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WALTER B E N J A M I N
Tradução de José Lino Grünnewald (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução),
Edson Araújo Cabral e José Benedito de Oliveira Damião (Sobre alguns motivos baudelairianos),
Erwin Theodor Rosental (O narrador, O Surrealismo).
A OBRA DE ARTE NA ÉPOCA DE SUAS
TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO*
A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que al-
guns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tem-
pos, a discípulos copiarem obras de arte, a título de exercício, os mestres reprodu-
zirem-nas a fim de garantir a sua difusão e. os falsários imitá-las com o fim de
extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenômeno
novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos
sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido.
Os gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a fundição e a
12 BENJAMIN
1
Valéry, Pieces sur VAn, "Conquête de 1'Ubiquité", p. 105.
A OBRA DE ARTE 13
II
À mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte,
a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra. É a esta presença,
única no entanto, e só a ela que se acha vinculada toda a sua história. Falando de
história, lembramo-nos também das alterações materiais que a obra pode sofrer
de acordo com a sucessão de seus possuidores.2 O vestígio das alterações mate-
riais só fica desvendado em virtude das análises físico-químicas, impossíveis de
serem feitas numa reprodução; a fim de determinar as sucessivas mãos pelas quais
passou a obra, deve-se seguir toda uma tradição, a partir do próprio local onde foi
criada.
O hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autentici-
dade. Para se estabelecer a autenticidade de um bronze, torna-se, às vezes, neces-
sário recorrer a análises químicas da sua patina; para demonstrar a autenticidade
de um manuscrito medieval é preciso, às vezes, determinar a sua real proveniência
de um depósito de arquivos do século XV. A própria noção de autenticidade não
tem sentido para uma reprodução, seja técnica ou não. 3 Mas, diante da reprodu-
ção feita pela mão do homem e, em princípio, considerada como uma falsificação,
o original mantém a plena autoridade; não ocorre o mesmo no que concerne à
reprodução técnica. E isto por dois motivos. De um lado, a reprodução técnica
está mais independente do original. No caso da fotografia, é capaz de ressaltar
aspectos do original que escapam ao olho e são apenas passíveis de serem apreen-
didos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos ângulos
de visão; graças a métodos como a ampliação ou a desaceleração, pode-se atingir
a realidades ignoradas pela visão natural. Ao mesmo tempo, a técnica pode levar
a reprodução de situações, onde o próprio original jamais seria encontrado. Sob a
forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproximação da obra
ao espectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localização real a fim de se
situar no estúdio de um amador; o musicômano pode escutar a domicílio o coro
executado numa sala de concerto ou ao ar livre.
Pode ser que as novas condições assim criadas pelas técnicas de reprodução,
em paralelo, deixem intacto o conteúdo da obra de arte; mas, de qualquer manei-
ra, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece o mesmo, sem dúvida, com outras coi-
sas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada na película
cinematográfica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorização atin-
2
Evidente que a história de uma obra de arte não se limita a esses dois elementos: a da Gioconda, por exem-
plo, deve também levar em conta a maneira com que a copiaram nos séculos XVII, XVIII e XIX e a quanti-
dade de tais cópias.
3
É precisamente porque a autenticidade escapa a toda reprodução que o desenvolvimento intensivo de al-
guns processos técnicos de reprodução permitiram fixar graus e diferenciações dentro da própria autentici-
dade. Com respeito a isso, o comércio da arte desempenhou papel importante. Mediante a descoberta da gra-
vura em madeira, pode-se dizer que a autenticidade das obras foi atacada na raiz, antes mesmo de atingir um
florescer que deveria mais ainda enriquecê-la. Na realidade, na época em que foi feita, uma Virgem da Idade
Média ainda não era "autêntica": ela assim se tornou no decon-er dos séculos seguintes, talvez, sobretudo, no
século XIX.
14 BENJAMIN
ge-a no ponto mais sensível, onde ela é vulnerável como não o são os objetos natu-
rais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo
aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material
até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se
naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração)
escapa aos homens, o segundo — o testemunho histórico da coisa — fica identi-
camente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a pró-
pria autoridade da coisa. 4
Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se à noção de aura, e
dizer: na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a
sua aura. Esse processo tem valor de sintoma, sua significação vai além do terre-
no da arte. Seria impossível dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução
separaram o objeto reproduzido do âmbito da tradição. Multiplicando as cópias,
elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas.
Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão e à audição, em quaisquer
circunstâncias, conferem-lhe atualidade permanente. Esses dois processos condu-
zem a um abalo considerável da realidade transmitida — a um abalo da tradição,
que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade e a sua
renovação atual. Estão em estreita correlação com os movimentos de massa hoje
produzidos. Seu agente mais eficaz é o cinema. Mesmo considerado sob forma
mais positiva — e até precisamente sob essa forma — não se pode apreender a
significação social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo e
catártico: a liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural. Tal
fenômeno é peculiarmente sensível nos grandes filmes históricos e quando Abel
Gance, em 1927, bradava com entusiamo:
III
os autores da Gênese de Viena, não é apenas uma arte diversa daquela dos antigos
que se encontra, mas uma outra maneira de perceber. Os sábios da Escola Vienen-
se, Riegel e Wieckhoff, ao se oporem a todo o peso da tradição clássica que havia
desprezado essa arte, foram os primeiros a terem a idéia de extrair as inferências
quanto ao modo de percepção próprio ao tempo ao qual se relacionava. Fosse
qual fosse a dimensão da descoberta, ela ficou reduzida porque os pesquisadores
contentaram-se em esclarecer as características formais típicas da percepção do
Baixo Império. Não se preocuparam em mostrar — o que, sem dúvida, excederia
todas as suas esperanças — as transformações sociais, das quais essas mudanças
do modo de percepção não eram mais do que a expressão. Hoje, estamos melhor
situados do que eles para compreender isso. E, se é verdade que as modificações
a que assistimos no meio onde opera a percepção podem se exprimir como um
declínio da aura, permanecemos em condições de indicar as causas sociais que
conduziram a tal declínio
É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de
aura, porém, para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um
objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma realidade
longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga
com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho,
cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas
montanhas, desse galho. Tal evocação permite entender, sem dificuldades, os fato-
res sociais que provocaram a decadência atual da aura. Liga-se ela a duas circuns-
tâncias, uma e outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas
na vida presente. Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendên-
cias igualmente fortes: exigem, de um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto hu-
mana como espacialmente, "mais próximas" 6, de outro lado, acolhendo as repro-
duções, tendem a depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez. Dia a
dia, impõe-se gradativamente a necessidade de assumir o domínio mais próximo
possível do objeto, através de sua imagem e, mais ainda, em sua cópia ou reprodu-
ção. A reprodução do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista
semanal, é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem
associa de modo bem estreito as duas feições da obra de arte: a sua unidade e a
duração; ao passo que a foto da atualidade, as duas feições opostas: aquelas de
uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar o obje-
to de seu véu, destruir a sua aura, eis o que assinala de imediato a presença de
uma percepção, tão atenta àquilo que "se repete identicamente pelo mundo", que,
graças à reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só vez.
Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fenômeno análogo àquele que, no plano
da teoria, é representado pela importância crescente da estatística. O alinhamento
8
Dizer que as coisas se tornam "humanamente mais próximas" pode significar que não se leva mais em
conta a sua função social. Nada garante que um retratista contemporâneo — quando representa um cirurgião
célebre fazendo uma refeição ou dentro do seu círculo familiar — apreenda mais exatamente a sua função so-
cial do que um pintor do século XVI, que, como o Rembrandt, da Lição de Anatomia, apresentava ao pú-
blico de sua época os médicos no próprio exercício de sua arte.
16 BENJAMIN
da realidade pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, cons-
tituem um processo de alcance indefinido, tanto para o pensamento, como para a
intuição.
IV
conceber uma arte pura, que recusa, não apenas desempenhar qualquer papel
essencial, mas até submeter-se às condições sempre impostas por uma matéria
objetiva.
A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodução, é
preciso levar na maior conta esse conjunto de relações. Elas colocam em evidên-
cia um fato verdadeiramente decisivo e o qual vemos aqui aparecer pela primeira
vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte com relação à exis-
tência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico. Reproduzem-se
cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzi-
das. 9 Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria
absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autentici-
dade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subver-
tida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma
outra forma de praxis: a política.
Caso se considerem os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser
acolhida, a ênfase é dada, ora sobre um fator, ora sobre outro. Entre esses fatores
existem dois que se opõem diametralmente: o valor da obra como objeto de culto
e o seu valor como realidade exibível.10 A produção artística inicia-se mediante
9
De modo diverso do que bcorre, em literatura ou em pintura, a técnica de reprodução não é para o filme
uma simples condição exterior a facultar sua difusão maciça; a sua técnica de produção funda diretamente
a sua técnica de reprodução. Ela não apenas permite, de modo mais imediato, a difusão maciça do filme, mas
exige-a. As despesas de produção são tão altas que impedem ao indivíduo adquirir um filme, como se com-
prasse um quadro. Os cálculos demonstraram que, em 1927, a amortização de uma grande fita implicava na
sua exibição para nove milhões de espectadores. De início, é certo, a invenção do cinema falado diminuiu
provisoriamente a difusão dos filmes por causa das fronteiras lingüísticas na própria época em que o fas-
cismo insistia nos interesses nacionais. Essa recessão, em breve atenuada pela dublagem, deve importar-nos
menos do que o seu elo com o fascismo. Os dois fenômenos são simultâneos porque estão ligados à crise
econômica. As mesmas perturbações que, a grosso modo, conduziram à procura dos meios de garantir, pela
força, o estatuto da propriedade, apressaram os capitalistas do cinema a concretizarem o advento do filme
falado. Essa descoberta trouxe-lhes um desafogo passageiro, contribuindo para propiciar às massas o gosto
pelo cinema e, sobretudo, vinculando os capitais dessa indústria aos novos capitais provenientes da indústria
elétrica. Assim, visto de fora, o cinema falado favoreceu aos interesses nacionais, mas, visto de dentro, provo-
cou uma maior internacionalização dos interesses.
