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TEXTOS DE

WALTER B E N J A M I N

Tradução de José Lino Grünnewald (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução),
Edson Araújo Cabral e José Benedito de Oliveira Damião (Sobre alguns motivos baudelairianos),
Erwin Theodor Rosental (O narrador, O Surrealismo).
A OBRA DE ARTE NA ÉPOCA DE SUAS
TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO*

Nossas belas-artes foram instituídas, assim como os seus


tipos e práticas foram fixados, num tempo bem diferente do
nosso, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era
insignificante face àquele que possuímos. Mas o admirável
incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisão que
alcançam, as idéias e os hábitos que introduzem, assegu-
ram-nos modificações próximas e muito profundas na
velha indústria do belo. Existe, em todas as artes, uma
parte física que não pode mais ser encarada nem tratada
como antes, que não pode mais ser elidida das iniciativas
do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a
matéria, nem o espaço, nem o tempo, ainda são, decorridos
vinte anos, o que eles sempre foram. É preciso estar ciente
de que, se essas tão imensas inovações transformam toda a
técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria
invenção, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modifi-
car a própria noção de arte, de modo admirável.

(Paul Valéry, Pieces sur I'Art, Paris, 1934;


"Conquête de 1'Ubiquité", pp. 103, 104.)

* Traduzido do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit", em


Illuminationen. Frankfurt am Main, 1961, Suhrkamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada
na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.
Preâmbulo

Na época em que Marx empreendeu a sua análise, o modo de produção capi-


talista ainda estava em seus primórdios. Marx soube orientar sua pesquisa de
modo a lhe conferir um valor de prognóstico. Remontando às relações fundamen-
tais, pôde prever o futuro do capitalismo. Chegou à conclusão de que, se a explo-
ração do proletariado continuasse cada vez mais rigorosa, o capitalismo estaria
preparando, ao mesmo tempo, as condições de sua própria supressão.
Como as superestruturas evoluem bem mais lentamente do que as infra-es-
truturas, foi preciso mais de meio século para que a mudança advinda nas condi-
ções de produção fizesse sentir seus efeitos em todas as áreas culturais. Verifi-
camos hoje apenas as formas que elas poderiam ter tomado. Dessas constatações,
deve-se extrair determinados prognósticos, menos, no entanto, dos aspectos da
arte proletária, após a tomada do poder pela classe operária — a fortiori, na
sociedade sem classes — do que a respeito das tendências evolutivas da arte den-
tro das condições atuais da produção. A dialética dessas condições está também
mais nítida na superestrutura do que na economia. Seria errôneo, em conse-
qüência, subestimar o valor combativo das teses que, aqui, apresentamos. Elas
renunciam ao uso de um grande número de noções tradicionais — tais como
poder criativo e genialidade, valor de eternidade e mistério — cuja aplicação
incontrolada (e, no momento, dificilmente controlável) na elaboração de dados
concretos toraa-se passível de justificar interpretações fascistas. O que distingue
as concepções que empregamos aqui — e que são novidades na teoria da arte —
das noções em voga, é que elas não podem servir a qualquer projeto fascista. São,
em contrapartida, utilizáveis no sentido de formular as exigências revolucionárias
dentro da política da arte.

A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução. O que al-
guns homens fizeram podia ser refeito por outros. Assistiu-se, em todos os tem-
pos, a discípulos copiarem obras de arte, a título de exercício, os mestres reprodu-
zirem-nas a fim de garantir a sua difusão e. os falsários imitá-las com o fim de
extrair proveito material. As técnicas de reprodução são, todavia, um fenômeno
novo, de fato, que nasceu e se desenvolveu no curso da história, mediante saltos
sucessivos, separados por longos intervalos, mas num ritmo cada vez mais rápido.
Os gregos só conheciam dois processos técnicos de reprodução: a fundição e a
12 BENJAMIN

cunhagem. Os bronzes, as terracotas e as moedas foram as únicas obras de arte


que eles puderam reproduzir em série. As demais apenas comportavam um único
exemplar e não serviam a nenhuma técnica de reprodução. Com a gravura na
madeira, conseguiu-se, pela primeira vez, a reprodução do desenho, muito tempo
antes de a imprensa permitir a multiplicação da escrita. Sabe-se das imensas
transformações introduzidas na literatura devido à tipografia, pela reprodução
técnica da escrita. Qualquer que seja a sua importância excepcional, essa desco-
berta é somente um aspecto isolado do fenômeno geral que aqui encaramos ao
nível da história mundial. A própria Idade Média viria aduzir, à madeira, o cobre
e a água-forte e, o início do século XIX, a litografia.
Com a litografia, as técnicas de reprodução marcaram um progresso decisi-
vo. Esse processo, muito mais fiei — que submete o desenho à pedra calcária, em
vez de entalhá-lo na madeira ou de gravá-lo no metal — permite pela primeira vez
às artes gráficas não apenas entregar-se ao comércio das reproduções em série,
mas produzir, diariamente, obras novas. Assim, doravante, pôde o desenho ilus-
trar a atualidade cotidiana. E nisso ele tornou-se íntimo colaborador da imprensa.
Porém, decorridas apenas algumas dezenas de anos após essa descoberta, a foto-
grafia viria a suplantá-lo em ial papel. Com ela, pela primeira vez, no tocante à
reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essen-
ciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como,
todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mão ao desenhar, a reprodução
das imagens, a partir de então, pôde se concretizar num ritmo tão acelerado que
chegou a seguir a própria cadência das palavras. O fotógrafo, graças aos apare-
lhos rotativos, fixa as imagens no estúdio de modo tão veloz como o que o ator
enuncia as palavras. A litografia abria perspectivas para o jornal ilustrado; a foto-
grafia já continha o germe do cinema falado. No fim do século passado, atacava-
se o problema colocado pela reprodução dos sons. Todos esses esforços conver-
gentes facultavam prever uma situação assim caracterizada por Valéry: "Tal
como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para as nossas casas, aten-
der às nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos
alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao
menor gesto, quase que a um sinal".'
Com o advento do século XX, as técnicas de reprodução atingiram tal nível
que, em decorrência, ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as
obras de arte do passado e de modificar de modo bem profundo os seus meios de
influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais de arte. Com
respeito a isso, nada é mais esclarecedor do que o critério pelo qual duas de suas
manifestações diferentes — a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica
— reagiram sobre as formas tradicionais de arte.

1
Valéry, Pieces sur VAn, "Conquête de 1'Ubiquité", p. 105.
A OBRA DE ARTE 13

II

À mais perfeita reprodução falta sempre algo: o hic et nunc da obra de arte,
a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra. É a esta presença,
única no entanto, e só a ela que se acha vinculada toda a sua história. Falando de
história, lembramo-nos também das alterações materiais que a obra pode sofrer
de acordo com a sucessão de seus possuidores.2 O vestígio das alterações mate-
riais só fica desvendado em virtude das análises físico-químicas, impossíveis de
serem feitas numa reprodução; a fim de determinar as sucessivas mãos pelas quais
passou a obra, deve-se seguir toda uma tradição, a partir do próprio local onde foi
criada.
O hic et nunc do original constitui aquilo que se chama de sua autentici-
dade. Para se estabelecer a autenticidade de um bronze, torna-se, às vezes, neces-
sário recorrer a análises químicas da sua patina; para demonstrar a autenticidade
de um manuscrito medieval é preciso, às vezes, determinar a sua real proveniência
de um depósito de arquivos do século XV. A própria noção de autenticidade não
tem sentido para uma reprodução, seja técnica ou não. 3 Mas, diante da reprodu-
ção feita pela mão do homem e, em princípio, considerada como uma falsificação,
o original mantém a plena autoridade; não ocorre o mesmo no que concerne à
reprodução técnica. E isto por dois motivos. De um lado, a reprodução técnica
está mais independente do original. No caso da fotografia, é capaz de ressaltar
aspectos do original que escapam ao olho e são apenas passíveis de serem apreen-
didos por uma objetiva que se desloque livremente a fim de obter diversos ângulos
de visão; graças a métodos como a ampliação ou a desaceleração, pode-se atingir
a realidades ignoradas pela visão natural. Ao mesmo tempo, a técnica pode levar
a reprodução de situações, onde o próprio original jamais seria encontrado. Sob a
forma de fotografia ou de disco permite sobretudo a maior aproximação da obra
ao espectador ou ao ouvinte. A catedral abandona sua localização real a fim de se
situar no estúdio de um amador; o musicômano pode escutar a domicílio o coro
executado numa sala de concerto ou ao ar livre.
Pode ser que as novas condições assim criadas pelas técnicas de reprodução,
em paralelo, deixem intacto o conteúdo da obra de arte; mas, de qualquer manei-
ra, desvalorizam seu hic et nunc. Acontece o mesmo, sem dúvida, com outras coi-
sas além da obra de arte, por exemplo, com a paisagem representada na película
cinematográfica; porém, quando se trata da obra de arte, tal desvalorização atin-

2
Evidente que a história de uma obra de arte não se limita a esses dois elementos: a da Gioconda, por exem-
plo, deve também levar em conta a maneira com que a copiaram nos séculos XVII, XVIII e XIX e a quanti-
dade de tais cópias.
3
É precisamente porque a autenticidade escapa a toda reprodução que o desenvolvimento intensivo de al-
guns processos técnicos de reprodução permitiram fixar graus e diferenciações dentro da própria autentici-
dade. Com respeito a isso, o comércio da arte desempenhou papel importante. Mediante a descoberta da gra-
vura em madeira, pode-se dizer que a autenticidade das obras foi atacada na raiz, antes mesmo de atingir um
florescer que deveria mais ainda enriquecê-la. Na realidade, na época em que foi feita, uma Virgem da Idade
Média ainda não era "autêntica": ela assim se tornou no decon-er dos séculos seguintes, talvez, sobretudo, no
século XIX.
14 BENJAMIN

ge-a no ponto mais sensível, onde ela é vulnerável como não o são os objetos natu-
rais: em sua autenticidade. O que caracteriza a autenticidade de uma coisa é tudo
aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material
até seu poder de testemunho histórico. Como este próprio testemunho baseia-se
naquela duração, na hipótese da reprodução, onde o primeiro elemento (duração)
escapa aos homens, o segundo — o testemunho histórico da coisa — fica identi-
camente abalado. Nada demais certamente, mas o que fica assim abalado é a pró-
pria autoridade da coisa. 4
Poder-se-ia resumir todas essas falhas, recorrendo-se à noção de aura, e
dizer: na época das técnicas de reprodução, o que é atingido na obra de arte é a
sua aura. Esse processo tem valor de sintoma, sua significação vai além do terre-
no da arte. Seria impossível dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução
separaram o objeto reproduzido do âmbito da tradição. Multiplicando as cópias,
elas transformam o evento produzido apenas uma vez num fenômeno de massas.
Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão e à audição, em quaisquer
circunstâncias, conferem-lhe atualidade permanente. Esses dois processos condu-
zem a um abalo considerável da realidade transmitida — a um abalo da tradição,
que se constitui na contrapartida da crise por que passa a humanidade e a sua
renovação atual. Estão em estreita correlação com os movimentos de massa hoje
produzidos. Seu agente mais eficaz é o cinema. Mesmo considerado sob forma
mais positiva — e até precisamente sob essa forma — não se pode apreender a
significação social do cinema, caso seja negligenciado o seu aspecto destrutivo e
catártico: a liquidação do elemento tradicional dentro da herança cultural. Tal
fenômeno é peculiarmente sensível nos grandes filmes históricos e quando Abel
Gance, em 1927, bradava com entusiamo:

"Shakespeare, Rembrandt, Beethoven farão cinema. . .


