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T E X T O S DE

ERUDIÇÃO & PRAZER

A Morte dos Deuses, Michel Henry


A Morte nos Olhos, Jean-Pierre Vernant
Dioniso a Céu Aberto, Marcel Détienne
Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher,
Nicole Loraux
Nicole Loraux

MANEIRAS
TRÁGICAS
DE MATAR
UMA MULHER
Imaginário da Grécia Antiga

Traduzido por
MÁRIO DA GAMA KURY

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Título original:
Façons tragiques de tuer une femme
Tradução autorizada da primeira edição francesa publicada em 1985 por I
lachcttc, de Paris, França, na coleção Textes du XXe Siècle dirigida por
Maurice Olender

Copyright © 1985, Hachette Copyright


© 1988 da edição brasileira:
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja 20031
Rio de Janeiro, RJ
Todos os direitos reservados.
A reprodução nao-autorizada desta publicação, no todo
ou etn parte, constituí violação do copyright. (Lei 5.988)

(Edição para o Brasil.


Não pode circular em outros países.)

Ficha técnica Revisão de texto: Angela Loureiro. Diagramação: Celso Bivar. Capa: Gilvan
F. da Silva. Composição e montagem: Ed. Ubyassara Ltda. Revisão: Ricardo Santos, Carlos
Kayfcld, Naír Damctto. Impressão: Tavares e Tristão Granea e Editora de Livros Ltda.

ISBN: 85-7110-046-2
Sumário

7 Prólogo
15 Distribuição
21 Maneiras trágicas de matar uma mulher
27 A Corda e o Gládio
Um suicídio de mulher
por uma morte de homem 27
Uma morte desprovida de andreia 29
A incisão no corpo viril 33
Enforcamento ou sphagé 36
A esposa que se lança 42
O silêncio e o segredo 48
No thálamos: morte e casamento 51
Morrer com 53
A glória das mulheres 56
63 O sangue puro das virgens
Sacrifícios em que é bom pensar 64
Novilha, poldra: domadas 68
Da execução como casamento 72
Liberdades virginais 80
A glória das moças 88
91 Lugares do corpo
0 ponto fraco das mulheres 92
Enumeração do corpo viril 97
A alternativa de Polixena 101

116 Notas
139 Sobre a autora
Prólogo

“Mortes representadas em cena, grandes dores,


ferimentos”: acontecimentos da tragédia, espe-
táculos para os olhos. Considerando os exem-
plos dados por Aristóteles para ilustrar sua
definição do pathos trágico como “ação causa-
dora de destruição ou dor” 1 quem poderia
duvidar um instante sequer de que, no teatro
ateniense, a morte não tenha sido realmente
exposta à visão do espectador? Thanatói en tói
phanerói: agonias em público, assassínios di-
ante dos olhos de todos... Lendo mais uma vez
com perplexidade a frase de Aristóteles, tomo
a decisão de advertir o leitor de que, nas pági-
nas seguintes, o ouvinte da tragédia levará
vantagem sobre o espectador: tudo passa pelas
palavras, porque tudo se passa nas palavras,
principalmente a morte. Investigando as mo-
dalidades trágicas da morte das mulheres, nada
encontrei que seja visto ou que seja primeiro
7
visto. Tudo começou por ser dito, por ser ou-
vido, por ser imaginado – visão nascida das
palavras e presa a elas. Assim, ao empenhar-me
em um longo exercício de leitura, tentei captar,
pura e simplesmente, aquilo que dava de ime-
diato ao público antigo o gozo intenso do pra-
zer de ouvir.
Palavras lidas para substituir ou mesmo
para reencontrar as palavras ouvidas, aquelas
que a representação trágica oferecia à escuta
ativa do público ateniense. Palavras de duplo ou
múltiplo sentido. Em síntese, texto, nada mais
que texto. Pode ser que contar “muito mais com
a imaginação que com a vista, mais com o
ouvido que com o olho” 2 seja uma escolha
minha, mas que importa? Na Atenas do século
V a.C, essa foi a escolha do gênero trágico.
Não tentarei prová-lo. Precisaria para tanto de
mais que um prólogo, e somente por prazer, ou
de memória, evocarei algumas das razões que
levam a colocar a tragédia sob o signo da es-
cuta.
Há, inicialmente, as razões do historiador.
Seria necessário evocar o apego decididamente
etimológico dos gregos à sua língua e o amor
que eles demonstram por suas palavras (que
eles chamam de “nomes”). Conviria lembrar
até que ponto, no século V ateniense, as regras
da escuta dominam esses discursos cívicos que

8
denominamos um pouco impropriamente gê-
neros literários. Ouso mesmo formular a hipó-
tese de que, no teatro de Atenas, a escuta era,
para o público da representação trágica, como
que uma leitura muito refinada, à altura da
“profundidade” do texto3. Se o espectador anti-
go, tal como gostamos de imaginá-lo depois de
1er Jean-Pierre Vernant, tiver sido esse espec-
tador de ouvido apurado para quem a “lingua-
gem do texto pode ser transparente em todos os
níveis, em sua polivalencia e em suas
ambigüidades”4, então temos de atribuir a esse
ouvinte onipotente uma atenção da qual o mí-
nimo que se pode dizer é que ela quase não
tinha flutuações, uma memória por nós total-
mente esquecida e a capacidade espantosa de
realizar o longo trabalho sobre o significante
durante o curto tempo da representação teatral.
Ficção, talvez, mas ficção necessária. Podemos
então formular a hipótese de que, arrebatado
pela profundidade polissêmica do texto, o leitor
se empenha na interminável busca das palavras
em eco.
O historiador já se afastou na ponta dos
pés. Resta o texto e, diante do texto, seus usu-
ários muito contemporâneos. Na primeira linha
destes estão o diretor e os atores. Não espere-
mos, entretanto, que eles tornem a dar um cor-
po à idéia de espetáculo5. Por pouco que seja

9
interrogado, o diretor confessará a dificuldade
que enfrenta para convencer os atores a dizerem
– a somente dizerem e sobretudo a não repre-
sentarem – as grandes unidades textuais com-
ponentes de uma tragédia: o coro do Agamêm-
non sobre o sacrifício de Ifigênia, a narração da
morte de Dejanira nas Traquínias ou a imola-
ção de Polixena na Hécuba6.
Resta ao leitor, então, aceitar até o fim a
aposta no texto. Leitora de tragédias, não tive
aliás escolha. Fui constrangida a isso desde que,
procurando traçar as vias trágicas da morte das
mulheres, tive de admitir que essas vias eram
textuais. Nada encontrei além da narração.
Como se só se pudesse confiar a morte das
mulheres às palavras, como se apenas as pala-
vras soubessem levá-la a termo. Para isso há
seguramente razões históricas, razões de civi-
lização: uma mulher grega vivia sua existência
de moça, de esposa e de mãe no lugar mais
recôndito da casa; ela também devia partir desta
vida de sua casa bem fechada, ao abrigo dos
olhos, longe de todo o público. Mas, seja como
for, a decência, ainda que sociológica, nunca
bastou para explicar tudo.
Não é difícil admitir que os sacrifícios das
virgens – este puro desvio – só possam rea-
lizar-se no terreno da narração; a tragédia co-
loca as moças em cena apenas para dela tirá-las
10
e para entregá-las, longe dos olhos, ao cútelo do
degolador: execução escandalosa, ficção satis-
fatória narrada passo a passo pelos mensageiros
em linguagem técnica cujas palavras carregam
o impensável com todo o peso do real. Faz bem
matar as moças em pensamento, em narração.
Mas há também o suicídio das esposas, que
vem complicar tudo, porque é revelado também
pela narração, e não pela visão. Estarão essas
desesperadas realmente cometendo uma espé-
cie de transgressão, para terem de voltar a ocu-
par precipitadamente seu lugar – sombrio,
oculto, fantasmático – para então encontrarem a
morte cuja narração ao público dependerá de
uma ama ou de um servidor? É nessa reticência
em mostrar a morte que a invenção trágica da
feminilidade encontra, sem dúvida alguma, seu
limite, com essa maneira que as esposas perdi-
das têm de voltar ao seu lugar para rematar uma
ortodoxia. Mas isso não é tudo: recorrer à or-
dem da linguagem7 para matar Fedra ou Deja-
nira talvez seja uma das dimensões constituti-
vas do trágico em sua definição grega. Ao
menos não se deve subestimar o benefício
imaginário muito real que essas mortes apenas
ditas deviam trazer a um público de cidadãos.
Dessas mortes postas em palavras direi sem
hesitar o que Baudelaire dizia do belo, definido
como “prestando-se a conjecturas”: a morte-

11
narração presta-se infinitamente mais a con-
jecturas que as violências exibidas diante dos
olhos. Para o cidadão de Atenas, a apresentação
teatral das mulheres já é, em si mesma, uma
ocasião admirável para pensar a diferença dos
sexos: mostrá-la para confundi-la e depois re-
encontrá-la, mais rica após haver sido confun-
dida, mas ainda assim consolidada ao ser rea-
firmada no último instante. Pelo fato de nela se
dramatizarem e se condensarem todos os
momentos dessa história, a morte de uma mu-
lher é a ocasião por excelência para essa ope-
ração imaginária, ainda mais porque a tragédia
usa para dizê-la palavras de múltiplos sentidos
que, de certo modo, “sabem”8.
Palavras precisas, como aiora e áiresthai,
dotadas de sentido técnico na linguagem reli-
giosa ou sacrificial9; palavras muito gerais
como báinein, designação neutra da ação de
marchar (“ela partiu, a esposa...”); nomes de
lugares do corpo10 – a garganta, por exemplo. A
tragédia usa todas essas palavras da língua e as
transforma para fazer delas a trama de um
discurso bem audível que, sob a narração, fala
ainda e sempre da diferença dos sexos. Foi na
tradução literal dos textos que procurei aquilo
que, no seio da representação trágica, se passa
ao nível das palavras quando um mensageiro
conta a morte de uma mulher.
Mas passemos ao texto.

12
Não gostaria, entretanto, de iniciar essa leitura
prolongada sem antes agradecer, por suas su-
gestões e observações, todos aqueles a quem
expus a totalidade ou parte destas pesquisas em
meus seminários na E.H.E.S.S., nas universi-
dades de Toulouse e de Trieste, na Cornell
University, em Princeton e em Harvard. Agra-
deço principalmente àqueles que, convidándo-
me a falar da morte trágica das mulheres, de-
ram-me a oportunidade de escrever estas pági-
nas: Gregory Nagy em primeiro lugar, e Clau-
dine Leduc. Agradeço finalmente a Maurice
Olender por acolher-me na coleção “Textes du
XXe Siècle”, por ele dirigida.

Nota do tradutor:

Em relação aos nomes próprios gregos, a auto-


ra usa geralmente a forma tradicional francesa,
13
como Achille, Ajax. Às vezes, entretanto, opta
pela transliteração (preferida pelo tradutor e
adotada em seus trabalhos anteriores: Heracles,
Têcmessa, Teucros, Macária). Respeitando o
critério usado predominantemente pela autora,
e com vistas à uniformidade dentro de uma
mesma obra, seguimos a forma tradicional
portuguesa, dando entre parênteses, na Distri-
buição anteposta à obra, a transliteração dos
nomes gregos: por exemplo, Aquiles (Aqui-
leus), Ájax (Aias).

14
Distribuição*

ÁDMETO: (Ádmetos) Marido de Alceste. Ver Eurípides,


Alcesle.
AGAMÊMNON: Rei de Argos e comandante da expedição
grega contra Tróia. Sacrifica sua filha Ifigênia
e é morto por sua mulher Clitemnestra. Ver
Esquilo, Agamemnon e Coéforas, e Eurípides,
Ifigênia em Áulis.
ÁJAX : (Aias) Rci de Salamina. Recuperando a razão
ao sair do desvario em que o lançou Atena,
suicida-se com seu gládio. Ver Sófocles,
Ajax.
ALCESTE: (Álcestis) A “melhor das mulheres”. Esposa
de Ádmeto, rei da Tessália; aceita morrer em
lugar de seu marido. Ela morre; Heracles a
traz de volta do Inferno depois de disputá-la
com Tânatos, a Morte. Ver Eurípides, Alcesle.
ANTÍGONA: (Antigone) Filha de Édipo e de Jocasta. Por
ocasião da morte de seus irmãos, caídos num
combate decorrente da guerra civil e do sui-
cídio mútuo, enterra Polinices contrariando a

* Os personagens, sua história trágica e a menção às peças das quais


são protagonistas e que serão citadas.

15
proibição de Creóme. Condenada à morte em
confinamento, enforca-se. Ver Sófocles,
Antígona, e Eurípides, Fenicias.
AQUILES: (Aquileus) Pouco presente na tragédia, o
herói da Ilíada é em Áulis o noivo fictício de
Ifigênia. Em Tróia, Polixena é imolada sobre
seu túmulo. Ver Eurípides, Hécuba e Ifigênia
em Áulis.
CASSANDRA: Filha de Príamo e de Hécuba, profetisa em
quem ninguém acreditava, levada como ca-
tiva para Argos pelo rei Agamemnon e morta
com ele por Clitemnestra. Ver Esquilo,
Agamemnon, e Eurípides, Troianas.
CLITEMNESTRA: (Clitaimnestra) Mulher de Agamemnon, mãe
de Ifigênia, de Orestes e de Electra. Mata
Agamêmnon auxiliada por Egisto, e é morta
mais tarde por Orestes com a ajuda de Elec-
tra. Ver Esquilo, Agamêmnon, Coéforas e
Eumênides, Sófocles, Electra, e Eurípides,
Electra c Ifigênia em Áulis.
CREONTE: (Crêon) Irmão de Jocasta, marido de Eurídi-
ce, pai de Hcmon e de Mencceu. Rei de Tebas
após a morte dos filhos de Édipo. Ver
Sófocles, Antígona, e Eurípides, Fenicias.
DANAIDES: Filhas de Dânaos, evitam o casamento e os
homens, especificamente os filhos de Egito
(Áigiptos), seus primos. São acolhidas em
Argos pelo rei Pelasgo. Ver Esquilo,
Suplicantes.
DEJANIRA: (Deiâneira) Mulher de Heracles em Traquis,
envia ao herói a túnica de Nesso, presente de
amor – pensa ela –, mas na realidade presente
de morte. Suicida-se com um gládio. Ver
Sófocles, Traquínias.
ÉDIPO: (Oidípous) Filho de Laio e de Jocasta, assas-
sino de seu pai e marido de sua mãe. Diante

16
do cadáver de Jocasta cega-se com o pino de
um broche da roupa da morta. Seus filhos
Etéocles e Polinices exterminam-se mutua-
mente, sua filha Antígona enforca-se. Ver
Sófocles, Edipo Rei, Antígona, e Eurípides,
Fenicias.
EGISTO: (Áigistos) Amante de Clitemnestra e primo
de Agamêmnon, ajuda a mulher a matar o
marido e é morto por Orestes. Ver Esquilo,
Agamêmnon e Coéforas, e Eurípides,
Electro.
ELECTRA: Filha de Agamemnon e de Clitemnestra,
espera o retomo de Oreslcs para vingar o pai
morto matando sua mãe. Ver Esquilo, Coéfo-
ras, Sófocles, Electro, e Eurípides, Electro e
Orestes.
ERECTEU: (Erecteus) Rei de Atenas. Sacrifica sua ou
suas filhas para salvar a cidade. Ver Eurí-
pides, Ion e os fragmentos de Erecteu.
ETÉOCLES: (Eteoclcs) Filho de Édipo e de Jocasta. Mor-
re no combale fratricida cm que enfrenta
Polinices. Ver Esquilo, Sete contra Tebas, e
Eurípides, Fenicias.
EURÍDICE: (Euridice) Mulher de Creonte, mãe de Hê-
mon. Ouvindo a notícia do suicídio de seu
filho, mata-se com um gládio. Ver Sófocles,
Antígona.
EVADNE: (Euadne) Mulher do herói Capaneu, lança-se
na pira fúnebre de seu marido, morto diante
de Tebas. Ver Eurípides, Suplicantes.
FEDRA: (Faidra) A Cretense, mulher de Teseu. Apai-
xonada por seu enteado Hipólito, que gosta
somente da deusa Ártemis, enforca-se. Ver
Eurípides, Hipólito.
HECUBA: (Hecabe) Mulher de Príamo, rei de Tróia,
mãe de numerosos filhos e filhas, entre as
quais Cassandra e Polixena. Ver Eurípides,
Troianas e Hécuba.

17
HELENA: A bela Helena. Mulher de Menelau, raptada
por Páris. Segundo alguns autores, somente
seu fantasma foi a Tróia. Ver Esquilo,
Agamemnon, e Eurípides, Troianas, Helena e
Orestes.
HÊMON: (Háimon) Filho de Creonte e de Eurídice,
noivo de Antígona. Suicida-se com um gládio
ao descobrir sua noiva enforcada. Ver
Sófocles, Anlígona.
HERACLES: (Heracles) Herói dos doze trabalhos e de
numerosas esposas. Num acesso de loucura
mata Mcgara e seus filhos. Morre vítima do
funesto presente de Dcjanira. Ver Sófocles,
Traquínias, e Eurípides, Heracles. Filha de
HERMIONE: Mcnclau e de Helena, mulher de
Neoptólcmo. Ver Eurípides, Andrômaca e
Orestes.
HILO: (Hilos) Filho de Heracles c de Dejanira. Ver
Sófocles, Traquínias.
HIPÓLITO: (Hipólitos) Filho de Tcscu e da amazona
Antíope. Gosta apenas de Artemis c da caça.
O amor de Fcdra e a maldição de seu pai le-
vam-no à morte. Ver Eurípides, Hipólito.
IFIGÊNIA: (Ifigência) Filha de Agamemnon e de Cli-
temnestra, sacrificada por seu pai para propi-
ciar os ventos que levarão a frota grega a
Tróia. Em certas versões do mito, salva in
extremis pela deusa Artemis ela é transporta-
da para Táuris, onde realiza sacrifícios hu-
manos, antes de Orestes levá-la de volta para
a Grécia. Ver Esquilo, Agamêmnon; Eurí-
pides, Ifigênia em Áulis e Ifigênia em Táuris.
JASÃO: (Iáson) O marido humano, demasiadamente
humano de Medéia. Ver Eurípides, Medéia.
JOCASTA: (locaste) Mãe e mulher de Édipo, de quem
tem dois filhos – Etéocles e Polinices – e

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duas filhas – Antígona e Ismene. Enforca-se
ao descobrir o incesto, ou mata-se com um
gládio quando vê seus dois filhos mortos. Ver
Sófocles, Édipo Rei, e Eurípides, Fenicias.
Homero chama Jocasta de Epicasta.
LEDA: Mãe de Helena e de Clitemnestra. Desespe-
rada por causa da má reputação de Helena,
enforca-se. Ver Eurípides, Helena.
MACÁRIA: (Macária) Filha de Heracles, aceita ser sacri-
ficada para salvar seus irmãos. Ver Eurípides,
Heracles.
MEDÉIA: Princesa colquídia casada com Jasão, que a
abandona para casar-se com a filha do rei de
Corinto. Ela mata o rei e sua filha com vene-
no, e seus próprios filhos com um gládio. Ver
Eurípides, Medéia.
MÈGARA: Esposa fiel de I léracles em Tcbas, morta com
seus filhos pelo herói num acesso de loucura.
Ver Eurípides, Heracles.
MENECEU: (Mcnoiccus) Filho de Crcontc, irmão de
Ilcmon. Mata-se para salvar a cidade. Ver
Eurípides, Fenicias.
MENELAU: (Mcnêlaos) Rei de Esparta, marido de Hele-
na. Ver Eurípides, Troianas, Andrômaca,
Helena c Orestes.
NEOPTÓLEMO: (Ncoptôlemos) Pilho de Aquiles; imola Poli-
xena sobre a sepultura do pai e é morto em
Dclfos. Ver Eurípides, Hécuba e Andrômaca.
ORESTES: Filho de Agamemnon e de Clitemnestra,
irmão de Ifigênia e de Electra. Mata sua mãe
para vingar a morte de seu pai. Ver Esquilo,
Coéforas e Eumênides; Sófocles, Electra;
Eurípides, Electra, Ifigênia em Táuris e
Orestes.
POLINICES: (Polineices) Filho de Édipo e de Jocasta.
Morre no combate fratricida em que enfrenta

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Etéocles. Ver Esquilo, Sete contra Tebas, e
Eurípides, Fenícias.
POLIXENA: (Polixene) Filha de Príamo e de Hécuba,
sacrificada por Neoptólemo sobre a sepultu-
ra de Aquiles. Ver Eurípides, Troianas e
Hécuba.
TÊCMESSA: Companheira de Ájax, de quem ouviu que o
silêncio é o adomo das mulheres. Ver
Sófocles, Ajax.
TESEU: (Teseus) Rei de Atenas, marido de Fedra, pai
de Hipólito. Maldiz precipitadamente o filho.
Ver Eurípides, Hipólito.
TEUCRO: (Tcucros) Mcio-innão de Ájax. Ver Sófocles,
Ájax.

20
Maneiras Trágicas de
Matar uma Mulher

Dando sua vida à cidade, os atenienses caídos em combate receberam


“o elogio imutável e a mais insigne das sepulturas – não falo do lugar
onde repousam, mas da fama que deixam, memorável para sempre
[...]. Com efeito, para os homens ilustres a terra inteira é a sepultura
e, para dar conta do que foram, não basta uma inscrição gravada numa
esteia em sua cidade: em terra estrangeira, uma lembrança não-escrita
da escolha por eles feita mora cm cada pessoa”.
“O tempo jamais apagará em teu marido a lembrança eterna de teu
valor, Nicoptolcme.” ‘

Este trecho de epitáphios e este fragmento de


epitafio servem de introdução àquilo que na
cidade grega – no caso, Atenas – se diz da
morte dos homens e de uma morte de mulher.
Os homens morreram na guerra, realizando
rigorosamente o ideal cívico; submissa a seu
destino, a mulher morreu em seu leito – ao
menos essa é a história possível. Aos homens a
cidade ofereceu oficialmente uma bela sepul-
tura e um elogio em forma de oração fúnebre
pronunciada pelo mais célebre dos homens de
Estado; e, sob o impacto do verbo eloqüente de
21
Péricles, o epitafio gravado no monumento do
Cerâmico empalidece diante da palavra de
gloria e sua promessa de lembrança imutável e
universal. Para Nicoptoleme, desconhecida
cujo nome guerreiro significa vitória em com-
bate, basta um pouco de lembrança privada:
algumas linhas gravadas numa esteia e a afir-
mação de que seu marido jamais a esquecerá.
Forte contraste, talvez muito perfeito para ser
totalmente exato. Sem dúvida nem todos os
homens de Atenas morrem em combate, mas
não existe um cujo epitafio não confie de algu-
ma maneira à cidade a lembrança eterna das
qualidades do morto; nem todas as mulheres de
Atenas extinguem-se em seu leito, mas é sem-
pre ao marido (ou na pior das hipóteses à fa-
mília) que compete preservar a lembrança da
morta.
Do ponto de vista paradigmático dos
modelos sociais, é verdade que a cidade nada
tem a dizer a respeito da morte de uma mulher,
fosse ela tão perfeita quanto lhe é permitido ser;
com efeito, a única realização para uma mulher
é levar sem alarde uma existência exemplar de
esposa e de mãe ao lado de um homem que vive
sua vida de cidadão. Sem ruído. Essa é a vida
que Péricles aconselhava no epitáphios às viú-
vas dos atenienses caídos em combate. A gló-
ria (kleos) dos homens é palavra viva, levada

22
aos ouvidos da posteridade pelas mil vozes da
fama; para falar da glória de uma mulher, des-
de o tempo em que Pénélope afirmava que
somente o retorno de Ulisses faria crescer sua
kleos diminuída (Odisséia, XIX, 124-128), o
único orador era o marido. Aquele mesmo que,
após a morte da esposa, será o depositário de
sua lembrança. Morto o marido, resta às mu-
lheres não dar aos homens assunto para falarem
delas, quer no tom de censura, quer no de elo-
gio; a glória das mulheres é não terem glória2.
Essa circunstância certamente não facilita a
tarefa de quem deseja conhecer a realidade
muda da vida das mulheres. Mas esse não é o
meu objetivo. Permanecerei resolutamente
voltada para o logos, evitando o risco de enrai-
zar-me num gênero literário que, na cidade,
consagra à morte das mulheres um discurso
diverso daquele absolutamente privado da
confiança e do luto.
Entretanto, para não complicar mais ainda
a tarefa, é necessário deter-se um pouco mais na
leitura dos epitafios. Ganhar-se-á com isso a
convicção de que uma mulher não saberia pos-
suir sua morte; para aquela cujas virtudes de-
vem culminar no bem-viver do marido não há
fim heróico – pensada a partir do registro da
prova que qualifica, a “morte heróica” é viril. A
morte da esposa encerra pura e simplesmente

23
uma vida de devotamento e de afeição, de bom
humor e de reserva, da qual, sem dúvida, o
marido saberá daí em diante “falar muito bem”.
Nessas condições, que palavra cívica poderia
ser articulada num discurso sobre a morte das
mulheres? Certamente não no gênero histórico,
sobretudo se o historiador se chama Tucídides
e seu assunto é a Grécia; relato de guerra e de
decisões políticas, a historiografia tucidídia
nada tem a ver com as mulheres, mesmo em
vida. Acredita-se que Heródoto era menos
categórico a esse respeito, mas, de maneira
igualmente previsível, ele se interessava
apenas pelas mulheres bárbaras ou esposas de
tiranos, e por sua morte só quando violenta –
ou pretexto para alguma exposição sobre um
rito fúnebre anormal3; mesmo nestes casos,
trata-se de menções breves, não decorrentes de
uma elaboração mais desenvolvida. Há, porém,
um gênero cívico que, comprazendo-se institu-
cionalmente em confundir a fronteira do mas-
culino e do feminino, libera a morte das mu-
lheres dos lugares-comuns onde a confinava o
luto privado. Falo da tragédia, onde, como é
verdade em Heródoto, as mulheres só morrem
de morte violenta4. Mas, no universo trágico, a
morte, mesmo ocorrendo no campo de batalha,
é sempre posta sob o signo da violência, e os
homens sofrem-na tanto quanto as mulheres.