10
Essa oposição escapa necessariamente a uma estética idealista; a idéia de beleza, desta última, somente
admite uma dualidade indeterminada — e, em conseqüência, recusa-se a qualquer decisão. Hegel, no entanto,
entreviu o problema, tanto quanto lhe permitia seu idealismo. Disse, em Vorlesungen über diePhilosophie der
Geschichie: "As imagens existem já há muito. A piedade sempre as exigia como objetos de devoção, mas não
tinha necessidade alguma de imagens belas. A imagem bela contém, assim, um elemento exterior, porém é na
medida em que é bela que o seu espírito fala aos homens; ora, com a devoção, trata-se de uma necessidade
essencial à existência de uma relação a uma coisa, pois, por si própria, ela não é mais do que o entorpeci-
mento da alma. . . A Bela Arte. . . nasceu dentro da Igreja. . . . embora a arte já haja emergido do princípio
da arte". Uma passagem de Vorlesungen über die Aesthetik indica igualmente que Hegel pressentia a exis-
tência do problema: "Não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte, onde
se podia dedicar-lhes preces; a impressão que elas nos transmitem è mais discreta e a sua capacidade de emo-
cionar ainda requer uma pedra de toque de ordem superior". A passagem do primeiro modo para o segundo
condiciona em geral todo processo histórico da receptividade às obras de arte. Quando se está desprevenido.
fica-se por princípio, e a cada obra particular, condenado a oscilar entre esses dois meios opostos. Após os
18 BENJAMIN
imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a própria presença dessas ima-
gens tem mais importância do que o fato de serem vistas. O alce que o homem fi-
gura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento
mágico. Ele está, sem dúvida, exposto aos olhos de outros homens, porém —
antes de tudo — é aos espíritos que ele se endereça. Mais tarde, é precisamente
esse valor de culto como tal que impele a manter a obra de arte em segredo; algu-
mas estátuas de deuses só são acessíveis ao sacerdote, na cella. Algumas virgens
permanecem cobertas durante quase o ano inteiro, algumas esculturas de cate-
drais góticas são invisíveis, quando olhadas do solo. Na medida em que as obras
de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasiões de serem expostas tornam-se
mais numerosas. Um busto pode ser enviado para aqui ou para lá; toraa-se mais
exibível, em conseqüência, do que uma estátua de um deus, com seu lugar delimi-
tado ao interior de um templo. O quadro é mais exibível do que o mosaico ou o
afresco que lhe precederam. E se se admite que, em princípio, a missa foi tão exi-
bível quanto a sinfonia, esta última, entretanto, apareceu num tempo em que se
poderia prever que ela seria mais fácil de apresentar do que a missa.
As diversas técnicas de reprodução reforçaram esse aspecto em tais propor-
ções que, mediante um fenômeno análogo ao produzido nas origens, o desloca-
mento quantitativo entre as duas formas de valor, típicas da obra de arte, transfor-
mou-se numa modificação qualitativa, que afeta a sua própria natureza.
Originariamente, a preponderância absoluta do valor de culto fez — antes de tudo
— um instrumento mágico da obra de arte, a qual só viria a ser — até determi-
nado ponto — reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a prepon-
derância absoluta do seu valor de exibição confere-lhe funções inteiramente
novas, entre as quais aquela de que temos consciência — a função artística —
poderia aparecer como acessória.11 É certo que, a partir do presente, a fotografia
e, mais ainda, o cinema testemunham de modo bastante claro nesse sentido.
trabalhos de Hubert Grimm, sabe-se que a Virgem de São Sisto foi pintada para fins de exposição. Grimm
indagava-se a respeito da funçào da tira de madeira, que no primeiro plano do quadro, servia de apoio a duas
figuras de anjos; perguntava-se o que poderia ter levado um pintor como Rafael a fazer com que o céu pai-
rasse sobre dois suportes. Sua pesquisa revelou-lhe que essa Virgem havia sido encomendada para o sepulta-
mento solene do papa. Essa cerimônia desenrolou-se numa capela lateral à igreja de São Pedro. O quadro es-
tava instalado no fundo da capela, que formava uma espécie de nicho, Rafael representou a Virgem, por
assim dizer, saindo daquele nicho, delimitado por suportes verdes, afim de avançar, sobre as nuvens, em dire-
ção do caixão pontificai. Destinado para os funerais do papa, o quadro de Rafael, antes de tudo, possuía um
valor de exposição. Pouco mais tarde, dependuraram-no sobre o altar-mor da igreja dos monges negros em
Plaisance. O motivo desse exílio foi que o ritual romano proibia a veneração num altar-mor de imagens
expostas no decorrer de funerais. Tal prescrição tirou um pouco do valor comercial desta obra dc Rafael. A
fim de, no entanto, vendê-la pelo seu valor, a Cúria resolveu tolerar tacitamente que os compradores pudes-
sem expô-la num altar-mor. Como não se desejava a repercussão do fato, enviou-se o quadro a uns frades,
numa província afastada.
' ' Em nível diverso, Brecht apresenta considerações análogas: "Desde que a obra de arte se torna mercado-
ria, essa noção (de obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência
e precaução — mas sem receio — renunciar à noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua função
dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necessária de ser atravessada sem dissimu
lações; essa virada nào é gratuita, ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu
passado a tal ponto, que, caso a nova noção deva reencontrar seu uso — e por que não? — nào evocará mais
qualquer das lembranças vinculadas à sua antiga significação".
