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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação

Seabra, Hugo Mar tinez de

Delinquência a preto e branco: estudo de jovens


em reinserção. - (Tese : 1)

ISBN 989-8000-13-9

CDU 316
343

P R O M OTO R
A LTO - C O M I SS A R I A D O PA R A A I M I G R AÇ ÃO
E M I N O R I A S É T N I CA S ( AC I M E )
w w w. a c i m e . g ov. p t

APOIO

w w w. fc t . p t

A U TO R
HUGO MARTINEZ DE SEABRA
E - M A I L : h u g o . s e a b ra @ n u m e n a . o rg . p t

E D I Ç ÃO
A LTO - C O M I SS A R I A D O PA R A A I M I G R AÇ ÃO
E M I N O R I A S É T N I CA S ( AC I M E )
P R AÇA CA R LO S A L B E R TO , N º 7 1 , 4 0 5 0 - 4 4 0 P O R TO
T E L E FO N E : ( 0 0 3 5 1 ) 2 2 2 0 4 6 1 1 0 FA X : ( 0 0 3 5 1 ) 2 2 2 0 4 6 1 1 9
E - M A I L : a c i m e @ a c i m e . g ov. p t

I M P R E SS ÃO
TEXTYPE

P R I M E I R A E D I Ç ÃO
250 EXEMPLARES

ISBN
989-8000-13-9

D E P Ó S I TO L E GA L
231 642/05

L I S B OA , S E T E M B R O 2 0 0 5

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia Históricas


Autor: Hugo Luís Martinez de Seabra
Orientadora: Professora Dra. Maria Margarida Marques
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Mestrado Financiado pela Fundação Para a Ciência


e Tecnologia através da Bolsa de Mestrado Ref. BM/17665/98

Hugo Martinez de Seabra


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Estudo de Jovens em Reinserção


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Aos meus pais

Liberdade
É eu poder um dia estar a comemorar com a família todas as coisas boas
da vida, é eu sair do colégio e os meus pais saírem da prisão.

Fernando – 13 anos
In Instituto de Reinserção Social(1999)

A concretização desta dissertação nunca seria possível sem o auxílio pre-


cioso de inúmeras personalidades e organismos. Agradecemos, em pri-
meiro lugar, toda a disponibilidade e apoio da Professora Dra. Maria Mar-
garida Marques. Agradecemos igualmente todo o apoio e incentivo moral
proporcionado pela Susana, Vitor e ‘Zinda’, Gonçalo, Graça e Gonçalinho,
Tiago e Vanessa. Igualmente são devidos agradecimentos aos Professores
Fernando Luís Machado, Rui Santos, David Justino, Manuel Lisboa e Maria
João Valente Rosa; aos ‘socinocas’ (pioneiros, ‘segunda’ e ‘terceira gera-
ções’) - em particular ao Tito Damião, ao Tiago Santos, à Elizabete Briga-
deiro, à Edite Rosário, à Catarina Oliveira, à Graça Frias, à Susana Palácio,
à Sílvia Nóbrega, ao Tiago Ralha, e muitos outros -; ao apoio logístico do
SociNova – Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada; ao Dr. Seme-
do Moreira da Direcção Geral dos Serviços Prisionais; à Graça Fonseca e
ao Pedro Duro, Directores Adjuntos do Gabinete de Política Legislativa e
Planeamento do Ministério da Justiça, à Dra. Teresa Cintrão desta mesma
instituição e todos os demais colegas de profissão; à Direcção do Instituto
de Reinserção Social que autorizou o estudo; ao então Director do Colégio
Dr. Manuel Mendes; ao então Sub-Director da mesma instituição Dr. Mar-
cos Marinheiro; à Dra. Maria João Leote de Carvalho - auxílio fundamen-
tal em todo este processo -; a todos os técnicos, monitores e funcionários
do Colégio e, por último, aos jovens internados por todas as lições de vida
que nos proporcionaram.

Lisboa, Outubro de 2002

Hugo Martinez de Seabra


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Estudo de Jovens em Reinserção


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Índice

PREFÁCIO 11

I – INTRODUÇÃO 17

II - CONTEXTUALIZAÇÃO GERAL 21
1. Pobreza à portuguesa 21
2. Caracterização sumária da situação
Imigratória portuguesa 24
3. Dinâmicas demográficas dos imigrantes
Africanos 31
4. Filhos de imigrantes africanos 32
5. Criminalidade em Portugal 37
5.1 Inquéritos de Vitimação 37
5.2 Criminalidade nos Relatórios
de Segurança Interna 38
5.3 Investigações científicas da criminalidade 41
5.4 Lisboa - capital, também, da criminalidade 42
6. Delinquência juvenil 42
6.1 Legislação de Menores em Portugal 42
6.2 Justiça de Menores em Portugal 47
6.3 Instituto de Reinserção Social 57

III – ESTADO DA ARTE 64

IV – PROBLEMATIZAÇÃO 73

V - METODOLOGIA 93
1. História natural da investigação 93
2. Escolha do instituto de reinserção social 95

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3. Escolha do colégio de acolhimento, educação


e formação (CAEF) 95
4. Escolha das metodologias utilizadas in loco 96
4.1 Estudo de caso 96
4.2 Pesquisa de terreno 97
4.3 Observação ‘quasi-participante’ 98
4.4 Entrevistas 100
4.5 Inquérito por questionário 102
4.6 Outras notas metodológicas 103
5. Material recolhido: sua crítica e análise 104
5.1 Material recolhido 104
5.2 Fontes construídas: seus limites e virtualidades 105
5.3 Análise da informação obtida 107
6. Opção terminológica 107

VI – CONTEXTUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL DA OBSERVAÇÃO 109


1. Instalações/Equipamentos 109
1.1 Área envolvente 109
1.2 Cozinha e ateliers de formação profissional 110
1.3 Unidade residencial 110
2. Actividades desenvolvidas 116
3. Funcionários 116
4. Menores institucionalizados 118

VII - CONSTRUIR, DESCONSTRUIR E RECONSTRUIR DISCURSOS 128


A - ‘Instituições Sociais Totais’ - sua apropriação
e adaptabilidade 129
1. Classe Social 130
2. Família 134
3. Bairro 143
4. Grupo de amigos 147
5. Escola 153

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6. Mercado de trabalho 158


7. ‘Blacks’ - ‘Pulas’ 161
8. Ilações finais 164
B - Maneiras Agir 165
1. Primeiras ocorrências 165
2. ‘Fezadas’ 167
3. Consumos aditivos 193
4. Polícia 199
5. Ocupações 203
6. Ilações finais 205
C - Maneiras de Pensar e Sentir 206
1. Estigmas/Racismo 206
2. Mass Media 208
3. Estado 211
4. Juízes 213
5. Indumentária de marca 214
6. Música 216
7. Ídolos 222
8. Futuro 225
9. Soluções 227
10. Ilações finais 229

VIII - CONCLUSÕES 231

FONTES 238
BIBLIOGRAFIA 241
ANEXOS 260
ANEXO I - CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS 260
ANEXO II - GLOSSÁRIO 261

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PREFÁCIO

Entre 1996 e 1999, o SociNova/Migrações fez um estudo sociológico dos


programas de requalificação urbana levados a cabo no município de Oei-
ras. O trabalho começou com o acompanhamento de uma operação cir-
cunscrita a uma zona do Vale de Algés marcada pela existência de bairros
degradados, tendo a observação sido alargada, seguidamente, a todos os
núcleos de realojamento municipal do Concelho. Os resultados mostra-
vam que, nas zonas de génese mais recente, se verificava uma forte con-
centração de populações de origem imigrante, com particular incidência
nas provenientes das ex-colónias portuguesas em África, com ou sem na-
cionalidade portuguesa.

Esta situação, em contraste com a envolvente urbana marcada pela pre-


sença predominantemente de classe média de origem europeia, não dei-
xava dúvidas quanto à não aleatoriedade da distribuição residencial. Em-
bora os dados oficiais disponíveis inviabilizassem o estabelecimento de
medidas rigorosas, as observações então realizadas permitiram admitir
como hipótese bastante plausível que a confluência da origem migrante
com a situação de exclusão espacial poderia prefigurar a formação de uma
categoria social marginalizada com conotações étnicas - o que autores
dos anos 1960 designaram como uma ‘classe étnica’, assim pretendendo
sublinhar a dimensão da exclusão associada ao termo étnico.

A história da presente monografia começou justamente neste contexto de


estudo. Em termos de tecido urbano, a expressão da marginalidade extra-
vasa o plano meramente espacial, envolvendo as dimensões económica,
cultural e política. Enquanto membro júnior da equipe de investigação do
SociNova/Migrações, o Hugo de Seabra foi destacado para prestar espe-
cial atenção a um segmento particularmente visível nestes contextos: os
jovens. Com efeito, os espaços exteriores (da rua, das zonas comerciais,
de lazer) são, nestes contextos, pontos de encontro marcados pela pre-
sença dos jovens, particularmente do sexo masculino, a diferentes horas
do dia ou da noite. Alguns destes grupos são ainda total ou predominante-
mente compostos por jovens que se definem a si próprios como ‘Blacks’.
Foi sobre estes que se debruçou, particularmente, o trabalho de Hugo de
Seabra.

Meia dúzia de anos volvidos sobre a observação, pode-se hoje afirmar,


sem imodéstia, que um dos méritos dos estudos empíricos levados a cabo
pela equipe do SociNova/Migrações nessa fase consistiu, justamente, em

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desvendar, a partir da análise da experiência vivida e relatada pelos jo-


vens, os processos identitários escorados na apropriação de elementos
de exclusão e estigmatização como a cor de pele, a pobreza e a ideia de
‘ghetto’. A importância destes critérios de auto-definição, que revelam fe-
chamento e demarcação em relação a uma ideia normalizada de ‘socie-
dade’, torna-se ainda mais evidente no contexto de condicionamento de
liberdade a que se encontram sujeitos os jovens da instituição estudada
na presente monografia.

O colégio onde se desenrolou a observação, tutelado pelo Instituto de


Reinserção Social, é uma instituição vocacionada para o acolhimento de
menores que tiveram, a determinada altura das suas vidas, problemas
de delinquência. É já enquanto consultor do Gabinete de Planeamento do
Ministério da Justiça que o Hugo de Seabra finaliza o trabalho. Valendo-
se, então, da experiência adquirida, focaliza o estudo na exploração da
relação entre desvio e etnicidade – que transparece claramente do título
da publicação, Delinquência a preto e branco, inicialmente dissertação de
mestrado em Economia e Sociologia Históricas na FCSH.

Os elementos de auto-referenciação atrás enunciados surgem, neste con-


texto, como marcadores fortes de identificação e bases de reivindicação
de um estatuto. Os excertos de letras rap transcritos nesta monografia
sugerem, no entanto, uma amálgama complexa de motivações, que tanto
envolvem reivindicações de consumo individual, como a exigência de res-
peito pelos direitos dos colectivos particulares; aspirações a uma socieda-
de mais democrática e justa, mas também a afirmação de uma hierarquia
de géneros à margem de qualquer lógica meritocrática.

A centralidade dos atributos identitários é ainda reveladora de alguma fra-


gilidade do argumento da ‘subclasse’: a dimensão estratégica da etnicida-
de pode e deve, como mostrado em vários outros estudos, ser contempla-
da enquanto forma activa de ‘construção do mundo’.

As recorrentes (e por isso preocupantes) referências às injustiças de que


os jovens ‘Black’ se sentem alvo, mormente em virtude de uma actuação
das forças de segurança percepcionadas como pouco ou nada isentas de
sentimentos racistas, funcionam, neste contexto, como um gatilho que es-
poleta a consciência do ‘nós étnico’, como ficou exemplarmente descrito
por Sophie Body-Gendrot para outros contextos nacionais. São também
condição favorável ao desenvolvimento e à cristalização de atitudes de
desconfiança em relação às instituições e às referências nacionais.

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Neste contexto, as identidades étnicas tanto revelam exclusão, através da


construção da marca da diferença em relação à maioria; como negociação
de formas de inclusão, através da apropriação e instrumentalização do es-
tigma. Resta, contudo, perceber os efeitos da construção de um colectivo
particular (definido pela marca étnica) num contexto em que prevalece o
entendimento de que o indivíduo e o seu consumo individual é a unidade e
o critério de aferição do sucesso.

Importa sublinhar que tanto a ideia de indivíduo, como a de colectivo, são


construções mentais que, em determinados contextos culturais e históri-
cos, moldam as leituras do mundo. O indivíduo moderno e ocidental, cujas
regras ‘científicas’ de comportamento económico foram estudadas em
finais do século XVIII por Adam Smith e tipificadas na categorização de
racionalidade construída mais de um século depois por Max Weber, tem
muito pouco de natural – ou ‘essencial’, nos termos de Jack Goody. Inver-
samente, também os colectivos são sempre construções mais ou menos
arbitrárias, por agregação, a partir de um atributo simples e de relevância
questionável, de conjuntos de indivíduos. A célebre introdução de Norbert
Elias ao clássico dos estudos urbanos, The established and the outsiders,
mostra como as diferenças ‘naturais’ são, na verdade, invenções mais ou
menos enraizadas em factos concretos. De qualquer forma, e como bem
recorda Amy Gutmann, nenhum colectivo (definido desta ou de outra for-
ma) é suficientemente abrangente, a ponto de expressar e englobar todos
os aspectos da vida dos indivíduos. Mais: em sociedades complexas, a
multi-referencialidade é a norma, pelo que se impõe ir para além do dis-
curso identitário, e não perder de vista a heterogeneidade das situações.

De facto, apesar das barreiras impostas pelas limitações dos dados ofi-
ciais, o que o estudo dos projectos de requalificação urbana em Oeiras veio
revelar foi também uma significativa mobilidade (vertical e/ou horizontal)
inter-geracional e uma grande diversidade de situações. Não obstante os
obstáculos estruturais, as políticas de integração e as chamadas ‘estrutu-
ras de oportunidades’ que, num curto espaço de uma década, os poderes
públicos foram capazes de montar, a nível central e local, raramente vi-
sando exclusivamente as populações de origem migrante, tiveram efeitos
consideráveis. A realidade da imigração em Portugal não se reduz à exclu-
são. E não há provas empíricas consistentes que permitam afirmar que a
pertença étnica se constitui como princípio organizador determinante na
sociedade portuguesa. A articulação solidária dos dois temas na constru-
ção da etnicidade (e dos discursos sobre a mesma) traduz, por conseguin-
te, uma opção ideológica.

Hugo Martinez de Seabra


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A retórica da ‘etnicidade associada à exclusão’ tem efeitos performativos,


visando ganhar peso e influência na esfera pública. Em associação com as
duas outras referências de exclusão – o ‘ghetto’ e a pobreza -, a etnicida-
de ganha, assim, legitimidade enquanto argumento político, mas também
económico e cultural. Mas, como finamente notado por Bourdieu, Passe-
ron e Chamboredon, num clássico com mais de três décadas, para expli-
car, devemos evitar substituir às nossas percepções, as racionalizações
dos actores. Os efeitos performativos do discurso da exclusão não podem
nem devem ser esquecidos e nem a sua forma nem o seu conteúdo devem
ser confundidos com a explicação sociológica dos fenómenos.

O ‘desaparecimento’ local dos elementos mais móveis (em termos de car-


reira escolar, trajectória ocupacional ou mobilidade residencial), também
detectado noutros contextos nacionais, reforça o estigma espacial asso-
ciado aos chamados ‘bairros’. A ‘colagem’ desse estigma à ‘culturali-
zação’ dos comportamentos (pelos vários intervenientes do processo, da
‘maioria’ e das ‘minorias’) contribui para o reforço da ideia de exteriorida-
de (ou alteridade), em relação a uma ideia de norma de pertença - ou de
colectivo nacional.

É neste contexto que o fechamento no ‘bairro’ – ou ‘ghetto’, nos termos


consagrados nos meios sociais de referência destes jovens – surge como
um elemento importante de afirmação e de reivindicação de estatuto.
A identificação local, frequentemente acoplada a uma pan-etnicidade de
dimensão transnacional, reforça o carácter particular da referência gru-
pal.

A pobreza, o terceiro elemento de identificação, surge igualmente como


elemento forte de demarcação. Embora extravase os limites particulares
das identificações locais e étnicas, não se trata, contudo, de um elemento
de mobilização universal que se inscreva no registo da ‘luta de classes’.
Antes como força de reprodução da ‘sociedade capitalista’, como se pode
constatar na aspiração a níveis e formas de consumo recorrentemente
presente nos trechos de entrevista da presente monografia.

O estudo feito em contexto de restrição de liberdade vem, por um lado,


mostrar a força da construção culturalizada da diferença. Mas, não menos
importante, vem igualmente desvendar o seu carácter social e contingen-
te: as fronteiras entre ‘Blacks’ e ‘Pulas’ são construções mutáveis e es-
trategicamente redesenháveis em função dos momentos e das situações
concretas envolvidas. A pobreza e as injustiças percepcionadas no funcio-

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namento da sociedade (em particular as instituições centrais de regulação


e controle) funcionam, neste contexto, como cimento de solidariedade, que
pode adoptar os contornos das lealdades e das afinidades particulares.

Em conclusão, o que este estudo de caso nos traz é não apenas um con-
junto de expressões que revelam algumas das deficiências da integração
das populações de origem migrante em Portugal, mas ainda uma opor-
tunidade para reflectir sobre o valor e o significado da expressão da et-
nicidade na sociedade portuguesa actual. A tendência para privilegiar o
colectivo, na identificação, nomeação ou categorização dos segmentos da
população provenientes da imigração, revela, por um lado, a persistência e
o dinamismo de lógicas particulares de referenciação; mas também, e por
outro, a reivindicação de um espaço na esfera pública – mesmo que, para
o efeito, o desvio seja o ‘atalho’ de vida tomado.

Prof. Dr.ª Maria Margarida Marques


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa

Hugo Martinez de Seabra


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I – INTRODUÇÃO

• 2000/07/02 - Público - Viagem ao interior dos ‘gangs’ da Grande Lisboa:


“Assaltam e agridem pessoas. Provocam desacatos. Pegam fogo a con-
tentores, pintam ‘graffiti’, furtam automóveis. São adolescentes que se
movimentam em bandos de 10, 15, 20. Fumam haxixe, a maior parte não
usa drogas duras. Habitam bairros degradados, clandestinos ou sociais,
da região de Lisboa. Uma parte pertence à segunda geração de africanos
que vieram para Portugal: mas têm mais afinidades com o imaginário ‘rap’
norte-americano do que com a cultura dos pais. Isso percebe-se no orgu-
lho negro, no ódio à ‘bófia’, na música, nas sapatilhas coloridas, nos bonés,
na agressividade.” Monica Contreras

• 2000/07/27 - Visão - Jovens e Perigosos:


“A investigadora da Polícia Judiciária (PJ) mergulhou já há meses no sub-
mundo dos jovens de origem africana, que puseram a Grande Lisboa quase
em pé de guerra, com assaltos em auto-estradas e bombas de gasolina. E
resume: «É dramático falar com um miúdo destes.» São perigosos, sim,
porque desprovidos de sangue frio, de autodomínio. Mas, antes disso, a vida
no gueto tirou muito mais a estes imigrantes de segunda, terceira ou até
quarta geração: «Provêm de famílias desorganizadas, crescem sem refe-
rências rigorosamente nenhumas», explica a investigadora da PJ.”
J. Plácido Júnior

• 2001/09/11 - Público - Ruptura Familiar e Desenraizamento Cultural


Explicam o Fenómeno:
“De acordo com um relatório do gabinete da Procuradoria Geral da Repú-
blica a imigração oriunda das antigas colónias, depois do 25 de Abril, bem
como a migração de população do interior do país, estão na génese da
delinquência juvenil que se verificou nos últimos 10 anos. (...) O relatório
identifica a violência grupal, sobretudo com a segunda geração de africa-
nos, «nascidos e criados nos bairros, adoptando a liberdade como sua, in-
fluenciados pela ‘americanização’ da cultura europeia, a que Portugal não
foi alheio, e vítimas da sua própria cultura bairrista.» Ricardo Felner

• 2001/10/09 - Público - As cores da delinquência:


“É obvio que a criminalidade é multicolor, mas negligenciar o contributo
das comunidade imigrantes para a insegurança crescente é não querer
enfrentar os problemas de desintegração, de miséria, de ruptura familiar,
de falhanço escolar, com que estas se deparam. (...) Esqueceu-se que es-
ses prestáveis e baratos trabalhadores teriam filhos, muitos filhos. Portu-
gal não previu que esses filhos iriam crescer desenraizados, sem a morna
na alma.” Ricardo Felner

Hugo Martinez de Seabra


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O Leitor tem agora duas alternativas. A primeira é ficar por aqui, pois jun-
tando um pouco de cada uma das peças acima citadas terá uma media-
tizada ‘ideia’ do fenómeno aqui em estudo. A segunda é seguir-nos na
procura de uma explicação menos imediata, que certamente desembo-
cará numa menos afirmativa apresentação de conclusões, procurando a
pesquisa nas metodologias das ciências sociais a legitimidade que a estas
é reconhecida desde o início do século XX no estudo destas questões.

Os mass media têm sido, ao longo dos últimos anos, praticamente os úni-
cos produtores de (des)informação relativa à temática do desvio e da de-
linquência juvenil junto de descendentes de imigrantes africanos em Por-
tugal. A contrário do que se verifica no universo da produção das ciências
sociais relativa a temáticas semelhantes, utilizam inquestionada e des-
preocupadamente termos discriminatórios como ‘negros’ ou ‘africanos’
numa clara produção de estigmatização, apoiada única e exclusivamente
na cor da pele. Embora alguns dos elementos apresentados - como o facto
de este ser um fenómeno urbano, praticado frequentemente em grupo e
resultante de um claro desenraizamento social destes jovens – revelem
preocupações de contextualização e algum ‘encosto’ à linguagem das ci-
ências sociais, outros há que são clara e preocupantemente precipitados
e infundados. A associação do sentimento de insegurança exclusivamente
aos comportamentos destes jovens, a permanente afirmação da existên-
cia de ‘gangs’ organizados de jovens africanos, a frequente qualificação do
meio de proveniência como ‘gueto’ são , entre muitas outras, algumas das
conclusões apresentadas pela produção jornalística, baseadas numa mui-
to pouco rigorosa investigação e constituindo uma espécie de ‘fast-food’
para saciar uma opinião pública habituada a consumir este tipo de notícias
e sedenta das mesmas.

É preciso não esquecer que não é apenas a imprensa escrita que incorre
nesta tentação. A liberalização, ao longo da década de 90, das televisões
produziu igualmente este ciclo nos canais privados, iniciado pela SIC e
fielmente seguido pela TVI.

Não querendo entrar em detalhe na questão da influência dos meios de


comunicação social na produção da opinião pública (Ferin Cunha, 1996)
cabe-nos todavia fazer nota que está comprovadamente verificado que
esta é, primeiro que tudo, um resultado não apenas da vivência do dia-a-
dia mas principalmente do slogan: ‘good news are no news’. Este é levado
ao extremo em Portugal por via da concorrência desenfreada na produção
jornalística (escrita e televisiva) que busca em qualquer fonte um infor-

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mador privilegiado relativamente a qualquer tema sobre o qual esteja dis-


posto a referir algo. É através da leitura de extractos de notícias como os
acima apresentados que a opinião pública vai moldando os seus conheci-
mentos, opiniões e preocupações relativamente a temáticas tão delicadas
como a presentemente em estudo.

Procurando contornar esta aceitação despreocupada e inquestionada de


tudo o que produza uma boa manchete, encontramos a investigação cien-
tífica, legitimada em décadas de apuro de metodologias adequadas ao
estudo das mais reduzidas particularidades, aceitando permanentemen-
te a refutabilidade das teorias apresentadas e procurando assim evitar a
produção desenfreada e padronizada de informação baseada na recolha
inquestionada de ‘qualquer coisa’. É claramente neste segundo pólo que
o presente trabalho aspira a localizar-se, fazendo um ponto de honra da
rigorosa construção do objecto de estudo, da criteriosa e inovadora esco-
lha metodológica, do constante questionamento da informação obtida e da
discussão e interpretação teórica não definitiva, aguardando sempre uma
possível refutação.

Este projecto visa igualmente quebrar algumas barreiras que têm esta-
do subjacentes à investigação sociológica de determinados fenómenos,
como as práticas desviantes juvenis, assentes na ‘politicamente correcta’
não discriminação dos atributos particulares, nomeadamente das cores
da pele dos agentes envolvidos.

Ao querer trabalhar sobre e com esse atributo não é objectivo deste estu-
do discriminar ou estigmatizar. Tal opção não traz consigo qualquer tipo de
orientação normativa. O principal objectivo deste trabalho consiste em co-
nhecer melhor a realidade diária destes jovens, as suas práticas, as suas
orientações ideológicas e as suas motivações. Para tal torna-se imprescindí-
vel proceder à distinção entre ‘blacks’ e ‘pulas’. Estes termos, recolhidos em
trabalho de terreno, são utilizados pelos próprios, nos contextos estudados,
com uma total ausência de associações discriminatórias, denunciando assim
a forma como estes agentes organizam a representação do seu universo.

Assim, ao longo deste estudo optámos por utilizar estes conceitos par-
ticipantes ou indígenas visto que, por um lado, aparentam ser os mais
autênticos e fieis caracterizadores do universo em estudo e, por outro,
fogem às demais categorias étnico-raciais, usualmente utilizadas pelos
mass media, imbuídas de significados e conotações extras, indesejadas
nesta investigação.

Hugo Martinez de Seabra


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Conhecendo melhor a realidade existente na ‘rua’, consideramos que po-


deremos agir em termos preventivos com maior e melhor precisão. Se,
pelo contrário, optarmos por permanecer com a venda em frente aos
olhos, corremos o risco de quando quisermos agir já o fenómeno ter al-
cançado proporções desmedidas.

As linhas orientadoras deste trabalho assentam num estudo de caso re-


alizado num Colégio de Reinserção Social para jovens vítimas1 e delin-
quentes situado em Lisboa. Apoiados essencialmente em metodologias de
cariz qualitativo (observação, entrevistas, diário de campo), procurámos
ao longo de quatro meses ultrapassar as naturais muralhas defensivas
existentes quando se abordam questões tão delicadas como são as práti-
cas desviantes, frequentemente protegidas por efabulações e invenções.

Desta forma, dividiremos este estudo em três grandes partes:


1. uma primeira de contextualização dos fenómenos aqui estudados
– pobreza, imigração, ‘segunda geração’, criminalidade e delin-
quência juvenil;
2. a segunda relativa à reflexão teórica, hipóteses de estudo e apresen-
tação da metodologia utilizada;
3. por último, o desenvolvimento destas mesmas questões apoiado na
informação recolhida no trabalho de terreno e a apresentação de
conclusões.

1. Estudo prévio à alteração legislativa de 2001, ver secção relativa à Legislação de Menores
em Portugal.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

II - CONTEXTUALIZAÇÃO GERAL

Este capítulo tem como propósito a contextualização a nível nacional do


fenómeno da delinquência juvenil junto de filhos de imigrantes de origem
africana em Portugal. Nesse sentido, abordaremos alguns indicadores
simples, mas fundamentais, para acompanhar a evolução mais recente
da sociedade portuguesa em termos sociais, económicos, demográficos e
culturais, com especial atenção ao fenómeno da imigração. Neste quadro
descritivo, também se incluem dados para uma sociografia da criminali-
dade e particularmente da delinquência juvenil em Portugal. A relação
entre imigrantes/estrangeiros e desvio será sistematicamente procurada,
através da exploração das fontes.
O objectivo das secções que se seguem não consiste, no entanto, na apre-
sentação exaustiva de indicadores para cada uma das áreas identificadas.
Passa, antes, pela exploração de uma selecção de elementos considera-
dos relevantes para um melhor enquadramento do fenómeno sob estudo.

1. Pobreza à portuguesa

A sociedade Portuguesa nos últimos 20 anos sofreu uma evolução consi-


derável, resultado, não apenas de uma estabilização a nível político através
da consolidação do regime democrático, como igualmente de uma maior
aproximação dos indicadores sociais e económicos ao resto da Europa
ocidental. A adesão à, então, Comunidade Económica Europeia permitiu
um elevado conjunto de investimentos em áreas fundamentais - como a
educação, o emprego, a saúde, a habitação, vários ramos empresariais e
industriais, a ciência e a tecnologia, as vias de comunicação, etc.

Em relação ao início da década de 80, Portugal encontra-se, no início do


séc. XXI, com uma situação consideravelmente melhorada em praticamente
todas as áreas mencionadas. Ainda assim, surgem com alguma frequência
sinais de preocupação emitidos, por um lado, pelas autoridades nacionais e,
por outro, pelos organismos controladores competentes da União Europeia.
Se em algumas destas áreas Portugal não se encontra sozinho no pano-
rama europeu - casos da crise demográfica, do desemprego, ou mesmo
da crise económica -, noutras o seu maior isolamento já é mais flagrante.
Entre estas encontramos a educação, a habitação, e a pobreza.

Estas profundas mutações, verificadas em apenas duas décadas, na so-


ciedade Portuguesa trouxeram novos e complexos fenómenos. Se, por um
lado, o aumento progressivo do bem-estar colectivo e social é uma reali-

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

dade, desenvolvendo-se em paralelo com a instalação de uma sociedade


de consumo, por outro, tal facto é acompanhado de um crescimento das
desigualdades sociais. Neste sentido, António Barreto (2000) afirma que
“... não é arriscado concluir que as desigualdades sociais têm aumentado,
mesmo que todos vivam hoje melhor e com mais protecção do que há trin-
ta anos. As diferenças entre os mais ricos e os mais pobres são superiores
ao que eram há uma ou duas décadas, eventualmente mais.” (p.62)

Para além disso, a insuficiência económica ainda é no presente uma reali-


dade em Portugal para um elevado número de agregados familiares, sen-
do que 29% destes vivem abaixo do limiar da pobreza2, valor mais elevado
de toda a Europa dos 15.
A pobreza, característica largamente circunscrita aos meios rurais nos
anos 603, estendeu-se, ao longo das duas últimas décadas, aos ambien-
tes urbanos, resultado da abrupta e irreflectida expansão destes últimos.
Assim, “...aquilo a que se convencionou chamar população marginal, por
um lado, ‘excluída’, por outro, formam uma nova realidade social nas áre-
as metropolitanas. São, muitas vezes, dependentes dos mecanismos de
protecção social. Mas, nestes casos, são pessoas que vivem também de
expedientes da economia informal ou subterrânea. Quando não vivem de
comércio e serviços ilícitos.” (Barreto, 2000; p.63)

Paralelamente ao crescimento da pobreza em meio urbano, verifica-se o


fenómeno da proliferação dos bairros degradados e/ou bairros de barra-
cas nas grandes urbes. Como Luís Capucha (2000) coloca:

“Pelas suas imagens, pelas condições em que se encontram do ponto de


vista urbanístico, pela escassez dos equipamentos e serviços que os ser-
vem, pelas dificuldades materiais em que se encontra a maioria dos mora-
dores, muitas vezes ainda pela segregação de que são alvo – por razões de
desprezo e ostracismo às vezes sob a forma de racismo –, os bairros po-
bres das grandes cidades e das periferias tendem a constituir contentores
de pobreza e exclusão social particularmente problemáticos.” (p.11)

2. In A. Barreto (Organizador) (2000), A situação Social em Portugal, 1960-1999, Instituto de Ci-


ências Sociais, p.63.
3. Ver Manuela Silva (1982), “Crescimento económico e pobreza em Portugal (1950-74)”, Análise
Social, Vol. XVIII (72,73,74), 1982, 3º,4º,5º, 1077-1086 e A. Bruto da Costa, Manuela Silva, J. Perei-
rinha e Madalena Matos (1985), A Pobreza em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian.
4. Luís M. A. Capucha (2000), “Territórios da pobreza, onde é preciso voltar.”, Sociedade e Território,
Marginalidades e exclusões, Revista de Estudos Urbanos e Regionais, Março de 2000, p.11.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Estes bairros, não sendo um fenómeno característico das duas últimas


décadas, revelam, ainda assim, um crescimento abrupto no decorrer dos
anos 80 e inícios dos anos 90, acompanhando o após-êxodo colonial e a
massificação de determinadas correntes migratórias, concretamente as
que se apoiaram nas redes de imigrantes de origem africana, levando a
que se reproduzissem ‘círculos de pobreza instalada’4.

Novamente com o auxílio dos fundos europeus, em 1993 é iniciado o Plano


Especial de Realojamento (PER), com o propósito de erradicação total dos
bairros de barracas até finais do ano 2000. O alcance dos objectivos deste
programa não foram ainda suficientemente avaliados, sendo, no entan-
to, possível avançar a existência de claras discrepâncias de metodologias
de realojamento e de metas alcançadas, variando de municipalidade para
municipalidade. Alguns foram objecto de estudo e revelam avaliações glo-
balmente favoráveis dos processos de adaptação - caso da Câmara Muni-
cipal de Oeiras5 - enquanto em inúmeros outros os principais propósitos
não foram alcançados - por exemplo a denominada ‘Zona J’ em Chelas,
Lisboa, frequentemente referida nos mass media como ilustração, pela
negativa, do realojamento.

O fenómeno mais significativo em termos culturais resultante das duas


últimas décadas do Séc. XX em Portugal é, a nosso ver, o (re)surgimento
da multiculturalidade. Esta situação prende-se, como veremos de segui-
da, com a mudança de roupagem que a sociedade Portuguesa sofreu no
que se refere a movimentos migratórios, tornando-se, durante as décadas
de 80 e 90, também num país de imigração (M. Céu Esteves, 1991), ten-
do, inclusivamente, reconhecimento institucional em diversos organismos
públicos - casos por exemplo do Alto Comissário para a Imigração e Mi-
norias Étnicas6, e do Ministério da Educação através do Secretariado de
Educação Intercultural – Entreculturas7.

A alteração nos fluxos migratórios nacionais insere-se numa conjuntu-


ra demográfica de aproximadamente duas décadas que sofreu profundas

5. Vd. Maria Margarida Marques et al. (2001), Realojamento no Concelho de Oeiras, um estudo so-
ciológico, Cadernos Técnicos de Habitação, nº1, Direcção Municipal de Planeamento e Habitação,
Oeiras, Dezembro de 2001.
6. Para mais informação Vd. Alto Comissário para a Imigração e minorias Étnicas (1999), A in-
tegração dos imigrantes e das minorias étnicas. Linhas de actuação do ACIME 1996/99, ACIME,
Lisboa e José Leitão (1997), “The Portuguese immigration policy and the new European order”,
in Maria Ioannis Baganha (Editora) Immigration in Southern Europe, Celta Editora, Oeiras, pp.
121-129.
7. Desde 2003 sob a tutela do Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

mudanças em todas as suas grandes vertentes. Resultado de um aumen-


to significativo da esperança média de vida, em ambos os géneros, e de
uma redução gradual, desde a década de 70, da fecundidade, actualmente
verifica-se em Portugal um duplo envelhecimento da população portu-
guesa8. Envelhecimento no topo, isto é, aumento do número de idosos, e
envelhecimento na base, ou seja, diminuição no número de jovens.

Esta rápida transição demográfica produz, necessariamente, reflexos na


terceira variável micro-demográfica, os movimentos migratórios.

2. Caracterização sumária da situação imigratória portuguesa

“A variável movimentos migratórios é a variável mais complexa do sistema


demográfico: integra pessoas com movimentos de sinal contrário (emigran-
tes e imigrantes) cujos totais muitas vezes se anulam, e nela se incluem,
quanto à duração, várias modalidades de movimento possíveis (definitivas,
temporárias, sazonais, etc.).” (Valente Rosa et al., 2000; p.12)

O crescente número de estudos relacionados com movimentos migra-


tórios em Portugal é reflexo de um conjunto de significativas alterações
neste domínio. A elaboração em torno dos respectivos conceitos revela as
dificuldades de captação das novas realidades envolvidas9. Já não consti-
tui novidade para ninguém o facto de Portugal ter presenciado, ao longo da
década de 90, um processo de viragem no tocante a movimentos popula-
cionais internacionais (R. Pena Pires, 1993). País que desde o séc. XV tem
como grande característica da sua população a propensão para embarcar
na aventura da emigração10 que, desde então, nunca cessou, logicamente

8. Valente Rosa, Maria João, Hugo Martinez de Seabra e Tiago Santos (2004) Contributos dos
“imigrantes” na demografia portuguesa. O papel das populações de nacionalidade estrangeira.
Lisboa: Observatório da Imigração/ACIME.
9. Vd. Maria Beatriz Rocha-Trindade (1993), “Minorias. Polissemia do conceito e diversidade de
manifestações”, in Emigração Imigração em Portugal, Actas do Colóquio Internacional sobre
Emigração e Imigração em Portugal Séculos XIX e XX, Editorial Fragmentos, Lisboa, pp. 422-433;
João Arriscado Nunes (1997), “Boundaries, margins and migrants. On paradigm shifts, heteroge-
nety and culture wars.” In Maria Ioannis Baganha (Editora) Immigration in Southern Europe, Celta
Editora, Oeiras, pp. 89-100 e Maria João Valente Rosa, M. Margarida Marques, Catarina Oliveira,
Fernanda Araújo, Nuno Oliveira e Nuno Dias (2000), Imigrantes Internacionais: dos factos ao con-
ceito, SociNova Working Papers # 17, FCSH - UNL.
10. Relativamente ao fenómeno da emigração ver, entre outros, João Ferrão (1996), “Três décadas
de consolidação do Portugal demográfico “Moderno””, A Situação Social em Portugal 1960-1995,
ICS, Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 177-179 e João Peixoto (1993), “Migrações e mobilidade:
as novas formas de emigração portuguesa a partir de 1980”, in Emigração Imigração em Portu-
gal, Actas do Colóquio Internacional sobre Emigração e Imigração em Portugal Séculos XIX e XX,
Editorial Fragmentos, Lisboa, pp. 278-307.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

com diferentes cenários e dimensões, encara presentemente uma situa-


ção de receptor superior à de fornecedor de população nesta dinâmica de
movimentos migratórios11.

Os resultados dos Censos 2001 confirmam a tendência de redução da


emigração e aumento da imigração. Na verdade, o crescimento popula-
cional verificado numa situação demográfica onde o envelhecimento tanto
no ‘topo’ (aumento dos idosos) como na ‘base’ (diminuição dos jovens) é
uma realidade (Valente Rosa et al., 2004) pode apenas resultar dos flu-
xos imigratórios12. Utilizando apenas os recenseamentos nacionais como
fontes, verificamos, da análise do quadro seguinte, que um saldo migra-
tório positivo apenas havia ocorrido na década de 70, fruto dos “retornos”
de grandes contingentes populacionais de África, e também - em menor
número e mais espaçados temporalmente - de outros destinos a nível
mundial. A década de 90 revela assim a grande viragem processada em
Portugal neste domínio, com um saldo migratório positivo na ordem das
360 mil entradas.

Saldos Populacionais
DÉCADA Saldo total Saldo natural Saldo migratório
1960-1970 -226 140 1 072 620 -1 298 760
1970-1981 1 169 762 791 925 377 837
1981-1991 34 133 351 279 -317 146
1991-2001 488 970 84 451 404 519

Fonte: Valente Rosa, Maria João, Hugo Martinez de Seabra e Tiago Santos (2004) Contribu-
tos dos “imigrantes” na demografia portuguesa. O papel das populações de nacionalidade
estrangeira. Lisboa: Observatório da Imigração/ACIME.

Por grupos de origem destacam-se, nas últimas décadas os seguintes


contingentes imigratórios13:

11. Para um enquadramento da situação Portuguesa no contexto da Europa do Sul ver Russel King et al.
(Editores) (2000), Eldorado or Fortress? Migration in Southern Europe, Macmillan Press ltd, London.
12. Instituto Nacional de Estatística (2001), Boletim Informativo Censos 2001, Número 10, Junho de 2001.
13. Tendo em conta a ainda ausência de estudos de cariz científico sobre o recente mas cres-
cente fenómeno da imigração de Leste, e, igualmente, o facto de este não ser central para o
presente estudo, decidimos não abordar o mesmo.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

i) O grupo de imigrantes europeus é dominante até finais da década de


70 ;

ii) O grupo dos imigrantes brasileiros inicia igualmente a sua expansão


emigratória na década de 60. Tendo, em meados da década de 70,
seis vezes mais população imigrante em Portugal do que os Africa-
nos14;

iii) Por último, o grupo dos africanos, aqui não desagregado por na-
cionalidades, é aquele que apresenta uma evolução mais irregular
e mesmo abrupta a partir de meados da década de 70. Os valores
apresentados até 1976/77 são praticamente irrelevantes. É a partir
da descolonização que se inicia o processo, que depois se irá am-
pliando em bola de neve, de imigração de mão-de-obra pouco ou
nada qualificada para as áreas da construção civil e dos serviços de
limpeza essencialmente. Actualmente, e com nacionalidades agre-
gadas, este grupo é o maior contingente de imigrantes a nível na-
cional.

Uma análise desagregada do grupo de imigrantes africanos por naciona-


lidades é fundamental para compreender as suas diferentes dimensões e
facetas. No entanto, antes de avançar por esse caminho, há que salientar
algo que - infelizmente na óptica do investigador - dificulta fortemente a
análise mais aprofundada destas questões. Por um lado, as constantes
diferenças verificadas em termos de valores apresentados por diferentes
fontes, sendo que raramente os valores do INE coincidem com os do SEF
(Valente Rosa et al., 2004) e, por outro, o facto de ser por definição im-
possível detectar os valores dos movimentos de clandestinos – ou sequer
estimar a evolução da ‘porosidade das fronteiras’. Existem estimativas,
no entanto, como estas são igualmente contraditórias, preferimos neste
capítulo não utilizar nenhuma delas.