24
Pelo menos por algum tempo, restabelece-se
uma espécie de equilíbrio entre os sexos.
As mulheres trágicas morrem violenta-
mente. Com maior exatidão, uma mulher con-
quista sua morte nessa violência. Morte que não
seja somente o fim de uma vida exemplar.
Morte que lhe pertença como sua, como a Jo-
casta de Sófocles, que a infligiu “ela mesma a
si mesma”5, ou que, de modo mais paradoxal,
lhe foi imposta. Uma morte brutal, cuja comu-
nicação se faz sem frases – assim, para a es-
posa-mãe de Édipo, “basta uma palavra, tão
curta para dizer quanto para ouvir: está morta,
a nobre figura de Jocasta” – mas cujas moda-
lidades, dolorosas ou chocantes, ensejam uma
longa narração. Com efeito, logo depois de ser
enunciado em sua nudez de fato bruto, o acon-
tecimento provoca uma indagação, sempre a
mesma: “Como? Dize como!” 6 Então o men-
sageiro conta, e é assim que a tragédia rompe o
silêncio amplamente observado na tradição
grega sobre as modalidades da morte.
Mas impõe-se uma precisão: se, na tragé-
dia, a morte das mulheres tem acesso ao dis-
curso tanto quanto a dos homens, convém ob-
servar que no interior do espectro das modali-
dades de morte violenta se opera de fato uma
distinção entre homens e mulheres: aparece
então uma ruptura do equilíbrio entre os sexos.
25
Do lado dos homens, a morte, salvo algumas
exceções – a de Ajax e de Hêmon, que se sui-
cidam, a de Meneceu, que se oferece para ser a
vítima de um sacrifício – toma a forma do
assassínio: assim, é de fato um assassínio –
oikeios phonos, morte em família – a morte
formalmente guerreira dos filhos de Edipo, que
se matam mutuamente no campo de batalha.
Quanto às mulheres, apesar de eventualmente
serem mortas, como Clitemnestra, como Mê-
gara, é muito maior o número daquelas que
recorrem ao suicídio como a única saída numa
desgraça extrema: Jocasta e, ainda em Sófocles,
Dejanira, Antígona e Eurídice; Fedra e, também
em Eurípides, Evadne e Leda, no segundo pla-
no da Helena; no caso das moças, o cútelo do
sacrifício é o instrumento privilegiado da mor-
te, podendo-se acrescentar à coorte das esposas
suicidas o grupo de virgens sacrificadas, de
Ifigênia a Polixena, passando por Macária e
pelas filhas de Erecteu.
Não estarei aqui privilegiando o assassí-
nio, entretanto, não me impedirei de evocar
suas formas trágicas: por ser mais equitativa-
mente partilhado entre homens e mulheres, sem
dúvida o assassínio é um critério menos perti-
nente da diferença dos sexos em sua relação
com a morte. Sendo assim, no tocante às mor-
tes femininas, darei relevo principalmente ao
suicídio das esposas e ao sacrifício das virgens.

26
A Corda e o Gládio

Um suicídio de mulher
por uma morte de homem
“Para uma mulher, permanecer no lar, sem esposo, abandonada, já é
um mal enlouqueccdor. E quando, alem disso, vem um mensageiro e
depois outro, trazendo sempre notícias piores, todos alardeando infe-
licidade para a casa [...]! Se este homem tivesse recebido tantos feri-
mentos (traumalon) quantos, por vias diversas, o rumor trazia à sua
casa, haveria mais cicatrizes em seu corpo (íêtrotat) que malhas numa
rede [...]. Eis as notícias cruéis que me fizeram suspender mais de uma
vez meu pescoço num laço, do qual só me tiravam usando a violência.”
(Esquilo, Agamêirmon, 861-876)

Por trás da mentira, cujo uso a rainha domina


admiravelmente, há uma verdade ou, ao menos,
uma verossimilhança apropriada ao universo
trágico enunciado nessas palavras de Clitem-
nestra ao acolher Agamêmnon de volta a seu
palácio: a morte do homem clama irresistivel-
mente pelo suicídio de uma mulher, sua mulher.
Uma morte de mulher para contrabalançar a
morte de um homem? Em virtude da honra
heróica que a tragédia se compraz em recordar,
a morte de um homem só poderia ser a de um
guerreiro no campo de batalha – assim, nas

27
Coéforas, os filhos de Agamemnon por um
instante desejarão retrospectivamente, para seu
pai, uma morte gloriosa ao pé das muralhas de
Tróia – e, à simples notícia desse fim, a esposa
morria passando a corda pelo pescoço em sua
morada bem fechada. É em nome dessa
mesma verossimilhança trágica que, nas Troia-
nas (1012-1014), Hécuba censurará aspera-
mente Helena porque jamais alguém a “sur-
preendeu na iminência de passar um laço pelo
pescoço ou de afiar um punhal como teria fei-
to uma mulher de sentimentos nobres (gennaia
gyné) com saudade de seu primeiro marido”.
Assim como sua irmã Helena, Clitemnes-
tra não se matou. A rainha certamente não é
uma Pénélope (embora, no mesmo discurso
mentiroso, ela evoque seus olhos inflamados
pelas lágrimas durante as longas vigílias em
que chorava o marido), como também não é
uma esposa trágica comum. Clitemnestra não
se matou, e quem vai morrer é Agamêmnon,
com o corpo retalhado de ferimentos e colhido
num véu em forma de armadilha. Clitemnestra
não cogitou de matar-se; ela desviou a morte de
sua pessoa para a do rei, da mesma forma que,
em vez de matar-se, Medéia matará indireta-
mente Jasão por via de seus filhos, por via de
sua nova esposa7. Em Clitemnestra, a mãe de
Ifigênia e a amante de Egisto sobrepuseram-se
28
à esposa. A rainha assassina desmentiu a lei da
feminilidade, que determina que diante da
aporia da infelicidade se ache uma saída no nó
de um laço8.

Uma morte desprovida de andreia

Achar uma saída no suicídio: solução trágica


reprovada pela moral na confusão da vida coti-
diana. Mas, principalmente, solução de mulher
e não, como às vezes se pretendeu, ato heróico9.
Que, em Sófocles como na tradição épica, o
herói Ajax se suicide é uma coisa; que ele se
suicide virilmente é outra – voltarei a esse
assunto –; mas não se deve pensar que, a partir
desse exemplo, se possa tirar a conclusão
geral de que, no imaginário compartilhado dos
gregos, todo suicídio resulta da andreia (nome
grego da coragem enquanto ela é o apanágio
dos homens). Muito mais conforme à ética tra-
dicional é sem dúvida o Heracles de Eurípides,
que, do fundo do desastre, aceita a idéia de
suportar a vida10. Do ponto de vista do cidadão,
as coisas são ainda mais claras: nada de mais
estranho ao suicídio que o imperativo marcial
da “morte gloriosa”, que deve ser aceita, e não
procurada11. Sabe-se que, por haver desejado
com excesso de ostentação morrer em Platéia,

29
após a batalha o espartano Aristódamo foi pri-
vado por seus concidadãos da glória póstuma
de uma citação por ato de bravura. Espartano
ou não, um guerreiro suicida-se apenas sob os
golpes da desonra – este é o caso de Otriadas
no livro I de Heródoto, e de Pantites no livro
VII. Essas constatações são ecoadas pelo Platão
das Leis, pensador normativo mas fiel à conve-
niência cívica, que inflige ao suicida, por “fal-
ta absoluta de virilidade”, a sanção institucional
de uma sepultura tão solitária quanto esquecida,
à margem da cidade e na noite do anonimato
(IX, 873 c-d). Acrescentar-se-á – o que não é
indiferente – que à falta de um nome especí-
fico para o suicídio, a língua grega usa para
designar esse ato as próprias palavras referen-
tes ao assassínio dos pais, esse cúmulo de
ignomínia12.
O suicídio, então: morte trágica, talvez,
escolhida sob o peso da pressão por aqueles
sobre os quais se abate “a dor excessiva de um
infortúnio sem saída”13. Na tragédia, sobretudo
morte de mulher. Mas há uma modalidade
dessa morte, já depreciada em si mesma, mais
que as outras marcada pela infâmia e mais que
as outras associada a uma desonra sem remé-
dio: refiro-me ao enforcamento, morte hedion-
da ou, falando com maior propriedade, morte
“informe” (áskhemon), mácula máxima que

30
uma pessoa se inflige sob o golpe da vergo-
nha14. Considera-se também – mas será isso
verdadeiramente um acaso? – que o enforca-
mento é morte de mulher: morte de Jocasta, de
Fedra e de Leda, morte de Antigona (e, fora da
tragédia, morte de inúmeras moças que se en-
forcam para dar a um culto sua origem ou para
ilustrar os enigmas da fisiología feminina)15.
O enforcamento, morte feminina. Ousaria
mesmo dizer que nele a expressão da feminili-
dade pode desdobrar-se infinitamente: as mu-
lheres e as moças sabem que a corda – instru-
mento usual do enforcamento – pode ser
substituída, como em Antigona estrangulada no
laço feito de seu véu, pelos adornos com que se
cobrem e que são emblemas de seu sexo. Véus,
cintos, faixas: esses instrumentos de sedução
constituem virtualmente armadilhas de morte
para aquelas que os usam, como as Danaides
suplicantes explicam ao rei Pelasgo16; em suma,
aproveitando a expressão vigorosa de Esquilo,
há nisso uma bela astucia, mekhané kalé, em
que apeithó (a persuasão) erótica se põe a ser-
viço da mais sinistra das ameaças.
Não insistirei aqui na convivência da
mulher com o campo da métis, essa inteligência
astuciosa característicamente grega. Todavia,
não se deve esquecer que toda ação realizada
por uma mulher, esteja ela armada com o gládio
31
para matar ou para matar-se, corre sempre o
risco de ser inexoravelmente recoberta pelo
vocabulário da astucia. No Agamemnon, por
exemplo, a fim de evocar os desígnios assassi-
nos de Clitemnestra afiando o gládio para usá-
lo contra seu marido, Cassandra, contra toda
expectativa, recorre à imagem do veneno mis-
turado na taça; mas o texto da Oréstia substi-
tuirá rapidamente o veneno pela armadilha
muito real do véu que aprisionará Agamêmnon
como se fosse numa rede – materialização
audaciosa da metáfora de métis. A mesma ló-
gica aparece nas Traquínias: sem querer, De-
janira colhe Héraclès na armadilha envenenada
da túnica de Nesso. A partir de então poderá
pedir ao gládio a salvação de uma morte rápida,
mas nem assim terá evitado que, mesmo fu-
gazmente, seu suicídio seja incluído no registro
industrioso da inteligência astuciosa17.
A essa métis envolvente, em ação nas pa-
lavras e nos atos das mulheres e que tece as
redes mortíferas ou aperta os nós de inúmeros
laços, a tragédia contrapõe tudo que corta e
dilacera, em suma, que derrama sangue. Isso
nos leva às Suplicantes de Esquilo e à sua
compulsão para o enforcamento. Ultimo recur-
so em sua fuga desvairada diante dos filhos de
Egito, o laço de morte protegeria as Danaides
contra o desejo violento dos machos, da mesma

32
forma que a precipitação do alto de uma rocha
escarpada, em que pensam por um instante, as
premuniría contra o casamento, esse constran-
gimento em que o marido é somente um senhor.
Mas não é por acaso que elas denominam esse
senhor dáiktor. não “raptor” (como, na edição
“Les Belles Lettres”, quer a tradução francesa
muito conceituada de Paul Mazon), mas com
maior precisão “dilacerador”18. Para escapar a
essa dilaceração – sem dúvida a do estupro e
do defloramento –, há somente duas vias: a
morte das Danaides no nó de uma corda, e a
conseqüente mácula para a cidade, ou sua vida
ao preço de uma guerra na qual o sangue dos
homens será derramado “por causa das mulhe-
res” (Suplicantes, 476-477). As Danaides não
se enforcarão. Conhece-se a seqüência: o casa-
mento finalmente realizado, as nupcias de san-
gue, mortíferas para os maridos, e mais tarde o
castigo no Hades. Mas isso é outra história.

A incisão no corpo viril

A crer em Eurípides, um gládio arma a mão de


Tânatos (a Morte). Sem dúvida isso não é puro
acaso: se a morte, igual para todos, não faz
distinção entre suas vítimas e corta indiferen-
temente a cabeleira das mulheres e dos homens,
convém a Tânatos, encarnação da morte no
33
masculino, empunhar o gládio, emblema da
morte viril19.
Isto porque um homem digno desse nome
somente poderia morrer no campo de batalha,
sob o gládio ou a lança de outro homem. É
pouco glorioso o Menelau de Eurípides, o único
grego a voltar de Tróia sem a marca de um
ferimento sequer recebido de perto, ferimento a
que está sujeito o homem completo20. E até num
sacrifício humano – esse ato corrompido sob
todos os aspectos –, convém que o sacrifica-
dor seja um homem, sobretudo quando a vítima
é masculina; essa circunstância é atestada na
Ifigênia em Táuris, quando Orestes pergunta à
sua irmã, antes de havê-la reconhecido:

“Tu, mulher, ferirás homens


com a espada?”

e quando Ifigênia responde garantindo a


presença no santuário de um degolador (spha-
geus) para incumbir-se dessa tarefa21.
Essa regra imperativa, que determina que
o homem morra pela mão do homem, sob o
gládio e no sangue derramado, não é derrogada
sequer pelo suicídio na tragédia. Em Sófocles
como em Píndaro, Ajax aniquilou-se com a
espada, fiel até o fim à sua estatura de herói,
que vive e morre da guerra onde, numa troca

34
sem dúvida sujeita a regras, fere-se e se é feri-
do. Ájax suicida-se, mas como um guerreiro22.
Cortado pelo ferro com o qual se identificava
(Ájax, 650-651), ele dilacera seu flanco com
essa espada que, ao encenar sua própria morte,
o herói transforma num princípio ativo (não
afirma ele que o “degolador (sphageus) está lá,
de pé, para cortar o melhor possível”?)23. A
espada de Ájax: significante primordial, en-
contrado a cada passo na trama metafórica da
tragédia de Sófocles, e que dá ao texto sua
coerência. Se a espada do guerreiro torna-se
realmente o escalpelo invocado por Ájax em
seu clamor, existem, no sentido que se diz fi-
gurado, muitos outros gládios em Ájax: por
exemplo, as próprias palavras da língua que,
afiadas como o aço, “cortam a carne viva”.
Como admirar-se, então, de que à vista do
cadáver do herói a espada cortante da dor tras-
passe Têcmessa “até o fígado”?24
Nada mais direi a propósito da espada de
Ájax; outros antes de mim souberam falar dela,
às vezes soberbamente, como Jean Starobins-
ki25. Não me estenderei tampouco sobre o tema
do sangue derramado, embora central em Ajax,
pois há outro herói de Sófocles para ilustrar o
caráter necessariamente sanguinolento do sui-
cídio viril. Refiro-me ao noivo de Antígona,
cuja morte é anunciada sob a forma intraduzí-
vel da glosa etimológica:

35
“Hêmon morreu; sua própria
mao o ensangüenta”.26

Baste-me relembrar que o nome de Hêmon


(Háimon) se assemelha extremamente ao do
sangue (haima): sendo assim, traspassado por
seu próprio gládio, o filho de Creonte consuma
o presságio de seu nome e morre como homem.

Enforcamento ou sphagé

Há entretanto uma palavra que não se poderá


evitar por mais tempo de pronunciar, porque ela
obseda o gênero trágico e é oposta insistente-
mente ao vocabulário do enforcamento. Essa
palavra é sphagé, nome do degolamento nos
sacrifícios e também do ferimento e do sangue
que corre dele. Como o verbo sphazo e seus
derivados, ela serve evidentemente para desig-
nar os sacrifícios, o de Ifigênia em Esquilo e em
Eurípides, e também, em Eurípides, o de Ma-
cária nos Heráclidas, o de Polixena na Hécuba
e nas Troianas, e finalmente o dos filhos de
Erecteu, oferecidos à pátria a título de sphagia
(íon, 278). Até aqui, nada de anormal, ou qua-
se nada. Mas, de Esquilo a Eurípides, passando
por Sófocles, sphazo e sphagé servem também
para designar o assassínio no seio da família

36
dos Atridas. E sobretudo é ainda às mesmas
palavras que se recorre para a designação do
suicídio quando é sanguinolento: suicídio de
Ajax, de Dejanira, de Eurídice. Invocar-se-á,
para justificar o seu emprego um tanto diver-
gente, alguma lei de impropriedade semântica
que caracterizaria a tragédia em seu recurso à
linguagem? Rebaixar-se-ia sphazo à categoria
das palavras mais neutras ou mais descritivas
como skhizo e daízo, que se referem à dilace-
ração do corpo27? Isso importaria em desco-
nhecer o rigor do significante trágico, que só
desvia a língua para fins nv.iito precisos – por
exemplo, o de confundir as ordens. É melhor
apostar no sentido e observar que, carregadas
de valores religiosos, sphazo, sphagé e spha-
gíon não designam na tragédia um degolamen-
to assassino qualquer, nem um suicídio qual-
quer, e sim a longa seqüência de “assassinatos
resultantes da aplicação da lei do sangue” na
família dos Atridas, ou a morte voluntária de
Eurídice ao pé do altar de Zeus Herqueio28. De
maneira mais geral, sphagé caracteriza a morte
pela espada como morte “pura” em contraste
com o enforcamento29.
Logo depois de lembrar essa oposição
entre os dois modos – o masculino e o femi-
nino – do morrer, deve-se admitir que a in-
fringimos de fato evocando a morte “viril” de

37
Dejanira ou de Eurídice, que cravam um gládio
no corpo. E em Eurípides não faltam heroínas
para preferir o gládio à corda quando pensam
na morte; assim, montando guarda à porta do
aposento onde se consuma o assassínio de Cli-
temnestra, Electra brande um gládio, prestes a
voltá-lo contra si mesma se o cometimento
fracassar (Electra, 688,695-696). Inversamen-
te, há no mesmo Eurípides homens para quem
a morte sobrevém por haverem sido apanhados
em laços inextricáveis, como se se tratasse de
uma mulher; acontece o mesmo com Hipólito,
cujo corpo, enlaçado às rédeas de seus cavalos
como se fosse com uma peia, é arrastado sobre
os rochedos da estrada30. Mas, em relação aos
homens, esse modo anormal da morte é obvia-
mente mais raro.
Voltando então a meu propósito, observa-
rei que a confusão trágica que dá a uma mulher
uma morte viril não resulta de contingência
alguma. Por exemplo, a morte de Jocasta nas
Fenicias. Em Sófocles, sabe-se que Jocasta,
imediatamente após perceber quem era ela em
relação a Édipo, enforca-se, como mulher
esmagada por uma desgraça insuportável. A
Jocasta de Eurípides não se enforca; ela sobre-
vive à revelação do incesto e morre por causa
da morte de seus filhos, ferindo-se com o mes-
mo gládio que os matou31. Sem dúvida trata-se

38
aqui de um desvio absolutamente notável em
relação a uma tradição firmemente estabeleci-
da, desde Homero e do enforcamento de Epi-
casta. Dever-se-ia, então, como fazem certos
autores, atribuir essa inovação a uma evolução
das mentalidades, sempre mais hostis às mortes
por enforcamento?32 Para dizer a verdade, nada
autoriza tal hipótese porque, desde a Odisséia
(XXII, 462-464), a corda ocasiona a mais im-
pura das mortes. Neste aspecto, quase não se
percebe em que as mentalidades teriam evoluí-
do. Mas convém sobretudo ler o texto de Eu-
rípides tendo em vista o de Sófocles; notar-se-
á então que há nas Fenicias urna espécie de
reinterpretação de conjunto da personagem de
Jocasta, e a morte viril daquela que não é mais,
como em Sófocles, essencialmente uma esposa,
e sim exclusivamente uma mãe33, deve desde
então ser creditada a essa reelaboração crítica
da tradição.
A partir deste exemplo e de alguns outros
cheguei a esboçar, evocando a morte trágica
das mulheres, uma generalização onde o en-
forcamento estaria associado ao casamento –
ou melhor, à supervalorização da condição de
esposa (nymphe) – e o suicídio sanguinolento
à maternidade, pela qual, nas dores “heróicas”
do parto, a esposa se realiza plenamente34.
Apesar de continuar me atendo a esta leitura,

39
não voltarei a ela, pois o que me interessa no
momento é a confusão e principalmente as afir-
mações, numerosas em Eurípides, que parecem
postular uma espécie de equivalência entre a
corda e o gládio.
A corda ou o gládio: em uma palavra, a
morte a qualquer preço, sejam quais forem as
suas vias. Numa situação desesperada, assim
raciocinam as mulheres viris (que, afinal de
contas, prefeririam o gládio), assim se gabam as
mulheres excessivamente femininas que, como
Hermione, não ousarão sequer enforcar-se –
mas, num caso ou no outro, a seqüência do
texto é perfeitamente clara sobre qual seria,
gládio ou corda, a verdadeira escolha da de-
sesperada. Corda ou gládio: é essa ainda a es-
colha que, diante da iminência da morte de
Alceste, o coro deixa a Ádmeto, afirmando que
“tal desventura justifica que se abra a garganta
(sphagé) ou que se passe no pescoço o nó de
um laço suspenso” – simples maneira de assi-
nalar que, por haver fugido à morte, um homem
feminizado não poderia subtrair-se à angústia
que aniquila as mulheres35.
Mas, como esses exemplos sugerem,
mesmo quando a confusão chega ao máximo,
seu único objetivo é, paradoxalmente, reforçar
a oposição em sua ortodoxia. Por exemplo, na
peça que tem o seu nome, Helena, chamando a
morte em suas preces:

40
“Com um nó mortífero, com um nó suspenso, enlaçarei meu pescoço,
ou então, com um grande esforço, cravarei em minha carne a lâmina
inteira de uma espada cujo ímpeto assassino abrirá em minha garganta
uma fonte de sangue, e me imolarei às três deusas...”

Como indica a resolução final, a única


eventualidade que Helena considera digna dela
é a sphagé; mas, olhando de frente, a escolha já
se esboçava nas palavras usadas por Helena
quando falava em se enforcar, sobretudo nessa
“phoníon aiórema”, essa intraduzível e con-
traditória “suspensão sangrenta” que os tradu-
tores dissimulam como podem, porque, pensam
eles, a característica do enforcamento é que o
sangue não corre durante a sua consumação36. É
precisamente nesse oxymoron que devemos
adivinhar a escolha da heroína, para quem só se
pode pensar em morte sanguinolenta e cujas
palavras rejeitam o enforcamento no instante
mesmo em que ela evoca a sua eventualidade.
Phoníon aiórema: assim, anunciando antecipa-
damente o sangue da sphagé, a língua de Hele-
na antecede seu pensamento.
Reafirma-se então ainda mais forte a opo-
sição entre a corda e o gládio, com a ressalva de
que, daqui em diante, algumas evidências se
impõem. Nunca, mesmo tendo pensado nisso,
um homem se enforca37; então, sempre que se
mata, um homem o faz como homem. Em
compensação, para a mulher a alternativa está

41
aberta: buscar no nó de uma corda um fim bem
feminino, ou apoderar-se de um gládio rou-
bando aos homens sua morte. Questão de iden-
tificação, isto é, de coerência interna do perso-
nagem trágico? Talvez. Nem por isso o dese-
quilíbrio é menos evidente, provando, se for
necessário lembrá-lo, que o gênero trágico
domina perfeitamente o jogo da confusão e
conhece os limites que não pode transpor. Ou,
para dizer de outra maneira, que a mulher nes-
se caso está mais autorizada a fazer-se de
homem para morrer que o homem a adotar,
mesmo na morte, qualquer conduta feminina,
seja ela qual for. Liberdade trágica das mulhe-
res: liberdade na morte...

