GABRIELLA TURNATURI 2
INTRODUÇÃO
Responder à pergunta sobre o motivo pelo qual se trai é quase impossível. Muita
complexidade e ambigüidade estão presentes em cada forma de interação e
atravessam cada relação. Muita complexidade e ambigüidade habitam cada
indivíduo. Paixões e interesses, representações contrastantes de si e dos outros,
necessidades contraditórias - e contudo, contemporâneas - de pertencimento e de
separação, de coletividade e singularidade, de proteção e emancipação, de entrega e
distanciamento entrelaçam-se em mil modos e podem dar origem a infinitos tipos
de traição. Trai-se a si mesmos, aos parentes, aos amigos, aos amantes, à pátria.
Trai-se por ambição, vingança, leviandade, para afirmar a própria autonomia, por
cem paixões e cem razões (p.11).
1 Título original: Tradimenti. Turnaturi, G. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 2000. 138 p.
Tradução parcial do livro realizada por Maria Goretti M. Cruz, 2003. Supervisão Técnica de Nina
Vasconcelos Guimarães.
2 Gabriella Turnaturi é docente de Sociologia no Departamento de Ciência da Comunicação da Universidade
de Bolonha. Escreveu vários ensaios sobre a vida cotidiana e a sociologia das emoções. Publicou Associati
per Amore (Feltrinelli Editore, 1991).
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Cada interação nasce e cresce em torno do partilhar - ainda que por breve tempo -
alguma coisa com o outro: um projeto a realizar, uma relação a construir, um jogo,
uma aventura, um ideal, um prazer fugaz, um segredo, um conflito, um
pertencimento. Em todas essas formas do ter em comum existe uma idêntica
moldura na qual se age; existe algo que une, ainda que momentaneamente, e
forma um Nós (p. 13).
A traição, como gesto ativo ou como ação sofrida, é sempre relacional e sempre
possível. Quando entramos em relação com o outro, passo necessário à
constituição da nossa identidade, colocamos em jogo o nosso desejo de ser com o
outro, mas também o desejo de não anular-nos no outro. Queremos e devemos
Escolhi olhar, portanto, a todas aquelas traições que, na vida cotidiana, mais do
que frutos de paixões arrebatadoras ou astutas maquinações, são produto do ser-
com o outro, das diversas e possíveis modalidades em que acontece o encontro;
àquelas traições que fazem parte do jogo da vida, que não são elimináveis em cada
forma de intersubjetividade (p. 15).
Olhar a traição a partir do ponto de vista das interações e das relações implica
evidenciar o seu caráter processual e interativo. Esta perspectiva não requer a
reconstrução da figura psicológica do traído e do traidor, de seu respectivo caráter e
dos traços constitutivos de seus psiquismos, como singularmente tentaram fazer os
psicólogos e psicanalistas. Traídos e traidores tornam-se tais somente através do
tipo particular de interação e de relação que constroem e apresentam.
Anteriormente àquelas interações e àquelas relações não existia nem um nem outro
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Mas, mesmo sendo fruto de concretas interações, das transformações das relações
entre indivíduos específicos, as traições assumem formas e significados diversos,
segundo os contextos históricos e sociais (p. 16).
1. TRAIÇÕES
3 O significado desta frase latina é: “Jesus lhe disse: Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?” N.T.
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traição, qualquer que seja o tipo, não pode escapar à sensação de vazio que
acompanha o não saber mais quem se é e onde se encontra. [...] A traição destrói
tudo aquilo que foi anteriormente partilhado. E a parte de si que se entregou e
confiou ao outro é arrancada (p. 18).
Para que se possa falar de traição devem preexistir expectativas sejam racionais
sejam emotivas de lealdade, e subsistir relações e interações em que os sujeitos
confiam um no outro, parcialmente ou totalmente. Tantas são as traições quantos
são os atos de confiança. É por esse motivo que a traição aparece sempre como um
evento inesperado e dramático, que interrompe o curso cotidiano da interação. [...]
