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OPERA, RAGA E GENERO SOB O PONTO DE VISTA DE ARTISTAS NEGRAS(OS) RevistaMusica | vol. 19, n.2 | pp. 149-172 | jul. 2019 Antonilde Rosa Pires nildeantoniufrimestrado@gmail.com | UFRI Andréa A. Adour da Camara andreaadour@musica.ufr).br| UFR OPERA, RACE AND GENRE FROM THE POINT OF VIEW OF BLACK ARTISTS Recebido em: 18/05/2019 Aprovado em: 29/06/2019 RESUMO pene eet do ponto de vista de artista eter eet eee scion eee tty Crete eters livro Black Opera: History, Power, eae et ee otter protagonismos de compositoras(es) € Pr reeneten co es Pon ip Fee eee een ern Col LN Sre LN Opera; Raca; Género; Compositoras(es); Scns) FUN SU TONY This proposal is configured cal essay about op gender from the point of view of bl study on the theme, like the musicologist ‘Naomi André in the book Black Opera: See ren re eure Picco kitanrnneoe counter-narrative to what Lélia Gonzales Pie KEYWORDS: Coe revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 OPERA, RACA E GENERO SOB 0 PONTO DE VISTA DE ARTISTAS NEGRAS(0S) Antonilde Rosa Pires nildeantoniufrjmestrado@gmail.com | UFR] Andréa A. Adour da Camara andreaadour@musica.ufr).br | UFR] . Introdugaio Locus social é o lugar onde um determinado grupo esté localizado e de onde se posiciona, tece suas articulagdes ideolégicas, politicas e culturais. £ importante destacar que © locus social em que os diversos grupos étnicos/raciais brasileiros esto posicionados nio se trata de algo inerente a estes. Estes lugares foram definidos pela macroestrutura colonizatéria, a partir do discurso civilizatério que afere a légica dicotémica entre grupos supostamente “superior” e “inferior”, “culto” e “inculto’, ete. Tudo isso opera especialmente para a promogio da desigualdade racial ¢, consequentemente, social. Locus social & um termo cooptado pelos movimentos sociais como sindnimo de Lugar de fala. As ativistas dos feminismos atualmente formam o grupo que mais tem se debrucado a estudar, sistematizar e transformar o conceito em um campo epistémico e metodolégico para os estudos que buseam compreender os processos de construgio da subalternizagiio. As teérieas do feminismo negro siio as que assumem protagonismos da temitica, artienlando com estudos das questées raciais, de género, e sobre a subalternizacio da mulher negra nos Estados Unidos, América Latina e outros continentes. Aqui no Brasil a filésofa e feminista Djamila Ribeiro publicou o livro O que é lugar de fala?, no qual ela desenvolve nao somente uma sistematizagio acerea da definigio do conceito, mas, principalmente: “busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com 0 regime de autorizagio discursiva” (RIBEIRO, 2017, p. 70). Ela destaca que o intuito é refletir sobre como as experiéncias compartilhadas pelas mulheres negras podem revelar condigdes sociais que descortinam opressdes ¢ mazelas do modus operandi da estrutura hierarquizada entre os grupos raciais e sociais. O foco aqui, é ressaltar a importincia de debate sobre locus social dentro das dinamieas das relagdes de controle e poder. © Ingar social nao determina uma consciéncia discursiva sobre esse lugar. Porém 0 lugar que ‘ocupamos socielmente nos faz ter experiéncias distintes e outras perspectivas. A teoria do ponto de vista feminista e lugar de fala nos faz refutar uma visio universal de mulher e de negritude, e outras ‘identidades, assim como faz com que homens brancos, que se pensam universais, se racializem, 150 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 ‘entendam o que significa ser branco como metifora de poder, como nos ensina Kilomba (RIBEIRO, 2017, p.70). Trazer essa concepgio para este ensaio é uma estratégia para apresentar também as dindmicas ¢ agdes de enfrentamento que artistas negras realizam para conter os processos de invisibilizagao. Significa também refutar as histérias Gnicas sobre as mulheres negras e possibilitar outros caminhos para a produgio de conhecimento, que possam trazer as nnulheres negras a disputa nfo somente de narrativas e discursos, mas, principalmente, a insercio nos espacos de poder. 2. Opera e Locus social Locus social é uma das questées centrais para as abordagens desenvolvidas aqui, J que propomos uma reflexio a partir da perspectiva de artistas negras e negros no campo operistico. Uma das referéneias 6 a musieéloga Naomi André, professora do Departamento de Misiea e dos Estudos da Mulher do Departamento de Estudos Afro- Americanos e Africanos da Faculdade Residencial da Universidade de Michigan. No livro Black Opera: History, Power, Engagement ela tece reflexes sobre 0 campo operistico dentro de uma linearidade onde o passado faz a ponte para compreendermos o presente. Aépera é utilizada como instrumento para o desenvolvimento de uma abordagem eritica, ‘bem como ferramenta de ativismo politico € mudanga social. André aponta as novas ‘bases para abordagens no campo da erndigio aplicada, ‘No mou estudo, eu lia vor dos eriadores, artistas e audiéncias da 6pera em um modo integrative inspirado em Freire. Eu néo categorizo toda a épera conto exemplos ultrapassados de um género inrelevante que fala apenas para plateias ocidentais europeias brancas. Fazer isso tanto simplificaria, ‘quanto nogaria os tesouros artisticos da civilizagao ocidental a pessoas ndo-brancas, devide apenas a ‘uma diferenga cientifica pereebida baseada na cor da pele, um marcador visual enganoso que néo tem base ciantifica. Como géneto, a Gpera nio é necessariamentefalsa com os esteredtipos negativos machistas do racismo. Em ver disso, funciona como um porta-voz, um canal através do qual um reflexo da ideologia cultural de uma sociedade - que pode incluir esses estere6tipos - pode ser ouvido e visto (ANDRE, 2016, p. 196). Naomi Andre constréi suas observagdes a partir do conceito formulado por Patricia Hill Collins (2000) sobre o ponto de vista das mulheres negras, conhecido como “black woman's standpoint”. Estas teorias sistematizam as experiéncias racializadas e de género, dentro de uma perspectiva ilustrativa das formas como as pessoas que compartilham uma mesma vivéncia social de forma que promovam o empoderamento, capacitam a consciéncia coletiva ¢ a ago politica de seus grupos de pertencimento. Naomi André pondera que grupos historicamente marginalizados estabelecem relagdes a5 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 interativas com a cultura dominante e, a0 mesmo tempo em qne isso pode ser prejudicial, pode ser também libertador. Bla também se inspira em Educagao para a Consciéncia Critica, de Paulo Freire, para dialogar, tanto com o conceito de “integragao” dentro de um contesto que se estrutura diante de um sistema democratico flexivel, formulado por pensamento critico, quanto com 0 de “adaptagdo", relacionado a uma postura mais passiva, Este diélogo é capaz de propiciar a compreensio do Modus operandi das estruturas opressivas, para que pessoas de grupos marginalizados possam reagir & cultura dominante. Amusicéloga destaca as estratégias que artistas e compositores afro-americanos e suafrieanos construiram para utilizar a épera como forma de ressignifiear e reposicionar negras e negros na histéria e na sociedade. Para a autora, a épera se configura