A esposa que se lança

Mas, já que a alternativa está aberta para as


mulheres, e há as que escolhem as vias da
feminilidade até o fim, detenho-me ainda um
instante no enforcamento e nos valores ligados
a ele.
Para além do vocabulário da métis e do
julgamento implícito que seu emprego faz pe-
sar sobre uma morte em que alguém se prende
a si mesmo na armadilha de um laço, uma pa-
lavra merece reter nossa atenção, porque des-
creve e sugere em vez de julgar.
42
À audição da palavra aiora (ou eora) liga-
se a dupla imagem de ura corpo suspenso e do
ligeiro movimento de balanço que lhe é
imprimido38. Deve-se lembrar que em Atenas
aiora era o nome de uma festa em que as re-
presentações do enforcamento se associavam à
brincadeira do balanço; não se trata aqui, to-
davia, da Aiora religiosa, e sim da visão indu-
zida pelo emprego trágico da palavra. Aiora de
Jocasta, aiórema de Helena: Édipo forçou a
porta que Jocasta havia fechado cuidadosa-
mente depois de passar por ela, e todos vêem
agora a mulher enforcada, “presa ao nó balou-
çante” (plektais corais empeplegmenen); da
mesma forma, para Helena, que não se enfor-
cará, o enforcamento se resumia no termo
aiórema. Nesse ponto o leitor de tragédias
lembrar-se-á de haver encontrado esta palavra
em outro contexto: o da morte por lançamento.
Nas Suplicantes de Eurípides, Evadne se pre-
para para lançar-se ao fogo, junto à rocha ele-
vada (aitheriapetra) que domina a pira fúnebre
de seu marido Capaneu:
“Eis-me aqui, neste rochedo, como um pássaro, por sobre a pira de
Capaneu, elevando-me rápida num balanço (aiórema) funesto.”
(Suplicantes, 1045-1047)

Deter-nos-emos o tempo necessário para


verificar que aiórema designa tanto o balanço
43
da enforcada quanto o vôo de Evadne, e que
existe na linguagem trágica um parentesco
temático evidente entre o enforcamento e a
precipitação. Talvez alguém se admire: a en-
forcada se lança no vazio, sem dúvida, mas seu
corpo deixa o solo para ficar preso ao alto do
teto; a precipitação, ao contrário, é uma queda
profunda (bathy ptomá). O próprio verbo aeiro,
que significa a elevação e a suspensão, aplica-
se a esses dois lançamentos orientados em sen-
tido inverso, para o alto, para baixo, como se o
alto tivesse sua profundidade, como se alguém
só chegasse embaixo – o solo, mas :.imbém as
profundezas subterrâneas – elevando-se39. Por
estranho que seja, essa é a lógica implícita que,
somente ela, permite esclarecer a associação
recorrente dessas duas maneiras de elevar-se no
interior das “odes de evasão”, esses trechos
líricos onde, esmagados pelo real, freqüente-
mente o coro e às vezes a heroína trágica (ou o
herói) cantam suas aspirações à morte como à
fuga salutar. Ter-se-ia de evocar as Suplicantes
de Esquilo, o Hipólito de Eurípides, e muitos
outros textos. Para ir ao essencial observarei
que, em todos eles, a mesma imagem retorna: a
do lançamento alado, mas também, explicita-
mente, a do pássaro. O pássaro Evadne encon-
tra eco em Fedra, pouco tempo antes pássaro de
mau agouro e logo pobre pássaro fugido das

44
mãos de Teseu: do alto de um rochedo ou no nó
de um laço – que importa? – Evadne e Fedra
levantaram seu vôo, para sempre. Há também
as mulheres que se limitam a sonhar com o vôo:
Hermione, que em seu desejo de morte queria
ser pássaro, as Danaides desesperadas em face
da aproximação dos machos, as mulheres do
coro da Ifigênia em Táuris ou da Helena, al-
ciones sem asas, arrebatadas pela saudade ar-
dente da pátria distante40.
O fato de o pássaro, esse operador trágico
da evasão, realizar imaginariamente a fuga
permite que se enuncie algumas proposições
sobre o que se diz das mulheres a propósito do
enforcamento41. A primeira é que, em sua pro-
pensão a levantar vôo, essas esposas (que a
ortodoxia das representações cívicas quer se-
dentárias) têm uma certa relação de conaturali-
dade com o “algures”; e ei-las lançando-se no
ar e pairando entre o céu e a terra. A segunda é
que basta uma desventura para que elas esca-
pem ao homem, saindo de sua própria vida,
saindo da vida dele, como deixam a cena:
bruscamente. Identificado que é com o modelo
marcial, o homem deve permanecer em seu
lugar, afrontar a morte frente a frente, como
Ájax que, no trespasse, se reencontra com a
terra à qual o prende sua espada, fixa no solo,
cravada em seu corpo.
45
Para as mulheres a morte é uma saída.
Bêbeke: “Ela partiu”, diz-se de uma mulher que
morreu ou que se matou. Diz-se de Alceste, diz-
se de Evadne que deixou de um salto (bêbeke
pedásasa) a casa de seu pai para subir ao ro-
chedo de onde se lançará, ainda de um salto – o
último (pedásasa). E, chorando a morte de
Fedra, que “desapareceu como um pássaro
escapado das mãos”, Teseu grita: “um salto
súbito (pédema) levou-te para o Hades”42. Mas é
tempo de relembrar que, se para uma mulher a
morte é movimento, somente levantam vôo as
heroínas extremamente femininas. De fato, o
anúncio da morte de Dejanira, que prefere o
gládio à corda, começa como seria de esperar,
mas termina com uma conotação insólita:
“Dejanira partiu para sua última estrada – a última –, com um pé
imóvel (Bêbeke .. ./ex akinetou podôs).” (Traquínias, 874, 875)

O pé imóvel de Dejanira é talvez – a


sugestão é de Jebb, o editor inglês de Sófocles
– algo como uma locução proverbial empre-
gada para eufemizar a morte, um modo de de-
signar a marcha e a estrada como puramente
metafóricas. Prefiro ver nessa expressão, em
oposição ao vôo na aiora, uma maneira de
sugerir, antes de o coro interrogar-se a respeito
da forma da morte, que a mulher de Heracles

46
não fugiu pela via do enforcamento. Que ela
morreu como um soldado. Mas, inversamente,
é tempo de voltar ao suicídio marcial de Ajax
para verificar que, na apresentação dessa mor-
te, Sófocles soube relembrar discretamente que
para um homem o suicídio é morte desviante;
foi certamente viril a morte do herói, mas com
a ressalva de que é a espada do herói que está
de pé (hêsteken) no lugar do hoplita, enquanto
Ájax irá traspassar-se, lançando-se num salto
rápido – salto esse (isso causará admiração a
alguém?) denominado pédema41.
Boa ocasião para observar novamente que,
se na tragédia o masculino e o feminino brin-
cam cruelmente com a distribuição da humani-
dade em homens e mulheres, essa brincadeira
nada tem de fortuita, mas tende a sugerir o
modo – adequação ou desvio – pelo qual
cada personagem vive o seu destino de ser
sexuado, essa realidade ao mesmo tempo mui-
to real e muito imaginária de que a cidade
desejaria produzir uma realidade antes de tudo
social.
Entretanto, sejam elas femininas ou viris,
há para as mulheres um modo de morrer se-
gundo o qual elas permanecem plenamente
mulheres. É sua maneira, fora do teatro, de
encenar seu suicídio; encenação minuciosa
escondida do olhar do espectador e no essencial

47
narrada; encenação que, em Sófocles, obedece
mesmo a uma estrutura regida por fórmulas:
uma saída silenciosa, um canto do coro e depois
o anúncio por um mensageiro de que a mulher
se matou longe dos olhares.

O silêncio e o segredo

O silêncio é o ornamento das mulheres: idéia


presente em Sófocles, retomada por Aristóteles
e expressa em Eurípides através de Macária
que, no momento de intervir na ação, empenha-
se em mostrar que sabe disso ao observar que,
para uma mulher, o melhor é não sair do inte-
rior bem fechado de sua casa44. Mas as mulhe-
res trágicas vieram misturar-se ao mundo viril
da ação: elas sofrem por isso. E as heroínas de
Sófocles voltam silenciosamente à morada que
haviam deixado para morrer nela. Silêncio de
Dejanira em face das acusações de Hilo, pesa-
do silêncio de Euridice no qual o coro adivinha
com razão uma ameaça oculta, meio-silêncio de
Jocasta, palavra de duplo sentido onde a voz
afinal se extingue45.
Esses silêncios, que o ouvido percebe
como outros tantos sinais angustiantes, anteci-
pam uma ação que a mulher quis subtrair à
vista: Fedra tornou-se invisível (áphantos) e
48
Dejanira desapareceu (diêistosen) – digamos
que ela organizou a desaparição definitiva gra-
ças à qual, longe da vista dos mortais, chega ao
mundo invisível do Hades fugindo a todos os
olhares no próprio interior do palácio onde se
refugiou46. Da mesma forma, Jocasta e Fedra
ocultam-se por trás de portas trancadas, her-
méticamente fechadas sobre a morte, encerra-
mento que redobra o aprisionamento do corpo
no enforcamento; Édipo terá de lançar-se con-
tra a porta, Teseu esbravejará e suplicará que
lhe abram os ferrolhos47: só então poderão ver
suas mulheres. Mortas. Os espectadores não
vêem o corpo de Jocasta, mas verão o de Fedra,
da mesma forma que o de Eurídice, aparecer à
sua vista ao mesmo tempo que à de Creonte – e
o mensageiro sublinhará o jogo de cena:

“Pode-se vc-la, pois ela não está mais cm seu retiro (en mykhois)”**.

Admirável jogo do visível e do oculto, em


virtude do qual não se vê a morte de uma mu-
lher mas somente uma mulher morta. Então,
como ss mais nenhum interdito pesasse sobre
essa lugubre contemplação, a ação dramática
pode continuar, e mesmo, como no Hipólito,
organizar-se daí em diante em torno do corpo
da morta e de sua presença silenciosa: Fedra
desapareceu, mas seu corpo está ali, esse corpo

49
tirado do nó fatal para ser estendido na terra
como convém, esse corpo que ela quis usar
como prova contra Hipólito e que, mudo para
sempre, leva todavia a mensagem da ausente49.
Essa é sem dúvida uma maneira bem feminina
de apresentar a própria morte. De fato, com
Ájax, cujo cadáver é um elemento dramático
pelo menos tão importante quanto o de Fedra,
as coisas se passam de maneira diferente, e a
distribuição do ver e do ocultar é decididamente
outra: se Ájax é o paradigma viril do suicídio,
conseqüentemente um homem tem o direito de
suicidar-se diante dos espectadores50. Mas, pela
circunstância de sua morte ser apenas uma
imitação canhestra da morte gloriosa do guer-
reiro, o interdito de ver aplica-se a seu corpo.
Antes de começar entre os chefes do exército o
debate sobre a conveniência de “ocultá-lo” em
uma tumba, Têcmessa e depois Teucro, cada
um à sua maneira, esforçam-se por dissimular
o espetáculo tão doloroso quanto inconve-
niente51.
Deve-se enfim mencionar o vaivém entre
o ver e o ocultar que se instaura a propósito de
Alceste, morta em substituição a um homem.
Alceste que morre em cena e cujo corpo, inici-
almente levado ao interior do palácio, será no
teatro objeto de uma longa prôthesis (exposi-
ção) antes de o cortejo fúnebre (ekphorã) reti-
50
rá-lo da vista – definitivamente, acredita o
coro, e é verdade que, sem a intervenção de
Héraclès, Alceste teria desaparecido para sem-
pre52. Mas Alceste, a única a não ir para o
Hades, é uma exceção; são inúmeras as mu-
lheres trágicas que partem para lá sem retorno.

No thálamos: morte e casamento

Voltando sobre nossos passos, detenhamo-nos


por um instante na porta desse lugar bem fe-
chado onde uma mulher se refugia para morrer
longe dos olhares. Com seus sólidos ferrolhos,
que têm de ser forçados para se poder chegar
até a morta, ou melhor, ao corpo de que ela já
escapou, esse lugar indica o pequeno espaço da
autonomia concedido às mulheres pela tragé-
dia. Sempre suficientemente livres para matar-
se, elas não o são para escapar a seu enraiza-
mento espacial: o retiro recôndito onde elas se
matam é também o símbolo de sua vida, vida
que tira seu sentido fora de si, que só se realiza
nas instituições – casamento, maternidade –
que ligam as mulheres ao mundo e à vida dos
homens. E é pelos homens que as mulheres
morrem, é pelos homens que elas se matam
com maior freqüência53. Por um homem, para
um homem: distinção ausente em muitos tex-

51
tos, mas que Sófocles sublinha com uma aten-
ção especial, na Antígona, onde Eurídicc mor-
re por seus filhos mas por causa de Creonte, nas
Traquínias, onde Dejanira morre por causa de
Hilo, por amor de Heracles. Assim a morte das
mulheres confirma ou restabelece sua relação
com o casamento e com a maternidade.
É tempo de denominar o lugar onde elas
se matam: trata-se precisamente do aposento
conjugal, o titulamos. Dejanira se precipita nele
como faz Jocasta, Alceste derrama nele suas
últimas lágrimas antes de enfrentar Tânatos e,
saindo do palácio para morrer, é ainda para esse
lugar que ela voltará seus pensamentos e seus
queixumes. Quanto à pira de Capaneu, onde
Evadne se lança para reencontrar nela a união
carnal com o marido, ela é chamada de thala-
mai (câmara fúnebre). Essa palavra condensa as
múltiplas afinidades de sua morte com as nup-
cias54.
Entretanto, se o thálamos é a parte mais
recôndita da casa, há ainda no interior do thála-
mos o leito, lelçhos, lugar de um prazer tolera-
do pela instituição do casamento se for bastan-
te moderado, lugar sobretudo da procriação.
Não há morte de mulher que não passe pelo
leito: é lá, e somente lá, que Dejanira e Jocasta
podem, antes de matar-se, reiterar para si mes-
mas sua identidade55. É lá também que morre
52
Dejanira, na cama que ela havia associado
demasiadamente aos prazeres da nymphe: ma-
tando-se como um homem, não se morre menos
por isso em seu leito quando se é mulher.
Enfim, prendendo sua corda ao teto do
aposento conjugai, Jocasta e Fedra atraem a
atenção para o madeiramento simbólico da
casa. Essa viga da cumeeira, conhecida na
Odisséia como mêlathron, é chamada de
têramna por Eurípides; ela pode designar meto-
nimicamente o palácio pensado em sua dimen-
são de verticalidade. Mais ainda: de Safo can-
tando o epitalamio

(“Vamos, carpinteiros, levantai a viga do teto (mêlathron), Himeneu!


pois eis aqui entrando na casa nupcial um noivo igual a Ares!”)

até Eurípides, parece realmente que essa viga


tem muito a ver com o marido, cuja alta estatura
ela domina e protege56. Ocasião talvez de re-
lembrar que, em seu discurso mentiroso, Cli-
temnestra chamava Agamêmnon de “coluna
que é o sustentáculo do alto teto” (Agamêmnon,
897-898). No momento de saltar no vácuo, é a
presença ausente do homem que a mulher en-
contra pela última vez em cada ponto do thá-
lamos.

53
Morrer com

Igualmente, ninguém deve se admirar demais


de que muitas dessas mortes solitárias sejam
pensadas como outras tantas maneiras de mor-
rer com o homem. Morrer com: modalidade
mortal do synoikein, o “morar com” que dá ao
casamento grego uma de suas designações mais
correntes57.
Morrer com: este não era certamente o
desejo de Clitemnestra, que em vez de morrer
preferiu viver com Egisto, mas é o quinhão que
Orestes, com uma ironia fustigante, lhe reserva
quando, antes de golpeá-la, convida-a a ir
“dormir” na morte “com” aquele que ela ama-
va e preferira a seu marido. Justa reviravolta
das coisas na lógica da Oréstia, justa compen-
sação pela morte de Cassandra ao lado de
Agamêmnon, que Clitemnestra antes apresen-
tara como o trespasse devido a uma amante58.
Morrer com: aquilo que a lógica do assassínio
impunha às mulheres da Oréstia será para as
suicidas o objeto de um querer muito seme-
lhante ao amor e ao desespero. Assim Dejanira,
logo que adivinhou a catástrofe já em marcha,
anunciou às mulheres de Traquis, suas confi-
dentes, sua intenção de acompanhar Heracles
na morte: “Decidi que se lhe acontecer alguma
desgraça morrerei com ele, eu também, no

54
mesmo impacto, ao mesmo tempo” (Traquí-
nias, 719-720); intenção firmemente amadure-
cida, expressa quatro vezes no mesmo verso, e
à qual ela se adequará totalmente. Entretanto, o
“com” terá sentido apenas para ela mesma.
Vencido, Heracles a renegará porque ela lhe
roubou a morte dos homens, condenando-a,
para além da morte, à solidão que foi seu qui-
nhão na vida. Evocar-se-á também a Helena de
Eurípides, que não morre mas fala muito em
morrer e que, virtuosa como a de Estesícoro em
seu exílio egípcioS9, jura que se Menelau mor-
rer ela se matará com a mesma espada para
repousar ao lado do marido. Enfim, se toda
conduta contém seu excesso, Evadne merece
uma menção especial: desvairada com o casa-
mento, bacante do amor conjugal, faz da pira
fúnebre de Capaneu um túmulo compartilhado
e, não contente com aspirar a morrer com o
homem amado, sonha com o aniquilamento à
maneira erotizada da união dos corpos:

“Misturarei meu corpo ao de meu marido na chama ardente,


repousando unida a ele, carne contra carne”‘0.

Morrer com: para uma mulher, maneira


trágica de ir até o fim do casamento, realizando,
é verdade, um deslocamento temível, pois é na
morte que a coabitação com o marido se con-

55
sumará. Há entretanto uma mulher, mais mãe
que esposa ou, melhor, mãe em excesso, capaz
de deslocar o “morrer com” para o lado da
maternidade. Refiro-me à Jocasta de Eurípides
que, coerente com seu destino de mãe inces-
tuosa, morre da morte de seus filhos e, “morta,
repousa entre seus bem-amados, envolvendo
ambos com seus braços”61. É assim que Eurípi-
des reconstrói nas Fenicias a história de Jocas-
ta; ela que, casando-se com seu próprio filho,
havia misturado as nupcias com a maternidade,
somente poderia morrer como mãe. Mas, da
mesma forma, o homem a quem as mulheres
dedicam sua morte, apresenta, como já vimos,
duas figuras alternativas. Já que se trata de
morrer, uma mulher como Eurídice prefere a
morte por seus filhos à vida com o marido. A
originalidade de Jocasta é morrer com aqueles
que ela pôs no mundo, matando-se sobre seus
corpos, no mesmo lugar em que encontraram
sua morte guerreira.

A glória das mulheres

Chegou a hora de indicar o que o discurso trá-


gico sobre a morte das mulheres tira das repre-
sentações socialmente admitidas na Atenas
clássica, e em que se afasta delas. Esta questão

56
remete ao difícil problema da “gloria das mu-
lheres” (kleos gynaikon), cuja formulação,
mesmo a mais cotidiana, não se esgota com-
pletamente na abrupta profissão de fé de Péri-
cles.
Porta-vozes de uma ética tradicional, em
matéria de glória das mulheres os epigramas
funerários manifestam um radicalismo menos
intransigente que o de Péricles no epitáphios.
Digamos que eles não ignoram totalmente essa
noção. Mas essa glória, sempre subordinada à
realização de uma carreira de boa esposa, con-
funde-se com o valor (arete) propriamente
feminino, devendo ser evocada de preferência
num modo condicional, talvez no tom de reti-
cência. O valor das mulheres não se confunde
com o valor pertencente aos homens, que não
tem de ser especificado: não há “valor mascu-
lino”, há areté em si. Ouçamos o discurso do
luto em sua ortodoxia:

“Supondo-se que ainda exista na humanidade uma virtude feminina,


ela coube em partilha a esta mulher”,

diz prudentemente um epitafio de Amorgos; e


um epitafio do Pireu reitera:
“O que é uma raridade para uma natureza feminina – virtude acom-
panhada de castidade –, coube nobremente a Glicera num duplo
quinhão.”

57
Quanto ao elogio e à admiração da huma-
nidade, às vezes explicitamente conferidos a
uma esposa, a morte, este último acidente, nada
vale, e a vida que ela levou vale tudo. É isso
que se deve entender de outro epigrama do
Pireu:
“Por ocasião de sua morte Cairipe recebeu no mais alto grau aquilo
que é no mundo o elogio mais nobilitante das mulheres.”

Numa formulação ainda mais precisa, o epi-


grama gravado no túmulo de uma ateniense
afirma:
“Mais que ninguém no mundo, Antipe, rccebias o elogio adequado às
mulheres, e agora, que estás morta, ainda o recebes.”

Eis algumas menções à glória cotidiana das


mulheres. Talvez isso seja muito para Atenas,
mas é também pouco. É verdade que as boas
esposas não são trágicas.
Isso não significa que as mulheres trágicas
não sejam esposas. Mas elas o são na morte – e
só na morte, parece, pois só sua morte lhes
pertence, e é na morte que elas consumam o
casamento. Pode-se então formular duas pro-
posições contraditórias, mas complementares,
sobre sua morte. A primeira, sensível à força
dos valores tradicionais, afirma que quando as
heroínas de tragédias se realizam como esposas
na morte reforçam a tradição no instante mes-
58
mo em que inovam. A segunda, atenta a
abranger tudo que, na tragédia, tomaria o “par-
tido das mulheres”62, constata que, na morte, as
esposas ganham uma glória cuja extensão ul-
trapassa consideravelmente a do elogio conce-
dido pela tradição a seu sexo. Sem decidir en-
tre as duas proposições, porque cada uma delas
tem sua exatidão, observar-se-á que é de fato
impossível não sustentar as duas simultanea-
mente, a todo instante e caso por caso. Isso, sem
dúvida, chama-se ambigüidade, e ambíguo é o
prazer da kátharsis em virtude do qual, duran-
te uma representação trágica, os cidadãos se
comovem vendo o sofrimento dessas mulheres
heróicas que encarnam no teatro outros cida-
dãos vestidos com trajes femininos.
Glória trágica das mulheres, glória am-
bígua.
Tomemos como exemplo Alceste, figura
paradigmática desta interpretação do casamen-
to pela morte. O coro diz convictamente que ela
foi “entre todas as mulheres a melhor para com
seu marido”; e suas últimas palavras são para
dizer ao marido: “Adeus” (Khaire), exatamen-
te como as boas defuntas nas esteias dos cemi-
térios atenienses. Entretanto, essa Alceste irre-
preensível testemunha brilhantemente que a
glória das mulheres é sempre artificiosa: Al-
ceste a devotada, a amante, a virtuosa, mas a

59
quem somente essas qualidades másculas que
são a audácia e a pertinácia asseguram a “mor-
te gloriosa”; ou, porque a morte gloriosa é es-
sencialmente viril e a esposa fiel ocupou o lugar
do homem, essa tolma (audácia) feminiza em
contrapartida o marido bem-amado, condenado
a assumir uma paternidade maternalizante e a
viver desde então recluso como uma virgem ou
casto como uma recém-casada no interior desse
palácio que sua mulher deixou quando, para
morrer, entrou no espaço aberto dos feitos
viris63.
Glória eminentemente ambígua é também
a de Evadne, desejosa de morrer ao mesmo
tempo como esposa e como guerreiro. Para
honrar o casamento, a mulher de Capaneu bus-
ca a morte como um hoplita equívoco, desar-
vorado longe do campo de batalha: de pé sobre
a rocha escarpada, ansiosa pela glória de um
túmulo comum, desejosa de que toda Argos
tome conhecimento de sua morte, mas adorna-
da como uma mulher determinada a seduzir –
como uma nymphe, talvez. Disso resulta que a
“vitória” por ela reclamada como seu quinhão
a leva muito além de seu sexo, que normal-
mente ganha renome na ocupação de tecer e por
uma sábia discrição. E quando Evadne afirma
que sua vitória é a da areté (virtude), parece que
nem a mulher nem o guerreiro nela presente

60
devem achar nessa atitude sua satisfação. Com
efeito, o coro, composto de mães enlutadas, não
crê realmente em sua virtude feminina, marca-
da pelo excesso, nem tampouco em sua audá-
cia, cuja “virilidade” combina mal com a es-
posa que ela pretende ser6*.
Há também a glória tardia de Dejanira,
que só após ter cometido o ato irreparável pro-
clama seu desejo de boa fama (Traquínias, 721-
722), e sobretudo aquela – quão paradoxal! – de
Fedra. Tão apaixonada pela glória quanto por
Hipólito, Fedra morre por ter perdido a
reputação de esposa de Teseu, mas coloca essa
morte, que deseja nobre, sob o signo da métis,
colocando um nó em volta de seu pescoço,
fazendo desse nó uma armadilha para Hipólito
e deixando a sinais escritos o cuidado de clamar
por uma falsa verdade. Entretanto seu nome
será ilustre, por causa desse amor em que ela
imaginava perder sua glória, por causa dessa
morte funesta. A contradição atinge o auge. É
verdade que Afrodite nada mais tem a ver com
aquilo, mas a própria Fedra tem muito65.

Duplicidade da tragédia em matéria de


feminilidade... Por estarem “deslocadas”, essas
glórias de mulher nem por isso levam menos a
pensar, a ouvir, a ver. Mas, em sua qualidade de
61
esposas por falta ou excesso, Fedra, Dejanira,
Alceste ou Evadne não deixam de morrer sob o
signo do casamento. Sem dúvida é preciso
aceitar que constantemente a tragédia se afasta
da norma em proveito do desvio, sem que nun-
ca se tenha certeza de que, sob o desvio, a nor-
ma não esteja silenciosamente presente. Tam-
bém tentamos simultaneamente as duas leituras
possíveis: aquela que faz o inventário de todas
as distorções que, do seio de um sistema de
valores, é possível aduzir a esses valores, e
aquela que dá ouvidos a uma voz às vezes dis-
sonante no conjunto grego dos lôgoi sobre as
mulheres.

62
O Sangue Puro das Virgens

Entre as moças em flor é o sacrifício e o sangue


derramado que dominam. Por terem menos
autonomia que as esposas, mesmo no universo
trágico, as virgens não se matam; são mortas.
Generalizando dessa maneira, não esqueço
que existe ao menos uma virgem que fornece
um desmentido categórico a tal proposição:
refiro-me certamente a Antígona que, não se
contentando com matar-se, mata-se como as
esposas lacrimosas, buscando no enforcamento
um último recurso. A dificuldade é real, e
seria inútil tentar atenuá-la. No mínimo convém
proceder a uma análise meticulosa das condi-
ções inerentes à consumação da morte de An-
tígona, onde se misturam inextricavelmente um
suicídio bem feminino e algo como um sacrifí-
cio fora das normas. Embora tenha tido, em sua
opinião, o cuidado de não comprometer nem
sua responsabilidade pessoal nem a da cidade,

63
Creonte condenou inapelavelmente Antígona
ao Hades, vítima humana oferecida aos deuses
infernais para que eles se apoderassem de sua
jovem vida66; sepultada viva, a filha de Édipo
estava condenada a morrer asfixiada e, no laço
feito com seu véu de virgem, ela antecipará a
asfixia por outra via. Seu proveito com isso é
inventar sua própria morte e condenar Creonte
à mácula que ele queria evitar. Mas o sentido
desse enforcamento não se esgota no gesto pelo
qual Antígona, fiel à lógica das heroínas de
Sófocles, escolhe morrer por suas próprias
mãos e converte em suicídio o que seria uma
execução: matando-se como as mulheres bem
femininas, a moça reencontra na morte tanto
uma feminilidade que enquanto viva renegara
com todo o seu ser, como um tipo de nupcias.
Voltarei a essa questão. Mas, nessa morte ex-
cepcional, o importante era acentuar antes de
mais nada o aspecto de exceção e a estranha
norma que determina que se executem as vir-
gens na tragédia.
Essa é realmente a norma, ou aquilo que
parece ocupar o seu lugar no universo trágico:
um sacrifício, geralmente sanguinolento, cuja
vítima é uma moça.