O grande contingente de imigrantes africanos é cabo-verdiano - aproxima-


damente 47% do total em 2001 -, seguido, mas de longe, pelos Angolanos
- 21% - e Guineenses - mantendo-se próximos dos 17%.

14.Estando tal situação certamente relacionada com o facto de a maioria dos Africanos em
Portugal usufruir, à data, de nacionalidade portuguesa (mercê da regra jus soli contemplada
na Constituição da época colonial).

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

A Área Metropolitana de Lisboa (AML) surge, inquestionavelmente, como


o principal cenário do fenómeno imigratório a nível nacional15. São os afri-
canos aqueles que mais se concentram nessa área, estando tal facto rela-
cionado com inúmeras condicionantes, das quais a principal é a existência
de maiores oportunidades de trabalho para estes segmentos de mão-de-
obra. Os contingentes de brasileiros e europeus já registam valores menos
significativos na AML, consequência de diferentes situações profissionais
e modos de incorporação na sociedade de acolhimento.

Centrando a análise no grupo de imigrantes oriundos dos Países Africa-


nos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), aquele aqui mais directamente
sob estudo, realce-se o fenómeno da segregação espacial característico
de grupos imigrantes desprovidos de meios sócio-económicos que procu-
ram residência nos meios urbanos16.

Embora as ocupações registadas pelo SEF se refiram exclusivamente à


população com autorização de residência e correspondam à sua situação
à chegada, trata-se de um dado suficientemente importante para não po-
dermos abdicar dele na caracterização destas populações.

Uma análise mais aprofundada, relativamente às profissões propriamente


ditas seria extremamente útil. Podemos, no entanto, mobilizar os estudos
de terreno conduzidos por várias equipas de investigação17, para daí ti-

15. Vd. também no mesmo sentido Maria Lucinda Fonseca et al. (2002), Immigration and Place
in Mediterranean Metropolises, Metropolis Portugal, Fundação Luso-Americana, Lisboa; Jorge
Macaísta Malheiros (1996), Imigrantes na Região de Lisboa. Os anos da mudança. Imigração
e processo de integração das comunidades de origem indiana, Edições Colibri, Lisboa; Maria
Lucinda Fonseca (1997), The geography of recent immigration to Portugal, Institute of Interna-
tional Relations and Regional Network on Southern European Societies, Conference on Non
Military Security in Southern Europe: Migration, employment and labour market, Santorini, Se-
tembro, 1997.
16. Vd. Maria Lucinda Fonseca (1998), “Immigration, social-spatial marginalisation and the ur-
ban planning in Lisbon: challenges and strategies” in Metropolis International Workshop, pro-
ceedings, Metropolis, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Lisboa, Setembro de
1998, pp.187-214.
17. Vd. inter alia Heloísa Perista e Manuel Pimenta (1993), “Trajectórias profissionais e inserção
laboral dos imigrantes residentes em bairros degradados de Lisboa”, in Emigração Imigração
em Portugal, Actas do Colóquio Internacional sobre Emigração e Imigração em Portugal Sécu-
los XIX e XX, Editorial Fragmentos, Lisboa, pp. 434-445; Maria Ioannis Baganha, João Ferrão,
Jorge Macaísta Malheiros (1998), “Immigrants and the labour market: the portuguese case”, in
Metropolis International Workshop, proceedings, Metropolis, Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento, Lisboa, Setembro de 1998, p.pp.89-120 e Maria Ioannis Baganha et al. (2002),
Os Movimentos Migratórios Externos e a Sua Incidência no Mercado de Trabalho em Portugal,
Observatório do Emprego e Formação Profissional, Colecção ‘Estudos e Análises’, n.º14, Lis-
boa, Abril de 2002.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

rar algumas conclusões, nomeadamente em relação ao elevado peso que


junto destas populações oriundas dos PALOP têm as actividades mais pre-
cárias e de menor qualificação. É praticamente incontestável o facto de a
grande maioria serem trabalhadores por conta de outrem, activos em dois
tipos principais de ocupações: por um lado, o trabalho dos homens na
construção civil e, por outro, a ocupação dos elementos do sexo feminino
nos serviços de limpeza.

O desemprego não aparenta ser, até ao presente, factor característico


destas populações. Os dados do Instituto de Emprego e Formação Pro-
fissional relativos ao período compreendido entre 1995-199818 revelam
percentagens de desempregados, relativamente às nacionalidades mais
representadas - Cabo Verde, Angola e Guiné Bissau -, claramente abaixo
dos apresentados para a população total. Destaque-se, no entanto, que
relativamente ao total dos imigrantes os valores destas nacionalidades
são sempre algo superiores.

No mesmo sentido seguem os dados do Ministério do Trabalho e Solida-


riedade, relativos aos beneficiários do Rendimento Mínimo Garantido, no
ano de 199919, revelando que, em termos relativos, o valor dos PALOP - 7%
- apesar de superior ao da população total - 4,3% -, é ainda assim signi-
ficativamente reduzido no tocante às nacionalidades mais representadas
- Angola (1,2%); Cabo Verde (4,5%) e Guiné-Bissau (5,4%).

Os valores em termos percentuais de estudantes junto destas populações,


somados ao inquantificável contingente de estudantes filhos de imigran-
tes africanos que têm nacionalidade Portuguesa, são bastante elevados,
revelando uma estrutura demográfica bastante jovem.

Estudos de âmbito nacional (Cordeiro, 1997; Baganha, 2001) e local (Mar-


ques et al., 2001) têm revelado a existência de uma baixa taxa de sucesso
escolar junto dos imigrantes e filhos de imigrantes nos níveis escolares
primário e secundário. Sendo amplamente destacadas as elevadas taxas
de desistências durante o ano lectivo.

Embora no contexto Europeu o peso relativo das comunidades imigran-


tes (residentes e permanentes) em Portugal - aproximadamente 3,5% em
2001 - esteja ainda aquém de países como a Alemanha, Bélgica, França,
Holanda ou Reino Unido - na ordem dos 4% a 10% -, apresenta-se já su-
18. Compilados e apresentados por Maria Ioannis Baganha et al. (2001), op. cit., p.97.
19. Idem ibidem, p.103.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

perior a alguns outros países como a Itália ou a Grécia (Barreto, 2000;


p.61). Na sequência do abrupto crescimento, de apenas década e meia,
verificado na imigração em Portugal, e perante o enquistamento de al-
gumas situações de exclusão20, alguns estudiosos destas questões têm
vindo a avançar alguns alertas relativos à integração não apenas destes
indivíduos como dos seus descendentes. Tais cenários, mais do que hipo-
téticos, têm sido realidade junto de alguns dos países anteriormente men-
cionados com historiais de imigração bastante mais vastos. Seguidamente
apresentaremos três exemplos.

Em 1993 Fernando Luís Machado destacava:

“Há, contudo, sinais de que este quadro está em mutação e de que os con-
trastes da população imigrante com a população portuguesa estão a au-
mentar em algumas dimensões decisivas. (...) Se essa evolução se confir-
mar, Portugal poderá conhecer situações de ‘etnicidade forte’, implicando
episódios de disrupção social e política semelhantes às que outros países
europeus têm conhecido ao longo dos últimos dez anos.” (p.409)

Por sua vez, Macaísta Malheiros, em 1996, referia:

“Relembre-se que, nos próximos anos, o acolhimento dos novos imigran-


tes se tornará, provavelmente, uma questão menos central do que os pro-
blemas de integração das comunidades já instaladas e, especialmente, das
segundas gerações de jovens que já nasceram em Portugal ou que para cá
vieram bastante novos.” (p. 205)

António Barreto salienta em 2000:

“São muitos e complexos os novos problemas que esta situação de ‘país de


acolhimento’ pode trazer. A pluralidade cultural, étnica e religiosa está a
constituir-se pela primeira vez em vários séculos. Criam-se, dentro do ter-
ritório nacional, fenómenos de aculturação, a que os portugueses estavam
apenas habituados no estrangeiro. Os traços, reais e mitológicos, da iden-
tidade nacional estão em causa: pessoas e grupos perdem, renovam e al-
teram as suas referências e valores em contacto com outras culturas. São
processos de substituição, de confronto, de conflito, de desenraizamento e
de miscigenação relativamente inéditos em Portugal.” (p.61)

20. Ver secção relativa à exclusão social de ‘minorias étnico-culturais’ da obra de Alfredo Bruto
da Costa (2001), Exclusões Sociais, Cadernos Democráticos, Fundação Mário Soares, Gradiva
Edições, Lisboa, pp. 67-75.

Hugo Martinez de Seabra


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Como questões centrais surgem a de saber como lidar com a multicultu-


ralidade, por exemplo, numa sala de aula, e a de como pensar formas de
integração que não exijam a aculturação do imigrante e seus descenden-
tes, ou a sua dissolução em supostas normatividades culturais da socie-
dade de acolhimento.

Em 1993, Ana de Saint-Maurice relatava a existência junto dos cabo-ver-


dianos em Portugal de claras distinções entre uma classe social média
- imigrada logo após o processo de descolonização, caracterizada por um
discurso identitário de classe - e uma classe social baixa - imigrada mais
recentemente, caracterizada por um discurso identitário étnico (Saint-Mau-
rice, 1993; p.403). Em 2001, em sintonia com os alertas anteriormente men-
cionados, e fazendo eco de preocupações que atravessam toda a Europa,
encara-se a possibilidade de se estar a constituir em Portugal uma etno-
classe (I. Baganha, 2000 e 2001) – uma espécie de ‘subclasse’, nos termos
de W. J. Wilson (1998) –, na base da estrutura social portuguesa21. Esta pas-
saria, segundo J. L. Garcia, pela afirmação e consolidação, ao longo de
mais de uma década, do anteriormente mencionado discurso identitário
étnico.

“Se se pode falar da existência de uma underclass em Portugal, nela in-


cluem-se claramente sectores de imigrantes africanos que residem em
bairros pobres e segregados socioespacialmente e que são vistos, pelo
menos por uma parte importante da população portuguesa, como uma
ameaça social no plano económico, laboral e da segurança pública - per-
cepção que se encontra na raiz do racismo ostensivo e activo.” (Garcia,
2000; p.98)

Concluindo, embora as fontes de informação sejam bastante limitadas


para avançar com maior exactidão, parecem surgir, localizados espacial-
mente, fenómenos de clara ligação da etnicidade à posição mais baixa da
escada social nacional (Seabra e Santos, 2005). Tais situações são agra-
vadas pela forte visibilidade que este fenómeno tem, não apenas devido à
tez da pele dos implicados, mas igualmente fruto das suas condições de
habitação, do seu precário posicionamento no mercado de trabalho, do
frequente interesse dos mass media por destacar os mais negros cenários
associados a este universo, dos quais fazem parte as actividades ilegais.
Note-se que a criminalidade surge desde sempre associada às classes

21. Projecto Europeu representado em Portugal por Maria Ioannis Baganha do Centro de Estu-
dos Sociais da Faculdade de Economia de Coimbra.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

sociais mais baixas, a fenómenos de pobreza, exclusão e desenraizamen-


to, seja de grupos autóctones (migrantes rurais nas grandes urbes) seja
de grupos estrangeiros. O novo fenómeno agora é a crescente ‘coloriza-
ção’ da mais baixa classe social portuguesa.

Fundamental para compreender esta realidade é a evolução demográfica


destes grupos em Portugal, sendo esta a razão que nos leva a autonomi-
zar este ponto.

3. Dinâmicas demográficas dos imigrantes africanos

Recentemente Valente Rosa et al. (2004) realizaram um estudo sobre o


contributo dos imigrantes na demografia portuguesa. De entre as inúme-
ras conclusões desta investigação realce-se a maior juventude das popu-
lações estrangeiras, o maior peso dos indivíduos do sexo masculino e os
superiores índices de fecundidade.

A existência de elevados índices de fecundidade junto dos grupos imi-


grantes provenientes dos PALOP em Portugal é uma realidade: em 2001,
o mais baixo Índice Sintético de Fecundidade era de 2,6 filhos por cada
mulher para os provenientes de São Tomé e Principe, sendo o valor dos
portugueses de 1,5 (Valente Rosa et al., 2004; p.81). Fruto tanto de estudos
parcelares como de observações no terreno tem-se vindo a constatar que
a idade da mãe aquando do nascimento do primeiro filho é, junto destes
grupos, muito inferior à verificada nas populações autóctones, situação
esta paralela à existência de um elevado peso de mães adolescentes e/ou
solteiras22 e à constituição de famílias numerosas.

Garcia (2000) referindo-se a um estudo levado a cabo por Ana Cardoso em


bairros degradados da capital revela, em sintonia com o anteriormente
mencionado, a existência de uma estrutura etária jovem com elevadas taxas
de natalidade e famílias alargadas. Como hipóteses explicativas avança:

“(...) a origem sociogeográfica de meios rurais onde predominam estes


comportamentos demográficos; o fraco nível de instrução que dificulta o
acesso ao planeamento familiar; as estratégias de sobrevivência, nas quais

22. Ao analisar dados relativos aos beneficiários do rendimento Mínimo Garantido (em Junho
de 1999) Baganha conclui, da comparação entre a população total com a vertente de origem
africana, que a percentagem de mães solteiras junto desta última (48%) era superior ao dobro
da verificada para o total (21%). (Baganha, 2000; p.40)

Hugo Martinez de Seabra


31
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

os filhos são considerados como potenciais fontes de rendimento; e a ma-


ternidade, identificada como um dos poucos projectos possíveis das mu-
lheres.” (p.43)

A título de exemplo relativamente aos imigrantes africanos, encontramos


num estudo publicado em Dezembro de 2001 realizado por Marques et al.
em 9 bairros de realojamento do Concelho de Oeiras a seguinte conclu-
são:
“É detectável uma associação estatística significativa entre a dimensão do
agregado familiar e a pertença étnica. Os agregados familiares menos nu-
merosos estão invariavelmente sub-representados entre os inquiridos com
pertença étnica minoritária, enquanto que a percentagem de agregados
com mais de 5 pessoas é sempre mais expressiva.” (p.41).

Este ponto será mais desenvolvido na secção seguinte relativa aos filhos
de imigrantes.

4. Filhos de Imigrantes Africanos

A falta de consensualidade entre os estudiosos desta questão impera, por


um lado, no que se refere à vertente terminológica e, por outro, no que
toca à quantificação deste universo em Portugal.

Relativamente ao termo mais adequado a utilizar quando o investigador se


refere aos descendentes de imigrantes, inúmeras soluções têm sido en-
saiadas, sendo o conceito mais generalizado o de imigrantes de segunda
geração.

Em 1994, Fernando Luís Machado critica este conceito:

“Desde logo, os jovens e crianças descendentes de imigrantes não são


imigrantes eles mesmos. Não têm um trajecto imigrante e a maior parte
nem sequer conhece o país de origem dos seus pais. Nasceram e/ou fo-
ram socializados no quadro da sociedade de acolhimento, onde sofreram a
influência poderosa de contextos como a escola, mas também dos media,
da cidade ou das suas redes de sociabilidade juvenis. A sua cultura é, ine-
vitavelmente, produto disso mesmo, por maior que seja a importância da
família e por mais que ela constitua um espaço fechado de reprodução da
cultura de origem.” (p.121)

Em alternativa, apresenta o conceito de novos luso-africanos, o qual, em-


bora não tenha vingado na comunidade científica estudiosa destas ques-

Estudo de Jovens em Reinserção


32
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

tões, tem por base um suporte teórico coerente assente em dois vectores
principais: “(...) o grau de fixação na sociedade portuguesa e a ausência de
um projecto de regresso aos países de origem.” (Machado, 1994; p.111)

O termo filhos de imigrantes (Portes e Rumbaut, 2001), embora igual-


mente passível de críticas, será o adoptado pelo presente trabalho para
qualificar os descendentes, imediatos ou não, de imigrantes africanos em
Portugal.

No caso presente, tendo em conta o enfoque deste estudo, acrescentare-


mos à expressão filhos de imigrantes o termo africanos.

Partilhamos das críticas apontadas ao conceito de imigrantes de segun-


da geração, essencialmente porque estes jovens, nascidos em Portugal,
em nenhum momento do trajecto da sua vida presenciaram a situação da
migração, o seu país de nascimento é o mesmo onde habitam presente-
mente. A única variável que os poderá aproximar do universo imigrante
em Portugal, para além da sua ascendência directa ou indirecta, é a sua
nacionalidade. A Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (alterada pela Lei n.º25/94,
de 19 de Agosto), relativa à aquisição de nacionalidade portuguesa, intro-
duz o sistema jus sanguini em Portugal. Assim sendo, a nacionalidade
deixaria de ser concedida a qualquer indivíduo, independentemente da sua
ascendência, desde que nascesse em solo Português (jus soli), para se
destinar exclusivamente aos filhos de cidadãos nacionais. Neste sentido,
um elevado número de filhos de imigrantes africanos em Portugal tem a
nacionalidade de seus pais, podendo, ainda assim, optar pela cidadania
Portuguesa, caso os seus progenitores residissem legalmente em Portu-
gal há mais de seis anos à data do seu nascimento23.

A situação descrita reflecte-se na dificuldade de quantificar este universo


em Portugal. Poderemos mesmo afirmar que existem três grupos distin-
tos de filhos de imigrantes africanos em Portugal:

i) Os que, embora nascidos em África, vieram, fruto do processo de


reunificação familiar, juntar-se aos seus pais em Portugal - deten-
tores de nacionalidade do país de origem;
ii) Os nascidos em Portugal que, embora detentores de nacionalidade

23. Sobre esta questão ver M. J. Valente Rosa, Tiago Santos e Hugo de Seabra (2004), op. cit., e
Catarina Gomes, “ ‘Falsos portugueses’? Jovens de origem africana nascidos em Portugal en-
frentam burocracias e desconhecimento dos serviços públicos”, Público, 7 de Julho de 2000.

Hugo Martinez de Seabra


33
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

do país de origem de seus pais, poderão optar pela nacionalidade


portuguesa desde que os seus pais residíssem legalmente há mais
de seis anos em Portugal à data do seu nascimento;

iii) Por último, os detentores de nacionalidade portuguesa, nascidos


em Portugal antes de 1981, e os que ao abrigo da Lei da nacionali-
dade já optaram por esta.

A quantificação destes grupos a nível nacional torna-se assim pratica-


mente impossível de realizar.
Os dados do EntreCulturas, instituição criada em 1991, são os únicos a
nível nacional onde se apresenta uma categoria denominada de ‘grupo
cultural’ baseada, não na nacionalidade do inquirido, mas na nacionali-
dade dos pais dos alunos24. Apoiados neste indicador alguns ensaios têm
sido realizados ao longo dos últimos anos.

Já em 1993, Fernando Luís Machado referia:

“Independentemente dos cenários que se desenhem a médio prazo, hoje a


expressão quantitativa desta categoria é já significativa. Na falta, também
aqui, de estatísticas, alguns indicadores parcelares são bastante revelado-
res. Por exemplo, no ano lectivo de 1991/92 estavam inscritas, só no 1º ci-
clo do ensino básico, mais de 13 000 crianças das comunidades originárias
dos PALOP, ...” (p.122-123)

Em 1997, Ana Rita Cordeiro aponta o valor de 31 876 indivíduos agrupados


nos grupos culturais africanos inscritos no ensino básico e secundário no
ano lectivo 1994/95.

David Justino et al., em 1998, não apresentando valores em concreto, con-


cluem:

“No que se refere às inscrições escolares de 92 a 96, o número actual de


nacionais portugueses inscritos no início do ano académico declinou desde
1993. (...) Por sua vez, a tendência entre não portugueses é de um aumento
geral, o que reflecte a existência de uma estrutura etária diferente nesta
população.” (p.288)

24. Apesar de revelar uma maior aproximação ao universo em estudo, este instrumento tem
igualmente falhas. O filho de um indivíduo que embora tenha nascido no estrangeiro já tenha
adquirido nacionalidade portuguesa será quantificado no grupo cultural dos ‘lusos’.

Estudo de Jovens em Reinserção


34
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Em 2001, M. I. Baganha et al. salientam:

“É, contudo, importante salientar que o número dos jovens cantabiliza-


dos entre os cidadãos dos PALOP está fortemente subrepresentado. Com
efeito, mesmo levando em consideração que sob títulos semelhantes as
diversas fontes registam populações muito diversas, não deixa de ser sig-
nificativo que enquanto as estatísticas do SEF indicam a existência, entre
1990 e 1992, de aproximadamente 820 jovens imigrantes dos PALOP, os nú-
meros apresentados pelo ‘Entre Culturas’ indicam que, em 1997, estavam
matriculados nos níveis de ensino obrigatório (normalmente com idades
entre os 6 e os 16 anos) 30 638 alunos cujos pais eram dos PALOP. Igual-
mente relevante é o facto de no processo de regularização extraordinária
de 1996 ter sido legalizado um número significativo de crianças. As duas
situações mais frequentes eram as de crianças a viverem em Instituições
de Acolhimento e as crianças nascidas em Portugal mas nunca registadas
legalmente.” (p.13-14)

Igualmente em 2000, Garcia et al. referem:

“Considerando-se o número total de alunos pertencentes a grupos de ori-


gem de outros países matriculados no início do ano lectivo de 1997/98 no
ensino público não superior do Continente, constata-se que o seu número
rondava os 92 mil (7,1%). Nos seis municípios objecto de estudo, a sua
importância relativa é superior: a Amadora apresenta a percentagem mais
elevada (21,1%) e Almada a mais baixa (11,1%). Estes valores tendem a de-
crescer à medida que aumentam os anos de escolaridade e variam conso-
ante o grupo de origem, quebra influenciada, de forma significativa, pelas
trajectórias escolares dos alunos de origem africana (...)” (p.70-71)

Em Janeiro de 2003 o Departamento de Educação Básica do Ministério da


Educação publicou a Caracterização nacional dos alunos com língua portu-
guesa como língua não materna25 onde se identifica um universo de 17 535
alunos a cumprir a escolaridade mínima obrigatória que têm línguas ma-
ternas que não o Português26. Entre os alunos com língua portuguesa como
língua não materna a minoria Cabo-verdiana surge em destaque com cerca
de 5 mil alunos, seguida da Angolana, com 2 642, da Cigana (1900), Guine-
ense (1606) e São Tomense (794). Os alunos europeus surgem seguidamen-
te com contigentes sempre a baixo dos 426 alunos, valor observado para
25. Língua(s) materna(s) – “... a(s) língua(s) espontaneamente aprendida(s) no meio familiar, a lín-
gua de casa, falada pela mãe, pelo pai e ou por outras pessoas significativas para a criança.” (p.7)
26. A recolha estatística deste estudo foi levada a cabo no ano lectivo de 2001/2002. O facto de
ter sido apenas em Janeiro/Fevereiro de 2002 poderá influenciar pela negativa estes, ainda
assim expressivos, resultados, pois o absentismo e desistência escolares ocorrem significati-
vamente no primeiro trimestre de cada ano lectivo – Setembro/Novembro.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

os franceses. Com cerca de 8 mil observações o crioulo domina destacado


a(s) língua(s) materna(s) da população escolar a frequentar o ensino básico.
Seguidamente surge o romani com pouco mais de mil e trezentos alunos.

Em conclusão, embora a inexistência de uma quantificação exacta do uni-


verso dos filhos de imigrantes africanos em Portugal seja uma realidade,
podemos afirmar que este não apenas tem vindo a crescer ao longo da
última década como, fruto da sua localização sócio-geográfica específica
- em bairros suburbanos característicos das classes pobres - , se tem
tornado cada vez mais visível.
A dissonância em termos de referências identitárias entre estes jovens e
seus pais reflecte-se numa crescente clivagem geracional. A socialização
secundária é desenvolvida nos meios escolares portugueses, tal como a
convivência no quotidiano (dentro e fora dos bairros de residência) é re-
alizada em solo nacional e se encontra exposta aos mesmos estímulos
(mediáticos em particular) que interpelam os jovens portugueses. Inevita-
velmente, como estes, acompanham a tendência geral para construções
identitárias distantes das dos progenitores. Ainda assim, verifica-se, no
que se refere à inserção no mercado de trabalho destes filhos de imigran-
tes africanos, que esta se tem vindo a fazer em moldes semelhantes da
dos seus pais (Machado, 1994; p.124).

Os processos identitários diferenciados que estes jovens filhos de imigran-


tes africanos assumem em Portugal, moldando-se às solicitações e aos
estímulos do meio envolvente, não podem deixar de chocar com modos de
integração no mercado de trabalho marcados pela discriminação e a re-
produção de situações precárias semelhantes às de seus pais. A procura
de vias alternativas, ditas marginais, apoiadas em coerentes referenciais
identitários auto-construídos, com base na etnicidade, é para alguns uma
inevitabilidade.

Afigura-se assim, a nosso ver, essencial a politização do fenómeno dos


filhos de imigrantes africanos em Portugal, através de políticas na área da
prevenção, não apenas locais mas nacionais, incidindo sobre o combate ao
absentismo e insucesso escolar, à proliferação de relações sexuais sem
recorrer a meios contraceptivos, ao seu envolvimento em trabalho ilegal,
à marginalidade, etc. (Justino et al., 1998; p.303).

Por forma a proceder a um melhor enquadramento da temática em estu-


do, seguidamente apresentaremos de forma abreviada a evolução recente
da criminalidade e da delinquência juvenil em Portugal.

Estudo de Jovens em Reinserção


36
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

5. Criminalidade em Portugal

Uma breve apresentação do fenómeno da criminalidade em Portugal ser-


ve apenas para contextualizar comparativamente todo o universo da delin-
quência juvenil.

Alina Esteves (1999) realça o quanto flutuante o conceito de crime pode


ser:
“A relatividade do conceito de crime aplica-se tanto no tempo como no es-
paço, na medida em que actos hoje não considerados delituosos, já o foram
há algumas décadas e vice-versa, e acções classificadas em alguns países
como criminais, não o são noutros.” (p.15)

Serão aqui apresentados dados provenientes de três tipos de estudos:


inquéritos de vitimação; relatórios anuais produzidos em matéria de se-
gurança interna pelo Ministério da Administração Interna e investigações
científicas da criminalidade. Cingir-nos-emos temporalmente à década de
90, particularizando a observação na situação de Lisboa. Uma vez mais,
deparamo-nos com fontes de informação que têm que ser questionadas
visto estarem imbuídas de discrepâncias entre si.

5.1 Inquéritos de Vitimação

Foram realizados em Portugal três inquéritos a nível nacional - nos anos


de 1992, 1994 e 2000 – e dois a nível local (Área metropolitana de Lisboa)
em 1989 e 2002. Os dois primeiros e o penúltimo foram coordenados por
Maria Rosa Crucho de Almeida e desenvolvidos pelo Gabinete de Estudos
e Planeamento do Ministério da Justiça (GEPMJ). O terceiro foi integrado
num estudo comparativo de 17 países industrializados, coordenado pelo
investigador holandês John van Kesteren (2000). O último foi desenvolvido
sob coordenação da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).

Este tipo de investigações possibilita detectar a incidência, junto da amos-


tra representativa seleccionada, de fenómenos como o sentimento de in-
segurança e a vitimação de prática de crimes. O mais significativo con-
tributo deste tipo de estudos é apresentar a taxa de denúncia de crimes
pelas suas vítimas. Isto é, através deste inquérito percepciona-se qual a
percentagem de vítimas de crimes que participaram os mesmos às au-
toridades, detectando-se assim o ‘reverso da medalha’, ou seja, qual a
percentagem de crimes que as vítimas optaram por não denunciar.

Hugo Martinez de Seabra


37
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Desta forma é possível desenhar-se uma pirâmide que tem na sua base
toda a criminalidade ocorrida, e no seu topo a criminalidade denunciada.
A título exemplificativo, em 1992 apenas 26% das vítimas havia denunciado
os factos às autoridades policiais; em 1994 este valor cresceu para 28%.
Mais recentemente, em 2000, esta mesma taxa atinge 32%, permanecen-
do por denunciar 68% da criminalidade de que os cidadãos são alvo - a
mais alta taxa de não denúncias de todos os 17 países analisados.

Uma hipótese explicativa para tal situação poderá residir na ausência de confian-
ça nas autoridades policiais e no sistema de justiça em Portugal. Em Setembro
de 1998 a revista Pró-Teste dedicou-se a este tema, referindo então que:

“A grande conclusão a retirar deste estudo é a que os portugueses não


acreditam nas instituições, entre as quais a própria polícia e a justiça. E,
como não confiam nem na polícia nem na justiça, acabam por considerar
que não vale a pena queixarem-se quando são vítimas de um crime, o que
faz com que as estatísticas oficiais avancem com um número longe da rea-
lidade. Enquanto que 18% das pessoas que responderam ao nosso estudo
afirmaram terem sido vítimas de um crime no último ano, as estatísticas
do Ministério da Justiça, elaboradas com base nas queixas apresentadas
pelos cidadãos, falam de 1%.” (Pró-Teste, 1998; p.31)

Regressando ao inquérito de vitimação de âmbito nacional mais recente,


os crimes contra a propriedade, nomeadamente os furtos de e em veículos
automóveis, são os que exibem valores relativos mais elevados. Os crimes
contra a integridade física têm uma relevância inferior.

Por último, este tipo de inquéritos permite medir o sentimento de insegu-


rança da população. Assim, o valor percentual de inquiridos que se sen-
tem inseguros nas ruas à noite era de 26% em 1992, descendo para 19%
em 1994, voltando, em 2000, a atingir valores na ordem dos 27%. O inqué-
rito da APAV para a AML revela um valor elevadíssimo relativamente aos
anteriormente mencionados, na ordem dos 56%, denunciando tal facto a
incidência de maior sentimento de insegurança na capital e municipalida-
des circundantes comparativamente com o resto do país.

5.2 Criminalidade nos Relatórios de Segurança Interna

Este tipo de relatório aborda aquela que poderá ser qualificada como a
secção de topo da pirâmide da criminalidade em Portugal, i.e., a secção
relativa à criminalidade denunciada.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

As interpretações a retirar deste tipo de relatórios poderão ser dúbias


visto as polícias poderem adoptar, no decorrer de um determinado ano,
prioridades no combate a determinados tipos de crime, levando a que,
mais tarde, tal situação se reflicta nas estatísticas relativas a esse perío-
do. De igual modo, o desenvolvimento de campanhas de esclarecimento e
de apoio a vítimas de determinados tipos de crimes (violência doméstica;
violação) poderá reflectir um maior índice de denúncia relativamente aos
mesmos.

Da análise dos relatórios anuais em matéria de segurança interna produ-


zidos durante a década de 90, realce-se a preponderância e gradual afir-
mação dos crimes contra a propriedade como os mais frequentes. Estes,
em 2000, representavam por si só cerca de 59% do total das ocorrências
participadas, de entre os quais se destacam os crimes de furto e dano.
Comparativamente com os valores registados no início da década, veri-
ficamos que a evolução foi, em termos absolutos, de quatro vezes mais
crimes contra o património, reflectindo um forte crescimento deste tipo de
criminalidade ao longo dos anos 90.

Os crimes contra as pessoas agregavam, na mesma data, 23% do total dos


registos. Destaque-se que alguns crimes particularmente violentos - ca-
sos do homicídio voluntário, da ofensa corporal grave e da violação, entre
outros - decresceram ao longo da década.

Com tendência oposta encontram-se os furtos de veículos, os furtos por


carteiristas, o roubo na via pública, o tráfico de estupefacientes e as ame-
aças.

Na secção relativa aos detidos, o crime com maior número de detidos no


ano de 2000 foi o de condução com taxa de álcool igual ou superior a 1,2g/L,
seguido pela condução sem habilitação legal, pelos crimes de tráfico e
consumo de estupefacientes e, bastante mais longe, os furtos de e em
veículos automóveis.

A criminalidade de carácter económico continua a não ter grande relevân-


cia estatística a nível dos dados oficiais nacionais.

Ainda em 2000, em termos de geografia da criminalidade, do total das


ocorrências registadas a nível nacional, 45% verificou-se nos distritos de
Lisboa e do Porto. Os distritos de Aveiro, Braga, Faro e Setúbal concen-
tram 25%. Estes valores reflectem uma grande concentração nas áreas

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

urbanas, não apenas da criminalidade, como igualmente das actividades


desenvolvidas pelas instituições de controlo formal.

A delinquência juvenil é igualmente destacada neste relatório, verificando-


se uma variação na prática por menores de 16 anos de factos qualificados
pela lei penal como crime na ordem dos +8,5% relativamente ao ano an-
terior27.

Por último, é apresentada no relatório do ano 2000 uma perspectiva com-


parada de Portugal no contexto Europeu:

“Feita um análise da evolução da criminalidade registada em alguns países


europeus, constata-se que Portugal segue a tendência geral observada,
que aponta para a estabilização do número de ocorrências, depois de um
período de crescimento a que se assistiu no início da década de 90, com os-
cilações anuais que resultam das circunstâncias próprias de cada país, re-
lacionadas com o desfasamento dos ritmos de evolução social, económica
e demográfica registados nos vários países europeus nas últimas décadas,
originando temporalidades diferentes em termos de evolução da criminali-
dade e do sentimento de insegurança.” (MAI, 2000; p.5)

O quadro que se segue apresenta os crimes por 1000 habitantes compara-


tivamente com alguns dos países da União Europeia.

Países Crimes por 1 000 habitantes


Portugal 36
Alemanha 77
Espanha 47
França 61
Inglaterra e País de Gales 99

Fonte: Ministério da Administração Interna, Relatório de Segurança Interna - Ano 2000.

Embora a ausência de dados relativos a outros países impossibilite algu-


mas conclusões, podemos lançar dois cenários possíveis:
i) A existência efectiva de uma menor criminalidade em Portugal por 1 000
habitantes;

27. Secção a desenvolver mais à frente.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ii) A existência, nos outros países aqui sob comparação, de mecanismos


mais eficientes de repressão e combate ao crime que legitimam uma maior
aproximação do cidadão às instâncias policiais e de justiça, levando-os a
participar mais os crimes de que são vítimas28.

Concluindo, Portugal apresenta em 2000 uma estabilização no número


de ocorrências registadas; uma diminuição dos crimes mais graves; uma
prevalência da criminalidade patrimonial; uma concentração das ocorrên-
cias nas grandes áreas urbanas e uma acentuação da diferença entre o
Litoral e o Interior. (MAI, 2000; p.72).

5.3 Investigações científicas da criminalidade

Não obstante as inúmeras limitações das fontes, a análise da criminali-


dade não pode deixar de ser feita. Seguindo Boaventura de Sousa Santos
(1996), essas limitações não retiram legitimidade aos estudos da crimina-
lidade a partir dos dados relativos à sua vertente judicializada:

“De acordo com vários autores, partimos do pressuposto que o desfasa-


mento entre a criminalidade aparente e a real é constante ao longo do tem-
po, pelo que o estudo da criminalidade judicializada é um índice fiável da
criminalidade real.” (p.296)

Este autor associa o acentuado crescimento dos crimes contra a proprie-


dade ao desenvolvimento das grandes áreas metropolitanas. Realça igual-
mente, por um lado, o crescimento, desde 1991, da vertente dos traficantes
nos crimes relacionados com estupefacientes e, por outro, os baixos valo-
res verificados, entre outros, nos crimes contra a vida e crimes sexuais.

Em simultâneo com o aumento significativo do tráfico e consumo de dro-


ga, Nelson Lourenço e Manuel Lisboa (1998), ao investigarem a criminali-
dade entre 1984 e 1993, concluem que “(...) comparando com uma década
atrás, hoje, os crimes são cometidos sobretudo por jovens ainda à procura
do primeiro emprego ou nos primeiros anos de idade activa.” (p.148)

Eduardo Viegas Ferreira (1998) analisando o crime e a insegurança em


Portugal no período compreendido entre 1985 e 1996 atinge conclusões
semelhantes às já referidas, ou seja, afirmação ao longo dos anos 90 do

28. Os dados do International Crime Victims Survey de 2000 confirmam esta situação relativa-
mente a todos os outros países excepto a Alemanha, ausente desta investigação.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

crime contra o património; crescimento acentuado da criminalidade rela-


cionada com estupefacientes e diminuição gradual da criminalidade vio-
lenta.

5.4 Lisboa - capital, também, da criminalidade

Alina Esteves publica em 1999 uma investigação sobre a criminalidade na


cidade de Lisboa, realçando o porquê da incidência deste fenómeno nas
áreas mais urbanas:

“O desejo de consumo não satisfeito, conjugado com as maiores oportu-


nidades que existem nas grandes cidades para a prática de actos ilícitos,
devido à elevada concentração de pessoas e de bens, ao menor controle
social e ao maior anonimato, pode catalisar a prática de actos ilegais, como
o roubo e o furto a pessoas e à propriedade, nomeadamente entre elemen-
tos mais jovens da população, isto é, os que têm menor poder aquisitivo e
que são mais influenciáveis pela publicidade.” (p.77)

Em sintonia com as características anteriormente realçadas relativamen-


te ao país, destaque-se, em síntese, a evolução recente da criminalidade
em Lisboa:
i) Roubos e furtos (de e em viaturas e a pessoas) são os crimes mais fre-
quentes;
ii) Os delitos de tráfico e consumo de droga são, no volume geral da crimi-
nalidade, diminutos, chegando ao conhecimento das autoridades fruto de
acções fiscalizadoras por estas desenvolvidas;
iii) os roubos praticados perante coacção da vítima com uma arma, ape-
sar do seu quase insignificante peso - 1,5% no total das ocorrências - têm
aumentado significativamente no período sob análise -1983-1994. (Este-
ves, 1998; p.85)

6. Delinquência Juvenil

6.1 Legislação de Menores em Portugal

Neste capítulo procederemos a uma descrição sumária tanto da legislação


em vigor aquando da investigação (Organização Tutelar de Menores) como
da nova Lei Tutelar Educativa, em prática desde 1 de Janeiro de 2001. Pri-
vilegiar-se-á, no entanto, a primeira visto ser a que à data da pesquisa e
do trabalho de campo estava implementada. Seguidamente, analisaremos
a justiça de menores nas suas mais vincadas vertentes - litigação de me-

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

nores; medidas aplicadas; caracterização dos menores; reincidência, etc.


Por último, apresentaremos o Instituto de Reinserção Social.

6.1.1 Organização Tutelar de Menores (OTM) - Decreto-Lei n.º314/78, de


27 de Outubro29

Com uma orientação filosófica de base proteccionista e reeducativa, a OTM


vincava o papel paternalista dos magistrados e demais intervenientes no
processo. “A intervenção do tribunal tem por fim a protecção judiciária dos
menores e a defesa dos seus direitos e interesses mediante a aplicação de
medidas tutelares de protecção, assistência e educação.” (Marques Vidal,
1998; p.14). Os artigos 13.º e 15.º, Capítulo IV “Medidas Aplicáveis pelos
Tribunais de Menores”, definem quais os alvos desta legislação30:

“Artigo 13.º (Competência dos tribunais de menores relativamente a me-


nores entre os 12 e os 16 anos)
Compete aos tribunais de menores decretar medidas relativamente a me-
nores que, tendo completado 12 anos e antes de perfazerem 16, se encon-
trem em alguma das seguintes situações:
a) Mostrem dificuldade séria de adaptação a uma vida social normal, pela
sua situação, pelo seu comportamento ou pelas tendências que hajam re-
velado; [Pré-delinquência]
b) Se entreguem à mendicidade, vadiagem, prostituição, libertinagem,
abuso de bebidas alcoólicas ou uso ilícito de estupefacientes; [Para-delin-
quência]
c) Sejam agentes de algum facto qualificado pela lei penal como crime ou
contravenção.”

“Artigo 15.º (Competências dos tribunais de menores relativamente a me-


nores até aos 18 anos)
Os tribunais de menores são igualmente competentes para:
a) Decretar medidas relativamente a menores que sejam vítimas de maus
tratos ou se encontrem em situação de abandono ou desamparo capazes
de pôr em perigo a sua saúde, segurança, educação ou moralidade;
b) Decretar medidas relativamente a menores que tendo atingido os 14
anos, se mostrem gravemente inadaptados à disciplina da família, do tra-
balho ou do estabelecimento em que se encontrem internados;
c) Apreciar e decidir pedidos de protecção de menores contra o exercício
abusivo de autoridade na família ou nas instituições a que estejam entre-
gues.”

29. Decreto-Lei nº314/78, de 27 de Outubro, Diário da República n.º248, I Série (pp. 2256-2281).
30. Idem ibidem, p. 2259.

Hugo Martinez de Seabra


43
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Relativamente a possíveis medidas interventivas, são identificadas 11 no


artigo 18.º.31

“Artigo 18.º (Enumeração das medidas tutelares)


Aos menores que se encontrem sujeitos à jurisdição dos tribunais de me-
nores podem ser aplicadas, isolada ou cumulativamente, as seguintes me-
didas:
a) Admoestação;
b) Entrega aos pais, tutor ou pessoa encarregada da sua guarda;
c) Imposição de determinadas condutas ou deveres;
d) Acompanhamento educativo;
e) Colocação em família idónea;
f) Colocação em estabelecimento oficial ou particular de educação;
g) Colocação em regime de aprendizagem ou de trabalho junto de entidade
oficial ou particular;
h) Submissão a regime de assistência;
i) Colocação em lar de semi-internato;
j) Colocação em instituto médico-psicológico;
k) Internamento em estabelecimento de reeducação.”

Este modelo proteccionista tinha como elemento central o indivíduo, neste


caso a criança. O objectivo da intervenção tutelar visaria a sua protecção
e não a da sociedade exterior, fosse o mesmo delinquente ou criança em
risco.

No final da década de 90 e principalmente no ano de 2000, na sequência


de uma extraordinária mediatização destas questões, inúmeras críticas ao
sistema da OTM foram enumeradas pelos mais diversos quadrantes. Ape-
nas a título de exemplo ficam aqui dois títulos jornalísticos, entre muitos
outros: “Agentes reclamam mudança da Lei relativa aos menores” (Públi-
co, 21 de Julho de 2000); [Paulo Portas apela a] “Menores criminalizados a
partir dos 14 anos” (Correio da Manhã, 16 de Agosto de 2000).