Ainda se, às vezes - depois da irrupção da traição e da grande confusão que traz
consigo - possa acontecer uma recomposição, as relações não voltarão jamais a
serem as mesmas. Os sujeitos mudaram: tanto o traidor quanto o traído devem
necessariamente redefinir as imagens que cada um tem do outro e as recíprocas
expectativas; são obrigados a redefinir a si mesmos e a relação com base naquele
acontecimento que constituirá para sempre um divisor de águas (p. 18-19).
Como a confiança não pode existir unilateralmente – não se pode forçar alguém a
confiar em nós, nem podemos decidir independentemente da vontade e da
aprovação do outro em quem queremos confiar - assim também não pode existir
traição onde não existam relações e interações de confiança conscientes e
reciprocamente aceitas. “Confio em você mesmo se você não quiser ou não
souber”, é uma afirmação paradoxal. Para que exista traição é necessário não
somente que A confie em B, mas que B aceite conscientemente esta confiança e
reconheça a ligação, o vínculo que o une a A. Não se pode ser traído por quem se
ama, mas sempre nos rejeitou ou por quem definimos unilateralmente amigo, mas
não quer ter relações de amizade conosco. Pode-se, portanto, denominar traição
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somente àquela ação ou sucessão de ações que rompe uma relação de confiança
voluntária e consciente (p. 21).
2. Fenomenologia da traição
Trair a relação
A traição comporta sempre a fuga de uma relação, mas não é tanto uma agressão
direcionada ao outro quanto uma ação dirigida, mais ou menos intencionalmente, à
destruição daquela relação ou ao afastamento do relacionamento. Simmel defende
que a fidelidade, a partir de um ponto de vista sociológico, é a “própria vida da
relação refletida no sentimento, independentemente do eventual desaparecimento
dos motivos originais que a alicerçou”. [...] Logo, a fidelidade não tende ao bem do
outro nem à lealdade para com ele, mas à manutenção da relação (p. 23).
Judith Shklar afirma que a colaboração psicológica é uma variável sutil e não rara
da pura e simples traição. Com o nosso comportamento passivo - ou porque
queremos que o outro interprete para nós e conosco o papel de traidor - podemos
induzir os outros a trair-nos (p. 25).
A percepção da traição
Para que exista traição faz-se necessário que esta seja percebida e definida como tal
por quem foi traído ou por quem traiu. Somente o traído e o traidor podem nomear
a traição, reconhecê-la e chamá-la à vida. Ninguém pode impor a um outro de
“sentir-se traído” contra a sua vontade, mas se pode manipular alguém e induzi-lo a
sentir-se traído mesmo na ausência de uma verdadeira traição, como Iago fez com
Otelo. “Eu lhe derramarei nos ouvidos essa peste”, afirma Iago. [...] Poucas
palavras alusivas e a percepção da traição foi construída. A partir daquele momento
Otelo se sente traído e ninguém poderá convencê-lo do contrário. Destruir aquela
percepção será impossível, enquanto bastou pouco, quase nada, para construí-la (p.
28).
As provas que confirmam uma suposta traição assumem, verdadeiras ou falsas que
sejam, um aspecto de veracidade justamente porque cada gesto e cada palavra são
interpretados com base na percepção de ser traído. E enquanto não é possível
provar a fidelidade ou a lealdade, é sempre possível encontrar ou construir provas
de infidelidade e de traição. A confiança é uma convicção que se baseia não tanto
sobre provas quanto sobre a ausência de provas contrárias (p. 28).
Pode-se falar de traição se quem foi traído não tiver conhecimento disso?
Certamente não, se a traição se basear somente no conhecimento [...] mas se
olharmos a traição como a uma modalidade de relacionamento, não se poderá
negar que, ainda se somente um dos sujeitos tiver o conhecimento do fato, a traição
muda, de qualquer modo, as relações e os indivíduos. [...] Quem se sabe traidor
assume comportamentos de maior reserva, de defesa - na tentativa de retirar de si a
atenção do outro - ou de agressividade, para mascarar o sentimento de culpa. De
qualquer maneira, o seu comportamento para com o outro muda, induzindo uma
mudança também em quem foi traído e o relacionamento se modifica (p. 29-30).
