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TRAIÇÕES1

GABRIELLA TURNATURI 2

INTRODUÇÃO

 Responder à pergunta sobre o motivo pelo qual se trai é quase impossível. Muita
complexidade e ambigüidade estão presentes em cada forma de interação e
atravessam cada relação. Muita complexidade e ambigüidade habitam cada
indivíduo. Paixões e interesses, representações contrastantes de si e dos outros,
necessidades contraditórias - e contudo, contemporâneas - de pertencimento e de
separação, de coletividade e singularidade, de proteção e emancipação, de entrega e
distanciamento entrelaçam-se em mil modos e podem dar origem a infinitos tipos
de traição. Trai-se a si mesmos, aos parentes, aos amigos, aos amantes, à pátria.
Trai-se por ambição, vingança, leviandade, para afirmar a própria autonomia, por
cem paixões e cem razões (p.11).

 Estamos habituados a pensar na traição como um evento sem sombras, do qual


nos iludimos poder sempre reconstruir as origens. Mas, a maior parte das traições
parece não ter alguma razão aparente - alguma possibilidade de ser explicada
racionalmente, tanto da parte de quem trai quanto daquela de quem é traído - nem
se deixa classificar em alguma ordem. Se deslocarmos o olhar sobre as infinitas
interações da vida cotidiana, descobriremos que a traição é muito mais comum e
difundida do quanto se possa supor, a ponto de ser possível afirmar que trair é uma
das possíveis formas de intersubjetividade (p. 12).

 A história e a literatura sempre narraram infinitos tipos de traições, assim como o


cinema, as canções e as telenovelas. A depender dos contextos narrativos,

1 Título original: Tradimenti. Turnaturi, G. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2000. 138 p.
Tradução parcial do livro realizada por Maria Goretti M. Cruz, 2003. Supervisão Técnica de Nina
Vasconcelos Guimarães.
2 Gabriella Turnaturi é docente de Sociologia no Departamento de Ciência da Comunicação da Universidade
de Bolonha. Escreveu vários ensaios sobre a vida cotidiana e a sociologia das emoções. Publicou Associati
per Amore (Feltrinelli Editore, 1991).
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naturalmente, mudam a dramaticidade e o juízo moral sobre a traição. Em grande


parte da literatura contemporânea a traição não é mais narrada como um evento
trágico e, como chama a atenção Tony Tanner, existe um abismo entre o adultério
narrado por Tolstoi e aquele contado aos nossos dias por Updike ou entre as
traições políticas das tragédias de Shakespeare e aquelas dos romances de Carré.
Entretanto, todos, intelectuais e gente comum, mulheres e homens, continuam a ser
fascinados pelas narrações de traição (p. 12).

 Provavelmente, frente a uma história de traição, cada um de nós põe em ato um


mecanismo de reconhecimento: quem nunca traiu? E quem nunca foi traído? E
talvez nos fascine justamente porque é comum, faz parte da nossa experiência
cotidiana, embora resista a explicações simplistas. Comum e ao mesmo tempo
complexa, a traição jamais pode ser reduzida a uma só causa, a um só motivo, a
uma só razão. A traição nos coloca diante da maior tragédia dos relacionamentos
humanos: o não-conhecimento do outro (p. 12).

 Mesmo se as formas de traição são múltiplas, escolhi examiná-las como formas


particulares da interação cotidiana, como um evento comum. Tratarei, portanto, das
terríveis traições cotidianas, daquelas que atingem o coração inesperadamente, que
surpreendem porque provêem de um amigo, um amante, um parente, um colega.
Traições muitas vezes inexplicáveis, que desorganizam a vida e, inesperadamente,
acendem os refletores sobre a nossa fragilidade e sobre aquela dos outros. Pequenas
ou grandes que sejam, comportam sempre definições e redefinições da nossa
identidade, nos colocam diante da escolha de quem queremos ser para nós e para os
outros (p. 13).

 Cada interação nasce e cresce em torno do partilhar - ainda que por breve tempo -
alguma coisa com o outro: um projeto a realizar, uma relação a construir, um jogo,
uma aventura, um ideal, um prazer fugaz, um segredo, um conflito, um
pertencimento. Em todas essas formas do ter em comum existe uma idêntica
moldura na qual se age; existe algo que une, ainda que momentaneamente, e
forma um Nós (p. 13).

 O nascimento de um Nós traz consigo a possibilidade da traição, da separação ou


ruptura (p. 13).
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 A traição, como gesto ativo ou como ação sofrida, é sempre relacional e sempre
possível. Quando entramos em relação com o outro, passo necessário à
constituição da nossa identidade, colocamos em jogo o nosso desejo de ser com o
outro, mas também o desejo de não anular-nos no outro. Queremos e devemos

ser-com o outro, mas, simultaneamente, para salvaguardar a nossa individualidade,


queremos e devemos não o ser completamente. Nessa alternância do ser e do não-
ser, a traição encontra espaço. O ser-por-si e o ser-com o outro, sempre fortemente
entrelaçados, faz com que cada relação seja marcada pela ambigüidade, pela
ambivalência e pela incerteza. Existimos somente com e através do outro, mas se
não existíssemos também como individualidade, de modo relativamente autônomo,
não poderíamos jamais encontrar o outro. É nessa dialética do ser e do não-ser que
se estabelece a possibilidade do confronto e da relação com o outro, mas também a
possibilidade da traição. Uma relação completamente previsível e transparente em
cada seu momento e aspecto, fundamentada sobre uma recíproca e total
compreensão, não somente seria impossível, mas comportaria o congelamento, a
imobilidade e, logo, a anulação de cada um dos sujeitos. [...] É necessário correr o
risco da incompreensão, da ambivalência, do mal entendido, que permite ser e não-
ser, manter interações, relações e encontros sem ser tragado (p. 15).