Na sequência do já intitulado ‘verão quente’ de 2000 o, na altura, Ministro


da Justiça - António Costa - antecipou a renovação legislativa em um ano,
requerendo a implementação da Lei Tutelar Educativa (LTE), em prepara-
ção desde meados da década de 90, para o dia 1 de Janeiro de 2001.

31. Idem Ibidem.


32. Lei n.º166/99, de 14 de Setembro, Diário da República n.º 215, Série I-A, pp. 6320-6351.

Estudo de Jovens em Reinserção


44
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

6.1.2 Lei Tutelar Educativa (LTE) – Decreto-Lei n.º323-E/2000, de 20 de


Dezembro
Transição de uma perspectiva proteccionista para uma perspectiva puni-
tivo-responsabilizadora32

O modelo da OTM anteriormente apresentado tem sido alvo, desde mea-


dos da década de 80, de inúmeras críticas, estando as mesmas associa-
das ao facto de esta legislação estar directamente ligada ao sistema do
Estado Providência, considerado decadente por inúmeros críticos. Assim,
“...considera-se que o mesmo não consagra os direitos fundamentais do
menor por um lado, e não responde eficaz e adequadamente ao aumen-
to da criminalidade juvenil, não satisfazendo as exigências de segurança
da comunidade, por outro. Critica-se, ainda, o modelo de protecção por
desresponsabilizar o menor com comportamento delinquente, partindo da
premissa de que hoje se atinge mais cedo o limiar de maturidade.” (Mar-
ques Vidal, 1998; p.14).

No seguimento crítico da OTM aponta-se a necessidade de rever a agrega-


ção legal e espacial de dois grupos distintos de jovens-alvo de intervenção
- jovens delinquentes e jovens em perigo. Novamente, numa escala con-
sideravelmente inferior, a grande crítica assentava no denominado ‘efeito
de contaminação’, sendo este elemento não apenas potenciador de maior
número de internamentos como igualmente gerador de ineficácias no fun-
cionamento do sistema.

Nas palavras de João Pedroso: “A análise da evolução da justiça de me-


nores em Portugal demostra-nos (...) que a ‘unificação’ dos dois siste-
mas tem nomeadamente como consequências: a institucionalização dos
pobres e das crianças vítimas nos mesmos moldes e instituições que os
autores de factos qualificados como crime; a ineficiência quer da ‘pro-
tecção do risco’ quer das ‘medidas tutelares’, não conseguindo evitar a
proliferação das carreiras criminais juvenis; os processos decorrem sem
garantias de defesa dos menores ou dos seus representantes legais.” (Pe-
droso, 1998; p.57)

Tendo estas críticas presentes, acrescidas da manifesta utilização exces-


siva, de entre as 11 possíveis intervenções existentes na OTM, de medidas
institucionais Anabela Rodrigues, Jurista, redige em co-autoria a Lei Tute-
lar Educativa – Lei n.º166/99 de 14 de Setembro -, em vigor desde Janeiro
de 2001. Sendo seguidamente apontados os pontos e mudanças mais sig-
nificativas desta nova legislação de menores:

Hugo Martinez de Seabra


45
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

“Assim, no sistema preconizado em Portugal, pelo que respeita aos meno-


res infractores entre os 12 e os 16 anos - já que antes dos 12 anos se ope-
rou a descriminalização absoluta -, procura prever-se um leque alargado
de medidas de carácter não institucional, com conteúdos muito diversos,
de forma a procurar responder, no limite do possível, às solicitações da
realidade.
Neste contexto, a medida de internamento constitui a ultima ratio da inter-
venção educativa e como tal deve ser encarada. Ela é a mais grave de todas
as medidas a prever, sem dúvida a que representa maior intervenção na
autonomia de decisão e de condução de vida do menor. (...) O internamento
deverá poder ser executado em um de três tipos de regime - aberto, semi-
aberto e fechado -, a fixar pelo tribunal, em estabelecimentos do Ministério
da Justiça. (...) Quanto aos jovens imputáveis - entre os 16 e os 21 anos - a
primeira ideia rectora do sistema traçado é a luta contra a aplicação de
penas de prisão. (...) A segunda ideia rectora é a assunção clara de que os
cidadãos maiores de 16 anos, sendo considerados imputáveis, estão su-
bordinados às normas penais e é perante elas e na sede adequada que
devem responder pelos seus actos.” (Rodrigues, 1998; p.24)

A LTE aproxima-se claramente do denominado ‘modelo de justiça’, sepa-


rando à partida os menores delinquentes - sob a alçada do Ministério da
Justiça - dos menores em perigo - que passam para a alçada do Ministé-
rio do Emprego e Solidariedade. Relativamente aos primeiros, o sistema
torna-se mais punitivo e responsabilizador, logo significativamente menos
proteccionista, acentuando a proximidade aos procedimentos processuais
penais.

Outra alteração significativa relativamente ao modelo anterior consiste no


direito ao contraditório, a audição do menor, algo difícil de se verificar
anteriormente. O internamento passa a ser por tempo certo resultante da
decisão tomada em tribunal, encontrando-se entre os objectivos do mes-
mo a educação para o direito33.

33. Conceito polémico e amplamente criticado pelos mais directamente envolvidos na fase pós-
decisão (desde técnicos a monitores e educadores do Instituto de Reinserção Social) visto nunca
terem tomado conhecimento do que realmente consiste ‘formar para o direito’. Em 1999, os Ser-
viços de Reinserção Social elaboraram um documento onde desenham as Opções estratégicas e
metas no início do séc.XXI (2000-2003), estando um pouco mais elaborado no mesmo o conceito-
paradigma em causa: “Nesta fase de elaboração conceptual, deve entender-se por ‘educação
para o direito’ o processo que leve o jovem a aderir aos valores básicos da vida em sociedade,
entendendo-se por estes, os valores jurídico-penais, de forma a que com eles conforme a sua
conduta e não cometa crimes.” (p.52)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Não aprofundaremos mais estas questões visto o objectivo deste capítulo


ser apresentar sumariamente as linhas orientadoras da antiga OTM e da
actual LTE. Concluímos esta secção vincando novamente a importância
da Organização Tutelar de Menores de 1978 para o estudo em curso, visto
ser o modelo em vigor aquando do trabalho de campo, conduzido entre
Setembro e Dezembro de 2000 (período imediatamente precedente à im-
plementação da LTE).

6.2 Justiça de Menores em Portugal

Nesta secção procederemos à análise da Justiça de Menores em Portugal


com especial enfoque nos últimos vinte anos da OTM. Para tal será dada
particular atenção aos trabalhos de Vala et al. (1993) e do Observatório
Permanente da Justiça (OPJ) Portuguesa (1998) - e subsequentes artigos
publicados por Pedroso e Fonseca (1998;1999). Quatro pontos fundamen-
tais serão analisados: litigação de menores (crianças em risco e delin-
quentes); medidas aplicadas; caracterização sociográfica das crianças; e
reincidência.

Tendo em conta que esta secção se baseará em exclusivo nas estatísticas


da justiça tutelar, necessário se torna referir que as mesmas são por si já
uma selecção, isto é, apenas registam uma parte das infracções cometi-
das num dado espaço de tempo. Os jovens infractores que nunca chegam
a ter contacto pessoal com a autoridade, a grande base da pirâmide, não
são aqui quantificados. Será igualmente necessário ter em conta que “ ... a
partir do momento em que os jovens são, por exemplo, detidos pela polícia
até à eventual medida ditada pelo juiz existe todo um conjunto de fases
processuais (registo de infracção, recolha de provas, condução do suspeito
a tribunal, condenação, etc.) que progressivamente filtram e fazem dimi-
nuir a população envolvida.” (Vala et al., 1993; p. 15-16). Assim, e tendo por
base indicações do OPJ, os valores estatísticos aqui apresentados relativos
ao número de processos findos representam aproximadamente dois terços
de todos os litígios relacionados com menores em risco ou delinquentes,
uma vez que os demais são arquivados sem recurso a medida tutelar.

Em segundo lugar, devemos questionar a fiabilidade dos dados do Gabine-


te de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça (GEP) - actual Gabi-
nete de Política Legislativa e Planeamento (GPLP). Apoiados em análises
anteriores (Seabra, 1999), conclui-se que, com frequência, se detectam
incongruências nas bases de dados, muitas vezes contradições resultado
do ainda deficiente registo de ocorrências desde a fonte policial até à sen-

Hugo Martinez de Seabra


47
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

tença – tribunais. Essas fontes estão mutíssimo mais orientadas para a


operacionalização e bom funcionamento do sistema que para a produção
de estatísticas passíveis de futuras análises de carácter científico.

Nesta linha, ao proceder a variados testes de validação de uma selecção


desta base de dados, o OPJ recomenda a valorização institucional do tra-
balho de recolha de dados; a melhor preparação técnica de quem o faz; a
avaliação da qualidade do trabalho desenvolvido com reflexos em termos
de promoção das carreiras; concluindo com a sugestão da implementa-
ção, o mais célere possível, da informatização do processamento da acti-
vidade judicial. (OPJ, 1998; p.50).

i) Justiça de Menores em números

Evolução da litigação de menores de 1942 a 1996

Fonte: OPJ, 1998

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Segundo o OPJ, os dados relativos à justiça de menores remontam até


1942. Dois grandes pontos de ruptura são identificados até 1996 (OPJ,
1998; p.ii):
a) 1964 - aumento considerável das crianças autoras de crimes e
diminuição das crianças em risco;
b) 1989 - acentuado decréscimo dos menores praticantes de crimes
e aumento significativo de menores em risco.

Fonte: Justiça de Menores, 1980-2000, Estatísticas da Justiça, GEPMJ e GPLPMJ.

Centrando a presente análise nas duas últimas décadas, destaca-se cla-


ramente a diminuição desde 1984/1985 da vertente das infracções penais
(vulgo, delinquência juvenil) e, pelo contrário, coincidindo na data, o au-
mento dos outros tipos de situações (vítimas, pré e para-delinquência). O
ano de 1989 vem acentuar esta divergência de evoluções anuais com, por
um lado, uma mais vincada diminuição do número de jovens infractores
presentes em tribunal e, por outro, um maior crescimento dos menores
em situação de risco. João Pedroso (1998) considera paradoxal esta evolu-
ção visto a mesma verificar-se em simultâneo com o alastrar do discurso
da insegurança dos cidadãos auxiliado por uma maior mediatização da
delinquência juvenil. Este autor arrisca então uma hipótese:

“Como hipótese admite-se, por ora, que as entidades policiais se encon-


tram mais preocupadas com outro tipo de criminalidade, que não aquela
praticada por crianças, e que, por isso, tenha aumentado a criminalidade
juvenil oculta, nomeadamente nos bairros suburbanos de Lisboa e Porto,
onde se encontra ‘protegida’ pelas redes de tráfico de droga e dos gangs
juvenis.” (Pedroso, 1998; p.65)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Analisando os dados por situação que provocou a actuação do tribunal,


em relação aos menores maltratados, abandonados ou em perigo são as
categorias relativas ao perigo para a saúde, segurança, educação ou mo-
ralidade, por um lado, e abandono e desamparo, por outro, aquelas que
verificaram maior volume de ocorrências. Não negligenciáveis são, igual-
mente, as situações relativas a maus tratos que, no decorrer da década de
90, passam de 60 casos em 1991 para 302 em 2000. Situação esta possi-
velmente reveladora de uma crescente atenção das instâncias de controlo
para estas delicadas situações.

Fonte: Justiça de Menores, 1980-2000, Estatísticas da Justiça, GEPMJ e GPLPMJ.

Relativamente aos menores com condutas desviantes, é a categoria de


vadiagem e/ou libertinagem aquela que regista o maior número de pre-
senças de menores em tribunal durante todo o período. Em pé de igual-
dade de importância, encontramos a dificuldade de adaptação a vida so-
cial normal e a inadaptação à disciplina da família ou estabelecimento de
educação. Curiosamente, e contrariando alguma especulação mediática
relativa ao abuso de bebidas alcoólicas e uso ilícito de estupefacientes
entre menores, tais práticas apenas surgem quantificadas a partir de 1984
sempre com valores muito reduzidos, sendo disso exemplo os 61 casos
registados em 2000 (1,2% de todos os casos presentes a tribunal).

Especial atenção será agora dedicada à infracção penal cometida por


menores inimputáveis. Em termos relativos, a prática de acto qualifica-
do como crime sempre foi superior a 50% das intervenções da justiça de
menores até 1996. Por exemplo, em 1980 representava 81,4% de todos os
processos em tribunal tutelar. Já em 1989 registava valores na ordem dos

Estudo de Jovens em Reinserção


50
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

56,9%. No final da década de 90, confirma-se a tendência de decréscimo


- 45,6% em 2000. Em termos absolutos verificamos uma redução no re-
gisto estatístico deste tipo de práticas de 2080 casos em 1980 para 1421
em 1990, sendo a década de 90 de crescimento, atingindo os 2255 casos
em finais de 2000.

Os crimes contra a propriedade e o património sempre registaram ele-


vadíssimas percentagens durante o período em análise (68,1% em 1980;
78,1% em 1991; 63,7% em 2000). Tanto Vala et al. como o OPJ, indicam o
crime de furto como o mais frequente dentro desta categoria. João Pe-
droso conclui que “Dos elementos constantes dos processos resulta que
os bens furtados ou se destinam a satisfazer necessidades do quotidiano
de uma criança (comida, roupa, jogos) ou para vender e realizar dinheiro
(peças de automóveis, electrodomésticos).” (Pedroso, 1998; p.84)

Quanto aos crimes contra a integridade física, constituem o segundo tipo


de delitos mais praticados, ainda assim numa proporção muito menor
- destacando-se neste caso as ofensas corporais simples ou privilegia-
das. Ao longo de toda a década de 80, este tipo de crimes manifesta claro
decrescimento, confirmado na década de 90, resumindo-se a uns quase
insignificantes 9,2% em 2000, comparativamente ao peso da categoria cri-
mes contra a propriedade.

Ligado a este último ponto, realce-se ainda, por um lado, a quase inexis-
tência de violência nesta criminalidade e, por outro, o insignificante envol-
vimento em crimes relativos a estupefacientes (1,8% em 2000), situações
paradoxais perante os discursos mediáticos e de opinião pública relativos
ao aumento da insegurança ligada ao crescimento da delinquência juve-
nil.

Por último, no tocante à distribuição geográfica da delinquência juvenil,


detecta-se uma clara concentração nas grandes urbes, nomeadamente
Lisboa e Porto e respectivas áreas suburbanas, directamente relacionada
com a expansão de uma cultura de consumo nunca dissociável do agudi-
zar da exclusão social (Bruto da Costa, 2001).

Resumidamente, nos últimos anos temos verificado na Justiça de Meno-


res um comportamento oscilatório do número de menores envolvidos em
processos judiciais relativos a actos qualificados como crime e um incre-
mento do número dos menores vítimas e/ou em risco. Centrando a análi-
se nos primeiros, o tipo de delitos mais praticado é o furto, directamente

Hugo Martinez de Seabra


51
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ligado à disseminação paralela, nas grandes áreas urbanas, da cultura


de consumo e da exclusão social. A delinquência juvenil, ao contrário do
que alguma comunicação social veicula, baseados nos números da Justi-
ça Tutelar, não se encontra em extraordinária expansão e não se reveste
de incremento de violência nem é acompanhada de consumos aditivos.
Especial atenção deveria ser dirigida ao, menos mediático, mas altamente
complexo e chocante universo da violação dos direitos mais básicos das
crianças, o mundo das crianças vítimas e/ou em risco, esse sim, em ex-
pansão.

ii) Medidas aplicadas

Como foi referido anteriormente, existe um leque variado de 11 medidas


possíveis de serem aplicadas. Ainda assim, algumas delas raramente
saem do papel, casos da ‘imposição de determinadas condutas e deveres’;
da ‘submissão a regime de assistência’; da ‘colocação em lar de semi-in-
ternato’ ou da ‘colocação em instituto médico-psicológico’.

“Como medidas de aplicação efectiva, contam-se apenas as seguintes, hie-


rarquizadas por ordem decrescente da sua aplicação: Admoestação; En-
trega aos pais; Internamento em estabelecimento de reeducação; Acom-
panhamento educativo; Colocação em estabelecimento oficial ou particular
de educação; Colocação em família idónea.” (OPJ, 1998; p.167)

A análise de Vala et al., relativamente à década de 80, realça que entre


80% a 90% das medidas executadas foram aplicadas no meio do menor,
sendo as restantes de internamento em estabelecimentos tutelares edu-
cativos. Acrescentam os autores que estes internamentos tiveram como
alvos, numa proporção quase idêntica (50%), tanto jovens praticantes de
infracção criminal como situações de vitimação, marginalidade e desa-
daptação. Relativamente às primeiras, os furtos terão sido os delitos mais
propensos a receber este tipo de medidas.

Centrando-se igualmente nas medidas de internamento, o OPJ, relativa-


mente ao período entre 1970 e 1996, revela que as mesmas têm oscilado
entre os 6,9% no ano inicial, os 10% em 1984, e os 8,1% em 1996. Dados
mais recentes revelam um novo crescimento desta medida, na ordem dos
10,9% em 2000.

Concluindo, salienta-se uma atracção pelos extremos em termos de me-


didas aplicadas. Se a admoestação e a entrega aos pais predominam, ain-

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

da assim, os valores do internamento em estabelecimento de reeducação,


sempre rondando os 8% a 10%, não são negligenciáveis tendo em conta
que esta é a medida mais pesada de todas, sendo mesmo recomendada,
tanto pelo Conselho da Europa como através da própria legislação nacio-
nal, a sua aplicação apenas em casos de comprovada gravidade.

iii) Caracterização sociográfica dos menores

No que se refere aos menores em risco, i.e., vítimas (maus tratos, abuso
de autoridade, abandono ou desamparo), em situações de pré-delinquên-
cia (inadaptação à disciplina da família, do trabalho, da escola ou da insti-
tuição onde se encontram) ou para-delinquência (vadiagem, mendicidade,
prostituição, libertinagem ou consumo excessivo de álcool), estes provêm
de meios sociais desfavorecidos, inseridos em famílias ‘desregradas’ e
marcadas pela violência e consumos aditivos (álcool e estupefacientes).

Citado pelo OPJ, Queloz (1993), na sequência da análise de investigações


conduzidas nos EUA e na Europa, conclui que na delinquência entre os 12
e os 16 anos existe uma forma piramidal. A sua base é ocupada por 80%
a 90% dos jovens que em estudos de delinquência auto-revelada ma-
nifestam já ter delinquido, seguida da categoria de delinquência aparente,
i.e., a denunciada à polícia, abrangendo 8% a 10% dos jovens; por fim, no
topo da pirâmide, encontramos a delinquência sancionada, englobando
4% a 5% dos jovens.

Gersão e Lisboa (1994) realizaram o único estudo de delinquência auto-


revelada feito até ao presente em Portugal, tendo chegado às seguintes
conclusões:

“O mais relevante aspecto é a ‘democratização da delinquência: a percen-


tagem, de jovens que admitem ter delinquido no último ano é praticamente
a mesma para todas as classes sociais. (...) A mesma tendência emerge no
que toca às diversas categorias de ofensas, consequentemente nenhum
comportamento delinquente pode ser considerado exclusivo de uma classe
particular.” (p.220) “O comportamento delinquente entre jovens é bastan-
te frequente indiferentemente da idade, género, classe social e estatuto
educacional. Ainda assim, a situação Portuguesa não tem que ser conside-
rada como preocupante. As taxas de prevalência não são muito elevadas,
especialmente no que toca às ofensas mais graves.” (p.227)

Contrariando significativamente estes resultados obtidos por Gersão e


Lisboa, os dados relativos à caracterização sociográfica dos agentes de-

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

linquentes envolvidos na justiça de menores em Portugal revelam uma


predominância quase absoluta de menores oriundos das classes mais po-
bres. Confirmando esta selectividade da justiça de menores portuguesa
Eliana Gersão, num artigo publicado em 1998, refere:

“Aquilo - pouco - que sabemos acerca dos jovens que transgridem a lei
penal diz sobretudo respeito aos adolescentes colocados nas instituições
de reeducação dos Instituto de Reinserção Social, na sequência da prática
de crimes. Os dados (...) mostram-nos adolescentes de famílias pobres e
com má situação educativa, com muita frequência pertencentes às mino-
rias africanas, residentes em bairros degradados e agentes, em regra, de
infracções contra a propriedade. Trata-se de uma ínfima parte, extrema-
mente filtrada e seleccionada, da vasta gama de adolescentes que infrin-
gem a lei.” (p.9-10)

Eliana Gersão introduz aqui um forte ponto de ligação ao presente estudo.


Esta é uma das poucas referências à presença de ‘jovens oriundos de mi-
norias africanas’ existentes em estudos relativos à delinquência juvenil, a
infractores menores e à sua institucionalização em Portugal.

Em termos de caracterização sociográfica, este parece-nos ser um ele-


mento fundamental para o preciso conhecimento da realidade enfrentada
pela justiça de menores em Portugal. Ainda assim, e apenas a título de
exemplo, a própria revista do Instituto de Reinserção Social - Infância e Ju-
ventude34-, nas últimas duas décadas, não publicou um único artigo cien-
tífico especificamente relacionado com este tema. Raramente arriscando,
os autores dos mesmos escrevem, quanto muito, pequenos parágrafos, à
semelhança do supracitado, cuidadosamente expondo, meramente com
intuitos descritivos, a presença de menores descendentes de famílias afri-
canas em contacto com a justiça tutelar portuguesa.

Cremos que a procura da não estigmatização destes menores de origem


africana não passa pela pura e simples ocultação, ou pelo evitar mencio-
nar e debater a sua presença neste sistema. Pelo contrário, ao pensar-se
primeiro no politicamente correcto e na indesejável possível catalogação
do investigador como tendencioso, xenófobo ou mesmo racista, a comuni-
dade científica estudiosa destas questões deixou-se amedrontar e esque-
ceu que o seu primeiro objectivo é apurar as inúmeras variáveis envolvidas

34. Existente numa base trimestral desde 1954, especificamente dedicada à temática da delin-
quência juvenil, encontrando-se até 1995 sob a alçada da Direcção Geral dos Serviços Tutelares
de Menores passando desde então a estar dependente do Instituto de Reinserção Social.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

neste ‘jogo’, com vista a posteriormente sugerir medidas preventivas a


nível de actuação local direccionadas à protecção dos próprios e da socie-
dade envolvente.

Apenas a partir de 1997 é que as estatísticas oficiais iniciam a publicação,


através da rudimentar dicotomia português/estrangeiro, da nacionalida-
de dos menores inimputáveis em juízo. Esta opção revela, uma vez mais,
uma crescente atenção sobre as questões dos estrangeiros no sistema
de justiça português, vindo na sequência do ocorrido para as estatísticas
criminais (imputáveis) em 1993.

Menores em Juízo, segundo a nacionalidade por situação


que provocou a actuação do tribunal (1997-2000)

1997 1998 1999 2000


Total Port. Estr. Total Port. Estr. Total Port. Estr. Total Port. Estr.
Total 2 624 2 580 44 2 700 2 652 48 3 544 3 475 69 4 933 4 830 103
MMAP 950 934 16 1 065 1 047 18 1 415 1 378 37 1 818 1 784 34
MCD 781 772 9 805 792 13 1 158 1134 24 1 657 1 620 37
IP 1 319 1 294 25 1321 1295 26 1 604 1 581 23 2 251 2 203 48

MMAP – Menores maltratados, abandonados ou em perigo; MCD – Menores com condutas


desviantes; IP – Infracção penal.
Fonte: Justiça de Menores, 1997-2000.

Dos valores apresentados, podemos concluir que:


I. No total, o valor de menores em juízo praticamente duplicou em
apenas quatro anos, revelando tal facto ou uma melhor actuação
por parte das autoridades policiais, ou um acréscimo significativo
deste tipo de situações, ou ainda uma conjugação de ambos;
II. Em todas as três ‘situações que provocam a intervenção do tribu-
nal’, registou-se um acréscimo acentuado, sendo este, ainda assim,
mais flagrante nos ‘menores com condutas desviantes’ (+112%) e
nos ‘menores maltratados, abandonados ou em perigo’ (+91%). Por
sua vez, a infracção penal regista uma evolução em quatro anos na
ordem dos +71%;
III. Relativamente às nacionalidades, verificamos que os menores
estrangeiros têm acompanhado a evolução geral e igualmente a ve-

Hugo Martinez de Seabra


55
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

rificada junto dos portugueses em todas as situações consideradas,


nunca representando mais que 2,1% (2000) do universo total;
IV. Registe-se, junto dos estrangeiros, um maior envolvimento em
práticas de infracção penal, à excepção do ano de 1999, com valores
a rondarem os 50% do total de estrangeiros.

Por sua vez, Pedroso e Fonseca (1999) procederam a um estudo de caso


no Tribunal de Menores de Lisboa, inserindo uma nova variável nesta com-
plexa trama - a etnia:

“É igualmente de destacar que, na nossa amostra de processos, surgem,


em número muito superior ao que representam no conjunto da popula-
ção portuguesa, famílias oriundas dos Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa. As crianças e jovens de origem africana representam, nesta
amostra, cerca de 30% daquelas que foram judicializadas pela prática de
factos qualificados como crime, em ambos os anos de 1989 e 1996. Parece,
assim, haver indícios de que as instâncias de controlo social, que encami-
nham os jovens que praticam crimes para o tribunal de menores têm uma
especial atenção por este grupo de jovens.” (Pedroso e Fonseca, 1999; p.
152)

O envolvimento de crianças e jovens de origem africana em actos qua-


lificados como crime encontra-se concentrado maioritariamente junto à
capital e seus subúrbios, local de eleição de fixação das comunidades imi-
grantes africanas. Ainda assim, será necessário realçar novamente que
as crianças de origem africana, alvo de intervenção por parte da justiça
de menores, não são única e exclusivamente agentes infractores, havendo
igualmente um número significativo de jovens em risco.

Em termos de género e à semelhança da criminalidade adulta, existe uma


fortíssima associação entre a prática delinquente e o sexo masculino. Se-
gundo a análise do OPJ, desde 1942 até 1996, o valor percentual do sexo
masculino rondou sempre os 80% do universo envolvido na justiça de me-
nores. Esta situação tem registado alguma alteração nos últimos anos
acentuando-se a presença de jovens do sexo feminino no sistema de justi-
ça de menores, sendo o seu peso em finais de 2000, de 29,6%.

Vala et al. (1993) identificam os 15 anos como tendo sido, na década de


80, a idade que agrupou maior número de infractores juvenis. Em confor-
midade, o OPJ (1998) refere que o grupo etário com maior frequência é o
dos 14 aos 16, dando os 7 anos como o limite mínimo do início de práticas
delinquentes.

Estudo de Jovens em Reinserção


56
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

A escolarização destes jovens, apesar de reduzida, tem manifestado na


opinião de Pedroso e Fonseca (1999), uma tendência evolutiva positiva, re-
sultado do próprio funcionamento do regime de escolaridade obrigatória.

iv) Reincidência

Pedroso e Fonseca (1999) analisaram no Tribunal de Menores de Lisboa a


persistência na prática de crimes, vulgo reincidência, dos jovens que ha-
viam sido sujeitos a processo tutelar e que, à data do estudo, tinham entre
18 e 21 anos (universo de 853 jovens).

Concluem que a grande maioria dos jovens reincidentes não tinha no seu
historial de intervenção situações de maus tratos, abandono ou negligên-
cia, tinham antes manifestações de inadaptação (pré-delinquência) e prá-
ticas delinquentes.

Realce-se igualmente, nesta investigação, o elevadíssimo valor percentual


obtido relativamente a jovens reincidentes de origem africana (aproxima-
damente 22%), nomeadamente descendentes de famílias cabo-verdianas.
Revelando este facto uma superior dificuldade interventiva por parte das
autoridades e das instituições de reinserção social particularmente junto
destas crianças e jovens.

6.3 Instituto de Reinserção Social

“O Instituto de Reinserção Social (IRS) é o órgão auxiliar de administração


da justiça responsável pelas políticas de prevenção criminal e reinserção
social, designadamente nos domínios da prevenção da delinquência juve-
nil, das medidas tutelares educativas e da promoção de medidas penais
alternativas à prisão.”

i) Caracterização sociográfica dos menores internados

Iniciaremos esta caracterização apresentando a evolução ao longo da


década de 90 do número de menores institucionalizados em Colégios de
Acolhimento, Educação e Formação (CAEF) e em Unidades Residências
Autónomas (URA), vulgo lares.

Hugo Martinez de Seabra


57
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Menores existentes em 31 de Dezembro nos CAEF e URA (1990-2000)

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Total 976 1021 1052 983 818 955 875 839 696 754 634
Por 1000 9 10 11 9 8 10 9 8 7 8 6
habitantes

Fontes: Estatísticas da Justiça 1999, Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da


Justiça, Lisboa, 2000; Justiça de Menores 2000, Gabinete de Política Legislativa e Planea-
mento do Ministério da Justiça, Lisboa, 2001.

No quadro apresentado, detectamos um universo com uma volatilidade


característica deste tipo de espaços de reclusão. Identifica-se uma acen-
tuada tendência no início da década de 90 para a institucionalização, atin-
gindo o pico em 1992, com 11 internamentos neste tipo de unidades em
cada 1000 habitantes. Nos dois anos seguintes regista-se uma tendência
para a diminuição, voltando em 1995 a observar-se um significativo au-
mento. Desde então o número de menores internados tem diminuído con-
sideravelmente, registando-se em 2000, após uma inversão momentânea
em 1999, um regresso a essa tendência (6 institucionalizados por 1000
habitantes).

Em seguida, procederemos a uma análise dos CAEF por Delegação Regio-


nal, tendo por indicadores: a respectiva localização; o género dos destinatá-
rios; a lotação de cada unidade e o número de menores internados. Pode-
remos, assim, compreender melhor a distribuição, tanto geográfica como
numérica, dos equipamentos e dos menores internados em Portugal.

Estudo de Jovens em Reinserção


58
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

CAEF: Localização, lotação, menores internados e taxa de ocupação,


31 de Dezembro de 2000

Localização Sexo Lotação Internados Tx. Ocupação %

D. R. Porto
Colégio Santa Vila do Conde Masc. 59 68 116%
Clara
C. Santo An- Porto Misto 63 44 70%
tónio
C. Corpus V. Nova Gaia Fem. 46 48 104%
Christi
D.R. Coimbra
C. Dr. Alberto Aveiro Masc. 36 38 106%
Souto
Colégio dos Coimbra Misto 30 49 163%
Olivais
C. do Mondego Guarda Masc. 24 24 100%
Colégio São Viseu Fem. 22 16 73%
José
Colégio São Castelo Masc. 30 32 107%
Fiel Branco
D.R. Lisboa
C. São Bernar- Peniche Masc. 30 42 140%
dino
C. da Bela Lisboa Masc. 50 93 186%
Vista
C. Navarro de Lisboa Misto 54 52 96%
Paiva
Colégio da Lisboa Fem. 56 30 54%
Infanta
C. Padre A. Oeiras Masc. 30 43 143%
Oliveira
D.R. Évora/Faro
C. de Vila Elvas Masc. 24 21 88%
Fernando

Fontes: Estatísticas da Justiça 2000, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do


Ministério da Justiça, Lisboa, 2001; Aprender a ser Cidadão, Instituto de Reinserção Social,
Encontro sobre Actividades Formativas nos Colégios do Instituto de Reinserção Social, Lis-
boa, Junho de 1999.

Hugo Martinez de Seabra


59
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

A análise deste quadro possibilita-nos retirar algumas conclusões:


1. A distribuição geográfica deste tipo de equipamentos é bastante de-
sigual. Na D.R. do Porto (Norte) temos um Colégio para cada tipo
de universo (masculino, feminino e misto). Por sua vez, na D.R. de
Coimbra (Centro) encontramos três CAEF masculinos, um feminino
e um misto, sendo o cenário idêntico em Lisboa (Área Metropolita-
na de Lisboa), embora neste último caso as capacidades a nível de
lotação máxima sejam superiores. Por último, a D.R. de Évora/Faro
(Alentejo e Sul) tem apenas um CAEF com uma lotação quase in-
significante. Nos arquipélagos, à excepção de pequenas casas re-
sidenciais, muito à semelhança dos lares, não existem quaisquer
equipamentos do IRS do tipo dos CAEF36;
2. Para além da flagrante concentração deste tipo de equipamentos
em zonas eminentemente urbanas (Vila do Conde, Peniche e Elvas
são as excepções), verifica-se uma atracção pela sua litoralização,
existindo apenas cinco CAEF mais para o interior, quatro deles todos
na D.R. de Coimbra;
3. A sobrelotação existe igualmente neste tipo de instituições. Num
universo de catorze colégios, em apenas cinco a lotação não se en-
contrava preenchida ou superior à sua capacidade. À excepção do
Colégio de Vila Fernando, os outros quatro nestas circunstâncias
eram femininos ou mistos. Desta forma, encontravam-se em situa-
ção de sobrelotação nove destas unidades. Os casos mais flagrantes
eram o Colégio da Bela Vista (+ 86%), o Colégio dos Olivais (+63%) e
o Colégio Padre António de Oliveira (+43%), este e o primeiro, ambos
masculinos e da região de Lisboa. O fenómeno da sobrelotação pa-
rece assim ser característico do universo masculino, pois, embora
também exista em colégios femininos e/ou mistos, é nos primeiros
que atinge maior generalização;
4. É na D.R. de Lisboa que encontramos tanto maior número de ‘vagas’
(220 no total, 146 das quais para menores do sexo masculino) como
um superior número de internados (260 no total, dos quais 218 são
rapazes). A sobrelotação para a D.R. de Lisboa é igualmente a mais
elevada, na ordem dos +18%. Por seu lado, as D.R. do Porto e de
Coimbra têm valores aproximados tanto em termos de ‘vagas’ (168 e
158 respectivamente) como em termos de internamentos (160 e 142
respectivamente).

36. Significando isto, como veremos, que menores infractores enviados pelos tribunais locais para
internamento terão que ser institucionalizados em Lisboa (Direcção Regional na qual estão inclu-
ídos). Indo esta situação contra todas as directivas tanto nacionais como internacionais relativas à
institucionalização de menores longe da sua família e do seu habitual local de residência.

Estudo de Jovens em Reinserção


60
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Indo ao encontro do universo de menores institucionalizados em CAEF,


analisaremos cinco indicadores: género; idades; escolarização; motivo da
intervenção e situação jurídica37.

A. Género dos menores institucionalizados - As raparigas constituem cer-


ca de 18,9% do universo existente (120 no total). Por sua vez, os rapa-
zes, confirmando as teorias relativas à delinquência juvenil, são a grande
maioria dos internados, 81,1% (514 em valores absolutos).
B. Idades dos menores internados - É na categoria entre os 16 e os 17
anos38 que encontramos o maior número de indivíduos tanto do sexo mas-
culino (45,1% do total masculino) como do sexo feminino (55%). Segui-
damente, surge a categoria dos 14 aos 15 anos, detectada na análise re-
lativa à litigação de menores como sendo a mais frequente, com valores
na ordem dos 38,9% para os rapazes, e dos 34,2% para as raparigas. As
restantes categorias detêm valores residuais, destacando-se a dos 12 aos
13 anos - com 11,7% do total. Tanto os 9 aos 12 anos como os 18 e mais
representam aproximadamente 2% do valor total de internamentos.
C. Escolarização - Destaque-se pela negativa a inexistência de jovens a
frequentar o ensino secundário. Assim, é no ensino básico que encontra-
mos a totalidade dos jovens internados. O 2º ciclo é aquele que detém o
maior número de menores, representando 48,3% do universo existente. O
primeiro ciclo surge de seguida com aproximadamente 30% dos internados
e, por último, o terceiro ciclo (escolaridade mínima obrigatória) representa
valores muito reduzidos, na ordem dos 17%. Se tivermos em conta que um
percurso sem falhas representa atingir a escolaridade mínima obrigatória
aos 15 anos, e tendo presente que 48,7% destes jovens já ultrapassaram
essa idade, concluímos que este é inequivocamente um universo onde o
insucesso escolar é flagrante.
D. Motivo da intervenção tutelar - Dos menores institucionalizados em 31
de Dezembro de 2000, quer em CAEF quer em Lares39 (5,4% dos menores
sob tutela do IRS), 10,4% eram vítimas de maus tratos, abuso de autori-
dade, abandono ou desamparo. De entre estes destaque-se o contingente
do género feminino, 20,8% de todas as raparigas sob tutela, contra 8%

37. A presente análise continua a ter como base valores de 2000, último ano da OTM. Há que ter
em conta que este é um universo muito volátil, em permanente mutação, fruto de um fluxo quase
diário de entradas e saídas, estas últimas de vários tipos - saídas autorizadas (permanentes ou
temporárias) ou não autorizadas (fugas ou não retornos).
38. Recordamos que apesar da idade de inimputabilidade ir apenas até aos 16 anos, os CAEF aca-
bam por permanecer com jovens internados com idades até aos 18 anos. Esta situação encontra-se
directamente relacionada com as medidas aplicadas a menores à beira dos 16 anos que se esten-
dem para lá desse limite etário, estando tal facto contemplado na legislação deste organismo.
39. Formalmente denominados Unidades Residenciais Autónomas (URA).

Hugo Martinez de Seabra


61
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

dos rapazes. Esta situação era, até à entrada em vigor da LTE, o cerne da
discussão reformista da OTM. Esta apoiava-se no apelo à passagem para
a Segurança Social destes menores vítimas, que se encontravam institu-
cionalizados juntamente com jovens delinquentes sofrendo, desnecessa-
riamente, de efeitos de contágio. Relativamente à situação de para/pré-
delinquência40 os valores sobem para os 14,8%. De destacar o facto de as
raparigas serem aqui maioritárias, com 51,1% deste universo. Como seria
de esperar, é na categoria de agentes de factos qualificados como infrac-
ção penal que se encontra o grande contingente de indivíduos com 74,8%.
Aqui os jovens do sexo masculino representam a grande maioria (89,5%).
E. Situação Jurídica dos internados - Analisaremos aqui apenas as três
tipologias mais significativas. Assim sendo, destaca-se a execução de
medida tutelar de internamento representando 46,7%. As categorias ob-
servação concluída a aguardar decisão e internamento para observação41
englobavam, à data, 12,8% e 33,3% dos jovens internados.

ii) Actividades desenvolvidas pelos CAEF

O internamento em CAEF tem por base uma filosofia de ocupação dos me-
nores. Este objectivo é para ser alcançado através de três grandes tipos de
actividades: a formação escolar, a formação profissional e as actividades
de animação.

I. Formação escolar - todos os CAEF têm equipas de professores


e directores técnicos de educação por forma a, usualmente numa
metade de cada dia útil, funcionarem turmas do 1º ao 3º ciclo dentro
dos mesmos.
II. Formação profissional - existem várias áreas de formação profis-
sional nos CAEF a nível nacional (têxteis e confecções, artesanato,
tratamento de roupas, estofadoria, agropecuária, cabeleireiro, con-
fecção de alimentos, construção civil, estruturas de madeira, me-
cânica, artes gráficas, electricidade, expressões criativas, informá-
tica, jardinagem, entre outras). Cada unidade CAEF a nível nacional
disponibiliza aos menores institucionalizados um certo número de
40. Para-delinquência - Inadaptação à vida social normal, à disciplina da família, do trabalho
ou da instituição. Pré-delinquência - entregues à mendicidade, vadiagem, prostituição, liberti-
nagem ou abuso do álcool.
41. Aquelas em que, aquando do trabalho de terreno, muitos menores se encontravam e que
são verdadeiramente morosas, excedendo, na altura, todos os prazos estabelecidos pela OTM
relativos à necessária celeridade da tomada deste tipo de decisões. Situações fortemente li-
mitadoras para os jovens que se vêem na angústia da incerteza durante largos meses sem
saberem o que esperar, queixando-se constantemente da falta de informação.

Estudo de Jovens em Reinserção


62
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

actividades possíveis, dando-lhe a optar por frequentar uma intensi-


vamente ou duas a meio termo.
III. Actividades de animação/ocupação - igualmente não uniformiza-
do pelas diferentes unidades CAEF existentes, são dinamizados dife-
rentes Ateliers (fotografia, expressão dramática, expressão plástica,
desporto/aventura, música, capoeira, bilhar, ténis de mesa, futebol,
etc.), alguns mesmo no exterior (escutismo, natação, montanhismo/
escalada, etc.) - é de destacar neste último ponto, o Atelier de Músi-
ca Africana existente no Colégio da Bela Vista em Lisboa.

Por último, referir a título de curiosidade, e mais uma vez em ligação es-
treita com o objecto de estudo desta investigação, que em Setembro de
2000 o Ministério da Justiça, nomeadamente o IRS, abriu concurso para
200 vagas de técnicos profissionais de reinserção social e 75 de técnicos
superiores, ou seja, o pessoal de terreno nos CAEF. Nos anúncios publica-
dos, um dos dois factores de preferência era “o conhecimento de línguas/
culturas africanas”. Embora sejam ainda poucos aqueles que tenham tido
coragem de, imparcialmente, analisarem a questão do envolvimento de
menores descendentes de imigrantes africanos em práticas delinquentes
e sua consequente institucionalização, a verdade é que é através destes
pequenos elementos que nos apercebemos que o próprio sistema, procu-
rando não levantar muita celeuma, vai adaptando-se à mesma.

Hugo Martinez de Seabra


63
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

III – ESTADO DA ARTE

Neste capítulo visa-se proceder a uma identificação e a uma análise críti-


ca dos estudos de cariz científico publicados em Portugal onde, de forma
exaustiva ou apenas parcial, se trata da conexão do fenómeno da delin-
quência, ou do desvio, aos filhos de imigrantes africanos.