A OBRA DE ARTE 19
VI
VII
porém não se indagou antes se essa própria invenção não transformaria o caráter
geral da arte; os teóricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro. Contudo, os
problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional não eram mais que
brincadeiras infantis em comparação com aqueles que o filme iria levantar. Daí,
essa violência cega que caracteriza os primeiros teóricos do cinema. Abel Gance,
por exemplo, compara o filme à escritura hieroglífica:
"Eis-nos, devido a um fabuloso retorno no tempo, de volta sobre o
plano de expressão dos egípcios. . . A linguagem das imagens ainda não
chegou à maturidade porque nao estamos ainda jeitos para elas. Inexiste
ainda atenção suficiente, culto por aquilo que elas exprimem ".12
Séverin Mars escreveu:
"Que arte teve um sonho mais elevado. . . mais poético e, em paralelo,
mais real? Assim considerado, o cinematógrafo tomar-se-ia um meio de
expressão de fato excepcional e em sua atmosfera somente deveriam
mover-se personagens de pensamento superior, nos momentos mais per-
feitos e misteriosos de sua existência ".13
Alexandre Arnoux, por seu turno, ao término de uma fantasia a respeito do
cinema mudo, não teme concluir: "Em suma, todos os termos aleatórios que aca-
bamos de empregar não definem a prece"? 1 4 É bem significativo que o desejo de
conferir ao cinema a dignidade de uma arte obriga seus teóricos a nele introduzir,
através de suas próprias interpretações e com uma inegável temeridade, elementos
de caráter cultural. E, no entanto, na mesma época em que publicavam suas
especulações, já se podiam ver nas telas obras como A Woman of Paris (Casa-
mento ou Luxo?) e The Gold Rush (Em Busca do Ouro). O que não impedia Abel
Gance de se arriscar na comparação com os hieróglifos e Séverin Mars de falar
sobre cinema no tom adequado às pinturas de Fra Angélico! É ainda caracte-
rística hoje em dia a tentativa dos autores especialmente reacionários de inter-
pretar o cinema dentro de uma perspectiva de gênero idêntico e a continuarem a
lhe atribuir, senão um valor exatamente sagrado, pelo menos um sentido sobrena-
tural. A propósito da adaptação cinematográfica de A Midsummer Night's
Dream (Sonho de Uma Noite de Verão) feita por Max Reinhardt, Franz Werfel
afirma que apenas, e sem dúvida, a cópia estéril do mundo exterior, com suas
ruas, seus interiores, suas estações, seus restaurantes, seus automóveis e suas
praias impediram até agora ao cinema ascender ao nível da arte:
"O cinema ainda não apreendeu seu verdadeiro sentido, suas verda-
deiras possibilidades. . . Elas consistem no poder que ele detém intrinse-
camente de exprimir, por meios naturais, e com uma incomparável capa-
cidade de persuasão, o feérico, o maravilhoso, o sobrenatural".^ B
viu
No teatro é, em definitivo, o ator em pessoa que apresenta, diante do público,
a sua atuação artística; já a do ator de cinema requer a mediação de todo um
mecanismo. Disso, resultam duas conseqüências. O conjunto de aparelhos que
transmite a performance do artista ao público não está obrigado a respeitá-la
integralmente. Sob a direção do fotógrafo, na medida em que se executa o filme,
os aparelhos perfazem tomadas com relação a essa performance. Essas tomadas
sucessivas constituem os materiais com que, em seguida, o montador realizará a
montagem definitiva do filme. Ele contém determinado número de elementos mó-
veis que a câmara levará em consideração, sem falar de dispositivos especiais
como os primeiros planos. A atuação do intérprete encontra-se, assim, submetida
a uma série de testes ópticos. Essa é a primeira das duas conseqüências a gerar a
mediação necessária dos aparelhos entre a performance do ator e o público. A
outra refere-se ao fato de que o intérprete do filme, não apresentando ele próprio
a sua performance, não tem. como o ator do teatro, a possibilidade de adaptar a
sua atuação às reações dos espectadores no decorrer da representação. O público
acha-se, assim, na situação de um perito cujo julgamento não fica perturbado por
qualquer contato pessoal com o intérprete. Só consegue penetrar intropaticamente
no ator se penetrar intropaticamente no aparelho. Toma, assim, a mesma atitude
do aparelho: examina um teste.1 6 Não se trata de atitude à qual se possa submeter
os valores de culto.
IX
' 6 "O filme. . . propicia (poderia propiciar), até no detalhe, conclusões úteis a respeito das condi"..., huma-
nas. A partir do caráter de um homem não se pode deduzir nenhum dos seus motivos de comportamento, a
vida interior das pessoas nunca é essencial e, raramente, ela consiste no resultado mais importante de suas
condutas" {Brecht, Versuche, Der Dreigroschenoperprozess). Ampliando o campo do teste, o papei du^ apa-
relhos, na representação dos filmes, desempenha, para o indivíduo, uma função análoga àquela do conjunto
de circunstâncias econômicas que aumentaram de modo extraordinário os terrenos onde ele pode ser testado.