em uma forga cultural, politica e com um poder transformador ou mesmo libertador. Ela afirma que seu estudo € atravessado pela sua condigao de mulher negra experiéneia de género e raga. A socidloga Lélia Gonzalez, em Racismo e sexismo na cultura brasileira, pontua que as trajetérias das mulheres negras so mareadas pelas experiéneias consequentes das engrenagens do maquinirio da escravidio, do racismo e da colonizagio europeia. Para ela, as experiéncias das mulheres negras se diferenciam das hegem@nicas por causa das articulagdes das categorias sociais de raga, sexo e classe, (O lugar em que nos situamos determinari nossa interpretagao sobre o duplo fendmeno do racismoe do sexismo. Para nds o racismo se constitui como a sintomética que caraeteriza a neurose cultural brasileira, Nesse sentido, veremos que sta articulagéo com o sexismo produz efeitos violentos sobre ‘2 mulher negra em particular. Consequentemente, o lugar de onde falaremos pe um outro, aquele que habitualmente nés vinhamos eolocando em textos anteriores. E a mudanea foi se dando a partir de certas nogées que, forgando sua emergéncia em nosso discurso, nos levaram a retornar a questio da mulher negra numa outra perspectiva (GONZALES, 1984, p. 224) 3. Racismo patriarcal heteronormativo As perspectivas citadas anteriormente sera acrescentado 0 conceito de Racismo patriarcal heteronormativo, uma abordagem particular do racismo proposta pelas intelectuais negras contemporaneas Werneck e Nilza Iraci. O termo, segundo as autoras em seu Dossié Mulher Negra, "é um modo de unir o racismo atuante no Brasil e seus modos de atuagao diferenciada a partir do sexismo e das fobias LGBT". Elas enfatizam também que: © conceito permite chamar ateneao para os diferentes processos que atuam na produgdo da subordinacao de individuos e grupos, jogando luz ao fenémeno denominado de interseccionalidade, 152 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 Sob o racismo patriareal heteronormativo, processos de subordinacao, violéncia e inferiorizacdo das pessoas negras adquire forramentas que atingem de forma espevifica todas as que se situamn om pposigdes femininas dentro do espectro das identidades de género (WERNECK, IRACI, 5/4, p. 13). Para as autoras, o debate sobre a situagio da mulher negra dentro da visio restrita a0 eapitalismo patriareal é negligenciado, uma vez que este movimento nao reconhece a opressiio de carater racial e se sustenta no mito da democracia racial e da miscigenacao. Tais discursos nao sio mais que argumentos falaciosos, com intuito de silenciar os debates sobre as opressdes e designaldades raciais no Brasil Para desenvolvermos as reflexdes sobre as questies raciais aqui neste estudo, abordamos as trés dimensdes do escopo do racismo na sociedade brasileira que sao: individual, institucional e estrutural. A primeira diz respeito & maneira como o individuo constréi sua subjetividade ao interagir com o racismo; a segunda indica como as instituiges piblicas e privadas se relacionam e operam dentro da légica e dos prineipios orientados pela raga - gerando violéucias e discriminagdes: enquanto a terveira trata das agdes e relagies estabelecidas dentro do contexto econdmico-capitalista. O filésofo e advogado Silvio Almeida, em O que é racismo estrutural?, apresenta os conceitos dessas trés concepedes de racismo. Sobre o racismo individual ele discorre: Seria um fenémeno ético on psicol6gico de carter individial ou coletivo, atribuido a grupos isolados; fou ainda, a uma “isracionalidade’, a ser combatida no campo juridico por meio de aplicagio de -sangSes civis - indenizagGes, por exemplo - ou penais. Por isso, a concepedo individualista pode néo admitir a existéneia de "racismo’, mas somente de "preconceito’, a fim de ressaltar a natureza psicol6gica do fendmeno em detrimento de sua natureza politica (ALMEIDA, 2018, p. 28), Ele pondera que, para o enfrentamento desta natureza de racismo, algumnas ages podem ajudar no desenvolvimento de priticas que estimulam e propiciam mudancas culturais. Tais agdes podem ser desenvolvidas no Ambito educacional, para 0 processo de conscientizagao dos aspectos criminosos da responsabilizagio daqueles que praticam tais crimes. O filésofo sublinha também as fragilidades e limitagdes quando o racismo individual é posicionado como base da anélise, porque a ele é sempre atribuido uma conotagiio moralista € comportamental, excluindo assim, as dimensdes politiens e econémicas que aprisionam a populacio negra na marginalidade social Em relagdo ao racismo institucional, Almeida faz observacdes sobre as praticas estabelecidas em relagdes as estruturas de poder. "Sob esta perspectiva, 0 racismo nao se resume a comportamentos individuais, mas ¢ tratado como o resultado do funcionamento das instituigSes que passam a atuar em uma dindmica que a confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raca.” (ALMEIDA 2018, 353 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 P. 29). O racismo institucional se configura uma vez que os conflitos raciais estruturam os regimentos das instituigdes. Ele possibilita a ampliagio das desigualdades raciais para além do ambito individual. Segundo o autor: As instituiges reproduzem as condigdes para o estabelecimento e a manutengéo da ordem social Desse modo, se 6 possivel falar de um racismo institucional, significa que, de algum modo, a imposigéo de regras ¢ padres racistas por parte da instituigio é de alguma maneira vineulada & tem sua atuagio condicionads ‘order social que ela visa resguardar, Assim como a instituig cestrutura social previamente existente com todos 0s conflites que lhes sé0 proptios, 0 racismo que cesta instituigéo expressa é também parte desta mesina estrutura, As instituigdes sio apenas a rmaterializagte de uma estrutura social ou de um modo de socializagio que tem o racismo como um de sous compouentes organicos. Dito de modo mais direto: as instituigdes so racistas porque {edad é racista (ALMEIDA, 2018, p. 36). "0 racismo é parte da ordem social” (ALMEIDA, 2018, p. 36). Esta citagao nos faz lembrar Para Almeida, as instituigdes nfo criam o racismo, apenas 0 reproduzem. de algumas questées relacionadas ao discurso de "ordem” como instrumento de opressiio emantenimento de privilégios. Ele ilustra as hegemonias de determinados grupos raciais, dentro das instituicdes e a consolidagio de seus projetos de interesses politicos e econémicos. Sendo assim, para a autor, racismo institucional trata de poder como base da relacio racial. Logo, racismo é sinénimo de dominacao. Sobre a terceira e iiltima concepgio de racismo abordada aqui, ela destaca: 0 racismo @ uma decorréncia da propria estrutura social, ou seja, do modo "normal" com que se constituem as relagdes politieas, econdmicas, juridicas e até familiares, no sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. © racismo é estrutural. Comportamentos individuals pracessos institucionais sio denominados de uma sociedade cujo racismo é regra © nio excegio. O racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos individuos e Ihes parece legado pela tradigio, Nesse caso, além de medidas que cofbam o racismo individual e institucional, torna-se imperative refletir sobre mudangas