Todas as legendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos
os fundadores de religiões e todas as próprias religiões. . .
aguardam sua ressurreição luminosa e os heróis se empurram
diante das nossas portas para entrar " 5
convidava-nos, sem saber, a uma liquidação geral.

III

No decorrer dos grandes períodos históricos, com relação ao meio de vida


das comunidades humanas, via-se, igualmente, modificar-se o seu modo de sentir
e de perceber. A forma orgânica que é adotada pela sensibilidade humana — o
meio na qual ela se realiza — não depende apenas da natureza, mas também da
história. Na época das grandes invasões, entre os artistas do Baixo Império, entre
4
A pior representação de Faust, num teatro de província, já é superior a um filme sobre o mesmo tema,
naquilo em que ela, pelo menos, rivaliza com a apresentação oficial de Weimar. Toda a substância tradi-
cional sugerida a nós pelo desempenho dos atores se esvazia, na tela, de todo valor.
5
Abel Gance: "Le Temps de PImage est Venu", (L'art Cinématographique,U, Paris, 1927, pp. 94-96).
A OBRA DE ARTE 15

os autores da Gênese de Viena, não é apenas uma arte diversa daquela dos antigos
que se encontra, mas uma outra maneira de perceber. Os sábios da Escola Vienen-
se, Riegel e Wieckhoff, ao se oporem a todo o peso da tradição clássica que havia
desprezado essa arte, foram os primeiros a terem a idéia de extrair as inferências
quanto ao modo de percepção próprio ao tempo ao qual se relacionava. Fosse
qual fosse a dimensão da descoberta, ela ficou reduzida porque os pesquisadores
contentaram-se em esclarecer as características formais típicas da percepção do
Baixo Império. Não se preocuparam em mostrar — o que, sem dúvida, excederia
todas as suas esperanças — as transformações sociais, das quais essas mudanças
do modo de percepção não eram mais do que a expressão. Hoje, estamos melhor
situados do que eles para compreender isso. E, se é verdade que as modificações
a que assistimos no meio onde opera a percepção podem se exprimir como um
declínio da aura, permanecemos em condições de indicar as causas sociais que
conduziram a tal declínio
É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de
aura, porém, para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um
objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma realidade
longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga
com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho,
cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas
montanhas, desse galho. Tal evocação permite entender, sem dificuldades, os fato-
res sociais que provocaram a decadência atual da aura. Liga-se ela a duas circuns-
tâncias, uma e outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas
na vida presente. Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendên-
cias igualmente fortes: exigem, de um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto hu-
mana como espacialmente, "mais próximas" 6, de outro lado, acolhendo as repro-
duções, tendem a depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma vez. Dia a
dia, impõe-se gradativamente a necessidade de assumir o domínio mais próximo
possível do objeto, através de sua imagem e, mais ainda, em sua cópia ou reprodu-
ção. A reprodução do objeto, tal como a fornecem o jornal ilustrado e a revista
semanal, é incontestavelmente uma coisa bem diversa de uma imagem. A imagem
associa de modo bem estreito as duas feições da obra de arte: a sua unidade e a
duração; ao passo que a foto da atualidade, as duas feições opostas: aquelas de
uma realidade fugidia e que se pode reproduzir indefinidamente. Despojar o obje-
to de seu véu, destruir a sua aura, eis o que assinala de imediato a presença de
uma percepção, tão atenta àquilo que "se repete identicamente pelo mundo", que,
graças à reprodução, consegue até estandardizar aquilo que existe uma só vez.
Afirma-se assim, no terreno intuitivo, um fenômeno análogo àquele que, no plano
da teoria, é representado pela importância crescente da estatística. O alinhamento

8
Dizer que as coisas se tornam "humanamente mais próximas" pode significar que não se leva mais em
conta a sua função social. Nada garante que um retratista contemporâneo — quando representa um cirurgião
célebre fazendo uma refeição ou dentro do seu círculo familiar — apreenda mais exatamente a sua função so-
cial do que um pintor do século XVI, que, como o Rembrandt, da Lição de Anatomia, apresentava ao pú-
blico de sua época os médicos no próprio exercício de sua arte.
16 BENJAMIN

da realidade pelas massas, o alinhamento conexo das massas pela realidade, cons-
tituem um processo de alcance indefinido, tanto para o pensamento, como para a
intuição.

IV

A unicidade da obra de arte não difere de sua integração nesse conjunto de


afinidades que se denomina tradição. Sem dúvida, a própria tradição é uma reali-
dade bem viva e extremamente mutável. Uma estátua antiga de Vênus, por exem-
plo, pertencia a complexos tradicionais diversos, entre os gregos — que dela fa-
ziam objeto de culto — e os clérigos da Idade Média, que a encaravam como um
ídolo maléfico. Restava, contudo, entre essas duas perspectivas opostas, um ele-
mento comum: gregos e medievais tomavam em conta essa Vênus pelo que ela
encerrava de único, sentiam a sua aura. No começo, era o culto que exprimia a
incorporação da obra de arte num conjunto de relações tradicionais. Sabe-se que
as obras de arte mais antigas nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico,
depois religioso. Então, trata-se de um fato de importância decisiva a perda neces-
sária de sua aura, quando, na obra de arte, não resta mais nenhum vestígio de sua
função ritualística.7 Em outras palavras: o valor de unicidade, típica da obra de
arte autêntica, funda-se sobre esse ritual que, de início, foi o suporte do seu velho
valor utilitário. Qualquer que seja o número de intermediários, essa ligação funda-
mental é ainda reconhecível — tal como um ritual secularizado — através do
culto dedicado à beleza, mesmo sob as formas mais profanas.8 Aparecido na
época da Renascença, esse culto da beleza, predominante no decorrer de três sécu-
los, guarda hoje a marca reconhecível dessa origem, a despeito do primeiro abalo
grave que sofreu desde então. Quando surgiu a primeira técnica de reprodução
verdadeiramente revolucionária — a fotografia, que é contemporânea dos primór-
dios do socialismo — os artistas pressentiram a aproximação de uma crise que
ninguém — cem anos depois — poderá negar. Eles reagiram, professando "a arte
pela arte", ou seja, uma teologia da arte. Essa doutrina — da qual, em primeiro
lugar, Malíarmé deveria extrair todas as conseqüências no âmbito literário —
conduzia diretamente a uma teologia negativa: terminava-se, efetivamente, por
7
Ao definir a aura como "a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja",
nós, simplesmente, fizemos a transposição para as categorias do espaço e do tempo da fórmula que designa
o valor do culto da obra de arte. Longínquo opõe-se a próximo. O que está essencialmente longe é inatingível.
De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto é de ser inatingível. Devido à sua pró-
pria natureza, ela está sempre "longínqua, por mais próxima que possa estar". Pode-se aproximar de sua rea-
lidade material, mas sem se alcançar o caráter longínquo que ela conserva, a partir de quando aparece.
8
Na medida em que o valor de culto da imagem se seculariza, representa-se de modo ainda mais indetermi-
nado o substrato do qual ela se faz uma realidade, que é dado apenas uma vez. Cada vez mais, o espectador
se inclina a substituir a unicidade dos fenômenos dominantes na imagem de culto pela unicidade empírica do
artista c de sua atividade criadora. A substituição nunca é integral, sem dúvida; a noção de autenticidade ja-
mais cessa de se remeter a algo mais do que simples garantia de originalidade (o exemplo mais significativo
é aquele do colecionador que se parece sempre com um adorador de fetiches e que, mediante a própria posse
da obra de arte, participa de seu poder de culto). Apesar de tudo, o papel do conceito de autenticidade no
campo da arte é ambiguo; com a secularização desta última, a autenticidade torna-se o substituto do valor de
culto.
A OBRA DE ARTE 17

conceber uma arte pura, que recusa, não apenas desempenhar qualquer papel
essencial, mas até submeter-se às condições sempre impostas por uma matéria
objetiva.
A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodução, é
preciso levar na maior conta esse conjunto de relações. Elas colocam em evidên-
cia um fato verdadeiramente decisivo e o qual vemos aqui aparecer pela primeira
vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte com relação à exis-
tência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico. Reproduzem-se
cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzi-
das. 9 Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria
absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autentici-
dade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subver-
tida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma
outra forma de praxis: a política.