64
Sacrifícios em que é bom pensar

Examinemos a morte de Ifigênia sob o cútelo


do sacrificador, morte paradigmática que
nenhum dos três grandes trágicos deixou de
evocar, e mais de uma vez. A morte de Ifigênia:
um sacrifício, mas cuja vítima é uma moça, não
um animal. Simples detalhe? Poder-se-ia crer
que sim, observando que, para dizer a morte de
Ifigênia, a tragédia recorre de bom grado aos
verbos sphazo e thyo, normalmente usados para
significar o degolamento e o ato do sacrifício.
Mas há textos que nos levam a ver nesse deta-
lhe uma monstruosidade e nos fazem pensar
essa morte sob a categoria do assassínio
(phonos)67.
Sacrificar uma virgem: numa palavra,
valer-se do jogo teatral para pensar o impensá-
vel, plantar-se no cúmulo da alienação para
interrogar ali a norma a partir do desvio – direi
eu: sob a proteção de um desvio que se mostra
muito evidentemente como tal? Atenta em
mascarar o assassínio oculto no sacrifício, a
prática religiosa das cidades esforçava-se para
que o degolamento do animal fosse submetido
a uma encenação rígida68. Pulverizando essas
piedosas precauções, o gênero trágico, à escu-
ta do mito, entrega as moças ao cútelo do de-
golador. E o impensável torna-se narração (pois
65
nada dessas mortes virginais será posto diante
dos olhos, tudo será confiado à sugestão das
palavras): uma narração boa para ser ouvida
porque o teatro é ficção69. Por certo, a cidade na
realidade não sacrificava suas moças; mas, na
oportunidade de uma representação, ela ofere-
cia aos cidadãos a dupla satisfação de trans-
gredir imaginariamente a proibição do phonos
e de sonhar com o sangue das virgens.
Se sobre esse jogo catártico do imaginário,
da proibição e do real, haveria muito a dizer,
muito haveria também sobre a função do teatro,
essa cena que a cidade se oferece para nela atar
e desatar ações sobre as quais o próprio pensa-
mento seria perigoso e insuportável. Não será
todavia a reflexão trágica sobre o sacrifício que
reterá aqui nossa atenção, e sim o conjunto dos
procedimentos que, de Esquilo a Eurípides,
cercam a morte das moças. Já que também o
mesmo se aplica à figura da párthenos, cabe
aqui a interrogação sobre aquilo que, do dis-
curso mitológico às narrações da tragédia, faz
de uma virgem a vítima designada de um sa-
crifício contra as regras.
Ifigênia, Macária, Polixena ou as filhas de
Erecteu: virgens oferecidas à sanguinária Árte-
mis, à temível Perséfone ou aos habitantes do
Hades, para a salvação da comunidade, para
que se possa começar uma guerra ou ao con-

66
trário para chegar a seu fim, para que se trave o
combate decisivo e que a vitória caiba ao lado
dos sacrificadores. Em suma, outras tantas
sphagia. A quem se perguntasse o que vale para
as phártenoi a sinistra honra de ser entregues
assim ao cútelo do degolador, lembraríamos
primeiro que, por ignorar o casamento e os tra-
balhos de Afrodite, a moça adquire por meio do
imaginário social noções relativas ao mundo da
guerra. Talvez se evoque então Atena, virgem
e guerreira. Mas Atena é uma deusa, enquanto
Ifigênia, Macária, Polixena e as filhas de Erec-
teu são simples mortais: à deusa cabe o privi-
légio de combater, às mortais cabe o de serem
sacrificadas. As virgens não poderiam comba-
ter ao lado dos varões mas, quando o perigo é
extremo, seu sangue corre para que a comuni-
dade dos andres viva70. Às vezes velam pela
boa ordem da imolação os “escolhidos” (loga-
des), essa elite da juventude guerreira cuja
vocação para a morte é mais imperativa que a
de quaisquer outros combatentes. Venha a der-
rota: os escolhidos deixar-se-ão matar até o
último; para que venha a vitória, os escolhidos
conduzirão ao cútelo do sacrifício uma virgem
escolhida71.
Para que o sangue dos homens não seja
derramado em vão, teria portanto de correr
sangue virgem ou, de acordo com a proclama-

67
ção dos sacrifícadores no momento de realizar
sua tarefa, “sangue puro”72. Além disso, tal
lógica, sempre referenciada ao tempo do mito,
é a do imaginário: sejam quais forem as liber-
dades que a tragédia tome com a realidade das
práticas sociais, nenhum espectador poderia
esquecer-se de que, mesmo confrontada com o
perigo, uma cidade se contenta geralmente com
a imolação de animais e de que, pensada na
perspectiva excessivamente ortodoxa do siste-
ma sacrificial, a imolação de uma virgem é pelo
menos uma anomalia. Seria para resolver essa
tensão do real e do imaginário que, de Esquilo
a Eurípides, a tragédia se empenha em anima-
lizar metaforicamente as moças sacrificadas?

Novilha, poldra: domadas

No Agamêmnon de Esquilo, Ifigênia debate-se


“como uma cabra” e seu pai a destina à morte
“como um animal (boton) escolhido num reba-
nho de ovelhas”73. É a uma novilha (moskhos)
que Eurípides a compara duas vezes, mais pre-
cisamente a uma “novilha das montanhas des-
cida virgem de um antro rochoso”74. Sempre
sacrificada na hora crucial do início do comba-
te, a cabra não é uma vítima ordinária; com a
novilha, o modelo do sacrifício pareceria mais

68
clássico se a vítima não fosse caracterizada
como montanhesa. De fato, uma vez que só se
pode imolar dentro das regras um animal do-
méstico, verifica-se que uma novilha monta-
nhesa não é absolutamente uma vítima confor-
me a essa exigência: a montanha torna selva-
gem tudo que vive nela e, salvo quando se tra-
ta de Hermes, que sabe manipular como artis-
ta a confusão das regras75, não seria possível
sacrificar uma vaca das montanhas. Nessa
comparação de Ifigênia com uma oreia mos-
khos ver-se-á então um modo de sublinhar o
desvio que caracteriza todo sacrifício humano,
“a selvageria da vítima substituindo a selvage-
ria do ato”76. O desenlace da tragédia, aliás,
proporciona uma confirmação dessa análise:
quando finalmente Artemis – ou o poeta –
substitui a moça por uma vítima animal, como
a corça corredora da montanha que expira sob
o cútelo de Calcas, o mundo selvagem se in-
troduz irreversivelmente no coração do sacri-
fício.
A semelhança de Ifigênia, Polixena em
vias de ser sacrificada é assimilada a uma no-
vilha das montanhas e, pelo caminho oblíquo
dessa analogia, sua imolação se inscreve na
interseção do civilizado e do selvagem. Mas,
para evocar Polixena, a comparação não pare-
ce a figura de estilo mais adequada. Talvez

69
porque nenhuma substituição deve suavizar in
extremis seu destino, a jovem recebe um trata-
mento principalmente metafórico: ela é a novi-
lha de Hécuba, mas também é sua “poldra” (po-
los)11. Detenhamo-nos um instante nesta última
palavra, ainda que seja para evocar outras situ-
ações muito semelhantes onde ela é usada
igualmente para caracterizar uma vítima jovem:
trata-se do filho de Creonte, Meneceu, candi-
dato ao sacrifício e, também ele, identificado
com um potro (Fenicias, 947); mas também
ocorre uma inversão da metáfora, transportada
a um universo – como o da historiografia –
onde a parte do real é mais compulsiva: já não
é a moça que é uma poldra, e sim a poldra que
é uma virgem, como compreenderá Pelópidas
que, convidado a sacrificar uma “virgem lou-
ra”, saberá decifrar o oráculo imolando uma
poldra ruça (Plutarco, Pelópidas, 20-22).
Da mesma forma que os animais selva-
gens ou asselvajados, o cavalo não é uma víti-
ma ordinária de sacrifícios – ele tem seu lugar
nos sacrifícios militares, um lugar incontesta-
velmente mais ambíguo que o da cabra. Trata-
remos todavia de polos e das conotações espe-
cíficas dessa palavra, que não cobrem necessa-
riamente o campo das representações associa-
das ao cavalo. De fato, se nos interrogarmos
sobre aquilo que faz de Polixena e de Meneceu

70
uma ou um polos, deveremos deslocar a tônica,
da polaridade do selvagem e do doméstico para
a oposição entre o que já está domesticado e o
que ainda não está78. Polixena é poldra indo-
mada, Meneceu é potro não preparado; essas
metáforas não indicam somente que ambos são
vítimas designadas para um sacrifício anômalo;
sugerem também que estão como se fosse na
expectativa do casamento. Em suma, para eles
como para Ifigênia em Áulis, há uma estreita
interação entre o casamento e o sacrifício. A
espera dessa domesticação que é o casamento,
a moça assimila-se naturalmente a uma égua
indomada, a uma novilha ainda desconhecedo-
ra do jugo79; mas, por definição, a vítima do
sacrifício deve ser também livre do jugo, e é
naturalmente – cingindo-nos ao menos à trama
metafórica do texto – que, prometidos à
decapitação, pôloi e môskhoi trocarão o casa-
mento pelo sacrifício80.
Não devemos entretanto enganar-nos: se,
para Ifigênia e para Polixena, o casamento in-
tervém no sacrifício, convém ver nisso mais
que um jogo de poeta sobre uma metáfora sig-
nificante. De fato, se o tema do sacrifício se
ordena em torno de uma metáfora ligada a ani-
mais, é porque, como a vítima, a moça é sub-
missa, passiva, dada, conduzida. Digamos com
maior precisão que os sacrifícios trágicos es-

71
clarecem o ritmo muito cotidiano do casamen-
to, pelo qual a virgem passa de um kyfios (tu-
tor) a outro, do pai que a “dá” ao marido que a
“conduz”81. Ironia trágica dos cortejos fúnebres
que deviam ter sido nupciais – o de Ifigênia, o
de Polixena, também o de Antígona82 –, casa-
mentos ao inverso por levarem a um sacrifica-
dor que é freqüentemente o próprio pai83 – e,
ver-se-á mais tarde, para a casa de um marido
chamado Hades. Ironia trágica o gesto do filho
de Aquiles, “tomando pela mão” Polixena para
pô-la no alto do sepulcro de seu pai84. Quando
a vítima é uma virgem, o sacrifício é tragica-
mente irônico, por assemelhar-se demais ao
casamento.

Da execução como casamento

Para esclarecer essa semelhança, não nos apres-


saremos a relacioná-la com qualquer sistema
geral em que Eros se comunicaria com Tâna-
tos85. Com efeito, se generalizarmos muito
depressa, se nos contentarmos com a satisfação
que experimentamos com a descoberta da “evi-
dência de algumas grandes leis universais”, ar-
riscar-nos-emos pura e simplesmente a esque-
cer a língua – grega, mas sobretudo trágica –
onde se enuncia a equivalência da execução e

72
do casamento. Ao ímpeto interpretativo prefe-
rir-se-á, então, uma vez mais, a lenta caminhada
na literalidade do significante trágico.
Uma primeira figura impõe-se imediata-
mente: as virgens conduzidas à morte são es-
posas para Hades. Nas representações partilha-
das da vida social, cabe à morte ser metáfora do
casamento porque, durante todo o cortejo nup-
cial, a moça morre por si mesma: tanto é assim
que em Locris as noivas deviam imitar Persé-
fone raptada pelo esposo vindo do mundo
subterrâneo86. Benefício incomparável da fic-
ção: consagrando as moças à morte, a tragédia
inverte a ordem usual do discurso; indo contra
a metáfora, as virgens trágicas chegam à mo-
rada dos mortos como se trocassem a casa pa-
terna pela do marido87, quer seja seu destino
encontrar, sem maior precisão, o “casamento no
Hades” (Eurípides, Troianas, 445), quer seja
encontrá-lo na união com Hades.
Casamento no Hades, união com Hades:
no âmago do sacrifício ou da execução, o des-
tino trágico das párthenoi inscreve-se no fundo
dessa tensão do no e do com e, como se toda
virgem devesse inelutavelmente realizar-se
como esposa, não existe aparentemente tercei-
ro termo para essa alternativa entre uma versão
“fraca” e uma versão “forte” da morte como
casamento88. Assim, é no trespasse que Antí-

73
gona, morta por haver preferido um irmão
morto a uma vida de esposa, terá diante de si
um casamento, quer se imagine que ela vá
“encontrar um marido no Hades”, como sugere
Creonte, quer ela esteja destinada sem mais
rodeios a casar-se com o senhor dos mortos:
antes de morrer ela dera ao esposo infernal o
nome de Aqueronte, mas no discurso do men-
sageiro a moça (kore) encontrou o próprio
Hades em “seu aposento nupcial cavado na
rocha”89. Além disso, corpo já inerte abraçado
por Hêmon, Antígona escapa ao noivo que
entretanto se matará para juntar-se a ela,
movido pelo desejo desesperado de desposá-la
“na morada de Hades” (Sófocles, Antígona,
1240-1241). Seja ainda Ifigênia, vinda a Áulis
para casar-se com o melhor dos aqueus, mas
que afinal verifica que seu esposo é “Hades e
não Aquiles”90.
Mas, com Ifigênia, começa um percurso
através das figuras mais secretas, próprias para
enunciarem a equação mortal das nupcias e do
degolamento. Um lamento de Agamêmnon,
suspirando em vão a propósito do destino de
sua filha, prenderá especialmente a nossa aten-
ção, pois o que ele exprime é talvez mais que
uma evocação dos esponsais infernais de Ifi-
gênia. Quando o rei brada:

74
“Quanto à desventurada virgem – que digo? virgem (párthenos)? –
Hades, segundo parece, casar-se-á com ela dentro de pouco tempo”
(Ifigênia em Áulis, 460-461),

deve-se ouvir nessa exclamação uma simples


variação em torno das nupcias de Hades? Ou
deve-se dar sentido à reticência de Agamêmnon
e entender que a virgem perde sua virgindade
no sacrifício? Esses dois versos da Ifigênia em
Áulis não bastariam por si mesmos para con-
firmar a segunda hipótese. Há, porém, duas
outras passagens de Eurípides onde uma vir-
gem sacrificada, sem ser entretanto declarada
esposa de Hades, sofre a perda da virgindade. É
o que ocorre com Polixena que, em Eurípides,
não se casa com Aquiles na morte91. Polixena,
até então nymphe prometida a reis e que, em
sua altivez, pretende entregar a Hades apenas
seu corpo (demas), de forma nenhuma sua
pessoa; Polixena que, no instante da morte, dirá
somente que vai “para debaixo da terra, sem
esposo, sem himeneu”. Ora: uma vez imolada,
esta mesma Polixena será qualificada por sua
mãe lacrimosa de “esposa sem esposo, virgem
que não é mais virgem” (nymphe ánymphos,
párthenos apárthenos)92.
Com Polixena, certamente o comentador
pouco preocupado em deter-se numa expressão
delicada, pode ainda descartar-se desta proje-
tando sobre o texto de Eurípides o romance
75
helenístico das nupcias de morte com Aquiles;
ele escreverá então que, na morte, as “cativas
de guerra tornavam-se concubinas de seu se-
nhor”93, e considerará o problema resolvido
prometendo a jovem troiana à sombra do herói
grego. A dificuldade, entretanto, reabre-se mais
aguda do que nunca nos Heráclidas com a vir-
gem Macária. Macária, que não é oferecida a
um herói, e sim sacrificada a Core; Macária,
que não pretende unir-se ao marido da deusa
dos mortos, e para quem Hades é apenas o
nome de um lugar; Macária, que renuncia à
hora das nupcias para salvar sua raça e a vida de
seus irmãos. Macária, párthenos exemplar.
Mas, evocando a glória decorrente de sua es-
colha e as honras fúnebres que serão seu qui-
nhão, a virgem Macária declara que “terá esse
tesouro em vez de filhos e de virgindade” (anti
paidon... kai partheneias)94. Embaraço dos tra-
dutores, embaraço dos comentadores: que uma
virgem troque os filhos que não terá pela glória,
isso afinal de contas está na ordem das coisas
onde, pensam os comentadores, pensam os tra-
dutores, uma mulher – principalmente grega –
não poderia ter tudo; mas em que a glória
deveria “ocupar o lugar” da virgindade no caso
de Macaría, a virgem sábia? Pergunta ingênua,
de que alguns comentadores e tradutores se
desembaraçam dando a anti (em vez de) dois

76
sentidos muito diferentes, dependendo de o
regime ser “os filhos” – bem precioso que será
substituído pela glória – ou a “virgindade” –
estatuto incompleto de que, numa leitura ao
mesmo tempo psicológica e pequeno-burguesa,
se imagina que uma párthenos deseje livrar-se
o mais depressa possível para realizar-se no
casamento: e as honras fúnebres tornam-se uma
“compensação” por essa virgindade forçada95.
Porque nada de tudo isso é realmente convin-
cente, nem mesmo conforme ao rigor grave
característico da filha de Heracles, desejar-se-
ia, com a ajuda da leitura adotada até agora
remontando da Ifigênia em Áulis para a Hécu-
ba e os Herácüdas, oferecer uma resposta ca-
paz de conservar toda a força da declaração da
moça: trata-se efetivamente de dois bens pre-
ciosos que a virgem dá com sua vida; dois bens
aos quais ela renuncia para sempre: os filhos
que ela não terá, e a virgindade intacta que ela
vai perder com a vida no instante do degola-
mento.
Com efeito, lendo os textos com rigor é
preciso concordar com a estranha verificação
de que uma virgem sacrificada perde sua
parthêneia (yirgindade) sem entretanto ganhar
um marido. À semelhança de Ifigênia, à seme-
lhança de Polixena, Macária jamais será uma
gyné; apesar disso, não é mais uma párthenos

77
que o Hades ganhará. Nem mulher, nem vir-
gem, mas um entremeio, como uma nymphe.
Uma nymphe ánymphos, entretanto, esposada
sem esposo. É sob a forma desse oxymoron,
evocado há pouco a propósito de Polixena, que
se deve pensar a figura paradoxal da virgem
sacrificada, da qual se tira a parthêneia no ins-
tante mesmo da exaltação de sua pureza de
novilha indomada. Graças sejam dadas por isso
a Macária: por não ser prometida a nenhum
Aquiles, a nenhum Hades, a filha de Heracles
compele o leitor à audácia, ou, no mínimo, a
uma interpretação mais exigente do texto.
Pode-se então formular algumas proposições:
num certo nível de generalidade, na tragédia
euripidiana a morte de um ser jovem provoca
necessariamente a evocação de suas nupcias96 e,
nessa perspectiva, a virgem sacrificada, esposa
de Hades, nada mais é que uma encarnação
entre outras do equivalente da morte e do ca-
samento. Mas existe também em Eurípides urna
língua, obscura para dizer o obscuro, em que a
morte sanguinolenta das párthenoi é pensada
como uma maneira anômala, atópica, de con-
sumar a virgindade em feminilidade. Como se,
talvez, a decapitação valesse por um deflo-
ramento97: garganta cortada, Ifigênia, Polixena
e Macária são párthenoi apárthenoi, virgens

78
não-virgens. Assim, sob o signo do impensável,
as virgens trágicas de Eurípides dão o passo que
satisfaz ao mesmo tempo os deuses irritados e
os sonhos dos espectadores.
Sem dúvida objetar-se-á a esta análise que
existe em Eurípides pelo menos uma vítima
jovem de sacrifício do sexo masculino. Evocar-
se-á então o irmão de Hêmon, Meneceu, cuja
imolação à terra de Tebas a cólera de Ares exi-
ge nas Fenicias. Mas deve-se ver na morte de
Meneceu a versão viril, portanto tebana, do
sacrifício virginal: no universo dos espartos (os
“semeados”), que outra vítima senão um macho
poderia morrer pela pátria, essa terra de ma-
chos98? Certamente a circunstância de a vítima
ser um rapaz e não uma virgem não é sem
conseqüências: assim, por ser um privilégio
masculino empunhar a arma, ao contrário das
párthenoi que tombam sob o cútelo do degola-
dor, o filho de Creonte é seu próprio sacrifica-
dor, e nessa morte ninguém saberia distinguir
claramente o sacrifício do suicídio, e o suicídio
de uma gloriosa morte guerreira”. Mas o es-
sencial está na semelhança, não no afastamen-
to: embora se devote como um guerreiro, é por
sua virgindade de potro ainda ignorante da
domesticação do casamento que Meneceu deve
ser designado como vítima do sacrifício100
79
Ocasião, para quem se interessa pela antropo-
logia do casamento grego, de lembrar que
também a propósito do homem essa instituição
é critério de maturidade101, apesar de a passa-
gem ser mais marcante nas mulheres. Ocasião
principalmente para meditar sobre a lei segun-
do a qual só a virgindade se presta ao sacrifício,
para que, glorificada pelo verbo trágico, o sa-
crifício humano possa ser pensado.
É assim que, por ignorar o himeneu,
Meneceu vem ocupar um lugar ao lado de Ifi-
gênia, de Polixena e de Macária. Mas – a
nobreza de seu devotamente não poderia mas-
cará-lo – se todo sacrifício humano é desvi-
ante, o imaginário prefere entregar ao degola-
dor uma moça a ter que pensar esse desvio. A
párthenos: uma vítima submissa, passiva, dócil.
Sem dúvida.

Liberdades virginais

Para ser fasto, todo sacrifício animal deve


mostrar a aquiescência da vítima102. Mesmo
imaginado por um autor trágico, um sacrifício
humano não poderia deixar de enquadrar-se
nessa regra. A não ser que se queira apresentar
esse sacrifício como um puro assassínio, onde

80
a moça conduzida à imolação não consente.
Essa é a escolha103 de Esquilo no Agamêmnon.
Sem dúvida a palavra phonos não é expli-
citamente pronunciada, porém o sacrifício da
virgem é claramente designado como uma
mácula, antes mesmo de, na descrição de Ifi-
gênia levada ao suplício, o texto acumular as
provas de acusação contra o pai que ousou
imolar sua filha. Nada há, até o estatuto virgi-
nal da moça, que não seja pensado como uma
circunstância agravante (“tudo isso – até sua
idade virginal! – ela viu descartado como se
nada fosse!”). Mas o essencial é que Esquilo
não deixa lugar algum a esse assentimento da
vítima, que confere ao sacrifício animal sua
legitimidade formal; logo depois de ser dado o
sinal da degolação, a violência passa a dominar:
erguida, agarrada, amordaçada para que não se
lhe ouvissem os gritos104, Ifigênia, que se debate e
se agarra à terra, recusa desesperadamente sua
aquiescência10* a essa imolação cujo aspecto
escandaloso Esquilo se compraz em subli-
nhar106.
Se excetuarmos a. Ifigênia em Táuris, cuja
heroína recorda horrorizada a violência que lhe
foi infligida de modo muito esquiliano, a es-
tratégia euripidiana em face das virgens imola-
das é completamente diferente. De fato, Eurí-
pides aceita a ficção do sacrifício humano ape-
81
nas para desviar-lhe a significação. Maneira
hábil de recusar aquilo que entretanto a ence-
nação e a realização descrevem minuciosa-
mente. Sob a aparência de respeitar a regra da
aquiescência, transforma-se o assentimento em
escolha livremente feita e a morte infligida em
morte voluntária, para não dizer em morte glo-
riosa. Tudo está no lugar, porém nada tem
agora o mesmo sentido.
Ainda uma vez a filha de Agamêmnon
adquire o caráter de paradigma, ela que, na Ifi-
gênia em Áulis, morre voluntariamente (hêkou-
sa: ver o verso 1555). Agarrada por mãos bru-
tais, a Ifigênia de Esquilo foi “erguida por cima
do altar” (hypenhe bomou labein aerden) e,
nisso que é uma prática sacrificial normal com
uma vítima animal, Esquilo via apenas um sinal
flagrante de violência e de compulsão107. Aer-
dén: no ar. Se, na aiora do enforcamento, as
esposas elevam-se no ar espontaneamente, a
moça sacrificada não desejou um instante se-
quer deixar o chão. Pobre Ifigênia: Eurípides
recordar-se-á dela na Ifigênia em Táuris, onde,
desde os primeiros versos da tragédia, a filha de
Agamêmnon, numa franca imitação do texto
esquiliano, evoca o instante funesto em que,
“infortunada, agarrada e erguida acima do al-
tar” (hyper pyras metarsia lephtheisa)m, ela ia
perecer atingida pelo gládio. Inversamente, não
82
causará maior admiração que, no fim da Ifigê-
nia em Áulis, onde a liberdade da heroína não
poderia se coadunar com uma compulsão, ain-
da que ritual, esse sinal de pura violência tenha
desaparecido. De fato, quando, de pé diante de
seu pai, Ifigênia anuncia que, dando com toda
a liberdade seu corpo para ser sacrificado, apre-
sentará silenciosa e corajosamente o pescoço, a
virgem impede por isso mesmo os argivos de
porem as mãos sobre ela – maneira de recusar-se
a ser tratada como vítima e “erguida” de
conformidade com o ritual (Ifigênia em Áulis,
1551-1561). Depois disso a atenção se con-
centra nos preparativos para a imolação e, do
que foi no último instante o comportamento de
Ifigênia – altivamente erecta, ou talvez
ajoelhada? – o texto, numa elipse eloqüente,
nada mais diz. Em compensação – e sem
dúvida não se trata aqui de um acaso –, desde
que o gládio de Calcas a feriu a descrição volta
a ser precisa a propósito da corça montanhe-sa
imolada em vez da moça, alongada sobre o
solo mas cujo sangue jorrava para molhar no
alto (arden) o altar de Artemis109: com a vítima
animal o ritual do sacrifício, mesmo desviante,
retomou seus direitos, embora a párthenos ti-
vesse desaparecido, imobilizada em sua livre
escolha.
83
Entretanto, a figura mais perfeita dessa
recusa virginal de ser “agarrada e erguida” é
ainda Polixena – que todavia o exército grego
espera ver debater-se, pois a missão dos esco-
lhidos aqueus era conter seus saltos desespera-
dos110. Princesa troiana mas irmã de infortúnio
de Ifigênia e como esta sacrificada pelo exér-
cito grego, Polixena sabe deter o gesto do sa-
crificador que fazia aos escolhidos o sinal para
agarrarem-na (labein); à semelhança de Ifigênia
ela proclama sua liberdade, proíbe que a to-
quem com suas mãos e declara que estenderá
corajosamente o pescoço. A partir desse ins-
tante a narração passa a ser mais precisa: Aga-
mêmnon – ele, novamente! – dá ordens aos
jovens para soltarem apárthenos. Então, pon-
do o joelho em terra, a virgem Polixena se ar-
rima firmemente no solo para morrer111. Esse
joelho dobrado não nos sugerirá qualquer prá-
tica oriental, bárbara, de prosternação (prosky-
nesis), pois em sua reivindicação de liberdade,
Polixena é digna de ser grega. Pensar-se-á ainda
menos em algum gesto de súplica112: ajoelhada, a
Polixena de Eurípides não está implorando
como estará na tradição iconográfica posterior,
que se compraz com interpretações mais senti-
mentais de sua atitude113; muito ao contrário,
nessa postura seguida por um “discurso de uma
bravura incomparável” deve-se adivinhar a

