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CAPITULO IV A FUNKIFICACAO DO RIO" Para Hermano Vianna, Jr. Este capitulo oferece um contexto mais detalhado para o surgimento de varios movimentos sociais, estudados no Capitulo V, para combater a pobreza, a violéncia e o racismo no Brasil. A alegada experiéncia apolitica da maioria dos funkeiros (entu- siastas da musica funk) negros e miscigenados aqui estudada é contrastada ao ativismo AfroReggae no Rio. O que caracteriza esses movimentos ativistas culturais, e as iniciativas de agdes de cidadania examinados no Capitulo V, é a sua estrutura de redes abertas, flexiveis. Juntos, esses dois capitulos exemplificam como a cultura é usada pelos movimentos sociais e ainda o modo pelo qual nogées globais como diferenga cultural e cidadania cultural s&o empregadas dentro de campos de forga muito especificos. Este capitulo foi escrito ha quase oito anos como um desafio a ideias concebidas a respeito do lugar da juventude em movimentos sociais. Dado que muitos anos se passaram, eu tentei reescrevé- -lo substancialmente. Eu realmente fiz algumas mudangas, mas deixei o capitulo, em boa parte, como era originalmente, pois ele serve de preltidio para a obra do AfroReggae, em especial, e para a obra de outros movimentos de uma forma mais generalizada. A miisica e a danga funk tém sido um meio de se obter prazer, algo que muitas vezes falta aos movimentos sociais ou aos relatos a seu Tespeito, escritos pela maioria dos cientistas Sociais. Como vere- Mos, prazer é o elemento-chave, nao sé do ativismo cultural do AfroReggae, mas também de iniciativas para agGes de cidadania. ee Claustrofobia* Ah! meu samba Se tu és nosso, 0 nosso é samba Se o nosso é o samba, o samba é nosso. Pra que prisées vais tu Sai, meu samba Porque sei que tu tens claustrofobia E tua a noite, a noite e o dia Vai te espalhar pelo pais Vai, meu samba Sem fatiga, estafa ou stress Nao precisa rezar, kermis Ou passaporte do juiz Ja se abriu a janela do mundo E agora nao podes parar Tu tens que conquistar Tu tens que encantar E te fazer cantar Com teu 14-1A, 14, 14 Com teu 14-14, 14, 14 Com teu 14-1d, 14, 14 Rio 40 Graus> Rio 40 graus cidade maravilha* purgatério da beleza e do caos capital do sangue quente do Brasil capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil cidade sangue quente maravilha mutante quem é 0 dono desse bi quem é o dono dessa 176 _ de quem é esse lugar? esse lugar S cracha émev sou carioca, P' eu quero meu sou cariocd vidade cultural da garotada a no’ iF favelada, suburbana, classe média marginal 6 informati sub-uzi equip: de patucada digital de marca¢ao invoca¢ao taria de torcida da galera funk ca metralha adinha com cartucho musical pra gril de marcagao invocagao pra gritaria de torcida da galera samba de marcagao invocagao pra gritaria de torcida da galera tiroteio de gatilho digital de sub-uzi equipadinha com cartucho mtsica de contrabando militar A CULTURA JOVEM E A DECADENCIA DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA Claustrofobia e Rio 40 graus, justapostas, dao caracterizagoes contrastantes da paisagem urbana do Rio de Janeiro, embora elas atravessem o mesmo terreno. A diferenca esta na maneira de se mover através do espaco. A primeira, um samba, é uma composig¢éo melodiosa e metapoética, cujo som é tematizado como a permeabilidade do mundo a uma estrutura e um ethos abertos. Seu compositor, Martinho da Vila, um sambista de grande projecdo popular, associado, desde meados dos anos pene i festival dedicado a heranga neers no Rio, interpretou Aaa eee com Gary Robinson, o apresentador do isdo “Sounds Brazilian”: 177 Claustrofobia: todos sabem 0 que €iss0, Aqui, uma con, ets 7 a quintal, no ; ; We nem na periferia; ele precisa sair e “se espalhar pelo m, tiog P undo aj 6 isso que esté acontecendo. “A janela foi aberta”. agora est aberto para receber o samba. E agora ele eu tenho com o samba. Ele nao deveria ficar no 4 lo esta em todo ibe Para Martinho, como para muitos outros ent €uma forma cultural que emana “do povo”, Que permeia tug a todos, misturando tudo numa sé identidade nacional (Vai, ss espalhar pelo pais”). No mesmo show, Beth Carvalho e Paulinho da Viola enfatizam a solidariedade que o samba inspira, ¢ 4 resistencia do “povo” e da cultura as vicissitudes do dia a dia, Essa resisténcia nasce da propensao do samba Mm apropriar- ~se e misturar tudo 4 sua propria maneira; com isso, ele abala, argumenta-se, hierarquias de todos os tipos. O documentirig do National Geographic intitulado Samba: rhythm of life (Samba: ritmo da vida], sobre os esforgos da Mangueira, escola de samba, €m vencer a competi¢ao anual do carnaval, congrega todo lugar- -comum imaginavel sobre o samba: é 0 que faz valer a pena viver, mesmo nas piores circunstncias; 0 povo pode ser pobre em bens materiais, mas é rico em espirito; através dele, eles podem expressar suas aspiragGes sociais e politicas; €, O argumento decisivo, nele o povo fala numa s6 voz (Samba: rhythm of life). O samba, é claro, j4 significou tudo isso para muita gente. Como observam os historiadores de misica brasileira, Chris McGowan e Ricardo Pessanha: usiastas, samba No Brasil, milhées de pessoas fazem, cantam, dancam ou simples mente, gostam de samba. Sua importancia na relativa paz 50 ua tancia na manut Nao é preciso Pessoas de to Eu gostaria de sugerir, no entanto, que as circunstancias 1 mudaram ¢ que nem tudo “mais cedo ou mais tarde, acaba em samba” ou outras celebragdes da identidade brasileira que «mantém todas as classes sociais e racas juntas, em harmonia”. Atransicao para uma democracia sempre distante nos anos 1980 ¢ 1990 trouxe 4 baila a inviabilidade da emancipacao social e politica através de praticas culturais que faziam parte de um “consenso”, em virtude do qual se repartia a riqueza material para as elites e as dificuldades, cada vez maiores, para as classes subalternas. Hoje, a cena cultural esta em rapido processo de mutacao, refletindo a insatisfa¢ao crescente com a nago, como se pode perceber nos eventos que relatarei para confirmar esse fato. As criticas 4 identidade nacional brasileira, especialmente as formuladas pelos movimentos de rap da juventude negra, vém. sendo feitas no campo politico, racial e cultural. No inicio dos ! anos 1990, Howard Winant comenta, talvez por demais otimista: “Hoje, os negros estao comegando a desafiar a ‘légica racial’, hegem@nica e radical, de que raga e racismo sao de significancia politica limitada no contexto brasileiro” (Winant, 1992: 87). Dada a importancia das representagdes dos negros e mulatos e suas préticas culturais nas lutas para definir a brasileiridade, o questionamento da légica racial precisa manter 0 foco sobre 0 status social e econémico dos nao brancos ¢ sobre a maneira pela qual a “cultura do consenso” simbolizou praticas como o samba, © pagode (uma reuniao de vizinhanga onde o samba € tocado), capoeira (uma danga das artes marciais afro-brasileiras trazida pelos escravos de Angola), o candomblé ¢ a umbanda (religies afro-brasileiras), e assim por diante. Deve ser lembrado que a critica implicita em “nao fazer parte” da “cultura do consenso” a que as praticas anteriormente mencionadas sejam, forma, alienantes ou sempre cooptaveis enquanto ligacdo de uma homeostasia social que beneficia as realmente acontece é que, desde a década de 1930, as vém sendo mobilizadas pela midia, pelos negécios 179 a= (em especial, o turismo), pela politica (inclusive a Manipulacs do carnaval), e outros fatores de mediacao para a retreieey simbélica de um Brasil “cordial”, que resulta no abocanhame de beneficios materiais por parte da elite. Como desengajar ‘ ” praticas dessas mediacoes a essa altura é uma questo que a esta sendo levantada porque as negociacdes Politico-culturais =) cederam algo para cada uma das partes. 