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CONTEÚDO
• RESUMO
• 1. INTRODUÇÃO
• 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
• REFERÊNCIAS
SOARES, Igor Clem Souza. 50 tons de direito: possibilidade do sexo como objeto
do negócio jurídico no plano de validade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo
do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 07, Vol. 03, pp. 152-177. Julho de 2022. ISSN: 2448-
0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/negocio-juridico
RESUMO
O presente estudo visa promover uma reflexão a partir da obra “50 Tons de cinza”,
tomando como problemática o contrato de submissão sexual celebrado entre os
protagonistas, em que o sexo foi posto como objeto do negócio jurídico no plano de
validade. A partir da temática em questão, tem-se como objetivo elucidar a
possibilidade jurídica de inserção de cláusulas sobre a regulação de comportamento
na relação sexual entre pessoas e sua validade legal perante o ordenamento jurídico
brasileiro. Extrai-se da narrativa literária a possibilidade de inclusão de cláusulas em
contratos de namoro ou pactos antenupciais que disciplina o comportamento sexual
dos celebrantes. Para o desenvolvimento da pesquisa foi adotado o método científico
hipotético-dedutivo. Além disso, a pesquisa usada foi a exploratória-descritiva, através
de levantamento bibliográfico e documental. A teoria Escada Ponteana (planos de
existência, validade e eficácia) foi adotada como base argumentativa na investigação,
cuja verificação é se o objeto sexo é elemento válido nos negócios jurídicos. No
decorrer dos estudos, a imersão na teoria geral do direito foi fundamental para
averiguar o papel da moral na análise de idoneidade do objeto sexo. Para isso, o Plano
de Existência, Validade e da Eficácia, aplicadas na obra “50 Tons de cinza”, foram
salutares na análise desenvolvida. A relação Direito e Literatura traz reflexões
jurídicas acerca dos elementos apresentados na obra quanto ao Contrato de
Submissão, demonstrando que na legislação brasileira é possível aquele tipo de
contrato, visto que assim como o casamento, o Contrato de Submissão, que tem o
objeto sexo como cerne, é válido, desde que não infrinja a legislação brasileira. Assim,
tomando o sexo como objeto para o negócio jurídico, sua validade está dentro dos
princípios da moral e do direito. Compreende-se, portanto, que há comprovação da
possibilidade jurídica da inserção do sexo como objeto dos negócios jurídicos,
inclusive em novas modalidades contratuais que versem sobre a união entre pessoas.
Palavras-chave: Negócio Jurídico, Escada Ponteana, Sexo como objeto de contrato.
1. INTRODUÇÃO
O sexo como objeto de contrato se mostrou evidente na obra “50 Tons de Cinza”, da
autora E. L. James. A repercussão causada pela obra ao longo dos últimos oito anos
motivou pesquisadores e estudiosos a investigar quanto à possibilidade jurídica do
contrato celebrado pelas personagens Christian Grey e Anastasia Steele ser validado
no Brasil. Assim, ter-se-á como mola propulsora do presente estudo, a possibilidade
de o sexo ser ou não objeto de negócio jurídico.
Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser,
valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas
podem ser, valer e não ter eficácia (H. Kelsen, Hauptprobleme, 14). o que se não pode
dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz sem ser; porque não há validade, ou
eficácia do que não é.
Para o autor, os elementos são ‘harmônicos’ entre si, tendo em vista que para se
efetuar um, é necessário a existência do outro e, assim, o negócio tornar-se-á eficaz
e válido. Mas, é certo que nem sempre é possível tal harmonização entre eles. “É
perfeitamente possível que o negócio seja existente, inválido e eficaz, caso um
negócio jurídico anulável que esteja gerando efeitos” (TARTUCE, 2018, p. 247).
É no plano da existência que o fato entra na esfera jurídica e ocorrerá um estudo para
averiguar se tal fato será relevante ou não para o Direito.
Evidencia-se que o Código Civil, em seu artigo 104, descreve o agente capaz, objeto
lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não proibida em lei,
como sendo elementos de validade do negócio jurídico. No elemento capacidade do
agente, é possível abstrair a ideia de que há um sujeito que manifesta sua vontade e,
para tanto, é necessário que ele seja capaz de praticar os atos da vida civil, conforme
exige a legislação.