 Escolhi olhar, portanto, a todas aquelas traições que, na vida cotidiana, mais do
que frutos de paixões arrebatadoras ou astutas maquinações, são produto do ser-
com o outro, das diversas e possíveis modalidades em que acontece o encontro;
àquelas traições que fazem parte do jogo da vida, que não são elimináveis em cada
forma de intersubjetividade (p. 15).

 Concentrarei, assim, a atenção, sobre a traição como evento sociológico e omitirei


as implicações éticas e morais, a perspectiva ontológica do ser-com o outro e do
ser-por-si (p. 15).

 Olhar a traição a partir do ponto de vista das interações e das relações implica
evidenciar o seu caráter processual e interativo. Esta perspectiva não requer a
reconstrução da figura psicológica do traído e do traidor, de seu respectivo caráter e
dos traços constitutivos de seus psiquismos, como singularmente tentaram fazer os
psicólogos e psicanalistas. Traídos e traidores tornam-se tais somente através do
tipo particular de interação e de relação que constroem e apresentam.
Anteriormente àquelas interações e àquelas relações não existia nem um nem outro
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e isto implica que, sociologicamente, não é possível construir tipologias de sujeitos


que tendem a fazer-se trair e de outros que, ao invés, seriam traidores pela própria
constituição psíquica (p. 15-16).

 Mas, mesmo sendo fruto de concretas interações, das transformações das relações
entre indivíduos específicos, as traições assumem formas e significados diversos,
segundo os contextos históricos e sociais (p. 16).

1. TRAIÇÕES

1. De que falamos quando dizemos “traição”?

 Os significados do verbo trair são múltiplos. Nos dicionários encontramos: faltar


para com os deveres mais sagrados, para com um empenho moral ou jurídico de
fidelidade e de lealdade; revelar ou divulgar coisas que deveriam ser mantidas em
segredo; desiludir, agindo em modo contrário à expectativa e à conveniência. Mas o
significado originário é aquele do latim tradere, ou mesmo “entregar”, no
significado de entregar aos inimigos, como resulta de uma passagem do Evangelho:
Jesus autem dixit ei: Juda osculo filium hominis tradis3 (Lucas, 22,48). Logo, o
primeiro significado da traição é aquele que implica a entrega, o passar de alguém
(um amigo, um aliado), de alguma coisa (uma informação, um segredo) de um lado
para o outro (p. 17).

 Muitas são também as formas segundo as quais a traição pode se manifestar:


existem grandes e pequenas traições, traições intoleráveis e traições “inocentes” e,
às vezes, uma única traição pode conter muitas outras de diferentes naturezas. O
adultério, por exemplo, contém varias formas: faltar a um compromisso, faltar à
confiança, trair a intimidade, romper um pacto (p 17).

 A traição produz uma desorganização na geografia das posições que os sujeitos


assumem no interior das relações, produz desvios não somente emocionais, mas
também de identidade, que impõem a recomposição dos mapas. Quem sofre uma

3 O significado desta frase latina é: “Jesus lhe disse: Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?” N.T.
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traição, qualquer que seja o tipo, não pode escapar à sensação de vazio que
acompanha o não saber mais quem se é e onde se encontra. [...] A traição destrói
tudo aquilo que foi anteriormente partilhado. E a parte de si que se entregou e
confiou ao outro é arrancada (p. 18).

 Para que se possa falar de traição devem preexistir expectativas sejam racionais
sejam emotivas de lealdade, e subsistir relações e interações em que os sujeitos
confiam um no outro, parcialmente ou totalmente. Tantas são as traições quantos
são os atos de confiança. É por esse motivo que a traição aparece sempre como um
evento inesperado e dramático, que interrompe o curso cotidiano da interação. [...]
Ainda se, às vezes - depois da irrupção da traição e da grande confusão que traz
consigo - possa acontecer uma recomposição, as relações não voltarão jamais a
serem as mesmas. Os sujeitos mudaram: tanto o traidor quanto o traído devem
necessariamente redefinir as imagens que cada um tem do outro e as recíprocas
expectativas; são obrigados a redefinir a si mesmos e a relação com base naquele
acontecimento que constituirá para sempre um divisor de águas (p. 18-19).