profundas nas relacdes sociais, politicas © econdmicas (ALMEIDA, 2018, pp. 38-39). Para Silvio Almeida, a organizagio politica, econdmica e juridiea é 0 prineipal meio de propagagao do sistémica de praticas racistas. E por isso que o racismo acontece de forma real dentro do contexto das designaldades nesses aspectos. Porém, o fato de o racismo ser estrutural no implica em que ele seja irreversivel ou as pautas antirracistas insignificantes e, tampouco, que pessoas racistas niio sejam julgadas por isso. Nao criar medidas e estratégias de romper com o racismo significa desqualificar a dimensio social, histérica e politicas das violacdes e violéncias de tal estrutura. Segundo Almeida, “o que queremos enfatizar do ponto de vista te6rico, é que o racismo, como processo histérico e revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 politico, cria as condiges sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identifieados sejam discriminados de forma sistematica” (ALMEIDA, 2018, p. 39) Ou seja, o que o filésofo salienta é que ha uma relagdo de retroalimentagao entre 0 racismo individual, institucional ¢ estrutural, €, por isso, os estudos que pautam a temiética das relagdes raciais com foco no racismo, necessariamente devem abordar set. escopo conceitual. Nem um deles deve ser negligenciado ou diminufdo nas andlises, j& que estabelecem relacdes de dependéncia entre si. Ele enfatiza que os estudos acerca do racismo estrutural consideram a condicio do individuo racializado dentro das engrenagens de um sistema que, além de possibilitar as praticas, cria e recria recursos estruturantes do racismo. Ele enfatiza a importincia do desenvolvimento de observacdes mais complexas sobre a questi racial para evitar inferéneias superficiais que nada contribuem na pauta antirracista. Pensar 0 racismo como paste da estrutura nao retira a esponsabiidade individual sobre as préticas de condutes recstas € nao & um alibi para racistas. Pelo contrério; entender que o racismo & cstrutural, @ no um ato isolado [.] nos toma ainda mais responséveis pelo combate ao racismo & sos racistas (ALMEIDA, 2038, p. 40) Partindo dessa perspectiva sobre 0 escopo do racismo, o debate sobre as questdes raciais aqui neste trabalho abarca essas trés perspectivas. 4. Reflexées teéricas e musicoldégicas As reflexdes desenvolvidas anteriormente nos apontam a necessidade de construir ontras narrativas © considerar outros saberes para que possamos fugir de wma epistemologia universal que opera como um instrumento de legitimagio € imposigao do saber dominante, Préticas conservadoras ainda se apresentam de forma enraizada no campo da musicologia contemporinea. Vale dizer que, embora 0 campo venha apresentando mudancas significativas em prol do respeito As singularidades, mesmo assim ainda visualizamos propostas defensoras de uma pritica musicolégica que mantémo status quo instituido, Um defensor deste modelo é 0 musicélogo Giles Hooper. Em seu livro The discourse of musicology, em especial no capitulo A New Musicology, Hooper faz uma série de criticas sobre os estudos pés-modernos e feministas. Neste caso, o meu interesse é estabelecer um breve diélogo com suas criticas aos estudos feministas. No topico Género do referido capitulo, Hooper inicia a sua critica a partir da seguinte problematizacao: 155 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 ‘Meu objetivo nesta segio [..] focalizar uma questio muito precisa: até que ponto uma preoeupagto com "género’, ou "representagio de género’, pode justificadamente ser eonsiderado um desenvolvimento inerentemente "novo", “eritico” ou mesmo "pés-moderno" (HOOPER, 2006, p. 30) Esta questo que o autor levanta, por si s6, jf 6 passiva de desconfianga acerca da profundidade do conhecimento que o musicélogo apresenta sobre a tematica. Aprimeira desconfianca aparece devido ao fato de o autor tratar tanto o Pés-modernismo quanto o Feminismo de forma generalizada, reducionista e superficial, como se se tratassem de fenémenos homogéneos e unilaterais. Uma breve pesquisa na literatura dos estudos pés- modernos € de género j nos permite visualizar as diversas correntes, disputas e tensdes. Em relagio ao feminismo temos: Feminismo Negro, Feminismo Interseccional (pés- moderno), Feminismo Radical, Feminismo Liberal, Transfeminismo, Feminismo Marxista, Feminismo Lésbico ou Lesbofeminismo, Feminismo Anarquista, Anareofeminismo ou Feminismo libertario, Feminismo Indigena, Feminismo Asidtico, dentre outras. Sobre a complexidade das concepgées do Pés-modernismo, Clara Celina em seu ensaio “As diferentes concepgdes que 0 Pés-Modernismo abarea”, publicado no site Em Pauta, pontua. (© pés-modernismo nio pode ser visto como um sistema cultural unificado e os pensadores que © compéem no necessariamente tratam dos mesmos assuntos. Dai que Foucault fale de novas ‘concepgdes de poder, dizendo que este se encontra diluido na sociedade atual; Habermas trate da comunicagdo @ apresonte @ premissa de que a verdade se apresonta através do didlogo; Giddens estude a relagio dos individuos com as instituigGes; Pierre Bordieu delimite a Teoria Praxiolégica e defenda que teoria e pritica se complementam e transformam concomitantemente. Sendo assim, embora 0 pés-modernismo traga um novo modo de pensar a respeito de como a verdade se constitui e uma perspectiva mais critica diante do sistema, ele nao necessariamente cai em uma relativizagao completamente doslignda dos valores propagados até entdo, como muito so julga Iso também se expressa através do fto de que diferentes pensadores Ihe atribuem nomenclaturas diversas, nfo compactuando entre si. preciso, portante,quese tenha tatoo se direcionarcriticasao chamado pés-modernismo (CELINA, 2016) Diante deste panorama, seria relevante que Hooper formulasse sua critica levando em consideragio as questdes metodolégicas e éticas. Ele deveria fazer seu recorte apontar a quais vertentes do feminismo - assim como do pés-modernismo - ele tece sua exitica, pois cada corrente parte de referencial diferenciado, on seja, n&o sio mais do mesmo, como o autor insinua. Os estudos feministas apresentam caracteristicas proprias de seu tempo, logo, afirmar que nao ha nada de novo nos estudos recentes ¢ uma forma de deslegitimacio dos saberes produzidos nesse campo epistémico e de producio de 156 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 saber cientifico, Suas caracteristicas so tantas que qualquer tentativa de redugio pode ser considerada inconsistente e até irresponsavel Para além da igualdade de género, as novas narrativas buscam romper com a misoginia institufda, 0 movimento também tem por objetivo reconhecer e refutar as opressdes sociais que afetam as mulheres. Defende-se direitos politicos, sexuais e sociais, além dos demais direitos humanos. Tais estudos nao esto restritos ao campo da dentncia, mas também, problematizam e refutam epistemoldgica e politicamente as violéneias consequentes da estrutura patriarcal. Para reafirmar seus argumentos conservadores, Hooper enfatiza: “Cusick, por exemplo, afirma que 6 muito claro que muitos trabalhos candnicos que representam abertamente as mulheres também representam a misoginia institueionalizada” (CUSICK, 1999, p. 482, apud HOOPER, 