A progressão desta análise realizar-se-á cronologicamente, por forma a


detectar evoluções tanto no número de publicações ao longo do período
em análise como no aprofundamento das mesmas.

Em 1994 Eliana Gersão e Manuel Lisboa publicam The self report de-
linquency study in Portugal um estudo pioneiro e único no género até ao
presente em Portugal. Teve por objectivo identificar junto de uma amostra
significativa dos jovens de Portugal Continental as taxas de prevalência de
delinquência auto-revelada. Ao abordarem a composição étnica dos jovens
os autores referem:
“Tendo presente que a inquirição da raça não é permitida uma vez que
poderia ir contra o princípio constitucional da não-discriminação, a compo-
sição étnica da população é desconhecida. Pode, ainda assim, ser conside-
rada homogénea, uma vez que os estrangeiros representam menos de 2%,
metade dos quais vieram das ex-colónias portuguesas em África.” (p.213)

Deste excerto destaca-se sobretudo a pouca relevância que à data era atri-
buída à associação: delinquência/filhos de imigrantes africanos em Portu-
gal. Não cremos que o desenvolvimento, no presente, de outro estudo em
moldes semelhantes tenha possibilidade de se esquivar à abordagem e
aprofundamento desta questão.

Igualmente em 1994, Fernando Luís Machado ao desenvolver a sua posi-


ção relativamente às questões terminológicas e consequentemente quan-
to ao uso de conceitos adequados para, na área das ciências sociais, deno-
minar os filhos de imigrantes africanos em Portugal salienta:

“Relativamente aos novos luso-africanos a situação é diferente [dos primei-


ros luso-africanos, vindos para Portugal com a descolonização]. Se nos pró-
ximos anos se confirmar a tendência que parece desenhar-se no sentido de
a maioria deles herdar a condição social desfavorecida dos seus pais, po-
demos dizer que o potencial de mobilização para a acção colectiva é alto,
bastante mais alto do que o dos próprios imigrantes. (...) Aquilo que os seus
pais têm de conformismo, discrição e retraimento, não se reproduz como
atitude entre os jovens luso-africanos, menos submissos e resignados. Se os

Estudo de Jovens em Reinserção


64
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

pais aceitaram a sua condição social, uma vez que, como imigrantes que são,
tendem a vê-la como transitória e compensadora a prazo, os filhos que não
pensam como imigrantes, são portadores de expectativas mais altas porque
também partem de um nível mais alto do que os pais. (...) Com efeito há aqui
diferentes medidas de privação relativa para as duas gerações. Se os pais se
comparam com aqueles que não imigraram e se sentem melhor do que eles,
os seus filhos já não têm esse grupo de referência, mas sim os grupos de re-
ferência que a sociedade em que cresceram lhes põe à vista, como por exem-
plo o dos jovens portugueses em geral. A confrontação dessas expectativas
mais altas com uma estrutura de oportunidades eventualmente bloqueada,
que os atire para uma condição social igual à dos pais, propicia a emergência
de atitudes de contestação colectiva. Esta pode ser uma explicação para o
envolvimento de jovens africanos em alguns episódios violentos ocorridos
nos últimos anos na região de Lisboa.” (p.128)

Esta é a nosso ver a primeira ligação directa produzida num documento de


investigação de cariz sociológico onde se relacionam os comportamentos
dos filhos de imigrantes africanos com actos contestatários, violentos, i.e.,
desviantes. Relendo este excerto dez anos mais tarde verificamos que o
cenário aqui apontado ainda como hipotético tem vindo a desenvolver-se
e, inclusivamente, agravar-se.

A partir de 1998 a produção científica nesta área regista um crescimento


acentuado.

Do artigo de Eliana Gersão (1998) A violência nos comportamentos juvenis


e a revisão da organização tutelar de menores realce-se, primeiro que
tudo, a publicação, mesmo que pontualmente num parágrafo, da ligação
entre ‘adolescentes pertencentes às minorias étnicas’ e a violência nos
comportamentos juvenis, isto numa revista - Infância e Juventude - que
apesar do seu historial ligado às questões dos menores em Portugal, tem
a temática das denominadas minorias étnicas permanentemente ausente
dos seus artigos. Afigura-se-nos incompreensível como é que sendo esta
uma realidade em Portugal desde o início da década de 90, e uma rea-
lidade flagrante dos CAEF do Instituto de Reinserção Social desde, pelo
menos, meados da mesma, e estando esta revista trimestral sob a depen-
dência desse mesmo instituto, não tenha sido publicado um único artigo
sobre este fenómeno com o qual convivem incontestavelmente ‘das portas
para dentro’ - seja com crianças em risco (até finais de 2000), seja com
delinquentes.

Hugo Martinez de Seabra


65
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

“Aquilo - pouco - que sabemos acerca dos jovens que transgridem a lei
penal diz sobretudo respeito aos adolescentes colocados nas instituições
de reeducação do Instituto de Reinserção Social, na sequência da prática
de crimes. Os dados que nos são fornecidos relativamente a esses jovens
mostram-nos adolescentes de famílias pobres e com má situação educa-
tiva, com muita frequência pertencentes às minorias africanas, residentes
em bairros degradados e agentes, em regra, de infracções contra a pro-
priedade. (...) Trata-se de uma ínfima parte, extremamente filtrada e selec-
cionada, da vasta gama de adolescentes que infringem a lei.” (p.9-10)

A grande mais valia deste excerto está presente no reconhecimento, de quem


conhece o sistema bem por dentro, da filtragem que se processa desde os ac-
tos delinquentes praticados até ao internamento de jovens delinquentes. Fican-
do usualmente pelo caminho, para além de muitas infracções não participadas
nem investigadas, muitos infractores que, resultado de diversas situações pro-
cessuais, acabam por não ser sancionados pelos seus actos. De entre estes, se
tivermos presentes os resultados relativos ao inquérito de delinquência auto-
revelada realizado por Gersão e Lisboa (1994) onde a taxa de prevalência era de
81,5% na categoria ‘alguma vez’ e 57,2% na categoria ‘últimos 12 meses’, e no
qual se realçava a ‘democratização da delinquência’ a todos os estratos sociais,
sobressaem claramente os jovens delinquentes provenientes de classes média
ou média-alta que têm substancialmente mais meios para lidar com situações
de justiça que os menores descritos no excerto.

Ainda em 1998, num estudo etnográfico de elevada qualidade relativo às


crianças de rua em Lisboa, João Sebastião aflora por uma única vez a
questão da componente étnica dos jovens sob observação:

“Partimos da proposição de que as crianças de rua são, no seu essencial,


originárias de classes sociais e grupos étnicos excluídos, a viver em bairros
degradados caracterizados pela acumulação de factores de desvantagem,
como o comprovam pesquisas recentes.”

Sendo a composição étnica um elemento específico da caracterização so-


ciográfica do universo observado é de estranhar que o mesmo não seja
mais explorado e aprofundado no decorrer desta publicação.

À semelhança do documento de 1994 da autoria de F. Luís Machado, o


artigo de David Justino et al. (1998) Children of immigrants: a situation in
flux between tension and integration debruça-se especificamente sobre a
situação dos imigrantes, nomeadamente dos seus filhos. A conclusão da
secção intitulada Anomic Behaviour refere:

Estudo de Jovens em Reinserção


66
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

“Resumindo, quando consideramos a criminalidade e a performance esco-


lar, os dados oficiais sugerem sintomas de anomia entre os jovens das et-
nias minoritárias. No entanto, será possível extrapolar destes dois impor-
tantes, mas simples indicadores, a existência de uma cultura adversarial?
A sua elevada visibilidade e efeito na opinião pública é uma consequência
da sensibilidade das áreas em questão: a criminalidade envolvendo preo-
cupações de segurança, e a aquisição de capital humano vinculando inves-
timentos no futuro.” (p.290-291)

Realce-se a introdução, na discussão desta temática, de questões como


a forte visibilidade característica dos temas associados aos filhos de imi-
grantes: escolaridade e práticas criminais são questões com eco assegu-
rado junto da opinião pública.

O relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ) de


Boaventura de Sousa Santos et al. (1998) relativo à justiça de menores
procura pontualmente, em dois quadros acompanhados de um parágrafo
interpretativo, detalhar informação relativamente à ‘composição étnica’ do
universo através da dicotomia (branco/não branco). Assim, referindo-se a
uma amostra seleccionada, para os anos de 1989 e 1996, de processos no
Tribunal de Menores de Lisboa, os autores referem:

Crianças que praticam crimes - “Os menores de etnia ‘não-branca’ apa-


recem nestes processos em número muito superior à percentagem que
representam na população da sociedade portuguesa - cerca de 30% em
1989 e 1996.” (p.154)

Crianças em risco - “No ano de 1989, existe uma especial representação


de pessoas não brancas representando 29,6% das situações da nossa
amostra.”(p.146)

Sendo este um primeiro passo, cremos que num relatório sobre justiça
de menores em Portugal com 335 páginas, esta temática merecia maior
aprofundamento e elaboração.

Já em 1999, Jorge Vala e Sheila Khan, num estilo de sociologia bastante


distinto dos anteriores, abordam a ‘aculturação e identidades de jovens
de origem africana’ em Traços Negros, tendo como fontes entrevistas e
histórias de vida.

“Bruno, vinte anos, abandonou a escola muito cedo. É português, de ori-


gem caboverdiana e tem seis irmãos. O pai é subempreiteiro na construção

Hugo Martinez de Seabra


67
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

civil. A mãe tem quarenta e cinco anos, tem a 4.ª classe e é empregada do-
méstica. Considera-se «uma pessoa difícil pela infância que teve» e «pelo
sofrimento que passou com o divórcio dos pais». De Cabo Verde, veio para
Portugal onde vivia com o pai e o irmão. A mãe estava em França com as
irmãs. Segundo Bruno, a solidão e a instabilidade familiares levaram-no
a procurar «más companhias». Hoje está preso.” (...) “Apesar do grupo de
jovens, na sua maioria «negros», com o qual convivia, sentia-se desenrai-
zado. A sua grande aspiração é viver com a família (...) Bruno está a viver
um processo de marginalização. Uma marginalização duplamente criada
pela frustração de não saber viver numa outra cultura, e de não encontrar
um apoio efectivo da família.” (p.155)

Sendo a temática central do artigo a construção do processo identitário


destes jovens, a vertente relativa ao desvio e à marginalidade não deixa
de estar presente, constituindo mesmo uma das tipologias apresentadas.
Mais uma importante e significativa contribuição para o melhor entendi-
mento do fenómeno em estudo, acrescida pela abertura da investigação a
uma maior diversidade de técnicas e métodos de pesquisa.

João Pedroso e Graça Fonseca (1999), co-autores do relatório anterior-


mente referenciado do OPJ, publicam desta feita na Revista Crítica de Ci-
ências Sociais um artigo intitulado A justiça de menores entre o risco e
o crime onde resumem o conteúdo do mesmo. Um maior detalhe é aqui
atribuído aos ‘jovens de origem africana’:

“Por último, é igualmente de destacar que, na nossa amostra de processos,


surgem, em número muito superior ao que representam no conjunto da
população portuguesa, famílias oriundas dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa. As crianças e jovens de origem africana representam,
nesta amostra, cerca de 30% daquelas que foram judicializadas pela prá-
tica de factos qualificados como crime, em ambos os anos de 1989 e 1996.
Parece, assim, haver indícios de que as instâncias de controlo social, que
encaminham os jovens que praticam crimes para tribunal de menores têm
uma especial atenção por este grupo de jovens.” (p.152)

Referindo-se aos jovens reincidentes - “Numa outra perspectiva, ao pro-


curarmos conhecer o percurso histórico destes jovens, descobrimos, tal
como já apurado anteriormente, uma forte incidência de jovens de origem
africana (cerca de 22%), filhos de imigrantes dos Países Africanos de Lín-
gua Oficial Portuguesa, com especial incidência das famílias vindas de
Cabo Verde.” (p.158)

Estudo de Jovens em Reinserção


68
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Através de estudos de caso como este - de análise de processos no Tribu-


nal de Menores de Lisboa - cria-se a possibilidade de, não generalizando,
começar a conhecer as características do universo apresentado à justiça
tutelar nacional.

No capítulo relativo à educação, abandono escolar e grupos imigrantes


José L. Garcia et al. (2000) desenvolvem a temática do relacionamento
entre ‘filhos de imigrantes africanos’ e exclusão social. A utilização de bio-
grafias pessoais enriquece a reflexão teórica.

“Às precárias condições de habitação, aos baixos níveis de escolaridade,


à ausência de domínio da língua portuguesa, à dificuldade de entrada no
mercado legal de emprego, à falta de acesso à protecção social e à fraca
participação social e política - contraste social -, alia-se a percepção da
diferença de cor, de certos hábitos culturais e da constituição familiar -
contraste cultural -, base de uma demarcação que não raras vezes é lida
como de inferioridade.” (p.100)
“Ao processo da consagração da delinquência juvenil subjaz também a
emergência de uma visão sobre as dificuldades e, por vezes, ausência de
condições para a efectivação do controlo social realizado pela família, esco-
la e comunidade com o fim de garantirem a adequação das crianças e dos
jovens às normas e comportamentos que se passaram a postular como os
preferíveis para eles:”(p.127)

Através de inúmeras peças jornalísticas42 chegou ao nosso conhecimen-


to um estudo Da casa-rua à escola-casa: revolta e divertimento (do qual
desconhecemos publicação integral) no qual J. Barra da Costa (2001) se
debruça sobre a constituição de ‘gangs’ nas áreas metropolitanas.

“Segundo os dados citados no trabalho, o número de membros dos ‘gan-


gues’ em território nacional cresceu de cerca de seis mil elementos em
1999, para 8600 em 2000. Destes, 76% (6.536) actuam em Lisboa. E 1539
dos 2757 casos atribuídos a essas organizações registados pelas autorida-
des foram praticados por bandos de elementos africanos.” (JN)

“O relatório apelida o problema dos gangs como ‘um barril de pólvora pres-
tes a explodir’.” (APN)

42. Entre outras: Gangues agregam milhares de jovens - estudo universitário fala em ‘barril
de pólvora’ que ameaça as áreas metropolitanas, Jornal de Notícias, 26 de Maio de 2001; Nick
Wilson, 9,000 young criminals belong to gangs, Anglo-Portuguese News, 31 de Maio de 2001.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Não tendo sido possível proceder a uma análise das metodologias utiliza-
das e conclusões alcançadas, para além das reportadas nos mass media,
não nos é possível comentar este documento. Apenas nos surpreende a
‘queda fácil’ na mediatização despoletadora do, tão debatido, sentimento
de insegurança de um trabalho que se filia na área das ciências sociais.
Área onde se procura sempre o maior rigor, metodológico e analítico, e a
compreensão dos fenómenos em análise em oposição à produção de ge-
neralizações alarmistas e estigmatizantes.

Em 2002 Maria João Leote de Carvalho no artigo Entre a Vitimação e a De-


linquência: Análise Sociográfica da População de um Colégio do Instituto
de Reinserção Social refere:

“Esta sobre-representação de população com nacionalidade estrangeira


neste colégio, aliada a uma aparente tendência crescente a decorrer des-
de 1995 no próprio sistema para a presença de jovens de origem africana
que se traduz, por exemplo, segundo dados do Instituto de Reinserção So-
cial, num crescimento na ordem dos 3% num período relativamente curto
compreendido apenas entre 1999 (22%) e Agosto de 2000 (25%), obriga ao
levantamento de algumas interrogações sobre a forma como se tem vindo
a desenrolar a integração de imigrantes no seio da sociedade portuguesa.”
(p.28)

Indo ao encontro do título do artigo publicado na revista Infância e juven-


tude a autora, correctamente, não deixa de considerar as variáveis origem
étnica e nacionalidade como relevantes para a sociografia do universo em
causa.

A obra O Gang e a Escola de 2002 apresenta três estudos que se aproxi-


mam da temática aqui em estudo. Um primeiro, infelizmente resumido no
prefácio, de autoria de J. Martins Barra da Costa; um segundo de autoria
de Joana Barra da Costa e um último de Sérgio Soares.

É na primeira investigação desta publicação que vimos encontrar a frase


inúmeras vezes citada por órgãos de comunicação social escrita: “Não
deixa de ser sugestivo o facto de 1.539 casos (56% dos ocorridos em Lis-
boa durante o ano de 2000) corresponderem a actos praticados por bandos
de elementos africanos, contra 1.631 casos em 2001.” (p.15)

Não deixa de ser curioso constatar que mais à frente o mesmo autor ao
referir-se aos presumíveis infractores por nacionalidade afirma:

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

“No que diz respeito à nacionalidade dos infractores, os números não dei-
xam dúvidas quanto à prevalência dos portugueses, que tem vindo a au-
mentar progressivamente, contra alguma estabilidade demonstrada pelo
número de presumíveis infractores estrangeiros. Não foi possível apurar a
totalidade das nacionalidades dos infractores estrangeiros, apenas se re-
gistrando uma nítida predominância de jovens caboverdeanos e angolanos,
...” (p.32)

Qual a definição de ‘africanos’? Descendentes de imigrantes africanos ou


africanos de nacionalidade? A queda fácil na estigmatizante mediatização
de todos os jovens filhos de imigrantes africanos em consequência da de-
sinformação produzida pela publicidade conferida a este trabalho pelos
media joga totalmente a desfavor de qualquer rigor científico aplicado no
mesmo.

Por sua vez, Sérgio Soares aceitando e utilizando o termo ‘segunda gera-
ção’, apresenta o estudo mais directamente relacionado com a temática
da presente investigação, procurando, auxiliado por algumas estatísticas e
referências bibliográficas, desenvolver, na perspectiva policial, um estudo
descritivo das formas de agir destes jovens. Neste trabalho, parece-nos
que a procura das causas dos fenómenos identificados permaneceu em
segundo plano.

“Procedemos, posteriormente, à análise da criminalidade perpetuada por


jovens da «segunda geração». Sintetizando, concluímos que os menores
praticam essencialmente crimes de furto durante o dia (1º e 2º turno), na
medida em que, na sua maioria são estudantes. Tudo leva a crer, aliás,
que os cometam nas suas deslocações entre o bairro e a escola. (...) Por
seu lado, os jovens «maiores» praticam não tanto já uma criminalidade de
consenso, mas uma criminalidade de conflito, que inclui crimes de tráfico
de estupefacientes, roubos e ofensas à integridade física, essencialmente
nas imediações dos bairros, durante a tarde e a noite (2º, 3º e 4º turno),
pesando para essa situação o facto de, na sua maioria, estes indivíduos não
exercerem qualquer tipo de actividade produtiva.” (p.230)

O grande mérito desta investigação reside na procura do ir além da sim-


ples identificação dos fenómenos, apresentando propostas concretas, por
um lado, para o solucionamento de situações pós-crime – a mediação de
bairro – e, por outro, para a intervenção preventiva.

Já em 2003, Maria João Leote de Carvalho publica Entre as malhas do


desvio, estudo de inegável qualidade, onde se investigam, com o auxílio

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

de ferramentas quantitativas, o universo de jovens institucionalizados em


Colégios do Instituto de Reinserção Social. A autora, contrariando o que
tem sido habitual nesta matéria, incluí como variáveis de caracterização o
país de origem, a nacionalidade e a origem étnica.

Fechamos, assim, esta resenha de trabalhos científicos com uma inves-


tigação paradigma do inevitável caminho que os estudos, que se querem
científicos, sobre fenómenos delicados como o presente, têm que seguir.

Embora não exaustiva, esta identificação de trabalhos científicos desenvol-


vidos sobre a temática em estudo permite-nos demonstrar, em alguns dos
primeiros exemplos, a necessidade sentida pelos autores de aflorar o as-
sunto. Mas não o desenvolvendo. A pergunta que se nos coloca é de saber
se a abstenção se deve ao receio de correr o risco de o trabalho de investi-
gação ser apodado de ‘politicamente incorrecto’. Hoje em dia, embora exis-
tam mais investigadores a procurar desenvolver os seus estudos nestas
áreas, continua a sobressair a cuidada procura de não ir além das fontes
oficiais e/ou da variável nacionalidade dos indivíduos sob observação.

Ora para estudar o envolvimento de filhos de imigrantes africanos em prá-


ticas desviantes e/ou delinquentes torna-se necessário, visto a variável
nacionalidade perder aqui significado, trabalhar com outras categorias
social e culturalmente significativas (Garson e Thoreau, 1999) . O indicador
‘cor da pele’ é aquele que nos vem imediatamente à ideia, mas é evidente
que também suscita problemas, a começar pela operacionalização, para
além de ser discutível a sua relevância enquanto indicador da contabilida-
de social. A grande maioria dos investigadores acima mencionados aler-
tam para as limitações dos dados estatísticos, mas evitam desenvolver.
A nosso ver, a identificação científica do fenómeno aqui em estudo está
feita. Duas opções surgem agora: a primeira, resume-se a produzir ‘mais
do mesmo’ - análises estatísticas actualizadas dos dados oficiais -, a se-
gunda passa por detalhar e melhorar a pesquisa procurando não apenas
descrever e explicar, mas eventualmente também sugerir medidas na ver-
tente da intervenção directa por forma a, mais que combater este envolvi-
mento no desvio/delinquência, prevenir o mesmo.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

IV – PROBLEMATIZAÇÃO

Nos mesmos moldes do capítulo anterior, procuraremos, com o auxílio


de referências criteriosamente seleccionadas, um suporte à teorização do
desvio e à relação entre imigração, etnia, raça e desvio, com vista ao en-
quadramento problemático dos fenómenos em estudo.

Os trabalhos científicos que seguidamente apresentamos não constituem


pois uma recolha exaustiva do que nesta área tem sido produzido, reflec-
tem, antes, as elaborações teóricas que consideramos mais relevantes
relativamente a estas questões. Para além do contributo substancial das
obras, tomámos ainda em consideração as leituras críticas das teorias
do desvio43, que de alguma forma ajudam a contextualizar a evolução da
reflexão sobre estas matérias.

Iniciaremos esta secção com a apresentação e a análise crítica de alguns


estudos nacionais - os que, em nosso entender, mais têm contribuído para
a elaboração teórica nestas matérias.

Refira-se, em primeiro lugar, o trabalho de Pedro Moura Ferreira (2000) e


a sua elaboração crítica sobre os modelos teóricos centrais relativamente
a esta temática. Os interessantes resultados conseguidos com o seu es-
forço de síntese conduziram-nos a procurar aqui um apoio muito útil no
enquadramento teórico do fenómeno do desvio na adolescência.

Moura Ferreira, no artigo “Controlo e identidade: a não conformidade du-


rante a adolescência”, desenvolve uma análise das teorias do desvio juve-
nil. Neste estudo procede à identificação de dois grandes modelos: por um
lado, o do ‘controlo’, que atribui à família e à escola o papel central na in-
culcação, no jovem, do sentido de conformidade com a ordem social; e, por
outro, o modelo da ‘sub-cultura’, sendo, desta feita, o grupo de referência
o elemento primordial para o processo de aprendizagem de normas.

O modelo de controlo social apoia-se no processo de socialização desen-


volvido na família e na escola e nas suas gratificações por forma a incutir
nos adolescentes o conformismo necessário para a manutenção da ordem
social. Dois tipos de mecanismos de controlo são identificados, o interno

43. Para um aprofundamento das teorias do desvio ver Mantine Xiberras (1996), As Teorias da
Exclusão. Para uma construção do imaginário do desvio, Epistemologia e Sociedade, Instituto
Piaget, Lisboa.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

– através do qual o jovem se sente recompensado quando age em confor-


midade ou culpado quando se comporta da forma inversa -, e o externo
– usualmente manifesto nas reacções negativas e possíveis sanções im-
postas por elementos exteriores ao indivíduo.

Associada ao modelo de controlo encontra-se a teoria estruturalista da


anomia44. Moura Ferreira refere que, nesta perspectiva, o conflito entre
aspirações e expectativas leva à procura da satisfação através das vias
ilegítimas. A tensão anómica afecta tanto o relacionamento e comunica-
ção familiares, produzindo deficiências comunicativas entre pais e filhos a
nível de transmissão de valores e do seu efectivo controlo, como prejudica
a prossecução das metas escolares, levando os jovens a desinvestir na
educação escolar.

Por sua vez o modelo da identidade/subcultura identifica o contexto do


grupo como o local de início das actividades não conformistas. Os pares
e o grupo que constituem surgem assim como meio de protecção e via
alternativa de afirmação de identidades45.

Duas orientações interpretativas para este modelo subcultural são possí-


veis: a classista, associando a prática desviante juvenil a grupos próximos
da base hierárquica da sociedade, e a leitura que associa a génese do
desvio aos dilemas identitários juvenis - a ‘indeterminação objectiva’ da
identidade.46

Existem pontos de convergência entre as duas orientações, no entanto,


ambas atribuem a oposição às autoridades escolares à acção grupal, onde
essa atitude se desenvolve e aprofunda. Pedro Moura Ferreira, pretenden-
do explorar aspectos destes dois modelos, propõe uma síntese:

44. Para um maior aprofundamento da Teoria da Anomia ver Robert K. Merton, “Estrutura so-
cial e anomia” e “Continuidades na teoria da estrutura social e anomia”, Capítulos VI e VII in
Sociologia. Teoria e Estrutura, Editora Mestre Jou, São Paulo, pp. 203-270.
45. “O grupo apresenta-se, assim, como um contexto cultural de assimilação de valores e de
práticas favoráveis à não conformidade. É essa aprendizagem – a similitude das orientações e a
convergência das práticas – que leva a falar em identidades ou subculturas delinquentes, cuja
formação se faz em função (por oposição) do exterior. Com efeito, o grupo constitui também
uma defesa face às reacções negativas dos outros e ao efeito estigmatizante dos rótulos, que
muito contribui para aumentar a consciência da diferença que separa os jovens não conformis-
tas dos outros jovens...” (P.M. Ferreira, 2000, p.61)
46. Segundo esta última perspectiva, as atitudes de não conformismo e oposicionais não seriam
exclusivas dos jovens das classes sociais mais desfavorecidas.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

“(...) o encadeamento causal que se estabeleceu determina que o desvio seja


precedido por atitudes de ‘oposição’ escolar e associações a amigos ou a
grupos não conformistas, que, por sua vez, são resultantes das articulações
estruturais entre influências culturais de classe, estratégias relacionais fa-
miliares e orientações normativas. Para terminar a especificação completa
do modelo de síntese é necessário reter ainda três elementos que, apesar de
secundarem a argumentação dominante dos modelos de referência, não dei-
xam de constituir peças importantes na compreensão do processo de forma-
ção da conduta de desvio. São eles: os sentimentos negativos, as reacções
negativas e a importância das práticas de lazer.” (p.68)

A auto-estima encontra-se relacionada com os três últimos elementos


identificados. A procura de uma auto-estima positiva está dependente da
ausência de sentimentos negativos do eu, da protecção face a reacções
negativas e estigmatizantes47 dos outros48 e da satisfação nas práticas de
lazer típicas da adolescência.

Aplicando o seu modelo de síntese a alunos de escolas públicas da re-


gião da Grande Lisboa o autor conclui que, embora a ruptura escolar e as
estratégias relacionais das famílias tenham uma influência decisiva nas
trajectórias dos adolescentes, a importância fulcral do não conformismo e
o consequente desvio advêm do papel do grupo de pares49.

Fazendo a ponte entre o estudo anteriormente mencionado relativamente


ao desvio adolescente e a realidade dos jovens filhos de imigrantes, Fer-
nando Luís Machado (1994) acentua a particular importância do grupo de
amigos num contexto onde as clivagens geracionais existentes no interior

47. Para um conhecimento mais detalhado dos processos de estigmatização ver Erwin Goffman
(1980), Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, Zahar Editores, Rio de Ja-
neiro.
48. Para um aprofundamento da teorização do desvio na perspectiva interaccionista ver Howard
S. Becker (1985), Outsiders. Etudes de sociologie de la deviance, Editions A. M. Métailié, Paris; ver
igualmente Norbert Elias e John L. Scotson (1994), The Established and the outsiders, Sage.
49. “(...) o grupo é o principal catalisador do desvio juvenil. As razões que transformam o gru-
po em candidato privilegiado a esse papel estão muito relacionadas com as funções do grupo
durante a adolescência. Essas funções relacionam-se com várias necessidades. Em primeiro
lugar, é através das relações proporcionadas pelo grupo que o adolescente obtém informação e
desenvolve ‘mapas’ da realidade que lhe permitem abrir-se ao conhecimento e à compreensão
do mundo. Em segundo lugar, o suporte dos elos colectivos proporciona a segurança e o apoio
ao desenvolvimento e expressão das atitudes de ‘oposição’. Em terceiro lugar, as relações gru-
pais são um parceiro ideal e indispensável para a realização de actividades de tempos livres ou,
simplesmente, para a descoberta de formas divertidas de passar o tempo que quebrem o tédio
quotidiano. Por último, o grupo é ainda capaz de dar um sentido à acção, dando um significado
à forma como esta se exprime e proporcionando uma base para afirmação de uma certa iden-
tidade social.” (pp.77-78)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

das famílias reflectem a ausência de referências culturais identitárias co-


muns – sem que os jovens possam reivindicar nem as identidades dos
progenitores, nem a identificação com a sociedade de acolhimento.

O grupo de referência dos filhos é consideravelmente diferente do dos pais.


Estes têm por referência os indivíduos que, em circunstâncias semelhan-
tes no país de origem, não imigraram. Para os primeiros, os valores do
grupo de referência encontram-se mais próximos dos jovens portugueses,
havendo, naturalmente, expectativas diferentes das dos pais, mais altas
relativamente ao posicionamento social. O não conformismo dos jovens
filhos de imigrantes africanos poderá então advir, para além das situações
anteriormente identificadas de ausência de controlo familiar, de desinte-
resse pela escola e da influência do grupo de pares, igualmente desta au-
sência de referenciais identitários específicos, distintos dos de seus pais e
igualmente distintos dos jovens autóctones da sociedade envolvente.

Mais do que as questões relativas à raça ou à etnia, ambas caídas em desu-


so no discurso científico e consideradas criações ideológicas50 pela sociolo-
gia contemporânea, a etnicidade adquire centralidade neste processo.

“Embora o conceito de etnicidade não esteja ele próprio isento do risco de


essencialismo, esse risco é muito maior quando se usa conceitos como etnia,
minoria étnica ou comunidade étnica.” (Fernando Luís Machado 2002, p.4)

Na obra Contrastes e Continuidades, Fernando Luís Machado (2002) au-


xilia-nos no desmontar deste complexo termo desenhando dois eixos (so-
cial e cultural) do espaço da etnicidade. Apontando a existência de três
dimensões em cada um desses eixos (composição de classe; composição
sociodemográfica e localização residencial no eixo social e orientação das
sociabilidades; religião e língua no eixo cultural) é da combinação diferen-
ciada das mesmas que poderá surgir a situação limite de etnicidade forte
potencialmente disruptiva:

“(...) é aquela em que uma determinada minoria contrasta com a popula-


ção maioritária em todas as dimensões sociais e culturais, ou seja, quando
essa minoria tem uma língua e uma religião diferentes, tem sociabilidades
sobretudo intraétnicas e é contrastante em termos classistas, sociodemo-
gráficos e de localização residencial.” (p.4)

50. Para um aprofundamento desta questão ver John Rex (1988), raça e etnia, Editorial Estam-
pa, Lisboa.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Os contrastes, por um lado, no, denominado, eixo cultural, de língua


(predominância do crioulo), religião (ausência de referenciais religiosos)
e sociabilidades (exclusivistas) e, por outro, de classe (subclasse social),
sociodemografia (elevado número de jovens) e localização residencial
(bairros periféricos e degradado) são, junto destes jovens, uma realidade.
Encontram-se assim reunidas as condições para a existência, nas pala-
vras deste autor, de uma etnicidade forte e potencialmente disruptiva. O
contexto da produção das etnicidades fortes é o da inter-relação grupal e
as construções identitárias são eminentemente dinâmicas e evolutivas.
Mais do que a origem nacional, a ‘cor da pele’ (vulgo raça) parece tornar-
se, junto dos jovens de origem africana que tivemos ocasião de contactar,
o elemento aglutinador, sendo as demais referências culturais identitárias
produzidas in loco, isto é, criadas e desenvolvidas através da instituição de
normas e valores próprios nestes grupos51.

Sheila Khan e Jorge Vala (1999; pp. 146-147) exploram a aculturação e


as identidades de jovens de origem africana, identificando quatro estraté-
gias de aculturação, que designam de integração, assimilação, separação
e marginalização.52 A integração assenta na manutenção da integridade
cultural do grupo de pertença em sintonia com uma relação positiva com
a sociedade de acolhimento. A assimilação passa por uma opção de per-
da da cultura de origem e a adopção das normas e valores da sociedade
receptora. A separação processa-se através da manutenção dos valores
culturais da sociedade de origem, evitando o contacto com outros elemen-
tos. Por último, a marginalização manifesta-se quando os jovens encaram
negativamente tanto a cultura de origem como a cultura da sociedade de
acolhimento.

Concentrando-nos nesta última estratégia, a marginalização, a etnicidade


torna-se uma significativa parte das referências culturais destes jovens.
Esta marginalização pela afirmação de valores culturais próprios sustenta
uma reivindicação identitária centrada na etnicidade e é alcançada pri-
mordialmente, como vimos anteriormente, num contexto grupal.

51. Ver William Foote Whyte (1981), Street Corner Society – The social structure of an Italian
Slum, The University of Chicago Press, Chicago.
52. Para um aprofundamento dos modelos de aculturação da segunda geração ver Alejandro
Portes e Rubén G. Rumbaut (1996), Immigrant America. A portrait, University of California
Press, Berkeley, pp.232-268 e Alejandro Portes e Rubén G. Rumbaut (2001), “Defining the situ-
ation: the ethnic identified of children of immigrants”, in Legacies. The story of the immigrant
second generation, University of California Press, Berkley, pp. 147-191.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

José Luís Garcia (2000), na obra Estranhos, juventude e dinâmicas de ex-


clusão social em Lisboa, explora a produção de valores autónomos no seio
dos grupos de pares:

“O fechamento e a marginalização estereotipada de que são alvo afirma-se,


a contrario, na reinvenção de outros valores, normas, regras de conduta,
sanções e até mesmo de uma ‘moral’, apenas com validade interna, ou
seja, de uma ‘cultura paralela’ que expressa a especificidade que aí existe
de práticas relacionais, comportamentais e culturais.” (p. 136-137)

Destes textos surgem uma série de interrogações: a) Haverá, junto da po-


pulação-alvo do corrente estudo, uma semelhante importância do gru-
po de pares? b) Qual a importância do atributo étnico-racial na formação
destes grupos? c) Quais os outros atributos relevantes na demarcação de
fronteiras entre grupos? d) Em que medida e com que peso relativo esses
atributos de demarcação impedem a articulação entre grupos assim defi-
nidos? e) Existirão diferenças significativas entre jovens brancos e jovens
negros no que respeita às práticas desviantes? f) A existirem, qual o peso
relativo dos factores culturais e dos factores estruturais na produção das
mesmas?

Como referido anteriormente, o fracasso socializador tanto da família


como da escola, a ausência de controlo social formal por parte da co-
munidade, o processo de desenvolvimento de uma identidade autónoma
nos grupos de pares propensa à não conformidade, são frequentemente
apontados como factores favoráveis à emergência do desvio na adoles-
cência. Ao combinarem-se estes factores com ‘a formação de identidades
adversariais’ (nos termos de Portes e Rumbaut, 1996) e as dificuldades
económicas dos jovens filhos de imigrantes africanos em Portugal, poderá
daí resultar uma maior visibilidade das suas práticas ilegítimas?

Este é o diagnóstico que tem colhido, até ao presente, a adesão dos inves-
tigadores portugueses interessados no estudo do envolvimento de adoles-
centes em práticas desviantes. Recorde-se que apenas alguns afloram a
questão do envolvimento de jovens filhos de imigrantes africanos nesse tipo
de condutas. Procuraremos seguidamente elaborar sobre esta interpreta-
ção com o auxílio de estudos e reflexões internacionais mais centrados na
investigação das questões relacionadas com a imigração e as minorias
étnicas. O principal propósito deste exercício assenta pois na procura de
contribuições para aprofundar a elaboração teórico desta questão.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Desta forma, foram identificadas quatro correntes teóricas que, com alguns
pontos de contacto, desenvolvem esta temática segundo prismas distin-
tos. Em primeiro lugar a teoria estruturalista, sobrevalorizando elementos
como a pobreza, a classe social e os constrangimentos locais (Sampson e
Wilson, 1995). A segunda orientação que identificámos centra-se nos fac-
tores culturais, destacando-se, por um lado, as sub-culturas juvenis e a
influência do grupo de pares (Livio Sansone, 1994) e, por outro, as opções
de aculturação dos filhos de imigrantes (A. Portes e R. Rumbaut, 1996).
Em terceiro lugar, considerámos as referências cujo enfoque central inci-
de em factores individuais. A estigmatização pública e a sua repercussão
na individualidade e na auto-estima dos jovens é o processo central da te-
oria (J. Junger-Tas, 1994; K. Heimer, 1995; R. Kennedy, 1997). Por último,
uma quarta orientação é ainda identificável: centra-se na eleição de um
conjunto específico de factores, no caso as dinâmicas demográficas das
populações de origem migrante, e no estudo das suas correlações com
índices seleccionados de práticas desviantes (T. Waters, 1999).

Avancemos, pois, na exploração de cada uma destas orientações teóricas.

Adoptando uma perspectiva estruturalista do desvio dois importantes


sociólogos desta temática, Robert J. Sampson e William Julius Wilson
(1995), exploram em Toward a theory of Race, Crime and Urban Inequality
a relação entre raça e crime.

Os autores iniciam o seu estudo manifestando estranheza pela dificuldade


que as ciências sociais, em geral, e a criminologia, em particular, têm
revelado em analisar o crime através do, ‘politicamente incorrecto’, indi-
cador da ‘raça’53.

A perspectiva estruturalista adoptada por estes autores leva-os a cons-


tituir os contextos residenciais como peça fulcral na explicação destas
questões, devido à expressão que assumem, nos Estados Unidos, as dife-
renças entre negros e brancos nesses espaços.

“Em contraste com as teorias psicológicas da privação relativa e da sub-


cultura da violência, nós vemos a ligação entre raça e crime de um ponto
de vista contextual sublinhando os contextos ecológicos directos em que

53. “... a discussão da raça e do crime está atolada num improdutivo misto de controvérsia e
silêncio. Ao mesmo tempo que artigos sobre idade e género abundam, os criminologistas estão
relutantes em falar abertamente sobre a raça e o crime por medo de serem mal interpretados
e classificados de racistas.” (p.37)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

negros e brancos residem – independentemente das suas características


individuais. Basicamente, a tese define que são padrões macro-sociais de
desigualdade residencial que dão origem ao isolamento social e concen-
tração ecológica dos verdadeiramente desvantajosos, conduzindo a barrei-
ras estruturais e a adaptações culturais que minam a organização social
e consequentemente o controlo do crime. Esta tese baseia-se numa velha
ideia da criminologia que foi esquecida no debate da raça e do crime – a
importância da comunidade.” (p.38)

Esta importância dos contextos residenciais - e das comunidades aí de-


senvolvidas no envolvimento de negros em crimes - manifestar-se-á,
igualmente, junto dos filhos de imigrantes africanos em Portugal, não
obstante as diferenças na organização dos espaços urbanos? Atendendo
à importância das identificações com os ‘bairros’ que alguns estudos de
caso têm vindo a mostrar, revelando os processos de fechamento que, em
bairros degradados ou de realojamento municipal, podem conduzir a uma
situação de alheamento ou alienação em relação à ‘comunidade’ mais
alargada (a cidade, a sociedade, a polis ...), e a eventuais enquistamentos
em torno de atributos particularistas, pensamos que esta é de facto uma
pista a explorar.

Os autores, citando um estudo de Shaw e McKay (1949), defendem que as


práticas delituosas de jovens criminosos negros variam conforme a sua
zona residencial. De qualquer forma, em condições ecológicas equivalen-
tes (zonas semelhantes) o seu envolvimento deixa de ser superior ao dos
jovens brancos.

Verificar-se-á igualmente em Portugal uma semelhança de comporta-


mentos delinquentes junto de jovens negros e jovens brancos quando es-
tes são oriundos dos mesmos contextos residenciais?

Sampson e Wilson focam ainda a desorganização54 no contexto familiar,


incluindo a própria violência, como um dos elementos centrais no envolvi-
mento dos jovens em actos violentos e na socialização no que se poderia
designar como uma ‘cultura da violência’.

Esta associação da desorganização familiar a comportamentos violentos


é uma hipótese que tem vindo a fazer o seu caminho em Portugal, não
havendo um estudo sistemático e específico sobre a questão. Em todo o
caso, mesmo que se verifique a correlação, pode-se admitir que os meios
54. ‘Disruption’, nos termos dos autores.

Estudo de Jovens em Reinserção


80
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

de controlo e integração envolvidos em diferentes contextos familiares são


diversos. Como diverso pode ser o entendimento do que é desvio e do que
é violência. Os jovens de ascendência africana, expostos a ambientes fa-
miliares de socialização distintos da maioria (pela experiência migratória
dos pais, pela pertença étnica minoritária, ...), estão também expostos à
socialização da escola e dos ambientes onde vivem. Poder-se-á atribuir
neste caso à experiência familiar a responsabilidade por uma eventual
maior propensão para as práticas violentas?

Na mesma linha, os autores exploram igualmente o facto de estes jovens


não beneficiarem da exposição a ‘modelos sociais’ (role models) confor-
mes com as normas da meritocracia. As transformações urbanas da ci-
dade são as responsáveis pelo desaparecimento, das áreas residenciais
conotadas com exclusão, dos negros bem sucedidos que poderiam consti-
tuir esses ‘modelos sociais’. Esta situação é desfavorável à interiorização
das normas do ‘mainstream’ e favorável ao desenvolvimento de compor-
tamentos não conformes com as mesmas.