 A traição não somente pressupõe uma partilha, mas nasce da partilha – de um


segredo, de um ideal, de um pertencer, de um fim. [...] Quando o Nós é agredido a
partir do exterior, ele se fortalece, mas se agredido por um dos sujeitos que o
compõem, mostra toda a sua fragilidade e quebra-se em mil pedaços. [...] As
traições acontecem quando, de um modo ou de outro, os limites do Nós são
ultrapassados. Em toda partilha corre-se sempre o risco do afastamento de um dos
sujeitos, porque mesmo no mais coercitivo dos Nós, os sujeitos mantêm a liberdade
de ir e vir, respeitar ou agredir a sacralidade. A traição, portanto, está contida na
própria idéia de partilha e implica um pertencer (p. 19).

 Como a confiança não pode existir unilateralmente – não se pode forçar alguém a
confiar em nós, nem podemos decidir independentemente da vontade e da
aprovação do outro em quem queremos confiar - assim também não pode existir
traição onde não existam relações e interações de confiança conscientes e
reciprocamente aceitas. “Confio em você mesmo se você não quiser ou não
souber”, é uma afirmação paradoxal. Para que exista traição é necessário não
somente que A confie em B, mas que B aceite conscientemente esta confiança e
reconheça a ligação, o vínculo que o une a A. Não se pode ser traído por quem se
ama, mas sempre nos rejeitou ou por quem definimos unilateralmente amigo, mas
não quer ter relações de amizade conosco. Pode-se, portanto, denominar traição
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somente àquela ação ou sucessão de ações que rompe uma relação de confiança
voluntária e consciente (p. 21).

2. Fenomenologia da traição

 A traição é um processo que se situa em um espaço e em um tempo partilhado,


construído junto com o outro, seja este outro um único individuo ou um conjunto,
grupo de amigos, família, comunidade, nação. Partindo dessa perspectiva, alguns
aspectos específicos e constantes da traição podem ser configurados (p.22).

Trair a relação

 A traição comporta sempre a fuga de uma relação, mas não é tanto uma agressão
direcionada ao outro quanto uma ação dirigida, mais ou menos intencionalmente, à
destruição daquela relação ou ao afastamento do relacionamento. Simmel defende
que a fidelidade, a partir de um ponto de vista sociológico, é a “própria vida da
relação refletida no sentimento, independentemente do eventual desaparecimento
dos motivos originais que a alicerçou”. [...] Logo, a fidelidade não tende ao bem do
outro nem à lealdade para com ele, mas à manutenção da relação (p. 23).

 Se a fidelidade está orientada à manutenção da relação mais que à posse do outro,


simetricamente a traição não está direcionada ao abandono do outro, mas ao
abandono da relação. Não se trai o indivíduo, mas a específica relação (p. 24).

 A traição de acordos de lealdade e de confiança recíprocos, na amizade como no


amor, nunca é simplesmente um gesto agressivo direcionado ao outro, mas uma
espécie de declaração simbólica de estranhamento, de tomada de distância da
relação. A traição, embora não seja sempre o fruto de uma vontade determinada e
consciente ou da intenção de destruir a relação, comporta de qualquer modo uma
redefinição e, como já foi dito, muda o papel dos sujeitos envolvidos. A traição, no
momento em que se realiza, pode revelar não somente a quem é traído - mas ao
próprio traidor - que está acontecendo uma mudança, uma redefinição: neste
sentido constitui uma espécie de revelação, de epifania (p. 24).
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Colaboração para a traição

 A traição, justamente porque relacional, acontece quase sempre graças à


colaboração ativa, consciente ou inconsciente, dos sujeitos: do traído e do traidor.
Entretanto, para que A traia B é necessário que B tenha confiado em A, construído
com ele alguma forma de partilha, estabelecido regras tácitas e nutrido
expectativas. Contudo, colabora-se para a traição também quando se confia
totalmente no outro, permitindo ser manipulado ou seduzido (p. 24-25).

 Judith Shklar afirma que a colaboração psicológica é uma variável sutil e não rara
da pura e simples traição. Com o nosso comportamento passivo - ou porque
queremos que o outro interprete para nós e conosco o papel de traidor - podemos
induzir os outros a trair-nos (p. 25).

 Colabora-se ainda ativamente com a traição, negando-lhe a existência, ignorando-


a, consciente ou inconscientemente, através de várias formas de auto-engano. Nos
relacionamentos amorosos e de amizade freqüentemente se escolhe ignorar todo
sinal ou prova da traição mesmo quando o outro deixa vestígios no percurso,
justamente para deixar-se descobrir. Nestes casos a traição não somente é
sustentada pelas duas partes, mas se torna uma modalidade do próprio
relacionamento, que se mantém vivo graças àquele voluntário fechar de olhos, ao
auto-engano e ao fato de ter-se estabelecido no interno da relação uma clara
divisão de papéis entre traidor e traído. De modo semelhante, a traição é sustentada
ativamente naqueles relacionamentos que sobrevivem graças ao fato dos sujeitos
alternarem continuamente os papéis de traído e traidor, num jogo de recíproca
ambivalência (p. 25-26).