Caso se considerem os diversos modos pelos quais uma obra de arte pode ser
acolhida, a ênfase é dada, ora sobre um fator, ora sobre outro. Entre esses fatores
existem dois que se opõem diametralmente: o valor da obra como objeto de culto
e o seu valor como realidade exibível.10 A produção artística inicia-se mediante
9
De modo diverso do que bcorre, em literatura ou em pintura, a técnica de reprodução não é para o filme
uma simples condição exterior a facultar sua difusão maciça; a sua técnica de produção funda diretamente
a sua técnica de reprodução. Ela não apenas permite, de modo mais imediato, a difusão maciça do filme, mas
exige-a. As despesas de produção são tão altas que impedem ao indivíduo adquirir um filme, como se com-
prasse um quadro. Os cálculos demonstraram que, em 1927, a amortização de uma grande fita implicava na
sua exibição para nove milhões de espectadores. De início, é certo, a invenção do cinema falado diminuiu
provisoriamente a difusão dos filmes por causa das fronteiras lingüísticas na própria época em que o fas-
cismo insistia nos interesses nacionais. Essa recessão, em breve atenuada pela dublagem, deve importar-nos
menos do que o seu elo com o fascismo. Os dois fenômenos são simultâneos porque estão ligados à crise
econômica. As mesmas perturbações que, a grosso modo, conduziram à procura dos meios de garantir, pela
força, o estatuto da propriedade, apressaram os capitalistas do cinema a concretizarem o advento do filme
falado. Essa descoberta trouxe-lhes um desafogo passageiro, contribuindo para propiciar às massas o gosto
pelo cinema e, sobretudo, vinculando os capitais dessa indústria aos novos capitais provenientes da indústria
elétrica. Assim, visto de fora, o cinema falado favoreceu aos interesses nacionais, mas, visto de dentro, provo-
cou uma maior internacionalização dos interesses.
10
Essa oposição escapa necessariamente a uma estética idealista; a idéia de beleza, desta última, somente
admite uma dualidade indeterminada — e, em conseqüência, recusa-se a qualquer decisão. Hegel, no entanto,
entreviu o problema, tanto quanto lhe permitia seu idealismo. Disse, em Vorlesungen über diePhilosophie der
Geschichie: "As imagens existem já há muito. A piedade sempre as exigia como objetos de devoção, mas não
tinha necessidade alguma de imagens belas. A imagem bela contém, assim, um elemento exterior, porém é na
medida em que é bela que o seu espírito fala aos homens; ora, com a devoção, trata-se de uma necessidade
essencial à existência de uma relação a uma coisa, pois, por si própria, ela não é mais do que o entorpeci-
mento da alma. . . A Bela Arte. . . nasceu dentro da Igreja. . . . embora a arte já haja emergido do princípio
da arte". Uma passagem de Vorlesungen über die Aesthetik indica igualmente que Hegel pressentia a exis-
tência do problema: "Não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte, onde
se podia dedicar-lhes preces; a impressão que elas nos transmitem è mais discreta e a sua capacidade de emo-
cionar ainda requer uma pedra de toque de ordem superior". A passagem do primeiro modo para o segundo
condiciona em geral todo processo histórico da receptividade às obras de arte. Quando se está desprevenido.
fica-se por princípio, e a cada obra particular, condenado a oscilar entre esses dois meios opostos. Após os
18 BENJAMIN

imagens que servem ao culto. Pode-se admitir que a própria presença dessas ima-
gens tem mais importância do que o fato de serem vistas. O alce que o homem fi-
gura sobre as paredes de uma gruta, na idade da pedra, consiste num instrumento
mágico. Ele está, sem dúvida, exposto aos olhos de outros homens, porém —
antes de tudo — é aos espíritos que ele se endereça. Mais tarde, é precisamente
esse valor de culto como tal que impele a manter a obra de arte em segredo; algu-
mas estátuas de deuses só são acessíveis ao sacerdote, na cella. Algumas virgens
permanecem cobertas durante quase o ano inteiro, algumas esculturas de cate-
drais góticas são invisíveis, quando olhadas do solo. Na medida em que as obras
de arte se emancipam do seu uso ritual, as ocasiões de serem expostas tornam-se
mais numerosas. Um busto pode ser enviado para aqui ou para lá; toraa-se mais
exibível, em conseqüência, do que uma estátua de um deus, com seu lugar delimi-
tado ao interior de um templo. O quadro é mais exibível do que o mosaico ou o
afresco que lhe precederam. E se se admite que, em princípio, a missa foi tão exi-
bível quanto a sinfonia, esta última, entretanto, apareceu num tempo em que se
poderia prever que ela seria mais fácil de apresentar do que a missa.
As diversas técnicas de reprodução reforçaram esse aspecto em tais propor-
ções que, mediante um fenômeno análogo ao produzido nas origens, o desloca-
mento quantitativo entre as duas formas de valor, típicas da obra de arte, transfor-
mou-se numa modificação qualitativa, que afeta a sua própria natureza.
Originariamente, a preponderância absoluta do valor de culto fez — antes de tudo
— um instrumento mágico da obra de arte, a qual só viria a ser — até determi-
nado ponto — reconhecida mais tarde como tal. Do mesmo modo, hoje a prepon-
derância absoluta do seu valor de exibição confere-lhe funções inteiramente
novas, entre as quais aquela de que temos consciência — a função artística —
poderia aparecer como acessória.11 É certo que, a partir do presente, a fotografia
e, mais ainda, o cinema testemunham de modo bastante claro nesse sentido.

trabalhos de Hubert Grimm, sabe-se que a Virgem de São Sisto foi pintada para fins de exposição. Grimm
indagava-se a respeito da funçào da tira de madeira, que no primeiro plano do quadro, servia de apoio a duas
figuras de anjos; perguntava-se o que poderia ter levado um pintor como Rafael a fazer com que o céu pai-
rasse sobre dois suportes. Sua pesquisa revelou-lhe que essa Virgem havia sido encomendada para o sepulta-
mento solene do papa. Essa cerimônia desenrolou-se numa capela lateral à igreja de São Pedro. O quadro es-
tava instalado no fundo da capela, que formava uma espécie de nicho, Rafael representou a Virgem, por
assim dizer, saindo daquele nicho, delimitado por suportes verdes, afim de avançar, sobre as nuvens, em dire-
ção do caixão pontificai. Destinado para os funerais do papa, o quadro de Rafael, antes de tudo, possuía um
valor de exposição. Pouco mais tarde, dependuraram-no sobre o altar-mor da igreja dos monges negros em
Plaisance. O motivo desse exílio foi que o ritual romano proibia a veneração num altar-mor de imagens
expostas no decorrer de funerais. Tal prescrição tirou um pouco do valor comercial desta obra dc Rafael. A
fim de, no entanto, vendê-la pelo seu valor, a Cúria resolveu tolerar tacitamente que os compradores pudes-
sem expô-la num altar-mor. Como não se desejava a repercussão do fato, enviou-se o quadro a uns frades,
numa província afastada.
' ' Em nível diverso, Brecht apresenta considerações análogas: "Desde que a obra de arte se torna mercado-
ria, essa noção (de obra de arte) já não se lhe pode mais ser aplicada; assim sendo, devemos, com prudência
e precaução — mas sem receio — renunciar à noção de obra de arte, caso desejemos preservar sua função
dentro da própria coisa como tal designada. Trata-se de uma fase necessária de ser atravessada sem dissimu
lações; essa virada nào é gratuita, ela conduz a uma transformação fundamental do objeto e que apaga seu
passado a tal ponto, que, caso a nova noção deva reencontrar seu uso — e por que não? — nào evocará mais
qualquer das lembranças vinculadas à sua antiga significação".
A OBRA DE ARTE 19

VI

Com a fotografia, o valor de exibição começa a empurrar o valor de culto —


em todos os sentidos — para segundo plano. Este último, todavia, não cede sem
resistência — sua trincheira final é o rosto humano. Não se trata, de forma algu-
ma, de um acaso se o retrato desempenhou papel central nos primeiros tempos da
fotografia. Dentro do culto da recordação dedicada aos seres queridos, afastados
ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra o seu último refúgio. Na
expressão fugitiva de um rosto de homem, as fotos antigas, por última vez, substi-
tuem a aura. É o que lhes confere essa beleza melancólica, incomparável com
qualquer outra. Mas, desde que o homem está ausente da fotografia, o valor de
exibição sobrepõe-se decididamente ao valor de culto. A importância excepcional
dos clichês, tomados por Atget, no século XIX, nas ruas vazias de Paris, existe
justamente porque ele fixou localmente essa evolução. Declarou-se, com razão,
que ele fotografou essas ruas tal como se fotografa o local de um crime. O local
de um crime também é deserto — o clichê que dele se tira não tem outro objetivo
senão o de descerrar os indícios. Para a evolução, aqueles legados por Atget cons-
tituem verdadeiras peças de convicção. Assim sendo, eles têm uma significação
política secreta. Já exigem serem acolhidos num certo sentido. Não se prestam
mais a uma consideração isolada. Inquietam aquele que os olha: a fim de captá-
los, o espectador prevê que lhe é necessário seguir um determinado caminho. Ao
mesmo tempo, os jornais ilustrados começam a se apresentar a ele como indica-
dores de itinerário. Verdadeiros ou falsos, pouco importa. Com esse gênero de
fotos, a legenda tornou-se, pela primeira vez, necessária. E tais legendas detêm,
evidentemente, um caráter bem diverso do título de um quadro. As orientações
que o texto dos jornais ilustrados impõe àqueles que olham as imagens far-se-ão
logo ainda mais precisas e imperativas mediante o advento do filme, onde, pelo
visto, não se pode captar nenhuma imagem isolada sem se levar em conta a suces-
são de todas as que a precedem.