Verifica sc, assim, que os lestes de orientação profissional, dia a dia, ganham mais importância. Consistem
num determindo número de decupagens das performances do indivíduo. Tomadas cinematogi úficas, provas
de orientação profissional, ambas se desenvolvem diante de um areópago de técnicos. O diretor de montagem
encontra-se em seu estúdio exatamente na mesma situação que o controlador de lestes, por ocasião do exame
de orientação profissional.
22 BENJAMIN
1 1
Luigi Pirandello, On Toume, citado por Léon Pierre-Quint, "Signification du Cinema" (L 'Art Cinémalo-
graphique. II, Paris 1927, pp. 14 s.).
18
Rudolf Arnheim: Film ais Kunsl, Berlim 1932, pp. 176 s. Dentro dessa perspectiva, certas particulari-
dades aparentemente secundárias, que distinguem a direção cinematográfica e o experimento teatral, tornam-
se mais interessantes; entre outras, a tentativa de alguns diretores — Dreyer em sua Jeanne d'Arc — de
suprimir a maquilagem dos atores. Dreyer demorou meses para conseguir reunir os quarenta intérpretes que
deveriam representar os juizes no processo da inquisição. Sua busca parecia a procura de acessórios difíceis
de serem obtidos. Dreyer empreendeu os maiores esforços a fim de evitar que houvesse entre esses intérpretes
a menor semelhança de idade, de estatura e de fisionomia. Quando o ator se torna acessório da cena, não é
raro que. em decorrência, os próprios acessórios desempenhem o papel de atores. Pelo menos não é insólito
que o filme lhes tenha um papel a confiar. Em vez de invocar quaisquer exemplos extraídos da grande massa
daqueles que se apresentam, fixemo-nos em um, especialmente ilustrativo. A presença no palco de um relógio
em funcionamento seria sempre inútil, inexíste lugar no teatro para a sua função que é a de marcar o tempo,
Mesmo numa peça realista, o tempo astronômico estaria em discordância com o tempo cênico. Nessas condi-
ções, é da maior importância para o cinema poder dispor de um relógio a fim de assinalar o tempo real. Esse
é um dos dados que melhor indicam que, numa circunstância determinada, cada acessório pode desempenhar
um papel decisivo. Estamos aqui bem próximos da afirmação de Pudovikin, segundo a qual "o desempenho
de um ator, vinculado a um objeto e dependendo deste. . . sempre constitui um dos mais poderosos recursos
de que dispõe o cinema". O filme, então, é o primeiro meio artístico capaz de mostrar a reciprocidade de ação
entre a matéria e o homem. Nesse sentido, ele pode servir com muita eficácia a um pensamento materialista.
A OBRA DE ARTE 23
das causas da opressão que o domina, diante do aparelho, dessa forma nova de
angústia assinalada por Pirandello. Na medida em que restringe o papel da aura,
o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a "personalidade do ator"; o
culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garan-
tida pela personalidade que, já de há muito, reduziu-se ao encanto corrompido de
seu valor de mercadoria. Enquanto o capitalismo conduz o jogo, o único serviço
que se deve esperar do cinema em favor da revolução é o fato de ele permitir uma
crítica revolucionária das concepções antigas de arte. Não contestamos, entre-
tanto, que, em certos casos particulares, possa ir ainda mais longe e venha a favo-
recer uma crítica revolucionária das relações sociais, quiçá do próprio princípio
da propriedade. Mas isso não traduz o objeto principal do nosso estudo nem a
contribuição essencial da produção cinematográfica na Europa Ocidental.
A técnica do cinema assemelha-se àquela do esporte, no sentido de que todos
os espectadores são, nos dois casos, semi-especialistas. Basta, para isso ficar
convincente, haver escutado algum dia um grupo de jovens vendedores de jornais
que, apoiados sobre suas bicicletas, comentam os resultados de uma competição
de ciclismo. Não é sem razão que os editores de jornais organizam competições
reservadas a seus empregados jovens. Tais corridas despertam um imenso inte-
resse entre aqueles que delas participam, pois o vencedor tem a oportunidade de
deixar a venda de jornais pela situação de corredor profissional. De modo idênti-
co, graças aos filmes de atualidades, qualquer pessoa tem a sua chance de apare-
cer na tela. Pode ser mesmo que venha a ocasião de aparecer numa verdadeira
obra de arte, como Tri Pesni o Leninie (Três Cânticos a Lenin), de Vertov, ou
numa fita de Joris Ivens. Não há ninguém hoje em dia afastado da pretensão de
ser filmado e, a firn de melhor entender essa pretensão, vale considerar a situação
atual dos escritores.
Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se em confronto
com vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação mudou.