 Em um romance de Henry Green, Passioni, fala-se de um casal de meia idade,


feliz no casamento, mas no qual, mesmo sem chegar ao adultério, pequenas
traições recíprocas, flertes, enamoramentos, possuem um papel importante para a
vida do casal. Os dois cônjuges se traem reciprocamente e cada um interpreta tanto
o papel de traidor quanto aquele de traído, apresentando paixões ainda não
adormecidas, inquietações que não encontram outro modo de expressão. Aquele
relacionamento, entre duas pessoas profundamente inquietas e ambivalentes,
alcança satisfação justamente graças às pequenas traições recíprocas, à
alternância do ser e do não ser ativamente colocado em jogo (p. 26).
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A percepção da traição

 Para que exista traição faz-se necessário que esta seja percebida e definida como tal
por quem foi traído ou por quem traiu. Somente o traído e o traidor podem nomear
a traição, reconhecê-la e chamá-la à vida. Ninguém pode impor a um outro de
“sentir-se traído” contra a sua vontade, mas se pode manipular alguém e induzi-lo a
sentir-se traído mesmo na ausência de uma verdadeira traição, como Iago fez com
Otelo. “Eu lhe derramarei nos ouvidos essa peste”, afirma Iago. [...] Poucas
palavras alusivas e a percepção da traição foi construída. A partir daquele momento
Otelo se sente traído e ninguém poderá convencê-lo do contrário. Destruir aquela
percepção será impossível, enquanto bastou pouco, quase nada, para construí-la (p.
28).

 As provas que confirmam uma suposta traição assumem, verdadeiras ou falsas que
sejam, um aspecto de veracidade justamente porque cada gesto e cada palavra são
interpretados com base na percepção de ser traído. E enquanto não é possível
provar a fidelidade ou a lealdade, é sempre possível encontrar ou construir provas
de infidelidade e de traição. A confiança é uma convicção que se baseia não tanto
sobre provas quanto sobre a ausência de provas contrárias (p. 28).

 Pode-se falar de traição se quem foi traído não tiver conhecimento disso?
Certamente não, se a traição se basear somente no conhecimento [...] mas se
olharmos a traição como a uma modalidade de relacionamento, não se poderá
negar que, ainda se somente um dos sujeitos tiver o conhecimento do fato, a traição
muda, de qualquer modo, as relações e os indivíduos. [...] Quem se sabe traidor
assume comportamentos de maior reserva, de defesa - na tentativa de retirar de si a
atenção do outro - ou de agressividade, para mascarar o sentimento de culpa. De
qualquer maneira, o seu comportamento para com o outro muda, induzindo uma
mudança também em quem foi traído e o relacionamento se modifica (p. 29-30).

 De fato, é suficiente que uma das partes reconheça a traição - até mesmo somente
dentro de si - para mudar a relação. Vice-versa, alguém pode sentir-se traído
mesmo que o outro, os outros, não se percebam como traidores. Quem trai pode
encontrar-se consciente ou inconscientemente preso numa armadilha, nas
“contradições da mente”, auto-enganar-se e representar-se como leal. A traição,
neste caso, foi percebida somente por quem a sofreu, mas, de qualquer modo,
marcará a interação. Uma vez que o outro foi percebido como traidor, mesmo na
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falta de acusações explícitas, provas, reconhecimento, a relação necessariamente


muda (p. 30).

A mudança

 Em toda forma de interação ou relação duradoura, um dos sujeitos pode modificar


lenta ou subitamente o próprio modo de pensar-se, de narrar-se, de relacionar-se
não somente com o outro, mas também com o mundo. Quem atravessa fases de
mudança tende a eliminar rotinas, hábitos que, ao longo do tempo, adquiriram a
forma de regras de comportamento e de pactos tácitos: abandona um universo de
senso comum. O próprio fato de mudar aparece ao outro como uma traição, porque
corrói qualquer possibilidade de apoio sobre certezas, de entender-se fazendo
referência ao universo habitual (p. 30-3l).

 Quando um dos sujeitos muda torna-se imprevisível, irreconhecível para o outro. O


mudar, o subtrair-se às rotinas é percebido como uma forma de abandono, como ter
empreendido um percurso, uma viagem fora do Nós e que dele prescinde. A
mudança é vivida como uma traição não somente no âmbito de um casal ligado
pelo amor ou pela amizade, mas também num grupo, numa comunidade que
dificilmente aceita o fato de que um de seus membros mude e assuma novos
parâmetros de julgamento (p. 31).

 A mudança é comparada à traição, entretanto, ao longo da vida cotidiana, na


construção da própria identidade e das relações com os outros, todos mudamos
algo de nós tanto quanto tendemos a conservar. [...] O indivíduo se move
continuamente em direções novas, numa exploração incessante de si e do mundo
e, por isso, às vezes, pode se afastar não somente de relações que pareciam
destinadas a durar eternamente, mas também de partes de si que não são mais
significativas ou que passaram por mudança (p. 31-32).