VII

A polêmica que se desenvolveu no decurso do século XIX, entre os pintores


e os fotógrafos, quanto ao valor respectivo de suas obras, dá-nos hoje a impressão
de responder a um falso problema e de se basear numa confusão. Longe de, nisso,
contestar a sua importância, tal circunstância só faz enfatizá-la. Essa polêmica
traduzia de fato uma perturbação de significado histórico na estrutura do universo
e nenhum dos dois grupos adversários teve consciência dela. Despregada de suas
bases ritualísticas pelas técnicas de reprodução, a arte, em decorrência, não mais
podia manter seus aspectos de independência. Mas o século que assistia a essa
evolução foi incapaz de perceber a alteração funcional que ela gerava para a arte.
E tal conseqüência, até durante longo tempo, escapou ao século XX, que, no
entanto, viu o cinema nascer e se desenvolver.
Gastaram-se vãs sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou não arte,
20 BENJAMIN

porém não se indagou antes se essa própria invenção não transformaria o caráter
geral da arte; os teóricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro. Contudo, os
problemas que a fotografia colocara para a estética tradicional não eram mais que
brincadeiras infantis em comparação com aqueles que o filme iria levantar. Daí,
essa violência cega que caracteriza os primeiros teóricos do cinema. Abel Gance,
por exemplo, compara o filme à escritura hieroglífica:
"Eis-nos, devido a um fabuloso retorno no tempo, de volta sobre o
plano de expressão dos egípcios. . . A linguagem das imagens ainda não
chegou à maturidade porque nao estamos ainda jeitos para elas. Inexiste
ainda atenção suficiente, culto por aquilo que elas exprimem ".12
Séverin Mars escreveu:
"Que arte teve um sonho mais elevado. . . mais poético e, em paralelo,
mais real? Assim considerado, o cinematógrafo tomar-se-ia um meio de
expressão de fato excepcional e em sua atmosfera somente deveriam
mover-se personagens de pensamento superior, nos momentos mais per-
feitos e misteriosos de sua existência ".13
Alexandre Arnoux, por seu turno, ao término de uma fantasia a respeito do
cinema mudo, não teme concluir: "Em suma, todos os termos aleatórios que aca-
bamos de empregar não definem a prece"? 1 4 É bem significativo que o desejo de
conferir ao cinema a dignidade de uma arte obriga seus teóricos a nele introduzir,
através de suas próprias interpretações e com uma inegável temeridade, elementos
de caráter cultural. E, no entanto, na mesma época em que publicavam suas
especulações, já se podiam ver nas telas obras como A Woman of Paris (Casa-
mento ou Luxo?) e The Gold Rush (Em Busca do Ouro). O que não impedia Abel
Gance de se arriscar na comparação com os hieróglifos e Séverin Mars de falar
sobre cinema no tom adequado às pinturas de Fra Angélico! É ainda caracte-
rística hoje em dia a tentativa dos autores especialmente reacionários de inter-
pretar o cinema dentro de uma perspectiva de gênero idêntico e a continuarem a
lhe atribuir, senão um valor exatamente sagrado, pelo menos um sentido sobrena-
tural. A propósito da adaptação cinematográfica de A Midsummer Night's
Dream (Sonho de Uma Noite de Verão) feita por Max Reinhardt, Franz Werfel
afirma que apenas, e sem dúvida, a cópia estéril do mundo exterior, com suas
ruas, seus interiores, suas estações, seus restaurantes, seus automóveis e suas
praias impediram até agora ao cinema ascender ao nível da arte:
"O cinema ainda não apreendeu seu verdadeiro sentido, suas verda-
deiras possibilidades. . . Elas consistem no poder que ele detém intrinse-
camente de exprimir, por meios naturais, e com uma incomparável capa-
cidade de persuasão, o feérico, o maravilhoso, o sobrenatural".^ B

' 2 AbL'l Gance, !oc. cit., p. 100 s.


' 3 Séverin Mars, citado por Abel Gance. toe. cit., p. 100.
1
* Alexandre Arnoux, Cinema, Paris, 1929, p, 28.
1B
Franz Werfel: "Ein Sommernachtstraum". Neues Wiener Journal, nov. 1935.

«BUOTECA MARIO HENR1QO, S I M 0 N s n r


P O M O AVANÇADO
W N l M Ç i o GETULIO VARGAS
A OBRA DE ARTE 21

viu
No teatro é, em definitivo, o ator em pessoa que apresenta, diante do público,
a sua atuação artística; já a do ator de cinema requer a mediação de todo um
mecanismo. Disso, resultam duas conseqüências. O conjunto de aparelhos que
transmite a performance do artista ao público não está obrigado a respeitá-la
integralmente. Sob a direção do fotógrafo, na medida em que se executa o filme,
os aparelhos perfazem tomadas com relação a essa performance. Essas tomadas
sucessivas constituem os materiais com que, em seguida, o montador realizará a
montagem definitiva do filme. Ele contém determinado número de elementos mó-
veis que a câmara levará em consideração, sem falar de dispositivos especiais
como os primeiros planos. A atuação do intérprete encontra-se, assim, submetida
a uma série de testes ópticos. Essa é a primeira das duas conseqüências a gerar a
mediação necessária dos aparelhos entre a performance do ator e o público. A
outra refere-se ao fato de que o intérprete do filme, não apresentando ele próprio
a sua performance, não tem. como o ator do teatro, a possibilidade de adaptar a
sua atuação às reações dos espectadores no decorrer da representação. O público
acha-se, assim, na situação de um perito cujo julgamento não fica perturbado por
qualquer contato pessoal com o intérprete. Só consegue penetrar intropaticamente
no ator se penetrar intropaticamente no aparelho. Toma, assim, a mesma atitude
do aparelho: examina um teste.1 6 Não se trata de atitude à qual se possa submeter
os valores de culto.

IX

No cinema, é menos importante o intérprete apresentar ao público uma outra


personagem do que apresentar-se a si próprio. Pirandello foi um dos primeiros a
sentir essa modificação que se impõe ao ator: a experiência do teste. O fato de se
limitarem a sublinhar o aspecto negativo da coisa não elimina em quase nada o
valor de suas observações que podem ser lidas em seu romance: Si Gira. Menos
ainda o fato de aí se tratar apenas do filme mudo, pois o cinema falado, no tocante
a isso, não traz nenhuma modificação fundamental:
"Os atores de cinema"— escreveu Pirandello —, "sentem-se como se
estivessem no exílio. Exilados não só da cena, mas deles mesmos. Notam

' 6 "O filme. . . propicia (poderia propiciar), até no detalhe, conclusões úteis a respeito das condi"..., huma-
nas. A partir do caráter de um homem não se pode deduzir nenhum dos seus motivos de comportamento, a
vida interior das pessoas nunca é essencial e, raramente, ela consiste no resultado mais importante de suas
condutas" {Brecht, Versuche, Der Dreigroschenoperprozess). Ampliando o campo do teste, o papei du^ apa-
relhos, na representação dos filmes, desempenha, para o indivíduo, uma função análoga àquela do conjunto
de circunstâncias econômicas que aumentaram de modo extraordinário os terrenos onde ele pode ser testado.
Verifica sc, assim, que os lestes de orientação profissional, dia a dia, ganham mais importância. Consistem
num determindo número de decupagens das performances do indivíduo. Tomadas cinematogi úficas, provas
de orientação profissional, ambas se desenvolvem diante de um areópago de técnicos. O diretor de montagem
encontra-se em seu estúdio exatamente na mesma situação que o controlador de lestes, por ocasião do exame
de orientação profissional.
22 BENJAMIN

confusamente, com uma sensação de despeito, o vazio indefinido e até de


decadência, e que os seus corpos são quase volaiilizados, suprimidos e
privados de sua realidade, de sua vida, de sua voz e do ruído que produ-
zem para se deslocar, para se tornarem uma imagem, muda que tremula
um instante na tela e desaparece em silêncio. . . A pequena máquina
atuará diante do público mediante as suas imagens e eles devem se con-
tentar de atuar diante dela ".1 7
Existe aí uma situação passível de ser assim caracterizada: pela primeira vez,
e em decorrência da obra do cinema, o homem deve agir com toda a sua persona-
lidade viva, mas privado da aura. Pois sua aura depende de seu hic et nunc. Ela
nâò sofre nenhuma reprodução. No teatro, a aura de Macbeth é inseparável da
aura do ator que desempenha esse papel tal como a sente o público vivo. A toma-
da no estúdio tem a capacidade peculiar de substituir o público pelo aparelho. A
aura dos intérpretes desaparece necessariamente e, com ela, a das personagens
que eles representam.
Não se deve ficar surpreso que, precisamente um dramaturgo como Piran-
dello, através de sua análise do cinema, atinja de modo involuntário aquilo que é
básico na crise atual do teatro. Nada se opõe mais radicalmente do que o teatro
à obra inteiramente concebida do ponto de vista das técnicas de reprodução, ou
melhor, àquela que, como o cinema, nasceu dessas próprias técnicas. Isso se con-
firma mediante qualquer estudo sério do problema. Desde muito tempo, os bons
conhecedores admitem, como escrevia Arnheim em 1932, que, no cinema, "é
quas-: sempre interpretando o mínimo que se obtém mais efeito... A última esca-
la do progresso consiste em reduzir o ator a um acessório escolhido pelas suas
características. . . e que se utiliza funcionalmente".18 Outra circunstância liga-se
a esta de modo mais estreito: se o ator teatral entra na pele da personagem repre-
sentada por ele, é muito raro que o intérprete do filme possa tomar idêntica atitu-
de. Ele não desempenha o papel ininterruptamente, e sim numa série de

1 1
Luigi Pirandello, On Toume, citado por Léon Pierre-Quint, "Signification du Cinema" (L 'Art Cinémalo-
graphique. II, Paris 1927, pp. 14 s.).
18
Rudolf Arnheim: Film ais Kunsl, Berlim 1932, pp. 176 s. Dentro dessa perspectiva, certas particulari-
dades aparentemente secundárias, que distinguem a direção cinematográfica e o experimento teatral, tornam-
se mais interessantes; entre outras, a tentativa de alguns diretores — Dreyer em sua Jeanne d'Arc — de
suprimir a maquilagem dos atores. Dreyer demorou meses para conseguir reunir os quarenta intérpretes que
deveriam representar os juizes no processo da inquisição. Sua busca parecia a procura de acessórios difíceis
de serem obtidos. Dreyer empreendeu os maiores esforços a fim de evitar que houvesse entre esses intérpretes
a menor semelhança de idade, de estatura e de fisionomia. Quando o ator se torna acessório da cena, não é
raro que. em decorrência, os próprios acessórios desempenhem o papel de atores. Pelo menos não é insólito
que o filme lhes tenha um papel a confiar. Em vez de invocar quaisquer exemplos extraídos da grande massa
daqueles que se apresentam, fixemo-nos em um, especialmente ilustrativo. A presença no palco de um relógio
em funcionamento seria sempre inútil, inexíste lugar no teatro para a sua função que é a de marcar o tempo,
Mesmo numa peça realista, o tempo astronômico estaria em discordância com o tempo cênico. Nessas condi-
ções, é da maior importância para o cinema poder dispor de um relógio a fim de assinalar o tempo real. Esse
é um dos dados que melhor indicam que, numa circunstância determinada, cada acessório pode desempenhar
um papel decisivo. Estamos aqui bem próximos da afirmação de Pudovikin, segundo a qual "o desempenho
de um ator, vinculado a um objeto e dependendo deste. . . sempre constitui um dos mais poderosos recursos
de que dispõe o cinema". O filme, então, é o primeiro meio artístico capaz de mostrar a reciprocidade de ação
entre a matéria e o homem. Nesse sentido, ele pode servir com muita eficácia a um pensamento materialista.
A OBRA DE ARTE 23

seqüências isoladas. Independente das circunstâncias acidentais — localização do


estúdio, afazeres dos atores, que só estão disponíveis a determinadas horas, pro-
blemas de cenografia, etc. — as necessidades elementares da técnica de operar
dissociam, elas próprias, o desempenho do ator numa rapsódia de episódios a par-
tir da qual deve-se, em seguida, realizar a montagem. Pensamos sobretudo na
iluminação cujas instalações obrigam o produtor — a fim de representar uma
ação que se desenrolará na tela de modo rápido e contínuo — a dividir as toma-
das, as quais, algumas vezes, podem durar longas horas. Isso, sem falar de deter-
minadas montagens cujo caso é mais agudo: se o ator deve saltar por uma janela,
faz-se com que ele salte no estúdio, graças às construções artificiais; mas a fuga
que sucede a esse salto talvez só seja rodada, exteriormente, muitas semanas após.
Encontrar-se-á facilmente exemplos ainda mais paradoxais. Acontece, por exem-
plo, que, de acordo com o roteiro, um intérprete deve se sobressaltar, ao ouvir
baterem à porta e que o diretor não esteja satisfeito com o modo pelo qual ele atua
nesta cena. Aproveitará, então, da presença ocasional do mesmo ator no paico de
filmagem e, sem preveni-lo, mandará que dêem um tiro às suas costas. Havendo
a câmara registrado sua reação de susto, só resta introduzir, na montagem do
filme, a imagem obtida de surpresa. Nada demonstra melhor que a arte abando-
nou o terreno da bela aparência, fora do qual acreditou-se muito tempo que ela
ficaria destinada a definhar.