Mediante a ampliação da imprensa, que colocava sempre à disposição do público
novos órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais, regionais, viu-se um
número crescente de leitores — de início, ocasionalmente — desinteressar-se dos
escritores. A coisa começou quando os jornais abriram suas colunas a um "cor-
reio dos leitores" e, daí em diante, inexiste hoje em dia qualquer europeu, seja
qual for a sua ocupação, que, em princípio, não tenha a garantia de uma tribuna
para narrar a sua experiência profissional, expor suas queixas, publicar uma
reportagem ou algum estudo do mesmo gênero. Entre o autor e o público, a dife-
rença, portanto, está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é ape-
nas funcional e pode variar segundo as circunstâncias. Com a especialização cres-
cente do trabalho, cada indivíduo, mal ou bem, está fadado a se tornar um perito
em sua matéria, seja ela de somenos importância; e tal qualificação confere-lhe
uma dada autoridade. Na União Soviética, até o trabalho tem voz; e a sua repre-
sentação verbal constitui uma parte do poder requisitada pelo seu próprio exercí-
cio. A competência literária não mais se baseia sobre formação especializada,
A OBRA DE ARTE 25
mas sobre uma multiplicidade de técnicas e, assim, ela se transforma num bem
comum. 20
Tudo isso aplica-se ao cinema sem reservas, onde os deslocamentos de pers-
pectiva, que exigiram séculos no campo literário, realizaram-se em dez anos. Pois,
na prática cinematográfica — sobretudo na Rússia — a evolução já está parcial-
mente consumada. Inúmeros intérpretes do cinema soviético não são mais atores
dentro da acepção da palavra, e sim pessoas que desempenham o seu próprio
papel, mormente em sua atividade profissional. Na Europa Ocidental, a explora-
ção capitalista da indústria cinematográfica recusa-se a satisfazer as pretensões
do homem contemporâneo de ver a sua imagem reproduzida. Dentro dessas
condições, os produtores de filmes têm interesse em estimular a atenção das mas-
sas para representações ilusórias e espetáculos equívocos.
XI
disso existe num estúdio cinematográfico. O filme só atua em segundo grau, uma
vez que se procede à montagem das seqüências. Em outras palavras: o aparelho,
no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de confe-
rir-lhe a sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui
— dentro dela — o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos
peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias seqüên-
cias de imagens do mesmo tipo. A realidade despojada do que lhe acrescenta o
aparelho tornou-se aqui a mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreen-
são imediata da realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul.
Essa situação do cinema, opondo-se nitidamente à do teatro, leva a conclu-
sões ainda mais fecundas, caso a comparemos com a da pintura. Cabe aqui inda-
gar qual é a relação entre o operador e o pintor. A fim de responder, permita-se-
nos recorrer a uma comparação esclarecedora, extraída da própria idéia de
operação, tal como é empregada na cirurgia. No mundo operatório, o cirurgião e
o curandeiro ocupam os dois pólos opostos. O modo de agir do curandeiro que
cura um doente mediante a atuação das mãos, difere daquele do cirurgião que pra-
tica uma intervenção. O curandeiro conserva a distância natural existente entre
ele e o paciente, ou — melhor dizendo — se ele a diminui um pouco — devido à
atuação das mãos — aumenta-a bastante por causa de sua autoridade. O cirur-
gião, pelo contrário, a diminui consideravelmente, porque intervém no interior do
doente, mas só aumenta-a um pouco, graças à prudência com que a sua mão se
move pelo corpo do paciente. Em suma: ao contrário do curandeiro (do qual res-
tam alguns traços no prático), o cirurgião, no momento decisivo, renuncia a se
comportar face ao doente de acordo com uma relação de homem a homem; é
sobretudo através de modo operatório que ele penetra no doente. Entre o pintor e
o fumador encontramos a mesma relação existente entre o curandeiro e o cirur-
gião. O primeiro, pintando, observa uma distância natural entre a realidade dada
e ele próprio; o filmador penetra em profundidade na própria estrutura do dado. 2 q
As imagens que cada um obtém diferem extraordinariamente. A do pintor é glo-
bal, a do filmador divide-se num grande número de partes, onde cada qual obede-
ce a suas leis próprias. Para o homem hodierno, a imagem do real fornecida pelo
cinema é infinitamente mais significativa, pois se ela atinge esse aspecto das coi-
sas que escapa a qualquer instrumento — o que se trata de exigência legítima de
toda obra de arte — ela só o consegue exatamente porque utiliza instrumentos
destinados a penetrar, do modo mais intensivo, no coração da realidade.
21
As dificuldades do filmador são, com efeito,comparáveis àquelas do cirurgião. Caracterizam os movimen-
tos de mão cuja técnica pertence especificamente ao âmbito do gesto. Luc Durtain fala daqueles que exigem,
na cirurgia, algumas invenções difíceis. Toma, por exemplo, um caso específico, extraído da otorrinolarin-
gologia, chamado de método perspectivo endonasal. Refere-se igualmente às verdadeiras acrobacias impostas
ao cirurgião da laringe, pelo fato de ser obrigado a utilizar um espelho, onde a imagem se lhe apresenta ao
inverso. Assinala também o trabalho de precisão requerido pela cirurgia do ouvido, que é comparável ao de
um relojoeiro. O cirurgião deve exercitar os seus músculos até um grau extremo de precisão acrobática, quan-
do vai consertar ou salvar o corpo humano. Basta pensar, lembra-nos Durtain, na operação de catarata, onde
o aço do bisturi deve porfíar com tecidos quase fluidos, ou ainda nas importantes intervenções na região
inguinal (laparatomia).
A OBRA DE ARTE 27
XII
22
Esse modo de considerar as coisas pode parecer grosseiro. Mas, como o demonstra o exemplo do grande
teórico Leonardo Da Vinci, observações dessa natureza podem ser adequadas a seu tempo. Comparando mú-
sica e pintura, diz Leonardo: "A superioridade da pimura sobre a música existe pelo fato de que, a partir do
momento em que ela é convocada para viver, inexiste motivo para que venha a morrer, como ao contrário.