 Freqüentemente a passagem interna do indivíduo de um si a um novo si é


percebida como traição. Nestes casos a culpa do traidor é ter-se tornado diferente,
é mover-se não mais em sintonia, mas sozinho. Somente onde se aceita a mudança
do outro - ou se a acolhe como um desafio para a redefinição pessoal e a
redefinição da relação - o mudar não é percebido como traição. Mas para que isto
seja possível, é necessário que quem mudou, ou está mudando, não dissimule a
própria mudança, mas envolva o outro, os outros (p. 32).
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A traição é assimétrica

 A traição é o lugar da assimetria. A assimetria entre as nossas expectativas e a


realidade; entre a imagem que temos do outro e o outro; entre a nossa sensibilidade
e o conhecimento que o outro tem de nós; entre a nossa leitura de gestos e palavras
e aquilo que, ao contrário, aqueles gestos e aquelas palavras entendiam comunicar;
entre as regras implícitas de uma particular interação e a sua ruptura, entre o ir e o
ficar, entre quem muda e quem não quer mudar, entre atenção e desatenção (p. 32).

 Quem se colocou fora da relação? Quem mudou ou também quem não mais seguiu
o outro no seu tornar-se e não mais lhe prestou atenção? Neste caso não nos
encontramos diante de uma traição recíproca no sentido de um recíproco abandono
da relação? Mas esta reciprocidade é anulada pela assimetria da percepção da
traição, pela assimetria entre a velocidade da mudança da parte de um e a lentidão
da percepção sobre a mudança por parte do outro (p. 33).

A traição é assíncrônica

 Na traição, os tempos nunca são sincrônicos. Para quem sabe estar traindo, o tempo
parece longo demais e, muitas vezes, o acelera de propósito, disseminando
intencionalmente indícios a serem descobertos e colocando um limite a um tempo
que parece nunca passar. Para quem descobre de ter sido traído, pelo contrário, tudo
se consuma em um instante. E, vice-versa, entre a traição e a sua descoberta (ou
confissão) o tempo pode ser percebido como acelerado por quem trai - porque tudo
se condensa no momento da revelação - e longo demais por quem foi traído, que
naquele momento entrevê um passado, uma história a ele desconhecida (p. 33).

 “Porque você não me disse logo? Como você pôde esconder um segredo por tanto
tempo? Porque me diz somente agora?”. São frases que o traído quase sempre
pronuncia (ou pensa) e que enfatizam como à ferida da traição se acrescente aquela
infligida pelo passar de um tempo do qual se sente expropriado, tempo que lhe foi
subtraído, de cujo transcorrer ficou como inconsciente. Aquele tempo aparece
disseminado de gestos e significados desconhecidos e o tempo compartilhado se
transforma, inesperadamente, no tempo do engano e da solidão (p. 33).
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 Quem trai tem uma percepção própria do tempo e tende a se isolar, a colocar entre
parênteses a traição como uma ação suspensa, como uma ruptura da continuidade
que pode ser sempre retomada. “O que significa uma traição frente a uma vida em
comum fundamentada sobre lealdade e sobre fidelidade?”, questiona o traidor,
muitas vezes em boa fé. Para ele o tempo da traição não faz parte do tempo
compartilhado, mas aparece como um tempo que corre paralelo e que não é
mensurável (p. 33).

 Quem foi traído não sabe mais como reconstruir o tempo passado em comum,
porque existiram momentos dos quais não participou, não viveu. A sua seqüência
temporal não combina mais com aquela do traidor. Na traição o tempo aparece,
contemporaneamente, em excesso e em falta. Para quem foi traído, o outro viveu
um tempo duplo, multiplicável ao infinito, um tempo da presença e outro da
ausência. Acredito ser esse o significado da expressão “ter uma vida dupla”, isto é,
um tempo duplo: estar e não-estar, o estar aqui e também em outro lugar (p. 34).

 Enfim, com o passar do tempo pode variar o sinal e o valor da traição, seja para
quem traiu como para quem foi traído. Um mesmo indivíduo pode definir e julgar a
traição de modo diferente, a depender do contexto em que se encontra, da
alternância das diversas fases de sua vida. Aquilo que foi considerado uma traição
imperdoável pode parecer somente um tolo engano ou um passo necessário. Aquilo
que parecia injustificável é acolhido com maior tolerância. Traições que em uma
fase de nossa vida nos teriam parecido indignas e abomináveis, em uma outra
podem parecer quase inocentes (p. 34).

 A passagem da adolescência à vida adulta, por exemplo, comporta freqüentemente


um comportamento e uma avaliação diferentes da traição. Os adolescentes não
podem pensar em si mesmos, no presente e na futura vida adulta, como traídos nem
como traidores, porque a identidade se constrói através das relações com os outros,
através da confiança. Os adolescentes não podem, então, deixar de condenar a
traição que aparece não somente como uma ameaça a uma ordem ética
fundamental, em que se inscrevem ações e julgamentos, mas também como uma
ameaça grave de abandono (p. 35).