84
aceitação serena da morte, mas também e prin-
cipalmente a recusa, expressa em ato, a ser tra-
tada como um corpo passivo, “agarrada e
erguida” como a Ifigênia de Esquilo, como a
Polixena que, muito antes de Eurípides, os pin-
tores de vasos gostavam de reproduzir levan-
tada horizontalmente acima do altar114.
Da compulsão máxima sofrida pela Ifigê-
nia de Esquilo – a mesma que Eurípides se
compraz em transportar para Táuris – à liber-
dade heróica de Polixena115, a distância é grande,
na medida das reinterpretações com que os
poetas e as mentalidades contribuem para uma
tradição. Eurípides prefere em geral conferir à
párthenos coragem e liberdade de decisão,
qualidades que, na realidade pouco trágica da
vida, as instituições negam à moça grega. Co-
ragem e decisão: isso é ainda característico de
Macária, com essa afirmação muitas vezes rei-
terada de sua liberdade; Macária que também
não queria morrer nas mãos dos machos, mas a
quem o texto dos Heráclidas recusa estranha-
mente a homenagem póstuma de uma descrição
de sua morte116.
Macária, Polixena, Ifigênia: libertas do pai
quando este as condena à imolação, pois des-
viam para seu próprio uso a liberdade de esco-
lha característica do kyrios111, as virgens euri-

85
pidianas se apropriam do sacrifício que se lhes
impõe como sua morte, uma morte que lhes
pertence.
Uma morte que lhes pertence: sem hesitar,
certos comentadores incluem esses trespasses
reivindicados no número dos suicídios118. As-
sim fazendo eles reduzem a importância do
audacioso desvio através do qual a vítima sacri-
ficial conquista o domínio de sua própria mor-
te. Suicídios, sacrifícios voluntários? Seria
melhor ver aqui uma variante, muito singular
por ser virginal, da morte heróica que se aceita
pela pátria e/ou pela glória. Nada há até o
hêkousa (“voluntário”), pelo qual as párthenoi
consagradas proclamam sua livre aquiescência
ao sacrifício, que se assemelhe à figura retóri-
ca da morte aceita (ethêlein apothnéisken), essa
designação cívica do consentimento do tres-
passe. Com efeito, a morte gloriosa não é pro-
curada, é aceita: da mesma forma que os cida-
dãos de Atenas e de Esparta se inclinam dian-
te de um imperativo ditado pela cidade, as vir-
gens aceitam um destino de que se apro-
priam119.
Mas, seguramente, nunca nada é tão sim-
ples em Eurípides e, na sábia confusão que
cruza a morte heróica com o sacrifício, o suicí-
dio não é completamente estranho. Por exem-
plo, a morte das filhas de Erecteu. No íon, à
86
exceção de Creusa, poupada graças à sua ju-
ventude (277-278), essas párthenoi eram spha-
gia, vítimas sacrificiais que seu pai “ousa imo-
lar pela terra” ateniense. No Erecteu, tudo in-
dica que somente uma das moças era sacrifica-
da. Ou, mais exatamente, que ela encontrava
uma morte heróica no sacrifício: com efeito, a
prescrição anunciada por Atena no fim da peça
de “sepultá-la exatamente onde (hoúper) ela
morreu” assemelha-se muito com as homena-
gens que, em Heródoto os atenienses reser-
varam a seu concidadão Telos, caído pela pá-
tria, sepultando-o “precisamente onde ele tom-
bou”120. Até aqui tudo parece claro. Excessiva-
mente claro: com efeito, prosseguindo em sua
alocução Atena dá ordens a Praxitea, mulher do
rei e mãe da moça, para sepultar no mesmo
túmulo as irmãs da vítima que, fiéis a seu jura-
mento, se mataram sobre o corpo da virgem
decapitada. E eis que um túmulo coletivo, essa
honra reservada aos guerreiros com “a glória
igual para todos”, abrigou os corpos das virgens
e, além disso, reuniu na morte a vítima sacrifi-
cial e as jovens suicidas121. É verdade que, jus-
tificando essas honras fúnebres pela nobreza
(gennaiotes) demonstrada pelas irmãs, a deusa
apresenta seu sacrifício como uma forma vir-
ginal de morte heróica. Assim ficam lado a lado
e se aproximam o sacrifício, o suicídio e a

87
morte heróica. Mas, tratando-se de uma tragé-
dia de Eurípides, quem ousaria esperar que ele
se apegasse a alguma lição inequívoca? De
fato, a confusão dos gêneros, das instituições e
das linguagens é prática eminentemente euri-
pidiana, quaisquer que sejam as “intenções” do
trágico, quer ele use ou não a ironia e pretenda
ou não deixar à crítica dos espectadores esses
exércitos viris que acham a sua salvação no
sangue das virgens122.

A glória das moças

Às párthenoi, então, uma morte heróica e o


louvor imortal.
Se, para as moças como para as mulheres
feitas, a morte se inscreve sob o duplo signo do
casamento e da glória, sem qualquer dúvida a
fama das virgens tem mais semelhança com a
êukleia (a nobre glória) guerreira que a das
esposas.
Por certo a glória é essencialmente viril, e
a Meneceu, o jovem potro morto como guer-
reiro, cabe sem contestação o título de “vito-
rioso”. Mas, em Esquilo, era também vitoriosa
a párthenos Cassandra aquiescendo a uma
morte sanguinolenta que, deflagrando o ciclo
de assassínios, vingaria sua linhagem exter-

88
minada123. Gloriosa em sua hybris era a Antí-
gona de Sófocles, única entre os mortais a des-
cer por sua livre vontade (autônomos) ao mun-
do dos mortos124. Quanto às virgens sacrifica-
das, diz-se sobre elas o bastante para sugerir
que a glória lhes é conferida irrestritamente:
glória de Macária ou de Polixena, glória de Ifi-
gênia em Áulis por quem as mulheres do coro
cantarão o peã125, como se, abandonando o lado
dos varões, a grandeza viril passasse para essas
moças das quais se tira a virgindade com a vida.
De fato, em sua determinação súbita que des-
concertou mais de um comentador, a filha de
Agamêmnon, párthenos paradigmática, con-
quista, para si mesma e para suas irmãs de glo-
rioso infortúnio, um valor (arete) que ultrapas-
sa o de Aquiles126.

Sendo assim, elabora-se na tragédia, a


propósito das virgens sacrificadas, uma refle-
xão sobre a condição problemática de párthe-
nos. Reflexão paradoxal que subverte os gestos
do casamento submetendo-os ao prisma às
vezes muito pouco deformante dos ritos sacri-
ficiais. Além disso: construção imaginária – e
marcada pelos limites próprios do imaginário
– de uma acepção virginal da glória. Deusa,
Ártemis pode perfeitamente identificar-se com

89
seu epíteto de Êukleia; ela é a gloriosa. Mas,
que dizer da gloria das moças bem mortais (e
que morrem por isso) senão que ela é como se
fosse roubada aos guerreiros que não morrerão,
porque o sangue virginal correu por eles? Com
efeito, no âmago do imaginário trágico resta
uma impossibilidade por onde o real retoma
seus direitos: a propósito da morte das moças,
como pouco antes a propósito da morte das
esposas, não há palavras para pensar uma gló-
ria feminina que não existam na língua da fama
viril127.
E sempre a glória faz correr o sangue das
mulheres128.

90
Lugares do Corpo

Benefícios do imaginário, todavia: melhor ser-


vida que a esposa cotidiana ou a moça prema-
turamente desaparecida mencionadas nos epi-
gramas funerários – pálidos fantasmas de dis-
cursos, cuja beleza jamais é evocada –, a mu-
lher trágica conquista um corpo no jogo da gló-
ria e da morte. Um corpo por onde com certeza
vem a morte. Mas esta é a regra dos jogos do
imaginário: perde-se neles aquilo que ao mes-
mo tempo se conquista.
Um corpo, então. Mas um corpo mal co-
nhecido: em geral mais preocupada com prá-
ticas institucionais que com esquemas corpo-
rais, a reflexão antropológica sobre a tragédia
nem sempre tem prestado atenção suficiente a
esse tópico do corpo trágico que, de Esquilo a
Eurípides, se desenha em torno dos lugares da
morte. Para terminar, proponho um levanta-
mento desses lugares por onde a morte vem às

91
mulheres, descobrindo-os na literalidade dos
textos. Com efeito, para realizar um levanta-
mento semelhante a única via é confiar, mais
uma vez, na precisão do significante trágico.
Precisão propositalmente clínica; assim, con-
trariamente ao que poderiam sugerir traduções
mais desejosas de transpor os textos que de
deixá-los à sua especificidade grega, o “fíga-
do”, na tragédia, é sempre exatamente o fígado,
e não algo parecido com o coração129, e não é
indiferente que a morte advenha a Dejanira,
ferida no fígado, por onde ela vem aos homens.
Mas não antecipemos.

O ponto fraco das mulheres

Aos olhos horrorizados de Creonte e de seu


séquito aparece subitamente – visão brutal,
figura do irremediável – o corpo morto de
Antígona “suspensa pelo pescoço”, kremastén
áukhenos (Sófocles, Antígona, 1221). Mas,
para evocar as tristes enforcadas, o pescoço no
laço, Eurípides recorre mais freqüentemente à
palavra dere130. Palavra mais rica, sem dúvida,
por ser dotada de uma carga afetiva mais forte:
no silêncio do abandono, o que a filha de Édi-
po prendeu no nó de seu véu, aukhén, foi o
pescoço visto pelo lado da nuca; ao contrário,

92
dere é “a parte da frente do pescoço, a gargan-
ta”, ponto forte da beleza das mulheres –
pense-se na “garganta esplêndida” de Afrodite,
pela qual, no canto III da Ilíada, Helena re-
conhece a deusa, na “garganta delicada” que a
amada de Safo gosta de enfeitar de flores, ou no
“pescoço deslumbrante de alvura” que, sob o
olhar da ama, Medéia desvia para chorar –
mas é também aquilo mesmo que, na volup-
tuosidade do luto, as virgens e as mulheres se
comprazem em ferir, unha aguda sobre gar-
ganta delicada131.
Dere é tudo isso, e é para a mulher prin-
cipalmente o ponto de sua maior fragilidade. É
pela dere que se enforca, é também por ela que
vem a morte para as moças imoladas. Com
efeito, nas narrações de sacrifícios dere desig-
na com precisão a parte do corpo onde os ofi-
ciantes aplicam o cútelo no instante de matar132.
Recordação da Ifigênia em Táuris: “Ah! Quan-
do meu pai infeliz aproximou seu gládio de
minha garganta...” Advertência de Aquiles à
filha de Agamêmnon: “Quando vires o gládio
bem perto de tua garganta...” Garganta de Ifi-
gênia, garganta coberta de ouro de Polixena que
o sangue vai logo avermelhar: de nada serviria
multiplicar os exemplos e enumerar infinita-
mente as ocorrências de dere num contexto
sacrificial133. No máximo se assinalará que, do

93
lado da dere, há ainda o sopro e a vida: em tor-
no dessa palavra mais de uma vez a evocação
do sacrifício se imobiliza no instante suspenso
da ameaça em que, com o cútelo sobre a gar-
ganta, a virgem ainda respira. Mas, tratando-se
de uma garganta já cortada ou na qual o gládio
se aprofunda, dere cede o lugar a laimos, nome
da garganta como goela134, pois uma vez cortada
a bela superfície do pescoço, a morte se in-
troduz no interior do corpo. A linguagem trá-
gica é precisa, aqui e sempre. E são precisas as
descrições: no instante de ferir Ifigênia, o sa-
cerdote examina com o olho agudo do anato-
mista a garganta (laimos) da vítima para dis-
tinguir nela o ponto onde o cútelo se aprofun-
dará melhor (Ifigênia em Áulis, 1579); e quan-
do no Orestes, no instante em que crê poder
imolar finalmente Helena a título de vítima
expiatória o herói, “inclinando-lhe o pescoço
(dere) sobre o ombro esquerdo”, prepara-se
para “aplicar-lhe seu gládio negro na garganta
(laimos)”, mais de um comentador reconheceu
nesse relato a evocação precisa de um gesto de
sacrificador135. Tudo está então em ordem – a
ordem conveniente à execução. A menos que
haja aqui, oculta, alguma ordem secreta regu-
lando o corpo feminino: como se, muito além
das práticas rituais e de seus imperativos, a
garganta das mulheres chamasse a morte, para

94
matar Clitemnestra é ainda na garganta que
Orestes golpeia – sem dúvida, para Eurípides,
maneira de comentar a palavra sphagém – e
nas Fenicias é através do pescoço que Jocasta
enfia o gládio do suicídio (veja-se o verso
1457). Talvez, evocando a Jocasta de Sófocles
que, mais normalmente, passava o laço por seu
pescoço, ver-se-á nesta precisão algum piscar
de olhos de Eurípides, decidido a sublinhar o
desvio que o suicídio guerreiro da heroína in-
troduz em uma tradição firmemente estabele-
cida. Da mesma forma, a propósito da garganta
cortada de Clitemnestra, talvez nos recordemos
do discurso mentiroso onde, no Agamêm-non,
ela pretendia haver passado mais de uma vez
a corda em volta de seu pescoço (dere: veja-
se o verso 875). Jocasta, Clitemnestra: duas
maneiras, para uma mulher, de ser mor-
talmente atingida no local onde deveria ter
apertado o laço; num caso como no outro, falar-
se-á então em sobredeterminação. Mas verda-
deiramente estranha é a sobredeterminação em
virtude da qual, enforcamento ou sphagé, suicí-
dio137, assassínio ou sacrifício, as mulheres
aparentemente devem morrer pela garganta, e
somente por ela.
Sem dúvida o leitor deve estar se pergun-
tando como é, na tragédia, a morte dos homens.
E será inevitável responder-lhe que estes, de

95
fato, morrem bem poucas vezes golpeados na
garganta, quer sejam vítimas de um assassínio,
quer tombem durante um combate138. Se ima-
ginamos que a morte de Clitemnestra é para
vingar a de Agamêmnon “pelas mesmas vias”
(“trôpon ton autorí”), sob essa expressão é
preciso perceber o parricidio e não as modali-
dades estritas do assassínio, pois, a crer em
Sófocles, o rei traído foi abatido com uma
machadada em plena testa139. E se em Homero o
pescoço é um dos pontos mais vulneráveis do
guerreiro – é nele, di’áukhenos, que Aquiles
enfia seu dardo no corpo de Heitor, e não faltam
na Ilíada combatentes para expirar com a gar-
ganta traspassada140 –, nada disso se pode
observar no universo trágico. No máximo se
evocará um coro das Fenicias sobre o comba-
te singular entre os filhos de Édipo, que fará
“correr o sangue da garganta fraterna” (homo-
gène dêran)141; mas, além de que na realidade é
por outras vias que a morte advém a Eteocles e
a Polinices, admitir-se-á naturalmente que esse
duelo fratricida, última ocorrência de uma
guerra civil na escala da familia, ressalta mais
da sphagé que da guerra.
Essas análises conduzem a uma inevitável
conclusão: na garganta das mulheres a morte é
de certo modo dissimulada, oculta na beleza
mesma que os textos somente evocam com

96
mais liberdade no exato momento em que,
ameaçada, a vida nelas vacila. Pescoço alvo de
Medéia amargurada, cujo suicídio a ama teme,
garganta alva, garganta sem defeitos de Ifigê-
nia, sobre a qual o gládio assassino já está em
vias de cair142: assim o fantasma euripidiano do
cútelo sobre a garganta serve para revelar a
visão trágica da sedução feminina, perigosa
antes de tudo para aquela que é seu suporte
demasiadamente frágil.

Enumeração do corpo viril

Não há ponto algum do corpo por onde a morte


épica não possa “domar” o homem: há o pes-
coço, certamente, mas também o baixo ventre
(Iliada, XI, 380), a fronte, as têmporas, o
flanco, o peito (principalmente o lado direito),
os pulmões, a virilha, o umbigo, o calcanhar...
Pararei aqui essa enumeração cujo único obje-
tivo é sugerir a riqueza viril do corpo homérico,
todo ele vulnerável para dilacerar, cortar, aba-
ter143. Certamente a tragédia não retoma esta
compulsão enumerativa, mas isso não a impe-
de de dotar o homem de um corpo incompara-
velmente mais diversificado que o da mulher,
ao menos no que concerne às vias de acesso à
morte.

97
Há o flanco (plêurori), que o guerreiro
protege ainda mais por saber que morrerá se for
atingido nele144; e até o assassínio parece ter de
encontrar seu caminho no corpo viril por essa
via mortal: assim, assassinado à traição em
Delfos e traspassado pelos golpes que numero-
sos projéteis lhe causaram, Neoptólemo so-
mente cai quando um gládio afiado o atinge no
flanco145. Há o ventre, onde nas Fenicias Poli-
nices é atingido mortalmente por um golpe no
umbigo, e toda essa cavidade interior do corpo
onde os próprios médicos nem sempre distin-
guem com clareza um alto e um baixo, um fron-
teiro e um lateral, porque tudo ali se comunica,
de tal maneira que se pode dizer indistintamen-
te que o golpe mortal penetra “através dos pul-
mões” ou “através do flanco”146. E, principal-
mente, atendo-nos ainda à mesma região do
corpo, há depois o golpe no fígado, fatal para o
guerreiro: aquele que, no Erecteu, provoca a
morte de Eumolpo, aquele que, nas Fenicias,
Polinices moribundo consegue desfechar em
Etéocles. Golpe mortal entre todos os golpes
mortais, pois Etéocles morrerá antes de seu
irmão, e sem poder articular uma única palavra;
golpe funesto cujo poder fulgurante Medéia, a
feiticeira, conhece muito bem, ela que,
planejando uma morte tripla sob o disfarce de

98
uma ação guerreira, imagina por um instante
desfechar no fígado do rei de Corinto, de sua
filha e de Jasão147.
O flanco, o fígado: lugares mortais do
corpo guerreiro. Também para o suicídio é
neles que se crava a espada quando se é ho-
mem. No flanco, como Hêmon, ou como Ajax,
esse paradigma do suicídio viril148. No fígado,
como por um instante vem ao pensamento de
Heracles, Orestes ou Menelau quando pensam
em se aniquilar, tempo suficiente para sublinhar
a nobreza inerente a tal morte149. De fato, o
fígado é órgão vital (o que não autoriza entre-
tanto a traduzir sistematicamente “coração”
onde o grego diz hépar) e, para exprimir a vio-
lência de um afeto, o tema do “golpe no fígado”
é ainda a metáfora usada na tragédia150.
Voltemos aos golpes que nada têm de
metafóricos. Aos golpes bem reais que abrem
no corpo as vias da morte. Golpes viris, então.
À exceção de que, na tragédia, há mulheres que
morrem em conseqüência deles; assim, se os
heróis euripidianos – Heracles, Orestes ou
ainda Electra (Electra, 688) – pensam no sui-
cídio através do fígado, há em Sófocles mu-
lheres para acharem em seu desespero a cora-
gem de consumá-lo. Mencionei Eurídice, com
sua morte ao mesmo tempo sacrificial e guer-
99
reirá151, que dá o último golpe na virilidade
problemática de Creonte. Mencionei principal-
mente Dejanira, essa esposa frágil que sabe
muito bem por onde a morte chega aos guer-
reiros pois, sem hesitar, traspassa seu flanco
“com um punhal de corte duplo, enfiado entre
o fígado e o diafragma” (Sófocles, Traquínias,
930-931).
Não é óbvio, todavia, que, sendo-se mu-
lher, se possa viver até o fim a morte dos ho-
mens, forçando a língua a inventar um femini-
no para palavras que, como parastates (com-
panheiro de fileira), somente se concebem no
masculino152, e convém determo-nos ainda um
instante nesse suicídio “que a mão de uma mu-
lher ousou cometer” (Traquínias, 898). Morte
viril133, certamente, essa proporcionada no modo
homérico pela “espada gemente que corta a
carne” (Traquínias, 886-887); além disso, para
matar-se Dejanira descobriu essas partes
guerreiras do corpo que são o flanco e o bra-
ço154. Mas aqui começa precisamente a dificul-
dade: para golpear-se sob o fígado, Dejanira
descobriu seu flanco esquerdo (Traquínias,
931), e não o direito, como seria de esperar de
quem possuísse um conhecimento mínimo de
anatomia. E os comentadores desamparados
interrogam-se: distração de Sófocles? Essa é
uma hipótese ditada pela preguiça, e portanto a
100
pior155. Ainda assim seria melhor ater-nos ao
comentário de Jebb sugerindo que nesse trecho
a palavra hépar é usada por Sófocles no senti-
do muito geral de “centro da vida”. Mas, além
de que tal emprego não dispensaria de modo
algum a localização do órgão em sua situação
exata, restaria explicar por que Dejanira se
golpeia no flanco esquerdo – detalhe sem
dúvida embaraçoso, mas que certamente não
foi enunciado por acaso; muito ao contrário,
levantarei a hipótese de que essa anomalia está
cheia de sentido: com efeito, descobrindo seu
flanco esquerdo, a esposa de Heracles desnu-
dou o lado do feminino156 – ardil textual, con-
tradição voluntariamente aberta para sublinhar
que inexoravelmente a morte de uma mulher,
ainda que consumada pelas vias mais viris, não
escapa às leis da feminilidade.
Deve-se então saber manter uma incoe-
rência cheia de sentido: Dejanira morre ferida
exatamente sob o fígado e à esquerda, como
uma amorosa que desejou in extremis acres-
centar a seu trespasse os valores do mundo da
guerra157. Apostemos que, embora percebido na
ambigüidade trágica, um corpo de homem não
apresenta essas incoerências.
A alternativa de Polixena

Ainda uma alternativa, ou antes uma pergunta:


por que, no momento de ser sacrificada, Poli-
101
xena, que acaba de declarar-se pronta a “apre-
sentar a garganta (deren) com o coração va-
lente” (Eurípides, Hécuba, 549), muda de idéia
para propor a Neoptólemo a escolha entre duas
vias de morte?
Nesse ínterim, é verdade, o comandante
do exército aqueu ordenou aos escolhidos que
soltassem a moça. Então, aproveitando o que
lhe restava de liberdade, Polixena tomou a ini-
ciativa:

“Ouvindo as palavras do soberano, ela segurou seus véus e do alto do


ombro rasgou-os ate o meio do flanco perto do umbigo, descobrindo
seus seios c o peito admirável de estálua (mastoús te ... sterna th’hos
agálmatos / kállista). Depois, pondo um dos joelhos cm terra, disse
estas palavras de uma bravura incomparávcl: “Eis meu peito (stêrnon),
rapaz; se é nele que preferes desferir o golpe, golpeia-o; se é no
pescoço (hyp’áukhena), eis minha garganta (laimos) pronta!”
(Hécuba, 557, 565)

De fato, Neoptólemo hesita. Mas, não é a


alternativa enunciada por Polixena que o leva a
“querer e não querer”; é, pura e simplesmente,
“a piedade pela moça”. E, sem mais hesitar,
como sacrificador precavido, “ele corta com a
espada a passagem do sopro”158. Vale dizer que
ele escolheu a norma: nenhum sacrificador
golpeia a mulher no peito, e há bem poucas
mulheres na tragédia a quem a morte chega
pelo seio159. Que desejaria então significar Po-
lixena dirigindo-se assim a Neoptólemo?