Como notou Pirandello, o intérprete do filme sente-se estranho frente à sua


própria imagem que lhe apresenta a câmara. De início, tal sentimento se parece
com o de todas as pessoas, quando se olham no espelho. Mas, daí em diante, a sua
imagem no espelho separa-se do indivíduo e toma-se transportável. E aonde a
levam? Para o público.19 Trata-se de um fato do qual o ator cinematográfico per-
manece sempre consciente. Diante do aparelho registrador, sabe que — em última
instância — é com o público que tem de se comunicar. Nesse mercado dentro do
qual não vende apenas a sua força de trabalho, mas também a sua pele e seus
cabelos, seu coração e seus rins, quando encerra um determinado trabalho ele fica
nas mesmas condições de qualquer produto fabricado. Esta é, sem dúvida, uma
19
Pode-se constatar, no plano político, uma mudança análoga no modo de exposição e que — de forma
idêntica — depende das técnicas de reprodução. A crise atual das democracias burguesas está vinculada a
uma crise das condições que determinam a própria apresentação dos governantes. As democracias apresen-
tam seus governantes de modo direto.em carne e osso, diante dos deputados. O parlamento constitui o seu pú-
blico. Com a evolução dos aparelhos, que permite a um número indefinido de ouvintes escutar o discurso do
orador, no próprio momento em que ele fala. e de, pouco depois, difundir a sua imagem a uma quantidade
indefinida de espectadores, o essencial se transforma na apresentação do homem político diante do aparelho
em si. Essa nova técnica esvazia os parlamentos, assim como esvazia os teatros. O rádio e o cinema não
modificam apenas a função do ator profissional, mas — de maneira semelhante — a de qualquer um, como
o caso do governante, que se apresente diante do microfone ou da câmara. Levando-se em conta a diferença
de objetivos, o intérprete de um filme e o estadista sofrem transformações paralelas com relação a isso. Elas
conseguem, em determinadas condições sociais, aproximá-los do público. Daí a existência de uma nova sele-
ção, diante do aparelho: os que saem vencedores são a vedete e o ditador.
24 BENJAMIN

das causas da opressão que o domina, diante do aparelho, dessa forma nova de
angústia assinalada por Pirandello. Na medida em que restringe o papel da aura,
o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a "personalidade do ator"; o
culto do astro, que favorece ao capitalismo dos produtores e cuja magia é garan-
tida pela personalidade que, já de há muito, reduziu-se ao encanto corrompido de
seu valor de mercadoria. Enquanto o capitalismo conduz o jogo, o único serviço
que se deve esperar do cinema em favor da revolução é o fato de ele permitir uma
crítica revolucionária das concepções antigas de arte. Não contestamos, entre-
tanto, que, em certos casos particulares, possa ir ainda mais longe e venha a favo-
recer uma crítica revolucionária das relações sociais, quiçá do próprio princípio
da propriedade. Mas isso não traduz o objeto principal do nosso estudo nem a
contribuição essencial da produção cinematográfica na Europa Ocidental.
A técnica do cinema assemelha-se àquela do esporte, no sentido de que todos
os espectadores são, nos dois casos, semi-especialistas. Basta, para isso ficar
convincente, haver escutado algum dia um grupo de jovens vendedores de jornais
que, apoiados sobre suas bicicletas, comentam os resultados de uma competição
de ciclismo. Não é sem razão que os editores de jornais organizam competições
reservadas a seus empregados jovens. Tais corridas despertam um imenso inte-
resse entre aqueles que delas participam, pois o vencedor tem a oportunidade de
deixar a venda de jornais pela situação de corredor profissional. De modo idênti-
co, graças aos filmes de atualidades, qualquer pessoa tem a sua chance de apare-
cer na tela. Pode ser mesmo que venha a ocasião de aparecer numa verdadeira
obra de arte, como Tri Pesni o Leninie (Três Cânticos a Lenin), de Vertov, ou
numa fita de Joris Ivens. Não há ninguém hoje em dia afastado da pretensão de
ser filmado e, a firn de melhor entender essa pretensão, vale considerar a situação
atual dos escritores.
Durante séculos, um pequeno número de escritores encontrava-se em confronto
com vários milhares de leitores. No fim do século passado, a situação mudou.
Mediante a ampliação da imprensa, que colocava sempre à disposição do público
novos órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais, regionais, viu-se um
número crescente de leitores — de início, ocasionalmente — desinteressar-se dos
escritores. A coisa começou quando os jornais abriram suas colunas a um "cor-
reio dos leitores" e, daí em diante, inexiste hoje em dia qualquer europeu, seja
qual for a sua ocupação, que, em princípio, não tenha a garantia de uma tribuna
para narrar a sua experiência profissional, expor suas queixas, publicar uma
reportagem ou algum estudo do mesmo gênero. Entre o autor e o público, a dife-
rença, portanto, está em vias de se tornar cada vez menos fundamental. Ela é ape-
nas funcional e pode variar segundo as circunstâncias. Com a especialização cres-
cente do trabalho, cada indivíduo, mal ou bem, está fadado a se tornar um perito
em sua matéria, seja ela de somenos importância; e tal qualificação confere-lhe
uma dada autoridade. Na União Soviética, até o trabalho tem voz; e a sua repre-
sentação verbal constitui uma parte do poder requisitada pelo seu próprio exercí-
cio. A competência literária não mais se baseia sobre formação especializada,
A OBRA DE ARTE 25

mas sobre uma multiplicidade de técnicas e, assim, ela se transforma num bem
comum. 20
Tudo isso aplica-se ao cinema sem reservas, onde os deslocamentos de pers-
pectiva, que exigiram séculos no campo literário, realizaram-se em dez anos. Pois,
na prática cinematográfica — sobretudo na Rússia — a evolução já está parcial-
mente consumada. Inúmeros intérpretes do cinema soviético não são mais atores
dentro da acepção da palavra, e sim pessoas que desempenham o seu próprio
papel, mormente em sua atividade profissional. Na Europa Ocidental, a explora-
ção capitalista da indústria cinematográfica recusa-se a satisfazer as pretensões
do homem contemporâneo de ver a sua imagem reproduzida. Dentro dessas
condições, os produtores de filmes têm interesse em estimular a atenção das mas-
sas para representações ilusórias e espetáculos equívocos.

XI

A confecção de um filme, sobretudo quando é falado, propicia um espetáculo


impossível de se imaginar antigamente. Representa um conjunto de atividades
impossível de ser encarado sob qualquer perspectiva, sem que se imponham à
vista todas as espécies de elementos estranhos ao desenrolar da ação: máquinas de
filmar, aparelhos de iluminação, estado-maior de assistentes, etc. (para que o
espectador abstraísse isso, era necessário que o seu olho se confundisse com a
objetiva da câmara). Mais do que qualquer outra, essa circunstância torna superfi-
ciais e sem importância todas as analogias que se poderiam erguer entre a filma-
gem de uma cena em estúdio e a sua execução no teatro. Por princípio, o teatro
conhece o local onde basta se situar a fim de que o espetáculo funcione. Nada
20
O caráter privilegiado das técnicas correspondentes fica assim, arruinado. Aldous Huxley escreveu: "Os
progressos técnicos. . . conduziram à vulgarização. . . As técnicas de reprodução e o uso das rotativas dos
jornais permitiram uma multiplicação da imagem e da escrita que ultrapassa todas as previsões. A instrução
obrigatória e o relativo aumento de niveis de vida criaram um público muito grande, capaz de ler e se valer
da leitura e das imagens. A fim de satisfazer a tal demanda, foi necessário organizar uma indústria impor-
tante. Mas o dom artístico é uma coisa rara; resulta disso. . . que por todos os lados a produção artística, em
sua grande parte, foi de pouco valor. Mas, hoje, a percçntagem de fracassos.no conjunto da produção estéti-
ca, ainda é maior do que nunca. . . Trata-se, aí, de um simples problema aritmético. No decorrer do século
passado, a população da Europa Ocidental cresceu além do dobro, porém, no que é possível calcular o mate-
rial de leimra e de imagens aumentou, no mínimo, de um para dez, talvez, de um para cinqüenta ou cem. Se
se admite que uma população de x milhões de habitantes comporta um número n de pessoas dotadas artisti-
camente, os talentos serão de 2n para uma população de 2x milhões. Pode-se assim resumir a situação: onde,
há cem anos, publicava-se uma página impressa, com lexto ou imagens, publicam-se, hoje, vinte, senão cem.
Onde. por outro lado. existia um talentoarnsnco, existem, hoje, dois. Admito que. em conseqüência do ensino
obrigatório, um grande número de talentos virtuais, outrora impedidos de desenvolver os seus dons, pode hoje
se expressar. Suponhamos, por conseguinte,. . . que hoje existam três ou mesmo quatro talentos para cada
um de outrora. De qualquer forma, o consumo de textos e de imagens superou a produção normal de escrito-
res e desenhistas bem dotados. Ocorre o mesmo no terreno dos sons. A prosperidade, o gramofone e o rádio
criaram um público cujo consumo de bens audíveis está desproporcional com O crescimento da população e.
em decorrência, com o número de músicas de talento. Desse modo, em todas as artes, seja em números abso-
lutos ou em valores relativos, a produção de fracassos é mais imensa do que outrora; e assim o será enquanto
as pessoas continuarem a consumir, desmedidamente, textos, imagens e discos". É claro que o ponto dc vista
aqui expresso nada tem de progressista.
26 BENJAMIN