Não obstante as diferenças profundas entre os modelos de organização


urbana nos EUA e em Portugal, não será possível encontrar aqui situa-
ções semelhantes? Pelos estudos empíricos de que dispomos, mas tam-
bém pelo que os mass media transmitem, sabemos que algumas zonas
residenciais onde muitos dos jovens de origem africana vivem em Portu-
gal são igualmente profundamente estigmatizadas. Será essa condição
favorável ao ciclo do abandono por parte dos convencionalmente bem su-
cedidos, levando à inexistência de ‘modelos sociais’ para os jovens?

São ainda os estudos empíricos que nos levam a duvidar de uma relação
directa e simples. Seguindo Sampson e Wilson55, sugerimos que esta é
apenas uma faceta da questão, sendo as desigualdades estruturais entre
grupos étnicos as verdadeiras forças motrizes da associação entre violên-
cia e pertença étnica.

O que os autores propõem é, pois, uma interpretação radicalmente diversa


da tradicional: não são os atributos pessoais ou culturais que explicam o
posicionamento na estrutura social e a consequente maior incidência em

55. “Especificamente, nós defendemos que o elemento determinante da relação entre raça e
crime é a diferente distribuição de negros nas comunidades caracterizadas por (1) desorgani-
zação estrutural e (2) isolamento social cultural, derivando ambos da concentração da pobreza,
da disrupção familiar e da instabilidade residencial.” (p.44)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

práticas desviantes. Pelo contrário: seria a posição perante a estrutura


das desigualdades que, de forma cumulativa, levaria ao enraizamento no
desvio e à centrifugação de qualquer oportunidade de desenvolvimento de
estruturas de poder. Assim regressam os autores ao argumento do en-
clausuramento em áreas urbanas específicas como factor responsável
pela perpetuação de determinadas desigualdades. As variações popula-
cionais rápidas e frequentes, típicas de bairros pobres, impossibilitariam o
desenvolvimento de uma comunidade com poder e interessada em contro-
lar os seus jovens. Embora a mobilidade residencial seja bem menor em
Portugal, os bairros onde vivem em maior concentração os jovens filhos
de imigrantes africanos, são igualmente zonas de grande heterogeneida-
de – não de classe, mas de trajectórias. Será esta situação igualmente
responsável pela falta de organização e controlo formal das comunidades
locais sobre os seus jovens?

Os autores vão ainda mais longe, pois sustentam que o mesmo processo
opera ao nível da formação de valores e orientações culturais favoráveis
aos particularismos, tolerantes perante o desvio, e desfavoráveis à forma-
lização das relações:

“Pobreza, heterogeneidade, anonimato, desconfiança mútua, instabilidade


institucional, e outros medos estruturais das comunidades urbanas são hi-
potetizados como impedimentos à comunicação e à proliferação de valores
comuns, potenciando assim a diversidade cultural no que respeita a valo-
res não delinquentes. (...) Apesar da sua pouca frequência, estudos etno-
gráficos usualmente apoiam a noção de que comunidades desorganizadas
estruturalmente são conduzentes à emergência de sistemas de valores
e atitudes culturais que procuram legitimar, ou pelo menos providenciar
uma plataforma de tolerância para o crime e o desvio.” (p.49-50)

Tendo vários inquéritos nacionais mostrado a forte distanciação dos cidadãos


perante o Estado e as estruturas formais, e estabelecido a correlação entre
educação e desconfiança (cívica), será de atribuir o desenvolvimento e trans-
missão local de valores e atitudes tolerantes do crime e do desvio, verificado
por estudos etnográficos nos contextos de exclusão onde muito jovens de ori-
gem africana residem, ao contexto geral, à posição social, ou à origem étnica?

São ainda os mesmos autores que sugerem que não há uma resposta úni-
ca e que é a nível local que se devem analisar os factores que, mais directa
e efectivamente, definem as condições de vida da ‘comunidade’, não es-
quecendo o efeito que factores de ordem mais geral, relacionados com as
políticas públicas, podem ter sobre os primeiros56.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Passemos agora a uma orientação teórica distinta. Adoptando uma pers-


pectiva baseada em factores culturais, Livio Sansone (1994) explora a
questão das subculturas juvenis no texto The making of black culture57.
Desta forma, o enfoque do seu estudo relaciona-se com o desenvolvimen-
to junto dos jovens descendentes de imigrantes surinameses em Amster-
dão da, por si denominada, cultura negra. Esta manifesta-se, entre outras
vias, através da difusão de estilos juvenis e musicais, como o reggae e o
hip-hop, dando origem a alguma uniformidade das expressões culturais
de boa parte dos jovens de minorias étnicas instaladas nas cidades oci-
dentais. Sansone elabora um esquema evolutivo do que denomina ‘forma
de reunião’ (ways of getting together) das subculturas juvenis suriname-
sas identificadas em Amsterdão, desde o street corner até ao black youth
style, passando pelo ‘gang’ e os rastafarians e disco freaks. Centrando
a nossa atenção no último estágio – black youth style –, detecta-se uma
influência acentuada dos estilos musicais juvenis dos Estados Unidos da
América, adoptados por estes jovens quase em simultâneo, em Amster-
dão.

Neste estudo as dinâmicas de formação das identidades étnicas, associa-


das ao grupo de pares, mas também aos grupos de referência que podem
ser supra-locais, permitem colocar em evidência a multiplicidade de es-
calas e de referências envolvidas, que as formações pan-étnicas por si só
não permitem captar58.

Ao ouvir algumas letras de músicas de grupos de origem africana em Por-


tugal, essa mesma multi-referencialidade também transparece: não são
56. “Com base no nosso modelo teórico, concluímos que factores comunitários como a con-
centração ecológica da pobreza do ghetto, a segregação racial, a mobilidade residencial e a
mudança populacional, a disrupção familiar e as dimensões das organizações sociais locais
(e.g., densidade dos grupos de amigos/conhecidos, recursos sociais, ligações intergeracionais,
controlo dos grupos de pares, participação organizacional) são áreas produtivas de futuras in-
quirições, especialmente por estarem afectadas por grandes políticas públicas relacionadas
com a habitação, os serviços municipais e o emprego.” (p.54)
Com vista a um aprofundamento da visão estruturalista desta questão ver igualmente Duster, Troy
(1987), “Crime, Youth Unemployment, and the Black Urban Underclass”, in Crime and Delinquency,
Volume 33, nº2, Abril de 1987, pp. 300-316; Short, James F. (1997), Poverty, Ethnicity, and Violent Crime,
Westview Press e McGary, Howard (1999), Race and Social Justice, Blackwell Publishers, Malden.
57. Para um aprofundamento desta questão ver Simon Frith (1984), The sociology of youth,
Causeway Books, Lancashire.
58. “A etnicidade de um grupo jovem é um fenómeno muito mais complicado, estando largamente
ligado com outras identidades, igualmente ‘vividas’, baseadas na idade, no género, nos grupos de
pares, vizinhança e classe. (...) A negritude [Blackness] é mais relevante do que ser-se um Crioulo Su-
rinamês.: (...) Ao criar a sua etnicidade o grupo jovem não apenas reintrepreta a cultura parental como
também as subculturas e estilos tanto de certos grupos de jovens brancos como de jovens negros de
outros países.” (p.182)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

referências ‘a preto e branco’, uma espécie de afirmação de pan-africanis-


mo de matriz norte-americana, mas preocupações de classe, de geração,
de género, e outras que se conjugam com a referência étnica para afirmar
uma posição que está longe de ser unidimensional. Qual a importância
dos vários atributos de referenciação identitária na emergência de atitu-
des adversariais e de comportamentos desviantes junto dos filhos de imi-
grantes africanos?

Sansone identifica três vias possíveis para estes jovens se moverem de


forma ascendente na sociedade: a moda, o desporto profissional e o cri-
me. Referindo a importante atracção que a indústria de lazer exerce sobre
estes jovens conclui que a participação na dita cultura negra pode levar
à auto-exclusão dos mesmos das limitadas oportunidades existentes no
mercado de trabalho.

Em formato conclusivo Sansone refere que esta cultura negra não é exclu-
sivista, sendo detectados elementos simbólicos da mesma junto de jovens
brancos.

“A cultura urbana prevalente [mainstream] está a incorporar muitos sím-


bolos negros. Crescentes símbolos negros são encontrados na dominante
cultura jovem branca. A participação na cultura juvenil requere dos jovens
brancos um conhecimento considerável das ‘maneiras de agir negras’
[‘black ways’] ...” (p.192)

Será este processo de difusão, por parte de descendentes de imigrantes,


de uma cultura negra acompanhado pela criação e difusão de estilos ju-
venis próprios, extravasando o universo dos jovens negros, identificável
igualmente em Portugal? A forte influência existente na propagação des-
tes estilos por parte do merchandising dos Estados Unidos também se faz
sentir em Portugal. E é poderosa. Mas, dentro da lógica da multi-referen-
cialidade, por que outros elementos de identificação passará essa difusão:
de classe, de geração, de posicionamento ideológico – ou outros?

Cruzando a influência de factores culturais com factores estruturais, A.


Portes e R. Rumbaut (1996) desenvolvem uma tipologia dos modos de
aculturação dos descendentes de imigrantes tendo em conta o respectivo
contexto social. Desta forma, identificam a aculturação dissonante como
resultante da integração num contexto caracterizado por uma elevada dis-
criminação e por recursos familiares e comunitários baixos podendo con-
duzir a uma trajectória social descendente caracterizada pela “socialização

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

em papéis da ‘underclass’ urbana e a adopção de uma visão adversarial


em relação ao mainstream”59. Desta ‘cultura adversarial’ poderão emergir
comportamentos desviantes relativamente às normas societárias.

Tendo em conta a experiência efectiva de discriminação e estigmatização,


a nível individual ou grupal, por parte dos jovens de origem africana e a in-
suficiência de recursos familiares e comunitários poderá este tipo de ‘cul-
tura adversarial’, resultante de uma aculturação dissonante, vir igualmen-
te a enraizar-se junto dos filhos de imigrantes africanos em Portugal?

Uma terceira orientação teórica da problematização do fenómeno do desvio


ou do crime praticado pelas minorias baseia-se em factores e processos
psico-sociológicos individuais e grupais. A formação da opinião pública e
a estigmatização são os processos eleitos. Três estudos relativos a estas
temáticas serão aqui discutidos. Nos dois primeiros, os autores exploram
as contradições estatísticas entre dados oficiais e estudos de delinquên-
cia auto-revelada relativamente aos jovens negros, sugerindo, para além
dos efeitos de discriminação que se enraízam em diferentes segmentos
da opinião pública, inconsistências nas percepções intergrupais e a im-
portância dos valores e das orientações grupais. No terceiro, R. Kennedy
(1997) explora o fenómeno da estigmatização e as suas repercussões nos
comportamentos desviantes dos jovens alvo das mesmas.

Nas conclusões do estudo de delinquência auto-revelada em treze países


ocidentais, Josine Junger-Tas (1994) refere existirem discrepâncias entre
os valores oficiais e os valores auto-revelados relativamente à participa-
ção étnica neste tipo de actividades.

“... a maioria dos estudos de delinquência auto-revelada parecem indicar


que os grupos minoritários detêm taxas de prevalência inferiores às dos jo-
vens indígenas, estando ainda assim fortemente sobre-representados nas
estatísticas oficiais.” (p.376)

Haverá uma efectiva discriminação por parte do sistema oficial de controlo


social, nomeadamente as polícias e os tribunais, ou resultarão tais con-
clusões de factores directamente relacionados com o tipo de metodologia
utilizada neste tipo de investigações de delinquência auto-revelada?

59. . Alejandro Portes e Rubén G. Rumbaut (1996), Immigrant America. A portrait, University of Cali-
fornia Press, Berkeley, p. 252.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

O artigo de Karen Heimer (1995) Gender, Race, and the pathways to de-
linquency, publicado na compilação de artigos Crime and inequality, apre-
senta alguns argumentos de natureza metodológica e substantiva para
justificar a existência de diferentes resultados entre estudos de delinquên-
cia auto-revelada e estatísticas oficiais.

“Alguns investigadores têm defendido que esta discrepância surge porque


tanto os dados oficiais como os relativos à vitimação tomam mais forte-
mente em consideração os crimes de rua mais graves, ao passo que as
investigações de delinquência auto-revelada captam a delinquência mais
comum, menos séria (Elliot and Ageton 1980). Em consonância, a inves-
tigação mostra que jovens afro-americanos masculinos estão envolvidos
disproporcionalmente nos crimes de rua, especialmente, crimes violentos
e grandes crimes contra a propriedade (Wolfgang et al. 1972; Elliot and
Ageton 1980; Tracy et al. 1990), mas não reporta superiores envolvimentos
na delinquência comum, como a difamação, a violação da ordem pública e
o consumo de drogas para os jovens afro-americanos comparativamente
com os brancos (Elliot and Ageton 1980). (...) Alguns investigadores defen-
dem que o disproporcional envolvimento de afro-americanos no crime de
rua reflecte a existência de uma ‘subclasse’ [underclass] nas áreas do inte-
rior das nossas cidades mais fortemente afectadas pela pobreza (Glasgow
1981; W. J. Wilson 1986, 1987; Sampson 1987).”

Também se conhece a sobre-representação dos indivíduos de origem afri-


cana nas prisões portuguesas (Seabra, 1999 e 2003). Relativamente aos
tipos de crimes praticados, e atendendo à forte concentração dos jovens
de origem africana em posições de mais baixo status, será igualmente de
esperar que seja a maior incidência de crimes violentos e contra a pro-
priedade junto dos filhos de imigrantes africanos em Portugal que os con-
duza em maior número às prisões?

Retomando a análise da relação entre formação de orientações grupais


e desvio, K. Heimer relaciona ainda as práticas desviantes violentas das
minorias com a postura masculina de afirmação pessoal:

“Numa tentativa de negociar a identidade de género nesta situação, são


fortes as probabilidades dos jovens masculinos envolverem-se na repre-
sentação máscula [male posturing], incluindo lutas e outros tipos de delin-
quência violenta (Greenberg 1977). Esta tendência poderá ser especialmen-
te forte no caso de jovens masculinos de grupos minoritários (Miller 1958;
Virgil 1985) porque estes recebem mais mensagens negativas na escola e
vêm mais homens desempregados e sub-empregados à sua volta do que
os jovens masculinos brancos (Greenberg 1977).”

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Também os inquéritos nacionais à juventude mostram como a necessida-


de de afirmação dos adolescentes, particularmente do sexo masculino, é
imperiosa (Machado Pais, 1998, pp.63-64). Neste contexto, será a afirma-
ção pessoal através de actos e práticas caracterizadas pela violência junto
dos filhos de imigrantes africanos a nível nacional apenas uma manifesta-
ção geracional, ou deverá a sua sobre-expressão ser atribuída a um efeito
especificamente grupal?

Associado a esta dimensão, encontramos a questão do consumo – outro dos


temas comprovadamente relevantes para o universo juvenil português (Ma-
chado Pais, 1998, pp.80-81). Debruçando-se especificamente sobre a ques-
tão do furto associado ao acesso a recursos, K. Heimer conclui que brancos
e negros têm propensão para o envolvimento nesse tipo de actos.

“A relação entre acesso a recursos e o furto existe em paralelo em am-


bas as raças. Porque os adolescentes negros têm menos acesso do que
os brancos a recursos financeiros – em parte devido aos menores rendi-
mentos familiares médios e ao maior desemprego juvenil entre os negros
– permite-nos antecipar a existência de maiores taxas de furtos entre os
negros comparativamente com os brancos. Isto assumindo que os custos
da afirmação de identidades no grupo de pares são bastante semelhantes
para os jovens de todas as proveniências socio-económicas.” (p.151)

Verificando-se a mesma propensão para o furto junto de jovens brancos


ou negros, indo ao encontro dos resultados do único estudo de delinquên-
cia auto-revelada realizado em Portugal (Gersão e Lisboa, 1994) onde se
conclui que existe uma democratização do comportamento delinquente a
jovens provenientes de todas as classes sociais, porquê a recorrente me-
diatização dos segundos como os principais agentes de práticas delin-
quentes? Poderá associar-se este envolvimento, apenas à falta efectiva de
recursos financeiros junto dos filhos de imigrantes africanos?
Esta questão traz-nos de volta à reflexão em torno da construção dos es-
tereótipos e das opiniões públicas. E aqui, discriminação, racismo, e seu
enraizamento diferencial no tecido social, também devem ser considera-
dos.

Randall Kennedy (1997) na sua obra Race, Crime and the Law explora as
suspeitas de discriminação racial do sistema de justiça americano60. Em
alternativa ao argumento da discriminação por parte da polícia, para ex-
plicar o desproporcional número de negros nas cadeias, o autor refere a

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

histórica opressão racial a que os negros estão sujeitos nos Estados Uni-
dos - que transparece nos seus contextos habitacionais61. Neste contexto,
defende que tendo presente as privações que os negros enfrentam não
deveria surpreender que, relativamente ao seu peso proporcional na po-
pulação, estes se envolvam mais na criminalidade da rua que os brancos.
Um contexto habitacional degradado conjuntamente com a estigmatiza-
ção associada ao mesmo, poderá levar estes jovens filhos de imigrantes
africanos, aí maioritários, ao fechamento em referências próprias, sem
qualquer contacto com a sociedade envolvente? A existência, à partida, de
um estigma negativo poderá facilitar o envolvimento despreocupado em
práticas que serão também elas estigmatizadas?

R. Kennedy destaca ainda a duplicidade do ‘envolvimento’ dos negros no


crime, não apenas como autores dos delitos, mas igualmente como víti-
mas dos mesmos e explora a formação da atitude de aparente conivência
da comunidade local para com as práticas criminosas - não as denuncian-
do às autoridades em consequência das suspeições de discriminação e
violência policial62.

Este fenómeno de receio da autoridade policial existente não apenas junto


dos criminosos, mas igualmente da comunidade de onde estes provêm,
poderá conduzir igualmente à opção da não participação/denúncia e, por
extensão, reforçar as atitudes de distanciação perante as estruturas for-
mais de controle social? Se assim acontecer, é mais um factor favorável
ao fechamento em referências particularistas e um obstáculo a mais no
processo de interiorização de normas de âmbito geral.

60. “Um número disproporcional de reclusos negros pode significar que a polícia se encontra
a discriminar racialmente no acto da captura. Por outro lado, as demografias raciais das po-
pulações reclusas podem reflectir que mais negros do que brancos se envolvem em condutas
proíbidas, facto que os leva à reclusão. Se assim for, a disparidade racial não tem origem em
decisões preconceituosas da polícia, mas em outras causas. (...) Verdadeiras diferenças com-
portamentais podem advir, até certo ponto, da privação imposta aos indivíduos que vivem em
áreas deprimidas, isoladas e criminógenas, nas quais reside um largo número de negros em
consequência da histórica opressão racial.” (pp. 9-10)
61. Ver igualmente Elijah Anderson (1992), StreetWise. Race, class, and change in an urban
community, The University of Chicago Press, Chicago.
62. “As comunidades mais necessitadas da protecção policial são também aquelas nas quais
uma parte significativa dos residentes encara a polícia com grande ambivalência, muita da
qual provém do reconhecimento de que a cor conta como um marco de suspeição no qual se
baseiam para entrar em acção – rusgas, interrogatórios, presseguições, detenções, agressões,
etc. Isto leva a que as pessoas que poderíam auxiliar a polícia a evitem, se demitam de cooperar
com as investigações policiais, assumam que polícias são desonestos e ensinem a outros que
tais reacções são uma prudente lição de sobrevivência nas ruas.” (p.153)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Uma quarta perspectiva teórica, distinta das anteriores, é apresentada por


Tony Waters (1999) na obra Crime & Immigrant Youth. Relegando para se-
gundo plano a perspectiva estruturalista, este autor defende que o cerne
da questão do desvio dos jovens de origem migrante radica no processo
(i)migratório.

A eleição de indicadores demográficos como objecto central da análise


constitui a inovação de Tony Waters para a teorização da criminalidade
junto dos jovens imigrantes ou descendentes de imigrantes nos Estados
Unidos. Para este autor, do processo migratório resultam, por vezes, ele-
vadas dinâmicas demográficas, no país de destino, conduzindo à existên-
cia de uma larga coorte de jovens. Quando essa coorte é acrescida de
um continuado processo de chegada de imigrantes, tendo em conta que
estes são frequentemente jovens masculinos, o peso do género masculino
torna-se desproporcional. O autor defende que estas são as circunstân-
cias em que há maiores probabilidades de se verificar um crescimento do
envolvimento destes jovens de origem migrante em práticas delinquentes
e/ou criminosas.

“Os níveis de fertilidade que estes imigrantes trazem ‘de casa’ têm pro-
babilidades de serem plenamente concretizados apesar da diferente loca-
lização geográfica. Estes pais, por sua vez, não conseguirão socializar as
suas crianças em conformidade com os valores convencionais do país de
acolhimento, e é de esperar que surja algum tipo de ‘crise’ 15-20 depois do
pico da imigração.” (p.58)

Ao tomarmos conhecimento desta hipótese, não pudemos deixar de es-


tabelecer um paralelismo com a situação portuguesa. Tendo em conta o
facto de ter sido em meados da década de 80 que se iniciaram com maior
intensidade as entradas de imigrantes das ex-colónias africanas em Por-
tugal, e que, passadas quase duas dezenas de anos, o fenómeno da delin-
quência associado aos seus filhos é amplamente mediatizado, este factor
demográfico não terá, à semelhança do que Tony Waters refere, importân-
cia central igualmente no que se tem vindo a verificar a nível nacional?

A teoria deste autor insiste particularmente no questionamento da im-


portância dos factores demográficos, frequentemente esquecidos, mas de
análise obrigatória se quisermos compreender as situações de base.

“Sumariando, podemos concluir que diferentes grupos imigrantes têm


diferentes padrões demográficos, os quais afectam os padrões do crime

Hugo Martinez de Seabra


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juvenil. Esta variação ocorre através tanto dos grupos de idade como do
género, e é um factor determinante na forma como variam as taxas de cri-
minalidade juvenil de determinados grupos independentemente da cultura,
integração social, pobreza, e quaisquer outras causas usualmente aponta-
das pelos teóricos da criminologia. Quanto maior a proporção de jovens em
risco numa população, maior a probabilidade do grupo ter elevadas taxas
de detenção e actividade de gangs. Tendo em conta a rapidez das mutações
demográficas dos grupos imigrantes, isto significa que grandes flutuações
nas taxas de crime juvenil podem ser explicadas pela propoção relativa de
jovens nas respectivas populações.” (p.96)

Para testar esta hipótese em Portugal, deparamo-nos desde logo com um


problema: Como quantificar a proporção de jovens filhos de imigrantes
africanos em Portugal quando apenas é processada oficialmente essa
contabilidade segundo a variável nacionalidade? A contabilização tendo
em conta a ‘cor da pele’ seria uma solução para este problema? E caso se
processasse essa informação e esta revelasse um peso desproporcional
de jovens filhos de imigrantes africanos, não teria implicações estigmati-
zantes ao nível das opiniões públicas?63

Tony Waters apresenta o seu modelo teórico, de uma forma simples, atra-
vés de uma equação:

“Criminalidade juvenil = (Jovens Masculinos X Migração) + Solidariedade


Grupal + Estatuto Socio-económico + (Deficiente Interpretação das Normas
X Migração X Jovens Masculinos)”
(p. 192)

Embora iniciando a sua teorização criticando as teorias criminológicas da


última metade do século XX, o autor, em formato conclusivo, refere que,
para além das dinâmicas demográficas, outros elementos anteriormente
estudados pelos teóricos alvos de criticas são igualmente relevantes para
a explicação do processo de desenvolvimento de práticas delinquentes e
criminosas por parte dos descendentes de imigrantes (o controlo parental,
as subculturas juvenis e a pobreza). De qualquer forma, não cala a dúvida:
será que partir da eleição de um conjunto de variáveis (demográficas, no
caso) para o estudo de um problema tão complexo como este é a metodo-
logia científica mais aconselhável?

63. Relativamente à dificuldade de quantificar estatisticamente o fenómeno da migração e res-


pectivas descendências ver Jean-Pierre Garson e Cécile Thoreau (1999), “Typologie de migra-
tions et analyse de l’intégration”, in Philippe Dewitte (Direcção), Immigration et intégration.
L’état des savoirs, Editions La Découverte, Paris.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

O Problema:

Ao contrário do que tem sido comum nas ciências sociais a nível nacional,
o propósito deste estudo não é analisar a delinquência juvenil evitando a
questão do ‘preto’ e do ‘branco’. Essa dicotomia é cada vez mais flagrante
seja nas ruas, nas instituições de acolhimento e/ou internamento de jo-
vens ou mesmo nos estabelecimento prisionais nacionais64.
Desta forma, o elemento central desta investigação consiste na procura de
um melhor entendimento das maneiras de agir, pensar e sentir65 dos jo-
vens filhos de imigrantes africanos em Portugal. Tais objectivos afiguram-
se-nos inalcançáveis caso uma perspectiva comparada não seja adoptada.
Neste caso, ela assentaria num cotejamento de situações entre jovens de-
linquentes negros e jovens delinquentes brancos.

Neste sentido, desenvolveremos a corrente investigação em torno de se-


guintes hipóteses.

Tendo presente a revisão crítica anterior e a experiência empírica, admiti-


mos que os factores estruturais sobrelevam os demais. A pobreza, o con-
texto habitacional, a família, a escola, o desemprego, a comunidade local,
etc., são elementos que se nos afiguram preponderantes para o envolvi-
mento em práticas desviantes.

Nos contextos residenciais onde habita a grande maioria dos jovens de-
linquentes de origem africana, fortemente marcados pela experiência das
desigualdades estruturais da sociedade, os jovens realizam boa parte da
sua socialização nas ruas, junto do grupo de pares, sobrepondo-se esta em
termos de interiorização de maneiras de agir, pensar e sentir relativamente
aos focos de socialização primária a quem cabe tradicionalmente incutir
nos jovens regras, normas e valores básicos da convivência em sociedade.

Admitimos ainda que nos contextos específicos de pobreza e exclusão em que


estes jovens se encontram se processa uma moldagem do ambiente cultural
local a práticas desviantes com reflexos na tolerância local ao desvio. Verifica-

64. Ver H. Martinez de Seabra e Tiago Santos (2005), A Criminalidade de estrangeiros em Por-
tugal. Um inquérito científico, Colecção do Observatório da Imigração, Alto-Comissariado para
a Imigração e Minorias Étnicas, Lisboa (no prelo) e H. Martinez de Seabra, (1999), Desviantes
ou Desviados? Abordagem exploratória da participação dos imigrantes em práticas em práticas
criminais, Working-Papers # 8, SociNova.
65. Nos termos de Emile Durkheim (1991), As Regras do Método Sociológico, Editorial Presen-
ça, Lisboa, pp. 30-31.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

se desta forma, nestes contextos, como que uma socialização invertida, onde
os elementos definidores das regras são os próprios ‘marginais’.

A segunda hipótese relaciona-se com a relevância dos factores culturais. O


cosmopolitismo urbano possibilita que, nestes contextos estruturalmente mais
desfavorecidos, as orientações e acções do grupo de pares criem nos jovens lo-
cais a perspectiva da integração na sociedade através de sub-culturas juvenis,
por vezes associadas a perspectivas marginais ou mesmo desviantes.

A estigmatização a que os jovens destes contextos estão sujeitos, por


vezes, leva-os à procura da afirmação pessoal através do grupo de pa-
res. A aceitação no mesmo e a interiorização dos referenciais identitários
concretiza-se frequentemente através da prática desviante. Cria-se des-
ta forma um ‘ciclo vicioso’ da estigmatização que conduz estes jovens ao
envolvimento crescente em actos desviantes. Este processo é ainda mais
significativo quando para além das estigmatizadoras condicionantes es-
truturais se acrescenta o estigma da ‘cor da pele’.

Desenvolve-se assim uma duplicidade de sentimentos junto dos jovens


provenientes de contextos desfavorecidos entre a discriminação na esfe-
ra pública e a tolerância na esfera privada. Procurando nesta segunda a
auto-afirmação, desenvolvendo as maneiras de agir, pensar e sentir que
aí são valorizadas e vistas como normais.

Finalmente, este desvio pode ainda traduzir-se em expressões criativas e


inovadoras quando se verifica uma apropriação de referenciais identitários
da margem pelo centro. É o caso de algumas práticas e orientações juve-
nis, iniciadas e desenvolvidas nas margens (grupos minoritários), e que
acabam por penetrar nos circuitos maioritários através do efeito de moda.
Os jovens provenientes de contextos desfavorecidos, formando grupos à
margem que procuram elementos simbólicos de referência e distinção
(em termos de indumentária, música, linguagem, expressão artística, ...),
operam aqui como pioneiros na difusão e posterior generalização de es-
tilos juvenis.

66. Vd Gerry Rose (1982), “Field-work and qualitative data: the deciphering”, in Deciphering
Sociological Research, Contemporary Social Theory, MacMillan, London, pp.117-141.

Estudo de Jovens em Reinserção


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V - METODOLOGIA

1. História Natural da Investigação

É nosso objectivo desenvolver nesta secção aquilo que a sociologia an-


glo-saxónica denomina por ‘natural history of the research’66. Através da
mesma poderemos expor os principais motivos que nos levaram a dar
centralidade nesta dissertação à temática do desvio junto das gerações
descendentes de imigrantes provenientes de países africanos.
Com o objectivo de estudar o realojamento num Concelho limítrofe de Lis-
boa, elegeu o SociNova – Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada
como objecto privilegiado de observação vários bairros sociais e alguns
núcleos de barracas ainda existentes à data67. Aqui viemos a ser confron-
tados com um universo significativo de imigrantes provenientes dos PA-
LOPs e seus descendentes. Com o propósito de aprofundar a importante
realidade sob observação, procurámos especializar conhecimentos neste
segundo universo: a vulgar e, a nosso ver erradamente, designada ‘segun-
da geração’ de imigrantes.

No conjunto de metodologias aplicadas in loco a vertente qualitativa, atra-


vés de entrevistas e igualmente participação na vida local, possibilitou
um primeiro contacto com o ‘leque’ de modos de pensar, agir e sentir
frequentemente conflituantes com os usualmente assumidos como ‘nor-
mais’. Esta ‘dissonância’ tornava-se flagrante junto das gerações mais jo-
vens, ‘brancas’ ou ‘de cor’, onde se detectou a existência de significativos
sinais de ruptura com as normas impostas pela sociedade exterior e a
criação e adopção de regras internas próprias, usualmente reactivas ou
não conformistas em relação às primeiras.

A partir de determinado ponto apercebemo-nos da existência de um vasto


(e sui generis) universo passível de ser estudado68. Ainda assim, fruto das
suas complicadas e delicadas especificidades o acesso ao seu conheci-
mento e aprofundamento afigurava-se-nos fechado. Frequentemente em
observação de terreno, junto de informadores seleccionados, nos era re-

67. Vd M. M. Marques, R. Santos, S. Nóbrega, S. Palácio, T. Ralha, H. de Seabra, E. Rosário e


T. Santos (com colaboração T. Damião) (1998), Realojamento e mudança social, Inquérito soci-
ológico às populações realojadas nos bairros municipais do Concelho de Oeiras – Relatório Fi-
nal, Vol. XII, SociNova, FCSH-UNL, Lisboa, Documento Policopiado e David Justino, M. Marques,
R. Santos, H. de Seabra e T. Damião (1998), Integração, práticas de identidade e exclusão social
no Vale de Algés, Vol. I, Lisboa: FCSH-UNL, Relatório Policopiado.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ferida a impossibilidade de aprofundarem determinadas questões. Estas


situações prendiam-se com a delicadeza da informação questionada e o
risco que tanto os informadores como o investigador corriam de sofrer
consequências resultantes do conhecimento das matérias questionadas.
Exemplificando as dificuldades com que os investigadores destas temáti-
cas se deparam, centremo-nos nas palavras de um ‘clássico’ deste tipo de
estudos, Becker (1985):

“Poucos são aqueles que descrevem em detalhe as actividades quotidianas


do jovem delinquente, o que ele pensa de si mesmo, das suas actividades
e da sociedade. Assim, quando construímos teorias sobre a delinquência
juvenil, somos conduzidos a inferir o tipo de vida do delinquente a partir de
estudos parcelares e de peças jornalísticas, sem poder basear as nossas
teorias sobre um conhecimento adequado dos fenómenos que nos propo-
mos explicar.” (p.189-190)

Tentando evitar o fechamento na procura da informação pertinente nos


estudos e nas fontes secundárias acima referidos, metodologias alterna-
tivas foram então equacionadas. Tal situação visava, simultaneamente,
por um lado, testar determinadas informações obtidas, e consequentes
‘quasi-teorias’ formuladas por vários actores intervenientes nos campos
da imigração e da delinquência juvenil e, por outro, aprofundar conheci-
mentos sobre as preocupações e orientações junto de filhos de imigrantes
africanos em Portugal. De sublinhar ainda que esta temática, entretanto,
fruto da intervenção ‘sempre atenta’ dos mass media, se tornou tópico
corrente de discussão junto da denominada ‘opinião pública’.

Chegamos assim ao capítulo mais recente desta ‘história natural da inves-


tigação’: a opção, que desenvolveremos mais à frente, pelo tratamento de
um universo sob alçada das instâncias formais de controlo social. Numa
instituição interagimos durante quatro meses com indivíduos jovens, na
sua larga maioria declarados delinquentes. Aí os bloqueios ao conheci-
mento aprofundado são consideravelmente menores, sendo inclusiva-

68. Vd. David Justino, Maria Margarida Marques, Tiago Ralha, Susana Palácio e Hugo de Seabra
(1998), “Children of immigrants: a situation in flux between tension and integration” in Me-
tropolis International Workshop, proceedings, Metropolis, Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento, Lisboa, Setembro de 1998, pp. 273-304; Hugo Martinez de Seabra (1999),
Desviantes ou Desviados? Abordagem exploratória da participação dos imigrantes em práticas
criminais, Working-Papers # 8, SociNova e M. M. Marques, Sílvia Nóbrega e Hugo Martinez de
Seabra (1999), Adolescência e juventude: novos valores para novos desafios, apresentado no
Ciclo de Conferências da Câmara Municipal de Oeiras “Uma política social para o Séc. XXI”,
Maio de 1999 (policopaido).

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

mente a situação, após criada a confiança necessária, a inversa: como


forma de afirmação junto do observador e dos demais internados, os alvos
de investigação revelam informações detalhadas e, inúmeras vezes, incri-
minatórias relativas às suas formas de agir, pensar e sentir.

2. Escolha do Instituto de Reinserção Social

A opção metodológica pelo IRS liga-se igualmente a duas questões fun-


damentais:

A primeira, mais substantiva, relaciona-se com a crescente media-


tização, de cariz estigmatizante, do universo dos menores inimputá-
veis. Tal facto prende-se com a actual ligação mediática, no universo
da delinquência juvenil, do factor ‘cor da pele’ ao factor crime.

A segunda, de cariz mais operacional, relacionada com a procura de


um universo não demasiado extenso, por forma a que um estudo de
caso de pendor mais qualitativo, não extrapolável, pudesse efectiva-
mente surtir resultados de qualidade. Ao optar pelo universo prisio-
nal, não apenas perderíamos uma boa parte da vertente dos jovens
(nomeadamente os inimputáveis) e suas práticas, como correríamos
o risco de ter por objecto de estudo algo não observável em 4 meses
mas em 4 anos - tempo inexistente para a corrente abordagem.

3. Escolha do colégio de acolhimento, educação e formação (CAEF)

A escolha do CAEF recaiu num dos dois maiores Colégios a servir a Área
Metropolitana de Lisboa, seleccionado devido a um conjunto de caracte-
rísticas:

I. A sua localização geográfica - tendo em conta que, por um lado,


Lisboa constitui a maior zona de concentração de populações imi-
grantes africanas e, por outro, que a Organização Tutelar de Meno-
res obrigava ao internamento de menores em colégios não muito
distantes das suas zonas de residência, as probabilidades de aí en-
contrar menores com as características pretendidas era elevada;
II. À sua ‘qualificação’, no universo dos vários CAEF, como um colé-
gio onde é habitual haver ‘menores da pesada’. Este é um dos colé-
gios a nível nacional com equipamentos e pessoal preparados para
lidar com jovens delinquentes com historiais de delinquência grave

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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

- à qual muito frequentemente estão também associadas histórias


de vida nas quais eles próprios foram vítimas de agressões, abusos
sexuais, etc...;
III. Ao seu historial no universo da Reinserção Social em Portugal,
sendo uma das instituições pioneiras nesta matéria a nível nacional,
remontando a sua actuação a finais do séc.XIX;
IV. Aos, nunca negligenciáveis, contactos existentes, facilitadores da
entrada neste mesmo universo sem restrições de cariz metodoló-
gico.

4. Escolha das Metodologias utilizadas in loco

“Não é fácil estudar os desviantes, uma vez que estes são tidos como estran-
geiros pelo resto da sociedade, e eles próprios têm tendência a considerar
que o resto da sociedade lhes é estrangeira, o investigador que pretende
descobrir os fenómenos do desvio deve ultrapassar difíceis obstáculos an-
tes de ser admitido a ver o que pretende ver.” (H. S. Becker, 1985:191)

A Escola de Chicago, tendo por referência clássica, entre outros, o estudo


de W. F. Whyte sobre “Cornerville”, surge como a pioneira no desenvolvi-
mento, e aplicação às temáticas do desvio, de estudos de caso baseados
em metodologias de pesquisa de terreno. Num período da história da so-
ciologia onde a vertente quantitativa das metodologias das ciências sociais
era a mais evocada e utilizada, Whyte, Park e outros, enveredaram por
opções de cariz mais qualitativo, baseadas na observação participante e
em entrevistas.

Entre a panóplia de diferentes técnicas de que as ciências sociais hoje em


dia dispõem, optámos por enveredar pela vertente qualitativa através da
realização de um estudo de caso, onde a pesquisa de terreno seria na sua
maioria baseada inicialmente na observação e em contactos exploratórios
e, mais tarde, em entrevistas.

Estamos então perante algumas opções de cariz metodológico (estudo de


caso, pesquisa de terreno, observação quasi-participante e entrevistas)
necessitando de justificação e clarificação.

4.1 Estudo de caso

Relativamente aos estudos de caso, Judith Bell (1999) aponta duas gran-
des virtudes de cariz operacional:

Estudo de Jovens em Reinserção


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1. “A grande força da metodologia do estudo de caso é que permite que o in-


vestigador se concentre numa instância ou situação específica e identifique,
ou tente identificar os vários processos interactivos em acção. Estes processos
podem permanecer escondidos num estudo de âmbito alargado mas podem
ser cruciais para o sucesso ou falhanço de um sistema ou organização.”
2. “A metodologia do estudo de caso é particularmente apropriada para in-
vestigadores individuais porque faculta a oportunidade de um aspecto de um
problema ser estudado com profundidade durante um determinado espaço de
tempo.” (p. 10)

Embora com alguma limitações, nomeadamente quanto à possibilidade


de generalização dos resultados obtidos, efectivamente o estudo de caso
afigurava-se no início da entrada no terreno (vindo a confirmar-se no final
da pesquisa) como a melhor opção para o objecto de estudo em causa e
as características do investigador (individual).

4.2 Pesquisa de terreno

Como refere A. Firmino da Costa (1986:132) relativamente à pesquisa de


terreno, o próprio investigador constitui, nestes casos, o principal instru-
mento de pesquisa. Nas suas palavras: “O método da pesquisa de terreno
supõe, genericamente, presença prolongada do investigador nos contex-
tos sociais em estudo e contacto directo com as pessoas e as situações.”
(A. Firmino da Costa, 1986: p.129).

Foi nosso propósito dedicar algum tempo à pesquisa de terreno com vista
a ‘quebrar o gelo’ que as diferenças de origem de observador e observa-
dos não deixariam de criar. Afigurava-se impossível contornar todos os
obstáculos associados ao estudo da temática do desvio e da delinquência
juvenil, mormente atendendo ao critério ‘politicamente incorrecto’ da cor
da pele dos envolvidos, através de uma rápida passagem pelo universo em
causa.

Becker (1985) no capítulo 9 da obra Outsiders, relativo ao estudo do desvio,


acentua a necessidade de dedicar bastante tempo a investigações deste
tipo:

“... o processo necessário para ganhar a confiança daqueles que estudamos


pode ser bastante custoso em tempo, e meses podem passar frustrados
na procura de uma entrada. Este tipo de investigação necessita assim de
mais tempo que as investigações comparáveis conduzidas em instituições
respeitáveis.” (H. S. Becker, 1985:194)

Hugo Martinez de Seabra


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Após alguma ponderação, auxiliada por investigadores e elementos liga-


dos ao universo seleccionado69, optámos por proceder à observação du-
rante o primeiro trimestre lectivo do ano escolar 2000/2001. Este período
de observação foi ainda prolongado durante as férias de Natal, decorrendo
então entre Setembro e Dezembro de 2000. A esta decisão não foi igual-
mente alheio o facto de a partir do dia 1 de Janeiro de 2001 toda a le-
gislação tutelar sofrer profundas alterações, com repercussões ao nível
do funcionamento interno da unidade sob observação, podendo produzir
complicações no seguimento da pesquisa de terreno.

4.3 Observação ‘quasi-participante’

Denominaremos de observação ‘quasi-participante’ a técnica predomi-


nante dos primeiros dois meses e meio de pesquisa de terreno. O ‘quasi’
prende-se com a impossibilidade lógica do investigador, neste contexto,
poder ser plenamente integrado e agir, sem distinção, junto do universo
sob observação. A existência de barreiras tanto etárias como funcionais
obrigaram à procura de uma aproximação, através da adopção, inicial-
mente propositada, mais tarde numerosas vezes inconsciente, de alguns
elementos referenciais dos próprios indivíduos sob observação (idumen-
tária, gostos musicais, expressões, gestos, etc.).