102
Sem dúvida, na linguagem aristotélica tal
problema não se apresentaria, porquanto, em
virtude dos critérios do anatomista, sphagé,
nome da garganta virtualmente aberta, serve
precisamente para designar “a parte comum ao
pescoço e ao peito”160. Mas, no universo trágico
onde morre Polixena, nenhum justo meio
pode resolver uma alternativa e, por serem os
lugares do corpo muito investidos de valores
simbólicos, toda escolha – principalmente
quando não se impunha em relação à tradição
– faz sentido.
Stêrnon ou laimos: já que o “peito” se
opõe à garganta cortada em sua designação
tópica, sem dúvida será conveniente determo-
nos, como Eurípides, no detalhamento da bele-
za nua de Polixena. Talvez não seja a nudez em
si da virgem que deva reter a atenção: as vir-
gens sacrificadas são geralmente despojadas de
suas vestes161 e, por pretender ser livre até o
fim, a própria Polixena realiza aquilo que as
párthenoi imoladas devem sofrer em face da
compulsão162. Mas, descrita em sua beleza de
estátua, a nudez de Polixena, percebida pelo
olhar dos soldados do exército aqueu, é em
Eurípides algo como um espetáculo – o que
ela continuará a ser desde a pintura helenística
até a de um Pedro de Cortona163. Então Polixena
descobriu seus seios (mastoús) e seu peito

103
(sterna) admirável. Nenhum pleonasmo nessa
indicação, pois é raro o uso simultâneo das duas
palavras por Eurípides, a tal ponto que elas são
dotadas de valores diferentes. Belo exemplo de
objeto parcial, mastôs é o seio materno regur-
gitante de leite mas também, percebido indire-
ta e fugazmente, o seio muito erotizado da bela
Helena à vista do qual – os gregos gostam de
contar—Menelau um dia deixou cair sua espa-
da164. Os valores de stêrnon são mais diversifi-
cados: se, no homem, o “peito” é um dos luga-
res do corpo onde, na guerra, é aconselhável
enfiar a arma – mata-se a cada momento um
adversário que, por não ter fugido, ganha com
isso uma morte gloriosa165 –, o peito das mu-
lheres é evocado principalmente como fonte de
afeto, estético ou sentimental: stêrnon de Elec-
tra ou de Ifigênia, ternamente apertado contra
Orestes ou Agamêmnon, tenro peito virginal de
Ifigênia que Agamêmnon, para chorar sobre a
beleza sacrificada de sua filha, associa à bela
face e aos cabelos louros da párthenos, alvo
peito, enfim, que as mulheres descobrem no
luto, para golpeá-lo e feri-lo num contraste
muito sugestivo166.
Associando essas duas palavras, mencio-
nando o seio desejável juntamente com o peito
de bela plástica167, a evocação de Polixena des-
nuda não visaria somente a erotizar a morte da
104
virgem? Ainda se deve distinguir entre aquilo
que o exército vê (que a narração do mensa-
geiro quer testemunhar fielmente) e o que Po-
lixena pretende. Com efeito, a alternativa pro-
posta a Neoptólemo é uma iniciativa dupárthe-
nos, e somente para ela tem sentido. Ora: diri-
gindo-se ao filho de Aquiles, Polixena não
evoca seus seios desejáveis, vistos com agrado
pelo exército dos gregos, mas somente stêrnon:
“Eis meu peito, rapaz; se é nele que preferes
desferir o golpe, golpeia-o...” Não é então a
idéia de erotizar seu fim que leva Polixena a
falar, ela que, no Hades, visa apenas a repousar,
morta entre os mortos, ela que, moribunda,
saberá manifestar o mais virginal dos pudo-
res168. Que é, então, que dá sentido à sua pro-
posição?
Se, com receio de ir mais longe na inter-
pretação, nos detivermos nessa questão, uma
digressão pelas narrações romanas da morte de
Polixena permitir-nos-á talvez avançar, ainda
que seja para verificar que além da diversidade
das variações foi feita uma única e mesma lei-
tura de Eurípides, que põe o fim da moça sob o
signo da coragem marcial. A Polixena de Sê-
neca, por exemplo, que deve casar-se com
Aquiles na morte, e cuja imolação se desdobra
num aparato nupcial muito completo169. E eis
que no instante de morrer, para a maior surpre-
105
sa do leitor em busca de um sacrifício nup-
cial170, a virgem (virgo) se transforma em vira-
go, a terna vítima se comporta como comba-
tente, encarando frontalmente o golpe fatal:
“Longe de recuar, a moça audaciosa e viril (audax virago) voltou-se
em direção ao golpe mortal, altivamente erecta e com a face intrépida.”

E a multidão admirou sua coragem (tam


fortis animus) (Seneca, Troianas, 1151-
1153). Séneca é bom leitor de Eurípides:
seria essa a maneira de comentar a proposição
de Polixena (“Se preferes golpear o peito,
golpeia-o”)?
Sem nos apressarmos em concluir, voltar-
nos-emos para Ovidio, leitor ainda mais fiel de
Eurípides. No livro XIII das Metamorfoses, eis
Polixena, “virgem infeliz elevada por sua co-
ragem acima de seu sexo” (plus quant femina
virgo), conduzida à tumba de Aquiles para ser
degolada lá. A filha de Príamo dirige então ao
filho do herói o mesmo discurso proferido no
trágico grego (“Mergulha tua arma em minha
garganta ou em meu peito”, jugulo vel pectoré)
e, ao mesmo tempo, descobre sua garganta e
seu peito. Como em Eurípides, ela tomba
“tomando o cuidado de cobrir as partes de seu
corpo que quer ocultar aos olhares e de obser-
var a decência imposta pelo pudor a uma mu-
lher casta”171. Mas, escolhendo a via do corpo

106
mortal, Ovidio deu ao sacrificador o gesto
negado por Eurípides a Neoptólemo:
“O próprio oficiante, chorando, mergulha relutantemente a espada no
peito que se oferece a seus golpes” (Metamorfoses, XIII, 475-476).

Para explicar esse desvio, ainda mais no-


tável por aparecer sobre o fundo de uma gran-
de fidelidade ao modelo grego, talvez se possa
invocar algum gosto, peculiar a Ovidio172 ou à
poesia latina, por esse tipo de morte: então re-
lembrar-se-á sem dúvida que a Camila da Enei-
da é ferida mortalmente em seu seio durante um
combate173. Sem dúvida. Mas, observando que a
seqüência do texto de Ovidio se dedica insis-
tentemente a comentar a coragem de Polixena,
caída como seus irmãos sob as armas de Aqui-
les (Metamorfoses, XIII, 497-500), convence-
mo-nos de que há mais a dizer a esse respeito.
Podemos assim formular a hipótese de que,
preferindo proporcionar à virgem a morte que,
em Eurípides, ela sugeria que se lhe concedes-
se, o poeta latino pretendia, contra Eurípides,
dar todo o seu sentido à alternativa euripidiana:
à garganta, como uma vítima sacrificial, ou ao
peito, como um guerreiro.
Eis aí formulada a interpretação diante da
qual, pouco antes, havíamos hesitado: se eram
os atrativos da mulher que, na nudez de Poli-
xena, deslumbravam o exército grego, para a
párthenos o golpe no peito teria simplesmente
107
significado que Neoptólemo prestava uma ho-
menagem merecida à sua andreia.
Mas, sabe-se que a andreia, nome da co-
ragem, é virtude masculina... Assim, a digres-
são pela poesia latina serve para confirmar a
contrario essa proposição que imaginávamos
poder antecipar a propósito de Dejanira: seja
qual for a liberdade oferecida pelo discurso
trágico dos gregos às mulheres, ele lhes recusa
a de transgredir até o fim a fronteira que divide
e opõe os sexos. Sem dúvida a tragédia trans-
gride, confunde, esta é sua lei, esta é sua ordem.
Mas nunca a ponto de subverter irreversivel-
mente a ordem cívica dos valores, na qual a
mulher viril pode chamar-se Cîitemnestra, mas
não Polixena, porque ela deve ser ameaçadora,
e não sedutora. Polixena podia perfeitamente
oferecer seu peito como um guerreiro, e o exér-
cito grego via nisso apenas o desnudamento por
uma virgem de seus seios de mulher.

É então pela garganta que, em Eurípides,


Neoptólemo, como bom sacrificador, imola a
virgem, golpeada no ponto fraco das mulhe-
res174. Sem dúvida não estava ao alcance da
tragédia destruir um discurso predominante:
não é ainda na garganta ou, se se preferir, no
pescoço, que desde a época arcaica Aquiles fere
108
mortalmente Pentesiléia?175 A garganta ainda e
sempre, na guerra como no sacrifício: escoiha
significativa, sem dúvida, numa tradição nutri-
da pela epopéia, onde o corpo viril se oferece
inteiro aos ferimentos fatais. Para esclarecer a
regularidade – dir-se-á a monotonia? – dessa
reiteração, sem dúvida seria necessário pro-
curar-lhe a lei fora do universo trágico, junto à
reflexão ginecológica dos gregos onde a mulher
é imaginada entre duas bocas, entre dois co-
los176, onde o comportamento errático da matriz
embarga brutalmente a voz na garganta das
mulheres177, onde muitas moças em idade de ser
nymphai se enforcam para escapar à sufocação
temível que as enlouquece no interior de seu
corpo178. Talvez, então, por pouco que sejamos
leitores das Cinco Psicanálises, recordemo-nos
de Dora, de sua tosse sintomática e das
observações de Freud sobre “esse deslocamento
de baixo para cima” que bloqueia a garganta
porque “[esta] região do corpo conservou num
grau muito elevado, na moça, o papel de zona
erógena”179. Mas, uma vez imergido no pensa-
mento médico dos gregos, uma vez passado
com armas e bagagens para os domínios da psi-
canálise180, seria difícil reencontrar-se com o
universo trágico. Com efeito, a tragédia nada
quer saber, ou, ao menos, nada quer dizer expli-
109
citamente acerca desse imaginário ginecoló-
gico. Baste-me então constatar esse silêncio
sem forçá-lo, e sugerir que, no corpo trágico,
nada é deixado ao acaso da livre associação
porque todos os lugares da morte estão nele em
seu lugar certo.

Invenção, ortodoxia; liberdade, compulsão:


sobre o fundo dessa tensão inscreve-se o des-
tino das mulheres na tragédia, como, sem dú-
vida, em muitos níveis da experiência cívica
ateniense. Com a ressalva de que, como a tra-
gédia exalta singularmente o lado da liberdade,
a compulsão, por sutil que seja – insidiosa-
mente presente em tal ou qual significante –
revela-se aí, uma vez descoberta, mais forte nas
palavras que nas instituições. Com a ressalva,
também, de que a invenção se opera no terreno
totalmente discursivo da ficção, e de que sua
estrada real é a da morte181.
Interessar-nos pelo que se diz da morte das
mulheres na tragédia é dar-nos desde o princí-
pio a satisfação de nos instalarmos em um posto
de observação privilegiado. Se é verdade que,

110
logo depois de estabelecida a fronteira intrans-
ponível que separa o masculino do feminino, o
imaginário grego compraz-se em confundi-la,
para tentar determinar os procedimentos e os
limites de tal jogo não teremos de nos situar no
lugar institucional dessa confusão, isto é, no
próprio cerne da interferência trágica?182
Esse era efetivamente o meu projeto: de-
terminar como e até que ponto valores viris e
atributos femininos agem uns sobre os outros
na encenação trágica das mulheres pois, tra-
tando-se dessa problemática “metade da cida-
de”, credita-se pressurosamente à tragédia uma
audácia notável nesse século V ateniense. Nada
tem em si de consternador que a audácia pare-
ça menor do que se poderia supor: toda inves-
tigação corre o risco de recusar ou de modificar
suas hipóteses de partida ao longo do caminho,
principalmente quando elas foram adotadas
com uma reserva – no caso, a convicção de
que é necessário evitar a todo custo o dilema
inútil do feminismo e da misoginia. Procurou-
se simplesmente trilhar as vias indiretas da
muito singular ortodoxia trágica, não sem pra-
zer – o prazer que se pode tirar desse jogo de
desvios – e talvez não sem ganho. Nesse per-
curso sinuoso tem-se ao menos o ganho da in-
terrogação lúcida sobre a possibilidade de des-
vios significativos no seio de um gênero cívico.

111
Com efeito, o paradoxo da morte gloriosa das
mulheres é que a única morte bela é a viril;
também, para conquistar a inatingível ¡déos
gynaikon, esposas e moças exercitam-se na
andreia; ora, é precisamente aqui que a femi-
nilidade as espreita e, sem que elas o saibam
mas para maior edificação dos espectadores, as
domina num instante, o momento de uma pa-
lavra, de uma escolha muito significativa do
texto trágico. A esse respeito Eurípides, cantor
ou inimigo das mulheres (nunca a tradição
soube pronunciar-se verdadeiramente sobre
esse ponto), nada tem a invejar a Sófocles, esse
mestre da ambigüidade, o que implica verificar
algo parecido com uma constância da tragédia
em pensar a feminilidade nos mesmos termos.
Conclusão certamente geral no fim de um
longo exercício de leitura que buscou seguir
atentamente a literalidade dos textos. Mas,
nessa generalidade, apraz-me encontrar o be-
nefício essencial de tal investigação. Falando da
“morte das mulheres na tragédia”, pretendia-se
tentar uma generalização confiando no gênero
trágico como tal. Confiar no gênero era postu-
lar-lhe a unidade, ou no mínimo tentar distin-
guir-lhe as constantes, passíveis de serem de-
signadas como representações partilhadas do
discurso trágico – partilhadas, ainda que, de
um autor a outro, elas sejam asperamente dis-
112
cutidas. Tal desígnio implicava certamente
recusar de início maneiras firmemente estabe-
lecidas de 1er os trágicos: uma, baseada no
dogma sacrossanto da evolução, que pretende
que, de Esquilo a Sófocles e de Sófocles a
Eurípides – sendo esses dois últimos autores
praticamente contemporâneos –, as noções e
as escolhas intelectuais “mudam” (evoluem,
diz-se); a outra, desejosa de isolar cada obra em
sua especificidade, e que se empenha em dis-
tinguir a predileção de determinado trágico por
determinado motivo – assim, Esquilo se inte-
ressa muito pela violência do assassínio, Sófo-
cles pela vontade desesperada que anima o
suicida, e Eurípides pela imolação de tenras vir-
gens183. Sem ignorar caminhos muito balizados,
desejou-se fazer outro percurso. E para mim é
importante que, no fim, ele tenha se revelado
legítimo; que, de um trágico a outro, a interro-
gação sobre a feminilidade tenha sido bem-
sucedida, mesmo havendo diferenças quanto ao
uso de termos, como esse verbo airo, ao qual
foi necessário voltar mais de uma vez apesar de
os limites serem os mesmos (assim, a garganta
das mulheres tende a envolver sua morte).
Para proceder a um levantamento desses
pontos do discurso influenciados por vários
fatores, a via agora está bem traçada. Consiste
em submeter os textos trágicos às interrogações

113
de uma antropologia da Antigüidade. Esforço
frutuoso – sua demonstração já não precisa ser
feita –, com a condição todavia de que ele se
desdobre numa atenção sem falhas à especifi-
cidade do gênero. Procurou-se também sub-
meter as questões da antropologia a um inter-
rogatório mais centrado nos caminhos e nas
modalidades gregas do imaginário, para tentar
compreender a natureza do ganho contabiliza-
do pela cidade por ocasião desse parêntese ins-
titucional que é a representação dramática. Em
outras palavras: em que a figura do oxymoron,
cara aos textos trágicos, é essencial à represen-
tação dramática que a cidade oferece a si mes-
ma? Ou ainda: qual o ganho dos espectadores
do teatro ao pensar em termos de ficção aquilo
que, na vida cívica, não pode nem deve ser
pensado? Ocasião de refletir sobre o objetivo
dessa “purificação” trágica184, que sem dúvida
purga menos o homem em seu caráter privado
que o cidadão, porque purga afetos que o bom
uso do estatuto de cidadão deve ignorar. E sa-
crificam-se virgens no teatro de Dioniso...
Em busca das modalidades dessa operação
de pensamento cívico, concentrou-se a atenção
no significante e mesmo naquilo que, no texto
das tragédias, é algo como um subtexto, talvez
identificável somente pela leitura. Isso levou a
que, muito aquém do efeito trágico, se
114
remontasse ao horizonte da inteligibilidade do
gênero. Sendo assim, voluntariamente foi as-
sumida a posição pouco lírica de leitor. Mas é
necessário tomar essa resolução: jamais ocu-
paremos o lugar dos espectadores atenienses do
século V. Ao menos, com essa perceptibilidade,
aposto que chegamos a compreender aquilo
que, na morte de Dejanira ou no sacrifício de
Polixena, proporcionava ao espectador ateni-
ense o prazer contido que é facultado pela frui-
ção do desvio representado, pensado, domado.

115
Notas

PRÓLOGO

1. Aristóteles, Poética, 1452 b 11-13.


2. Assim U.C. Baldry (Le Théâtre tragique des Grecs, tradução
de J.-P. Darmon, Paris, 1975, pp. 69-70) caracteriza a prefe-
rência da tragedia pelo texto.
3. Tiro esse termo de J.-P. Vernant, “Tensions cl ambiguïtés dans
la tragédie grecque”, cm J.-P. Vernant c P. Vidal-Naquct,
Mythe et tragédie en Grèce ancienne, Paris, 1972, p. 35.
4. Art. cit., p. 36.
5. A não ser que certas palavras sejam representadas, para suprir
a atenção muito insuficiente prestada pelo espectador moder-
no às grandes unidades discursivas. Assim, na recente monta-
gem da Orestia por Jean-Phiíippc Gucrlais (Teatro Orbe,
novembro-dezembro de 1984), agitar realmente a lebre e as
águias no primeiro coro do Agamêmnon resultaria cm sugerir
a violenta materialidade do significante textual. Distinguir
se-a esta estratégia da prática – ameaçada pelo psicologismo
— consistente cm “representar” um texto.
6. Na tragédia raciniana R. Barthcs chama essas grandes unida-
des de “grandes massas indivisivas de linguagem” (Sur Raci-
ne. Paris, 1963, p. 21).
7. Segundo Banhes (Sur Racine, Paris, 1963, p. 21), refletindo
sobre a “decência” raciniana, esta é a única ordem trágica.
8. Adapto uma expressão de Maria Moscovia a propósito do
trabalho de Freud sobre as palavras da linguagem corrente,
cuja “consistência sexual” ele descobriu, mas onde discerne

116
“de certo modo palavras que sabem” (“La Déclaration”,
L’Écrit du temps, 1 [1982], p. 209).
9. A propósito dessas palavras, ver pp. 42-44 e 81-85.
10. Sinal, entre outros, de que não se trabalha impunemente sobre
a diferença dos sexos: dando esse título à terceira parte de meu
texto, eu tinha simplesmente “esquecido” de que ele era o tí-
tulo do número 3 da Nouvelle Revue de Psychanalyse, prima-
vera de 1971.

MANEIRAS TRÁGICAS...

1. Epitáphios (oração fúnebre) pronunciado por Péricles (Tucí-


dides, IT, 43, 2-3); o epitafio foi extraído da coleção de W.
Peck, Griechische Vers-Inschrifien, Berlim, 1955 (ns 1491:
Atenas, século IV a.C). Ao longo do texto serão citadas igual-
mente as inscrições n° 1497,1790,1690,890, 891,1075 e 893.
2. Tucídides, II, 45, 2, declaração muito comentada e discutida,
a começar por Plutarco que, no início de sua obra Das virtudes
das mulheres, se insurge contra tal concepção. Mas Plutarco,
que vê nas virtudes femininas “uma parte de exposição histó-
rica”, pertence a uma época em que, nos gêneros literários
menos centrados na cidade que os da época clássica, há um
lugar para a intervenção das mulheres na história.
3. Hcródolo, II, 89 (o corpo das belas egípcias); 11,1 (Cassanda-
nc), 129 (a filha de Miqucrino); III, 31-32 (a irmã e esposa de
Cambises); IV, 50 (c V, 92: Melissa); IV, 205 (Feretime).
4. Eurípides, (Hipólito, 813) qualifica de bíaios thânalos (morte
violenta) o enforcamento de Fedra.
5. Édipo Rei, 1230: hêkonla kouk ákonta; ver também 1236 e
1237: aulé pros hautes. Ao contrário de Dcjanira ou de Eurí-
dice, cuja morte é imputada a uma responsabilidade (aitia)
exterior, a aitia da morte de Jocasta lhe é inteiramente atri-
buída. A citação seguinte encontra-se nos versos 1234 e 1235.
6. Ver Sófocles, Traquínias, 878 e 880, Antígona, 1174;
Eurípides, Hipólito, 801, Feníicias, 1354.
7. Compare-se Eurípides, Medéia, 39-40 e 379.
8. O nó do laço (brokhos) dá realidade ao nó metafórico da infe-
licidade; compare-se Eurípides, Hipólito, 671 e 781.
9. A. Katsouris (“The Suicide Motive in Ancient Drama”, Dioni-
so, 47, 1956, pp. 5-36) faz essa afirmação, embora não possa
deixar de reconhecer (p. 9) que na tragédia o suicídio é majo-
ritariamente cometido por mulheres.

117
10. Rccordar-se-á que Ájax é, na tradição, o único herói masculi-
no a ir até o extremo de um suicídio. A interpretação propos-
ta aqui a respeito da escolha de Heracles opõe-se à de J. de
Romilly (“I^e Refus du suicide dans l’Héraclès d’Euripide”,
Arkhaiognosia, 1, 1980, pp. 1-10).
11. Há uma distância imensa entre o querer racional (etheló) e o de
inclinação (boúlomai); ver N. Loraux, L’invention d’Alhenes,
Paris-Haia, 1981, pp. 99-104, e, sobre Aristódamo (Hcródoto,
DC, 71), “La Belle mort Spartiate”, Ktèma, 2 (1977), pp. 105-
120. Kotar-se-á que em Le Suicide (reedição, Paris, 1981, p.
374), E. Durkheim interpreta como um suicídio a morte de
Aristódamo. Olriadas: Heródoto, I, 82; Pantitcs, idem, VII,
232.
12. Por exemplo, autôphonos e autokhêir. A sobredeterminação
suicídio/morte em combatc/assassínio familiar é particular
mente nítida no combate singular entre os filhos de Édipo: ver
Esquilo, Sete contra Tebas, 850; Sófocles, Anlígona, 172;
Eurípides, Fenicias, 880. Outros exemplos: Esquilo, Agamêm-
non, 1091; Euripides, Orestes, 947; e Sófocles, Anlígona,
1175, bem como o comentário de L. Gcmct ao livro IX das
Leis (Paris, 1917), p. 162 (873 c-d).
13. Essa é uma das circunstancias atenuantes consideradas por
Platão em sua condenação do suicídio (Leis, IX, 873 c 5-6).
14. Vergonha: Platão, Leis, TK, 873 e 6; hediondez do enforca-
mento: Eurípides, Helena, 298-302; mácula: Sófocles, Antígo
na, 54 (lobe), bem como Esquilo, Suplicantes, 473 (miasma
num sistema de suicídio por vingança); desonra: Eurípides,
Helena, 134-136, 200-202, 686-6S7 (morte de Leda).
15. Fechando definitivamente o corpo muito aberto das mulheres,
o enforcamento é por assim dizer inscrito na fisiología femi-
nina; ver N. Loraux, “Le Corps étranglé”, em Y. Thomas
(editor), Le Châtiment dans la cité, Roma-Paris, 1984, pp. 195-
218.
16. Sófocles, Antígona, 1220-1222; Esquilo, Suplicantes, 455-466.
17. O veneno: Agamemnon, 1260-1263; o véu-armadilha: 1382-
1383, 1492, 1580, 1611; Coéforas, 981-982, 998-1104; Eu-
mênides, 460, 634-635. Dejanira: Sófocles, Traquínias, 883-
884 (emésalo); 928 (tekhnomenes). A mistura da “via direta”
do gládio corn a métis chega ao auge na Medéia: 384-409 e
1278 (onde a espada é rede).

118
18. O enforcamento em vez do macho: Esquilo, Suplicantes, 787-
789; a precipitação em vez do dáikior, ibidem, 794-799.
Aproximar-se-á dáiklor do goos dáikier. Sele contra Tebas,
916; soluço dilacerante, luto gemente onde se dilacera seu
corpo â imagem daquele dos mortos, nesse caso os filhos de
Édipo, eles mesmos autodáikíoi, ibidem, 735. Notar-se-á enfim
que no verso 680 das Suplicantes o verbo daxio (dilacerar) faz
uma primeira aparição para caracterizar a guerra civil como
dilaceradora da cidade. Não há portanto razão alguma para o
eufemismo de transformar “dilacerador” em “raptor”.
19. Eurípides, Alceste, 74-76; outras metáforas da morte como
cortante ou sangrenta: ibidem, 118 e 225. A propósito de
Tânatos como morte no masculino, ver J.-P. Vcmant, “Figures
féminines de la mort”, a aparecer numa coletânea coletiva
Masculin/Féminin en Grèce ancienne.
20. Eurípides, Andrômaca, 616: oudê trotheis. O escoliasta tem
razão (contra Mcridicr, o tradutor da coleção “Les Belles Let
tres”): Mcnclau foi realmente ferido de longe no canto IV da
Ilíada pela flecha de Pàndaro, mas nenhum ferimento lhe foi
infligido de perto, pelo gládio ou pela lança, e esse é o sinal de
sua bravura duvidosa.
21. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 621-622; sobre o lugar reserva
do ao dcgolador na consumação do próprio sacrifício femini-
no, ver M. Détienne, “Violentes Eugénies” em M. Détienne e
J.-P. Vernant (editor), La Cuisine du sacrifice en pays grec,
Paris, 1979, p. 208.
22. Sobre essa troca, que comentei em “Blessures de virilité” (Le
Genre humain) 10, 19S4, pp. 38-56), ver Pindaro, 8ª Neméia,
versos 38 e seguintes (bem como a 7ª Neméia, 25 e seguintes,
e a 4ª Ístmica, 35 e seguintes). Ter-se-á em mente que, na tra-
gédia de Sófocles, a espada pertencente a Heitor é um presen-
te do inimigo: quanto a Ájax, ele morre como “tomba” o
guerreiro (piptó: Ájax, 828, 841, 1033).
23. Ájax, 815, com a tradução e o comentário de J. Casabona, Re-
cherches sur le vocabulaire des sacrifices en Grèce, Aix-en-
Provence, 1966, p. 179. Notar-se-á que a espada é empunha-
da (hêsteken) como fica normalmente na mão do hoplita em
scu posto. No verso 1026 Teucro fará da espada um phoneus,
um matador.
24. O escalpelo: 581 –582, num contexto ao mesmo tempo medico
e relacionado com o sacrifício (ver Traquinias, 1032-1033, e

119
Antígona, 1308-1309); a língua afiada: 584; a carne cortada
pela narração: 786; a infelicidade que traspassa o fígado, 938.
25. J. Slarobinski, “L’Épée d’Ajax”, em Trois Fureurs, Paris,
1974, especialmente pp. 27-29 e 61; ver também D. Cohen,
“The Imagery of Sophocles: a Study of Ajax’ Suicide”, Greece
and Home, 25 (1978), pp. 24-36, e Ch. Segal, “Visual
Symbolism and Visual Effects in Sophocles”, Classical World,
74, 1981, pp. 125-142.
26. Hêmon: Antígona, 1175 (ver também 1239). Sobre haima
como nome da efusão de sangue, ver H. Koller, “Haima”,
Gloíta, 15, 1967, pp. 149-155.
27. SkJiismôs: Esquilo, Agamêmnon, 1149 (Cassandra); skhizo:
Sófocles, Electra, 99 (assassínio de Agamemnon). Daízo:
Esquilo, Agamemnon, 207-208 (sacrificio de Ifigênia), Coéfo-
ras, 860, 1071 (o assassínio).
28. A Ici do sangue: J. Casabona, Vocabulaire, p. 160. Evocar-
sc-á na Elecíra de Eurípides a presença do material para os sa-
crifícios (kanoun, sphagi?) na evocação do assassínio de Cli-
temnestra (1142; ver 1222: kalárkhomai, comentado por P.
Stengel, Opferbrãuche der Griechen, Lcipzig-Bcrlim, 1910, p.
42). Eurídice é sphagíon: Antígona, 1291, com o comentario
de J. Casabona, Vocabulaire, p. 187; ver também as observa-
ções da edição comentada do texto por Jebb (Cambridge,
1900) sobre bomia (o suicídio ao pé do altar) e a espada do
suicídio como cútelo do sacrifício (v. 1301).
29. Ver por exemplo Eurípides, Helena, 353-359.
30. Hipólito, 1236-1237, 1244-1245. Em face da dor que o
aco-
mete, Hipólito moribundo, como Heracles colhido na armadi-
lha de um ardi], implorará à espada libertadora que lhe corte a
carne (1375; compare-se Sófocles, Traquínias, 1031-1033).
31. Uso voluntariamente essa expressão logicamente impossível,
pois o texto das Fenicias não somente não especifica qual das
duas espadas ela empunhou, mas sugere até, em sua generali-
dade, que se trata da espada genérica dos filhos (ver os versos
1456 c 1577-1578).
32. R. Hirzcl, “Der Selbstmord”, Archiv für
Religionswissenschaft, 11, 1908, principalmente pp. 256-258.
33. Comparar-sc-ão o Édipo Rei, onde Jocasta é “pantelés dãmar”
(esposa perfeita), e as Fenicias, onde Jocasta morre “com” seus
filhos e será enterrada com eles (1283, 1482, 1553-1554,
1635); da mesma forma, Eurídice é pammétor, toda mater-
nidade (Antígona, 1283).