 Na adolescência são exigidas lealdade e fidelidade absolutas, que não suportam


deslizes. Justamente porque a identidade é ainda frágil - e o sentir-se parte de um
Nós é fundamental para a afirmação de si - mais facilmente se fica emotivamente
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exposto a sentir-se traído. Cada promessa não cumprida, cada segredo revelado é
vivido como ferida incurável e quando as figuras adultas, em que confiou ou que
são incondicionalmente admiradas, falham em tal ideal o adolescente se sente
profundamente traído e abandonado. Entretanto, estas traições que em uma fase
mais amadurecida da vida não serão mais julgadas como tal - salvo o caso de terem
ficado sedimentadas na consciência como eventos traumáticos - são necessárias ao
crescimento e à formação da autonomia individual. A confiança de base, aquela
que se estabelece desde os primeiros meses de vida, pode ficar comprometida por
um excesso de frustração, mas também por um excesso de gratificação, que não
deixa espaço para aprender a confiar. A criança que nunca foi desiludida ou
frustrada não aprende a tolerar a espera necessária em toda relação de confiança (p.
35).

 James Hillman sustenta que a confiança primária deve ser rompida a fim de que os
relacionamentos se desenvolvam e que uma crise, uma ruptura caracterizada pela
traição, é necessária para que se aprenda a distinguir a si mesmo do outro, a confiar
e a desconfiar ao mesmo tempo. O aprender a confiar e o aprender que se pode ser
traído fazem parte do próprio processo de formação (p. 35).

 Traições pequenas e grandes, cometidas ou sofridas, aparecem como tais somente


depois de anos de distância e em uma fase de redefinição da própria identidade. [...]
Traidores e traídos, portanto, se se torna não somente com relação ao outro, mas
também com relação às diferentes narrações que cada um faz de si nas diversas
fases da vida (p. 36).

3. As emoções da traição

 Grande parte daquilo que foi escrito e teorizado acerca das traições circunscrevem
a capacidade e a vontade de trair algumas figuras, retratadas sempre como cruéis e
malvadas, ambiciosas, destinadas pela narração a perecer, a sucumbir ou a serem
punidas pelas suas traições. Na literatura e na história, a partir de Judas, não
existem figuras positivas de traidores (exceto o caso de Giuseppe Flavio, por
quem se fala de bom uso da traição) ou traições que não sejam atribuídas à
maldade ou a qualquer perversão. Ricardo III, por exemplo, é retratado não
somente como malvado e cruel, mas como um ser monstruoso e disforme: um
indivíduo não confiável e marcado pela natureza com o sinal do traidor. É o
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próprio Ricardo quem se declara traidor por necessidade, dada a sua natureza
horrível e o seu horrível aspecto (p. 36).

 A própria psicanálise tende a tratar a traição como uma patologia, confirmando a


idéia difundida no senso comum que existem personalidades tendentes a trair mais
que outras. A traição derivaria de eventos da história pessoal, de uma falta de
socialização, seria o sintoma de uma personalidade perturbada. E, enquanto
sintoma-distúrbio, pode ser cuidado, afastado, evitado. Paradoxalmente, a
psicanálise - que nasce como ciência da ambivalência, do indizível, que há um
século destruiu o mito de uma consciência transparente a si mesma - diante da
traição se refugia na patologia. Se for verdade que a traição pode assumir formas
patológicas, manifestar-se em alguns indivíduos como compulsão à repetição,
como uma impossibilidade a agir de outra forma, considerá-la unicamente como
um distúrbio torna incompreensível as mil pequenas traições cotidianas, nas quais
todos somos ora traídos e ora traidores. Além disso, tratada como sintoma de uma
personalidade perturbada ou sofredora, a traição se reduz ao gesto, à escolha por
parte de um indivíduo e perde sua referência à dimensão relacional. A traição é,
assim, negada como produto consciente ou inconsciente de relacionamentos,
relações, interações (p. 37).

 Acredito que traçar - através da psicanálise, da psicologia ou da sociologia - as


constantes que caracterizam a figura do traidor, responda, de algum modo, à
necessidade de imaginar a traição como algo que se pode circunscrever, prever, a
ponto de poder ser individuado, tratado ou evitado. E as ciências sociais acabam,
não diferentemente das narrações literárias, com o exorcismo da traição,
delineando a figura e a personalidade do traidor (p. 38).

 Do mesmo modo que se constrói a figura do traidor, se constrói aquela do traído.


O traído é descrito e classificado como uma personalidade débil, ingênua,
excessivamente confiante ou generosa. Também esta descrição objetiva exorcizar
o medo da traição, porque leva a pensar que para não ser traído seja suficiente
sabedoria, esperteza, inteligência e um justo equilíbrio entre confiança e
desconfiança (p. 38).

 A concepção da traição como resultado da vontade individual é efetivamente


muito mais tranqüilizadora do que aquela que, ao contrário, considera a traição
como um produto da interação, do desenvolvimento de relações sobre as quais
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nem sempre os indivíduos conseguem ter um controle consciente e coerente.


Pressupor que existam figuras pré-constituídas de traídos e traidores, e que cada
um possa, com o exercício da vontade ou submetendo-se a tratamentos, escapar à
traição, certamente tranqüiliza mais do que pensar que todos podemos nos tornar
traidores ou traídos, a depender das interações e da parte de nós que estas trazem à
luz (p. 39).