disso existe num estúdio cinematográfico. O filme só atua em segundo grau, uma
vez que se procede à montagem das seqüências. Em outras palavras: o aparelho,
no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de confe-
rir-lhe a sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui
— dentro dela — o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos
peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias seqüên-
cias de imagens do mesmo tipo. A realidade despojada do que lhe acrescenta o
aparelho tornou-se aqui a mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreen-
são imediata da realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul.
Essa situação do cinema, opondo-se nitidamente à do teatro, leva a conclu-
sões ainda mais fecundas, caso a comparemos com a da pintura. Cabe aqui inda-
gar qual é a relação entre o operador e o pintor. A fim de responder, permita-se-
nos recorrer a uma comparação esclarecedora, extraída da própria idéia de
operação, tal como é empregada na cirurgia. No mundo operatório, o cirurgião e
o curandeiro ocupam os dois pólos opostos. O modo de agir do curandeiro que
cura um doente mediante a atuação das mãos, difere daquele do cirurgião que pra-
tica uma intervenção. O curandeiro conserva a distância natural existente entre
ele e o paciente, ou — melhor dizendo — se ele a diminui um pouco — devido à
atuação das mãos — aumenta-a bastante por causa de sua autoridade. O cirur-
gião, pelo contrário, a diminui consideravelmente, porque intervém no interior do
doente, mas só aumenta-a um pouco, graças à prudência com que a sua mão se
move pelo corpo do paciente. Em suma: ao contrário do curandeiro (do qual res-
tam alguns traços no prático), o cirurgião, no momento decisivo, renuncia a se
comportar face ao doente de acordo com uma relação de homem a homem; é
sobretudo através de modo operatório que ele penetra no doente. Entre o pintor e
o fumador encontramos a mesma relação existente entre o curandeiro e o cirur-
gião. O primeiro, pintando, observa uma distância natural entre a realidade dada
e ele próprio; o filmador penetra em profundidade na própria estrutura do dado. 2 q
As imagens que cada um obtém diferem extraordinariamente. A do pintor é glo-
bal, a do filmador divide-se num grande número de partes, onde cada qual obede-
ce a suas leis próprias. Para o homem hodierno, a imagem do real fornecida pelo
cinema é infinitamente mais significativa, pois se ela atinge esse aspecto das coi-
sas que escapa a qualquer instrumento — o que se trata de exigência legítima de
toda obra de arte — ela só o consegue exatamente porque utiliza instrumentos
destinados a penetrar, do modo mais intensivo, no coração da realidade.

21
As dificuldades do filmador são, com efeito,comparáveis àquelas do cirurgião. Caracterizam os movimen-
tos de mão cuja técnica pertence especificamente ao âmbito do gesto. Luc Durtain fala daqueles que exigem,
na cirurgia, algumas invenções difíceis. Toma, por exemplo, um caso específico, extraído da otorrinolarin-
gologia, chamado de método perspectivo endonasal. Refere-se igualmente às verdadeiras acrobacias impostas
ao cirurgião da laringe, pelo fato de ser obrigado a utilizar um espelho, onde a imagem se lhe apresenta ao
inverso. Assinala também o trabalho de precisão requerido pela cirurgia do ouvido, que é comparável ao de
um relojoeiro. O cirurgião deve exercitar os seus músculos até um grau extremo de precisão acrobática, quan-
do vai consertar ou salvar o corpo humano. Basta pensar, lembra-nos Durtain, na operação de catarata, onde
o aço do bisturi deve porfíar com tecidos quase fluidos, ou ainda nas importantes intervenções na região
inguinal (laparatomia).
A OBRA DE ARTE 27

XII

As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da


massa com relação à arte. Muito retrógrada face a um Picasso, essa massa torna-
se bastante progressista diante de um Chaplin, por exemplo. O caráter de um
comportamento progressista cinge-se a que o prazer do espectador e a correspon-
dente experiência vivida ligam-se, de maneira direta e íntima, à atitude do aficio-
nado. Essa ligação tem uma determinada importância social. Na medida em que
diminui a significação social de uma arte, assiste-se, no público, a um divórcio
crescente entre o espírito crítico e o sentimento de fruição. Desfruta-se do que é
convencional, sem criticá-lo; o que é verdadeiramente novo, critica-se a contra-
gosto. No cinema, o público não separa a crítica da fruição. Mais do que em qual-
quer outra parte, o elemento decisivo aqui é que as reações individuais, cujo con-
junto constitui a reação maciça do público, ficam determinadas desde o começo
pela virtualidade imediata de seu caráter coletivo. Ao mesmo tempo que se mani-
festam, essas reações se controlam mutuamente. Ainda aqui o contraste com a
pintura é bem significativo. Os quadros nunca pretenderam ser contemplados por
mais de um espectador ou, então, por pequeno número deles. O fato de que, a par-
tir do século XIX, tiveram a permissão de serem mostrados a um público conside-
rável corresponde a um primeiro sintoma dessa crise não apenas desfechada pela
invenção da fotografia, mas, de modo relativamente independente de tal desco-
berta, pela intenção da obra de arte de se endereçar às massas.
Ora, é exatamente contrário à própria essência da pintura que ela se possa
oferecer a uma receptividade coletiva, como sempre foi o caso da arquitetura e,
durante algum tempo, da poesia épica, e como é o caso atual do cinema. Ainda
que não se possa quase extrair qualquer conclusão no tocante ao papel social da
pintura, é certo que no momento paira um sério inconveniente pelo qual a pintura,
em virtude de circunstâncias especiais, e de modo que contradiz sua natureza até
certo ponto, fica diretamente confrontada com as massas. Nas igrejas e claustros
da Idade Média ou nas cortes dos príncipes até por volta dos fins do século XVIIl,
a acolhida feita às pinturas não tinha nada de semelhante; elas só se transmitiam
através de um grande número de intermediários hierarquizados. A mudança que
interveio com relação a isso traduz o conflito peculiar, dentro do qual a pintura se
encontra engajada, devido às técnicas de reprodução aplicadas à imagem.
Poder-se-ia tentar apresentá-la às massas nos museus enas exposições, porém as
massas nào poderiam, elas mesmas, nem organizar nem controlar a sua própria
acolhida. 22 Por isso, exatamente, o mesmo público que em presença de um filme
burlesco reage de maneira progressista viria a acolher o surrealismo com espírito
reacionário.

22
Esse modo de considerar as coisas pode parecer grosseiro. Mas, como o demonstra o exemplo do grande
teórico Leonardo Da Vinci, observações dessa natureza podem ser adequadas a seu tempo. Comparando mú-
sica e pintura, diz Leonardo: "A superioridade da pimura sobre a música existe pelo fato de que, a partir do
momento em que ela é convocada para viver, inexiste motivo para que venha a morrer, como ao contrário.
é o caso da pobre música... A música se evapora depois de ser tocada; perenizada pelo uso do verniz, a pin-
tura subsiste".
28 BENJAMIN

XIII

O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apre-
senta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele
representa para si o mundo que o rodeia. Um exame da psicologia da performance
mostrou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Um olhar sobre
a psicanálise nos fornecerá um outro exemplo. De fato, o cinema enriqueceu a
nossa atenção através de métodos que vêm esclarecer a análise freudiana. Há cin-
qüenta anos, não se prestava quase atenção a um lapso ocorrido no desenrolar de
uma conversa. A capacidade desse lapso de, num só lance, abrir perspectivas pro-
fundas sobre uma conversa que parecia decorrer do modo mais normal, era enca-
rada, talvez, como uma simples anomalia. Porém, depois de Psychopathologie des
Allagslebens (Psicopatologia da Vida Cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao
mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades,
até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas. Alar-
gando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido
visual como no auditivo, o cinema acarretou, em conseqüência, um aprofunda-
mento da percepção. E é em decorrência disso que as suas realizações podem ser
analisadas de forma bem mais exata e com número bem maior de perspectivas do
que aquelas oferecidas pelo teatro ou a pintura. Com relação à pintura, a superio-
ridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo,
dos filmes e pelo fato de fornecer ele, assim, um levantamento da realidade incom-
paravelmente mais preciso. Com relação ao teatro, porque é capaz de isolar nú-
mero bem maior de elementos constituintes. Esse fato — e é daí que provém a sua
importância capital — tende a favorecer a mútua compenetração da arte e da
ciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamente ajustada
ao âmago de determinada situação (como o músculo no corpo), não se pode esti-
pular se a coesão refere-se principalmente ao seu valor artístico, ou à exploração
científica passível de ser concretizada. Graças ao cinema — e aí está uma das
suas funções revolucionárias — pode-se reconhecer, doravante, a identidade entre
o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde
divergentes.23
Procedendo ao levantamento das realidades através de.seus primeiros pla-
nos que também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perseru-
tando as ambiências banais sob a direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de
um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida,
consegue, de outro, abrir imenso campo de ação do qual não suspeitávamos. Os
23
Com relação a isso, a pintura da Renascença fomece-nos analogia bem instrutiva. Nela Lambem encon
tramos uma arte, cujo desenvolvimento e importância incomparáveis baseiam-se, em grande parle, sobre o
fato de que cia integra um grande número de ciências novas, ou, no mínimo, novos dados extraídos dessas
ciências. Reivindica a anatomia e a perspectiva, as matemáticas, a meteorologia e a teoria das cores. Como
Valéry fez observar, nada está mais distante de nós do que essa surpreendente pretensão de um Leonardo, que
via na pintura a meta suprema e a mais elevada demonstração de saber, pois estava convencido de que ela
requeria a ciência universal e ele próprio não recuava diante dc uma análise teórica, cuja precisão e profundi-
dade desconcertam-nos hoje em dia.
A OBRA DE ARTE 29

bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobilia-


dos, as estações e usinas pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação.
Então veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu
esse universo concentracionário, se bem que agora abandonados no meio dos seus
restos projetados ao longe, passemos a empreender viagens aventurosas. Graças
ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que
assume novas dimensões. Tal como o engrandeci men to das coisas — cujo obje-
tivo não é apenas tornar mais claro aquilo que sem ele seria confuso, mas de des-
vendar novas estruturas da matéria — o ralenti não confere simplesmente relevo
às formas do movimento já conhecidas por nós, mas, sim, descobre nelas outras
formas, totalmente desconhecidas, "que não representam de modo algum o retar-
damento de movimentos rápidos e geram, mais do que isso, o efeito de movimen-
tos escorregadios, aéreos e supraterrestres".2 *
Fica bem claro, em conseqüência, que a natureza que fala à câmara é
completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o es-
paço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é incons-
ciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos
homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em
que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um
fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente
entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introdu-
zidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse
terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergír e
de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões do campo e suas acele-
rações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a
experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a expe-
riência do inconsciente instintivo.