Mas, não apenas a licitude deve ser observada, impondo-se atentar para a validade
do objeto, sendo ainda necessário analisar sua possibilidade. No entendimento de
Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 359), a possibilidade deve ser analisada no
aspecto físico e jurídico, sendo esta a hipótese de inexistência de amparo legal para
validade e, aquela, a situação que não há possibilidade natural ou física para que
venha a ser praticada.
A forma do negócio jurídico é apresentada por Maria Helena Diniz (2008, p. 501),
como a exteriorização da vontade do indivíduo no negócio celebrado, sendo esta
exteriorização a maneira que o negócio produzirá seus efeitos. Segue afirmando que
a forma é livre, desde que não haja na legislação modo específico para o negócio
jurídico.
Essa sistemática liberal observada pelo Código Civil quanto à forma do negócio
jurídico, facilita a adequação da lei aos casos que vão surgindo conforme a sociedade
modifica seus costumes e atos negociais.
Seguindo a ideia da Escada Ponteana, Flávio Tartuce (2018, p. 247), acrescenta que
no plano da eficácia é possível abstrair os seguintes elementos: condição, termo,
consequências do inadimplemento negocial (juros, multas, perda e danos) e outros
elementos (efeitos do negócio).
Grande parte das doutrinas nacionais elencam três elementos acidentais do negócio
jurídico, dividindo-os em condição, termo, encargo ou modo, onde Maria Helena Diniz
(2008, p. 521), assinala que seu papel principal é o de alterar os efeitos naturais do
negócio jurídico.
A estrutura didática do negócio jurídico abre um leque imensurável na diversificação
de possibilidades de negócios. Tal fato muito enriquece a prática habitual dos
indivíduos em sociedade.
É sabido que o gênero negócio jurídico tem várias espécies, sendo os contratos uma
das mais comuns. Entretanto, há no ordenamento negócios formais previstos no
Código Civil que não integram as tipificações elencadas na parte específica dos
contratos, como por exemplo, o casamento e o testamento. Compreender estes
elementos do negócio jurídico possibilita ao operador do Direito, bem como a qualquer
membro da sociedade civil, inovar e proteger juridicamente seus interesses por meio
da celebração de negócios jurídicos atípicos, conforme o contrato de namoro citado
alhures.
Assim, é possível por meio dos diversos meandros doutrinários alicerçar o negócio
jurídico sob três aspectos principais, quais sejam: o primeiro, no plano de existência,
fundamental ao surgimento do negócio jurídico, para então, após constatada sua
existência, seja possível averiguar sua validade no mundo jurídico, por meio de
análise dos elementos de validade. Uma vez válido, o Direito possibilita a modificação
dos efeitos do negócio jurídico por meio de inserção das cláusulas acidentais.
Paulo Nader (2008, p. 160) descreve os costumes contrários à lei, costumes que
concordam com a lei e os costumes praticados na falta da lei, deixando claro que o
costume praticado na inexistência de norma ou de acordo com a norma servem de
arcabouço legal para justificar a proteção daquele comportamento.
A despeito do que é apresentado na trama da obra “50 Tons de Cinza”, resta evidente
que a possibilidade de inserção de cláusulas que versem sobre comportamento sexual
na relação entre pessoas em muito poderia contribuir na construção do Direito. As
possibilidades ultrapassam a hipótese fictícia abordada na obra, podendo servir para
a regulação do comportamento sexual entre os casais, por meio de cláusulas no pacto
antenupcial ou, até mesmo, figurar nas disposições no contrato de namoro.
Como o sexo ainda é um tabu, não há uma fonte científica que sirva como base para
mostrar com exatidão o comportamento sexual entre os casais no país. Porém, sua
prática existe e provavelmente vai muito além do suposto “papai e mamãe”, tendo em
vista que, segundo Vieira e Corsato Neto (2016, p. 254) “As variações da sexualidade
humana têm sido socialmente mais aceitas nas últimas décadas. Os cinquenta tons
de cinza demonstram algumas nuances dessa variedade, podendo alterar ou não de
conformidade com o momento ou etapa da vida”.