2 Talvez mais do que qualquer outro setor, inclusive 0S moyi- mentos negros e outros da esfera social, que continuam a investir seu capital politico-cultural no Brasil enquanto nacdo, a juven- tude, especialmente a juventude subalterna, esta abrindo Novos caminhos, muitas vezes, entrecruzados por formas Culturais transnacionais que confundem a “cultura do consenso” ¢ que frequentemente parecem instilar o medo na elite e nas classes médias, e a desconfianga entre as liderancas dos movimentos sociais. A nova realidade das gangues de rua, das rebelides, dos comandos de narcotrafico, dos meninos de rua etc., substituiu o velho mito da sociabilidade por uma premonicao de “explosio social”, termo utilizado pelo presidente do Brasil, Itamar Franco (29 de dezembro de 1992 — 1° de janeiro de 1995), quando reser- vava mais de 2 bilhGes de délares para alimentar 9 milhées de familias pobres (“O governo brasileiro”; “Governo atendera”; “Risco de ‘explosao social’”). Essa nova paisagem urbana é 0 assunto do funk-rap Rio 40 graus, de Fernanda de Abreu. Enquanto Claustrofobia projet um senso de livre acesso ao espaco, uma “penetragao” sem testricgdes de espaco por parte do samba, 0 que os jovens cantam em Rio 40 graus é a necessidade de se tomar posse dess¢ espago através da violéncia, da demonstragao de forga inerente 20 assalto com metralhadora caracteristico dos ritmos urbanos negros ds Estados Unidos. O funk brasileiro ocupa 0 mesmo espag? less do samba mais tradicional, mas ele questiona, como n@ o ee €m questo, a fantasia do acesso ao espago social. Seus adep' 3 : — que constituem um novo setor cultural —a novidade cultural . 180 > go se identifica com os ee mais antigos, embora eles pém sejam aint oe avelada, suburbana, classe média marginal: Bess etree on 4 propriedade das classes médias eago marginais” 40 espaco da cidade, alegando que este Ihes ertence: Por meio das novas misicas nao tradicionais como o funk ¢ 0 rap, eles prnentse estabelecer novas formas de iden- ridade, mas nao aquelas pressupostas na autocompreensio do rasil, t40 anunciadas, como pando, nna Nagao de diversidade sem conflitos. Pelo contrario, a musica €sobrea desarticulagdo da jdentidade nacional e a afirmacao da cidadania local, ‘Acoesao cultural deste pais de 170 milhées de habitantes vem se desgastando rapidamente apés a queda de uma ditadura mili- tar autoritaria nos fins dos anos 1970 e durante a interminavel “transigdo para a democracia” nos anos 1980 1990, dificultada ainda mais por um decréscimo substancial da produtividade e da renda per capita.‘ O indicador mais contundente dessa mudanga éa diversificagao das culturas jovens, sendo que quase nenhuma delas se atém a praticas culturais que, supostamente, interligaram seus pais e avés numa comunidade imaginada através de uma mise-en-scene de formas de cultura popular, como o carnaval, o samba, o futebol, e assim por diante. As classes médias nao s6 se voltaram para uma direcdo mais “moderna”, que se desvia do consenso celebratério proporcionado pela praca publica (do tipo celebrado por Bakhtin e varios mitificadores brasileiros do carnaval); também as classes trabalhadoras e os pobres tém procurado novas formas culturais, ou tém transformado as mais tradicionais, como a misica popular, em consonancia com a Penetrante “midiatizac4o” da sociedade brasileira. Se o Brasil alguma vez foi imaginado por sua burguesia nacional (e muitos Setores populares ciimplices, como aqueles associados ao carna- Val) como um territério de encontros sociéveis para os diversos Srupos que o habitam, mais notadamente os descendentes de imigrantes €uropeus e de escravos africanos, hoje seus criticos ‘ulturais esto falando cada vez mais de “diferenga”. ea 181 “democracia racial” e outros termos simi- desde as primeiras décadas do século XX projecao mitica do Brasil como uma “Cordialidade”, ares tém sido usados como as palavras-chave da sociedade nao conflituosa. Os cultivaram esse mito como um melo nado que caracterizou 0 Brasil, afastando, ao mesmo tempo, a ansiedade que ela produziu nas elites e nos segmentos médios.” A mesticagem foi purgada de suas conotagdes ameacadoras e traves- tida de uma camuflagem estética que transformou a ansiedade em orgulho nacional. Gilberto Freyre, que na década de 1930 cunhou 0 termo “democracia racial”, uma adequada frase de impacto que evoca uma sociedade sem “preconceito racial violento”, viu nessa “mestigagem tropical” um “efeito moderador” que “tendia a dissolver o preconceito” (Freyre, 1946: xii-xiii). Ele foi tao longe que atribuiu ao mestigo, na verdade, a mestiga, uma nova fungao politica que deriva da plasticidade estética que ela representa: “Pode-se até mesmo sugerir que os mesticos esto, talvez, tornando-se uma forga decisiva, politica e cultural, numa parte consideravel do mundo; e aquele gosto estético acerca da forma humana, especialmente a da beleza feminina, est sendo muito influenciado pela crescente mescla racial” (Freyre, 1974: 110). (Deve ser dito, pelo menos entre parénteses, que no Brasil, em Cuba e outros paises ibero-americanos, caracterizados pela miscigenagao racial entre brancos e negros, a avaliacdo racista “positiva” é traduzida no feminino: a mulata é erotizada em ProporgGes miticas, o reverso da mitificacdo anglo-americana do erotismo do macho negro.*) Ao descrever os mestigos como os “mediadores plésticos entre dois extremos”, Freyre estava, na verdade, tornando mais palatavel o elemento negro que a cultura da elite brasileira achava “repulsivo”. A “democracia n ecial baseada na sua mesticgagem, é, portanto, consoante com © mito relacionado do embranquecimento, ou seja, a cren¢a ge que a nova cultura nacional pudesse ser purgada, através de um artistas e intelectuais brasileiros de reconhecer a miscige- 182 processo de “branqueamento” de seu “aspecto feio, de vira-lata repulsivo” (Freyre, 1974: 111)9 ‘ Enquanto os grupos subalternos do Brasil se acomodarem a essa imagem, através da qual até injusticas sociais s4o conside- radas mais faceis de se suportar e mesmo de serem negociadas através das formas culturais da mestigagem ( carnaval) ou das praticas politicas tipicas de uma sociedade patriarcal (jingoismo e clientelismo), eles serao tolerados e até mesmo imaginados como participes dos direitos a cidadania. & isso 0 que os ativistas da favela rejeitam hoje em dia. por exemplo, AS CONTRADICOES DA DEMOCRACIA A BRASILEIRA Em menos de trés semanas, entre 30 de setembro e 18 de outubro de 1992, trés eventos catapultaram o Brasil para o reino da politica de representages, sem precedentes em sua histéria. Ao empregar 0 vocdbulo “sem precedentes”, refiro-me a mistura peculiar das representac6es, e nao as assimetrias sociais e politicas persistentes a que essas representagdes apontam. O primeiro