 Entretanto, se a traição é parte integrante da vida social tanto quanto a lealdade,


porque é tão temida? Por que traz consigo sempre tanto sofrimento?
Provavelmente é a própria natureza relacional da traição que a torna tão temível.
Trair significa sempre, e de qualquer maneira, a ruptura de um pacto, a negação
dos princípios de coesão, uma ameaça à possibilidade de cada relação. Quer se
traia um outro indivíduo ou a comunidade à qual se pertença, isso implica a
ruptura de alguma forma de vínculo social. Existe, antes de tudo, a negação - sob
o plano simbólico - do princípio de coesão que pressupõe ligações, vínculos,
lealdade (p. 39).

 Justamente porque ameaça a sobrevivência da própria relação e do grupo, a


traição é a ameaça mais terrível para a ordem social, é a ruptura mais significativa
de uma ordem simbólica. Ser traído por alguém suscita o medo de ser traído
também pelos outros, se não por todos. Quando um Nós é rompido teme-se que
todos os outros Nós ao qual se pertence possam ruir. A incerteza toma o lugar de
cada precedente certeza e tudo aparece frágil, precário, ilusório. Nesse sentido a
traição é uma experiência traumática, que desestabiliza a identidade, porque,
simultaneamente, foram colocadas em crise a confiança interpessoal e a confiança
em si mesmo (p. 39).

 Entre as experiências intersubjetivas, a traição é, certamente, a mais carregada de


emoções. Somente o amor, [...] comporta a mesma complexidade e força emotiva.
As traições, das mais leves às mais pesadas arrastam, inevitavelmente, uma
constelação de emoções. E nesta constelação precipitam, igualmente, traidores e
traídos. Talvez a fascinação perversa da traição, das narrações de traição - que
tanto atraíram e continuam a atrair - se deva justamente à sua força emotiva (p.
39)

 A traição sempre colhe todos despreparados, mesmo quando conscientes de que a


intersubjetividade é uma alternância de frustrações e gratificações, de
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confirmações de lealdade e de desconhecimento. Antes de tudo a traição nos


descobre vulneráveis, desnuda a nossa fragilidade e a nossa dependência, mesmo
na conclamada autonomia. Descobrimos, subitamente, de estar à mercê dos
outros, de termos sido enganados, defraudados de partes da nossa identidade e da
nossa vida. [...] Confusão, desorientação, solidão acompanham a imediata
consciência do abandono. Ser traído quer dizer, antes de tudo, ser abandonado (p.
40).

 Somos obrigados a abandonar a imagem de nós mesmos, construída juntamente


com o outro, a imagem que criamos do outro e a imagem de nós como parte de um
estar juntos. Neste sentido, a traição é uma experiência devastadora porque obriga
a redefinir-se, a interrogar-se sobre o outro e sobre si mesmo junto a ele. Quem
somos nós agora que estamos sós e abandonados? Como e onde começar a
narração do nós? Por que fomos traídos-abandonados? O que fizemos para ser
feridos de morte? (p. 40).

 Por quanto se possa ter emoções negativas dirigidas à anulação do outro – como a
ira, a raiva, o desprezo, o ódio e o ressentimento – inevitavelmente a traição
desencadeia sempre emoções negativas também com relação a si mesmos. Ser
traído denota uma perda imediata de auto-estima: se se sente diminuídos,
desprezados e até mesmo culpados por se ter, de algum modo, cometido alguma
coisa para ter merecido a traição. Pode-se, assim, cair na autocompaixão e na
depressão, enquanto cresce velozmente a imagem de si como vítima - incapaz de
discernir e compreender o que acontece à sua volta – e a do outro como infiel e
malvado (p. 41).

 A traição, interrompendo a rotina da vida cotidiana e o tranqüilo transcorrer das


emoções, em uma espécie de inconsciência, desarticula a imagem de si porque
despedaça a narração. O ser traído é uma experiência que não pode ser colocada
em continuidade temporal, mas é experiência de interrupção e a vida passa a ser
narrada à luz desse rompimento da continuidade: existe um antes e um depois da
traição. Por muito tempo quem foi envolvido em uma traição, traído ou traidor,
continua a narrar-se baseado somente naquela experiência como a mais
significativa e fundamental para si próprio: “um dos paradoxos da traição é a
fidelidade que traído e traidor mantêm, depois do acontecimento, à sua
amargura” (J. Hillman, Puer Aeternus, 1999:46) (p. 41).
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 Cria-se, assim, uma alternância de emoções negativas ora dirigidas ao outro e ora
a si mesmos, num oscilar entre desejo de vingança e autoculpabilização. A ira, a
raiva, desencadeadas pela traição, são emoções através das quais se consegue, de
algum modo, estabelecer o respeito de si e conservar a própria dignidade, porque
o sujeito se redefine como pessoa capaz de manter a interação sob controle, de
passar do papel de vítima àquele de protagonista (p. 42).

 Quem foi traído deve trabalhar muito para retomar o fio da própria narração, deve
superar o trauma da interrupção. Isto é possível somente reconhecendo e aceitando
o si traído, sem renegá-lo. Reagir à traição traindo, renegando tudo aquilo que
aconteceu antes, desconhecendo seja a si quanto ao outro, comporta uma
devastação ainda mais profunda da própria identidade, porque comporta a traição
de si (p. 42).

