tentaram invadir as competências do Governo, a quem reconhecem plena
autonomia e exclusividade no exercício das funções de governo.
O facto de o Presidente da República não participar na função governativa em nada
diminui a sua importância. O Presidente pode exercer poderes de influência e de impacto direto
no exercício das funções governamentais, como os poderes informais (que permitem sugerir,
aconselhar, criticar, apoiar, influenciar e condicionar as funções do Governo), o poder de veto,
o poder de nomear titulares de altos cargos e o poder de nomear e demitir o Governo e os seus
membros. Todavia, dificilmente se podem enquadrar estes poderes na tradicional divisão
tripartida dos poderes de Estado (executivo, legislativo, judicial). Ganha peso a hipótese do seu
enquadramento num quarto poder, o poder moderador, teorizado por Benjamin Constant no
século XIX. Assim, a matriz portuguesa de semipresidencialismo assenta no perfil de um
Presidente moderador, regulador ou garante.

D) Presidente com poder de conformação política autónoma e não dependente da maioria


parlamentar
Com uma configuração político-constitucional de Presidente regulador, garante,
moderador, arbitral, dir-se-ia que para o PR português, no exercício dos seus poderes, pelo
menos em teoria, deveria ser completamente indiferente saber qual a conotação política da
maioria parlamentar e do Governo em funções. Sabemos que isso nem sempre acontece, mas
a pureza do modelo exigiria do Presidente que, no mínimo, aspirasse a um padrão de
comportamento que se refletisse numa continuidade de práticas ao longo do mandato,
independentemente de qual seja a maioria parlamentar e governamental com que deva lidar.
Por isso, em Portugal, o espírito do sistema é tão mais observado quanto o mandato
presidencial possa ser percebido como um continuum, politicamente inalterado
independentemente das maiorias político-partidárias que se sucedem no Parlamento (por isso,
não faz sentido falar de coabitação em Portugal). O Presidente deve afastar-se da disputa
político-partidária e preservar uma imagem de Presidente suprapartidário, independente,
imparcial, que prossegue o interesse nacional.
Diferente seria a hipótese, que até hoje não se verificou, em que o candidato a
Presidente imediatamente tivesse colocado o eleitorado perante um programa ou um projeto
de mandato presidencial radicalmente diversos, isto é, uma proposta de candidatura partidária,
programática, eventualmente com um projeto de governo próprio. Aí haveria uma tentativa de
viragem do nosso sistema de governo tal como tem sido entendido.
Sendo o Presidente suprapartidário e imparcial, a existência ou inexistência de uma
maioria parlamentar na AR e, sobretudo, de um Governo, monopartidário ou de coligação,
apoiado por uma maioria parlamentar, não devem ser indiferentes. Não devem porque a

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questão da estabilidade política e da governabilidade são valores da maior relevância para as


funções presidenciais de garantia do regular funcionamento das instituições.
Seria inadmissível, à luz da matriz portuguesa de semipresidencialismo, uma dissolução
da Assembleia da República que visasse, pura e simplesmente, uma alteração da coloração
política da maioria parlamentar. Já seria conforme à natureza do nosso sistema de governo
uma dissolução de uma concreta Assembleia da República que, no entender do Presidente,
tivesse esgotado a respetiva capacidade para substituir um Governo em falência ou que tivesse
demonstrado a sua incapacidade para gerar uma solução governativa estável, consistente e
viável.

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