evento: no dia 30 de setembro, o parlamento votou 441 contra 38 votos para dar o impeachment ao entao presidente Fernando Collor. Completando um processo de cinco meses de manobras politicas 4 procura de evidéncias de corrupgao, digno de um melodrama telenovelesco, o irmao do Presidente, entre outras coisas, procurava vingar a tentativa fraterna de seduzir sua mulher. Assim, o Brasil tornou-se o primeiro pais de todos a dar impeachment ao seu presidente, e as corridas frenéticas as ruas por mais de um milhao de manifestantes superaram a demons- tracdo relativamente insubstancial das lagrimas de crocodilo derramadas por Nixon eo suspiro de alivio comparativamente tépido do piblico americano. O Jornal do Brasil descreveu o evento da seguinte forma: 183 O povo brasileiro explodiu. Por todo o pais, as multiddes libe. raram suas tenses acumuladas nos ultimos dois meses (...) Numa demonstragao sem precedentes, 0 povo, sempre atento as noticias do impeachment, freneticamente comemorava 0 voto contra Collor, 9 maior “traidor” do governo, e 0 mais celebrado heréi da oposicao, deputado Onaireves Moura (PTB-PR), anfitrido do jantar dos pala. ur6es (...) Em Brasilia, o povo interrompeu seu pranto, jogou fora o luto e desfraldou o verde-amarelo. Cem mil pessoas as ruas deram um espetdculo indescritivel. [Um funcionério] ateou fogo a uma imensa bandeira negra. “Chega de luto. O verde-amarelo pertence ao povo”, ele gritava. E centenas de pessoas repetiram seu gesto, incendiando suas bandeiras negras e transformando o gramado ao lado do Congresso num palco iluminado pelo fogo. Milhares de bandeiras verde-amarelas ficaram visiveis por entre 0 povo que dangava, ria e chorava. Fogos de artificio e foguetes iluminavam 0 céu. Todos cantavam, em unido, o Hino Nacional. Depois, o Hino da Independéncia (...) (“Jantar dos Palavrées”).!° Este e outros artigos descrevem as festividades em boa tradicio nacional como o carnaval. Além dos fogos de artificio e da canto- ria, havia musica, danga e um baile de mascaras, os celebrados caras-pintadas dos estudantes, a maioria na idade escolar. O Brasil nao havia presenciado uma demonstragao publica como essa desde o apogeu politico dos anos 1960. O Brasil parecia ser novamente uma nacao unida. Eu gostaria de pedir ao leitor que guardasse essa imagem de celebracao nacional em sua mente — fogos de artificio, hino nacional, samba, carnaval, restauragao da democracia, e assim por diante —, pois agora descreverei, para fins de contraste, os outros dois eventos histéricos. O segundo evento: exatamente dois dias apés as celebragoes do impeachment, no dia 2 de outubro, a Policia Militar invadiu a Casa de Detengao de Carandiru, Sao Paulo, e massacrou pelo menos 111 prisioneiros (alguns estimam o nimero em 280). 184 A policia apontou as metralhadoras para os prisioneiros, alinhando-os contra os muros no estilo “Dia de Sao Valentim” dos mafiosos de Chicago, ou atirou neles com suas mos atadas por trés; aqueles que nao foram mortos pelas balas foram atacados por c4es especialmente treinados para atacar os geni- tais (“Rebeliao em presidio”; “Mortos estavam amarrados”; «Mortos na detengao”; “Numero de mortos”). Os prisioneiros reportaram que haviam sido forcados a arrastar os caddveres pelas pocas de sangue porque a Policia Militar estava com receios de ser contaminada pelo virus da AIDS. Na verdade, foi sugerido que a Policia Militar havia sido autorizada a massacrar 0s prisioneiros rebeldes como um meio de diminuir 0 risco de contaminacao por contato continuado com eles. O tom das reportagens foi suave em comparagao aquele do impeachment de Collor. A maioria delas era descritiva, langando mao de fotografias sensacionalistas dos mutilados, cadaveres nus empilhados um em cima do outro, no estilo do holocausto, uma imagem que era explicitamente evocada por varias testemunhas. A Folba de S. Paulo reportava: Foi pior do que a Segunda Guerra Mundial, Hitler nao se compara a esse massacre!” gritava uma mulher no sabado a noite em frente i porta do IML em Sio Paulo (..) Digno de nota foi o niimero de perfuragées em cada cadaver: cinco ou seis. Pelo menos duas feridas nas costas eram visiveis. Muitos apresentavam grandes manchas de sangue — até mesmo 24 horas ap6s sua morte. A maioria parecia ter menos de 30 anos de idade. A sutura longa e grosseira que atravessava 0s compos, feita pelas funerdrias, deu um toque final & indigéncia em que morreram (Equipe do IML, 1992). Embora os jornais reportassem denincias de intelectuais, politicos e Clero, que acusavam 0 Estado de terrorismo, muitos elementos do publico em geral endossaram 0 massacre, se as pesquisas podem ser levadas a sério. lo’ antes foram sucedidas por uma consideravel Mostra de ap Politica Militar. A Folha de S.Paulo reportou que, numa eet a telefénica feita pelo jornal, um tergo da populagio de Sig aa apoiava a agao (“Um terco apoia”). Outro jornal, OR uly de Sao Paulo, chegou a conclusao de que o apoio foj ms maior: 44% (Caldeira, 1992: 2). Os entrevistados repudiargn deniincia da OEA e do Americas Watch (“OEA julga ine a defendendo a Policia Militar como “a reserva moral i Sy Paulo” (“Assembleia aprova CEI”), e condenando os ativistas d 0 direitos humanos como ciimplices dos assassinos e estuprador, os Joanna Wechsler do Americas Watch recebeu insultos de es : partes. “Eu rejeito a presenga dessa gringa. Ela é observadora ri nada. Deixe ela lidar com os resultados do conflito racial entre brancos e negros em Los Angeles.” “Energiimenos, Vigaristas e idiotas desajeitados. Esses comunistas querem os cadaveres para seu proselitismo politico.” “Vagabunda vulgar, intl, Vs ensinar seu filho a nao ser ladrao” (“Assembleia aprova CEI”), A ironia, como o filésofo politico José Arthur Giannotti e antropélogo urbano Gilberto Velho explicaram, é quea falta de confianga no sistema juridico leva o povo a procurar a violéncia como meio de assegurar a seguranga (“Descrédito na justiga”), Alguns até argumentaram que o poder policial e a crenca de que é melhor exterminar os criminosos é uma internalizacao do estado de terror, nos dois sentidos da frase. A demonstragao de violéncia, reproduzida em varias outras esferas da sociedade brasileira (por exemplo, a matanga dos meninos de rua, o narcotrfico proliferado, as forcas parapo- liciais clandestinas etc.), nao é prova, é claro, de que o movi- mento pré-democracia, que tem sido um complexo fendmeno de construcga4o de consenso que atravessa as linhas racial, de classe e ideolégica, esteja falido. £ um lembrete, entretanto, de que o discurso da democracia em termos puramente teéricos € ocioso quando os direitos sociais e culturais sao fracos e nem mesmo cumpridos,! 