é o caso da pobre música... A música se evapora depois de ser tocada; perenizada pelo uso do verniz, a pin-
tura subsiste".
28 BENJAMIN
XIII
O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apre-
senta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele
representa para si o mundo que o rodeia. Um exame da psicologia da performance
mostrou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Um olhar sobre
a psicanálise nos fornecerá um outro exemplo. De fato, o cinema enriqueceu a
nossa atenção através de métodos que vêm esclarecer a análise freudiana. Há cin-
qüenta anos, não se prestava quase atenção a um lapso ocorrido no desenrolar de
uma conversa. A capacidade desse lapso de, num só lance, abrir perspectivas pro-
fundas sobre uma conversa que parecia decorrer do modo mais normal, era enca-
rada, talvez, como uma simples anomalia. Porém, depois de Psychopathologie des
Allagslebens (Psicopatologia da Vida Cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao
mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades,
até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas. Alar-
gando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido
visual como no auditivo, o cinema acarretou, em conseqüência, um aprofunda-
mento da percepção. E é em decorrência disso que as suas realizações podem ser
analisadas de forma bem mais exata e com número bem maior de perspectivas do
que aquelas oferecidas pelo teatro ou a pintura. Com relação à pintura, a superio-
ridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo,
dos filmes e pelo fato de fornecer ele, assim, um levantamento da realidade incom-
paravelmente mais preciso. Com relação ao teatro, porque é capaz de isolar nú-
mero bem maior de elementos constituintes. Esse fato — e é daí que provém a sua
importância capital — tende a favorecer a mútua compenetração da arte e da
ciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamente ajustada
ao âmago de determinada situação (como o músculo no corpo), não se pode esti-
pular se a coesão refere-se principalmente ao seu valor artístico, ou à exploração
científica passível de ser concretizada. Graças ao cinema — e aí está uma das
suas funções revolucionárias — pode-se reconhecer, doravante, a identidade entre
o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde
divergentes.23
Procedendo ao levantamento das realidades através de.seus primeiros pla-
nos que também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perseru-
tando as ambiências banais sob a direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de
um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida,
consegue, de outro, abrir imenso campo de ação do qual não suspeitávamos. Os
23
Com relação a isso, a pintura da Renascença fomece-nos analogia bem instrutiva. Nela Lambem encon
tramos uma arte, cujo desenvolvimento e importância incomparáveis baseiam-se, em grande parle, sobre o
fato de que cia integra um grande número de ciências novas, ou, no mínimo, novos dados extraídos dessas
ciências. Reivindica a anatomia e a perspectiva, as matemáticas, a meteorologia e a teoria das cores. Como
Valéry fez observar, nada está mais distante de nós do que essa surpreendente pretensão de um Leonardo, que
via na pintura a meta suprema e a mais elevada demonstração de saber, pois estava convencido de que ela
requeria a ciência universal e ele próprio não recuava diante dc uma análise teórica, cuja precisão e profundi-
dade desconcertam-nos hoje em dia.
A OBRA DE ARTE 29
XIV
Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada inda-
gação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta.2 s A
2
"Rudolf Arnheim, loc. cit., p. 138.
25
Segundo André Breton, a obra de arte só tem valor na medida em que agita os reflexos do futuro. De fato,
toda forma de arte acabada situa-se no cruzamento de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, ela elabora
a técnica que a si própria convém. Ames do cinema, havia essas coleções de fotos que, sob a pressão do pole-
gar, sucediam-se rapidamente diante dos olhos e que conferiam a visão de uma luta de boxe ou de um jogo
dc tênis; vendiam-se nas lojas uns brinquedos automáticos, onde o desenrolar das imagens era provocado
pela rotação de uma manivela. Em segundo lugar, ela elabora as formas de arte tradicionais, nos diversos
estágios de seu desenvolvimento, com o objetivo de aplicá-las nos efeitos que, em seguida, serão desembara-
çadamente visados pela forma nova dc arte. Antes de o filme ser aceito, os dadaístas. através de suas manifes-
tações, procuravam introduzir junto ao público um movimento, o qual Chaplin, logo após. viria a ensejar de
modo mais natural. Em terceiro lugar, ela prepara, de maneira amiúde invisível, as modificações sociais,
transformando os métodos de acolhida a fim de adaptá-los às formas novas de arce. Antes de o cinema haver
começado a formar o seu público, já outro público se reunia no Panorama Imperial, a fim de ver as imagens
(que já haviam deixado de ser imóveis). Este público achava-se defronte de um biombo, onde estercoscopios
estavam instalados, cada um deles voltado para um dos espectadores. Diante desses aparelhos surgiam
30 BENJAMIN
história de cada forma de arte comporta épocas críticas, onde ela tende a produzir
efeitos que só podem ser livremente obtidos em decorrência de modificação do
nível técnico, quer dizer, mediante uma nova forma de arte. Daí porque as extra-
vagâncias e exageros que manifestam nos períodos de suposta decadência nascem,
na verdade, daquilo que constitui, no âmago da arte, o mais rico centro de forças.