O estudo do Direito através de obras literárias, no Brasil, é algo muito novo. Entretanto,
várias reflexões acerca de temas jurídicos encontram-se nas obras clássicas escritas
durante a história moderna. Exemplos recorrentes para o estudo do Direito estão
em Antígona, de Sofócles, Robison Crusoé, de Daniel Defoe, O Processo, de Franz
Kafka, além das inúmeras obras shakespearianas.
Está claro que os agentes que compõem o Poder Judiciário e o meio acadêmico, ao
inserir a Literatura em seus trabalhos, estarão mais qualificados, pois vivenciarão
situações nunca experimentadas, desenvolverão visão crítica sobre o Direito frente
aos casos práticos, além do que, ampliarão a visão de mundo, tão importante para
que não se endureçam, já que o Direito traz isso. Portanto,
Logo, as ponderações que o leitor deve fazer sobre o Direito através das obras é
essencial para as mudanças necessárias e, assim, fomentar a humanização que a
Literatura traz ao Direito e seus agentes. Em entrevista concedida a Henriete Karam,
para a Revista Anamorphosis, Lenio Streck (2018, p. 617) é enfático sobre isso. Ele
argumenta que,
A literatura ajuda a existencializar o direito. Por isso, o que está sempre mais próximo
da literatura é a hermenêutica. A angústia, para ser “tratada”, exige intermediação.
[…] Agora estamos frente a frente com nós mesmos. Com nossos fantasmas. Com a
existência nossa e dos outros. Deus morreu, e agora é que não podemos fazer tudo.
Ou qualquer coisa.
Pois o direito trata dessa nossa relação com o mundo, com as coisas. Democracia,
direitos sociais, cidadania: isso ocorre como uma conquista intermediada. Literatura
faz intermediação existencial. Hermenêutica, no sentido que a trabalho na Crítica
Hermenêutica do Direito, também. […]
Foi essencial repensar o Direito através da literatura, pois trouxe discussões jurídicas
relevantes para os profissionais da área, além disso, os estudos jusliterários tornaram-
se uma ferramenta crucial para compreender e aplicar o direito material. “Na verdade,
a premissa […] pode ser formulada do seguinte modo: algumas narrativas literárias
são mais importantes para o estudo do direito do que a grande maioria dos manuais
jurídicos” (TRINDADE, 2014, p. 6)[2].
Essa conexão surge como uma nova perspectiva, qual seja, a de mitigar a ratio
positivista, agregando o fenômeno jurídico aos demais fenômenos sociais, vencendo
assim a teoria kelseniana de um suposto Direito Puro, sem intervenção de outras
ciências […]. (PARODI; MESSAGGI, 2011, p. 54-55)
Deste modo, pode-se dizer que as obras literárias se apresentam como fonte
inesgotável de valores socioculturais e históricos, atrelados aos costumes, valores
éticos e morais de uma determinada sociedade. De tal modo, o Direito surge em prol
da sociedade e, nada mais coerente do que compreender as leis a partir da própria
sociedade. Dessa forma, as obras literárias de ficção carregam em seu bojo o
processo mimético entre o que é real e o ficcional. Seguindo esta linha, ao ser feito a
fusão Direito e Literatura ultrapassa-se os limites do simples olhar para a sociedade,
chegando a compreender a sociedade em toda a sua amplitude.
Verifica-se o quão é importante a inter-relação entre ambas, pois “[…] a literatura é
capaz de sofisticar a nossa compreensão de problemas morais e sociais
contemporâneos. Talvez a literatura não faça de nós pessoas melhores, mas ela
incrementa a nossa capacidade de perceber a complexidade de questões morais que
merecem reflexão cuidadosa” (SHECAIRA, 2018, p. 358). A partir disso, certamente,
as práticas jurídicas seriam mais dinâmicas e compreensíveis para os leigos.
Exerceria o bom-senso, evitando os jargões jurídicos, leis obsoletas, por exemplo.
Mas, isso só será possível se os agentes do Poder Judiciário estiverem dispostos.