186 O terceiro evento, que examinarei com mais atengdo neste ensaio, ocorreu no dia 18 de outubro. A primeira pessoa a comunicar-me a noticia foi a m&e de uma amiga que me hospe- dou, que chegou correndo da rua, alarmada com a rebeliao na praia (minha amiga mora na zona limitrofe de Copacabana com Ipanema). Era um arrastio” conduzido por “uma negrada dos subirbios da Zona Norte”. O evento foi registrado histe- ricamente pelos noticiarios de televisio e pelos jornais em todo o territério nacional, como se fosse um replay das arruagas de Los Angeles. Na verdade, as tomadas televisivas das criangas correndo como loucas pela praia e invadindo énibus Jotados pelas janelas eram claras demonstragdes destinadas a causar medo. O Jornal do Brasil reportava: Ontem, a Zona Sul do Rio tornou-se um campo de batalha, com arrastées de gangues de adolescentes das favelas dos subtirbios da Baixada Fluminense, armados com pedacos de pau. A Policia Militar, com 110 guardas armados com revélveres, metralhadoras e rifles, teve dificuldade de combater a violéncia dos varios grupos envolyidos no ataque. Mesmo uma forca policial paralela, constituida pelos Anjos da Guarda — um grupo voluntério cujo objetivo é defender a populagao —entrou na briga. Frequentadores das praias € habitantes da regido, em panico, precisaram se refugiar em bares, padarias e em quiosques de rua. O ataque comesou por volta do meio-dia, na Praia do Arpoador, onde muitas linhas de énibus da periferia tem ponto final. Quando as gangues comecaram a agir, elas formavam arrastoes, se espalhando por Copacabana, Ipanema e Leblon. Os moradores furiosos exigiam a pena de morte ea atuagao das patrulhas militares al do B MEDO DE FUNK Nao demorou muito e os infratores foram identiticadgg como sendo os funkeiros ou os jovens de favelas das », on Norte e Oeste do Rio que, nos fins de semana, frequentam, 2 danceterias que tocam musica funk, na maioria, americana, Jornal do Brasil, edicao de domingo, exibia um artigo intitulado “Movimento funk leva desesperanca” e enfatizava o contraste com os estudantes caras-pintadas que haviam feito um esp etdctly publico muito diferente em nome da democracia: Eles nao tém seus rostos pintados com as cores da bandeira bras. leira e, muito menos, sao eles algum motivo de orgulho, como o foram 0s jovens que ressuscitaram o movimento estudantil na luta para dar 0 impeachment ao presidente Collor. Sem tinta em seus Tostos, no Liltimo domingo, esses caras-pintadas da periferia levaram a Zona Sul & batalha de uma de suas guerras que eles vém encarando desde que nasceram — a guerra entre as comunidades. Eles, assim, tornaram-se motivo de vergonha, diretamente ligada ao terror na praia: os arrastées que semearam pénico. Do Leme a Barra da Tijuca, as praias foram repartidas de acordo com os membros das gangues. Esse exército foi arregimentado por dois milhées de frequentadores do funk — [que seria descrito como] um ritmo, um movimento, ou uma forga (“Movimento funk leva desesperanca”). Essa reportagem joga ironicamente com dois tipos de “caras- -pintadas”: os jovens da classe média que foram as ruas para apoiar a “democracia” e os caras-pintadas, “naturalmente” (isto € sem necessidade de pintura), dos jovens negros e mulatos que se dirigiram as praias para causar panico. Sua pele negra, na verdade, era enfatizada em varias outras reportagens, como na j fc ravel a uma combinagio da Spiegel. O relato veiculava praia da classe média, breza e as roupas sujas dos invasores, alguns dos quais também foram entrevistados, seguramente, para fazer sensacionalismo as suas custas e para aumentar ainda mais 0 panico. Numa seco especial da repor- tagem, intitulada “Baile s6 é bom se tiver briga”, afirma-se: ‘As tribos que aterrorizaram as praias do Rio de Janeiro podem ser comparadas a0s hooligans britanicos ou is perversas gangues Mancha Verde do Palmeiras, no subtirbio de Sao Paulo. Eles séo jovens que andam em bandos para causar tumultos sempre e onde a ocasido se fizer. A palavra “galera” [clube de danga}' foi cunhada nos clubes de danca funk nos subsirbios do Rio de Janeiro, onde gangues das favelas seajuntam formando multidées de até 4.000 elementos. (..) Os aficio- rnados dos distirbios se chamam de funkeiros ¢ eles cultivam frequentes confrontos como passatempo (“Baile s6 é bom se tiver briga”). Nem todas as reportagens colocaram a culpa exclusivamente nos funkeiros; nos dias seguintes, entrevistas com eles e com jovens de favelas na Zona Sul apresentaram um quadro mais ambiguo. Sim, as gangues dos clubes funk realmente provoca- tam a comogao nas praias; sim, os banhistas realmente ficaram muito amedrontados; sim, alguns jovens roubaram alguns objetos das esteiras, embora nao tenham faturado muito porque nenhum carioca ou turista em s consciéncia iria 4 praia com objetos de valor. Afinal de contas, o que as cameras captaram foram gangues rivais em conflito nas praias e meninos pulando pelas janelas para dentro dos Gnibus superlotados para volta- rem aos seus bairros nas periferias da Zona Norte e da Zona Oeste. Relatorios dos Anjos da Guarda e dos surfistas também sugeriram que os furtos cometidos foram provavelmente por parte dos favelados da Zona Sul. Em todo caso, os funkeiros parecem ter sido permanentemente estigmatizados pela midia e pela histeria da classe média da Zona Sul do Rio. Uma histe- ria bastante produtiva. O estardalhago em volta do arrastao aconteceu a menos de um més das mais importantes eleicdes da historia do Rio. A favelada ha de uma fax a candidata negra do Partido dos Trabalhadores (PT), Benedita Souza da Silva, representante da mencionada coalizio ideolégica racial e de classes do movimento pré-democracia, disputava is eleigGes com um economista branco, de classe média da Zona Sul. Bené, como é chamada no Brasil, ganhou uma Pluralidade de votos nas eleigdes gerais, mas, nao conseguindo a maioria enfrentou o segundo colocado, César Maia, no segundo aes das eleigdes no dia 15 de novembro. Samba e outras atividades culturais, que supostamente criam solidariedade social, nao foram suficientes para frear a polarizacao racial que tomou conta da cidade. O resultado foi que Bené perdeu as eleices por trés pontos percentuais, uma vez que muitos eleitores ambivalentes da classe média, temendo um aumento de violéncia, votaram no homem da “lei e da ordem”. Esse evento aconteceu quando eu estava fazendo entrevistas com pessoas que tém conhecimento de misica no Rio. Eu estava interessado na recepgao do rap. Exatamente no dia anterior ao arrast4o, eu entrevistava Hermano Vianna, um antropélogo que havia escrito um livro sobre os clubes de dana funk. Ele explicava que o rap, pelo menos no que diz respeito ao Rio, era um assunto de menor interesse. A juventude brasileira estava basicamente interessada em rock, especialmente em heavy metal, e na maioria das vezes, o dos Estados Unidos e Inglaterra. Isso no que se refere as classes médias. Os jovens da periferia e das favelas do Rio, por sua vez, a maioria negra ou mulata e pobre, preferiam funk, embora o rap estivesse em ascensao, especialmente em Sao Paulo. O reggae, também, jd é um ritmo permanente em Sao Luis do Maranhio e na Bahia. (E preciso dizer, pelo menos entre parénteses, que o Brasil é um pais de muitas misicas e nao se pode generalizar a respeito de fidelidade musical de uma cidade ou regiao a outra. Se o Brasil como na¢a0 jé foi caracterizado pel Pprojecao questao 190 Antes de 0 arrastdo acontecer, até mesmo o antropélogo teve dificuldade de explicar porque essa juventude se interessaria por uma miisica que eles nao podiam compreender e que nao estava disponivel nas lojas, e que, até recentemente, nem era transmitida pelo radio nem pela televiséo. O arrasto, no entanto, tornou claro que esse compromisso com o funk implicava na exclusio de outras misicas, especialmente aquelas que mais se identificam com 0 nacionalismo brasileiro, ou, falando-se em