XIV

Sempre foi uma das tarefas essenciais da arte a de suscitar determinada inda-
gação num tempo ainda não maduro para que se recebesse plena resposta.2 s A

2
"Rudolf Arnheim, loc. cit., p. 138.
25
Segundo André Breton, a obra de arte só tem valor na medida em que agita os reflexos do futuro. De fato,
toda forma de arte acabada situa-se no cruzamento de três linhas evolutivas. Em primeiro lugar, ela elabora
a técnica que a si própria convém. Ames do cinema, havia essas coleções de fotos que, sob a pressão do pole-
gar, sucediam-se rapidamente diante dos olhos e que conferiam a visão de uma luta de boxe ou de um jogo
dc tênis; vendiam-se nas lojas uns brinquedos automáticos, onde o desenrolar das imagens era provocado
pela rotação de uma manivela. Em segundo lugar, ela elabora as formas de arte tradicionais, nos diversos
estágios de seu desenvolvimento, com o objetivo de aplicá-las nos efeitos que, em seguida, serão desembara-
çadamente visados pela forma nova dc arte. Antes de o filme ser aceito, os dadaístas. através de suas manifes-
tações, procuravam introduzir junto ao público um movimento, o qual Chaplin, logo após. viria a ensejar de
modo mais natural. Em terceiro lugar, ela prepara, de maneira amiúde invisível, as modificações sociais,
transformando os métodos de acolhida a fim de adaptá-los às formas novas de arce. Antes de o cinema haver
começado a formar o seu público, já outro público se reunia no Panorama Imperial, a fim de ver as imagens
(que já haviam deixado de ser imóveis). Este público achava-se defronte de um biombo, onde estercoscopios
estavam instalados, cada um deles voltado para um dos espectadores. Diante desses aparelhos surgiam
30 BENJAMIN

história de cada forma de arte comporta épocas críticas, onde ela tende a produzir
efeitos que só podem ser livremente obtidos em decorrência de modificação do
nível técnico, quer dizer, mediante uma nova forma de arte. Daí porque as extra-
vagâncias e exageros que manifestam nos períodos de suposta decadência nascem,
na verdade, daquilo que constitui, no âmago da arte, o mais rico centro de forças.
Ainda bem recentemente vimos os dadaístas a se comprazerem com manifesta-
ções bárbaras. Só hoje compreendemos o que visava esse esforço: o dadaísmo
buscava produzir, através da pintura (ou da literatura), os próprios efeitos que o
público hoje solicita do cinema.
Cada vez que surge uma indagação fundamentalmente nova abrindo o futuro
aos nossos olhos, ela ultrapassa seu propósito. Isso foi tão verdadeiro no caso dos
dadaístas que, em favor das intenções — das quais não estavam, evidentemente,
tão conscientes dentro da forma que descrevemos — eles sacrificaram os valores
comerciais que assumiram, desde então, importância tão grande para o cinema.
Os dadaístas davam muito menos valor à utilização mercantil de suas obras do
que ao fato de que não se podia fazer delas objetos de contemplação. Um de seus
métodos mais habituais para atingir esse objeto foi o aviltamento sistemático da
própria matéria de suas obras. Seus poemas são saladas de palavras, contêm
obscenidades e tudo que se possa imaginar de detritos verbais. Igualmente os seus
quadros, sobre os quais eles colavam botões e bilhetes de passagens de ônibus,
trens, etc. Chegaram ao ponto de privar radicalmente de qualquer aura as produ-
ções às quais infligiam o estigma da reprodução. Diante de um quadro de Arp ou
de um poema de Stramm, não se tem — como diante de uma tela de Derain ou
um poema de Rilke — o lazer da concentração para fazer um julgamento. Para
uma burguesia degenerada, o reentrar em si mesmo tornou-se uma escola de
comportamento associai; com o dadaísmo, a diversão tornou-se um exercício de
comportamento social.2 6 Suas manifestações, com efeito, produziram uma diver-
gência muito violenta, fazendo-se da obra de arte um objeto de escândalo. O
intento era, antes de tudo, chocar a opinião pública. De espetáculo atraente para
o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadaís-
mo, transformou-se em choque. Ela feria o espectador ou o ouvinte; adquiriu
poder traumatizante. E, dentro disso, favoreceu o gosto pelo cinema, que também
possui um caráter de diversionismo pelos choques provocados no espectador devi-
do às mudanças de lugares e de ambientes. Pensar em toda a diferença que separa

automaticamente imagens sucessivas que se demoravam um instante e logo davam lugar a outra seguinte. Foi
ainda com meios análogos que Edison exibiu a pequeno grupo de espectadores a primeira película filmada
(antes que se descobrisse a tela e a projeção): o público olhava com estupor o aparelho, dentro do qual se
desenrolavam as imagens. — A princípio, o espetáculo apresentado no Panorama Imperial traduzia de
maneira especialmente clara uma dialética do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema permitir uma
visão coletiva das imagens, graças a esse sistema de estereoscópio. logo caído de moda. o que ainda prevale-
ceu foi a visão individual.com a mesma força da contemplação da imagem divina feita por um padre numa
cela.
26
O arquétipo teológico desse auio-recoíhimento consiste na consciência do estar a sós com Deus. Nas
grandes épocas da burguesia, essa consciência tornou o homem suficientemente fone para sacudir a tutela da
Igreja; na época dc sua decadência, a mesma consciência deveria favorecer, quanto ao indivíduo, uma tendên-
cia secreta de privar a comunidade das forças que ele aciona em sua relação pessoal com seu Deus.
A OBRA DE ARTE 31

a tela na qual se desenrola o filme e a tela onde se fixa a pintura! A pintura convi-
da à contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam à associação de
idéias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede
lugar a outra e o olho jamais consegue se fixar. Mesmo detestando o cinema e
nada entendendo do seu significado, Duhamel percebeu bem vários aspectos de
sua estrutura e enfatiza isto quando escreve: "Já não posso meditar no que vejo.
As imagens em movimento substituem os meus próprios pensamentos". 27 De
fato, a sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do especta-
dor. Daí é que vem a sua influência traumatizante; como tudo que choca, o filme
somente pode ser apreendido mediante um esforço maior de atenção. 28 Mediante
a sua técnica, o cinema libertou o efeito de choque físico daquela ganga moral,
onde o dadaísmo o havia encerrado de certa forma. 29

XV

A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de


atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O cresci-
mento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participa-
ção. O observador não deve se iludir com o fato de tal participação surgir, a prin-
cípio, sob forma depreciada. Muitos, no entanto, são aqueles que, não havendo
ainda ultrapassado esse aspecto superficial das coisas, denunciaram-na vigorosa-
mente. As críticas de Duhamel são as mais radicais. O que ele conserva do filme
é o modo de participação que o cinema desperta nos espectadores. Assim diz:
"Trata-se de uma diversão de párias, um passatempo para analfabetos,
de pessoas miseráveis, aturdidas por seu trabalho e suas preocupa-
ções. . . um espetáculo que não requer nenhum esforço, que não pressu-
põe nenhuma implicação de idéias, não levanta nenhuma indagação, que
não aborda seriamente qualquer problema, não ilumina paixão alguma,
não desperta nenhuma luz no fundo dos corações, que não excita qual-
quer esperança a não ser aquela, ridícula de, um dia, virar star em Los
Angeles".30
17
Duhamel, Scenes dc la Vie Future, Paris, 1930, p. 52.
28
O cinema é a forma de arte que corresponde à vida cada vez mais perigosa, destinada ao homem de hoje.
A necessidade de se submeter a efeitos de choque constitui uma adaptação do homem aos perigos que o
ameaçam. O cinema eqüivale a modificações profundas no aparelho perceptivo, aquelas mesmas que vivem
atualmente, no curso da existência privada, o primeiro transeunte surgido numa rua de grande cidade e, no
curso da história, qualquer cidadão de um Estado contemporâneo.
29
Se o cinema sc descerra, à luz do dadaísmo, também o faz de modo substancial, à luz do cubismo e do
futurismo. Esses dois movimentos aparecem como tentativas insuficientes da arte a fim dc assimilar, à manei-
ra deles, a intrusão dos aparelhos dentro da realidade. Contrariamente ao cinema, eles não utilizaram esses
aparelhos para conferir uma representação artística do real: ambos, sobretudo, aliaram a representação do
real àquela da aparelhagem. Assim se explica o papel preponderante que desempenham, no cubismo o
pressentimento de uma construção dessa aparelhagem, repousando sobre um efeito ótico e. no futurismo, o
pressentimento do efeito dessa aparelhagem, tal como o cinema os valorizaria, graças ao projetar rápido da
película.
30
Duhamel, loc. cit., p. 58.
32 BENJAMIN

