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DOUTRINA A ASSISTENCIA JUDICIARIA GRATUITA E A CONSTITUICAO FEDERAL LEONEL OHLWEILER Promotor de Justica 1. Introdugiio Apés o advento da Constituigéo Federal de 1988 tém surgido relevan- tes discusses em torno da interpretagéo do sentido e do alcance da nor- matizagdo insculpida no art. 5.°, LXXIV, da Carta Magna, em espectfico quanto a necessidade, ou nao, de comprovagao da insuficiéncia de recursos. Foi oportuna a consignagio.de Mauro Cappelletti quando prelecionou que a primeira onda, em termos de facilitagao do acesso A Justiga, seria a assis- téncia judiciéria para os pobres. * H& muito que a assisténcia judicidria vem encontrando respaldo nas Constituigées Federais, nfo havendo divides de que os legisladores cons- tituintes acertaram em coloc4-la como garantia constitucional, dando assim, um amparo igual para todos no exercfcio do direito.? A concessio de assis- téncia judiciéria gratuita para os menos favorecidos constitui mera decor- réncia de prelegio do princ{pio de que todos sao iguais perante a lei (art. 52, caput, da CF). 2. Antecedentes legislativos A assisténcia judiciaria gratuita encontra-se disciplinada na Lei 1.060, de 5.2.50. Desde as Constituigdes Federais de 1891, passando pelas de 1. “O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo A Justica levou a trés posigdes bdsicas, pelo menos nos pafses do mundo Ocidental. Tendo infcio em 1965, estes posicionamentos emergiram mais ou menos em seqiiéncia cronolégica, Podemos afirmar que a primeira solugéo pata o acesso — a primeira ‘Onda’ desse movimento novo — foi a assisténcia judiciéria...” (Acesso @ Justiga, p. 31). 2. O grande mestre Eduardo J. Couture entende que “el principio de la gra- tuidad de la justicia es principio constitucional porque tiende @ asegurar el acceso de todos los ciudadanos a los estrados de los Tribunales y, en consecuencia a un amparo igual para todos en el ejercicio del derecho” (Estudios de Derecho Procesal Civil, p. 113). 238 1934, 1937, 1946 e€ 1967, até a Emenda Constitucional de 1969, a assis- téncia judiciéria sempre possuiu previsio legal.* A anterior Carta Magna regulamentava-a no art. 153, § 32: “Ser concedida assisténcia judicidria aos necessitados, na forma da [ei”. A atual Constituigao prevé a mencionada assisténcia no art. 5.°, LXXIV: “O Estado prestaré assisténcia juridica integral e gratuita aos que compro- varem insuficiéncia de recursos”. A regra que, atualmente, esté originando a discussdo repousa no art. 42° da Lei 1.060/50, cuja nova redagao lhe foi dada pela Lei 7.510/86. ¢ O problema consiste em saber se tal norma, que é anterior 4 Consti- tuigao Federal, € com ela compativel? Houve revogagao de tal dispositivo? 3. Posigdes jurisprudenciais O TJRS, em algumas ocasides, assim tem se manifestado: “Justica gratuita. A legisla¢Zo ordindria anterior ndo foi revogada pela CF (art. 5.°, LXXIV). A norma da Lei Maior, exigindo provas da insuficiéncia de recur- sos, destina-se ao Executivo, através dos servigos de assisténcia jurfdica, nao ao Poder Judiciério” (RJTJRS 151/331). ® O entendimento de que a presungfo instituida pela Lei 7.510/86 ainda prevalece encontra respaldo em outros Tribunais, conforme RT 676/88, 645/113, 640/153 e 649/79. Inobstante, h4 julgados dos Tribunais de Justiga e Algada do Rio Grande do Sul que acolheram a tese da revogagao do artigo em debate: “Beneffcio da Gratuidade Judici4ria — Direito de cidadania condicionado (CF de 1988, art. 5.°, LXXIV). Prova indispens4vel do estado de pabreza. Revogacao indireta da legislacdo liberalizante anterior. Hoje, ninguém pode ser beneficiado pela gratuidade judici4ria, ante mandamento constitucional, sem prova convincente do estado de pobreza” (RJTJRS 150/715). Outro acérdio de fundamento idéntico consta nos JTARS 71/113. 3. Segundo Celso Ribeiro Bastos, em sua obra Comentérios & Constituiggo do Brasil, v. 2°/371, desde 08 povos mais antigos jé havin a percepgao de que a Justica restaria letra morta sem o idedrio da assisténcia judicidria gratuita, havendo remi- niscéncias no Cédigo de Hamurabi, normas vigorantes em Atenas e Roma ¢ no Digesto; no Brasil 8 assisténcia judiciéria tem suas rafzes nas Ordenacdes Filipinas. 