termos mais locais, com a cidadania cultural do Rio de Janeiro. Um artigo do Jornal do Brasil que fez uma série de entrevistas com um DJ funkeiro influente e o antropélogo mencionado anteriormente trouxe o assunto 4 baila: Segundo o DJ Marlboro (Fernando Luiz), que desde o final da década de 70 vem promovendo essas dancas, os funkeiros nao so a fonte mas as vitimas da violéncia quotidiana. Eles vao aos clubes de danga — galeras, nome dado a partir dos morros e favelas— a procura de uma terra que eles nao conhecem de outra forma (“Movimento Funk leva desesperanca”). Esse DJ jd escreveu, em parceria com outros fundadores do movimento funk — Ademir Lemos e Nirto —, uma misica inti- tulada Rap do arrastdo, que trata dessa violéncia diaria. Eu gosto de musica americana vou pro baile curtir todo fim de semana S6 que na hora de voltar pra casa € 0 maior sufoco pegar condugao E de repente pinta até um arrastao Esconde a grana, 0 rel6gio ord Cuidado, vai passar 0 al Batalho todo dia dando um duro danado mas Sempre fico na mao, escondendo minha gr: na conducio.' Essa cangao ressalta os problemas da violéncia diaria com que se depara a juventude que frequenta os bailes funk. No Rio, como em outros centros urbanos maiores da América Latina, jovens negros ou mulatos e pobres nao tém direitos de cidadaog para se expressar. Eles nao sao protegidos pela Policia; pelo contrario, a policia, muitas vezes em conluio com justiceiros e vigilantes, os assedia na melhor das hipoteses, e, na Pior, os mata e deixa seus cadaveres nas ruas para servir de aviso para outros. Os registros das organizagoes de direitos huma- nos mostram que, em 1991, somente em Sao Paulo, a Politica Militar matou 876 “meninos de rua”. Espera-se que esse numero aumentaré para 1.350 em 1992.15 Comparativamente, 23 jovens foram mortos em circunstancias semelhantes em Nova York, uma cidade aproximadamente do mesmo tamanho de Sao Paulo (Quadros, 1992: 16). O problema nao € 0 fato de que em Sao Paulo a policia mate 38 vezes mais jovens do que em Nova York (embora essa estatistica, por si s6, ja seja reveladora), mas 0 fato de que o método com que se lida com 0 desemprego, falta de oportunidade de educagao, a fome, eo racismo € de “limpeza social” para os pobres. Durante a gigan- tesca reuniao ambiental — a Eco 92 — em junho de 1992,a Policia Militar varreu a Zona Sule areas centrais, removendo a juventude pobre (a maioria negra e mulata) para tornar as ruas seguras para os dignitdrios visitantes. Eles foram recolhidos e mantidos em dreas de isolamento, tais como uma comunidade- -dormitério nas cercanias de Niteréi. Os jovens marginalizados sao detestados pelas impolutas classes médias, sendo considerados elementos poluentes. O espaco nao é sé claramente demarcado geograficamente; mais importante do que isso, ele é socialmente demarcado no Rio € em outras cidades brasileiras. As Praias e o lazer que elas representam sao considerados o patrimonio das classes médias € dos turistas da Zona Sul. Os jovens das favelas nao possuem Ppatriménio, com excecao daquele que eles tomam para si, 192 antic Nin oN IN A aaa caste aaa TE at Tn EA como foi evidenciado pelo arrasto, que veio a ser uma luta pelo espago, como explica o gedgrafo afro-brasileiro, Milton Santos. Quando indagado por um entrevistador de como ele compreende a demanda de algumas classes médias cariocas em cortar as linhas de dnibus que vao do subirbio do Norte da cidade as praias da Zona Sul, ele respondeu que os miltiplos espacos das novas megacidades do mundo ndo sao atravessaveis por qualquer um, e que os pobres tendem a ser prisioneiros em sua propria vizinhanca. A multiplicidade e a heterogeneidade nao sao traduzidas por acesso (Ulanovsky Sack, 1992). Aqueles desprovidos do “direito” de atravessar o espaco “que nao Ihes pertence” serao detidos pelo Estado em prol daqueles que desfrutam da “cidadania”. Dever-se-ia acrescentar a isso que o direito de ir e vir também depende do propésito pelo qual se move de uma drea para outra. Apés 0 arrastao, por exemplo, muitas pessoas da classe média haviam solicitado a eliminagao dos servigos de 6nibus da Zona Norte para a Zona Sul. Porém, eles se viram obrigados a retroceder em sua decisio quando entenderam que muitas de suas empregadas domésticas viviam na Zona Norte e nao poderiam cozinhar para eles e limpar suas casas sob tais restrigdes. Os funkeiros, portanto, sé podem ser vistos pelos cidaddos como uma ameaga. Houve relatos de que policiais contratados pela agéncia de turismo Riotur estavam parando os jovens nas ruas para revist4-los e prendendo-os para a policia (Jornal do Brasil, 19 out. 1992: 1). E, para acrescentar insulto a injuria, até os traficantes de narcoticos declararam que eles iriam livrar a Zona Sul desses jovens porque eles estavam atraindo mais poli- ciais 4 4rea, e que, como para o comércio turistico, isso era ruim. para os negocios. Em contraste com 0 caos associado a imagem dos funkeiros, os comandos do narcotrafico apareciam como a imagem invertida das forgas da ordem, ou seja, os militares e as forgas de seguranga. 193 A cultura dos funkeiros é tanto reativa como proativa, Por um lado, os funkeiros rejeitam o espetaculo da democracia do qual os caras-pintadas participaram. Os funkeiros nao tém ° que comemorar. As classes média e alta tém, a seu dispor, uma nova simulagao de democracia, encenada pelo impeachment do presidente Collor, e a concepgao dos pobres e favelados como criminosos e parasitas preguicosos. Houve um tempo em que a politica cultural do Rio viabilizou a essas classes marginais imaginarem-se parte da nagao, mas, como explicou a socidloga Alba Zaluar, de Sao Paulo, num artigo do Jornal do Brasil: O Rio nao pode mais ser reduzido a blocos de carnaval ou escolas de samba, times de futebol e clubes de esquina, a convivéncia em bares ou boemias em boates, todos criando a politica cultural que sempre caracterizou esta cidade, que sempre se comunicou e se diferencion através da mtisica (Zaluar, 1992: 1). Ela prossegue explicando que essa construcdo de uma imagem nacional nao é mais vidvel. O que caracteriza 0 Rio e outros centros urbanos no Brasil é um processo de diferenciagio que torna a existéncia de tragos sociais comuns dificil, quando nao impossivel de se atingir. Desde que os clubes funk nao dao mais sinais de extingdo, essa cidade ainda musical, e hoje mais consumista do que produtiva, preci- sara aprender a lidar com os roqueiros, funkeiros, carecas, motoqueiros, que dao pequenos sinais de mudanga de uma identidade a ser defendida a todo custo, até mesmo a morte. Patentemente narcisistas, e sem um claro projeto politico ou consciéncia social que possa permitir-nos falar deles como revolucionarios de alguma forma, esses grupos ganham a atengao dos movimentos sociais, particularmente a dos negros, mulheres e associagoes de bairro. Concordo com Zaluar e voltarei a esses problemas opor- tunamente. Neste momento, entretanto, prefiro descrever as atividades dos funkeiros. 