Segundo Robin West (1988 apud SHECAIRA, 2018, p. 362), “a literatura é capaz de
humanizar o jurista. O advogado que entre em contato com a literatura será menos
oportunista. O juiz, menos frio. O promotor, menos insensível ao sofrimento do réu. E
assim por diante”.
É notório que humanizar vai além do sentenciar por sentenciar, do acusar por acusar,
é tentar reconhecer o ser humano com suas falhas, erros, tentando buscar a justiça
para sanar uma dor, um prejuízo, uma reparação. Que valores éticos são extraídos e
como aplicá-los juridicamente? A literatura possui esses valores. Além de adquirir
cultura, melhorar a eloquência, as obras literárias têm, em abundância, lições sobre
direito. Embora nem todas as obras tratem do direito,
[…] mas aquelas que exploram temas jurídicos são capazes de nos fazer refletir com
cuidado sobre características gerais do sistema jurídico. Essas obras também são
capazes de nos fazer refletir com cuidado sobre nossas obrigações éticas enquanto
advogados, juízes, promotores, professores de direito etc. (SHECAIRA, 2018, p. 375)
ANTÔNIO – Palavra, aceito! Assinarei a dívida e declaro que um judeu pode ser até
bondoso. (SHAKESPEARE, 2019, p. 29)
PÓRCIA – Um momentinho, apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus
não tens; nem uma gota. São palavras expressas: “Uma libra de carne”. Tira, pois, o
combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares,
uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de
Veneza, para o Estado passarão por direito. (SHAKESPEARE, 2019, p.117)
Observa-se que no contrato existem elementos que torna o contrato nulo, ou seja, a
nulidade do contrato está justamente no que foi solicitado pelo Shylock, pois, ao extrair
a libra da pele, haveria perda de sangue e, tal consequência não faz parte do contrato
firmado entre as partes. Esse exemplo mostra como a Literatura tem relação direta
com os eventos sociais e jurídicos de uma sociedade.
[…] buscam no poeta e dramaturgo inglês referencial teórico que possibilitem não só
a compreensão do Direito, sua filosofia e o funcionamento da estrutura judicial como
também a própria realidade econômica, histórica e cultural que os estruturam. (OLIVO,
2005, p. 20)
Como todo livro desse tipo, ele possui certas dimensões sociais evidentes, cuja
indicação faz parte de qualquer estudo, histórico ou crítico: referências a lugares,
modas, usos; manifestações de atitudes de grupo ou de classe; […]
Mas acontece que, além disso, o próprio assunto repousa sobre condições sociais
que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado. Trata-se da
compra de um marido; […] o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do
esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista
desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise socialmente radical, reduzindo
o ato ao seu aspecto essencial de compra e venda. Mas, ao vermos isto, ainda não
estamos nas camadas mais fundas da análise, — o que só ocorre quando este traço
social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro.
Deste modo, pode-se dizer que as obras literárias são fontes primárias para
compreensão do fazer jurídico, mesmo que a obra pertença a outro momento da
história da humanidade. Sempre haverá um tema atual promovendo a reflexão da
teoria em relação à prática jurídica. Essa reflexão ampliará a visão de mundo do
profissional do Direito, pois este deixará de ser um leitor passivo, tornando-se um
crítico quanto à utilização de argumentos na construção de um texto jurídico,
carregados de significados que, outrora, não faziam muito sentido para ele.
Essa conexão surge como uma nova perspectiva, a de mitigar a ratio positivista,
agregando o fenômeno jurídico aos demais fenômenos sociais, superando a teoria
kelseniana (1934) de um suposto Direito Puro, sem intervenção de outras ciências.
(MESSAGGI; PARODI; POPP, 2012, p. 92)
Nesse contexto, Lima (2012, p. 282) esclarece que “a literatura também formata o
direito, à medida que fornece metáforas e narrativas que se constituem em elementos
aceitáveis para a explicação de ideias e paradigmas jurídicos […]”.
O tema é tão atual que além de diversos artigos escritos em páginas da internet,
também foi objeto de trabalho científico publicado na Revista de Direito, Arte e
Literatura, de autoria de Tereza Rodrigues Vieira e Fernando Corsato Neto (2016),
com o título: “50 Tons de Cinza”, Sexualidade e Contrato de Prestação Sexual.