2006, p. 20) Vale ressaltar que nem sempre falar numa perspectiva histériea sobre producées de mulheres se caracteriza num estudo feminista. As abordagens historicas nesses estudos sio tao legitimas quanto em qualquer outro, pois a contextualizagao histériea nao é uma exigéneia aos trabalhos onde tais articulagdes sfio relevantes? Por isso, € questionavel enquadrar todos os estudos realizados por mulheres e/ou sobre mulheres como feministas. Mais importantes sio os sentidos que se atribuem & contextualizagao histérica das pesquisas sobre protagonismos de mulheres na misica, quando isto se configura como ferramenta para evidenciar 0 apagamento e as desigualdades na produgio de conhecimento das mulheres dentro de uma estrutura sexista e mis6gina, E preciso sublinhar que, assim como os homens, as mulheres também. sio educadas e ensinadas a reproduzir as pritieas machistas. Portanto, culpabilizar as mulheres ~ principalmente aquelas que nfo perticipam das construgdes das pautas feministas bem como aquelas que, de alguma forma, propagam ideias sexistas em seus trabalhos - é uma forma que o autor apresenta para afirmar sua prépria misoginia com discursos que foram e sto outorgados numa sociedade patriarcal. No livro Feminine Endings: music, gender and sexuality, a musicéloga Susan ‘McClary faz reflexées em torno da representacao musical da bravura masculina e/ou da sedugio feminina no filme Indiana Jones, que se assemelham, em mnuitos aspectos, com aquelas das éperas setecentistas de Cavalli. Estas reflexdes confirmam uma narrative musical consolidada, que se mantém enraizada trezentos anos depois nas telas dos cinemas de todo 0 mundo. Sobre os argumentos de McClary em Feminine Endings, Hooper faz uma critica deslegitimando a relevancia da obra no campo musicolégico a0 afirmar que o estudo da autora nao apresenta caréter inovador e nem contetido para os estudos musicolégicos. Como se niio fosse o bastante, ele segue afirmand revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 E claro, o exemplo dado pelo New Grove Dictionary of Women Compositors também aponta uma cespécie de duplo vineulo om que tais empreendimentos quase inevitavelmente se encontram: eles correm 0 risco de reinscrever a prépria distingio que estio tentando apagar - em suma, Nio existe Diciondrio Now Grove de compositores maseulinos. © ponto mais fundamental, no entanto, 6 que, de ‘uma perspectiva motodolégiea, nao ha nada particularmente "novo", “critica” ou “pés-modemno om ampliar 0 dominio da miisica considerado” elegivel “ou” apropriado ao estudo musicolégico para ineluir o composto por mulheres (HOOPER, 2006, p. 21) Argumento como este revela nada mais que um pensamento de quem nao esta inteirado sobre as pautas feministas, nem atento ao que as mesmnas chamam de "pensar os proprios privilégios". A citagdo incita varios questionamentes e alguns deles sio: a novo" e critico? qual perspectiva metodolégica o autor se refere? O que ele chama de Qual é a sua perspectiva de Pés-moderno? O que ele considera clegivel ou apropriado ao estudo musicolégico? Haveria apenas uma iinica maneira de abordagem dos estudos musicologicos? Pensaria © autor que 0 seu ponto de vista é 0 ‘inico passive de legitimidade? A defesa pela afirmagio da dimensto humana a partir da presungio de wm ser humano universal (que o faz construir sua eritica sobre New Grove Dietionary of Women Composers) 6 algo refutado nos movimentos feministas. No nos esquecamos que os espacos de poder sempre foram de dominacao masculina, o que tornaria a criagio de um New Grove de compositores masculinos uma acio prolixa voltada finalidade de insuflar 0 ego dos compositores inseguros. Talvez personagens como o autor aqui citado precisem ostentar seus privilégios para se sentirem superiores as mulheres ¢ demais grupos marginalizados. 5. A construgiio das narrativas Historicamente, hé muitos casos em que homens compositores ou instrumentistas, assinam como “autores” das obras musicais compostas por mulheres de suas familias. Do séeulo XVII até o XX, mulheres foram invisibilizadas no campo nmusical e continuam sendo hoje ~ com algumas variagdes. Podemos citar alguns nomes como por exemplo, Fanny Mendelssohn, Clara Schumann, Ahna Mahler, dentre outras. No caso das mulheres negras, ha um silenciamento imperativo. Sao poucos os estudos que falam sobre os protagonismos de musicistas negras, sendo as documentagées em que se encontram registros sobre o assunto referentes ao perfodo colonial, muitos deles relatos de europeus viajantes. O racismo patriarcal heteronormativo, unido ao classismo e demais marcadores de opressdes, criou e disseminou discursos e agdes que excluem as mulheres negras dos espagos de poder em 158 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 todas as instancias da sociedade. Porém, jé é de conhecimento piiblico nomes de vitrias musicistas negras. Niren Cavalcanti, em “O Rio de Janeiro Setecentista: vida ea construgao da cidade da invasio francesa até a chegada da Corte”, referencia dez: nomes de cantoras/atrizes negras que atuavam nos palcos do Rio de Janeiro: Francisea de Assis - 1810 interpretou a "Poesia" na pega "O Triunfo da América”; Francisea de Paula - XVIII, eantora, da Companhia Lirica eriada por Ant6nio Nascente Pinto (A.N.P);[..] Ignés - XVII, ccantora, da Cia. Lirica de A.N.P,; Jenoveva - XVIML, cantora, da Cia, Liriea de A.N.P,; [.] Joaguina ‘Maria Conceicio, vulgo ‘Joaquina Lapinha’ - 1810, atriz e contralto, interpretou a "América" na pega ‘© Triunfo da América”; [..] Luisa - XVIII, cantora, da Cia. Lirica de ANP, [..] Lobato Maria (Candida - 1810,- atriz, interpretou a "Gratido" na pega "O Triunfo da América’ [..] Maria Jacinta, vvulgo "Marucas" - XVIII, cantora, da Companhia Litiea de AN-P.; Paula - XVIII, cantora, da Cia. Lirica de AN-P.;[..] Rita Folicianna - 1810, atriz, interpretou a " América’... (CAVALCANTI, 2015, pp. 580-581). ‘ngancal na pega ‘O Triunfo da Segundo Budasz, Curt Lange apresenta dois nomes de cantoras liricas negras no século XVIII. “Existem registro de pagamento As cantoras: Ana Joaquina - (4 oitavas) e Violante Ménica (4 oitavas)”. (BUDASZ, 2008, p. 127). Sampaio relata que “o professor Anténio Carlos dos Santos eneontrou um documento datado de 1860, contendo cinco nomes de negras dedicadas 4 mtisica vocal”. Os nomes que ele apresenta sio das sopranos: “Leonor Joaquina, Inacia Francisca, Maria da Conceicao ¢ das contraltos: Maria Josefa, Bona Luisa” (SAMPAIO, 2008, p. 29). Em uma consulta no Album de Docente do Centenario da Escola Nacional (atual Escola de Musica da UFRJ) organizado por Francisco Manoel da Silva e Joanfdia Sodré em 1848, encontramos registros de varias professoras e professores de descendéncia africana lecionando em diversos instrumentos ¢ disciplinas teéricas. Um exemplo € a propria Joanidia Sodré, uma mulher negra que assumin o cargo de Diregio da Escola. Nele aparecem também a professora ¢ intérpretes Camila da Conceigio e Izaira de Oliveira - este é 0 nome que a cantora assumia publicamente, porém, no registro de ata da Escola aparece Isaira de Oliveira, dentre varios outros, © racismo patriarcal heteronormativo se estabelece por hierarquias. Esta 6 explicada por Lélia Gonzalez (2018, passim), segundo a qual o imperialismo patriareal eurocristio se constitui em uma estrutura pautada no privilégio social e epistémico e por isso, as sociedades que sofreram o processo de colonizacio produzem seus saberes de forma colonizada. Em um modelo hierarquizado na produgio de saber, onde o conhecimento ocidental é posicionado como universal, ela aponta a necessidade de descolonizagao da produgéo de conhecimento. 