A nosso ver, a observação etnográfica das maneiras de pensar, agir e sen-


tir de jovens delinquentes afigura-se fundamental para qualquer investi-
gação deste cariz, dado que permite captar as categorias e referências dos
próprios agentes em acção.

A situação de observador de um universo com as características do se-


leccionado obriga a uma elevada flexibilidade a nível da estrutura da ob-
servação que se pretende conduzir. Na verdade, embora existam ideias
pré-concebidas relativas ao que observar, o investigador é confrontado in
loco com a obrigatoriedade de adaptação e adopção das dimensões e indi-
cadores a analisar e relacionar.

“À luz da informação recolhida e da experiência de terreno até então de dia


para dia devem ser tomadas decisões sobre a futura direcção do projecto.”
(G. Rose, 1990:115).

69. Dos quais destaco o Dr. Semedo Moreira da DGSP e a Dra. Leote de Carvalho do IRS, e aos
quais agradeço.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4.3.1 Interlocutores privilegiados

Associada à técnica da observação encontramos a selecção de informa-


dores privilegiados, muitas vezes não necessariamente escolhidos pelo
investigador, mas resultantes da interacção das relações observador-ob-
servados70. Conforme Firmino da Costa refere, tais informadores tornam-
se ‘peças’ fundamentais da investigação em três vertentes: a) são essen-
ciais para a adequada integração no tecido social local; b) são fontes de
informação não apenas relativa a eles próprios mas igualmente ao papel
e à aceitação do investigador no terreno; c) são ainda “... fonte de informa-
ção sobre outras pessoas, aspectos do contexto social em estudo e acon-
tecimentos que nele se vão passando.” (Firmino da Costa, 1986: 139).

4.3.2 Diário de campo

Um elemento no qual praticamente todos os autores estão de acordo


prende-se com as notas de terreno. Estas deverão ser elaboradas, se pos-
sível, imediatamente após a observação, por forma a não se correr o risco
de perder informação relevante observada. No caso presente, estas notas
nunca foram realizadas in loco, visto considerarmos tal situação perturba-
dora do inter-relacionamento investigador - investigados.

Foi assim elaborado um Diário de Campo por forma a que no final de cada
dia de observação se incluíssem no mesmo as notas mais relevantes a três
níveis: i) descrição de situações observadas; ii) confronto de teoria com
determinadas observações; iii) auto-posicionamento e, frequentemente,
autocrítica relativamente ao papel do investigador na observação.

4.3.3 Problemas detectados

Dois problemas directamente relacionados com a técnica da observação


foram:

1. “Deverá ele [investigador] dizer a verdade, toda a verdade, ou parte


dela? Ou deverá, antes, disfarçar-se totalmente, pretendendo fazer-
se passar pelo que não é? as respostas dadas em diferentes pro-
jectos variam com uma amplitude considerável, de um extremo ao
outro, segundo as circunstâncias da investigação e a personalidade

70. Uma agradecimento especial ao João, ao Peter, ao Vieira, ao António e ao Semedo (nomes
escolhidos pelos próprios), entre outros.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

do investigador.” (H. Mannheim, 1984:292). A apresentação num uni-


verso marcado pela constante desconfiança relativamente ao ‘ou-
tro’: ser-se sociólogo ou, pior ainda, investigador constitui sempre
sinónimo de polícia, logo inimigo. Neste sentido, e sem qualquer in-
tenção de ludibriar os observados, foi acordado com a Direcção da
instituição sob observação que inicialmente o investigador entraria
com a roupagem de ‘estagiário’ e posteriormente teria a liberdade
de ir gradualmente transmitindo a sua real identidade. Após mês e
meio de observação, este já era visto como um ‘estudante’ que iria
escrever um livro sobre o Colégio. No final do trabalho de terreno,
cremos que os jovens sob observação não mais identificarão investi-
gador em sociologia com polícia;
2. A interferência do investigador no universo observado afigurou-se
como um dos principais problemas - nomeadamente no início da
observação, período de afirmação de um papel de neutralidade -, se
não mesmo o principal problema ligado à estratégia metodológica
seleccionada. A adopção de uma posição neutral e ‘invisível’ é sim-
plesmente impossível. O investigador interfere constantemente no
objecto de estudo, seja deliberadamente seja por solicitações dos
observados. Num contexto marcado, com elevada frequência, por
conflitos verbais e, muitas vezes, físicos, a procura, nos elementos
considerados exteriores (outsiders), de reforços de posição leva a
que o investigador seja permanentemente solicitado a abandonar a
sua neutralidade e a tomar partido.

4.4 Entrevistas

Garry Rose, referindo-se aos trabalhos de Schatzman e Strauss (1973) so-


bre observação participante, selecciona três tipos de estratégias relativas
à ‘escuta’ dos agentes: “... eaves-dropping, na qual o investigador não de-
sempanha qualquer papel senão o de ouvinte, conversa situacional onde o
investigador questiona directamente em momentos oportunos, e a entre-
vista.” (G. Rose, 1990: 114).

A entrevista foi a técnica predominante utilizada no terreno. Conforme foi


decidido a priori com a Direcção do Colégio sob observação, apenas após
dois meses e meio dedicados essencialmente ao conhecer e dar-se a co-
nhecer, o investigador considerou estarem reunidas as condições neces-
sárias para a realização de entrevistas.

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Conforme H. Mannhein (1984) refere:

“Raras serão as comunidades ou os grupos, raros serão os reclusos que


terão um particular desejo de ver as suas actividades ilegais inteiramente
devassadas por um estranho, sem a contrapartida de um benefício óbvio
para eles, ou que estejam a receber com simpatia o indiscreto investiga-
dor.” (pp. 292-293)

Fruto da presença directa dos intervenientes e da sua elevada adaptabili-


dade, a técnica da entrevista possibilita desenvolver linhas de pensamen-
to, sondar orientações e investigar as formas de pensar, agir e sentir dos
indivíduos entrevistados, algo que uma técnica de cariz mais quantitativo,
usualmente o inquérito por questionário, não capta. Com estes propósitos
presentes, o guião de entrevista elaborado assenta numa estrutura semi-
rígida ou semi-directiva.

Visto não ser o CAEF (e seus funcionários) o objecto do estudo, antes o


local onde nos foi possível aceder a um determinado conjunto de jovens
predispostos a partilhar maneiras de pensar, agir e sentir, que noutro
contexto não partilhariam, apenas estes últimos foram entrevistados.

4.4.1 Selecção dos Entrevistados

A selecção dos indivíduos a entrevistar não foi definida a priori, fez parte
das decisões tomadas no desenvolvimento do processo de pesquisa de
terreno. Assentou em alguns requisitos, uns resultantes da especificidade
das temáticas em estudo, outros de condicionantes situacionais próprias
do contexto em observação.

Assim, foram entrevistados: jovens com passado de delinquência71, com


predominância de filhos de imigrantes africanos. Procurou-se abranger o
leque de idades existente (dos 13 aos 17 anos) e todas as origens, tanto a
nível geográfico (norte, centro, sul e ilhas) como a nível de nacionalidade
(portuguesa, cabo-verdiana, angolana e moçambicana).

No que se relaciona directamente com as condicionantes situacionais da


investigação temos: a) interlocutores privilegiados, fruto da maior confian-
ça e assiduidade de contactos facilitadora do aprofundamento de temá-

71. Tenha-se presente que nem todos os jovens institucionalizados eram, à data, delin-
quentes.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ticas; b) em resultado das deficientes condições a nível de espaços para


realização das entrevistas, por vezes foram entrevistados conjuntamente
jovens que, por coincidência, partilhavam o mesmo local (quartos de dor-
mir).

4.4.2 ‘Protocolo Ético’

Por último, é de referir que todas as 8 entrevistas realizadas, com um total


de 18 participantes, foram gravadas com a autorização dos entrevistados.
Através da utilização daquilo que os anglo-saxónicos denominam de ‘ethi-
cal protocol’ (Judith Bell, 1999), os entrevistados, antes de se iniciar a gra-
vação, eram ilucidados quanto à não obrigatoriedade de estarem presen-
tes, relativamente à situação de anonimato das suas declarações (todos
deram nomes falsos à sua escolha) e qual o propósito final da informação
questionada.

4.5 Inquérito por questionário

Em consequência da impossibilidade de obter alguns elementos de ca-


racterização sociográfica dos alunos internados, foi ainda aplicado um
pequeno questionário, incluindo estas mesmas variáveis e algumas mais
directamente relacionadas com as temáticas em estudo.

O universo seleccionado para responder ao inquérito por questionário foi


unicamente o dos delinquentes (os quais representavam a grande maio-
ria), sendo igualmente dada a opção da não participação antes da aplica-
ção do mesmo. O anonimato foi aqui, uma vez mais, preservado. Foram
realizados 24 questionários no total (todo o universo de delinquentes pre-
sentes entre os dias 8 e 10 de Dezembro de 2000), visto 3 dos jovens es-
tarem internados por serem vítimas (e não delinquentes) e outros 3 terem
fugido no dia exacto do início da sua aplicação72.

A administração do questionário foi em alguns casos indirecta (entrega


num dia e recolha no seguinte), noutros (por ‘preguiça’ ou incapacidades
literárias) por administração directa, i.e., o investigador questionou e pre-
encheu as respostas fornecidas.

72. Ao contrário do que se processou com o inquérito por questionário, as entrevistas não
se generalizaram a todo o universo delinquente por opção do investigador, consequente das
semelhanças discursivas destes jovens.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4.6 Outras notas metodológicas

I - Adaptação do investigador ao meio:


“As possibilidades de construir uma identidade social perante os membros
dum determinado quadro social, e as características dessa identidade, via-
bilizam ou inviabilizam a pesquisa, condicionam-na em diversos aspectos.
Os papéis sociais que o pesquisador vai estabelecendo delimitam-lhe os
terrenos permitidos e os interditos, condicionam-lhe em boa medida a am-
plitude, as direcções e os contornos da investigação.” (Firmino da Costa,
1986: 144-145).

Determinadas opções, tanto relativas à própria apresentação pessoal do


investigador como relativas aos seus gostos pessoais, foram intencional-
mente tomadas. Alguns exemplos dos papeis desempenhados pelo inves-
tigador são: a utilização de uma indumentária jovem, assemelhando-se
não totalmente à dos observados, mas também não se distanciando em
demasia; a apresentação de um ar um pouco desleixado - barba comprida
e cabelo descuidado -; a escolha da bicicleta como veículo de transporte
nos primeiros dois meses, fazendo questão de se fazer ver. No que se refe-
re aos gostos pessoais foram identificados, entre outros, alguns pontos de
contacto: o futebol constitui sempre um desses elementos comuns; a mú-
sica Rap ou o Hip-Hop (essencialmente portuguesa e americana) consti-
tuiu outro dos elos de ligação; por último, uma das telenovelas brasileiras
da tarde tinha o poder de ‘domar o indomável’, ou seja, parar tudo e todos
no universo em estudo, sendo fundamental ao investigador acompanhar a
mesma por forma não aparentar desactualização.

II - Presenciamento de actividades delituosas: Referindo-se a uma carta


recebida de Ned Polsky colocando uma questão metodológica relacionada
com o estudo das temáticas do desvio, H. S. Becker mostra-se de acordo
com a seguinte análise: «Se queremos realmente estudar nos seus am-
bientes naturais (...) os desviantes que violam as leis, devemos tomar a
decisão moral de também nós violarmos leis. Não é necessário agir por
«observação participante» e cometermos nós também o tipo de acto des-
viante estudado, mas é necessário ser testemunha de tais actos ou deter
conhecimento destes e não os participar..» (Ned Polsky citado por H. S.
Becker, 1985: p.199). Situações semelhantes à acima descrita foram en-
frentadas no decorrer da investigação, nomeadamente no que se refere
ao tráfico e consumo de droga. A opção, que somos obrigados a tomar em
‘fracções de segundos’, passou por não denunciar tais actos, conscien-
tes de assim podermos estar a ser cúmplices dos mesmos, visto estes

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

constituírem um misto de demonstração de confiança no investigador em


simultâneo com um teste à lealdade do mesmo. Em termos morais estas
constituíram as decisões mais complicadas tomadas no decurso da ob-
servação.

Em conclusão, a opção metodológica tomada, incidindo num estudo de


caso, utilizando metodologias de cariz qualitativo, devido à ausência de
uma rotina de recolha de informação, solicita significativamente as emo-
ções, o ego e o intelecto do investigador. É fundamental assim realizar
boas perguntas, ser um bom ouvinte, ser adaptativo e flexível, ter uma
ideia firme dos assuntos sob investigação e ainda ser não-influenciável
por preconceitos.

5. Material recolhido: sua crítica e análise

5.1 Material recolhido

A. Diário de Campo - Documento de 150 páginas relatando o que de


mais significativo foi presenciado durante 44 dias de observação,
correspondendo a um total de 216 horas e 30 minutos de trabalho
de terreno;
B. Letras Rap - primeira fonte de informação obtida na sequência de
um incentivo dado pelo investigador à escrita das mesmas com o
intuito de as passar a computador com uma letra ‘radical’ e sem
erros ortográficos. Foram produzidas no total 25 letras por 6 alu-
nos;
C. Entrevistas - Foram realizadas 8 entrevistas com a presença de
18 alunos na sua totalidade (num universo de nunca mais que 30
indivíduos, entre os quais 3 vítimas);
D. Inquérito por Questionário - Recenseamento realizado ao universo
dos delinquentes (24 questionários – no dia da aplicação do ques-
tionário fugiram 3 alunos);
E. Glossário - Conjunto de 83 termos ou expressões convencional-
mente utilizadas no colégio e desconhecidas e/ou ausentes de
significado nos dicionários de língua portuguesa.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

5.2 Fontes construídas: seus limites e virtualidades

Diário de campo:

A. Como em qualquer investigação baseada na observação, memo-


rização e posterior anotação, a subjectividade é elevada e verifi-
ca-se sempre a possibilidade de não se ter retido tudo o que de
significativo ocorreu em cada dia de observação;
B. Detectaram-se igualmente algumas interferências fruto de pre-
conceitos do próprio investigador. Becker coloca-o desta forma:
“... os fenómenos morais que estão implicados no estudo do desvio são
mais difíceis de identificar. Esta questão constitui um aspecto de um pro-
blema mais geral, aquele relativo a qual o ponto de vista que o investi-
gador deve adoptar quando frente-a-frente com o seu sujeito de estudo,
qual o julgamento que ele traz consigo sobre algo que é convencional-
mente tido como negativo e as simpatias que ele terá relativamente a
esta ou aquela categoria. Estes problemas põem-se, naturalmente, no
estudo de qualquer fenómeno.” (H. S. Becker, 1985: 194)

Nos primeiros dias de contacto com o terreno, nas notas elaboradas dia-
riamente no diário de campo predominam suposições inconscientemen-
te baseadas em possíveis preconceitos do investigador. Exemplo são as
frequentes associações dos rapazes mais novos brancos a situações de
vitimação e dos ‘negros’ a situações de delinquência, algo que mais tarde
veio a revelar-se o oposto em alguns casos.

Letra Rap:

Foram detectadas a posteriori situações de plágios de ‘rapers’ portugue-


ses (3 letras). Em alguns casos verificou-se uma incompreensão de algu-
mas palavras utilizadas (crioulo) ou inventadas com o propósito de rimar.

Entrevistas:

A. Algo que constituiu desde o início da observação um problema, o


qual se veio a agravar no momento de realização das entrevistas,
foi a ausência, à excepção dos quartos individuais dos alunos, de
locais onde se pudesse conversar sem constantes interrupções
e interferências. Mesmo os quartos, uma vez que eram na sua
maioria partilhados, registavam um ‘vai e vem’ permanente, quer
dos seus ocupantes, quer de visitas, quer ainda de ‘controladores’

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

do investigador. Perante a impossibilidade de realizar as entrevis-


tas noutro local, foi nos quartos dos entrevistados que as mesmas
foram conduzidas. Tal facto levou a que apenas duas entrevistas,
das oito realizadas, se tivessem processado com apenas um inter-
locutor. Todas as restantes tiveram entre dois e sete intervenien-
tes no total. Relacionado com esta situação está o problema da
inibição de alguns dos intervenientes, não devido à presença do
gravador, mas devido à presença de outros alunos com maior po-
der simbólico e frequentemente monopolizadores das entrevistas.
Procurou-se sempre ser o mais imparcial possível, mas situações
houve em que tais constrangimentos estiveram presentes.
B. Igualmente de salientar é o facto de ter sido frequente a interrupção
das entrevistas em consequência das usuais rotinas da instituição
– jantar, hora de dormir, etc... - , tendo essa situação, por duas
vezes, causado o adiamento da sua conclusão para outro dia.
C. Embora tenham surgido, foram raras as situações em que houve
uma incompreensão total do que era referido aquando da trans-
crição das entrevistas. Tendo sido constantemente alertados para
não realizarem sobreposições de conversas devido à gravação,
não podemos negligenciar o facto de este se tratar de um univer-
so de crianças e jovens, carregados de energia e conflitualidade de
pontos de vista. Ainda assim, tornou-se surpreendente constatar o
quão diminutas estas situações foram a nível de gravação, perante
um universo tão propício à confusão.
D. “Durante as entrevistas constatei contradições, efabulações e empo-
lamentos de factos.” (Semedo Moreira, 1988: 18). Se por um lado a
presença de mais do que um entrevistado é propícia a empolamentos
das situações relatadas com o propósito de afirmação pessoal, tam-
bém se verificou o inverso, isto é, alguns entrevistados são ‘puxados’
pelos demais para se abrirem e revelarem mais do que haviam par-
tilhado. Assim sendo, há elementos positivos e elementos negativos
relativamente à situação presenciada na maioria das entrevistas.

Concluindo, havendo ou não empolamentos da informação fornecida através


das entrevistas, torna-se necessário realçar que o elemento relevante aqui é
o discurso produzido pelos entrevistados e não se o mesmo é falso ou verda-
deiro. Como refere Firmino da Costa “ ..., é necessário ter permanentemente
em conta que são sempre depoimentos elaborados através dos sistemas de
representações próprios do contexto social local e do lugar social específico
dos indivíduos em causa.” (1986: 139). O discurso produzido afigura-se assim
como sendo o grande objecto de estudo desta investigação.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Inquérito por questionário:

A. A fuga de 3 jovens delinquentes no dia do início da aplicação do


questionário tornou o universo existente mais reduzido. Não per-
mitindo estatísticas elaboradas devido ao número limitado de in-
quiridos (24), a análise possível é meramente descritiva.
B. Registaram-se igualmente, neste recenseamento dos delinquen-
tes existentes no Colégio, poucas situações de omissão de infor-
mação (não respostas). Ainda assim, tendo em conta a delicadeza
de alguma da informação questionada, respostas escritas do tipo
- ‘Não tem nada a ver com isso’ - surgiram ocasionalmente.
Comum tanto às entrevistas como aos questionário foi a consciente de-
cisão relativa à não realização de questões relacionadas com crimes de
sangue e crimes sexuais. O propósito era não pôr todo o resto da recolha
de informação em risco abordando temáticas tão delicadas quanto estas.
Tanto no diário de campo como em duas entrevistas tais temáticas acaba-
ram por surgir por espontânea vontade dos observados e não por interfe-
rência do investigador.

Utilizando uma frase de Álvaro Pereira (1999) relativa aos estudos em meio
de reclusão, concluímos esta secção relativa à crítica da informação obti-
da: “Há contudo um princípio sobre o qual só podemos ser intransigentes:
as motivações sobre o que deve ser estudado podem ser de natureza polí-
tica - os resultados não.” (p. 149)

5.3 Análise da informação obtida

A análise do material recolhido no que se refere ao diário de campo, às


entrevistas e às letras de Rap assenta em análise de conteúdo temática.
No tocante ao inquérito por questionário, a mesma assenta na elaboração
de estatísticas unicamente descritivas (com o auxílio de dois tipos de sof-
tware: o SPSS e o Excel).

6. Opção Terminológica

“Existe uma distinção importante entre conceitos participantes e concei-


tos teóricos. (...) Os conceitos participantes estão ligados à terminologia
utilizada pelo grupo sob estudo. (...) Alguns autores, (...) defendem que os
conceitos e categorias teóricas podem (e geralmente devem) ser baseados
em conceitos e categorias participantes.” (G. Rose, 1990: 119)

Hugo Martinez de Seabra


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Alguns estudiosos utilizam o termo ‘conceito participante’ para denominar


conceitos captados junto dos participantes, in loco, no decorrer da pesqui-
sa de terreno. Trata-se de categorias utilizadas frequentemente por todo o
universo sob observação ou por segmentos do mesmo, e que traduzem o
modo de apropriação cognitiva das situações correntes.

Passível de voraz crítica, é nossa opção adoptar, no desenvolvimento des-


ta dissertação, conceitos deste tipo, utilizados generalizada e indiferente-
mente e sem preconceitos associados por todos os observados. Cremos
ser desnecessário procedermos à legitimação teórica da adopção dos
sempre ‘politicamente incorrectos’ conceitos de distinção racial, funda-
mentais para esta investigação, de, por um lado, ‘indivíduo de cor’, ‘negro’,
‘preto’, ‘africano’, etc. e, por outro, ‘branco’, ‘luso’, etc., quando in loco
- seja no Colégio sob observação, seja nos bairros anteriormente observa-
dos - os termos comummente utilizados e aceites, sem conotações pejo-
rativas, são ‘black’ e ‘pula’.

Neste sentido, é nossa intenção utilizar estes dois termos como ‘conceitos
participantes’. Realce-se o quão patente se encontra nos mesmos a influ-
ência da ‘cultura afro-americana’, uma vez que o primeiro, ‘black’, tem a
sua origem num termo inglês e o segundo, ‘pula’, vem do crioulo. Ainda
assim, a utilização dos mesmos é generalizada e legitimada, in loco, por
todos os jovens.

Outros conceitos não tão controversos, mais relacionados com as práticas


delinquentes - por exemplo, ‘fezada’ -, serão, nesta mesma óptica, igual-
mente adoptados.

Seguidamente procederemos à caracterização do local objecto de estudo


nesta investigação.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

VI – CONTEXTUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL DA OBSERVAÇÃO

1. Instalações/Equipamentos

À data da observação havia quatro núcleos de equipamentos operacionais


e dois estagnados. Operacional estava:

I. Instalações para a Direcção, a secção dos serviços administrativos,


os gabinetes de professores e técnicos;
II. Uma Unidade Residencial Autónoma (Lar)73;
III. A unidade Horizonte - usualmente com capacidade máxima para
30 internamentos;
IV. Uma unidade onde funcionam a cozinha e as actividades de for-
mação profissional.

Cingir-nos-emos à apresentação detalhada da área envolvente e das duas


últimas unidades identificadas, aquelas verdadeiramente destinadas aos
menores em observação neste estudo74.

1.1 Área envolvente

As unidades de internamento localizam-se numa encosta. Toda a sua área


envolvente é caracterizada por uma predominância florestal, com impo-
nentes pinheiros cercando as mesmas.

Durante o período de observação (Setembro-Dezembro de 2000) também


este espaço sofreu remodelações, nomeadamente o erguer de um alto
gradeamento rematado com laços de arame farpado, algo nunca antes
visto nestas unidades. Junto ao portão dois seguranças privados começa-
ram em Setembro a fazer o controlo de entradas e saídas.

No topo desta encosta, para lá de uma vasta área, onde predomina a vege-
tação e o pinheiro bravo, e do mencionado gradeamento, encontra-se um
Estabelecimento Prisional, sendo frequentes, no Colégio, as metáforas re-
lativas à subida da montanha - ‘entrada na prisão’.

73. Não aprofundaremos a mesma neste trabalho visto, por opção metodológica, esta não ter
constituído parte do universo observado.
74. Nota Metodológica: no seguimento do que é apresentado relativamente às opções metodo-
lógicas deste estudo, procederemos a uma apresentação baseada fundamentalmente na ob-
servação e no material recolhido em diário de campo. Assim sendo, com o intuito de facilitar ao
leitor a visualização dos elementos descritos, a vertente qualitativa será aqui dominante.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Por fim, encontramos um campo desportivo multiusos (futebol, andebol,


basket, etc.), também remodelado durante a observação, localizado entre
a unidade horizonte e o actual edifício dos serviços administrativos e di-
recção, na altura ainda em obras.

1.2 Cozinha e ateliers de formação profissional

Distando pouco mais de 50 metros da unidade residencial, através de uma


estrada de alcatrão já gasto, encontra-se o antigo refeitório, actualmente
cozinha e espaço destinado à formação profissional. Piso térreo, com a co-
zinha de um lado, sem comunicação possível para com o resto do edifício,
e os ateliers do outro. Durante o período de observação encontravam-se
em funcionamento quatro diferentes áreas de formação profissional:
1. Oficina de Madeiras - numa das antigas salas de refeições;
2. Electricidade - igualmente numa antiga sala de refeições;
3. Cerâmica - num espaço idêntico aos anteriores;
4. Jardinagem - alternando entre as aulas teóricas na cave deste edifício e
as aulas práticas no exterior.

1.3 Unidade residencial

Uma vez que o universo em estudo tem como principal característica o in-
ternamento, este foi o espaço de eleição da observação conduzida. Ao lon-
go dos quatro meses de observação também este edifício sofreu inúmeras
alterações, assentando essencialmente num princípio - a preparação, em
tempo record, do primeiro andar, destinado a abrir, em Janeiro de 2001,
em sistema de regime fechado (contemplado na nova LTE).

Trata-se de um edifício sobre o comprido, de dois andares, com uma nave


central ao longo de toda a sua profundidade, estando as divisões reparti-
das entre o lado direito e o esquerdo da mesma.

O imponente portão principal, na lateral, junto ao qual ainda se locali-


za a campainha, todo em ferro com pequenos rectângulos em vidro (uns
quantos foram-se partindo ao longo dos tempos e nunca chegaram a ser
substituídos) está inoperacional há já algum tempo, soldado por forma
a evitar possíveis arrombamentos e fugas. Junto ao mesmo, do lado de
dentro, meia dúzia de degraus em pedra transformam este espaço num
local agradável quando há incidência solar, mas gelado nas noites frias de
inverno.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Assim, a entrada processa-se por uma porta secundária, num dos topos,
dando acesso directo ao ‘maracanã’, um pequeno hall de entrada que fazia
igualmente a ligação entre o primeiro e o segundo piso. Não tendo mais
de 20 metros quadrados este era o espaço de eleição para a prática de
futebol indoor após o jantar. Através do aproveitamento dos vãos de duas
portas como balizas, os jogos em mano-a-mano ou em equipas de dois
eram uma constante.

Todos os cantos deste espaço tinham utilização, no imediatamente à es-


querda de quem entrava localizava-se uma pequena sala de reuniões, do
lado oposto uma casa de banho - até à proibição total de fumar cigarros
na unidade, a mais poluída das divisões após o jantar -, no canto superior
direito as escadas e a entrada para uma pequena copa, e no esquerdo, ao
lado do várias vezes arrombado quadro de electricidade, a sala de aulas
do primeiro ciclo. A decoração das brancas paredes é feita com alguns
trabalhos manuais dos próprios alunos, a justificação vem de uma das
coordenadoras: “Utilizamos os trabalhos deles para decorar os pavilhões
pois assim eles destroem menos.”

Antes de entrarmos pela unidade dentro, no piso térreo, uma visita rápida
ao piso superior para conhecer a grande sala das aulas de Capoeira. O
contraste com tudo o resto que viremos a descrever é acentuado. O chão,
em taco de madeira, está envernizado e brilhante, à entrada deixam-se os
sapatos pois ali anda-se descalço. As paredes, brancas de uma tinta re-
cente, estão decoradas com vários posters e colecções de fotografias alu-
sivas à prática da Capoeira. Entre cada janela, um birimbau encontra-se
pendurado, aguardando as aulas para ser tocado. Mobília é praticamente
inexistente, pois ali o objectivo é ter espaço para os ‘beija flor’ e os ‘chutos
na lua’. Claramente este é um local respeitado, onde não há vandalização
ou lixo, tal só se consegue através da imposição de um forte carisma, algo
que o Mestre da Capoeira incorpora como poucos ali dentro.

De regresso ao R/C, a sala de aulas do primeiro ciclo funciona num espa-


ço não superior a uns optimistas 10 metros quadrados, com um quadro
de lousa e inúmeros trabalhos dos três únicos alunos nas paredes. Uma
dessas cartolinas assenta as presenças e o comportamento diário de cada
um. As mesas e cadeiras encontram-se ora organizadas ora anarquica-
mente posicionadas conforme se trate de um dia de semana ou de fim-de-
semana. Há ainda uma pequena janela que permite a entrada de alguma
luminosidade, principalmente da parte da tarde.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Avançando por uma das ‘balizas’ a dentro, entramos num grande corredor
central, chão sempre em mosaico a simular mármore, paredes pintadas
até meio de tinta plástica creme, e branco daí até ao tecto. Imediatamente
por cima dessa porta ‘abalizada’ localizam-se as já muito massacradas
campainhas do telefone e da unidade residencial. Nas paredes, mais tra-
balhos dos alunos.

Do lado esquerdo, uma porta seguida de uma janela interior sempre num
resistente ferro e já desfalcada de inúmeros rectângulos de vidro, possibili-
tam-nos visualizar uma grande sala de convívio. Uma vez dentro da mesma,
apenas o chão em taco antigo de madeira destoa em relação aos espaços
anteriores. Bem no centro da divisão, algumas manchas vermelhas mar-
cam o chão, aparentando ser sangue de batalhas passadas, não passam
do último vestígio de uma longínqua guerra de ameixas. Ao comprimento
de toda a massacrada parede exterior estende-se uma correnteza de ja-
nelas proporcionando uma vista desde o rio Tejo até à cozinha do colégio,
passando pelo constantemente controlado portão de entrada, igualmente
patrulhado por seguranças privados. Em dias de maior frio, nem mesmo o
aquecimento proporcionado por uma salamandra em ferro forjado, no topo
oposto da sala, anula as correntes de ar que atravessam esta grande divisão
através dos vidros não substituídos das várias janelas em direcção a outros,
em igual estado, no lado oposto do edifício. A vida desta unidade confunde-
se com a vida desta sala, é nela que se encontram os móbiles ocupacionais
de tempos livres mais procurados: a televisão, o snooker e o computador.
A desnivelada mesa de snooker, manchada e rasgada em inúmeros locais,
possibilita apostas a cigarros. Os tacos, à falta de giz apropriado, abastecem-
se em buracos feitos na cal das paredes com esse propósito. Três bancos
corridos de madeira e respectivas, disputadíssimas, almofadas, juntamente
com algumas cadeiras de qualidades e fornadas várias constituem a plateia
para as diárias sessões de telenovelas e jogos de consola em frente à tele-
visão. Imediatamente acima da mesma, colado na parede de forma central,
o poster da selecção nacional, resistente desde as celebrações das vitórias
Portuguesas no Europeu de 2000. Em dois dos cantos, pequenos caixotes de
lixo, usualmente confundidos com cestos de basket, fazendo de respectivas
bolas os pacotes de leite achocolatado do pequeno-almoço, lanche e lanche
da noite. Espalhadas um pouco por todas as paredes disponíveis encon-
tram-se estantes com livros. O objectivo era criar uma biblioteca. Para tal
existia tudo menos vontade dos utentes em usufruírem sem vandalização
dessas publicações. Frequentemente as mesmas eram utilizadas como ar-
mas de arremesso ou locais de esconderijo de objectos sonegados a um
companheiro.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Novamente no corredor central, do lado oposto à sala anteriormente des-


crita localiza-se o actual refeitório. Com mesas encaixadas em formato de
‘U’ invertido esta divisão caracteriza-se pelo asseio e a limpeza, apenas
antes das refeições. Um grande armário, na ponta oposta à copa, reúne
todos os utensílios necessários a uma refeição. Se os pratos são de barro,
já os copos são de plástico. Os talheres, única aproximação a uma arma
legal, a tempos procurada, dentro deste espaço, raramente são suficien-
tes, propiciando motivo para as primeiras discussões de cada refeição.
A usual correnteza de janelas tem aqui um cortinado em tons de bege,
amarelo e azul, frequentemente utilizada como guardanapo à falta de algo
mais próximo.

Um pouco mais à frente, de ambos os lados, surgem mais salas de aula


(duas do 2º ciclo e uma do 3º), uma sala de jogos com dois matraquilhos,
um deles com o seu prazo de validade expirado, ainda assim, suficiente
para facultar as bolas para que os jogos no segundo, ainda num estado
de conservação razoável, se prolonguem. Ainda nesta sala, encontramos
um equipamento de ténis de mesa, longos meses inoperacional devido à
falta de bolas.

De regresso à nave central surge, do lado direito, o quarto de reclusão


solitária. Dado como inoperacional, a verdade é que durante o período de
observação o mesmo foi algumas vezes utilizado. Mais tarde, no final da
observação, seria ironicamente convertido numa pequena sala de lazer,
onde uma mesa misturadora de música possibilitava aos mais habilidosos
conjugarem as suas opções musicais. No seu formato original este frio e
nu quarto, de não mais que 5 metros quadros, tinha uma porta blindada,
uma cama em alvenaria e um colchão de espuma. Havia ainda a um can-
to, um mini-lavatório e uma daquelas características peças antigas em
cerâmica de lavabos públicos com o respectivo buraco no fundo. A única
janela existente estava reforçada com um gradeamento interior de uma
apertadíssima malha.

Mesmo no final desta primeira secção do edifício, à esquerda, a sala dos


‘monitores’, onde a organização é outra. Um pequeno cofre de parede,
atrás da única secretária, guarda alguns dos pertences dos menores. Na
parede da esquerda um grande quadro resume, por um lado, os escalona-
mentos dos monitores e, por outro, o universo institucionalizado - nomes
dos alunos, datas de nascimento, situação escolar, áreas de formação
profissional de cada, etc. É igualmente neste espaço que todas as noites
se realiza a muito concorrida triagem de telefonemas para as famílias.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Chegamos finalmente à zona dos quartos. À direita, uma divisão de chuvei-


ros, tipo balneário, onde os espelhos embaciados e o vapor eram constantes
após o regresso das actividades de formação profissional da tarde. Ainda à
direita uma segunda porta dava acesso ao mais repugnante local de toda a
unidade, os sanitários, constantemente envoltos num cheiro nauseabundo.
Aqui existiam três urinóis, um lavatório e quatro compartimentos de sanitas
sempre a necessitar de intervenção a nível de limpeza. Claramente os cui-
dados higiénicos neste domínio não faziam parte das prioridades da grande
maioria dos utentes do mesmo. Sendo este facto agravado pelo permanente
entupimento e rompimento de algumas canalizações.

Igualmente com odores altamente repulsivos, no lado oposto, encontra-se


a rouparia, sempre com uma pilha de roupa no chão junto à porta, onde
tanto roupa suja como roupa lavada se encontram (des)arrumadas. É tam-
bém neste local que o Colégio tem um stock de roupa, fruto de dádivas
várias, para os alunos carenciados a esse nível.
Novamente à direita e à esquerda do corredor central, encontramos, por
entre paredes brancas marcadas pelas manchas de mãos e pés dos seus
utentes, uma correnteza de portas azuis, algumas delas com o(s) nome(s)
do(s) ocupante(s). Aqui os sons confundem-se, tornando-se muitas vezes
ensurdecedores.

Oito quartos do lado esquerdo e sete do lado direito possibilitam o inter-


namento de uma lotação máxima de 15 alunos, ainda assim, devido à ino-
peracionalidade do primeiro andar, durante o período de observação os
quartos foram recebendo duas camas cada, subindo assim a lotação para
um máximo de 30 alunos. De duas em duas portas, existe imediatamente
acima de uma delas um pequeno disjuntor eléctrico, a maior parte das
vezes já destapado, onde é frequente fazer-se o restart após mais uma
experiência electrotécnica falhada e o consequente curto-circuito.

Os quartos são ainda menores que as salas de aula, com um pé alto as-
sinalável, o roupeiro todo em alvenaria, a cama de ferro, a secretária, a
respectiva cadeira e a mesa de cabeceira - quase sempre adaptada a ban-
co alto - obrigam a uma ginástica tremenda para a colocação da segunda
cama, restando um mínimo corredor entre as camas, e o espaço estrita-
mente necessário para a abertura das portas do roupeiro. Frequentemente
um dos dois cobertores destinados a cada aluno encontra-se pendurado
na janela devido à fria ausência de alguns vidros aguardando substituição
eternamente. Aqui a decoração quase não tem regras, a lâmpada néon
acima da porta encontra-se usualmente pintada anarquicamente com

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

diferentes cores. Os motivos decorativos preferidos são: motos e carros


modificados; estrelas do rap americano; o sempre carismático Bob Mar-
ley nas suas inúmeras poses de charro na boca ou na mão; a bandeira da
Jamaica; a folha de cannabis; alguns motivos alusivos ao graffitti; e, quan-
do possível, em locais mais escondidos e aguardando a próxima vistoria
do Director, fotografias de mulheres semi-nuas ou mesmo integralmente
nuas75. Quanto a objectos pessoais dos alunos, os contrastes são varia-
dos de quarto para quarto, desde colecções de bonecos de peluche até
fotografias de familiares e namoradas passando sempre por persistentes
e barulhentas aparelhagens de som. Frequente é igualmente a coloca-
ção estratégica de caixas de sapatos (ténis usualmente) com as respec-
tivas marcas de prestígio bem à vista. Conforme o curso profissional que
estejam a frequentar é usual encontrar elementos decorativos fruto das
aprendizagens nessas aulas: trabalhos decorativos em madeira - como a
folha de cannabis ou os nomes dos seus ídolos -; inúmeras e arriscadas
montagens eléctricas, sendo as caixas de ligação virtuais, possibilitam
transformar um pequeno quarto numa autêntica discoteca: através de co-
lunas de todos os tamanhos e formatos, luzes de variadas cores e pitchs
incandescentes. Nem todos os quartos são assim, alguns são mantidos
na sua crua e nua aparência, numa clara estratégia de não integração do
e ao espaço.

Descrição dos primeiros quartos visitados:

Arranjado, com duas camas e um armário, com muitas fotografias cola-


das às paredes do Tupac e de outros ídolos do hip-hop e do rap. Chão de
tacos de madeira. Camas com edredões próprios do instituto, cortinas nas
janelas que têm vidrinhos muito pequenos exactamente no formato de gra-
deamento, muito resistentes e sem possibilidade de abertura, em cima há
uma ventilação tipo comboio, que abre para dentro. (Diário de Campo, 26
de Setembro de 2000).

Hoje frequentei mais quartos do que até ao presente, o que me parece


igualmente um sinal de, neste momento na unidade, já não haver zonas
‘vedadas’ à minha presença. Posso concluir que os mesmos são muito
semelhantes, com pouco espaço, duas camas (exceptuando dois ou três),
um armário e posters e recortes colados às paredes - essencialmente de
‘mulheres boas’, cantores rap (2pac o mais idolatrado tanto pelos ‘blacks’
como pelos ‘pulas’), carros, motos e (no caso de um pula) grandes viven-

75. O truque neste caso consiste em colar tais fotos na traseira das portas, uma vez que as
mesmas abrem para dentro, o que leva a que esses recortes fiquem fora do alcance de uma
possível vistoria rápida.

Hugo Martinez de Seabra


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das. Os vidros das janelas raramente estão todos no lugar, sendo frequente
existirem vidros que se tiram e voltam a pôr, por forma a que possam arejar
o quarto, essencialmente quando dentro deste se fuma. Outros vidros não
existem mesmo, o que não é factor de complicação durante o verão mas
com o inverno que se aproxima calculo que venha a constituir elemento de
discussão. Todos têm um painel próprio de cortiça, onde põem fotos ou re-
ferências a rapers, graffiti, etc... O Graffiti é também, mais para os ‘blacks’,
sem margem de dúvidas uma adoração destes jovens. (Diário de Campo,
30 de Setembro 2000)

Chegamos assim ao final deste único e grande corredor, que atravessa duas na-
ves. Na parede de fundo, pequenas janelas quadradas possibilitam vislumbrar o
que vai ocorrendo na escola de guardas prisionais, situada ao lado do colégio.

2. Actividades Desenvolvidas

Resumidamente, para além da formação escolar (1º a 3º ciclos), o colégio


desenvolve ainda quatro acções de formação pré-profissional (madeiras,
electricidade, cerâmica e jardinagem) e um curso de competências psi-
co-sociais76. O desporto é incentivado através de duas aulas semanais de
ginástica e três sessões de capoeira.
As actividades extra-escolares são igualmente uma constante em tempo
de férias - passeios, idas à praia, a museus, ao teatro e ao cinema -, res-
tringindo-se a um dia do fim-de-semana em tempo de aulas - resumindo-
se quase sempre a passeios e à ida ao cinema.