120
34. “Le lit, la guerre”, L’Homme, 21,1981, pp. 37-67; ver também
“Ponos. Sobre algumas dificuldades do sofrimento como nome
do trabalho”, Annali delVIslitulo orientale di Napoli, 4, 1982,
pp. 171-192.
35. Corda ou gládio: para Helena, se ela tivesse sido uma gennaia
gyné (Troianas, 1012-1014), para Creusa, se seu plano de
morte fracassasse (Ion, 1064-1065), para Elcctra, a viril (Ores
tes, 953), que preferiria o gládio (1041,1052), para Hermione,
a jactanciosa (Andrômaca, 811-813, 841-844), cuja ama teme
sobretudo que ela se enforque (815-816), para Ádmcto (Alces-
te, 227-229). Ver ainda Andrômaca, 412, c também Heracles,
319-320 e 1147-1151.
36. Hélène, 353-357 (tradução de H. Grégoire, Les Belles Lettres;
phoníon aiôrema (353); afasto-me aqui da interpretação de J.
Casabona, Vocabulaire, op.cit., p. 161; deve-se acrescentar que
o verbo orêgomai, usado pela heroína, é mais pertinente ao ato
de “ferir” (numerosas ocorrências na Ilíada) que ao ato de “dar
um nó”.
37. O enforcamento é evocado por Orestes (Esquilo, Eurnênides,
746; Euripides, Orestes, 1062-1063), c por Édipo (Sófocles,
Édipo Rei, 1374; Eurípides, Fenicias, 331-333).
38. Ver P. Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue
grecque, verbete aeiro (I, p. 23, sobre o derivado aiora). Eora
de Jocasta: Sófocles, Édipo Rei, 1264.
39. Bathy piorna: Esquilo, Suplicantes, 796-797; aeiro: por exem-
plo Hipólito, 735 (ode de evasão) e 779 (ertemene, de artao,
derivado de aeiro), Andrômaca, 848,861-862; a profundeza do
éter: Medéia, 1295.
40. As asas, o ímpeto de voar: Medéia, 1295; Heracles, 1158;
Hécuba, 1110; l’on, 796-797 e 1239; Helena, 1516. O pássaro:
Hipólito, 733 (o coro), 759, 828 (Fedra); Andrômaca, 861-862
(Hermione); Ifigênia em Táuris, 1088, 1095-1096 (ápteros
omis pothousa), Helena, 1478-1494; sobre o pássaro preso no
alçapão e a mulher enforcada, ver N. Loraux, “Le Corps
étranglé”, art. cit.
41. . Das mulheres e, sob outro aspecto, dos homens feminizados:
Jasão, Heracles, que, tendo cometido esse crime “feminino”
que é o assassínio dos próprios filhos, pensa em levantar vôo
(antes de renunciar ao suicídio e de recuperar a virilidade).
Poliméstor mutilado por mulheres e escravas. A fuga: Esquilo,
Suplicantes, 806; Eurípides, Ion, 1239.

121
42. Eurípides, Alceste, 262-263 (imagem da estrada), 392, 394;
Suplicantes, 1017, 1039 e 1043; Hipólito, 828-829.
43. Sófocles, Ájax, 815 e 833. Licofron (Alexandra, 466) falará
igualmente em pédema.
44. Aristóteles, Política, I, 13, 1260 a 30, citando Sófocles, Ájax,
293 (é o “eterno refrão” pelo qual Ájax responde às perguntas
de Têcmessa); Eurípides, ¡leráclidas, 474-47.
45. Sófocles, Traquínias, 813-814; Antígona, 1244-1256; Édipo
Rei, 1073-1075 (com as observações de Jebb sobre siopé em
sua diferença com sigé).
46. Hipólito, 828; Traquínias, 881 (diêistosen é derivado de distos,
invisível). Sobre o jogo da vista e dos olhares na narração da
morte de Dcjanira, haveria muito a dizer.
47. Sobre o interior fechado e a abertura das portas, ver Édipo Rei,
1261-1262, e Hipólito, 782, 793, 809-810 e 825 (note-se a
propósito da abertura dos ferrolhos o uso do verbo khalan, que
no Édipo Rei, 1266, designa o desatamento da corda de Jo-
casta).
48. Antígona, 1293 (e 1295,1299). Sobre mykhos, o aposento mais
recôndito da casa, e as ligações dessa palavra com a feminili-
dade, ver J.-P. Vernant, “Ilestia-IIermès”, Mythe et Pensée
chez les Grecs, I, Paris, 1971; observar-sc-á a esse respeito
com E. Vcrmcule (Aspects of Death in Early Greek Art and
Poetry, Berkeley, Los Angeles e Londres, 1979, pp. 167-169)
que, sempre com conotações eróticas, a morte das mulheres é
atraída pelo recôndito, pelo profundo.
49. Notar-se-á que Fcdra não é mais mencionada pelo nome;
quando se referem a seu corpo, Tcseu e Hipólito falam de “esta
aí” (958) ou empregam a palavra soma (“corpo”) (1009).
50. Não é certo que este tenha sido realmente o caso, e, sobre essa
morte como sobre muitas outras mortes trágicas, a discussão é
tumultuada: ver, por exemplo, A.M. Dale “Seen and Unseen in
the Greek Stage”, em Collected Papers, Cambridge, 1969, pp.
120-121, e C.P. Gardiner, “The Staging of the Death of Ajax”,
ClassicalJournal, 75, 1979, pp. 10-14.
51. O corpo do herói: Ájax, 915-919, 992-993, 1001, 1003-1004.
Ao contrário, o corpo do guerreiro morto em combate é “belo”:
compare-se J.-P. Vernant, “La Belle mort et le cadavre outra
gé”, em G. Gnou e J.-P. Vcmant (editor), La Mort, les morts
dans les sociétés anciennes, Cambridge-Paris, 1982, pp. 45-76.
52. Alceste morre em cena: Alceste, 397-398; a partir do verso 606
o cortejo fúnebre está pronto, mas a intervenção do velho pai

122
de Ádmeto vai de fato instaurar uma prôthesis (entre os versos
60S e 740; ver também 1012).
53. O caso mais óbvio é o de Alcestc, que leva o devotamente
conjugai até o extremo de morrer em lugar de seu marido, e o
texto de Eurípides usa múltiplas preposições (pro, hyper, peri
ou anli) para exprimir essa versão exagerada da permuta con-
jugal: Eurípides, Alcesle, 16,37,155,178,282-283,284,433-
434, 460-463, 620, 682, 698, 1002. Nessa coorte de mulheres
que morrem pelos hotens. Leda, morta por causa de sua filha,
é uma exceção, que talvez se deva relacionar com o tema de
Demétcr e de Core na Helena.
54. Sófocles, Traquínias, 913; Eurípides, Alceste. 175, 187 e 248-
249, Suplicantes, 9S0 (ver 1022; o thálamos de Pcrséfone).
Thálamos e casamento: ver por exemplo V. Magnicn, “Le
Marriage chez les Grecs anciens. L’Initiation nuptiale”,
L’Antiquité Classique, 5, 1936, pp. 115-117.
55. Ver Sófocles, Traquínias, 918-922, Édipo Rei, 1242-1243,
1249, e também Eurípides, Alceste, 175, 177, 183, 186-188,
249.
56. Odisséia, XI, 278: Epicasta prende o laço aph’hypseloio mêla-
thron; Eurípides, Hipólito, 768-769: téramnon apô-
nymphídion. Mêlalhron, viga da cumieira: R. Marlin, “Le
Pidáis d’Ulysse et les inscriptions de Délos”, RecueilPlassart,
Paris, 1976, pp. 126-129 (com referências); mêlathron como
metonimia do palacio: Ilíada, II, 414, Odisséia, XVIII, 150;
mêlalhron como metonimia da morada nupcial: Eurípides,
Ifigênia em Táuris, 375-376. Mêlalhron e o marido: Safo,
fragmento 229, edição Page.
57. Admeto, por exemplo, exorta Alceste a esperá-lo no Hades
para lá “morar com” ele: Eurípides, Alcesle, 364; aliás, ele
exprime ao mesmo tempo o desejo, normalmente feminino, de
estar estendido ao lado de Alcestc (366, 897-902).
58. Esquilo, Coéforas, 905-907, e também 894-895 e 979
(Clitcmnestr3); Agamemnon, 1441-1447 (Cassandra, que,
aliás, assumiu essa “morte com”: Agamêmnon, 1139 e 1313-
1314).
59. Aludo à Palinodia na qual, após haver, como Homero, “fala
do mal” de Helena, o poeta Estesícoro substitui por um fan-
tasma a mulher adúltera que seguiu com Paris para Tróia,
enquanto a Helena real, virtuosa, permanecia no Egito duran
te a guerra de Tróia. Juramento de morrer: Eurípides, Helena,
387, declaração a que alude Mcnelau nos versos 985-986.

123
60. O túmulo comum: Eurípides, Suplicantes, 1002-1003; synlha-
nein: 1007,1040, 1063 (1071); a união dos corpos: 1019-1021.
61. Fenicias, 1458-1459 (em toisi philtálois); no verso 1578 ela
tomba ainphi teknoisi (“entre” ou “perto de” seus filhos).
62. Tiro essa expressão de um artigo de Cl. Nancy, “Euripide et le
parti des femmes”, cm E. Levy (editor), La Femme dans ¡es
sociales antiques, Estrasburgo, 19S3.
63. A melhor (aritle, esthle, phihate) das mulheres: Eurípides,
Alceste, 83-85, 151-152, 200, 231, 235-236, 241-242, etc.; a
última palavra: 391 ; a morte aceita: 17 (thêlein, verbo do impe-
rativo hoplítico: ver 155); a monc gloriosa: 150 (ver 157 e 453-
454); a audacia: 462, 623-624 e 741; a nobreza: 742, 993.
64. Virilidadc, glória c audácia: Eurípides, Suplicantes, 9S7, 1013,
1014-1016, 1055 (kleinon), 1059, 1067; os trajes nupciais
fúnebres de Evadnc: 1055; alem da feminilidade: 1062-1063;
aquém da virilidade: 1075. Outros exemplos da gloria femini-
na cm Eurípides: Helena, 302; Uécuba, 1282-1283.
65. Tentei falar mais longamente sobre o assunto em “La Gloire et
la mort d’une femme”, Sorcières, 18, 1979, pp. 51-57.
66. Antífona, 773-780. Sobre as semelhanças e as discrepancias
entre a execução de Antigona e a da vestal incesta, reporto-me
a um estudo ainda inédito de Augusto Fraschctli.
67. Para sphazo, ver a nota 28; thyo e seus derivados: Esquilo,
Agamémnon, 214-215, 224-225, 234-240, 1417; Sófocles,
Electro, 531-532, 572-573. Phonos e phoncuo: Eurípides, Ifi-
gênia emÁulis, 512, 939 c principalmente 1317-131S; nessa
peça Clitcmncstra designa sempre o sacrificio de Ifigênia como
uma execução (ktano). Nolar-sc-á que, em Esquilo, a crítica
manifesta-sc cm todos os sentidos, apesar do emprego do verbo
thyo – mas o sacrifício se voltará contra Agamemnon, “sa-
crificado” por Clitcmncstra (Agamemnon, 1503).
68. Ver os trabalhos de J.-L. Durand sobre as Bouphonia (princi-
palmente “Le Corps du délit”, Communications, 26, 1977, pp.
46-61), e também, sobre a “encenação”, as observações de J.-
P. Vcrnant, “Sacrifice et mise à mort dans la thusia grecque”,
em Le Sacrifice dans l’Antiquité, Entretiens de la Fondation
Ilardt, vol. 27, Vandocuvrcs-Gcnève, 1981, pp. 1-18 e 22.
69. Se o sacrifício não aparece aos olhos dos espectadores, do
ponto de vista do logos ele não é submetido a qualquer censura,
e os mensageiros detalham longamente sua narração; acha-se
ao nível do discurso aquilo que J.-L. Durand observará a pro-
pósito das representações figuradas, que “o sacrifício humano

124
deve ser mostrado no terreno do imaginário” (“Bêtes grec-
ques”, em La Cuisine du sacrifice, op. cit., p. 138). Sobre o
sacrifício humano como ficção, ver também as observações de
A. Henrichs, “Human Sacrifice in Greek Religion. Three Case
Studies”, em Le Sacrifice dans l’Antiquité, op. cit., pp. 195-
235.
70. Párlhenos e guerra: J.-P. Vernant, “La Guerre des cités”,
Mythe et société en Grèce ancienne, Paris, 1974, p. 38. Der
ramar o sangue de uma filha única para salvar a comunidade
dos andres: o raciocínio é explícito no fragmento do Erecteu
de Eurípides, citado por Licurgo (Contra Leocrates, 100, ver-
sos 23-39); ver N. Loraux, “Le Lit, la guerre”, op. cit., pp. 42-
43.
71. Eurípides, Hécuba, 525-527, 544: lektoi t’Akhaion êkkritoi
neaníai, logades. Ncm todas as párthenoi sacrificadas cha-
mam-se Polícrita (“a muito-escolhida”: compare-se W.
Burkert, Structure and History in Greek Mythology and Ritual,
Los Angeles-Londres, 1979, p. 73), mas todas são “escolhi-
das”.
72. Eurípides, Hécuba, 537 (akraiphnes haima), Ifigênia emÁulis,
1574 (ákhranton haima); se a pureza do sangue é metonimia
daquela da virgem, a narração de Pausânias a respeito da filha
de Aristódemo poupa essa metonimia, e ákhranlos, pura, é a
virgem a sacrificar (IV, 9, 4). Khraino: tocar, portanto “ma-
cular”...
73. Esquilo, Agamemnon, 232 e 1414-1416 (que, na lógica da
Oréslia, se comparará com Eumênides, 450: o ciclo da mácu-
la fecha-se depois de haver corrido sobre Orestes o sangue de
um animal novo (botón) degolado).
74. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 359; Ifigênia em Áulis, 1080-
1083.
75. Sobre o sacrifício de Hermes no Hino homérico dedicado a
esse deus, ver L. Kahn, Hermes Passe, Paris, 1978, principal
mente pp. 41-73.
76. Citação de Paul Vidal-Naquet, “Chasse et sacrifice dans
VOrestie d’Eschyle”, em J.-P. Vernant e P. Vidal-Naquet,
Mythe et tragédie en Grèce ancienne, op. cit., pp. 135-158 (p.
139). A corça que substituiu a moça (Ifigênia em Áulis, 1587-
1589 e 1593): versão mais antiga da história (A. Henrichs,
“Human Sacrifice”, art. cit., p. 199), remontando aos Cantos
Ciprios e à qual se opõe uma versão mais difundida (Esquilo,

125
Píndaro, Sófocles) onde a virgem era realmente sacrificada; ver
P. Jouan, Euripide et les légendes des Chants Cypriens, Paris,
1966, pp. 273-274.
77. Eurípides, llécuba, 205-206 (comparação), 526 (metáfora; no
verso 327 da Alexandra de Licofronte, Poüxena é stephêpho-
ros bous, novilha adornada com fitas); 142: polos.
78. Stella Georgoudi chamou-me a atenção para a circunstância de
polodamnein designar o ato de preparar um potro para fazer
dele um cavalo; o grego desconhece o verbo hippodamnein.
79. Ver V. Magnicn, “Vocabulaire grec reflétant les rites du ma
riage”, em Mélanges Desrousseaux, Paris, 1937, pp. 293-297,
e “Le mariage chez les Grecs anciens”, L’Antiquité Classique,
5, 1936, principalmente pp. 129-131, bem como Cl. Caíame,
Les Choeurs des jeunes filles dans la Grèce archaïque, I,
Roma, 1977, pp. 411-420, e M. Détienne, “Puissances du
mariage”, em Y. Bonncfoy (editor), Dictionnaire des mylholo-
gies,ll, Paris, 1981, p. 67.
80. No verso 1113 da Ifigênia em Aul’is, Agamêmnon joga com o
duplo sentido, anunciando que os môskhoi estão prontos para
o sacrificio pré-nupcial das protéleia.
81. A história da filha de Aristódemo (Pausânias, IV, 9, 4-10) é
esclarecedora: contestando que Aristódemo seja ainda kyrios
de sua filha, o noivo da moça lembra que, no entremeio cm que
se acha a nymphe, a passagem de um kyrios para outro já se
consumou; Aristódemo “deu” sua filha em casamento, e não
pode mais “dá-la” em sacrifício. Ver a esse respeito, P. Rous
sel, “Le rôle d’Achille dans Vlphigênie à Áulis”, Revue des
Éludes grecques, 28, 1915, principalmente p. 249, e “Le Thè
me du sacrifice volontaire dans la tragédie d’Euripide”, Revue
Belge de Philologie et d’Histoire, I, 1922, principalmente pp.
234-235, bem como as observações de J. Redficld, “Notes on
Greek Wedding”, Arethusa, 15, 1982, pp. 180-201 (p. 187).
82. Se, na voz média, ágomai significa (para o homem) “levar”
uma mulher, casar-se com ela, a forma passiva ágomai convém
à moça em sua significação de “ser conduzida”, tratando-se da
vítima (ago na linguagem do sacrifício: Porfirio, Da Abstinên
cia, H, 2S, 1 ). Ambigüidade trágica do verbo ágein: Ifigênia em
Áulis, 434, 714 (e passim, tanto é verdade que a característica
principal de Ifigênia é “ser conduzida”); Hécuba, 43-44, 222-
223, 369,432 (Polixena); ver também Sófocles, Antígona, 773,
885 (e 811, 916), e a “condução” de Alceste por Tânatos
(Eurípides, Alceste, 259).

126
83. No Agamemnon, o pai é o sacrificador (209-211, 224-225),
mesmo se, no instante supremo, os sacrificadores são rebai-
xados (239-240); no último momento, na Ifigênia em Áulis, ele
é substituído por Calcas: ver F. Jouan, Euripide, op.cit., pp. 277
e 288, e notícia da edição da Ifigênia em Áulis, Les Belles Let
tres, Paris, 1983, pp. 26-27 (com as referências bibliográficas
sobre o debate concernente à autenticidade desse trecho). A
propósito do tema literário do pai sacrificador, ver F. Pcllizer,
Favole d’ ideníità, favole di paura, Roma, 1982, pp. 102-103.
84. Hécuba, 523 (mesmo gesto no vaso (hydria) de Berlim 1902):
deve-se recordar, com CJ. Leduc, que engye é originariamen-
te uma “empalmação”, um “empunhar” (“Réflexions sur le
système matrimonial athénien à l’époque de la cité-État”, em
La Dot. La valeur des femmes, G. R. I. E. F., Toulouse, 1982,
p. 13).
85. Ver sobre essa questão W. Burkert, Homo Necans, Berlim,
1972, pp. 78-80, além da discussão entre J. Rudhardt, A. Hen-
richs, G. Piccaluga e W. Burkert em Le Sacrifice dans
l’Antiquité, op. cil., pp. 236-238.
86. Ver L. Kahn e N. Loraux, “Mythes de la mort”, no Diction
naire des mythologies, II, pp. 121-124. Semelhanças entre a
cerimônia do casamento e a dos funerais: J. Reducid, “Notes”,
art. cit., pp. 188-191.
87. Segundo me parece, é realmente a tragédia que opera essa
inversão; o lema do himencu no Hades será retomado nos
epitafios a partir da época helenística e em numerosos epigra-
mas da Antologia Palatina, mas, excetuado o célebre e difícil
epitafio de Frasícleia (W. Peek, Griechische Vers-Inschriften,
ns 68), a poesia funerária das épocas arcaica c clássica não
associa esse tema à morte das moças.
88. Por recusarem o casamento, as Danaides preferem a corda ao
contacto do macho, e o reinado de Hades ao de um marido
(Esquilo, Suplicantes, 787-791); mas, se elas fingem ignorá-lo,
o espectador sabe muito bem que ao trocarem um senhor por
outro, elas permutarão pura e simplesmente um marido por um
“marido”.
89. Casamento no Hades: Anlígona, 653-654; casamento com o
Aqueronte: 810-816; lithôstroton kores nymphêion Haidou:
1204-1205; ver ainda os versos 568, 575,796-797, 804 (thála-
mos), 891-892 (tymbos, nymphêion). Sobre Antígona-Kore, ver
as observações de Ch. P. Segal, Tragedy and Civilization,
Cambridge (Mass.)-Londres, pp. 152-206.

127
90. Eurípides, Ifigênia em Táuris, 369; ver também Ifigênia em
Áulis, 461, 540, 1278; a imbricação do casamento e do sacri-
fício, já perceptível na Ifigênia em Táuris (216, 364-371 : hai-
matêron gãmon, 818-819, 856-861), domina toda a Ifigênia em
Áulis: ver por exemplo H. P. Foley, “Marriage and Sacrifice in
Euripides’ Iphigenia in Áulis”, Areihusa, 15 (1982), pp. 159-
180.
91. De Licofronte (Alexandra, 323 e seguintes) a Seneca e até mais
tarde, o tema da morte de Polixena como “sacrificio nupcial”
(A. Fontinoy, “Le Sacrifice nuptial de Polixène”, L’Antiquité
classique, 19, 1950, pp. 383-396) é helenístico e romano.
92. Eurípides, llécuba, 352-353 (nymphe), 368 (Hades), 414-416,
e principalmente 611-612.
93. L. Méridier, comentando o verso 612 (edição Les Belles
Lettres).
94. Macária sacrificada a Core: Eurípides, Heráclidas, 409-410,
490, 601; o Hades: 514; a hora das nupcias etn vez da vida de
seus irmãos: 579-580; morta por seu genos: 590; os filhos e a
partheneia: 591-592.
95. L. Mcridier, comentando o verso 592; ver também a tradução
de Ph. Vellacott, Ironie Drama, Cambridge (Mass.)-Londrcs,
1975, p. 191 (“por crianças não-nascidas, virgindade
irrcalizada”). Prcfcrir-se-á a tradução de Marie Delcourt
(Gallimard, “La Pléiade”): “tesouro que para mim ocupa o
lugar de crianças, de minha virgindade oferecida”.
96. Esse lema aparece mesmo nos casos de filhos do sexo mascu-
lino: Eurípides, Heracles, 481 –484 (Mêgara oferecendo as Ke-
res a seus filhos como esposas), Troianas, 1218-1220 (para-
mentação fúnebre/nupcial de Astiânax).
97. Isso pressupõe uma certa representação do corpo feminino,
onde a garganta recebe valores sexuais; voltarei ao assunto nas
pp. 108-110.
98. Um gegenés por outro: em língua autóctone isso se diz aníi
karpou kárpon (um fruto em lugar de um fruto: Eurípides,
Fenicias, 931-941); notar-se-á que, espartano de pai e mãe
(994-996), Mcneccu é por assim dizer nascido da pátria (996):
em língua espartana não há outra mãe senão a terra dos pais
(ainda mencionada nos versos 913, 918, 947-948, 969, 1056).
99. Fenicias, 1009 (início, stas, como o hoplita), 1012 (“libertarei
minha terra”) e 1090-1092.
100. Fenicias, 942-948, comentada por P. Roussel, “Le rôle
d’Achille”, art.cit., p. 243.