359 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 A ideia referencial que gera um contrassenso ao pensamento do musiedlogo é 0 conceito de Lugar de fala. Outro conceito igualmente importante é 0 de Epistemicidio. Segundo Sueli Carneiro em sua tese de doutorado A Construgao do outro como néio-ser como fuunndamento do ser, epistemicidio ¢ um conjunto de intentos por parte da cultura hegeménica institufda que perpassam pela anulagio, desqualificagao, assim como a produgao de discursos de deslegitimacio da capacidade cognitiva e intelectual acerea dos povos subjugados por meio das diferentes midias e mecanismos de anulacio do ser do Outro. “E uma forma de sequestro da razio em duplo sentido: pela negacio da racionalidade do Outro ou pela assimilagio cultural que em outros casos The é imposta” (CARNEIRO, 2005, p. 97). Sobre a légica patriarcal que modula a linguagem, os discursos ¢ a estrutura musical, Susan McClary utilizou a epistemologia feminista como lente para visualizar, ressaltar e problematizar os discursos que esto argamassados no pensamento ¢ nas praticas da mitisica de concerto. No capitulo Constructions of Gender in Monteverdi's Dramatic Musie [Construgao de Género na Musica Dramatica de Monteverdi] ela destaca que desde 0 século XVII compositores enfrentam problemas no campo da representagio sobre 0 masculino ¢ feminino no campo da mnisica dramética, principalmente na épera, “E possivel tragar alguns dos sinais musicais para a masculinidade ou feminilidade que sio exibidas na épera indo de volta a géneros anteriores, como o Madrigal” (MCCLARY, 1991, p. 36). Ela avalia que a épera ¢ influenciada pelo contetido erético que se configura como a temética central do repertério madrigalesco. Nos madrigais, as subjetividades, os desejos eas paixdes masculinas expressavam a narrativa dominante da cultura ocidental Para a autora, a 6pera se configura no principal meio de propagagio da ideia ocidental de género e sexualidade. Em L’Orfeo, segundo MeClary, Monteverdi criou a retoriea da sedugio Um processo de excitar artificialmente as expectativas e, em seguida, deliberadamente canalizar os desejos dos ouvintes. O sexy, arogante e carismitico Orfeo é melhor ilustrado em seu primeiro ‘enunciado - a eancao de casamonto "Rosa del Ciel.” (MOCLARY, 2002, p. 39). Ela demonstra também como Monteverdi construiu na personagem feminina Proserpina a retérica da seducio dentro de uma légica patriarcal e autoritaia Naomi André afirma que na 6pera Carmen, de Bizet, visualizamos os cédigos tradicionais de masculinidade na personagem de Dom José, Quando Carmen se volta para ele, Dom José se torna cada vez mais incapaz de resistir as suas exigéncias e 160 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 encantos. Quando ela o refuta e afirma que nio 0 ama mais, seu desespero aumenta, fica inais doloroso e ele se transforma em bandido, Ao contrério da independéncia de Carmen, em que els permitea todos e, maisimportante, asi mesma tomar suas préprias decisdes, apesar da pressio para atender as convengdes, Don José perda 0 controle de suas agdes e seu senso interior de justica. Procedendo sem uma bese moral, ele apaga efetivamente seu proprio desejo de seguir em frente, Suas palavras finais, que concluiram a 6pera, ‘mostram sua capitulagio & autoridade que ele acabara de desconsiderar e sua consequente admisso de culpa: "Vocé pode me prender, fui eu quem a matou (ANDRE, 2016, p. 124) Ela sublinha que mnitas dessas verses sobre Carmen apresentam uma perspectiva que naturaliza 0 medo acerca de estrangeiros e promove a intemnalizagio de ideologias racistas, 6. Dos estudos interseccionais Tecemos nossas consideracées ao conceito de “Interseccionalidade" na perspectiva da Kimberle Crenshaw © Lélin Gonzalez, Para Kimberle Crenshaw, “[A] interseccionalidade visa incluir questées raciais nos debates sobre género e direitos humanos ¢ incluir questées de género nos debates sobre raca ¢ direitos humanos. Ela procura também desenvolver uma maior proximidade entre diversas instituigbes.” (CRENSHAW, 2002, p. 8). A autora destaca as muiltiplas violéncias das quais as mulheres negras sio vitimas: no contesto racial, em que sio afetadas pela violéneia contra xs negrxs, ¢ no contesto de género, quando sio afetadas pela violéncia contra as mulheres: “No entanto, quando as leis nio preveem que as vitimas da discriminagio racial podem ser mulheres ¢ que as vitimas da discriminagao de género podem ser mulheres negras, elas acabam nio surtindo 0 efeito desejado e as mulheres ficam desprotegidas” (CRENSHAW, 2002 p. 8). No Brasil, a socidloga Lélia Gonzalez foi uma das principais estudiosas a colocar 0 conceito de interseccionalidade como campo epistemologico em seus estudos. Em Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos lingutsticos e politicos da exploragio da mulher, ela faz uma reflexio sobre como os mareadores de raca e classe sio utilizados pela estrutura econdmica e politica, onde juntos operam de forma a determinar a classe econdmica e a posigio social de mulheres negras na sociedade brasileira. A socidloga aponta que o mareador de raca determina o de classe dentro de uma sociedade estruturalmente racista. A estrutura econémica capitalista brasileira, por exemplo, se estruturou a partir da escravidao indigena e negra. Podemos entender entio que neste pais o capitalismo se mantém por meio da exploragao e do racismo, sendo os grupos raciais negro e branco economicamente desfavorecido afetados de forma distinta. Essa 161 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 categoria metodolégica é algo relevante para se desnaturalizar essa narrativa negativa sobre as mulheres negras, pois elas formam um dos grupos que sempre foram atuantes na misica, A atuagio das mulheres negras no ambito musical € uma realidade nao s6 comprovada pelo tempo e por documentos histéricos, mas pela presenga de imimeras musicistas negras desde o perfodo colonial. Por esta razio Jurema Werneck Pinto, em O Samba Segundo as Ialodés: mutheres negras e a cultura midiética, ressalta a importincia dos estudos feministas visto pela perspectiva das mulheres negras, pois, para ela, 4 desigualdade social produzida poderia exigir deste segmento particular o desenvolsimento de cestratsias[..J. Ouse, as mulheres negras seriam provocadas a produzir préticas inovadoras que podem resultar em instabilidades, ou mesmo em mudancas do status quo" (WERNECK, 2007, p. ). A negacio ao reconhecimento da produeio artistica e intelectual das mulheres negras é algo cada vez mais evidente e indiscutivel. Partindo desta constatacio, as mulheres negras tém partido do seu Ingar de subjugadas para reivindicar reconhecimento como forma de romper com o racismo estrutural e estruturante. Diante de tantos desafios, uma questio relevante no