4. A Lei 1.060/50, apds a ultima alteragdo (Lei 7.510/36) ficou com a seguinte redagdo: “Art. 4°. A parte gozard dos beneficios da assisténcia judiciéria, mediante simples afirmagdo, na prépria petigao inicial, de que nfo esté em condi de pagar as custas do processo e os honordrios de advogado sem prejuizo proprio ou de sua familia. § 1°. Presume-se pobre, até prova em contrério, sob pena de paga- mento do décuplo das ‘custas judiciais”. 5. Basi te, © argumento utilizado e que foi muito bem concatenado pelo ilustre Des. Djalma Selistre, é de que “a declaragdo formal de pobreza foi afastada pela Lei 7.510/86 para ensejar @ concessio da gratuidade ¢ que a norma constitucional em questao nao impde que a parte comprove, perante o Poder Judi- ciério, a insuficiéncia de recursos pare a defesa de seus interesses... Quando o preceito constitucional indigitado estabelece que o Estado prestard assisténcia juri- dica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiéncia de recursos, evidente- mente, nao se dirige ao Judiciério, por isto que esse poder nao presta o beneficio. Quem o faz é 0 Estado, enquanto exercicio do Poder Executivo, através dos servicos a este fim destinados” (voto proferido no Al 5.908346). 239 Outros defensores da posigéo que a presungéo do art. 4° da Lei 1.060/50 esté em vigor argumentam, também, que toda a evolugdo da legislagéo que versa sobre a matéria se deu no sentido de facilitar 0 acesso A Justica e 0 espirito do legislador constituinte seria esse, no se podendo instituir a comprovagao por ser obstéculo A concessao do beneficio; ainda, em face do princfpio da recepgao, o artigo supracitado continuaria em vigor. ¢ 4. Anélise critica Preliminarmente, saliento a ligéo do ilustre Eduardo J. Couture de que “o intérprete é um intermedidrio entre o texto e a realidade; a inter- pretagao consiste em extrair o sentido, desenterrar o contetido, que o texto encerra com relago A realidade”.7 O intérprete deve saber, exatamente, qual 0 texto objeto de seu racio- cinio, bem como a sua natureza frente ao ordenamento juridico. A inter- pretagéo nao é feita utilizando apenas um método, mas uma conjun¢gdo de processos de interpretacdo que podem fornecer uma melhor anilise. Bem andou o legislador ao modificar a redagao do art. 5°, LXXIV, da CF, caso comparada com a da anterior Carta Magna. Essa tiltima, no seu art. 153, § 32, falava em “assisténcia judicifria”. ® A atual Constituigéo Federal, por 6bvio, buscou resolver a questao, formulando um conceito bem mais abrangente e técnico.® A norma do art. 5, LXXIV, ao mencionar a assisténcia jurfdica integral, passou a abranger a assisténcia judiciéria e a justica gratuita. O Estado nao esté obrigado, apenas, a propiciar a isengao de custas e honorérios advocat{cios para aquelas pessoas que comprovarem insuficiéncia de recursos, mas tam- bém se obriga ao fornecimento do corpo técnico, dos advogados necessdrios para a defesa dos direitos das pessoas menos favorecidas. A norma em questao, assim, nfo pode se dirigir exclusivamente ao Estado, ao Poder Executivo, ao Estado-Administragéo, pois a incumbéncia deste reside na organizaco do corpo técnico supracitado; a assisténcia jurf- dica integral nao se restringe a isso. Até porque nao seria crivel que o legistador constituinte tivesse a intengao de nao incluir em seu texto a obrigagaio de o Estado, como ente jurfdico, prestar Justiga Gratuita, através do Poder Judiciério. 6. Tais argumentos foram esposados no trabalho elaborado por Cfindido Alfredo Silva Leal Junior, publicado na RP 62/268. 7. Sobre interpretacio das leis processuais é interessante a leitura da obra Interpretagao das Leis Processuais, de Eduardo J. Couture. 8. Asseverou Celso Ribeiro Bastos (ob. cit., p. 375) que a Lei 1.060/50 “acabou por confundir os conceitos técnicos-juridicos de justiga gratuita e assisténcia judi- ciéria, na feliz observac¢io de Humberto Pefia e José Fontenelle”. 