2. CONVIVER COM A TRAIÇÃO

1. A imprevisibilidade da traição

 Enquanto a lealdade entre indivíduos e sociedade faz parte do senso comum e é


esperada, a traição, mesmo sendo parte integrante da vida social, chega
inesperadamente e é, de qualquer modo, uma ruptura da rotina. A traição é um
evento ao mesmo tempo possível e inesperado, enquanto a lealdade é normalmente
esperada, sempre esperada. Não poderíamos, seriamente, nem mesmo levar em
consideração a possibilidade de uma qualquer co-associação, do casal ao grupo até
à sociedade, se esperássemos a traição e não a lealdade (p. 48).

 O nosso ser social se baseia sobre pactos implícitos e explícitos de lealdade e de


confiança recíproca. [...] Mas justamente porque lealdade e confiança são partes
integrantes da vida social, igualmente o é a traição, que dela se constitui a outra
face. Como seres sociais damos por adquiridas confiança e lealdade, mas sabemos,
mais ou menos lucidamente, que a traição está sempre à espera: estamos
conscientes de poder ser traídos e sabemos também que podemos trair. Esta
consciência, a depender dos sujeitos e das relações, pode transformar-se em medo,
paralisia da ação, desconfiança, ansiedade ou mesmo em hábito, senso comum:
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algo com o qual se convive porque assumido como parte do próprio risco de viver
(p. 48).

 A traição, enquanto ruptura da ordem simbólica e ameaça de toda forma de


convivência, é equiparada na nossa mente a um evento de morte e, como a morte, é
continuamente exorcizada. Como se aprende a conviver com a idéia da morte,
aprende-se a conviver com a idéia da traição e, como em nosso agir cotidiano não
se fica paralisado pela idéia da morte, assim se continua a viver confiando na
lealdade e afastando a idéia da traição (p. 49).

2. Saber e não saber

 A ambivalência presente em cada indivíduo, e que marca toda interação, é


atribuível ao fato do ser-por-si e do ser social - da vontade e da necessidade de
afirmar contemporaneamente individualidade e intersubjetividade - serem
permeados de razões e paixões, interesses e emoções. Razões e paixões que não
preexistem no indivíduo independentes das relações em que se encontra, mas se
criam, se fazem e se desfazem no encontro com o outro. Não se pode jamais
predizer o comportamento do outro com respeito à lealdade, à confiança ou à
traição. O outro é um estrangeiro não somente porque, como afirma Simmel, deixa
entrever consciente ou inconscientemente somente aquilo que deseja, mas também
porque não conhece nunca profundamente a si mesmo e porque partes de si são
ativadas ou chamadas à existência através das singulares relações em que se vem a
encontrar (p. 49).

 A mistura de quanto se sabe e de quanto não se sabe do outro, o fato que “aquilo
que um e outro sabem está sempre entremeado com aquilo que somente um sabe e
o outro não” (Simmel, Sociologia,1989:294) comporta a consciência da
impossibilidade de absoluta transparência, não somente do outro mas também de si
mesmo em relação ao outro. Esta condição de incerteza reforça a ambivalência da
interação, que oscila sempre entre a confiança e a desconfiança, entre possíveis
comportamentos leais e possíveis traições (p. 50).

 A traição é relacional não somente porque implica dois sujeitos, mas porque nasce
de um agir, de uma comunicação, de um sentir que procede incessantemente de um
para o outro. Na traição existe sempre um fluir, um acontecer que vai de um para o
outro. Existe um espaço intermediário, nunca bem definido, em que o agir de um se
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encontra com o agir do outro. Trata-se de um espaço compartilhado, feito de


confiança, expectativas, mas também de ambigüidade e cumplicidade, em que um
projeta imagens e desejos sobre o outro e vice-versa; em que ambos os sujeitos
colaboram ativamente à formação e à continuação da interação, mas lhe dão
interpretações e lhe atribuem significados não necessariamente concordes (p. 52).

3. Ser para si, ser para o outro

 Também a traição de si, que aparentemente nasce e se desenvolve no interior de um


único sujeito e considera somente a individualidade, situa-se naquele espaço
sociológico construído pelas relações que mantemos com os outros, pela
intersubjetividade que permite perceber-nos como sujeitos. A idéia que se tem de si
é sempre referenciada ao outro, porque coloca em jogo partilhas, escolhas, valores,
comportamentos que, de algum modo, se referem ao próprio ser social (p. 54).

 Trair a si mesmo pode significar a traição da própria identidade e da imagem de


nós que construímos livremente, mas necessariamente junto com os outros e não
em solidão. Pode-se escolher trair ou não a si mesmos também para não trair a
imagem que os outros tem de nós, imagem esta que mais ou menos
conscientemente contribuímos para construir. A traição ou a não traição de si está
ligada ainda aos tipos de interações, de relações mantidas com os outros, ao quanto
queremos confirmar ou destruir não somente as expectativas que eles têm sobre
nós, mas também a imagem que têm de nós. Logo, também a traição de si brota da
intersubjetividade (p. 54-55).

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