debate sobre feminismo e musicologia/mtisica & a superacio dos estorvos hist6rieos arquitetados sob o tabu do debate piblico em torno do racismo e pela exaltacio da miscigenagio e do mito da democracia racial. Outra 6, também, a que diz respeito ao processo de inovagio dos aspectos paradigmiticos das bases epistémicas, alinhando-se com as novas correntes de produgiio de conhecimento A atual produgio de narrativas deve observar, sobretudo, a presenga de “novos” sujeitos que antes estavam fora do contexto e que agora nao s6 adentram esse universo, como também questionam as estruturas tradicionais ¢ reivindicam novas priticas. Préticas que promovam experiéncias nfo somente de vivéneia da diferenca, mas, principalmente, de protagonismos enquanto agentes produtores de saberes, lugar de fala € representatividade. Refletir sobre o feminismo na musicologia numa perspectiva interseccional, implica diretamente incitar debates sobre os diferentes grupos estéticos, ntisieas, fazeres musicais, étnicos raciais € locus social, bem como as formas em que cada grupo é atravessado pela estrutura social, considerando os status quo instituido. 7. “Opera negra”, sem perspectiva negra 162 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 Observando-se 0 contexto estadunidense e brasileiro, ha pelo menos duas éperas que tratam de “est6rias” sobre personagens negras(os) ficticias(os), eriadas por autores brancos. Nos Estados Unidos, George e Ira Gershwin compuseram Porgy and Bess em 1935, enquanto no Brasil o poeta Iidasio Tavares redigiu o libreto da épera Lidia de Oxum em 1994. Com objetivo de eserever uma dpera negra, Tavares convidou o compositor Lindembergue Cardoso para musicar seu texto. A partir dessas alegorias, os autores reivindicaram para si o status de patronos da identidade negra no campo musical, discurso que tem sido reproduzido pela eritica e pela midia. Sobre Porgy and Bess a musicdloga Naomi André, uma das que tém estudado a temética de interseccionalidade na obra, afirma: Desde a sua primeira encenagao em 1935, Porgy and Bess teve uina sibita e ingreme reconhecimento ‘como uma 6pera. Ajudada pela produgdo da Grande Opera de Houston em 1976 e pela produglo da ‘Motropolitan Opera om 1985, nas titimas déeadas o trabalho finalmento aleancou o status do uma das grandes éperas americanas de todos os tempos (ANDRE, 2016, p. 85) André aponta problemas na concepeao de George e Ira Gershwin. Um deles 6 0 fato de os compositores chamarem sua obra de “American folk opera”. Embora achasse esse termo positivo, a musieéloga ressalta que todos esses termos jé niio mais se enquadram na deserigio da década de 1930 na sociedade, nos estudos musicolégicos e culturais estadunidenses. Ela questiona: O que era miisica americana nessa altura da histéria? A que a palavra “folk” se refere e qual seu significado nos anos de 1930? Antes dos Gershivin, outras(os) compositoras(es) j& haviam composto mtisicas com temas afro- americans, bem como as(os) préprias(os) compositoras(es) negras(os) que harmonizaram Negro spiritual e outros tipos de misicas, Parece evidente que o Spirituals ¢ a miisica negra nessa época tinham algo central a ver com a ‘identidade americana. Vemos lideres na impronsa branca e negra, bem como a primeira goragio de ‘compositores americanos nas viradas do séeulo XIX até o século XX, sendo atraidos para vitios repertérios da miisica negra (ANDRE, 2016, p. 94). Naomi André problematiza a concepeio de "folk" utilizada por George Gershwin, uma vez que o compositor afirma ter escrito seus proprios spirituals e cancées folcloricas. Para ele, Porgy and Bess traz uma miisica folelérica real, embora de sua autoria, Em artigo, o compositor de Porgy and Bess escreveu: Desde a abertura de Porgy and Bess, tenho sido perguntado frequentemente por que é chamado de pera folelirica. A explicacio é simples. Porgy and Bess é um conto popular. Seu povo naturalmente +0 termo estéria (com “e") 6 aqui utilizado em tom provocativo, aludindo a antiga pratiea de empregar a palavra hist6ria (com "h") somente quando se tratava de relatar fatos reais do passado, 363 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 ccantava miisiea folelérice. Quando comecei a trabalhar na miisica, decidi contra o uso de material {olelérico original porque queria que a misica fosse toda de uma poca. Por isso ou eserevi mous préprios espirituais e folksongs. Mas eles sfio misica folelorica real - , portanto, estando em forma de 6pera, Porgy and Bess se torna una 6pera folelérica (GERSHWIN, apud ANDRE, 2016, p. 95) Sobre essa afirmativa, a musicéloga enfatiza que Gershwin parece nao ter coeréncia sobre o seu entendimento do termo. Segundo a autora, “parece estar dizendo duas coisas: que a mnisica é musica folelérica de verdade, mas que escreveu suas proprias cangdes foleléricas originais”. A respeito das criticas de varios estudiosos ao compositor, ela diz que: Richard Crawford escreve sobre essa afirmacio como um exemplo de “fakelore”, umn termo cunhado por Richard Dorson em 1950, no qual os "dados brutos do folelore [sao falsifieados] por invengao, eco, fabricagio e processos similares de refinamento para ganho capitalista (ANDRE, 2016, p. 95/96). Além disso, a musicéloga destaca que ha varios pontos de discussie em torno de Porgy and Bess que sto predominantes na literatura, como as questdes de género e de raga, A 6pera reforga o esteredtipo sobre a sexualidade da mulher negra, bem como nuances racistas. Na mesma linha segue a “pera negra brasileira” Lidia de Oxum, de Idasio Tavares ¢ Lindembergue Cardoso, em que um dos objetivos era também tratar das questées identitarias raciais brasileira. Porém, o libretista tematiza as questdes identitarias brasileiras por meio de provocagées, a partir de uma_perspectiva essencialista e baseada na estrutura racial dos Estados Unidos. Naquele pafs, a estrutura racial se pauta na origem - genétipo - enquanto no Brasil a estrutura é baseada no fenétipo - de marca. Além disso, a tama é contextualizada numa construcio de escravidio do século XIX. Aideia de uma modernidade que promove e celebra a miscigenacao e a democracia racial 6 0 fio condutor das concepedes dos autores de Lidia de Oxum. Assim, eles colaboram com a criacio de um imagindrio de inclusio e de uma sociedade igualitéria, onde os diversos grupos étnico/raciais, opressor e oprimidos, vivem harmonicamente. ‘Visualizamos na obra a naturalizacio de estigmas ¢ estereétipos sobre a sexualidade da mulher negra e a desigualdade de género. Fazendo um paralelo entre a obra de Gershwin, & qual Tavares tece duras criticas, pode-se afirmar que Lidia de Oxum carrega problemas semelhantes aos da pera estadunidense. Tavares acusou George e Ira Gershwin de reproduzirem os esterestipos de A Cabana do Pai Tomés, escrito por Harriet Beecher Stowe em meados do século XIX. Porém, a mesma ideia de negro “subserviente” se projeta em Lidia de Oxum, 164 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 evidenciando que Porgy and Bess, A Cabana do Pai Tomés e Lidia de Oxum sto pegas do mesmo quebra-cabegas, apesar do distanciamento temporal. Uma produgio que ilustra © pensamento racial da colonizagio, deveras introjetado nas sociedades colonizadas ¢ que se faz dominante por meio das elites escravocratas. 