Vê-se bem que reencontramos, no fim de contas, a velha recriminação: as


massas procuram a diversão, mas a arte exige a concentração. Trata-se de um
lugar comum; resta perguntar se ele oferece uma boa perspectiva para se entender
o cinema. Necessário, assim, esmiuçar o assunto. A fim de traduzir a oposição
entre diversão e concentração, poder-se-ia dizer isto: aquele que se concentra,
diante de uma obra de arte, mergulha dentro dela, penetra-a como aquele pintor
chinês cuja lenda narra haver-se perdido dentro da paisagem que acabara de pin-
tar. Pelo contrário, no caso da diversão, é a obra de arte que penetra na massa.
Nada de mais significativo com relação a isso do que um edifício. Em todos os
tempos, a arquitetura nos apresentou modelos de obra de arte que só são acolhi-
dos pela diversão coletiva. As leis de tal acolhida são das mais ricas em
ensinamentos.
Desde a pré-história, os homens são construtores. Muitas formas de arte nas-
ceram e, em seguida, desapareceram. A tragédia surgiu com os gregos a fim de
morrer com eles e apenas reaparecer longos séculos mais tarde, sob a forma de
"regras". O poema épico, que data da juventude dos povos atuais, desapareceu na
Europa pelo fim da Renascença. O quadro nasceu na Idade Média e não há nada
a garantir a sua duração infinita. Mas a necessidade que têm os homens de morar
é permanente. A arquitetura nunca parou. A sua história é mais longa do que a de
qualquer outra arte e não se deve perder de vista o seu modo de ação, quando se
deseja tomar conhecimento da relação que liga as massas à obra de arte. Existem
duas maneiras de acolher um edifício: pode-se utilizá-lo e pode-se fitá-lo. Em ter-
mos mais precisos, a acolhida pode ser tátil ou visual. Desconhece-se totalmente
o sentido dessa acolhida, se não se toma em consideração, por exemplo, a atitude
concentrada adotada pela maioria dos viajantes, quando visitam monumentos cé-
lebres. No âmbito tátil, nada existe, deveras, que corresponda ao que é a contem-
plação no âmbito visual. A acolhida tátil faz-se menos pela atenção do que pelo
hábito. No tocante à arquitetura, é esse hábito que, em larga escala, determina
igualmente a acolhida visual. Esta última, de saída, consiste muito menos num
esforço de atenção do que numa tomada de consciência acessória. Porém, em cer-
tas circunstâncias, essa espécie de acolhida ganhou força de norma. As tarefas
que, com efeito, se impõem aos órgãos receptivos do homem, na ocasião das gran-
des conjunturas da história, não se consumam de modo algum na esteira visual,
em suma, pelo modo de contemplação, A fim de se chegar a termo, pouco a
pouco, é preciso recorrer à acolhida tátil, ao hábito.
Mas o homem que se diverte pode também assimilar hábitos; diga-se mais: é
claro que ele não pode efetuar determinadas atribuições, num estado de distração,
a não ser que elas se lhe tenham tornado habituais. Por essa espécie de diverti-
mento, pelo qual ela tem o objetivo de nos instigar, a arte nos confirma tacita-
mente que o nosso modo de percepção está hoje apto a responder a novas tarefas.
E como, nào obstante, o indivíduo alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a
arte se entrega àquelas que são mais difíceis e importantes, desde que possa mobi-
lizar as massas. É o que ela faz agora, graças ao cinema. Essa forma de acolhida
pela seara da diversão, cada vez mais sensível nos dias de hoje, em todos os cam-
A OBRA DE ARTE 33

pos da arte, e que é também sintoma de modificações importantes quanto à


maneira de percepção, encontrou, no cinema, o seu melhor terreno de experiência.
Através do seu efeito de choque, o filme corresponde a essa forma de acolhida. Se
ele deixa em segundo plano o valor de culto da arte, não é apenas porque trans-
forma cada espectador em aficionado, mas porque a atitude desse aficionado não
é produto de nenhum esforço de atenção. O público das salas obscuras ê bem um
examinador, porém um examinador que se distrai.

Epílogo

A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importância cada


vez maior das massas constituem dois aspectos do mesmo processo histórico. O
fascismo queria organizar as massas, sem mexer no regime da propriedade, o
qual, todavia, elas tendem a rejeitar. Ele pensava solucionar o problema, permi-
tindo às massas, não certamente fazer valer seus direitos, mas exprimi-los.31 As
massas têm o direito de exigir uma transformação do regime da propriedade; o
fascismo quer permitir-lhes que se exprimam, porém conservando o regime. O
resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política. A essa
violência que se faz às massas, quando se lhes impõe o culto de um chefe, corres-
ponde a violência sofrida por uma aparelhagem, quando a colocam a serviço
dessa religião.
Todos os esforços para estetizar a política culminam num só ponto: a guerra.
A guerra, e só ela, permite fornecer um motivo para os maiores movimentos de
massa, sem, assim, tocar-se no estatuto da propriedade. Eis como as coisas podem
ser traduzidas em linguagem política. Quanto à linguagem técnica, poderiam ser
assim formuladas: só a guerra permite mobiiizar todos os recursos técnicos da
época presente, sem em nada mudar o regime da propriedade. Evidente que o fas-
cismo, em sua glorificação da guerra, não usa tais argumentos. É, no entanto, bas-
tante instrutivo lançar os olhos sobre os textos que servem a essa glorificação. No
manifesto de Marinetti, sobre a guerra da Etiópia, lemos de fato:
"Decorridos vinte e sete anos, nós, futuristas, erguemo-nos contra a
idéia de que a guerra seria antiestêtica. . . Daí porque. . . afirmamos
isto: a guerra é bela porque, graças às máscaras contra gás, ao microfone
terrífico, aos lança-chamas e aos pequenos carros de assalto, ela funda a
31
Deve-se ressaltar aqui — com referência em especial aos jornais cinematográficos, cujo valor de propa-
ganda nào pode ser subestimado — uma circunstancia técnica de particular importância. A reprodução em
massa, corresponde efetivamente uma reprodução de massas. Nos grandes cortejos de festas, nos meetings
gigantescos, nas manifestações desportivas, que conjugam massas inteiras, na guerra enfim, quer dizer, em
todas as ocasiões onde intervém a câmara, hoje em dia, a massa pode ver a si mesma, cara a cara. Esse pro-
cesso, do qual é desnecessário enfatizar a importância, está ligado estreitamente com o desenvolvimento das
técnicas de reprodução e de gravação. De modo geral, o aparelho capta os movimentos de massa melhor do
que o olho humano. Os quadros de centenas de milhares de homens só são bem apreendidos através de relan-
ces. E se o olho humano pode apreendê-los tão bem quanto o aparelho, não pode ampliar, como o faz este
último, a imagem que se lhe oferece. Em outras palavras: os movimentos de massa, e nisto também a guerra,
representam uma forma de comportamento humano que corresponde, de forma totalmente especial, à técnica
dos aparelhos.
34 BENJAMIN

soberania do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela porque


ela concretiza, pela primeira vez, o sonho de um homem de corpo metáli-
co. A guerra é bela porque ela enriquece um prado com flores de orquí-
deas flamejantes, que são as metralhadoras. A guerra é bela porque ela
congrega, afim de fazer disso uma sinfonia, as fuzilarias, os canhoneios,
o cessar de fogo, os perfumes e os odores de decomposição. A guerra é
bela porque ela cria novas arquiteturas, como aquelas dos grandes carros,
das esquadrilhas aéreas deforma geométrica, das espirais defumo subin-
do das cidades incendiadas e ainda muitas outras. . . Escritores e artistas
futuristas. . . lembrai-vos desses princípios fundamentais de uma estética
de guerra, afim de que seja esclarecido. . . o vosso combate por uma
nova poesia e uma nova escultura!"
Esse manifesto tem a vantagem de dizer claro o que quer. O próprio modo
pelo qual o problema ê colocado dá ao dialético o direito de acolhê-lo. Eis como
se pode representar a estética da guerra, hoje em dia: já que a utilização normal
das forças produtivas está paralisada pelo regime da propriedade, o desenvolvi-
mento dos meios técnicos, do ritmo das fontes de energia, voltam-se para um uso
contra a natureza. Verifica-se através da guerra que, devido às destruições por ela
empreendidas, a sociedade não estava suficientemente madura para fazer, da téc-
nica, o seu órgão; que a técnica, por seu turno, não estava suficientemente evo-
luída a fim de dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista, com
as suas características de atrocidade, tem, como fator determinante, a decalagem
entre a existência de meios poderosos de produção e a insuficiência do seu uso
para fins produtivos (em outras palavras, a miséria e a falta de mercadorias). A
guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama, sob a forma de "mate-
rial humano", aquilo que a sociedade lhe tirou como matéria natural. Em vez de
canalizar os rios, ela conduz a onda humana ao leito de suas fossas; em vez de
usar seus aviões para semear a terra, ela espalha suas bombas incendiárias sobre
as cidades e, mediante a guerra dos gases, encontrou um novo meio de acabar
com a aura.
Fiat ars, pereat mundus, esta é a palavra de ordem do fascismo, que, como
reconhecia Marinetti, espera da guerra a satisfação artística de uma percepção
sensível modificada pela técnica. Aí está, evidentemente, a realização perfeita da
arte pela arte. Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos
deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se
suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria
destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetizaçao da
política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a
arte.
Títulos originais:

Textos de W. Benjamin: Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen


Reproduzierbarkeit — Ueber einige Motiven bei Baudelaire — Der
Erzaehler — Der Surrealismus. Textos de M. Horkheimer: Tradizionelle
und kritische Theorie — Philosophíe und kritische Theorie. — M. Horkheimer e
T. Adorno: Begriffder Aufklaerung. Textos de T. Adorno: Ueber
den Fetischcharakter in der Musik und die Regression des
Hoerens —- Rede ueber Lyrik und Gesellschaft — Der Positivismusstreit
in der deutschen Soziologie: Einleitung. — Textos de
j . Habermas: Analytische Wissenschaftslehre und Dialektik — Erkenntnis und
Interesse — Techtiik und Wissenschaft ais "Ideologie".

I.a edição -agosto 1975

© - Copyright desta edição, 1975, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Textos publicados com licença de: Suhrkamp Veriag. Frankfurt
am Main (Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit;
Ueber einige Motiven bet Baudelaire; Der Erzaehler; Der
Surrealismus; Rede ueber Lyrik und Gesellschaft; Erkenntnis und Interesse;
Technik und Wissenschaft ais "Ideologie");
S. Fischer Veriag, Frankfurt am Main (Begriff der Aujklaerung; Tradizionelle
und kritische Theorie; Philosophic und kritische Theorie); Hermann
Luchterhand Veriag, Darmstadt und Neuwíed (Analytische
Wissenschajhlehre und Dialektik; Einleitung); Vandenhoeck und Ruprccht, Goettingen
(Ueber den Fetischcharakter in der Musik und die R egression der Hoerens).
Tradução publicada com licença da Editora Civilização Brasileira,
Rio de janeiro (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução).
Direitos exclusivos sobre as demais traduções constantes
deste volume, 1975, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.

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