128
101. Para matizar a frase de J.-P. Vernant, que propõe que “o casa
mento [seja] para a moça o que a guerra é para o rapaz” (“La
Guerre des cités”, art. cit. p. 38), ver as observações de P.
Schmitt-Pantel, “Histoire de tyran”, em B. Vincent (editor),
Les Marginaux et les exclus dans l’histoire, Paris, 1979, pp.
217-231, principalmente pp. 226-227.
102. A crer em Plutarco (Questões de mesa, 8, 8, 3), era necessária
uma ordem expressa de Delfos para o sacrifício de animais, “e
ainda hoje não se degola qualquer animal antes de ele, bai-
xando a cabeça sob uma libação de água pura, anuir por um
sinal à sorte que lhe está reservada”: ver por exemplo P.
Roussel, “Le thème du sacrifice volontaire”, art. cit., além de
W. Burkert, “Greek Tragedy and Sacrificial Ritual”, Greek,
Roman and Byzantine Studies, 7 (1966), principalmente pp.
106-107.
103. Essa escolha reitera a que consiste em fazer efetivamente
morrer Ifigênia: compare-se A. Henrichs, “Human Sacrifice”,
p. 199.
104. Ora: deve prevalecer no sacrifício um silêncio de bom augurio,
e a euphemia envolve ao contrário o sacrifício na Ifigênia em
Áulis: 1467-1469, 1560, 1564 (ver ainda Hécuba, 530, 532-
533: sacrifício de Polixena).
105. Mácula, impureza, impiedade: Esquilo, Agamemnon, 209,220;
a idade virginal: 228-230; a violência, 232-238.
106. Cassandra, outra moça esquiliana, recusa-se a pensar seu as-
sassínio como um sacrifício: ela, ciente de que um cepo à guisa
de altar a espera (Agamemnon, Mil), quer até ser corajosa
(1289), mas opõe-sc a que o coro normalize sua situação
comparando-a a uma novilha impelida pelos deuses marchan-
do bravamente para o altar (1297-1298 e 1299-1303).
107. Agamêmnon, 232-234; sobre Ifigênia procurando um refúgio
no chão, ver as observações de J. Bollack, VAgamemnon
d’Eschyle, I, 2, Lille-Paris, 1981, pp. 295-298. Não é neces
sário supor, como F. Jouan (Euripide, op.c.it., p. 271, nota 5),
que Esquilo se inspirava aqui na representação do sacrifício de
Polixena existente numa ánfora tirrênia de Londres: de fato, é
possível que, cada um em sua linguagem, o pintor c o poeta
traduzam, ern função de uma vítima humana, a prática sacri-
ficial que consiste em “erguer” (aeiro, áireslhai) a vítima; ver
P. Stengel, Opferbrãuche, op. cit., pp. 105-112, e J. Casabona,
Vocabulaire, op.cit. p. 162. Aerdén é um advérbio derivado de

129
aeiro. Se, com J. Rcdfield (“Notes”, art. cil., pp. 191-192 e
19S, nota 5), considera-se que, levantar da terra a noiva por
ocasião das nupcias, eqüivalia a dramatizar sua necessária
recusa à aquiescência, talvez se descubra no texto de Esquilo
mais uma inferencia entre sacrifício e casamento; entretanto, já
que a violência aqui não é de forma alguma simulada, somente
a interpretação sacrificial me parece pertinente neste ponto.
108. Ifigênia em Táuris, 26-27; trata-se, palavra por palavra (metar-
sia, adjetivo derivado de aeiro, fazendo pensar em aerdén) de
uma “citação” de Esquilo (ver sobre este problema R. Aclion,
Euripide héritier d’Eschyle, Paris, 1983,1, pp. 106-107, e H,
p. 117).
109. Ifigênia emÁulis, 1587 e 1589 (ardén). A tradução de F. Jouan
(“seu sangue jorrava em ondas sobre o altar da deusa”) não dá
seu sentido tópico à palavra ardén.
110. llécuba, 525-527: os escolhidos (a elite dos jovens guerreiros)
aqueus devem “conter com seus braços os saltos (skírlema) da
novilha” Polixena; de fato, skirtao (saltar) aplica-se aos ani-
mais jovens, poloi ou cabras (Teócrito, I, 152).
111. llécuba, 545, 548-550, 554, 561. Uma passagem do Ájax de
Sófocles indica claramente que, ajoelhando-sc, seja-se ou não
suplicante, o essencial é que a pessoa se agarre ao solo (1180-
1181).
112. Em contraste, é sobre o joelho dobrado de Cassandra súplice
que Clitemncstra, num extremo de crueldade, levanta o ma
chado (compare-se N. Alfieri, P.E. Arias, M. Hirmcr, Spina,
Munique, 1958, p. 59 e ilust. 99: aproximadamente 430 a.C):
gesto bárbaro? Gesto de desespero? Ou os dois ao mesmo
tempo como cm Esquilo, Persas, 929-930?
113. Ver a Antología de Planudes, IV, 150 (descrição de uma Po
lixena ajoelhada e “implorando por sua vida”). Da mesma
fonna, em Lucrecio, é uma Ifigênia (Ifiânassa) suplicante que
dobra o joelho antes de ser erguida pelas mãos dos homens e
conduzida ao altar (De Rerum Natura, I, 92 e 95).
114. Além da ánfora tirrenia de Londres (97-7-272), mencionar-
sc-á a de Berlim (4841).
115. Na descrição de Polixena, Eurípides inverte certos traços da
Ifigênia de Esquilo (compare-se J. Schmitt, Freiw illige n Op-
ferlod bei Euripides, Giessen, 1921, pp. 57-58).
116. A liberdade de Macana (501-502, 528-529, 550, 559) passa
por sua recusa a entregar-se espontaneamente à incerteza de

130
uma tiragem da sorte; recusa a morrer nas mãos dos machos:
560-561, 565-566. Não tomarei uma decisão sobre os versos
821-822 e as razões do silêncio observado a propósito da
execução (censura voluntária ou reelaboração posterior).
117. Medír-se-á o distanciamento fazendo uma comparação com a
história da filha de Aristódemo (Pausânias, IV, 9,4-6), onde é
o pai que deve dar e dá sua filha por sua própria vontade
(hekoúsios, hekon). Para terminar, na Ifigênia em Áulis é
Agamêmnon que age sob pressão, akon (1157).
118. Por exemplo A. Katsouris, arí.cií. na nota 9, pp. 16 e 21.
119. Sobre a morte gloriosa em sua oposição ao suicídio, ver N.
Loraux, L’invention d’Athènes, op.cit., pp. 100-105, e “La
Belle mort Spartiate”, art. cit., p. 108.
120. Erecleu, fragmento 65 Austin, verso 67, que se comparará com
Heródoto, I, 30 (Telos de Atenas).
121. Erecleu, fragmento 65 Austin, versos 68-70: o túmulo coleti
vo e a glória partilhada eram para Praxitea a recompensa es
pecífica dos andres: Licurgo, Contra Leocrales, 100, versos
32-33. Ironia trágica...
122. Ver Cl. Nancy, “Euripide et le parti des femmes”, art. cit., pp.
85 e 88, e Ph. Vellacott, Ironie Drama, op. cit., pp. 178-204.
123. Meneceu morre de pé (Fenicias, 1009, 1091) como os guer-
reiros (1001-1002); ele ganha com isso a admiração do coro-
por sua vitória (1054-1057: kallínika; compare-se 1314: ôno-
ma gennáion). Nas Troianas Cassandra antecipa sua chegada
vitoriosa (niképhoros: 460) ao mundo dos mortos. Sobre a tol-
ma e a êukleia de Cassandra, ver ainda Esquilo, Agamêmnon,
1302, 1304.
124. Sófocles, Antígona, 817-822 (autônomos; ver ainda 502-504,
694-695); mas essa glória é ambígua, e a moça adivinha isso:
836-839 e 853.
125. Macária: Heráclidas, principalmente 533-534, 627-628 (a
morte dos agalhoi, designação tópica da morte militar).
Polixena: Hécuba, principalmente 348, 380-381 e 592 (no
breza). Ifigênia: comparar-se-á Ifigênia em Áulis, 1252 (recu-
sa da morte gloriosa) c 1374-1375 (eukleás), 1398 (a memó
ria), 1423-1424 (nobreza), 1504 (glória imortal); o peã de
Artemis é cantado pelo coro para Ifigênia: pelas mulheres para
uma virgem (o peã é normalmente masculino: Cl. Caíame, Les
Coeurs des jeunes filles, op. cit., I, pp. 148-149).
126. Ver a esse respeito as observações de G. B. Walsh, Classical
Philology, 69, 1974, pp. 241-248: a arelé para Ifigênia e, em
sentido contrário, a aidós, virtude feminina, para Aquiles.

131
127. Durante uma apresentação deste texto Deana Chirassi-Colom-
bo chamou minha atenção para um trecho das Metamorfoses
(Xni, 692-699), onde Ovidio tira a conseqüência mais radical
dessa lei metamorfoseando emjuvenes os corpos das filhas de
Orion que se tinham suicidado pela pátria. Mas a metamorfo-
se é estranha à lógica da tragédia, que prefere ater-se aos re-
cursos do discurso.
128. Se a tragédia é feminista, ela o é à maneira dessas feministas
das quais fala P. Darmon, que “regeneram o gênero feminino
num banho de sangue” (Mythologie de la femme dans
l’ancienne France, Paris, 1983, p. 59).
129. Para dar um exemplo mencionarei a tradução de Mazon (Les
Belles Lettres) dos versos 271 –272 das Coéforas, onde o “fí
gado quente” passa a ser o “sangue de meu coração”, por ra-
zões que aliás Mazon explicita claramente, numa nota onde o
que está em jogo é bem formulado: transposição ou tradução
“literal”, que só pode ser indicada ao pé da página. A propó-
sito dessas questões ver ainda as observações de J. Dumorticr,
discípulo de Mazon, na introdução à sua obra Le Vocabulaire
médical d’Eschyle et les écrits hippocratiques, Paris, 1935.
130. Por exemplo: Helena, 354; Hipólito, 781.
131. Ver P. Chantrainc, Dictionnaire étymologique, verbetes au-
khén e dere; garganta de Afrodite: llíada, III, 396 (e Hino
Homérico a Afrodite, 88); garganta da amada: Safo, fragmen-
to216Page, 16; pescoço de Medéia; Eurípides, Medéia, 30-31;
o luto: Eurípides, Medéia, 30-31; o luto: Eurípides, Electra,
146-147.
132. Sobre sphazo como designação da degolação, sobre a equiva-
lência de sphazo e de deirotomeo (cortar a garganta), e sobre
sphagé como o nome da garganta, ver J. Casabona, Vocabulai-
re, op.cit., pp. 155-156 e 175.
133. Ifigênia em Táuris, 853-854 (compare-se 1460); Ifigênia em
Áulis, 1430 (e 1516, 1560, 1574); Hécuba, 151-153. Eviden-
temente, se ocorresse a imolação de um homem ela se faria
também pela garganta: Heracles, 319-320 (verifica-se, porém,
que jamais ocorreu efetivamente esse tipo de imolação).
134. Dere e o cútelo sobre a garganta: por exemplo, Orestes, 1194,
1349, 1575; laimos e o sacrifício em ato: Heráclidas, 822;
Fenicias, 1421; Ifigênia em Áulis, 1579; laimos é também a
garganta de Polixena pensada como vítima sacrificial (Hécu-
ba, 565; em 567 Neoptólemo corta nela “a passagem do
sopro”). Laimôtomos (-tmetôs) caracteriza a Gôrgona com a
garganta cortada: ¡on, 1054; Electra, 549; Fenicias, 455.

132
135. Eurípides, Orestes, 1471-1473, com a nota de F. Chapouthier
(Les Belles Lettres) e a de M. Delcourt (Gallimard, “La Pléia
de”); sobre a significação do gesto que consiste em mover para
cima e para baixo o pescoço da vítima, ver P. Stengel,
Opferbrãuche, op. cit., pp. 113-125.
136. Eurípides, Electra, 1223, e também 485 (no verso 1222 Ores
tes usa o verbo “sacrificial” katárkhomai e, no verso 1228, o
ferimento de Cb’temnestra é qualificado de sphagás). Já em
Esquilo, Clitemnestra era golpeada na garganta: Eumênides,
592 (pros derén íêmon) bem como Coéforas 883-884
(aukhén).
137. Ver Helena, 355-356 (nos planos de suicídio de Helena, lai-
motômou sphagás é a alternativa para o enforcamento).
138. O próprio Hgisto que, em Eurípides, é colhido pela morte no
sacrifício prestes a ser consumado, não é golpeado na gargan-
ta por Orestes, que lhe parle o dorso, e sim nas vertebras (Elec
tra, 841-842).
139. Trâpon ton auton: Coéforas, 21 A; a machadada em plena tes-
ta: Sófocles, Electra, 95-99 e 195.
140. O pescoço, ponto fraco: Iliada, XXII, 321 –327 (morte de Hei-
tor), e também VIU, 325-326 e XXIII, 821; guerreiros com a
garganta cortada: XIII, 202; XVII, 49; XXI, 555 (deirolomeo).
Ver também Hesíodo, Escudo, 418 (Cieno morto com um
golpe no pescoço). Em Homero, Ch. Daremberg (La Médeci
ne dans Homère, Paris, 1865, pp. 14-15 e 38) enumera seis
ferimentos na garganta e sessenta e dois no pescoço; as razões
puramente funcionais invocadas por M. D. Grmek (Les Mala
dies à l’aube de la civilisation occidentale, Paris, 1983, p. 35)
não bastam para explicar sem dúvida a repetição de tal feri-
mento na epopéia.
141. Fenicias, 12S8-1292; guerra civil (stasis) e sphagé: ver M.
Détienne e i. Svenbro, “Les loups au festin ou la cité impos-
sible”, cm La Cuisine du sacrifice, op. cit., p. 231.
142. Eurípides, Medéia, 30; Ifigênia emÁulis, 875. Pode-se avaliar
a diferença em relação à Ilíada, onde o pescoço percebido
como alvo e delicado no momento em que a espada o corta é
o de um homem, porque somente o corpo do guerreiro é ero-
tizado; ver E. Vermeule, Aspects of Death, op. cit., p. 101-105.
143. Todos esses lugares de morte são tirados do canto IV (457-
531). Para a vulnerabilidade essencial do corpo viril em
Homero, ver o livro já citado de E. Vermeule (pp. 96-97).

133
144. O flanco protegido: Eurípides, Troianas, 1137; Heráclidas,
824; o flanco atingido: Esquilo, Sete contra Tebas, 624, e
principalmente 888-S90 (evocação, pelo coro, da morte dos
filhos de Édipo atingidos no flanco esquerdo – lado anormal,
lado sinistro –, dieuônymon telymmênoi... homosplânkhnon
pleuromalon, trecho que parodia Eurípides nos versos das
Fenicias citados na nota 141).
145. Eurípides, Andrômaca, 1150; no verso 1120 Neoptólemo não
foi “tocado no lugar certo” e, nos versos 1132-1134, recorta-
do por golpes causados pelos projéteis (pedras, dardos, flechas,
etc).
146. Ferido através do umbigo (Fenicias, 1412-1413), Polinices cai,
dobrando a pleura kai nédyn. A imagem do gládio através do
pulmão/através do flanco: comparar-se-ão Esquilo, Coéforas,
639-640, Eurípides, Ion, 766-761, e Esquilo, Eumênides, 843.
147. Erecleu, fragmento 65 Austin, verso 15; Fenicias, 1421 e
1437-1441; Medéia, 379.
148. Hêmon: Anlígona, 1236 (pleurais); Ájax: Sófocles, Ájax, 834
(plêuran) (compare-se Píndaro, Neméias, VII, 25 e seguintes:
diá phrenon; sobre o ferimento no diafragma, ver Dumortier,
Le Vocabulaire medical d’Eschyle, op.cit., p. 11).
149. Eurípides, Heracles, 1149; Helena, 982-983; Orestes, 1062-
1063 (eugéneia). Obscrvar-se-á que um dos temas do Orestes
é a oposição entre a sphagé, procedimento de assassinio, e uma
morte voluntária e nobre, decorrente do golpe no fígado.
150. Esquilo, Agamemnon, 432, 792; Coéforas, 272; Eumênides,
135 (e 158); Sófocles, Ájax, 938; Eurípides, Suplicantes, 599;
Hipólito, 1070.
151. Sófocles, Antígona, 1315-1316 (hypWhipar); 1291-1292
(sphagion); 1301 (botnia); 1283 (plêgmasin); 1314 (en pho-
nais; compare-se 696, onde a morte guerreira de Polinices
manifestou-se en phonais).
152. A ama foi “companheira de fileira” (parastális: Traquínias,
889) do suicídio, aliás solitário, de Dejanira; recordar-se-á que
a noção de parastales fundamenta a ordem hoplítica da fa-
lange.
153. Que se deve interpretar na lógica do texto, e não, como faz G.
Devercux em um estudo aliás muito atento à literalidade da
tragédia (Tragédie et poésie grecques. Paris, 1975, pp. 117-
136), naquela de um inconsciente – o de Dejanira ou o de
Sófocles (no qual essa “masculinização” da doce e tema esposa
deveria ser atribuída a um “retomo do reprimido”).

134
154. Traquínias, 923-926: embora o broche aberto por Dejanira
tenha mantido suas vestes entre os seios, a mulher de Heracles
não desnuda seu peito, e sim o braço e o flanco.
155. Pouco mais satisfatória é a leitura – no caso, a de G. Devcreux
(Tragédie et poésie grecques, op.cit.,pp. 114,122,136)—que
põe todo o trecho sob o signo do lapsus calami; atribuir além
disso essa “confusão” da direita e da esquerda às “fortes ten-
dências homossexuais” de Sófocles porque “duas categorias de
sujeitos, os homossexuais [...] e os canhotos, têm a tendência
de inverter a esquerda e a direita” (página 137) não é sério:
quando se lê um texto trágico não se deve esquecer que se lê
um texto, e um texto muito elaborado.
156. Ver N. Loraux, “Heraklcs, le surmâle et le féminin”, Revue
Française de Psychanalyse, 1982, p. 725.
157. Notar-se-á que, nas Traquínias, as conotações do flanco podem
ser tanto eróticas quanto guerreiras: ver os versos 930-939 e
1225-1226 (comparc-se Eurípides, Hécuba, 826).
158. llécuba, 566-567. Na Alexandra de Licofronte, o filho de
Aquiles golpeia Polixcna também na garganta (verso 326, lai-
misas).
159. E num contexto inteiramente diferente que Aristódemo, que
matou sua filha para provar que ela não estava grávida, a vê em
sonho “com o peito e o ventre abertos” (Pausânias, IV, 13, 2).
Até onde vai o meu conhecimento, não há mulher que morra
pelo seio na tragédia; malgrado o uso suplicante que faz de seu
masías, Clitcmnestra, como já vimos, é atingida na garganta,
c Mazon, influenciado pela cena das Coéforas, traduz nas
Eumênides, 84, “traspassar o seio de uma mãe” onde o texto
fala somente de “traspassar o corpo materno” (metrôion
demas).
160. Aristóteles, História dos Animais, I, 14, 493 b 7 (koinon me
ros aukhenos kai slethoús sphagé), comentado por J. Casa-
bona, Vocabulaire, op. cit., p. 175, nota 31.
161. A interpretação mais corrente do verso 239 do Agamemnon
indica que o “vestido cor de açafrão” de Ifigênia cai por terra;
mas, boas razões advogam outra leitura, onde é a “tinta de
açafrão” do sangue da virgem que se derrama sobre a terra (ver
a demonstração de J. Buüack, L’Agamemnon d’Eschyle, op.
cit., I, 2, pp. 300-303). Se, como pensaram alguns comenta-
dores, o sacrifício de Polixena é uma reinterpretação euripi-
diana dos versos de Esquilo, dever-se-ia atribuir a Eurípides a
leitura tradicional desse trecho.

135
162. Nos Herádidas, Macana alude ao ato de tirar o véu (verso
561). J. Hcckenbach (De Nuditale Sacra Sacrisque Vinculis,
Giesscn, 1911, pp. 9-10) quesliona-se a respeito dessa prática
no caso de Polixcna. Assinalar-se-á que esse desvelamento é
uma espécie de parodia brutal de anakálypsis da noiva duran-
te a cerimônia do casamento; SSneca diz a mesma coisa a seu
modo, Troianas, 87-93.
163. Pintura grega: ver a Antologia Grega, IV, 150; Pedro de Cor-
tona: penso no Sacrifício de Polixena no Museu do Capitólio,
em Roma.
164. Há em Eurípides vinte e sete ocorrências de masías como
nome do seio materno, contra duas menções no sentido erótico:
Andrômaca, 629 (ver Aristófanes, Lisístrata, 155-156) e Ciclo
pe, 170. Tiro a noção de “objeto parcial” da linguagem da
psicanálise: ver J. Laplanchc e J.-B. Ponlalis, Vocabulaire de
¡a psyclianalyse. Paris, 1967, pp. 294-295.
165. Eurípides, Suplicantes, 604; Fenicias, 134, 162, 1375, 1397,
1437; desde Hornero (litada, XIII, 288-290, XXII, 282-285),
o guerreiro valoroso deve ser atingido pela frente, no peito, e
não nas costas.
166. niectra: Eurípides, Orestes, 1049; Electra, 1321; Ifigênia: Ifi-
gênia em Áulis, 634; a beleza virginal de Ifigênia, ibidem, 681
(nolar-sc-á: 1- que o peito, a face e os cabelos – marcas da
beleza – são precisamente aquilo que se maltrata no luto; 2-
que, na Elecíra de Eurípides (1023), Clitcmncstra resume o
escândalo do sacrifício na evocação da “face alva” de Ifigênia);
lulo: Suplicantes, 87, 979; Troianas, 794; Andrômaca, 832-
834. O peito “como o de urna estatua” (hós agálmatos) que. faz
a beleza de Polixcna, evoca num registro totalmente diferente
a Ifigênia de Esquilo, jóia (ágalma) da casa paterna (Agamem-
non, 208).
167. Notar-se-á que a associação tão rara de mastoi e de stêrnon
aparece outra vez na Hécuba (424: o adeus de Polixena à sua
vidade do corpo materno).
168. Hécuba, 20S-210 (nekron inelá); 568-570 (pudor).
169. Séneca, Troianas, 195-196, 202, 361-364, 940-944 e 1312 (a
narração do sacrifício começa por thalami more).
170. C. Fontinoy (“Le Sacrifice nuptial”, art. cit., p. 386) admira
se de que o tema do casamento, a seus olhos essencial, seja tão
pouco desenvolvido na narração do sacrifício.

136
171. Ovidio, Metamorfoses, XIII, 451-452, 458-459, 479-480.
Eurípides, modelo de Ovidio e de Séneca: R. Aelion, Euripi-
de héritier d’Eschyle, op.cit., H, 114, nota 9.
172. No mesmo livro das Metamorfoses, uma das filhas de Orion
mata-se “com uma coragem acima de seu sexo atingindo seu
peito desnudo” (XIII, 693).
173. Ver G. Arrigoni, Camilla, Amazone e sacerdotessa di Diana,
Milão, 1982, principalmente as pp. 37-38 (seio direito de
Camila). Notar-se-á que Dido se fere igualmente no peito
(Eneida, IV, 689); e a prosa dos historiadores não fica atrás: é
no peito que Lucrecia enfia o gládio (Tito Lívio, I, 48,11), que
Virgínia atinge sua filha para salvar-lhe a virgindade (Tilo
Lívio, III, 48, 5). Convém aliás observar com G. Devereux
(Tragédie et poésie grecques, op.cit., p. 123) que, nos textos
latinos, as mulheres suicidam-se em geral com o gládio.
174. O outro ramo da alternativa começa por hyp’aukhena (Hécu-
ba, 564); ou, para Polixcna, a nuca c também – classicamcn-
tc – o lugar do jugo (ibidem, 376).
175. A morte da amazona Pentesiléia já é mais clássica na época
arcaica, um topos das representações figuradas: ver por
exemplo E. Vermeule, Aspects of Death, op.cil., p. 158, e
também D. von Bothmer, Amazons in Greek Art, Londres,
1957, IV, 2 e figuras LI/1 (ánfora antiga com figuras negras,
Londres, B 10).
176. Refiro-me aqui às análises de Giulia Sissa sobre o corpo das
mulheres imaginado entre a boca de cima e a de baixo (Le
Corps virginal, a ser publicado). Como o pescoço, o colo do
útero pode chamar-se aukhén: ver Hipócrates, Doenças das
mulheres, HI, 230 (e também n, 169: trâkhelos, outro nome do
pescoço).
177. Hipocrates, Doenças das mulheres, II, 127, 151 (e também
110, 126, 201, 203); a propósito do Jugar dessa “afonía histé
rica” no “sistema hipocrático dos silêncios do corpo”, ver M.
G. Ciani em Le Regionidelsilcnzio, Pádua, 1983, pp. 157-172.
178. É notável a esse respeito o tratado hipocrático sobre as Doen-
ças das moças, cujas proposições essenciais analiso em “Le
corps étranglé”, op. cit., p. 216.
179. S. Freud, Cinq Psychanalyses, tradução de M. Bonaparte e de
R. M. Loewenstein, Paris, 1966, p. 61.
180. Que, de acordo com uma observação que me transmitiu Mo-
nique Schneider, nem sempre soube dar a devida importância
à garganta das mulheres.

137
181. É importante nesse contexto a figura de Medéia, quando ela se
recusa a voltar a morte contra si mesma; matando em vez de
matar-se, Medéia aciona uma lógica diferente, em face da qual
é sem qualquer dúvida menos fácil para o espectador contabi-
lizar os ganhos do imaginário.
182. Tiro a expressão “interferência” de Vidal-Naquet, em J.-P.
Vemant e P. Vidal-Naquet, Mythe et tragédie en Grèce ancien
ne, op. cit.
183. As coisas acontecem assim ao menos nas prças que, por cau-
sa da escolha dos eruditos alexandrinos, chegaram integral
mente até nós c constituem o corpus disponível para todos,
sobre o qual se resolveu trabalhar; para falar apenas em Eurí
pides, relembrar-se-á que, a exemplo de Fedra, sua
Laodâmia
e sua Estcncbcia se suicidavam, nas tragédias perdidas.
184. A famosa kátharsis (Aristóteles, Poética, 6, 1449 b 28), de
acordo com a tradução de R. Dupont-Roc e J. Lallot (Paris,
1980; ver o comentário a esse trecho, pp. 1S6-193).

137
Sobre a Autora

NICOLE LORAUX é diretora de estudos na École


des Hautes Études en Sciences Sociales (His-
toria e antropologia da cidade grega).

Livros publicados: L’Invention


d’Athènes. Histoire de l’oraison funèbre dans
la “cité classique” (Mouton, 1981); Les
Enfants d’Athéna. Idées athéniennes sur la
citoyenneté et la division des sexes (Maspero,
1981).
Entre seus artigos pode-se mencionar: “La
‘Belle mort’ Spartiate”, em Ktéma, 2, 1977;
“Sur la transparence démocratique”, em Raison
Présente, 49, 1979; “L’Oubli dans la cité”, em
Le Temps de la Réflexion, 1, 1980; “Le Lit, la
guerre”, em L’Homme, XXI, 1, 1981; “Héra-
klès: le surmâle et le féminin”, em La Revue
Française de Psychanalyse, 1982; “Ce que vit
Tirésias”, em L’Écrit du Temps, 2, 1982: “Le
Fantôme de la Sexualité”, em La Nouvelle

139
Revue de Psychanalyse, 29, 1984; “Le Corps
étranglé”, em Du Châtiment dans la cité. Sup-
plices corporels et peine de mort dans le mon-
de antique, École Française de Rome, 1984;
“Blessures de virilité”, en Le Genre Humain,
10, 1984.

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