A ficção desenvolvida na obra “50 Tons de Cinza” é protagonizada por uma jovem
universitária, Anastasia Steele, que está prestes a se formar em Literatura e, por um
jovem e bem-sucedido empresário, Christian Grey. Após o encontro entre eles, é
desencadeada uma série de fatos que os levam ao envolvimento amoroso. Contudo,
tal relação é marcada pela inexperiência amorosa e sexual por parte de Anastasia,
em contrapartida, Christian além de experiente, tem hábitos sexuais excêntricos.
Todavia, o que realmente destaca na trama são as exigências impostas por Christian
à Anastasia. Dentre elas, está a confidencialidade, marcada pela necessária análise
e posterior assinatura do contrato entre eles. Outro ponto marcante, é que o contrato,
têm cláusulas de submissão sexual, sendo a aceitação dos termos contratuais e sua
posterior assinatura, condição para que haja relacionamento entre ambos. Percebe-
se claramente, o entrelaçamento entre o ficcional (a literatura) e o real, através de um
negócio jurídico celebrado entre os protagonistas da obra. A hipótese não parece
descabida do ponto de vista jurídico, haja vista que o sistema de Leis no Brasil já
possibilita a realização de negócio jurídico entre homem e mulher para constituir
sociedade, incluindo obrigatoriedade quanto à fidelidade, habitação em comum,
dentre outros quesitos. Tal contrato é conhecido como casamento e está previsto no
Código Civil a partir do artigo 1.511 da Lei nº 10406 de 10 de janeiro e 2002, que
estabelece: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na
igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” (VADE MECUM COMPACTO DE
DIREITO RIDEEL, 2016, p. 273).
Como pode ser observado, o casamento, na forma que está elencado em Lei, não
apresenta de forma explícita a existência do sexo como condição para o contrato,
mas, é pacífico na doutrina que, se um dos cônjuges alega a falta do sexo sem motivo
justificado da parte que se recusa, há possibilidade de dissolução do casamento.
Outro ponto observável é que inexiste no Código Civil ou em Legislação, uma
descrição de como o sexo deve ser feito entre os casais. Sendo assim, a maneira de
se fazer é uma liberdade consensual entre as partes.
Na obra, objeto de estudo, o protagonista especifica com exatidão a forma que será
praticado o sexo, sendo possibilitado à Anastasia manifestar sua inconformidade em
relação aos atos que a desagradem. Ela chega a fazer uma pesquisa sobre a validade
jurídica do contrato, concluindo que não haveria base jurídica para sua exigência pela
via judicial.
[…] talvez eu deva negociar o que quero. Ler aquele contrato ridículo linha por linha e
dizer o que é aceitável e o que não é. Em minha pesquisa, descobri que o contrato é
legalmente inexequível. Ele deve saber disso. Imagino que assiná-la simplesmente
estabeleça os parâmetros da relação. Ilustra o que posso esperar dele e o que ele
espera de mim – a submissão total. […] (JAMES, 2012, p. 270)
Apesar de impactar o leitor mais tímido, tais práticas nada mais são que uma forma
de satisfação sexual peculiar ao gosto do indivíduo. Mesmo o assunto não sendo
abordado com liberdade, o tema sexo em algumas ocasiões também é resultado de
uma postura ética. Para José Renato Nalini (2015, p. 88), algumas pessoas encontram
a felicidade no prazer, sendo este resultado do gozo no sexo, ou o prazer extraído de
alguma outra atividade praticada pelo indivíduo. A busca pelo prazer é um
comportamento hedonista e tal conduta é característica da sociedade contemporânea.
Evidente que o contrato celebrado na ficção, objeto de estudo, não é algo comum,
embora sob o aspecto da legislação brasileira, tais disposições poderiam ser válidas,
desde que não infringissem normas da esfera penal, como por exemplo a Lei Maria
da Penha.