De fato, é suficiente que uma das partes reconheça a traição - até mesmo somente
dentro de si - para mudar a relação. Vice-versa, alguém pode sentir-se traído
mesmo que o outro, os outros, não se percebam como traidores. Quem trai pode
encontrar-se consciente ou inconscientemente preso numa armadilha, nas
“contradições da mente”, auto-enganar-se e representar-se como leal. A traição,
neste caso, foi percebida somente por quem a sofreu, mas, de qualquer modo,
marcará a interação. Uma vez que o outro foi percebido como traidor, mesmo na
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A mudança
A traição é assimétrica
Quem se colocou fora da relação? Quem mudou ou também quem não mais seguiu
o outro no seu tornar-se e não mais lhe prestou atenção? Neste caso não nos
encontramos diante de uma traição recíproca no sentido de um recíproco abandono
da relação? Mas esta reciprocidade é anulada pela assimetria da percepção da
traição, pela assimetria entre a velocidade da mudança da parte de um e a lentidão
da percepção sobre a mudança por parte do outro (p. 33).
A traição é assíncrônica
Na traição, os tempos nunca são sincrônicos. Para quem sabe estar traindo, o tempo
parece longo demais e, muitas vezes, o acelera de propósito, disseminando
intencionalmente indícios a serem descobertos e colocando um limite a um tempo
que parece nunca passar. Para quem descobre de ter sido traído, pelo contrário, tudo
se consuma em um instante. E, vice-versa, entre a traição e a sua descoberta (ou
confissão) o tempo pode ser percebido como acelerado por quem trai - porque tudo
se condensa no momento da revelação - e longo demais por quem foi traído, que
naquele momento entrevê um passado, uma história a ele desconhecida (p. 33).
“Porque você não me disse logo? Como você pôde esconder um segredo por tanto
tempo? Porque me diz somente agora?”. São frases que o traído quase sempre
pronuncia (ou pensa) e que enfatizam como à ferida da traição se acrescente aquela
infligida pelo passar de um tempo do qual se sente expropriado, tempo que lhe foi
subtraído, de cujo transcorrer ficou como inconsciente. Aquele tempo aparece
disseminado de gestos e significados desconhecidos e o tempo compartilhado se
transforma, inesperadamente, no tempo do engano e da solidão (p. 33).
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Quem trai tem uma percepção própria do tempo e tende a se isolar, a colocar entre
parênteses a traição como uma ação suspensa, como uma ruptura da continuidade
que pode ser sempre retomada. “O que significa uma traição frente a uma vida em
comum fundamentada sobre lealdade e sobre fidelidade?”, questiona o traidor,
muitas vezes em boa fé. Para ele o tempo da traição não faz parte do tempo
compartilhado, mas aparece como um tempo que corre paralelo e que não é
mensurável (p. 33).
Quem foi traído não sabe mais como reconstruir o tempo passado em comum,
porque existiram momentos dos quais não participou, não viveu. A sua seqüência
temporal não combina mais com aquela do traidor. Na traição o tempo aparece,
contemporaneamente, em excesso e em falta. Para quem foi traído, o outro viveu
um tempo duplo, multiplicável ao infinito, um tempo da presença e outro da
ausência. Acredito ser esse o significado da expressão “ter uma vida dupla”, isto é,
um tempo duplo: estar e não-estar, o estar aqui e também em outro lugar (p. 34).
Enfim, com o passar do tempo pode variar o sinal e o valor da traição, seja para
quem traiu como para quem foi traído. Um mesmo indivíduo pode definir e julgar a
traição de modo diferente, a depender do contexto em que se encontra, da
alternância das diversas fases de sua vida. Aquilo que foi considerado uma traição
imperdoável pode parecer somente um tolo engano ou um passo necessário. Aquilo
que parecia injustificável é acolhido com maior tolerância. Traições que em uma
fase de nossa vida nos teriam parecido indignas e abomináveis, em uma outra
podem parecer quase inocentes (p. 34).
exposto a sentir-se traído. Cada promessa não cumprida, cada segredo revelado é
vivido como ferida incurável e quando as figuras adultas, em que confiou ou que
são incondicionalmente admiradas, falham em tal ideal o adolescente se sente
profundamente traído e abandonado. Entretanto, estas traições que em uma fase
mais amadurecida da vida não serão mais julgadas como tal - salvo o caso de terem
ficado sedimentadas na consciência como eventos traumáticos - são necessárias ao
crescimento e à formação da autonomia individual. A confiança de base, aquela
que se estabelece desde os primeiros meses de vida, pode ficar comprometida por
um excesso de frustração, mas também por um excesso de gratificação, que não
deixa espaço para aprender a confiar. A criança que nunca foi desiludida ou
frustrada não aprende a tolerar a espera necessária em toda relação de confiança (p.