194 O MUNDO DO FUNK CARIOCA Acultura funk do Rio de Janeiro implica uma total reconfigu- racao do espago social. Por um lado, a numerosa juventude que frequenta as galeras funk ou clubes de danga funk nos fins de semana, que vivem nos subuirbios da Zona Norte e Zona Oeste do Rio de Janeiro. Por outro lado, os DJs que tocam funk, que no Rio inclui varios géneros de mtsica negra americana como 0 soul, rhythm and blues, motown, hip-hop, que se engajam num trafico transnacional alucinante de gravacées, fitas e CDs. As coisas mudaram significativamente desde que Vianna estu- dou os clubes funk no final dos anos 1980. Naquela época, a quase totalidade das miisicas tocadas ndo estava disponivel nas lojas de discos, e, até cerca de 1990, nao era tocada em radios. Consequentemente, os DJs confiavam numa rede de mensageiros que voavam periodicamente para Nova York e Miami a fim de comprar as misicas. Esses mensageiros eram empregados das agéncias de viagens e linhas aéreas ou mesmo os proprios DJs da Zona Norte, que chegavam a Nova York pela manha, faziam seus contatos, e voltavam para o Rio no voo da noite. No Rio, eles vendiam sua mercadoria para revendedores, de quem outros DJs adquiriam sua musica. Havia competicao cerrada para a obtengao das fitas e discos uma vez que a qualidade da misica — aferida em termos de acompanhamento pela danga, que é ‘© que mais faz os funkeiros dancar — é 0 que da aos DJs seu lugar no mundo da cultura funk. A época dos arrast6es no inicio dos anos 1990, no entanto, uma prdspera cena local de musica funk emergia, com produtores como DJ Marlboro gerando suas proprias gravacées. Um pouco de histéria.'* A cultura funk comegou em principio dos anos 1970 na Zona Sul, especificamente no Canecdo, que € 0 principal palco de misica pop no Rio. Hoje em dia, ele é predominantemente voltado para o rock e a musica pop nacio- nal e internacional. Mas, nos anos 1970, varios DJs, entre eles, Ademir Lemos e Big Boy, comecaram a dar preferéncia a artistas soul, como James Brown, Wilson Pickett e Kool and the Gang, 195 nos “bailes da pesada” (literalmente, pesado ou arruaceiro, oy seja, dangas “hip”) aos domingos, frequentados por 5.000 joveng. Quando a administragao do Canecao voltou sua atencao para a MPB (Musica Popular Brasileira, um equivalente grosseiro do folk-rock “incorporando elementos de bossa-nova, jazz, bolero, miisica sertaneja, rock, musica nordestina, reggae, e outros géne- ros”) (McGowan; Pessanha, 1991: 78), os “bailes da pesada” foram transferidos para a Zona Norte, onde os dangarinos mais interessados nesse tipo de musica moravam. Para compatibilizar com os grandes bailes, que algumas vezes chegavam a contar com mais de 10.000 jovens num determinado clube, alguns elementos empreendedores montavam enormes sistemas de som, equipes, compreendendo, ocasionalmente, mais de 100 amplificadores colocados um em cima do outro como uma muralha. Essas equipes tinham nomes como “Revolugao da Mente”, dados segundo a Revolution of the Mind, de James Brown, ou “Soul Grand Prix”, ou “Black Power”. Foi o “Soul Grand Prix” que iniciou uma nova fase na cultura funk do Rio em 1975, uma fase que a imprensa rotulou de “Rio Negro”. Seus bailes assumiam uma forma didatica, introduzindo a cultura negra através de figuras j4 conhecidas dos dangarinos, isto é, celebridades da misica e dos esportes. As dangas do “Soul Grand Prix”, na verdade, usavam midia mista — slides, filmes, fotos, pdsteres etc. — para inculcar o estilo “Black is beautiful” da época. O fato de os jovens da Zona Norte estarem engajando uma cultura negra mediada pela industria cultural dos Estados Unidos suscitou muita polémica contra uma na possivel colonizagao io das formas (um grupo fundadores, no Rio, mas também discutiu que o engajamento com a miisica negra americana poderia ser bem utilizado na recuperagao das proprias raizes negras brasileiras (Vianna, 1988: 29). A passagem dos anos 1970 para os anos 1980, que teste- munhou a reinvengao do rock brasileiro e a transi¢io para a democracia, também viu o declinio da consciéncia negra das galeras funk na Zona Norte do Rio. Ao passo que é verdade que elas mantiveram sua preferéncia exclusiva pela musica negra americana como um diferenciador do rock, a mtsica mais popular do Brasil entre os jovens da classe média (que assumem a “brancura” em sua versao brasileira), as galeras funk j4 nao fazem mais qualquer referéncia ao orgulho negro (Vianna, 1988: 32). Segundo Vianna, “os militantes das varias tendéncias do movimento negro brasileiro parecem ter esquecido essas dancas, j4 nao mais consideradas como espagos adequados para a conscientizacdo” (Vianna, 1988: 32). Alguns analistas do Movimento Negro, como Emilia Viotti da Costa, concordam com essa visdo, entendendo que o movimento “permaneceu mais como um fendémeno da classe média e encontrou pouco eco entre os negros pobres” (Vianna, 1988: 32). E compreensivel, portanto, que alguns grupos de jovens pobres possam se voltar para formas culturais que nao sdo inscritas dentro do projeto contra-hegeménico do Movimento Negro. Contudo, essas observa¢6es, que foram feitas em meados dos anos 1980, podem necessitar de uma revisdo apés 0 panico da classe média causado pelo arrastao e o crescente assédio sofrido pelos funkeiros e outros jovens pobres. A juventude subalterna esta reagindo, especialmente aqueles envolvidos com o rap, a maioria dos quais estao em Sao Paulo, embora exista uma atividade significativa também no Rio. O movimento rap esta se tornando mais visivel e ele tran légica contra o racismo € co: ele.!” As organizac6es rap eh e no Rio, com a aprovagao ¢ do Partido dos Trabalhadores de Cultura em Sao Bernardo do Campo, um dos vari industriais na periferia de Sao Paulo, que subvenciono de Acgao Cultural “Movimento de Rua” e seu livro poesias rap, ABC RAP: Coletéinea de poesia rap. Os contribuidores definiram suas demandas em torno d de “negritude (a maioria dos jovens é negra), urbana, pobreza (a maioria dos jovens vive na 0U abaixo da linha de pobreza), o movimento rap e ecologia” (Oliveira eg al. 1992: 5). O grupo Esquadrao Urbano (sugerindo uma inversig da conotagao violenta que os esquadrdes da morte tm no protesta contra a hipocrisia da nogao de seguranca, coisa para as elites, e outra para os pobres: 8 Polos 10 Projety de letras e editores ¢ NO de questées Tacismo, violencia Brasil) que é uma a seguranga que a cidade nos oferece jd nao se vé no dia, entéo quando escurece parece que a corajosa policia some policiais otdrios nosso dinheiro consomem circulando em confortdveis viaturas enquanto nés pobres descalcos circulamos nas ruas (Oliveira et al., 1992: 111) Muitos grupos, como os Panthers the Night, advogam a nao violéncia (Oliveira et al., 1992: 115-116); outros, como o MC Blacks, reivindicam seus direitos como cidadaos negros (Oliveira et al. 1992: 35-38); j4 outros, como o NEPS, até defendem o feminismo: Homens machistas nos humilham, nao querem saber insistem em incitar dizem donos do poder ,, 1992: 17) Essas aplicagdes do rap tendem a ter respaldo politico- -intelectual de 6rgaos progressistas do Estado, como a Secretaria Municipal de Educagao de Sao Paulo, que patrocinou o projeto Rap nas Escolas — Rap ... Pensando a Educagao (Silveira, 1992), ou o CEAP (Centro de Articulagao das Populacées Marginais) do Rio, que patrocinou a Associagao Hip-Hop Atitude Consciente (Curry, 1993). O objetivo desses projetos é “construir uma cida- dania dos subalternos”. A cultura do funkeiro, por outro lado, desde o final de 1970 até hoje, rejeita a promessa de cidadania advinda dos politicos e intelectuais, sejam