Analogicamente o contrato de submissão apresentado na obra abrange um acordo de
vontades entre seus signatários para que haja uma forma de praticar o sexo de
maneira preestabelecida, diverso do negócio jurídico previsto no Código Civil, o
casamento. Mas, assim como o casamento, o contrato da ficção tem como objeto o
sexo que por si só não o torna inválido. O sexo não pode ser objeto de negociação
mediante pagamento, entretanto, não há óbice em sua inserção como um acordo de
vontades, desde que o consenso impere.
Na trama escrita por E. L. James, denota-se que a fantasia permeou sua criatividade,
mas os detalhes que rodeiam o negócio jurídico são bem lúcidos e possíveis na
realidade jurídica pátria.
Tal característica, vale dizer, por uma identidade de princípios, confunde-se com a
própria possibilidade jurídica ou idoneidade do objeto.
Neste caso, o sexo como objeto do negócio jurídico, deve ser apreciado quanto à
licitude e idoneidade. Como exemplo de objeto inválido, a hipótese de um acordo de
vontades tendo o sexo como objeto, sendo este uma prestação de serviço mediante
pagamento em dinheiro, é sempre ventilada pelas doutrinas civilistas como clara
situação que contraria a licitude, haja vista que uma possível demanda judicial com
intuito de cobrar ante o inadimplemento de uma das partes ocasionaria uma evidente
demonstração de ofensa a moral.
Não é só no código civil que há impossibilidade jurídica do objeto sexo ser objeto de
contrato de prestação de serviços mediante pagamento em dinheiro porque, no código
penal brasileiro também, uma vez que há expressa tipificação da conduta que
caracteriza exploração sexual. A Legislação Penal, mais que a Civilista, vem
umbilicalmente ligada à moral, sendo sua constituição arraigada nos valores que
permeiam a formação da sociedade. Por sua vez, a legislação civil, ao contrário das
leis penais, tende a ter em seu conteúdo, uma menor influência da moral, privilegiando
na maior parte de seus artigos, a individualidade e a liberdade. Já na Teoria Geral do
Direito, o tema aquece os debates entre os estudiosos, pois, por meio de várias
pesquisas, aprofundam os estudos no sentido de comprovar a real influência da moral
na formação das leis.
Há também, os que não veem essa relação entre a moral e o direito. Lenio Streck
(2019) discorre que,
[…] O que me importa mesmo é reafirmar que Direito não é moral. Que Direito não é
política. Direito se abebera, é claro, destes elementos. Mas depois que está posto,
pode sofrer interpretações a partir da aplicação a casos. O que o direito não pode é
ser corrigido por argumentos políticos ou morais (“clamor das ruas” é argumento
moral). Garantias e direitos constitucionais devem ser aplicados inclusive para os
inimigos, se quisermos fazer uma afirmação retórica. Mas verdadeira. Alguém pode
até dizer que, face ao estado de coisas em que estamos, já não se pode cumprir a
Constituição e que essa só atrapalha.
Ainda que a lei civil estabeleça a licitude como requisito essencial de validade e, que
esta licitude abranja a idoneidade do objeto, é certo que o arcabouço científico já
comprovou que em algumas situações a moral não integra a norma jurídica. Desse
modo, normas de conteúdo que contrariam a moral podem ser identificadas no próprio
ordenamento civil. É a hipótese onde o credor de determinada quantia busca a via
judicial para que o judiciário o substitua e use meios coercitivos para tomar o
patrimônio do devedor e, ressalvadas as poucas hipóteses legais, este poderá ser
levado a ruína financeira, se assim for a única forma de satisfazer o débito.
Bem esclarece Paulo Dourado de Gusmão (2009, p. 71) quando afirma que a
consciência e vontade da pessoa não são passíveis de controle por meio das normas
jurídicas.
Paulo Nader (2008, p. 43) elucida a questão entre moral e direito apresentando
algumas teorias representadas por círculos. A Teoria do Mínimo Ético é aquela que
esclarece que o direito tem o mínimo de conteúdo moral exigível ao bem da
coletividade. Neste sentido é a hipótese do contrato de submissão apresentado na
obra, afinal, qual o interesse da coletividade em intervir no sexo praticado na
intimidade do casal? Logo, é possível asseverar que o sexo pode ser objeto idôneo,
desde que não seja uma prestação de serviço paga ou que seja praticada mediante
violência, resultado de dolo.