9. No entanto, permanece de relevo a distingdo feita por Pontes de Miranda: “Assisténcia Judiciéria e beneficio de justica gratuita no sio a mesma coisa. O bene- ficio da justia gratuita & direito & dispensa provisdria de despesas, exercivel em relagdo juridica processual, perante o julz que promete a prestaglo jurisdicional. E instituto de direito préprocessual. A Assisténcia Judiciéria é organizacio estatal ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa proviséria das despesas, a indi- cago de advogado. E instituto de direito administrative” (Comentdrios ao Cédigo de Processo Civil, t. 1/460, apud Celso Ribeiro Bastos, ob. cit., p. 376). 240 A primeira conclusio, desta forma, é de que a norma constitucional possui um duplo direcionamento: o Poder Judiciério e o Poder Executivo. Sob a ética de uma andlise gramatical, * analisando o termo “Estado”, a principio poder-se-ia concluir de que se trata, apenas, do Poder Exe- cutivo, a exemplo do que acontece em outros dispositivos legais. No entan- to, 0 vocdébulo deve ser analisado em conjunto com os outros. !* Ora, tomando 0 conceito abrangente de “assisténcia jurfdica”, vé-se que a normatizagao nao pode se restringir somente a assisténcia judiciéria. Como corolério, néo pode abranger apenas o Poder Executivo, o mencio- nado artigo constitucional. No que tange & necessidade de comprovacdo da insuficiéncia de recur- sos, o art. 5.°, LXXIV, CF, disciplina de forma clara a necessidade de haver a comprovagao. A comprovagio mencionada deve ser tomada no sentido técnico. !* Exsurge, assim, que houve a instituigio do énus da prova para aquele que pleitear o beneficio. Quando se fala em énus da prova deve-se, primeiro, delimitar 0 conceito de prova, sendo que aqui tomo a prova como a demonstragao da verdade legal de um fato, segundo linguagem de Fran- cesco Carnelutti. #8 . A norma constitucional em epigrafe faz meng&o & necessidade de com- provagao da insuficiéncia de recursos, seguindo, desta forma, o princ{pio geral de que ao autor cabe a prova dos fatos constitutivos do seu direito. 1 O fato constitutivo do direito de assisténcia juridica integral é a insu- ficigncia de recursos. O énus da prova de tal fato constitutivo incumbe a parte que requer o beneffcio, ao menos, essa é a interpretagfo do preceito constitucional. J4, nos termos do art. 4.° da Lei 1.060/50, para que a parte se beneficie basta a afirmaciio, na prépria peticfo, de que nao possui condigdes de pagar as custas e honordrios. O § 1.° explicita que se trata de presungio. Em relagdo as presungdes legais (aquelas estabelecidas pela lei) elas “vinculam o Juiz, porque tratam-se de verdade legal, que nao admite prova em contrério”, conforme Cesar Anténio da Silva, Onus e Qualidade da Prova Civel, p. 103. *5 10. © proceso gramatical € um dos primeiros mencionados pelo ilustre Carlos Maximiliano, sendo que esse se preocupa mais com a letra do dispositivo (Herme- nbutica e Aplicagao do Direito, p. 109). 11. Bem referiu Carlos Maximiliano que para contornar o problema de um voeébulo possuir mais de um sentido, ele deve ser examinado em conjunto, em conexio com os outros (ob. cit., p. 109). 12. “Em geral no Direito Pablico se emprega, de preferéncia a linguagem téc- nica, 0 dizer juridico, de sorte que se houver diversidade de significado do mesmo vocébulo, entre a expresso cientifica e a vulgar, inclinar-se-4 0 hermeneuta no sen- tido da primeira” (Carlos Maximiliano, ob. cit., p. 306). 13. O mestre italiano em sua obra La Prueba Civil, p. 38, definiu prova no sentido juridico como “demonstracién de la verdad de un hecho realizada por los medios legales (por modos legitimos) 0, mas brevemente demonstracién de la verdad legal de un hecho” (p. 44). 14. Art. 333. O Onus da prova incumbe: I — a0 autor, quanto 20 fato cons- titutivo do seu direito. 15. E claro que nfo admitem prova em contrério quando juris et de jure, mas 2 presungao do art. 4°, § 1°, da Lei 1060/50, € juris tantum. 