eles populistas da esquerda ou da direita, ou mesmo do Movimento Negro. Ela resistiu aos termos da participagao — representa¢ao cultural sem acesso aos bens e servicos sociais ou materiais — tipica do relacionamento clientelista aceito pelo carnaval e pela cultura do samba. O significado politico da cultura do funkeiro, se houver, deve ter um outro tipo de elaboragao. No Rio, os criticos culturais normalmente veem os funkei- ros como no politicos e alienados. Os rappers endossam essa opiniao e até lancaram um projeto para “converter a tribo funkeira” (Curry, 1992). Para Vianna, todavia, essa exclusao da politica nao significa que eles sejam alienados. Seguindo a ideia dos criticos de que, em contraste com as elites que vivem com um olho voltado para a cena internacional, os segmentos populares mantém as “auténticas raizes da cultura nacional”, Vianna, um pouco tocado pelo espirito das afirmagées de Dick Hebdige a respeito dos grupos subculturais, vé a cultura dos funkeiros como resistente 4 “cultura oficial ou dominante”, mas do através da identidade grupal ou étnica, nem através de qualquer outa digna ae mérito (Vianna, 1988: 109). Como etnografico e sua da Zona Nortel ° de Bataille (Vianna, 1988: 54). A resisténcia é, na melhor ay hipéteses, um tipo de “usurpag4o” no sentido dado por cu a palavra: uma pilhagem némade do capital cultural existente (Certeau, 1984: 174). Os funkeiros vestem-se como os Surfistas da classe média da Zona Sul; eles se apropriam da musica negra americana; “pegam carona” nas redes existentes que sao utiliza. das para outros propésitos (turismo) para conseguir sua misica, que é entao pirateada, proporcionando assim nenhum valor comercial a industria fonografica, e utilizam espagos designados para o samba € para os esportes. Essas apropriacdes Produzem pouco valor para a ordem dominante: as roupas nao sao dife- rentes das de outros jovens (embora os Nikes e Reeboks deem lucro, sim, aos fabricantes de calgados); a cultura negra ameri- cana disseminada através do funk nao se traduz em consciéncia afro-brasileira (na verdade, as letras da mtisica negra americana podem fazer referéncia a politica racial e cultural, mas nao sao nem mesmo compreendidas; os funkeiros relexicalizam o inglés na base da homofonia: “you talk too much” e “T’ll be all you ever need” transformam-se num portugués sem sentido como “taca tomate” e “ravioli eu comi” (Vianna, 1988: 82).!" Com a excegao de estrelas do rap e da musica pop, como Michael Jackson, a miisica negra americana nao é vendida no Brasil, o que nao gera lucros para as companhias fonograficas, embora as equipes de sistema sonoro consigam sobreviver com as dangas; 0 uso dos espacos do samba e esportivos n4o os inclui na cultura nacional. (O programa Rio Funk do governo municipal, discu- tido no capitulo a seguir, € um contraexemplo que sinaliza com um aumento da conscientizagao apés 1994.) Invasao, dépense e baile dionisiaco orgidstico, enquanto corrigem necessariamente a imagem do consumidor midiatico, estereotipado como a vitima simpléria da industria cultural edo imperialismo cultural, nao sao, no entanto, as tinicas maneiras de interpretar as praticas desses jovens. O modelo de usurpacdo adapta-se a um gesto extremo de teoria critica contemporanea que imagina todos os tipos de gente comum e, partic 200 os grupos subalternos que sio encarregados das representagoes que constituem seu mundo, como “produtores ativos e manipu- ladores de significados” (Jenkins, 199: 3). O retrato da cultura funkeira que fiz aqui, certamente, reconhece o papel ativo desses jovens em delimitar seu préprio territério, construindo seus proprios meios de prazer, muitas vezes, contra a natureza da identidade cultural nacional ou regional. Eu qualifico de extre- mista esse modelo de usurpacao Porque, na tentativa de subverter um estere6tipo, descuida do cardter negociado da recepcao, que nunca est inteiramente nas maos de uma so Pessoa ou grupo. Os funkeiros, querendo ou nao, encontraram-se no centro dos debates da esfera publica sobre a cultura. S6 o arrastio os colocou no meio de um atual conflito acerca do lugar dos pobres, de seu acesso aos bens ¢ servigos da cidadania e de sua vulnerabilidade perante o poder policial e a violéncia do Estado, como ficou explicito no caso dos meninos de rua. Os funkeiros, imaginados como uma ameaga poluente, agora sio parte de um novo folclore urbano. A televisio e a imprensa mostram-nos como uns “joao-ninguém” tentando tirar o que pertence elite € as classes médias em troca de um medo que “justifica” sua repressao. De fato, as imagens de violéncia do arrastdo serviram para fixar a fluidez espacial da invasdo némade dos funkeiros, demarcando assim, de forma maniqueista, as diferencas entre as Zonas Sul e Norte. As imagens de violéncia os demonizaram, e, até um certo ponto, os controlaram, transformando-os em produtores da cultura em geral, uma produtividade da qual procuram nao fazer parte. Os funkeiros sao somente um segmento da juventude brasi- leira cujas representagGes estao transformando a paisagem da midia tradicional. A cultura jovem é altamente diferenciada, como ja vimos. Ela consiste de rappers politizados; de caras- -pintadas que celebraram 0 triunfo “democratico” sobre o presi- dente Collor, a maioria, quase que exclusivamente, apreciadora do rock e do pop internacional; de meninos de rua, centenas dos quais sao brutalmente assassinados em todo o Brasil e que, 201 recentemente, organizaram ULD faakis) movimento social comm sua primeira convengao internacional em Brasilia (Nascimento 1992; Dantas, 1992; Mendes, 1993, “Encontro retine”), de surfistas (“Surfista do Morro”); de Anjos da Guarda (“Anjos q, Guarda”; “Anjos usam”); e de funkeiros; mas também de meta- leiros (aficionados do heavy metal); punks, skatistas, Motoquej- ros, neobeats, neohippies, carecas ou skinheadss"” neonazistas ¢ whitepowers “nacionalistas” (“Fanzines pregam”; “Sao Paulo organiza”); mugulmanos negros (“Odio ao branco”; “Grupo negro declara”); sem falar dos rastas, reggae e dos entusiastas do calipso ¢ outros jovens que cultivam as misicas e praticas culturais da diaspora africana, especialmente na Bahia e Outras cidades do Nordeste. O Brasil, nunca foi um pais homogéneo, apesar do samba, do carnaval, da bossa-nova, da MPR, real- mente 0 terem representado como mais ou menos coerente, A partir de meados dos anos 1990, todavia, uma nova politica de representagao emergiu, enfatizando a diferenga. A midia Os novos movimentos sociais e a cultura consumista, ae trica, porém disseminada, todos se engajam nessa politica de representa¢ao, impossibilitando a qualquer grupo de manter 0 controle como é ilustrado. Os relatos jornalisticos que citei ao longo deste ensaio sio repletos de acusagGes, contestages e recriminagGes a respeito dos funkeiros. Mas as imagens que foram geradas em torno deles nado sao de todo negativas: nos tiltimos dois anos, exatamente como a cultura hip-hop nos Estados Unidos, eles vém tragando seu proprio caminho se deslocando da periferia até o horario nobre da TV e boutiques chiques na Zona Sul: “O funk caminha das festas da periferia para as novelas de TV ¢ lojas da Zona Sul” (D. Caldeira, 1992). Novas estrelas pop estao comecando a ganhar reconhecimento no Rio e em outras cidades brasilei- ras