O código civil reservou capítulo específico para falar sobre a invalidade do negócio
jurídico, prescrevendo em seu artigo 166, incisos I ao VII, as hipóteses de nulidade. O
inciso II, do artigo 166, reservou ao objeto a previsão de nulidade quando este for
ilícito, impossível ou indeterminável. A previsão legal é uma complementação a
previsão do artigo 104, deixando evidente a insustentabilidade do negócio jurídico
quando este não tiver objeto considerado idôneo e lícito. Resta evidenciado que o
contrato celebrado pelos protagonistas da obra “50 Tons de Cinza” não ofende a
previsão dos artigos citados, pois seu objeto não é ilícito, é possível e determinado.
A Constituição Federal, prescreve a liberdade como sendo regra e sua privação, uma
exceção, amparando o código civil e seus artigos que, ao serem interpretados pelo
método sistemático, devem regular a conduta de maneira a preservar a liberdade dos
indivíduos na celebração dos negócios jurídicos. No artigo 5o, inciso X, a Constituição
Federal baliza de maneira expressa a proteção à intimidade e privacidade das
pessoas, sendo esse regramento uma clara expressão da possibilidade de uso do
sexo como objeto do negócio jurídico, sem, contudo, torná-lo inválido por ser
interpretado como ofensa a moralidade. Obviamente o sexo integra a intimidade das
pessoas, excetuando a hipótese de seu emprego na expressão cultural, que pode
ocorrer em filmes ou teatros de conteúdo explícito. Mas, sua prática só é permitida na
privacidade, respeitando os costumes sociais.
Alexandre Sanches Cunha (2012, p. 266), fala que a intimidade citada na constituição
federal é a possibilidade de a pessoa preservar suas relações de ordem privada,
sendo assim é possível compreender que o sexo é parte da intimidade, portanto, goza
da proteção constitucional.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da literatura é possível expandir a imaginação e a realidade dos diversos
povos e culturas. Perpassa-se as fronteiras territoriais, obtendo vários temas jurídicos
através dos contos de fadas até obras mais complexas. Direito e Literatura possuem
uma inter-relação ímpar, proporcionando ao leitor/pesquisador/operador do Direito
uma fonte de trabalho inesgotável.
Notadamente, após análise dos conteúdos constitucional, penal e civil, assim como,
na Teoria Geral do Direito, perfazendo os caminhos relacionados a moral e ética,
asseverou-se que o contrato da ficção celebrado entre Christian Grey e Anastasia
Steele, contém objeto que pode ser considerado lícito. Tal percepção foi descoberta
após a compreensão de que a legislação brasileira impõe limites de ordem pública ao
objeto do negócio jurídico, quando este não está em consonância com a norma
constitucional e suas derivações.
Mesmo não sendo hábito na maioria dos brasileiros celebrar pactos antenupciais ou
contratos de namoro, resta comprovado, do ponto de vista jurídico, que há
possibilidade jurídica de sua celebração, sem que o objeto sexo o torne inválido. Já
há, no país, pessoas adeptas às práticas sadomasoquistas e, quem sabe, contratos
já sejam firmados inspirados no filme. Tem-se aí, um novo objeto de estudo. Toda
essa modificação de comportamento, deve-se ao avanço na comunicação decorrente
da globalização possibilitando a expansão, ou modificação dos costumes sociais, fator
que motiva a adequação das normas jurídicas ao novo comportamento das pessoas.
Em qualquer grande cidade, em suas áreas centrais, não é difícil se deparar com uma
fachada de loja de material erótico. Em tal local é possível adquirir diversos acessórios
que servem ao alcance do prazer por meio da realização de fetiches sexuais. A busca
pelo prazer é característica da sociedade hedonista. O sexo é uma forma natural de
relação entre pessoas e sua regulação, por meio de um acordo escrito, não torna o
negócio jurídico inválido.
É presumível que as pessoas optem, por uma maneira jurídica, ampliar a proteção em
suas relações, incluindo o sexo nas diversas modalidades de negócios existentes ou
até mesmo, criando contratos atípicos, desde que respeitem os preceitos e princípios
legais.
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