241 Aplica-se o art. 334, IV, do CPC. %* Absorvo aqui a ligio do insigne Eduardo J. Couture, segudo a qual uma presungéo legal € uma proposig&o normativa acerca da verdade de um fato e nao é um meio de prova. #7 Nao bh& como conciliar uma presung&o legal com a necessidade de comprovagao do fato sobre o qual tal presungao incide. Tal argumento, também, conduz a revogagao do art. 4.° da Lei 1.060/50. Uma das conse- qiéncias das presungdes legais é dispensar do 6nus da prova aquele que a tem a seu favor. Nao poderiam conviver duas normas jurfdicas: uma dizen- do que hé necessidade de comprovagio da insuficiéncia de recursos, ou seja, atribuindo-lhe, expressamente, o 6nus da prova, e outra dispensan- do-the de provar (art. 334, IV, do CPC), em razfo de em seu favor militar uma presungao de veracidade. Outrossim, sob a dtica do processo Idégico de interpretagéo da norma constitucional, a conclusio é a mesma. E indubitével que o legislador constituinte, com a normatizagéo da assisténcia juridica integral, estd dentro dos parfmetros da primeira onda de facilitagfo do acesso A Justiga e que predomina em diversos pafses. No entanto, é pacifica a utilizagéo de mecanismos de controle para a con- cessio do beneffcio, seja por um drgéo administrativo ou pelo préprio Poder Judiciério, até mesmo para evitar um abuso de direito. 1@ Inclusive, conforme Mauro Cappelletti, na Inglaterra para a concessao do beneficio h4 um exame da viabilidade financeira da causa.*® B claro que em um pafs em desenvolvimento como o Brasil nao deve ser utilizado o critério da viabilidade financeira da causa, mas sfo imprescindiveis mecanismos de controle preventivo. *% A Constituigio Federal de 1988 reza pela grande enumeracio de direitos e garantias o que, por si, acarreta a instituicfo de um controle maior sobre os abusos de direitos. Como dito anteriormente a palavra “assisténcia jurfdica integral” abran- ge a assisténcia judiciéria e a justica gratuita. Entender que o art. 5.°, 16. © art. 334, IV, do CPC, diz que ndo dependem de prova os fatos em cujo fayor milita presungéo legal de veracidade. Assim se nao depende de preva nao hé que se falar em meio de prova para provar tal fato, pols a sua fixagdo no processo ocorre através de presungdo e que ndo é meio de prova stricto sensu, pols nfio hé demonstragéo de verdade legal a que se referiu F. Carnelutti e sim uma determinacdo legal de veracidade, é claro, sujeita a prova em contrério. 17. “No necesitan prueba los hechos sobre los cuales recae una presuncién legal. Una presuncién legal es una proposicién normativa acerca de la verdad de un hecho. Si admite prueba en contrario se dice que es relativa; si no admite prueba en contrario se denomina absoluta. Como creemos haberlo demonstrado en otra oportunidad, ni las presunciones legales ni las judiciales son medios de prueba” (Fundamentos del Derecho Procesal Civil). 18. Sobre o tema ver interessantes colocagdes de Eduardo J. Couture sobre “El ejercicio abusivo de la auxiliatoria de pobreza” em sua obra Estudios de Derecho Procesal Civil, p. 111. 19. “No moderno programa Brit@nico, p. ex., um requerente, verificada a viabilidade financeira e de mérito de sua causa, pode escolher seu advogado em uma de profissionais que concordam em prestar servigos” (ob. cit., p. 35). 20. Outro interessante estudo sobre a organizagio da assisténcia juridica consta na RePro 54, de autoria de Roberto O. Berizonce. 242 LXXIV, da CF, dirige-se, apenas, a0 Poder Executivo importa em criar disting&o e “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus” — onde a lei nao distingue, nfo pode o intérprete distinguir. 5. Concluséo Desta forma, espero, de alguma forma, ter contribufdo para a dis- cussio do tema enfocado, afirmando mais uma vez que o legislador cons- tituinte ao erigir como norma constitucional a necessidade de comprova- ¢Go da insuficiéncia de recursos, de modo algum, criou obstdculos para o acesso & Justica, mas fortaleceu o instituto da assisténcia juridica gratuita compatibilizando-a com as possibilidades de um pafs em desenvolvimento e com a garantia fundamental de acesso a Justiga. Novo Hamburgo, 25 de fevereiro de 1993. 243

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