como cantores de funk ou apropriando-se de elementos do funk. Ha uma tendéncia na critica cultural dos Estados Unidos de impugnar misicos e artistas brancos de classe média que se 202 apropriam de elementos das praticas culturais subalternas: Elvis e rythm and blues, Madonna e a moda etc. Criticas parecidas poderiam ser feitas a Fernanda Abreu, cujo Rio 40 graus abre este ensaio, ou a alguns dos DJs que comegaram a dominar o funk composto a moda brasileira, particularmente o DJ Marlboro, que ja foi mencionado e que produziu trés Albuns Funk Brasil (DJ Marlboro, 1989; 1990; 1991). O que é importante lembrar, no entanto, é que tais artistas e produtores estao ajudando a abrir as esferas ptblicas as quais os funkeiros nao tinham acesso. Se os proprios funkeiros nao politizaram suas dancas e a sua musica, eles agora esto, apés o arrastdo, inevitavelmente envolvidos num conflito de validagdes que acontece nas esferas ptiblicas. E sua contribuicgao para a politica cultural carioca foi a de abrir o espaco do gosto, do estilo e do prazer que nao é permeado pela identidade nacional ou regional, mesmo que eles estejam usando o mesmo espaco fisico do samba, do futebol ou do carnaval. A POLITICA CULTURAL DO FUNK CARIOCA Como avaliar a politica cultural do funkeiro? Esse, € claro, nao pode ser um empreendimento inocente. A critica cultural contemporanea, em especial nos estudos sobre a recepgao € a cultura jovem, tende a conferir um consideravel poder politico aos espectadores e ouvintes como um corretivo para a atitude elitista com que a cultura de massa aliena seus consumidores. Eu gostaria de me abster de tal discussao, pois nao nos diz muito a respeito do contexto institucional e transnacional mais amplo das praticas populares. Prefiro situar a questo da politica cultural do funk carioca no terreno das esferas publicas conflitantes. Nesse sentido, acredito, por um lado, que as praticas do funkeiro oferecem um novo mapeamento cognitivo no qual a cultura transnacional e a tecnologia so utilizadas para seus préprios fins, que claramente nao sao politicos. Esse é um mapeamento cultural bastante distinto, porém, do tipo que os tedricos marxistas, desde Lukacs, F dacnnaceana! Adorno e Benjamin até Eagleton e Jameson, advogam d, diferentes: isto é, que as obras de arte so dispositivos heuristic, através dos quais 0 critico ganha um conhecimento da realidage social indisponivel de outra forma. Os funkeiros nao pre le © formas z 2 cisam da critica cultural para lhes dizer como a sua realidade Social ¢ estru turada; disso, eles sabem muito bem e eles fazem uso desse conhe, cimento para alcancar seus préprios fins. Poderiamos chamar isso de uma “reconversao cultural” de acordo como estudo de Néstor Garcia Canclini a respeito das estratégias para se “entrar da modernidade” num mundo transnacional (Garcia Ca 1995). Esse tipo de mapeamento cognitivo € mais uma q pratica que epistemol6gica. Por outro lado, as asseveracoes feitas sobre a identidade poli. tica, tipicas da critica cultural americana, nao fazem qualquer © sair nclini, esto sentido no Brasil. Muitos dos grupos mencionados tém uma existéncia efémera. A identidade nao vai muito a fundo, espe- cialmente nesta era de cultura desnacionalizante. 0 modelo usur- pador também é de pouca ajuda para se entender as dimensdes politicas das prticas que parecem ser absolutamente apoliticas, mas que tém repercuss6es significativas no conflito suscitado nas esferas publicas. Finalmente, acredito que abordar o conflito de estilos e formas de prazer partindo da esfera publica vai muito além das explicagdes que se procuram dar a esse espaco tao contestado no Rio e em outras cidades brasileiras. Certamente alguma coisa do modelo de usurpacao é operante nessa contro- vérsia do espaco, mas o que os artistas funk exploram em suas cang6es é a penetracao do espago pelo estilo e pelo ethos que sao 0s coadjuvantes do impacto politico. Numa antecipacao bizarra ao arrastao € a reacdo de “lei e ordem” do candidato branco a prefeito, César Maia, o titulo da cangao no album de Fernanda Abreu Be Sample comeca com um representante demagogo das classes alta e média chamando a Policia Militar para remover © povo, para que o “folclore maravilhoso” da nagdo possa ser apresentado com melhor brilhantismo.29 204 J Esse apelo 20 orgulho nacional é imediatamente cortado pela énfase que es da 20 carater de amostragem da cultura na voz que canta: Play it again Sam/Sampleia isso ai”, um trocadilho interlingual, Poa SeO) com o anglicismo sampleia [sample’), que cm Portugués soa como “Sam play”, Segue dai um tipo de manifesto funk a respeito da amostragem, do experimento, em oposicao a qualquer fixacao de identidade nacional. O 4lbum todo é, na verdade, um virtuoso na performance da amostragem, estabelecendo relacdes interessantes com as misicas dos negros americanos ¢ latinos, uma espécie de amostragem “transbarrio” de um grupo subalterno para outro. “Sigla Latina do Amor (SLA 2)” faz uma amostragem de vozes de jovens porto-riquenhos do El Barrio, entre eles um rap em espanhol de uma mulher que diz: “Hacerlos bailar es mi mision y Latin ACT-UP es mi cancién” [“Fazé-los dangar é minha missdo, e Latin ACT-UP é minha cang4o”]. O grupo porto-riquenho de rap Latin Empire também é amostrado fazendo um tipo de apelo com que os funkeiros, sem divida, concordam plenamente: “Yo tengo derecho de ser una estrella/porque mis rimas son mas bellas/somos muchachos latinos y mi lenguaje es mAs fino/porque yo soy latino activo” [“Eu tenho o direito de ser estrela/porque minhas rimas so mais bonitas/nés somos rapazes latinos e minha lingua é mais fina/ porque sou um latino ativo”]. Esse é um apelo ao valor, um apelo que os funkeiros fazem através de seu estilo, seu prazer, e, acima de tudo, de sua danga. O sucesso funk popular Dance, de Skowa e Tadeu Eliezer, situa a identidade e o valor na prépria danga: ‘As minhas rafzes sfo passos de danca Quando ougo um funk, nunca perco a esperanca Dentro do saldo nao penso duas vezes En dango com emogio e durante varios meses Eu dango com raiva... (Skowa e a Mafia, 1989). 205 Diferentemente do samba de Martinho da Vila, nao existe aqui uma extensdo da emogio que parte do individuo para uma abrangéncia maior em escala social, como 0 movimento social ou a nago. Essa cancao funk expressa, na verdade, o desejo de se soltar, de deixar a liberdade 4 solta, o que é constantemente negado sempre que o favelado ou o suburbano sai da pista de danca. A emogao, que é experimentada sob a forma de raiva no ato de dangar, nao é explorada para um fim social ou politico “maior”. Ea maneira pela qual a juventude pobre constréi seu mundo, contra as restrigdes do espaco, e contra a conviccio corretamente deduzida de que canalizar a raiva na direcao de um objetivo social ou politico sé pode levar ao engano. Ainda assim, a cultura do funkeiro esta sendo ouvida, esta abrindo novos circulos de debates na televisdo e na imprensa, entrando no mercado, criando novas modas, gerando novas estrelas da musica. Isso pode nao render a esses jovens um ganho mate- rial, pode no salva-los da violéncia; mas, afinal de contas, tais expectativas nao sao a sua real esperanga. O que eles querem é buscar um espaco que seja seu. 206

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