3. Funcionários

Nesta secção o pessoal administrativo não será incluído, assim, cingir-


nos-emos a referir os funcionários imediatamente em contacto com os
alunos:

I. Equipa educativa - quatro professoras; uma licenciada pela Facul-


dade de Motricidade Humana (competências psico-sociais) e uma
coordenadora da área da educação;
II. Equipa técnico-profissional - um mestre para cada uma das áreas
- carpinteiro, ceramista, jardineiro e electricista;
III. Psicólogo - uma vez por semana um psicólogo consultava os alu-
nos;

76. A avaliação positiva da presença e do bom comportamento dos alunos nestes cursos resulta
no final de cada mês num prémio financeiro como forma de incentivo.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

IV. Técnicos superiores de reinserção social - à data da investigação


esta tarefa estava destinada a apenas uma técnica com formação
na área da psicologia, claramente insuficiente para o universo em
causa. Em janeiro de 2001, após o trabalho de campo, entraram
mais 3 técnicas superiores (sinal evidente do desajuste existen-
te);
V. Técnicos profissionais de reinserção social - alternando por turnos,
de 6 horas, com nunca mais que três ‘monitores’, existiam cerca
de 12 técnicos profissionais, todos do sexo masculino, metade dos
quais negros77. Igualmente em Janeiro do ano seguinte, cerca de
15 novos ‘monitores’ foram colocados nesta unidade, possibilitan-
do a criação de turnos permanentes de 3 ou 4 técnicos78;
VI. Mestre de Capoeira - Todas as terças e quintas-feiras à noite e
sábados à tarde, funcionavam aulas de capoeira;
VII. Governanta - durante a manhã e parte da tarde existia uma go-
vernanta que auxiliava na coordenação das limpezas e nas primei-
ras refeições do dia;
VIII. Recluso em sistema RAVE79- diariamente deslocava-se à unida-
de, num horário laboral normal, para proceder a algumas limpe-
zas e em apoio na copa;
IX. Existiam ainda, contratados pelo Colégio, turnos de dois segu-
ranças privados controlando as entradas e saídas do espaço re-
servado ao mesmo.

Na sequência do denominado ‘verão quente’ de 2000, o Ministro da Justi-


ça ordenou que todos os CAEF tivessem polícias a patrulhá-los. Existiam
assim turnos de dois polícias da PSP permanentemente a ‘guardarem’ o
colégio80.

77. Um deles ex-aluno do Colégio.


78. De acordo com os requisitos solicitados no concurso aberto em Setembro para o recru-
tamento de técnicos (superiores e profissionais) para o IRS, estes novos monitores, entrados
em Janeiro de 2001, são maioritariamente negros, alguns, por sinal já conhecedores, como
utentes, dos CAEF. Simultaneamente, implementa-se a experiência, até então nunca feita, de
colocar técnicas profissionais femininas a monitorar estes jovens.
79. Regime Aberto Virado para o Exterior.
80. Medida claramente contraproducente na óptica da reinserção social dos menores interna-
dos. Uma vez que estes tinham consciência de que a polícia ali se encontrava para evitar possí-
veis fugas e não para os proteger, nunca deixaram de a ver como um inimigo próximo.

Hugo Martinez de Seabra


117
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4. Menores Institucionalizados

A volatilidade é uma característica deste universo. A grande maioria dos


internados permaneceu na unidade durante toda a observação, ainda as-
sim houve regressos a casa, transferências, fugas e capturas neste perí-
odo. Durante o trabalho de campo passaram assim pelo Colégio cerca de
38 alunos, dois dos quais em trânsito para outros CAEF, um outro apenas
pernoitou, tendo sido levado pelos pais no dia seguinte.

Relembramos que em termos de género, este é um colégio apenas destina-


do a menores do sexo masculino. Três alunos encontravam-se internados
devido a clara situação de vitimação. Outros existiam que, tendo entrado em
contacto com o IRS como vítimas, mais tarde, fruto do efeito de contágio re-
sultante do internamento conjunto com agentes infractores, foram objecto
de processos judiciais - sendo a sua passagem pelo IRS a charneira ritual
para se tornarem, e serem percepcionados como, delinquentes.
Será o universo dos delinquentes existentes entre 8 e 15 de Dezembro81
que a seguinte caracterização analisará. Tratam-se de 24 internados, to-
dos com historial de delinquência juvenil, no entanto, nem todos entraram
nos CAEF devido a tal situação, sendo para alguns os seus processos judi-
ciais posteriores ao contacto com o IRS82. Uma vez que este valor absoluto
é extremamente reduzido para a produção de estatísticas mais elabora-
das, procederemos a esta análise baseados em cálculos meramente des-
critivos (percentagens, médias, etc.).

Sendo a componente etnicidade uma variável central do presente estu-


do, será igualmente a primeira a ser aprofundada. Conforme é defendido
na metodologia, optámos por tipificar os termos específicos utilizados no
universo de estudo, ou seja, black– negro português ou de nacionalidade
estrangeira83– e pula - português branco.

81. Datas seleccionadas para a aplicação de um pequeno questionário de caracterização so-


ciográfica.
82. Assim sendo, daqui em diante sempre que se referirem menores institucionalizados, es-
taremos a cingir-nos a este grupo de 24 menores internados em consequência de actos quali-
ficados como infracção penal.
83. Todos os jovens classificados no grupo dos blacks autoclassificaram-se como tal.

Estudo de Jovens em Reinserção


118
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Podemos constatar que à data se verificava um equilíbrio entre internados


blacks e pulas, sendo os primeiros a maioria por um indivíduo. Na catego-
ria Ciganos existia um único aluno.

Estando este longe de ser o melhor universo para produzir extrapolações,


parece-nos, ainda assim, que a realidade atrás descrita comparada com
a sociedade Portuguesa, empola significativamente a componente relativa
aos descendentes de imigrantes africanos. Foi-nos partilhado por funcio-
nários e técnicos do Colégio que os restantes CAEF a servirem a Área
Metropolitana de Lisboa (AML) há alguns anos mantêm sempre um seme-
lhante equilíbrio entre ‘blacks’ e ‘pulas’, não sendo assim anormal a situa-
ção observada. A falta de dados estatísticos deste cariz, impossibilita-nos
procedermos a comparações ou extrapolações com outros CAEF ou mes-
mo outras instituições de controlo social (por exemplo, as prisões).

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Como seria de esperar, a nacionalidade Portuguesa é claramente do-


minante (pouco mais de 70% dos menores institucionalizados). Surpre-
endente, a nosso ver, é o peso detido pelas categorias relativas a outras
nacionalidades, todas de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP), indo o destaque para a nacionalidade Cabo-verdiana com 21%,
havendo ainda um Angolano e um Moçambicano.

Cruzemos agora as duas variáveis84:

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Cingindo-nos à análise da coluna da direita. Detectamos que junto dos


‘blacks’ existe um número superior de menores com nacionalidade es-
trangeira relativamente à Portuguesa. Ainda assim, os 41,6% desta úl-
tima não são minimamente negligenciáveis uma vez que esses são os
que usualmente se perdem numa análise estatística baseada apenas na
nacionalidade dos envolvidos. Não sendo intenção extrapolar, verificamos
que mesmo num universo bastante reduzido, como o presentemente em
estudo, este grupo de ‘blacks’ com nacionalidade portuguesa é verdadei-
ramente significativo.

84. Excluiremos de ora em diante, sempre que tal se justifique, a etnia cigana, uma vez que
sendo apenas um indivíduo ficaria comprometida a protecção dos seus dados pessoais.

Estudo de Jovens em Reinserção


120
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Vejamos então quais os locais de nascimento dos menores em estudo:

Pulas Blacks

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Novamente concentrando a nossa atenção na coluna da direita, verifica-


mos que a maioria dos ‘blacks’ pertence à usual e erroneamente denomi-
nada ‘segunda geração’ de imigrantes africanos em Portugal (58,3%). No
que se refere ao local de nascimento, Cabo-Verde é novamente o país de
origem mais representado. Por último, no grupo de três países com um
indivíduo cada surge agora a Guiné-Bissau, para além dos já detectados
Angola e Moçambique.

Cruzando a nacionalidade com o local de nascimento dos menores em


estudo, verificamos a essência da legislação da nacionalidade jus sangui-
ni, de entre os 5 indivíduos com nacionalidade cabo-verdiana 3 nasceram
já em Portugal. O único menor nascido na Guiné-Bissau tem por sua vez
nacionalidade Portuguesa. Tanto o Angolano como o Moçambicano nas-
ceram nesses países e têm a respectiva nacionalidade. Foi-nos ainda re-
ferido por responsáveis do Colégio que alguns destes menores poderão
legalmente optar pela nacionalidade Portuguesa, visto terem nascido em
solo nacional e os seus pais residirem (à data do mesmo) legalmente em
Portugal há mais de seis anos.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Vejamos agora quais as idades dos menores internados neste Colégio:

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

É entre os 15 e os 16 anos que encontramos o maior contingente de me-


nores institucionalizados. No entanto, não são negligenciáveis os valores
relativos às idades mais jovens, dois indivíduos com 13 anos e três com 14
anos.

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Do Gráfico apresentado constata-se que para os ‘pulas’ o grupo modal são


os 15 anos, ao passo que para os ‘blacks’ são os 16 anos. Sendo a média
geral de 15 anos e quatro meses verificamos que há mais ‘blacks’ com
idades acima da média que ‘pulas’.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Existe um grande equilíbrio entre o número de frequentadores do 2º e 3º


Ciclos. No 1º ciclo encontramos apenas 3 menores, sendo de destacar que
dois deles têm 17 anos.

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Uma distribuição bastante desigual entre ‘blacks’ e ‘pulas’ é detectada no


gráfico relativo à sua escolaridade. Conclui-se, relativamente ao universo
em estudo, que a grande maioria dos primeiros frequenta o 3º ciclo, ao
passo que no caso dos segundos, estes predominam no 2º ciclo. Fruto
da constante volatilidade do universo do CAEF em estudo, e da reduzida
dimensão do mesmo, não nos é possível aprofundar esta questão no que
toca às aparentes melhores performances escolares dos ‘blacks’.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Submetidos à questão relativa à presença em outros Colégios do IRS antes


do seu internamento no observado, um quarto do universo em estudo refe-
riu ser este o primeiro CAEF com que contacta. Por sua vez, 12 alunos (50%)
passaram antes por uma outra instituição. Para a grande maioria destes
casos o Colégio em causa foi o COAS, uma espécie de casa de transição.

Digno de destaque é o facto de um quarto destes alunos (6 casos) ter pas-


sado anteriormente por mais de um outro colégio, não revelando grande
estabilidade num processo que deveria caracterizar-se, visando uma po-
sitiva integração, por uma rápida criação de afinidades e empatias entre
jovem internado, restantes colegas, funcionários e espaço envolvente.

Não surgem grandes diferenças cruzando este mesmo indicador com as


categorias culturais, realçando-se apenas a presença de mais ‘blacks’ na
categoria Este Colégio mais 2 (3 ‘blacks’ para 1 pula).

Seguidamente analisaremos há quanto tempo os menores se encontra-


vam institucionalizados, medido em meses85.

85. Por opções de cariz metodológico constituíram-se 4 intervalos de meses: [1-6]; ]6-12]; ]12-
24]; ]24 +].

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Se uma presença em internamento até um ano nos parece, à luz dos pro-
pósitos de reinserção social, aceitável, a existência de menores institu-
cionalizados há mais de 12 meses e, entre estes, 4 alunos há mais de 2
anos, aparenta incumprimento das metas estabelecidas de reintegração e
ressocialização para uma vida normal em sociedade.

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Cruzando o número de meses internados pela categoria cultural da po-


pulação em estudo constatam-se algumas diferenças acentuadas. Se a
maior parte dos menores se encontra nos dois primeiros grupos (7 no
caso dos ‘pulas’ e 6 no caso dos ‘blacks’) é nos seguintes que as dispa-
ridades se acentuam. A categoria 12 a 24 meses é claramente dominada

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

por ‘blacks’ (4 indivíduos para 1), ao passo que na mais dilatada no tempo
encontramos a situação oposta (3 ‘pulas’ para 1 black).

Realce-se ainda que, sem nos ter sido possível quantificar, uma parte sig-
nificativa dos menores institucionalizados, à data de realização do estudo,
encontrava-se com o seu processo a correr em Tribunal, i.e., estavam reti-
dos no Colégio para observação ou com observação concluída aguardando
decisão. Existindo mesmo menores há mais de um ano nesta situação, algo
que contraria todas as directivas legais nacionais e internacionais quanto à
celeridade processual obrigatoriamente necessária nesta jurisdição.

Esta última situação não destoa com o detectado pelo OPJ relativamente
a estas questões:

“A desproporção entre as decisões de observação e as medidas de coloca-


ção/internamento aplicadas tem vindo a agravar-se ao longo dos anos, de
tal maneira que, nos anos de 1995 e 1996, só pouco mais de metade dos
menores observados foram objecto de medidas que exigem tal diligência
processual.” (OPJ, 1998, p.183)

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

Por último, analisaremos o local de residência dos menores instituciona-


lizados. Indo ao encontro das directivas do IRS e da OTM a grande maioria
dos menores existentes provém de locais relativamente próximos do Colé-
gio, por forma a facilitar o contacto com a família e manter alguma ligação
ao local de origem86. Nessa sequência, a Área Metropolitana de Lisboa (in-
86. Ainda assim, foram-nos reveladas experiências negativas com o internamento de jovens prove-
nientes de bairros muito próximos ao Colégio, pois as fugas e respectivo auxílio eram frequentes.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

cluindo o Distrito de Setúbal) surge como o principal local de origem. Pela


negativa, destacam-se dois indivíduos do Norte (Porto e Aveiro) e o mesmo
número de menores oriundos da Ilha da Madeira, claramente afastados
dos seus elos familiares e geográficos. Realce-se ainda, a zona do Algarve
com o segundo maior contigente.

Local de Residência dos Menores Institucionalizados

Fonte: Questionário aplicado entre 8 e 15 de Dezembro 2000

O destaque do gráfico anteriormente reproduzido vai para a oposição


existente relativamente aos locais de origem dos menores. Não fugindo
à bastante estudada estratégia de fixação na capital e suas redondezas
de populações imigrantes dos PALOP, constata-se que todos os ‘blacks’
à excepção de um são oriundos da AML, essencialmente dos subúrbios
(Cacém, Loures, Almada, Setúbal,...). No que se refere aos ‘pulas’ as suas
origens geográficas são díspares, com uma mínima superioridade para
Lisboa.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

VII - CONSTRUIR, DESCONSTRUIR E RECONSTRUIR DISCURSOS

“... espera-se que alguns jovens em grupo negoceiem definições que se


encontram em conflito com as dos adultos e, também, com as da lei.”
(Karem Heimer, 1995; p.148)

Neste capítulo iniciamos a análise do discurso produzido pelos agentes


observados ao longo do trabalho de terreno. A falsidade e o empolamento
estarão certamente presentes em alguns dos excertos de entrevistas se-
leccionados. É, no entanto, a consciência da sua existência que possibilita
um enfoque mais cuidadoso nestas temáticas, não os assumindo e trans-
mitindo como ‘realidades inquestionáveis’ - como é apanágio de alguns
mass media -, mas sim como o ‘discurso produzido’ por estes jovens. Dis-
curso este que transmite as suas maneiras de agir, pensar e sentir, cons-
truído com base em referenciais identitários frequentemente distintos dos
da maioria da juventude portuguesa.

A assunção e a procura da pertença à margem possibilita a estas crian-


ças e a estes jovens construírem um discurso identitário do eu e do nós
interiorizado como coerente e próprio da sua ‘condição’. Mais do que a
cor da pele, essa ‘condição’ passa pela situação social de pobreza, isola-
mento familiar, ausência de elementos referenciais escolares, religiosos,
inclusivamente emotivos, produzindo um discurso quase uniforme onde
tanto os ‘blacks’ como os ‘pulas’ que se revêm nessa condição marginal
se refugiam através da legitimação de um discurso unitário, coerente e,
frequentemente, vitimizante.

A presença no terreno durante dois meses e meio até à aplicação das en-
trevistas possibilitou a tomada de consciência, por parte do investigador,
de que a condição marginal vai muito para além de uma questão de ‘cor
da pele’. Desta forma foram inquiridos ‘blacks’ e ‘pulas’. Assim, serão uti-
lizados excertos de todas as entrevistas realizadas, pois o cruzamento dos
discursos produzidos pelos dois grupos apresenta-se-nos como central
na avaliação da existência, ou não, de grandes disparidades ou oposições
nas suas maneiras de agir, pensar e sentir.

Conforme mencionado no capítulo metodológico, foram diversas as téc-


nicas utilizadas para recolha de informação no CAEF: diário de campo,
entrevistas, inquérito por questionário e análise de letras de músicas rap
escritas pelos próprios. Procuraremos explorar, com o auxílio dessa infor-
mação compilada, o conhecimento relativo às práticas delinquentes de-

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

senvolvidas por estes jovens, e, igualmente, às lógicas legitimadoras tal


como elas são reproduzidas em discurso.

Estudos de carácter científico, nacionais ou estrangeiros, relativos às te-


máticas apresentadas, serão ocasionalmente referenciados por forma a
proceder a um melhor enquadramento dos elementos em estudo.

Debruçar-nos-emos inicialmente sobre aquele que nos parece ser o tripé


central deste estudo: Família; Escola; Bairro, tendo sempre em conta o auto-
posicionamento na estrutura de classes. Seguidamente analisaremos mais
em detalhe as próprias práticas delinquentes, com especial enfoque para o
desenvolvimento do que Becker denomina de ‘carreira desviante’ (Becker,
1985; Sampson e Laub, 1990). Por último, procuraremos aprofundar o su-
porte de carácter ideológico, manifesto através do discurso dos próprios,
para as suas práticas diárias, concedendo especial atenção às influências
culturais referidas, igualmente categorizáveis em três expressões: cultura
portuguesa; cultura africana; cultura afro-americana.

A - ‘Instituições Sociais Totais’ - Sua Apropriação e Adaptabilidade

Dois tipos de socialização são apresentados pela sociologia. A socializa-


ção primária, característica do ambiente familiar onde a criança cresce,
sendo-lhe incutidos nesse processo valores básicos de comportamento
familiar e orientações morais; e a socialização secundária, onde assume
particular importância o sistema escolar, e onde se visa, entre outros ob-
jectivos, o ensinamento de regras de conduta e integração na sociedade. O
bairro, a vizinhança e os grupos de amigos têm igualmente papel influente
nesta socialização secundária. Frequentemente, todos estes elementos
conseguem coerentemente articular-se no mesmo sentido, o problema
poderá surgir quando emergem dissonâncias entre os valores transmiti-
dos pelas instâncias acima identificadas – família e escola, por um lado, e
bairro e grupo de amigos, por outro.
O discurso produzido pelos jovens alvo deste estudo relativamente a es-
tas instâncias socializadoras revela uma coerência própria, assente numa
lógica quase oposta à da sociedade mainstream, onde todos os elemen-
tos se integram e conjugam, ainda assim, pela negativa. Como veremos
seguidamente, a família encontra-se imbuída de situações ‘patológicas’;
a escola nada ensina, transformando-se num local propício ao início das
práticas delinquentes; e o bairro, através do grupo de amigos aí constituí-
do, possibilita o discurso legitimador do desvio como espaço positivo e de
afirmação das identidades pessoal e grupal não atingíveis por outra via.

Hugo Martinez de Seabra


129
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Desta forma, as instâncias socializadoras, ao invés de contribuírem para


a socialização pretendida num modelo coerente de integração pela ‘nor-
malidade’ na sociedade, favorecem, em virtude de circunstâncias várias
de que falaremos adiante, uma integração pelo desvio, sendo apropriadas
e instrumentalizadas por estes jovens, moldadas à sua própria integração
societal, atribuindo-lhes novos significados e propósitos.

1. Classe Social

Embora não apresentada discursivamente nestes termos, a estrutura de


classes afigura-se como elemento central do discurso destes jovens. A
ligação do factor pobreza à oposição dreads/betinhos (J. Sebastião, 1998)
torna-se exemplificativa do processo de moldagem a que estes conceitos
são sujeitos, articulando um discurso coerente.

Usualmente, o discurso dos filhos de imigrantes africanos relativamen-


te à oposição ricos/pobres projecta uma separação através do factor cor
da pele, onde o branco - ‘pula’ - se encontra sempre numa posição de
superioridade relativamente ao negro - ‘black’. Ao pula rico encontra-se
sempre associada a categoria de bétinho, o alvo preferido destes jovens,
que, ainda assim, não está isento da prática de actos considerados delin-
quentes.

E - Bétinho, o qu’é que é um bétinho? Os bétinhos não roubam?


13 - Roubam!
4 - Não bétinhos são tipo aqueles gajos que ..., é tipo aqueles pulas, que só
querem escola, só querem escola, casa, casa-escola, e não sei quê, ...
16 - São os meninos da mãmã!
4 - Depois os pais vão buscar na escola, de carrinho e não sei quê ...
16 - São uns meninos mimados que têm tudo, que têm direito a mais qu’um
gajo ...
E - Mas é só pulas?
4 - Não, blacks também ...
16 - Blacks também, mas a maioria é pulas!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

O reconhecimento da existência de bétinhos blacks revela a não exclusivi-


dade desta dicotomia rico/pobre como sinónimo de branco/preto, embora
discursivamente se procure afirmar como inquestionável essa partição.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Em paralelo e em consonância com os resultados do estudo relativo a de-


linquência auto-revelada realizado por Gersão e Lisboa (1994) verifica-se
no discurso destes jovens a generalização das práticas desviantes a todos
os estratos sociais (ver igualmente John Braithwaite, 1981).

4 - Já vi gajos bétinhos me’mo na minha escola, me’mo que roubavam,


agora quando tive de fim-de-semana, que vim só na segunda-feira, fui à
escola dos gajos, fodasse, já fumam charros, cabelos grandes e o caralho,
metálicas e quê ... Os gajos tam’ém dizem assim, -”Eu acho que bétinhos
são aqueles que vão à escola, que vão às aulas e não sei quê, que os pais
vão buscar na escola, e não sei quê, de carrinho...”
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Esta situação apresenta-se para os nossos interlocutores como uma evo-


lução e generalização das práticas desviantes iniciadas da margem para o
centro, ou seja, dos mais necessitados - blacks - para os mais desafoga-
dos economicamente - pulas. Sendo os primeiros os pioneiros de deter-
minadas condutas que, com o tempo, se vão afirmando como positivas e,
assemelhando-se ao processo de transmissão da moda (E. Goblot, 1967),
se vão generalizando aos demais. Este facto é particularmente verificável
no que se refere à indumentária utilizada.

E - O qu’é qu’é um bétinho p’a vocês?


14 - Um bétinho p’a mim é aquele qu’usa sapatinho Rockport, calça da El
Charro, camisinha da Uniform, é tudo, isso é qu’é um béto. Béto é aque-
les ... Os bétos também andam em grupo, não é só as pessoas como nós
qu’andam em grupo, os bétos também andam em grupo, e dá p’ra reco-
nhecer bem um béto de uma pessoa normal. Tipo se vires assim, gajos
com calças largas de fato de treino e não sei quê cheias de fios de ouro,
pensam logo qu’aquilo é um gang. Agora se virem um grupo de bétinhos,
é um grupo de bétinhos, dá logo p’a ver qu’é um grupo de bétinhos. É uma
maneira de vestir!
E - Então ‘pera aí! É uma maneira de vestir, então e se eu disser agora,
o meu sobrinho, tem 11 anos, quer se vestir à dread, calças largas, ténis
como vocês usam não sei quê, não sei que mais ... Qu’é que tu dirias, qu’o
meu sobrinho é o quê?
14 - É um powser!
E - O qu’é qu’é um powser?
14 - É vestir d’uma maneira que não sabe o qu’é que está a vestir. Ou cada
uma pessoa que se veste assim, por exemplo, eu podia vestir-me d’outra
maneira, eu já me vesti d’outra maneira, mas tipo a personalidade d’uma
pessoa é que ‘tá a fazer qu’ele se vista assim. Cada pessoa afirma a sua
personalidade pelo aquilo que veste, não é cada pessoa que passa por ali:

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

-”Olha tu és assim, porque usas calças largas és assim!”


(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Esta reprodução por parte dos bétinhos de determinadas práticas iniciadas


por blacks, que se nos afigura como um processo de difusão de moda (E.
Goblot, 1967), da periferia para o centro, é interpretada como um processo
de simples cópia sem incorporação do significado dos elementos em cau-
sa. Atribuem-lhe, assim, um significado negativo que se traduz num termo
pejorativo para designar aqueles que copiam sem questionar: powsers87.

Tendo presente o discurso auto-posicionado nas classes sociais baixas


e sendo impossível averiguar qual a situação social de proveniência dos
jovens observados, procurámos, através da inquirição das profissões dos
pais, aprofundar essa associação. Embora este indicador se afigure de-
masiado simplista, sendo necessário cruzá-lo com outros não incluídos
no questionário aplicado, possibilita-nos uma aproximação ao posiciona-
mento de classe dos jovens.

No geral, confirma-se a existência maioritária de ocupações pouco qua-


lificadas e típicas das classes sociais mais baixas. As excepções são três
enfermeiros (dois pais e uma mãe, todos blacks), um arquitecto (pai pula)
e uma advogada (mãe black). De resto, as domésticas (quatro pulas e três
blacks) e as empregadas de limpeza (duas em ambos) encontram-se em
maioria no que toca às ocupações das mães. Do lado dos pais, os empre-
gos relacionados com a construção civil são claramente maioritários (sete
blacks e três pulas). Por último, é de referir que, por um lado, foram ainda
alguns os casos de não respostas resultantes do desconhecimento das
profissões dos pais (em maior número no caso dos blacks) e, por outro,
que na categoria desempregados os cinco casos (duas mães e três pais)
são relativos a pais pulas.
Embora insuficiente para uma caracterização sociológica, o exercício aci-
ma efectuado possibilita-nos confirmar a existência de ocupações dos pais
dos menores inquiridos características dos estratos sociais mais baixos.

Redireccionando o discurso para a situação de institucionalização, emer-


gem associadas à figura do bétinho, as imagens do desafogo económico,
frequentemente referido como essencial para accionar mecanismos que
evitem o ‘internato’.

87. Esta questão será novamente desenvolvida na secção relativa às modas (indumentária e
referências musicais) adoptadas pelos jovens em estudo.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Qual é que é a tua opinião sobre os jovens pulas assim de classe média,
assim tipo ... achas que os gajos também fazem fezadas, ou não?
6 - Todos fazem hoje em dia.
E - Então porque é que ... aqui no Colégio eu acho que só há praticamente
pessoal pobre, porque é que achas que os outros não vêm aqui parar?
6 - Então, porque têm dinheiro não precisam de ‘tar a roubar, é só pedir e
o papá compra, a mamã compra. Enquanto os outros não, os outros têm
que arranjar uma maneira que é p’a ter, não podem ficar a morrer de fome
e de desgosto.
E - Tu já passaste fome?
6 - (Acena a cabeça a dizer que sim)
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - ‘Tás a ouvir ó Silva, tu achas que o pessoal com mais guito, me’mo que
faça estrilho não vem aqui parar?
8 - Eu acho que sim!
7 - Conforme, conforme, se tiver um bom advogado!
12 - Eu conheço, eu conheço: O pai dele, o pai dele era juiz a mãe era juíza
e o gajo era um g’anda bandido, e entretanto nunca foi parar a nenhum
colégio, nunca foi parar e os pais estavam sempre a defendê-lo!
7 - Oh, basta ter dinheiro p’ra um bom advogado!
12 - Um advogado, olha o pai era juíz e a mãe era juíza, o gajo abusava, mas
abusava me’mo, passava dos limites. Ia p’rá esquadra: -”Ah o meu pai é
Juíz!”; -”Vai-te, vai-te lá embora!”
E - E achas bem?
12 - Eu acho que não, eu acho que devia ser tal e qual como nós!
9 - Mas se fosse contigo também gostavas que fosse assim?
12 - Não é bem assim, não é bem assim. O qu’é que tu és a mais do
qu’eu?
9 - Nada!
12 - Então, não tinhas nada que ganhar mais do qu’eu!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 8 – Pula, 13 anos, Lisboa; 9 – Pula, 14 anos, Norte;
12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Conforme se pode concluir dos excertos a família reveste-se, no discursos


destes jovens, de um papel central e fundamental no definir das suas tra-
jectórias passada, presente e futura.

Hugo Martinez de Seabra


133
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

2. Família88

Mamã meteu-o fora de casa


Foi para a rua da amargura
Viver uma vida insegura
No meio da droga dura
Jovem silenciosamente dormindo
Nos becos do Intendente89

Para além da forte ligação emocional à figura materna, o discurso destes


jovens, relativamente ao seu meio familiar, caracteriza-se por frequentes
referências a situações de ‘desregulação’, de ausência e de violência, por
vezes associada a comportamentos aditivos, levando, em alguns casos, à
fuga destes jovens de casa dos pais.

2.1 ‘Desregulação’ das famílias de origem dos menores delinquentes

Esta ‘desregulação’ das famílias dos menores entrevistados é definida por re-
lação a uma família tipo, de raiz burguesa90, e manifesta-se através do elevado
número de situações relatadas de pais divorciados, famílias monoparentais,
famílias onde um dos progenitores é desconhecido, famílias numerosas, etc.

Do inquérito por questionário aplicado podemos concluir que onze dos


vinte e quatro jovens inquiridos vivem com ambos os pais e com irmãos,
sendo aqui maioritário o grupo dos blacks com seis situações. A viver com
a mãe e um padrasto encontravam-se três jovens, dois deles pulas e um
black. Um pula e um black vivem com outros parentes que não os pais.
Existe ainda um pula que desconhece por completo a sua origem familiar.
Por último, a viver apenas com um dos progenitores encontramos sete
situações, 6 das quais relativas a blacks. Destes sete apenas um caso
(black) vive com o pai, todos os restantes jovens afirmam viver com as
respectivas mães.

88. Para um aprofundamento da influência da família no comportamento anti-social dos jovens


ver compilação de artigos editada por António Castro Fonseca (2002), Comportamento Anti-So-
cial e Família. Uma abordagem científica, Almedina, Coimbra, Outubro de 2002.
89. Excertos de letras rap serão utilizados no início e final de algumas secções deste capítulo.
90. Para um aprofundamento desta questão ver: Ana Nunes de Almeida e Karin Wall (1995), “A
Família”, Portugal Hoje, Instituto Nacional de Administração, Lisboa, pp. 33-53; Manuel Jacinto
Sarmento (1999), “Percursos de exclusão e de inclusão social das gerações jovens”, in Infância
e Juventude, nº2/99 Abril-Junho, pp. 47-68 e Maria A. Villas-Boas (1992), “Envolvimento das
Famílias na educação dos seus filhos”, in Documentos do encontro ‘A Comunidade Africana em
Portugal’, Colecção Actas e Colóquios, Colibri, Lisboa, pp. 91-96.

Estudo de Jovens em Reinserção


134
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

As disparidades em termos de estruturas familiares entre pulas e blacks


do universo observado não se afiguram acentuadas. Realce-se a existên-
cia de um elevado número de jovens que provêm de tipologias de famílias
distintas da nuclear - os dois progenitores e o(s) filho(s) - 54,2%, revelando
a tal preponderância de outras formas de família.

1 - (...) vou contar a minha vida toda, agora eu vou contar! A gente
chegava a roubar, a gente roubava, um amigo meu roubou um reló-
gio a um puto, os bófias foram lá a minha casa, eu não tinha nada a
ver com isso, mas eu estava lá junto, também roubei algum ao meu
pai, levei logo uma cascada, tive que dar o nome à PSP, então depois,
passado uns meses, a minha mãe faleceu, mais cenas tristes para a
família, o meu pai está com outra senhora e com outro dread, fica-
mos assim tristes. Agora eu estou aqui, nesta porra fechado, parece
que estou no hospital dos malucos ...
(1 – Black, 16 anos, Setúbal)

2 - Eu também desde puto que só vivi com a minha mãe, o meu


pai nunca me ligou, está na Madeira e está na boa vida com outra
mulher e não me liga. Eu e a minha irmã mais velha para ele não
significamos nada, acho que isso é mal!
E - Então achas que também há factores familiares aqui envolvidos, famí-
lias que de certa forma não funcionam como deve ser que levam a que ...
2 - Yá! A minha mãe sozinha não conseguia meter mão a mim e à
minha irmã juntos.
(2 – Pula, 16 anos, Algarve)

13 - (...) Andava lá em cima na Bela Vista quando fiz aquelas coisas


que vim parar ao Colégio, depois a minha mãe mandou-me p’ra ao
pé dela. A minha mãe já se tinha separado do meu pai há alguns
anos. Mudou-me p’ró pé dela, depois falava com ela, falava sempre
abertamente com a minha mãe, a minha mãe dizia-me as horas p’ra
eu estar em casa, eu nunca estava, chegava sempre mais tarde. Lá
em baixo conheci outros amigos, não eram grandes amigos tam-
bém, né?
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Para além da existência de elementos considerados disruptores no seio


das famílias destes jovens, como a ausência de uma das figuras parentais
e a existência de padrastos ou madrastas que concorrem com os filhos na
atenção dos pais e aos quais não se reconhece autoridade, encontramos

Hugo Martinez de Seabra


135
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

igualmente situações de famílias numerosas, o que agrava a possibilidade


de dedicação e controlo paternal.

2.2 Dinâmicas demográficas

As dinâmicas demográficas, e particularmente a reprodução em idade


pré-adulta junto dos filhos de imigrantes africanos91, são apontadas, pelos
próprios, como uma das causas para o diminuto envolvimento emocional
dos pais com os filhos e o fraco investimento económico nos mesmos.
Daí, explicam, a maior propensão para as vias alternativas de procura de
obtenção de recursos.

A oposição entre blacks e pulas nesta matéria é central no discurso dos


jovens entrevistados, associando-se aos segundos famílias pouco nume-
rosas, e aos primeiros a existência de inúmeros filhos.

4 - (...) os brancos, os pulas têm pelo menos um ou dois filhos, os pretos


não, os de cor não, é logo oito, dez, ‘tá a ver? Uma mãe com oito filhos, ou
..., por exemplo, eu tenho sete irmãos, comigo faz oito. Imagina lá, uma
pessoa, uma mãe e um pai com oito filhos, p’a comprar um ténis de marca
que custa 10 contos ou 15, p’a oito pessoas, isso é impossível. Agora há os
bétinhos, que são um ou dois irmãos, ou filho único, o filho único sempre
tem aquela oportunidade de ser bétinho! Então s’eu tivesse me’mo aquela
oportunidade de ter me’mo tudo o qu’eu queria era um g’anda bétinho!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

13 - Por exemplo, na minha família nunca tive muita sorte, né? O meu irmão,
o meu irmão começou a róbar por causa do meu pai e o meu pai batia-lhe,
né? Porquê? Porque o meu pai, o meu pai tinha possibilidades p’a dar uns
ténis ao meu irmão mas não dava, porquê? Porque o meu irmão portava-se
mal. Porquê que o meu irmão portava-se mal? Porque tinha raiva do meu
pai, né? Por exemplo, nós somos três irmãos, aquela que já morreu, a mi-
nha irmã mais velha, o x e eu. Depois do outro lado tem a y, o w e a k. Estes
estudaram, assim mais calmos, assim tipo bétinhos ‘tás a ver?
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)
91. Ver David Justino et al.(1998), “Children of immigrants: a situation in flux between ten-
sion and integration” in Metropolis International Workshop, proceedings, Metropolis, Funda-
ção Luso-Americana para o Desenvolvimento, Lisboa, Setembro de 1998, pp. 273-304; Heloísa
Perista (1996), “Imigrantes e minorias étnicas em bairros degradados de Lisboa”, in Imigran-
tes um desafio Ético, Colecção Reflexão Cristã; Maio/Agosto 1996, Lisboa, p.65 e Tony Waters
(1999), Crime and Immigrant Youth, Sage Publications. Relativamente à temática da gravidez na
adolescência ver igualmente Clea Sucoff e Dawn M. Upchurch (1998), “Neighbourhood context
and the risk of childbearing among metropolitan-area black adolescents”, in American Sociolo-
gical Review, Volume 63, Agosto 1998, pp. 571-585.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Tens irmãos Vieira?


16 - Tenho um aqui, em Portugal só tenho um. Na minha terra tenho treze!
E - Mas dos me’mos pais ou de pais diferentes?
16 - Não, só do pai, só da parte do pai!
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

O inquérito por questionário confirma a existência de famílias numerosas


junto dos jovens inquiridos, generalizando-se esse facto, indiferentemen-
te, a todos os presentes. Mais do que um fenómeno com bases ‘raciais’
ou étnicas, este aparenta ser um fenómeno característico da (sub)classe
social de origem.

Com quatro ou mais irmãos encontramos dezoito dos vinte e quatro casos
existentes, sendo onze representados por blacks, onde o valor máximo ve-
rificado é o de nove irmãos. Os pulas (três em cinco) são mais numerosos
nas famílias com menos de quatro filhos.

2.3 Presença diária de dependências, violência e crime

13 - O meu pai, a maioria das vezes não dormia em casa, a minha avó
quase não saía da cama, não conseguia estava já doente, os meus irmãos,
a minha irmã casou-se. O meu pai saía de manhã ia trabalhar, saía do
trabalho não vinha p’ra casa ia logo directo p’ó café beber, chegava a casa
bêbado caía no sofá, nem sequer reparava s’eu ‘tava vivo ou se ‘tava morto.
Só assim quando me chamava é que reparava qu’eu não ‘tava em casa, só
quando me chamava p’a eu lhe ir fazer umas massagens, p’a lh’aquecer
o comer ou p’á minha irmã lh’aquecer o comer, a maioria das vezes nem
reparava s’eu ‘tava em casa, s’eu chegasse em casa, se ‘tivesse no sofá ou
se ‘tivesse a ver televisão, ele passava por mim ia p’ró quarto nem sequer
reparava qu’a televisão ‘tava acesa. E eu sempre fui naquela: -”Ah o meu
pai não quer saber eu também não! Fico aqui em baixo!” Então ficava lá em
baixo, e em vez de ir p’ra casa às 9.30, 10, 11 fui chegar a casa à meia noite,
uma, duas, umas de directa, duas directas, três directas, passava assim a
vida.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

O alcoolismo surge com alguma frequência nas entrevistas associado aos


progenitores. Por vezes, associadas ao consumo excessivo de álcool, sur-
giam referências a comportamentos violentos, sem motivo, tendo por al-
vos a mãe e os irmãos dos inquiridos – e o próprio92.

A aplicação, por parte dos pais, de castigos violentos constitui outra cons-
tante do discurso destes jovens relativamente ao ambiente familiar.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Então porque é que tu dás a fuga de casa? Quando os teus pais têm os
dois emprego ...
6 - Não, eu fugia de casa porque o meu pai batia-me porque eu não ia à
escola, quando eu passava por lá o meu pai batia-me, depois comecei a
fugir de casa.
E - Essa também foi a razão de o teu irmão ter dado de fuga?
6 - Yá!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Ela não te bateu com a mangueira?


7 - Não, não me chegou a bater, já tinha descarregado no meu irmão, já
estava cansada e o caraças, mandou-me p’ró quarto dormir, só ouvia o
meu irmão assim na cama: -”Ai, ai, ai!”.
E - O teu irmão é mais velho?
7 - É o mais velho, tem 18, mas nesse tempo devia ter o quê? 16 ou 15
anos. Depois acordei e assim, quando eu vejo o meu irmão p’ra ir tomar
banho, olhei p’rás costas dele até me assustei, todas ..., sabes o qu’é san-
gue pisado, assim em riscos, mesmo com as marcas da mangueira, até
me assustei!
(7 – Pula, 16 anos, Porto)

Directamente ligados aos castigos, onde a violência é uma constante, sur-


gem sentimentos de incompreensão e solidão familiar despoletadores de
duas ocorrências possíveis, por um lado, a fuga de casa e, por outro, a
prática delinquente em escalada de gravidade.

E - Que coisas é que tu fazias?


13 - Roubava, fugia de casa, ‘tava muito na rua, chegava quase todos os
dias com a polícia em casa. Depois chegava e o meu pai batia-me, ficava
com mais raiva ainda, no dia seguinte ia fazer uma coisa só que pior, só p’ra
enervar o meu pai.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Igualmente presente no ambiente familiar descrito estão as práticas cri-


minosas, menos frequentes junto dos pais, bastante mais frequentes re-
lativamente aos irmãos mais velhos (Bridges e Steen, 1998; Wu e Kandel,
1995; pp.49-82).

92. Relativamente à violência em seio familiar ver igualmente Planella, Jordi (1997), “A vio-
lência como forma de comunicação nas crianças e adolescentes em situação de risco social”,
Infância e Juventude, 97.4, Outubro-Dezembro; Nelson Lourenço e Manuel Lisboa (1991), Rep-
resentações da violência, Cadernos do Centro de Estudos Judiciários, nº2/91, Gabinete de Es-
tudos Jurídico-Sociais e Nelson Lourenço, Manuel Lisboa e Elza Pais (1997), Violência contra as
mulheres, Cadernos Condição Feminina, nº48.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - João, os teus pais estão os dois empregados ou não?


11 - É pá eles estavam, ‘tás a ver? Ms agora mesmo, mesmo, eles estão de
cana!
E - Porquê?
11 - Os meus cotas, estiveram empregados durante bué da tempo na Câ-
mara, mas logo a seguir o meu cota teve um acidente, ficou com a perna fo-
dida, deixou de bolir, ‘tás a ver? Ficou, tipo reformado, ficou com a reforma
dele, e agora estão de cana, porque era assim: é porque eles também anda-
vam no move do duto, ‘tás a ver? Andavam também a carregar (passar)! E
fizeram-lhes uma espera, apanharam-nos com cenas e agora ‘tá de cana!
E - Uma rusga?
11 - Yá!
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

E - Tens irmãos?
6 - Tenho um mais velho que já andou também aqui.
E - Esteve aqui no Colégio também? Porquê? Estrilhos?
6 - Não, andava a fugir de casa também.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

No questionário, em resposta à pergunta relativa à existência de ‘Irmãos/


Primos em Colégios’ do Instituto de Reinserção Social, embora a grande
maioria tenha revelado a inexistência de precedentes familiares (62,5%),
houve ainda um número significativo de respostas positivas (37,5%). Aqui
sobressaem os blacks (seis casos contra três). Esta situação é denuncia-
dora da possível transferência de irmãos para irmãos de conhecimentos
relativos a práticas desviantes, frequentemente associada à manutenção
de um ‘nome na rua’ de estatuto superior.