8. Opera, raga, género e representacio: perspectivas negras Ao contririo da presungio de Tavares e Gershwin, cujas obras narram ideais € fantasias romantizadas, ha outras éperas ¢ autoras(es) negras(os) que representam a histéria, os desejos e a cultura negra. Entretanto, tais obras e autoras(es) sio invisibilizadas(os) pela supremacia branca patriarcal capitalista, que sempre se apropriou da cultura de grupos marginalizados para consumagio de suas necessidades ~ sejam estas de carter finaneeiro, sexual e/ou derivadas da crise Ocidental A opera Trouble Island, composta pelo afro-americano William Grant Still em 1949, € considerada a primeira 6pera a ser produzida no Teatro de Opera de Nova York. A dramaturgia narra fatos histéricos dos prineipais lideres dos levantes pela independéncia do Haiti, por ser este pais, o primeiro do Continente americano a abolir o sistema escravagista. Na Africa do Sul, pais que tem lancado atualmente no campo operfstico mundial grandes intérpretes, também ha compositores negros disputando as narrativas no campo da representagio da identidade cultural negra. Eserita em Zulu, a dpera Princess Magogo kaDinuzulu do compositor sul-africano Mzilikazi Khumalo, escrita em 2002, fala da histéria da princesa Constance Magogo kaDinuznlu. Ela era compositora de misica clAssica e cantora, ¢ enfrenton as estruturas de opressio da Africa do Sul. r Figura 1: Princess Magogo - Zulu Princess. Foto disponivel em: South African History Online = = Princess Magogo | South African History Online, _—_Disponivel em: Iattps://www sahistory.org.2a/ people ‘prineess-magogo. Acesso em: 16/ 05/2019 as 22:17 his. 165 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 Segundo a matéria “Ravinia kicks off centennial with story of Zulu princess”, do Chicago Tribune, a épera foi estreada nos EUA no Ravinia Festival 2004, em Chicago? “Princesa Magogo kaDinuzulu, teve um grande sucesso em sua estréia mundial em maio de 2002, na cidade irma de Durban, em Chieago [..] foi transmitida ao vivo pelos EUA e pelo mundo através das instalagdes da estagio de belas artes de Chicago WFMT-FM. 98.7” (CHICAGO TRIBUNE, 2004). Por sua vez, 0 compositor Bongani Ndodana-Breen escreveu 0 texto musical da 6pera Winnie: The Opera, com libreto de Warren Wilensky e Mfandi Vundla, O drama conta, por meio de um roteiro adaptado, a historia de vida de Winnie Mandikizela - Mandela. A estreia mundial, que foi encenada para a propria Winnie Mandela no State ‘Theatre de Pretoria em 28 de abril de 2011, teve a diregio de Shirley-Jo Finney e regéncia de Jonas Alber. A cantora lirica Tsakane Maswanganyi interpretou a protagonista Winnie Mandela. Apés a apresentacio Winnie Mandela fez um discurso, no qual nao somente endossou a relevancia da obra, como também elogiou as lutas politicas pela soberania da Africa do Sul eas pautas antirracistas Figura 2: Winnte Maditize fa = Mandela, Foto disponivel na imernet. Segundo Naomi André, “Winnie: The Opera nao é uma épera que simplesmente mostra um esforco de boa fé. Winnie é uma produgao que pertence ao repertério da épera mostra novas diregdes para o futuro do género” (ANDRE, 2016, p. 182). 3 Chicago Tribune: Ravinia kicks off centennisl with story of Zulu princess. Disponfvel em: htips://www.chicagotribune.com/news/ct-xpmi-2004-05-30-0405300405-story.html, Acesso em: 16/ (05/2019 as 22:18 hrs. 166 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 9. Opera, raca, género e composicao: perspectivas negras © campo da composigio na miisica tradicional de concerto europeia segue uma estrutura social construida sob a dominacao masculina. Isso se reflete no cenirio contempordineo quando nos debrugamos sobre questées relacionadas & presenca de mulheres neste campo. 0 dificil acesso a documentos e nomes de mulheres compositor é,na realidade, finto de tal estrutura. Mas, longe de ser um imperativo na afirmagio da auséncia destas compositoras, a auséncia de registro aponta para uma negacio de sua existéncia, Trata-se do apagamento de historias de vidas, ¢ negar histéria € negar a propria existéncia dessas mulheres. Ao fazermos um recorte interseccional de género e raca, a situagio fiea ainda mais Aificil. Porém, novamente, isso nio significa que nao hajam mulheres negras atuando no campo da composigo ¢ da produgio musical. Toni Morrison, escritora e editora afro- americana, e vencedora do Nobel de Literatura de 1993, escreveu o libreto da pera Margaret Garner, cuja composigio musical foi feita por Richard Danielpour. A pera tem doi atos e baseia-se na vida da escrava fugitiva Margaret Garner. Morrison explora a pauta da liberdade, relagdes pessoais e comunitirias. Misicas da tradigao afro- americana religiosa também sio utilizadas Figura 3: Toni Morrison. Foto: disponivel na internet No artigo Margaret Garner: The Premiere Performances of Toni Morrison's Libretto, La Vinia Delois Jennings,* professora de humanidades, literatura e cultura americana do século XX na Universidade do Tennessee, traz dados que comprovam a vida de Margaret Garner * Disponivel em: https://www.upress.virginia.edu/title/5000. Ac em: 16/ 05/2019 as 22:58 has. 167 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 Em janeiro de 1856, Margaret Garner - uma mulher eseravizada em uma plantaclo de Kentucky ~ correu com membros de sua faunflia para o estado livre de Ohio. Enquanto os eagadores de eseravos tentavam capturar os fugitives em Cincinnati, Gamer cortou a garganta de sua filha de dois anos e meio para impedir seu retorno a escravidio (JENNINGS, 2016, University of Virginia Press). Angela Davis, no livro Mulheres, Raca e Classe também faz referéncia a historia de vida desta ex-escravizada: Pode-se compreender melhor agora uma pessoa como Margaret Garner, escrava fugitiva que, quando capturada perto de Cincinnati, matou a propria filha e tentou se matar. Ela se comprazia porque & menina estava morta: “assim ela nunea saberé o que uma mulher sofre como escrava” e implorava para ser julgada por assassinato: "Ine cantando para a forca em ver de voltar para a escravidio" (AVIS, 2016, pp. 39-34). ‘Toni Morrison ja havia escrito sobre Margaret Garner no romance Beloved (1987), vencedor do Prémio Pulitzer em 1988, quando foi convidada por Richard Danielpour para elaborar o libreto da épera que ele desejava produzir, Ao contrario dos autores de Lidia de Oxum e Porgy and Bess, Danielpour entendeu que o exercicio da escuta seria 0 fator central para a criagio de uma obra que representasse a historia de um grupo do qual ele nao fazia parte. Talvez este tenha sido o diferencial que garamtiu o sucesso da obra, apontada por La Vinia Delois Jennings como “Uma Nova Opera Americana, eujo mundo estreou em Detroit em 2005” (JENNINGS, 2016). A compositora cubana Tania Leon’ compés o texto musical e 0 libreto da épera Scourge of Hyacinths em 2005. 