35).
James Hillman sustenta que a confiança primária deve ser rompida a fim de que os
relacionamentos se desenvolvam e que uma crise, uma ruptura caracterizada pela
traição, é necessária para que se aprenda a distinguir a si mesmo do outro, a confiar
e a desconfiar ao mesmo tempo. O aprender a confiar e o aprender que se pode ser
traído fazem parte do próprio processo de formação (p. 35).
3. As emoções da traição
Grande parte daquilo que foi escrito e teorizado acerca das traições circunscrevem
a capacidade e a vontade de trair algumas figuras, retratadas sempre como cruéis e
malvadas, ambiciosas, destinadas pela narração a perecer, a sucumbir ou a serem
punidas pelas suas traições. Na literatura e na história, a partir de Judas, não
existem figuras positivas de traidores (exceto o caso de Giuseppe Flavio, por
quem se fala de bom uso da traição) ou traições que não sejam atribuídas à
maldade ou a qualquer perversão. Ricardo III, por exemplo, é retratado não
somente como malvado e cruel, mas como um ser monstruoso e disforme: um
indivíduo não confiável e marcado pela natureza com o sinal do traidor. É o
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próprio Ricardo quem se declara traidor por necessidade, dada a sua natureza
horrível e o seu horrível aspecto (p. 36).
Por quanto se possa ter emoções negativas dirigidas à anulação do outro – como a
ira, a raiva, o desprezo, o ódio e o ressentimento – inevitavelmente a traição
desencadeia sempre emoções negativas também com relação a si mesmos. Ser
traído denota uma perda imediata de auto-estima: se se sente diminuídos,
desprezados e até mesmo culpados por se ter, de algum modo, cometido alguma
coisa para ter merecido a traição. Pode-se, assim, cair na autocompaixão e na
depressão, enquanto cresce velozmente a imagem de si como vítima - incapaz de
discernir e compreender o que acontece à sua volta – e a do outro como infiel e
malvado (p. 41).
Cria-se, assim, uma alternância de emoções negativas ora dirigidas ao outro e ora
a si mesmos, num oscilar entre desejo de vingança e autoculpabilização. A ira, a
raiva, desencadeadas pela traição, são emoções através das quais se consegue, de
algum modo, estabelecer o respeito de si e conservar a própria dignidade, porque
o sujeito se redefine como pessoa capaz de manter a interação sob controle, de
passar do papel de vítima àquele de protagonista (p. 42).
Quem foi traído deve trabalhar muito para retomar o fio da própria narração, deve
superar o trauma da interrupção. Isto é possível somente reconhecendo e aceitando
o si traído, sem renegá-lo. Reagir à traição traindo, renegando tudo aquilo que
aconteceu antes, desconhecendo seja a si quanto ao outro, comporta uma
devastação ainda mais profunda da própria identidade, porque comporta a traição
de si (p. 42).
1. A imprevisibilidade da traição
algo com o qual se convive porque assumido como parte do próprio risco de viver
(p. 48).
A mistura de quanto se sabe e de quanto não se sabe do outro, o fato que “aquilo
que um e outro sabem está sempre entremeado com aquilo que somente um sabe e
o outro não” (Simmel, Sociologia,1989:294) comporta a consciência da
impossibilidade de absoluta transparência, não somente do outro mas também de si
mesmo em relação ao outro. Esta condição de incerteza reforça a ambivalência da
interação, que oscila sempre entre a confiança e a desconfiança, entre possíveis
comportamentos leais e possíveis traições (p. 50).
A traição é relacional não somente porque implica dois sujeitos, mas porque nasce
de um agir, de uma comunicação, de um sentir que procede incessantemente de um
para o outro. Na traição existe sempre um fluir, um acontecer que vai de um para o
outro. Existe um espaço intermediário, nunca bem definido, em que o agir de um se
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