Ainda bem recentemente vimos os dadaístas a se comprazerem com manifesta-
ções bárbaras. Só hoje compreendemos o que visava esse esforço: o dadaísmo
buscava produzir, através da pintura (ou da literatura), os próprios efeitos que o
público hoje solicita do cinema.
Cada vez que surge uma indagação fundamentalmente nova abrindo o futuro
aos nossos olhos, ela ultrapassa seu propósito. Isso foi tão verdadeiro no caso dos
dadaístas que, em favor das intenções — das quais não estavam, evidentemente,
tão conscientes dentro da forma que descrevemos — eles sacrificaram os valores
comerciais que assumiram, desde então, importância tão grande para o cinema.
Os dadaístas davam muito menos valor à utilização mercantil de suas obras do
que ao fato de que não se podia fazer delas objetos de contemplação. Um de seus
métodos mais habituais para atingir esse objeto foi o aviltamento sistemático da
própria matéria de suas obras. Seus poemas são saladas de palavras, contêm
obscenidades e tudo que se possa imaginar de detritos verbais. Igualmente os seus
quadros, sobre os quais eles colavam botões e bilhetes de passagens de ônibus,
trens, etc. Chegaram ao ponto de privar radicalmente de qualquer aura as produ-
ções às quais infligiam o estigma da reprodução. Diante de um quadro de Arp ou
de um poema de Stramm, não se tem — como diante de uma tela de Derain ou
um poema de Rilke — o lazer da concentração para fazer um julgamento. Para
uma burguesia degenerada, o reentrar em si mesmo tornou-se uma escola de
comportamento associai; com o dadaísmo, a diversão tornou-se um exercício de
comportamento social.2 6 Suas manifestações, com efeito, produziram uma diver-
gência muito violenta, fazendo-se da obra de arte um objeto de escândalo. O
intento era, antes de tudo, chocar a opinião pública. De espetáculo atraente para
o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadaís-
mo, transformou-se em choque. Ela feria o espectador ou o ouvinte; adquiriu
poder traumatizante. E, dentro disso, favoreceu o gosto pelo cinema, que também
possui um caráter de diversionismo pelos choques provocados no espectador devi-
do às mudanças de lugares e de ambientes. Pensar em toda a diferença que separa
automaticamente imagens sucessivas que se demoravam um instante e logo davam lugar a outra seguinte. Foi
ainda com meios análogos que Edison exibiu a pequeno grupo de espectadores a primeira película filmada
(antes que se descobrisse a tela e a projeção): o público olhava com estupor o aparelho, dentro do qual se
desenrolavam as imagens. — A princípio, o espetáculo apresentado no Panorama Imperial traduzia de
maneira especialmente clara uma dialética do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema permitir uma
visão coletiva das imagens, graças a esse sistema de estereoscópio. logo caído de moda. o que ainda prevale-
ceu foi a visão individual.com a mesma força da contemplação da imagem divina feita por um padre numa
cela.
26
O arquétipo teológico desse auio-recoíhimento consiste na consciência do estar a sós com Deus. Nas
grandes épocas da burguesia, essa consciência tornou o homem suficientemente fone para sacudir a tutela da
Igreja; na época dc sua decadência, a mesma consciência deveria favorecer, quanto ao indivíduo, uma tendên-
cia secreta de privar a comunidade das forças que ele aciona em sua relação pessoal com seu Deus.
A OBRA DE ARTE 31
a tela na qual se desenrola o filme e a tela onde se fixa a pintura! A pintura convi-
da à contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam à associação de
idéias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede
lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar. Mesmo detestando o cinema e
nada entendendo do seu significado, Duhamel percebeu bem vários aspectos de
sua estrutura e enfatiza isto quando escreve: "Já não posso meditar no que vejo.
As imagens em movimento substituem os meus próprios pensamentos". 27 De
fato, a sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do especta-
dor. Daí é que vem a sua influência traumatizante; como tudo que choca, o filme
somente pode ser apreendido mediante um esforço maior de atenção. 28 Mediante
a sua técnica, o cinema libertou o efeito de choque físico daquela ganga moral,
onde o dadaísmo o havia encerrado de certa forma. 29
XV
Epílogo
© - Copyright desta edição, 1975, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Textos publicados com licença de: Suhrkamp Veriag. Frankfurt
am Main (Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit;
Ueber einige Motiven bet Baudelaire; Der Erzaehler; Der
Surrealismus; Rede ueber Lyrik und Gesellschaft; Erkenntnis und Interesse;
Technik und Wissenschaft ais "Ideologie");
S. Fischer Veriag, Frankfurt am Main (Begriff der Aujklaerung; Tradizionelle
und kritische Theorie; Philosophic und kritische Theorie); Hermann
Luchterhand Veriag, Darmstadt und Neuwíed (Analytische
Wissenschajhlehre und Dialektik; Einleitung); Vandenhoeck und Ruprccht, Goettingen
(Ueber den Fetischcharakter in der Musik und die R egression der Hoerens).
Tradução publicada com licença da Editora Civilização Brasileira,
Rio de janeiro (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução).
Direitos exclusivos sobre as demais traduções constantes
deste volume, 1975, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.