0 texto poético é baseado em Samarkand — uma peca de autoria do escritor e dramaturgo nigeriano premiado com o Nobel de Literatura, Wole Soyinka. A épera foi encomendada em 1994 pela Bienal de Munique, onde ganhon 0 Prémio BMW como melhor nova épera do festival. A obra retrata um contexto na Africa ¢ conta histéria de um preso politico, cuja tentativa de fuga é frustrada. Apresenta um grande lirismo e ricos timbres instrumentais afro-latinos. Em 2001 a peca recebeu trés apresentagdes durante o Festival Centro Histérico na Cidade do México. A compositora, que utiliza técnicas da misica contemporinea ocidental, foi diretora e compositora do Dance Theatre of Harlem. Foi também responsével pela diregio musical de The Wiz, na Broadway, ¢ pelo ensino de composigio no Brooklyn College. 5 Link do site da Tania Leon: http://www:tanialeon.com/bio html. Acesso em: 16/05/2019 as 22:50 hrs. 168 revistanmisiea | vol. 19, 12 | julho de 2019 Figura 4: Tania Leon, Foto: dispontvel na in Consideragées preliminares A partir da observagio dos fenémenos da colonizagio que se baseiam em elementos como racismo e patriarcalismo, mostramos como tais estruturas de opressio operam de forma impactante e decisiva na definigio de lugares, no acesso e no fazer musical, Pensando nas condigdes de homens e mulheres negras, estas questdes assumem proporcées preponderantes, Mostramos também que o racismo individual, bem como o institucional ¢ 0 estrntural, propiciam que a opressio de raca se configure no mito fundante dos critérios, © parimetros das relagdes pessoais, profissionais e sociais. Uma vez que as relagdes so orientadas pela lente do racismo, torna-se inevitivel a marginalizagio de quem nao compée o grupo posicionado como humano na sua totalidade Sendo assim, Locus sociais distintos sio estabelecidos de forma que cada grupo racial vivenciaré de forma especfica e particular as normas que Ihe forem impostas. Cada grupo ter seu lugar de fala relativizado pelas regras formuladas por uma sociedade sustentada pela dominacdo patriarcal, ficando, portanto, suscetivel & autorizagdes diseursivas que determinam quem pode falar Aautorizagio discursiva 6 uma das razdes que faz.com que musicélogos como Giles Hooper se sintam vontade para deslegitimar o feminismo e os estudos de género enquanto campo epistemolégicos. Essa mesma autorizagao discursiva fez com que George e Ira Gershwin, assim como Ildésio Tavares e Lindembergue Cardoso, 169 revistamnisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 reivindicassem para sio status de patronos da promogio de identidades culturais negras, inclusive, desqualificando intelectuais ¢ expressdes culturais negras, Consideragées intermediarias Tudo isso nos permite refletir sobre como, dentro desta estrutura de dominagio racial e patriarcal, os conceitos e termos sito desconectados de seus contextos ¢ utilizados como instrumentos de alienagio ¢ dominagio do outro, Um exemplo a ser citado aqui é aideia de “dpera negra’, cujo significado nio esta evidenciado. Sera que fato de alguém iratar de questdes afirmando, supostamente, ilustrar “os negros’, basta para se afirmar que tal questio é negra? Observamos, também, como o termo “negros" vem sendo compreendido e utilizado por pessoas e culturas hegem6nicas. Apos muitos debates, o termo foi escolhido pelo Movimento Negro Brasileiro como categoria identitéria politica, a partir da definicfo sistematizada pelo sul-africano Stephen Bantu Biko, para quem ser negro 6, “em esséncia, a percepcio pelo homem negro da necessidade de juntar forcas eom seus irmios em torno da causa de sua atuacio ~ a negritude de sua pele ~ e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidio perpétua (BIKO, 1971, UNEB). Biko foi um dos grandes ativistas da Iuta anti-apartheid na Africa do Sul, nas décadas de 1960 1970. Segundo Biko, ser negro ou negra significa lutar contra a ideia de que pessoas descendentes de afticanos e afticanas so apenas apéndices dos brancos ¢/ou brancas. 0 ativista vé neste termo a capacidade de contestar a suposta inferioridade das pessoas negras, 0 paternalismo das brancas, bem como os processos de branqueamento; conferindo A comunidade negra um reconhecimento de sua negritude positivada e a emaneipagao no combate & violéncia simbélica. Ou seja, a definigao de negro passa, necessariamente, pelas experiéncias e vivéncias de pessoas negras. Logo, se éperas como Porgy and Bess e Lidia de Oxum nao levam em consideragio o lugar de fala das pessoas negras, nfio podem ser consideradas mais que "estrias" criadas por pessoas que possuem autorizacio discursiva. Ao levantar pontos como 0s aqui discutidos, ressaltamos que nao é nossa intencio censurar qualquer abordagem sobre as questdes da negritude na 6pera ou em quaisquer outras expressdes artisticas. Queremos, sim, problematizar 0 padrio corrente de representagio, que serve apenas para manter o status quo instituido, reproduzindo racismo, estigmas ¢ esteredtipos de pessoas negras. Ora, existem artistas negras(os) que atuam neste campo e que, para assumir plenamente sua humanidade negra, precisam se 170 revistammisiea | vol. 19, n.1 | julho de 2019 ver representadas(os) ¢ as suas cnlturas, Nao abordar elementos da cultura negra é também uma forma de promover o racismo. O que se reivindica aqui é uma mudanea na perspectiva e numa retérica que jé nao cabe na sociedade atual (ainda que tenhamos consciéneia de que muitos valores conservadores estejam, ultimamente, sendo resgatados por pessoas e/ou entidades representantes do poder). Para colaborar com tal mudanga gostaria de ressaltar, no campo da mtisiea, as 6peras que podem ser consideradas negras a partir da definigdo de Steve Biko. Ao contrario das obras eitadas na parte inieial deste texto, que servem para reprodugio de estereétipos acerea da populacio negra, os dramas escritos por autoras(es) negras(os), evidenciam 0 quanto tais perspectivas se distanciam do pensamento colonial escravagista. As obras de autoras(es) negras(os) atuam dentro de um contesto de disputa de narrativa e fazem abordagens criticas, exercendo 0 ativismo politico, Consideragées finais As(os) artistas negras(os) utilizam a arte como instrumento para falar de questdes estruturais da sociedade. Isso pode ser observado com certa facilidade, uma vez que as obras ou se baseiam em fatos reais, ou tratam de pessoas negras que, embora desfrutem de carreiras sélidas, mesmo assim so invisibilizadas. E praticamente inexistente a divulgacao destas obras, ao mesmo tempo em que ha um vasto registro de éperas como Porgy and Bess em publicages sobre 6pera negra. O silenciamento do protagonismo de hegros e, especialmente, de negras, é consequéncia tanto do racismo quanto do sexismo, jf que as obras dos autores negros, ou falam de mulheres negras, ou foram compostas pelas mesmas. Para colaborar com tal mudanga gostaria de ressaltar, no campo da inisiea, as 6peras que podem ser consideradas negras a partir da definicio de Steve Biko. Referéncias ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2017. ANDRE, Naomi. Black Opera: History, Power, Engagement. Iinoi Dlinois Press, 2018. BIKO, Bantu S. A Definigdo da Consciéncia Negra. Salvador: Néicleo de Estudantes Negras “Ubuntu’, Universidade do Estado da Bahia ~ UNEB, 1971 BITTENCOUTT-SAMPAIO, Sérgio. Miisica. Velhos Temas. Novas Leituras. 2% ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2016, University of BUDASZ, Rogério. Teatro ¢ muisica na América Portuguesa: convencées, repertério, raca, género e poder. 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