14 - Eu chinei (esfaquear) só uma pessoa. ‘Tava com estrilho com o meu


irmão na passagem d’ano de há três anos. Eu vi o meu irmão lá a tentar
separar a confusão, com os gajos da Amadora ...
E - Tu tinhas 13 anos!
14 - Yá! ‘Tava lá a separar, ainda começou a levar, agarraram o gajo num
canto e começar a enfardar, eu vi aquilo: -”Ai o meu irmão!”, peguei no
chino (navalha) fui lá, foi só fazer assim tufas, chinei na parte das costas. O
gajo caiu, agarrei no meu irmão: -”Embora!” Quando se trata de família não
tenho piedade! Posso ser assim muito calmo mas quando é a minha família
ou o meu irmão, qualquer coisa hum! Me’mo se for um grande amigo meu
...
E - E é normal o pessoal andar lá fora nos grupos sempre com irmãos
também?
15 - A maior parte ando sempre com o meu irmão, nessas porcarias todas!
Qualquer coisa, se houver estrilho e quiserem-me bater o meu irmão ‘tá ao

Hugo Martinez de Seabra


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pé de mim e ajuda-me.
E - O teu irmão é mais velho ou mais novo que tu?
15 - Mais velho, são todos mais velhos!
E - Já me disseram que às vezes ter um irmão muita maluco também dá
fama p’a eles, tipo: -”Ah tu és irmão do não sei quê, anda lá, g’andas ma-
lucos e não sei quê!”
14 - Yá, isso é assim! (...) Há pessoas que não se conhecem de nenhum
lado, olham p’a ti: -”Eh pá, tu não és irmão do não sei quantas?”; -”Yá, yá
sou!”; -”Eh pá desculpa lá!” Intimida-se com os irmãos.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste, 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

2.4 Ausência e conivência

Para além de algumas situações, já mencionadas, de ausência física, so-


bressai, do discurso destes jovens, um outro tipo de ausência das figuras
parentais, sendo a situação mais flagrante a não disponibilidade de tempo
para os filhos. No discurso dos filhos de imigrantes africanos entrevista-
dos relativo a esta questão, novamente, vêm ao de cima as diferenciações
familiares entre blacks e pulas.

4 - Há mais blacks! Não é isso, não é isso, agora vou dizer uma verdade,
verdadíssima me’mo, é por causa qu’os blacks ‘tás a ver?, os pulas têm
mais acompanhamento dos pais, os pais tam’ém vêm p’ra cima deles, e
os blacks não! O pai tem que trabalhar, a vida pesada, acordar de manhã,
sempre a bolir, nunca dão atenção aos filhos, nunca ‘tão assim tipo a con-
versar com os filhos, tipo a sós, ‘tás a ver? Tipo ter uma conversa de pai p’a
filho, é raro me’mo! Tipo cagam p’ós filhos!
16 - Yá! Isso é verdade, isso é verdade! (...)
4 - Deixa-me explicar, deixa-me explicar uma cena, é que os pulas têm
sempre mais oportunidades do que os blacks, sempre, sempre, ou querem
qualquer coisa, têm sempre mais oportunidades e mais apoio, em minha
casa eu nunca tinha apoio.
E - Então tu achas qu’o apoio só vem da família ou vem tam’ém do Esta-
do?
4 - Não, o maior apoio é o apoio da família ...
E - É esse que faz mais falta?
4 - É esse que faz mais falta!
16 - Yá o apoio familiar!
4 - Diz lá, um black os pais chegam em casa, 7, 8 horas, todos cansados e
não sei quê, fazer jantar, no outro dia de manha pegam às 7, às 7, nem têm
tempo de falar com o filho nem nada. Os pulas não, já os bisavôs já eram
ricos, já vem com herança, a herança vem lá de trás, vem lá de trás, os
blacks não! Sempre a lutar, sempre a lutar, sempre a lutar!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

Estudo de Jovens em Reinserção


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Este discurso empolado e generalizador revela a aceitação inquestionada


e a reprodução, por parte destes jovens, de um discurso legitimador das
práticas desviantes como consequência de diferenças essenciais que se
perdem na bruma dos tempos entre famílias africanas e famílias euro-
peias em Portugal.

Em sentido oposto à generalização anteriormente apontada, encontramos


no discurso de alguns pulas entrevistados a conivência familiar para com
os actos desviantes dos filhos.

8 - A primeira vez que fui p’rá esquadra, levaram-me a casa, saí do carro,
vê lá, na boa, fui direito à minha casa, o bófia vira-se: -“Agora não deixe o
seu filho sair de casa!”, as codrilheiras todas a olhar, fui p’ra casa, os bófia
ainda estavam lá a falar com uns, eu abri a porta, saí, e os polícias a olhar
p’ra mim. A minha mãe! A minha mãe só diz: -“É assim, tu podes roubar
mas desde que não sejas apanhado! Eu não me importo de tu fumares,
nem droga, eu não me importo de tu fumares tabaco nem droga, mas digo-
te uma coisa, vê se não passas de gansas de tabaco p’ra algumas coisas,
Deus queira que não!” Eu posso fumar, desde qu’eu não me meta nas dro-
gas pesadas é o mais importante p’rá minha mãe.
(8 – Pula, 13 anos, Lisboa)

7 - A minha mãe não sabe o qu’é um charro! (...) A minha mãe nunca des-
cobriu qu’eu fumava droga.
E - Então e a nível de fezadas e isso?
7 - Ah isso sabia, porqu’eu roubava as coisas e lavava a maioria das coisas
p’ra casa ...
8 - É como eu também!
(7 – Pula, 13 anos, Lisboa; 8 – Pula, 14 anos, Norte)

Desta forma, a própria casa dos pais poderá transformar-se num depósito
de material roubado com o conhecimento e conivência destes.

2.5 Conflito geracional

Claramente estamos perante um conflito geracional (Tony Waters, 1999;


p.10-11), um conflito de valores, mais evidente junto dos filhos de imigran-
tes africanos, resultado da sua diferente perspectiva sobre a sociedade
portuguesa. Ao contrário dos seus pais, esta não é vista como uma socie-
dade de acolhimento, mas como a sociedade de origem, aquela onde se
nasceu e/ou se foi educado e integrado.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Neste sentido são frequentes, nas entrevistas junto destes filhos de imi-
grantes africanos, as referências a diferentes perspectivas relativamente
às maneiras de pensar e agir na sociedade portuguesa entre imigrantes
africanos e seus filhos.

16 - Eu vou-te explicar, Hugo, vou-te explicar. É a mentalidade, a mentali-


dade dos nossos cotas é assim, vieram com aquela cena d’África de estar
aqui, p’a viver tenho que trabalhar muito, arranjar dois trabalhos: -“Eh pá
tenho que começar a ganhar mais dinheiro!”. É o pensamento dos cotas,
quando nunca têm muito tempo p’ra nós, perdem um bocado do tempo
p’ós filhos, perdem um bocado e é assim qu’os filhos tam’ém se tornam,
assim tipo, tu ouves assim: -“Eh pá tenho que trabalhar, e não tenho agora
dinheiro p’a ir comprar aquilo!” Tipo a mãe ‘tá a pedir ao pai e quê, dinhei-
ro, e às vezes até um gajo fica com medo, ‘tás a ver? Medo de pedir uma
cena assim qu’um gajo queria, tipo assim: -“Ó mãe eu quero uns ténis!” Ás
vezes, não dá, não dá me’mo p’a pedir, um gajo sabe disso, um gajo tem
qu’ir roubar ...
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

Esta diferença de valores, que resulta por vezes em conflitualidade ge-


racional, afigura-se, para os entrevistados, como uma das causas para a
procura, em vias alternativas e desviantes, da satisfação das suas aspira-
ções quer materiais quer inclusivamente sentimentais.

4 - É que não dá p’a estudar. Os pais vieram d’África, ‘tás a ver? Já pobres e
não sei quê, com’é que vão ..., não têm aquele apoio, não apoiam os filhos,
p’a os filhos subirem na vida ...
E - Achas qu’a culpa é só dos pais ou achas que os próprios tam’ém se
encostam um bocado e quê ...
4 - Yá! Yá isso é verdade! Mas se tivesse tido sempre, sempre, pelo menos
um bom apoio dos meus pais não ‘tava aqui de certeza. (...) Tipo, com o meu
pai, com o meu pai, nunca tive conversa com o meu pai, era só bom dia, boa
tarde e quê e mais umas coisas, mas ter conversa me’mo pai p’a filho, só
com a minha mãe, e a minha mãe ..., olha os pulas, a mãe vai buscar na
escola, vão na escola com carrinho ...
E - Tu gostavas de ser bétinho?
4 - Quem é que não gostava, claro qu’eu gostava!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

No final, tudo se resume a um sentimento de aspiração a algo que, embora


pejorativamente referido por vezes, se lhes apresenta como preenchendo
todos os seus desejos: o estereótipo da família burguesa. A figura do béti-
nho, fora do alcance e por isso alvo preferido de actuação desviante destes

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

jovens filhos de imigrantes africanos, consubstancia figurativamente esse


objecto de desejo. É ele que tem o desejado apoio emocional de ambos os
pais e, simultaneamente – e não menos importante -, possui, sem esforço,
todos os bens materiais que um jovem pode desejar.

3. Bairro

Lá na minha zona pausamos a ouvir o que está a dar


Todos os putos a representar
Andamos por todo o lado
Somos indomáveis
Pelos vizinhos adoráveis
O que se faz lá não te digo
Na minha zona tá-se bem
Vens tu de onde vens
Mas se fazes porcaria
Vais-te dar mal

O bairro de origem assume importância central no discurso destes jovens.


Aí o desvio é visto como normal, o desviante não é a excepção, mas a regra
– e aquele que tem poder para a impor -, e isto enforma por completo as
descrições que estes jovens realizam relativamente aos seus bairros. Es-
tes são, na perspectiva dos entrevistados, bairros normais93.

1 - Ya, o meu bairro é como os outros bairros, tem pessoas a morar, muitos
roubos, PSP, brigadas anti-crime parou lá para ver esse pessoal de cor, e
acho que é um bocadinho fatela p’ra os putos pequeninos e espero que os
putos pequeninos nunca chegarem a esta situações de roubo, porque vai
ser uma vida chata para os putos, depois vão para um colégio, depois do
colégio, sei lá, vão para outro lado, vão prá cadeia, um dia mais tarde não
conseguem sair dessas cenas ...
(1 – Black, 16 anos, Setúbal)

E - Toni, queres-me falar sobre o teu bairro lá fora?


6 - O meu bairro? O bairro é assim um bairro normal, um bairro tipo com’ós
outros, né? Fumamos lá gansas, às vezes assim um gajo arranja umas
coisas por fora, vai roubar assim uns carrinhos, depois dá umas fesadinhas
nas lojas ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)
93. Ver igualmente Garcia, José Luís (Coordenador) (2000) Estranhos, Juventude e dinâmicas
de exclusão social em Lisboa, Celta Editora, Oeiras e Gonçalves, Helena Seita (1994), “Proces-
sos de (re)construção de identidades culturais num bairro de habitação social”, in Sociologia
– Problemas e Práticas, nº16, pp. 135-149.

Hugo Martinez de Seabra


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E - Podes-me falar do teu bairro?


13 - Yá! O meu bairro é assim, bairros normais, roubam, fazem mais confu-
sões, assim confusões daquelas qu’acontecem em todos os bairros. Cresci,
fazia lá a minha vida...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

16 - O meu bairro é uma zona que por acaso tem prédios e tem barracas,
eu vivo por acaso em um prédio. Na minha zona há de tudo, eu acho que
em toda a zona há, né? Há traficantes, há fumadores, há passadores, há
ladrões, há violadores, há polícia, há essa cena toda, qu’acho qu’existe em
todos os bairros.
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

Embora nos seus espaços residenciais as práticas desviantes e delin-


quentes sejam encaradas como normais, evidenciam-se algumas precau-
ções, por exemplo a de não ‘chamar demasiado a atenção’ para o bairro,
e evitar ir contra a sua solidariedade interna.94 Nesse sentido, a procura
de espaços alternativos ao bairro de residência para aí dar aso aos actos
desviantes é uma constante.

7- Eu já avisei os meus colegas disso bué da vezes, só que eles nunca


acreditam nisso, cagam naquilo, roubam me’mo cara podre (despreocu-
padamente)! Em frente a toda a gente e o caraças. E eu não curto essas
merdas, não gosto de ficar mal visto pela vizinhança nem nada! Se não um
dia uma pessoa passa na rua e ...
(7 – Pula, 16 anos, Porto)

16 - Yá! No bairro um gajo faz bué da cenas, é uma zona fixe, é onde sentes
que ‘tás em casa, onde todos são teus amigos.
E - Mas espera aí, tu disseste: -”No meu bairro tem gente de todos os tipos
tal, tal, ta!”, falaste em tudo mas não disseste que também tem gente nor-
mal. Há gente normal no teu bairro?
16 - Tam’ém tem! A gente normal claro que tem que ser roubada!
(...)
E - O pessoal rouba no próprio bairro na boa?
16 - O quê que tem? Na descontra, o bairro é nosso! Mas isso também é
fatela porque um gajo começa a espigar (estigmatizar) a zona. ...
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

94. Para um aprofundamento das questões relativas à solidariedade grupal ver Jeffrey C.
Alexander (1988), Action and Its Environments. Toward a new synthesis, Columbia University
Press.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

A partir deste excerto conclui-se que a dita ‘gente normal’ é, para os jo-
vens entrevistados, a que é encarada como desviante, que não tem poder
para impor a sua norma, sendo dessa forma alvo das práticas delinquen-
tes. Foi igualmente possível apurar a existência de rivalidades bairristas,
usualmente com bairros vizinhos, levando a que grupos de jovens se des-
loquem aos bairros rivais por forma a aí praticarem actos delinquentes,
estigmatizando, ou nos termos dos próprios ‘espigando’ assim aquela
mesma zona.

E - O pessoal tem muito a mania, acho eu, p’ra já evitar gamar nos próprios
bairros...
16 - Isso é p’a não espigar, p’a não espigar a zona!
E - E depois muitas vezes irem gamar a zonas que não curtem! É verdade
ou é mentira?
16 - Yá! Yá!
13 - Pois!
(13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

A solidariedade criada dentro destes bairros possibilita o desenvolvimento


de autênticas ‘zonas francas de delinquência’, i.e., locais onde a polícia
entra a custo, em consequência da reacção automática de oposição à sua
presença por parte da maioria da população local.

E - E o teu bairro?
11 - O meu bairro é péssimo! Porque é só bandidos, porque numa parte, a
parte dos índios, é só malta qu’é bandida, ladrões, fazem grandes assaltos,
e há uma parte qu’é a parte da Polícia e da Cruz Vermelha qu’é a parte mais
calma.
E - E tu vens d’onde?
11 - Eu venho da parte dos índios!
E - Porqu’é que dizes qu’é os índios?
11 - Porque aquele bairro dos índios, é um bairro ultra mafioso, a bófia lá
não entra, porqu’é assim, se entra lá leva com calhausada. É calhausada, é
aquilo que vier à mão, é tudo! Por isso aquele bairro é muita mafioso, com
muita máfia.
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Relacionada com esta solidariedade bairrista, realce-se, por um lado, a arqui-


tectura de alguns destes bairros95, propícia não apenas à prática delinquente,
com espaços fechados e inúmeros recantos, como às posteriores ‘fugas’.

95. Para um aprofundamento da relação entre desenvolvimento urbano e surgimento de desigual-


dades espaciais ver European Commission (1992), Urbanisation and the function of cities in the
European Community, Regional Development Studies, Volume 4, EC Regional Policies, Bruxelas.

Hugo Martinez de Seabra


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11 - Aquele bairro é assim, aquele bairro é pobre e rico, ou tipo assim com
uma condição ..., é assim, é rico p’ra uma parte qu’é só mafiosos, ‘tás a
ver? E p’rá outra parte, qu’está mais tudo escavacado, está mais tudo des-
truído e mais cenas, é mais becos e o caraças, e entradas e saídas, essas
cenas, ‘tás a ver?
E - Então o próprio bairro, a própria maneira do bairro ‘tar organizado ajuda
nas cenas, nas fezadas?
11 - Yá! Ajuda e nas fugas quando há tipo rusgas e certas cenas assim,
‘tás a ver? Ajuda mais a dar fugas, porque aquilo não tem só uma entrada,
aquilo tem várias entradas ...
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Por outro lado, a quase aceitação dos vizinhos e a própria conivência (Cha-
ves, 2000; Viegas Ferreira, 1998: p.53; Sampson e Wilson, 1995) levam a
que o sentimento de impunidade reine junto destes jovens, sendo esta si-
tuação denunciadora de uma flagrante falta de controlo social informal
nestes bairros.

9 - (...) Foram chamar a minha mãe, a minha mãe foi lá buscar-me, ao


passar pelo sítio, qu’é uma rotunda, estava lá a cota que me chibou (de-
nunciou) à janela, a minha mãe chegou lá: -“Éh, tu chibaste o meu rapaz e
não sei quê!” Ela assim, -“Não fui eu, não fui eu!” A minha mãe, -“Ah sua
chiba!” Depois eu agarrei nela: -“Não faças isso, não faças isso!”
(9 – Pula, 14 anos, Norte)

Quando os vizinhos arriscam denunciar, como está patente no excerto aci-


ma, arriscam-se igualmente a serem alvo de agressões verbais ou mesmo
físicas, não apenas por parte dos jovens como igualmente dos próprios
familiares destes.
Desta forma, nestes bairros encontram-se reunidas as condições para
a proliferação, sem controlo social formal ou informal, ou com formas
de controlo muito atenuado, de práticas e ensinamentos desviantes lo-
calmente valorizados. Esta transmissão processa-se, maioritariamente,
através do grupo de amigos.

4 - A coisa mais divertida dos bairros é construir logo um grupo, meter


logo o nome nesse grupo ... O meu grupo era “Charro Boys”, “charro boy”
o grupo, andávamos na escola e o caralho, bué da bacanos: -”Yá tu és dos
charro boys, yá, yá ‘tá-se bem e o caralho!”, -”Yá eu sou dos charro boys!”
Um gajo andava todo contente, damas e o caralho, eu era o boss me’mo:
-”Eh tu és o Peter dos charro boys, yá, yá!” (ri-se)
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4. Grupo de amigos

Por lá a minha crew não é normal


A fesar somos tipo ghetto
Sim, sou um puro preto
Uma uéla sempre a girar
Os putos sempre a fesar
Movimento Hip-Hop
Não tem stop

O grupo de amigos, localizado espacialmente no bairro que habitam ou


na escola que frequentam, constitui, para estes jovens, o meio onde se
moldam e afirmam as suas personalidades (J. Luís Garcia et al., 2000;
Simon Frith, 1984). Mais do que a família ou a escola, como veremos, é
junto dos amigos que se procuram satisfazer as necessidades de reforços
positivos da auto-estima (Karen Heimer, 1995; Jang e Thornberry, 1998)
e de confirmação da sua integração na sociedade. Apenas aí se sentem
compreendidos e entre iguais, levando a que a sua socialização para a
integração na sociedade se processe mais neste grupo que em qualquer
outra instância.

2 - Um gajo foge de casa para não aturar as mães, para não irmos para a
escola para não aturarmos os professores ... É preferível aturarmos os nos-
sos sócios do que os stores que a gente não conhece de lado nenhum!
E - Então pelo que eu estou a perceber, o pessoal está bem é com o grupo
de amigos? É isso?
1 - Pois!
2 - Yá!
3 - Sentes-te inserido na sociedade, quando está com os amigos, quando
está a curtir, é aí é que o pessoal se sente bem!
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 2 – Pula, 16 anos, Algarve; 3 – Pula, 16 anos,
Lisboa)

Partilhando, entre outros factores, a situação de degradação dos bairros


onde habitam e as precárias condições de habitação existentes, os jovens
destes bairros são, também eles, pobres. Nestas condições, a integração
no grupo de amigos processa-se através da afirmação do eu como igual
aos restantes, comungando-se dessa forma determinados valores e prá-
ticas encarados pelos próprios como normais nesse contexto, mas rotula-
dos de desviantes pela sociedade exterior.

Hugo Martinez de Seabra


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E - Tu há bocado falaste assim dos amigos que não eram assim tão ami-
gos?
13 - Não, não é questão de não serem assim tão amigos, eram amigos, são
meus amigos, eu gosto, gostava, gosto deles, digamos assim, né? Só que
não eram os amigos qu’a minha mãe sonhava, porque roubavam, porque
fumavam, e não eram os amigos qu’a minha mãe sonhava p’ra mim. A
minha mãe sonhava qu’eu andava com rapazes direitos, bem vestidos. Eu
não, só queria era mandar estilo, queria namorar, andar na boa, não queria
fazer nada, só queria fazer p’ra onde me desse. Ia p’rá escola metia-me
a roubar os miúdos, ia sempre parar ao Conselho Directivo, lá depois do
Conselho chamavam a polícia e eu ia p’rá polícia, da polícia ia p’ra casa,
sempre assim.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Desta forma, a pertença a um grupo de amigos não apenas quebra com


o isolamento emocional dos jovens, resultante do abandono que afirmam
existir na família, como possibilita a sua afirmação em áreas igualmente
importantes - namoro, consumo, estilo pessoal, etc. - para quem está na
adolescência ou se encontra prestes a iniciá-la.

E - Dinheiro, roupa e ouro, o que é que tu fazes com isso?


14 - Conquistar a minha grife (estilo)!
15 - P’a um gajo mostrar qu’anda bem vestido, e p’a um gajo mostrar que
tem isto melhor qu’os outros, p’ás damas (raparigas) ficarem a olhar bué
p’a um gajo ...
14 - Pois e p’a puxar damas!
E - O quê o objectivo final é ter as damas?
14 - Todas! Quanto mais melhor! (risos)
E - E em termos de grupo e de amigos e isso, é p’a um gajo também se
afirmar com o resto do pessoal?
14 - Às vezes, é! Depois é o gosto de ter aquilo, eu acho que um fio de ouro
a mim fica-me bonito, fica bem! Tipo um chapéu, um chapéu fixe, fica bem
(...) É claro qu’eu me sinto bem, é assim com a minha roupa! É a roupa
qu’eu gosto, é a roupa que afirma o meu estilo, né? Eu afirmo o meu estilo
com a minha roupa, com os meus brincos...
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Para alguns a adesão e pertença a um grupo de amigos é vista como uma


extensão natural do eu e consequência imediata de habitar uma deter-
minada zona. A aceitação, no grupo, de jovens que não alinham nas suas
usuais práticas desviantes é apontada como reveladora da ausência total
de discriminação.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Tu tens amigos teus lá no grupo que nunca se meteram nestas cenas?


13 - Tenho amigos meus que não róbam, nunca roubaram na vida deles e
eu não os valorizo menos por isso, muito pelo contrário, valorizo mais ...
E - Isso és tu, e o grupo?
13 - Todo o grupo. Pelo menos de uma coisa tenho a certeza, se eu deixar
de roubar, posso chegar lá e posso sentir qu’os meus amigos, porqu’eu
sei: -”Não róbas? Não faz mal! Não róbas, desde que não te metas na mi-
nha vida, desde que não me vás chibar nem vás dizer qu’eu ‘tou a roubar,
‘tá-se bem!” -”Não queres roubar, não róbes, continuas a andar connosco,
quando tiveres connosco ninguém róba, não queres róbar, quando ‘tamos
todos juntos, se um não quer os outros tam’ém não!” Mas se querem todos,
róbam todos!
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

No entanto, tendo tido a possibilidade de seguir o percurso deste jovem


nos dois anos decorridos após a entrevista, concluímos que por forma a
retomar a aceitação no seu bairro e grupo de origem o Semedo voltou a
praticar actos delinquentes, contrariando esta sua ideia de que pode re-
gressar ao grupo de amigos e ser aceite sem agir em conformidade com
as normas do mesmo.
O significado e o poder simbólico da pertença grupal justificam a existên-
cia de rituais de passagem que condicionam a aceitação no grupo.
4 - Yá! G’anda cena, batizado da Catemba, não sabe o qu’é Catemba? Co-
meçou um gajo: -”Eh e o caralho, vou-te batizar no nosso grupo dos Charro
Boys!” Meteram um gajo assim de baixo, meteram vinho, eh qu’a estupi-
dez, meteram vinho assim na cabeça: -”Vou-te batizar em nome do filho,
do pai e do espírito do Catemba!” Charro boy, yá, um gajo todo curtido e o
caralho, agora na escola é logo: -”Eh eu sou dos charro boys, metam co-
migo e ‘tão fodidos!”
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

A afirmação pessoal dentro do grupo, procurando não ser mais um entre


muitos, mas ser reconhecido como individualidade a respeitar e admirar,
leva a rivalidades tremendas, que se traduzem em autênticas exibições de
afirmação individual. O reconhecimento conquista-se através do envolvi-
mento em práticas valorizadas pelo grupo. No caso dos jovens entrevis-
tados esse status obtém-se através da afirmação de um eu destemido,
impulsivo e um pouco tresloucado.

4 - Se tu fores daqueles gajos tipo ..., tipo bétinho ‘tás a ver’? Bétinho não
anda nesses movimentos, nem fuma charro, nem quê, chega a casa às
horas, oito, nove horas ‘tá em casa, os gajos nem te ligam, ‘tás a ver? Mas

Hugo Martinez de Seabra


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se fores daqueles gajos, ladrão, que rouba um carro, ou dois, apareces lá


todo maluco: -”Ah não sei quê, esse gajo é bué da marado, yá, yá! Esse gajo
é fixe!” Começam logo assim g’andas amigos teus. Mas se tu não fizeres
aquilo nem te ligam!
13 - Por exemplo, eu, eu quando roubava, eu roubava era me’mo fixe p’a
todos, gostava de me gramarem e quê, mas os meus amigos que não rou-
bavam, e ‘tavam sempre com o meu grupo, quando eu era mais puto e
comecei a roubar, ficavam mais bem vistos do qu’eu, eu ficava bem visto
porque roubava mas era gozado, porquê? Porqu’eu sempre fui otário, des-
de pequeno, eles davam-me um coro (conversa): -”Semedo, rouba aquilo,
rouba aquilo!”, o Semedo via, roubava, trazia p’a eles, e eu às vezes nem
comia nada. -”Semedo, vai lá ali, vai lá ali!” Roubava, p’a eles, roubava p’a
eles. Até que um dia o meu irmão virou-se: -”Mas tu roubas tanto, roubas
tanto e nunca apareces com nada pá, tu roubas tanto e nunca tens nada e
roubas tanto!”. E porquê? Porqu’eu dava tudo aos outros p’a ficar bem vis-
to, porquê? Porque s’eu não der a eles, s’eu não tiver a me’ma coisa qu’eles
eu vou pensar logo: -”Eh, eles são mais importantes do qu’eu, a malta cur-
te mais deles do qu’eu!”, ‘tás a ver? É sempre a primeira coisa que vem-te
à cabeça, é sempre isso, sempre isso! Depois o meu irmão falou comigo e
disse-me: -”Tu és maluco? Tu roubas p’a dar a eles, é a mesma coisa se tu
tivesses a roubar p’a deitar fora, roubas dinheiro, dás a eles, roubas comi-
da, dás a eles, roubas uma camisa, dás a eles, e andas assim!” Eu roubava
bués, ‘tava sempre cheio da dinheiro, ‘tava sempre a dar aos outros, mas
você olhava p’a mim, parecia um cigano. No ano seguinte que passou, de-
pois de ter falado com o meu irmão, você via-me com o quê? Via-me com
fatos de treino da FuBu, com fatos bem grifados e não sei quantos, mudei
de escola, os gajos lá de cima da outra escola disseram assim: -”Eh ó Se-
medo, antigamente parecias um cigano, agora até brilhas ao sol!” Depois
comecei a roubar cada vez mais p’a ficar mais bonito ainda, qu’é p’a poder
dizer que tenho, que sou eu ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal)

7 - Yá! Lá na minha zona é assim, se um gajo, por exemplo eu se roubar


uma cena de g’anda valor e eles não roubarem, ficam bué da contentes,
‘tás a ver, ouve lá abraçam-me e o caraças! Yá, e eu fico mais bem visto.
Mas agora se for um outro a roubar e o caraças e se um gajo não alinhar
ali naquela cena, eles ali ficam a cagar num gajo: -“Estás-te a cortar ao
caraças!”
9 - Yá! Cagam p’ra ti!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 9 – Pula, 14 anos, Norte)

Esta afirmação pessoal passa, igualmente, pela obtenção do reconhecimento


das raparigas. As damas, no discurso destes jovens relativo às suas práticas
diárias, aparentemente são coniventes com o ritual do exibicionismo pessoal
através do cometimento de práticas desviantes.
Estudo de Jovens em Reinserção
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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4 - Yá, a maior parte das damas qu’um gajo tenta pegar, um gajo tem que
mostrar isso, essas pechangas (vendidas) de merda, se um gajo for um
palhaço, elas nem ligam, mas s’um gajo aparecer com um carro roubado
..., Avé Maria!
E - As damas curtem o pessoal qu’aparece com carros roubados?
13 - Ohhhh!
16 - Ohhh, pá!
13 - Hoje em dia, hoje em dia, as damas só querem é malucos, porquê?
Porque ‘tão sempre bem orientados, ‘tão sempre cheios da paca (dinheiro),
...
16 - Entro no meu bairro, de carro com um g’anda som, não precisas de
mai’ nada ..., e tens paca, tens barra (estilo), tens charro, tens um carro
com g’anda som, nem que seja roubado, ou que seja emprestado, ou que
seja ...
13 - Tu passas num bairro, com um carro com um g’anda som: -“Eh g’anda
sonoro, pára aí, deixa me lá conhecer-te!” Sempre assim, sempre naquela,
‘tás a ver?
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

Apesar de serem apresentados como grupos com uma estrutura interna


bastante informal, existem igualmente líderes. Esta liderança constitui,
para estes jovens, o ponto mais alto a que se pode aspirar quando inserido
num destes grupos.

11 - É assim, por exemplo, eu tenho um grupo, lá fora ‘tás a ver? Eu sou,


eu daquele grupo, ‘tás a ver, eu sou o dealer (líder) deles ‘tás a ver? Por
exemplo, e me’mo qu’eu entre ali no bairro em calções e em chinelos, ‘tás
a ver?, ali na descontra, eles ali respeitam-me qu’é assim, eu sou o dealer
deles, ‘tás a ver? E para eles eu sou uma g’anda coisa, ‘tás a ver?
E - E com’é que tu te tornas o dealer?
11 - Com’é qu’eu me torno o dealer? Fazendo assim, tipo mais nas fezadas,
tipo meter mais barra nos bacanos, e tipo tu andares sempre carregado,
tipo nunca te pode faltar nada!
E - O facto de ‘tares aqui no Colégio também é fixe p’ró pessoal lá fora?
11 - É! É fixe!
E - Se por um lado é sinal que foste agarrado, por outro lado é sinal que
’tás a aguentar a barra aqui, e depois quando voltas o pessoal valoriza-te
também por causa disso?
12 - É assim mesmo!
11 - Yá! Porqu’é assim, eu tenho os meus sócios lá, lá no meu bairro, eu
‘tou aqui, eles ‘tão lá fora, eu cada vez que vou tipo a casa, eu p’ra eles sou
novamente boss...
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Os grupos têm também finalidades mais instrumentais, particularmente


importantes no contexto das tensões e conflitualidades locais. Para além
das rivalidades entre zonas residenciais já referidas, existem igualmente
rivalidades entre grupos de jovens de determinados locais ou escolas.

E - E achas qu’as escolas todas aí andam com grupos desses?


16 - Agora ultimamente, ultimamente é assim!
4 - Ultimamente é!
E - E há vários grupos rivais tam’ém?
4 - Yá! Vários sim!
16 - Yá!
13 - É escolas contra escolas!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

Por último, saliente-se a não exclusividade destes grupos. Para além da


existência de elementos de ambos os géneros, a abertura aparenta ser
igualmente uma realidade em termos de ‘cor da pele’.

4 - Havia um grupo qu’era “Black Power”, havia um grupo qu’era o dos


gajos do Gaiato, os gajos que viviam na Casa do Gaiato ...
E - Os grupos Black Power era só blacks?
4 - Yá!
E - E o teu grupo tam’ém era só blacks?
4 - Não, havia uns pulas tam’ém, só que, ladrões, quem entrava no meu
grupo me’mo, só quem era ladrão!
E - E os outros grupos não tinham ladrões, era?
4 - Tinham, claro que têm sempre! Havia lá dois pulas da escola, qu’eram
g’andas ladrões me’mo, era o x e o y, arrombavam tudo, um gajo dava-lhe
vinho p’á carola e mandava o gajo roubar, e o gajo ia roubar e o caralho.
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Em suma, poderemos salientar, relativamente às características destes


grupos, a sua ligação a um bairro ou uma escola, a existência de regras
e normas internas de conduta (James Coleman, 1990, W. F. Whyte, 1981)
e a afirmação pessoal através da participação em determinados rituais
vistos, pelos próprios, como ‘loucuras’. Sublinhe-se ainda a não exclusi-
vidade destes grupos, tanto em termos de género, como em termos de
pertença étnica.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

5. Escola

Um puto atrevido
Que rapidamente tornou-se
Um verdadeiro bandido
Com o sonho de ser Doutor
Mas na escola não escutava o professor

A escola é, na sociedade actual, a instituição onde a criança é educada


para a vida. A estrutura de oportunidade por excelência nas sociedades
que se regem por normas meritocráticas. Aí são transmitidas não só as
regras de conduta social como determinadas ‘ferramentas’ com vista à
inserção no mercado de trabalho.

Para estes jovens a escola, no seu papel tradicional, afigura-se como algo
altamente desinteressante96.

E - E a escola, o qu’é que vocês acham da escola, não desta, antes, a escola
lá fora.
14 - A escola? A princípio quando eu andava na escola era tudo boas notas,
até chegar a uma fase, a fase do 7º ano, comecei a perder interesse, come-
cei-me a baldar, comecei a me desinteressar e olha, não passei do 7º!
E - Mas porqu’é que perdeste o interesse?
14 - Comecei a ter outros movimentos, a roubar, a fumar gansas ...
E - E achas qu’isso foi tudo porquê? Foi pessoal amigo, foi ...
14 - Não, era ..., pessoal amigo, né? Eu não gostava de ‘tar na minha escola
e ia p’á escola dos outros, curtia mais da escola dos outros, sempre disse
que queria mudar de escola, só que nunca me deram transferência por eu
me portar mal, não me davam a transferência porque sabiam que nas ou-
tras escolas eu me ia portar pior. A escola ond’eu ‘tava era mais controlada,
eu queria ir p’a uma menos controlada. Era assim! Não gostava e depois
chegava a uma altura que já nem punha os pés na escola. Dizia aos meus
pais que ia p’á escola e ia p’á vadiagem, levava só a mochila.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

96. Ver igualmente Correia, Virgílio (1992), “Da compreensão dos resultados escolares das
crianças Cabo-Verdeanas”, in Documentos do encontro ‘A Comunidade Africana em Portugal’,
Colecção Actas e Colóquios, Colibri, Lisboa, pp. 17-22; Sedas Nunes, João (1998), “ Perfis So-
ciais Juvenis”, in Manuel Vilaverde Cabral e José Machado Pais (Coordenadores), Jovens Por-
tugueses de Hoje. Resultados do Inquérito de 1997, Celta Editora, Oeiras; Machado Pais, José
(1998), “Da Escola ao Trabalho”, in Manuel Vilaverde Cabral e José Machado Pais (Coordena-
dores) (1998), Jovens Portugueses de Hoje. Resultados do Inquérito de 1997, Celta Editora,
Oeiras e The Runymede Trust (1997), Black and Ethnic Minority Young People and Educational
Disadvantage, Published by The Runymede Trust.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

15 - Eu não queria ‘tar sempre ali duas ou três horas ali sentado a ouvir a
professora: -”ba ba ba ba ba ba !!!” Lá fora um gajo podia ..., vadiava, fazia
o que queria ...
(15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Desta forma, é novamente o processo de moldagem do significado das


instituições aos propósitos destes jovens que vamos encontrar. Neste caso
a escola torna-se o local habitual das primeira ocorrências desviantes.

E - Não estou a falar desta, ‘tou a falar da escola ...


7 - Da escola lá fora? Ah por acaso eu curto ‘tótil’ andar na escola, só que
curto mais andar na escola mas é p’ra conviver com as pessoas, agora p’ra
estudar e assim ...
E - O qu’é que tu fazias? Ias à escola mas não ias às aulas?
7 - Não fazia nada, tipo roubava gajos e o caraças, tipo aqueles gajos que
compravam saquinhos de doces (risos), roubava-os todos e o caraças ...
Era só estrilho!
E - E foi assim que começaste?
7 - Foi com esse pessoal, me’mo lá na Escola qu’eu comecei ...
(7 – Pula, 16 anos, Porto)

E - Então e a escola?
4 - Nã, eu quero dizer como é qu’eu comecei a roubar. Andava lá na 1º clas-
se, na primária e o caralho, um gajo nem roubava, um gajo nem roubava.
16 - Eu comecei a roubar relógios dos meus colegas!
4 - Um gajo ia p’ás aulas, tipo pôr o desotorizante, ‘tava todo ganancioso
já p’a ter o meu passe, p’a andar de autocarro, roupa a condizer e coiso.
Quando entrei na escola no primeiro dia, na descontra um gajo ia p’ás au-
las, passado uma semana, duas já lá ‘tava metido nisso. Os gajos começa-
vam-me a gozar: -“Ah tu és um palhaço e não sei quê, tu nem roubas nem
nada!”
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

As funções do ambiente escolar ganham novas roupagens, a escola é


apropriada e transformada num local com inúmeros propósitos, de que
a aprendizagem da disciplina não faz parte97. Embora mantendo sempre
centralidade na vida destes jovens, este local reveste-se de diferentes pro-
pósitos.

97. Relativamente às diferentes estratégias de apropriação do espaço da escola por filhos de


imigrantes ver para o caso Holandês o estudo de Filip Lindo, “Ethnic myth or ethnic might? On
the divergence in educational attainment between Portuguese and Turkish youth in the Nether-
lands”, in Comparison: not ethnic cultures but collective contigencies, pp. 144-164.

Estudo de Jovens em Reinserção


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Para alguns a sua importância advinha da possibilidade de terem a refei-


ção diária do almoço:

E - E a tua escola lá como é que é?


6 - A escola, portava-me sempre mal nas escolas, quer dizer eu até nem
me portava mal, ia lá à escola ouvia tudo o que as storas diziam, assim às
vezes, quando era muitas coisas que eu não fazia e às vezes ia ao Conselho
Directivo por causa dessas coisas baldava às aulas e não ia à escola muitas
vezes. Em vez de ir para a escola ia lá só para comer, arrancava de manhã
para ir para a escola e ia zzzeee (barulho rápido) variar, chegava a casa só
na hora a que a escola acaba.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Outros, atribuem novos significados às funções socializadoras, tornando-


se a escola um local de prática e transmissão de conhecimentos de actos
desviantes - roubos, consumos de drogas, etc.98

8 - Sabes o qu’é que eu fazia?


E - O qu’é que tu fazias?
8 - Ia à escola, ia à secretaria dos outros, aos cadernos zzoo-zzoo (fazendo
sinal de roubo) ...
E - Mas o qu’é que fazias roubavas a s malas dos gajos?
8 - Tirava as deles e punha lá a minha, punha as deles na minha cadeira
e começava a revistar as coisas todas, uma vez estava lá eu e outro a ver
quem roubava mais, dinheiro dos lanches e assim, só queria era dinheiro
...
(8 – Pula, 13 anos, Lisboa)
E – Porque é que eles te gozaram?
4 - Yá, porque um gajo era um palhaço, um gajo nem roubava, um gajo era
um otário, na descontra, não roubava nem nada. Também não fumava, cha-
mava drogados aos que iam fumar ... Eu alguma vez fumar? Eu? Nunca na
vida! Já me davam muitos charros p’a eu enrolar, na descontra! Enrolava,
eu enrolava bem, enrolava charros dava a eles, eles fumavam, e o caralho!
Depois, comecei a fumar charros, yá. Eu e dois bacanos do meu bairro,
começamos a fumar charros e tal, e foi no quarto dia ou quinto, eu e mais
uns bacanos do meu bairro disseram-me: -”Ah hoje vou-te batizar, vou-te
batizar!”, eu -”Ah, não me chateies, não quero fumar charros!”, depois dei
os primeiros bafos, tau, (risos, simula a tosse dos primeiros bafos), todo
baralhado e o caralho dos bafos, vinha no autocarro já todo mocado e o ca-

98. Para um aprofundamento da relação entre desistência escolar, primeiras práticas delin-
quentes e consequente consumo de droga ver Marvin D. Krohn, Terence P. Thornberry, Lori
Collins-Hall e Alan J. Lizotte (1995), “Family relationships, school dropout, and delinquent be-
havior”, in Howard B. Kaplan (Editor), Drugs, Crime, and other Deviant Adaptations. Longitudi-
nal studies, Plenum Press, New York, pp. 163-186.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ralho. Já todo contente na escola, todo contente, já fumo charro e o caralho,


era só fumar charro, mas não fumava naites (cigarros). -”P’ra quê fumar
naites, naites não faz nenhum efeito, charro ainda é aquela, ainda faz efeito
e o caralho!” Depois comecei a chular os putos, 100 paus, roubava-lhes a
carteira e o caralho. Tinha cacifos na escola, ‘tás ver tipo bué da cacifos?
Rebentava, abria as portas, limpava tudo. Um gajo andava sempre junto,
um gajo era tipo do me’mo bairro, iam logo todos p’á mesma escola. Yá,
todos na mesma escola, bué da bandidos e o caralho, andávamos sempre
todos juntos, yá, agora vamos meter nome no nosso grupo, metemos o
nome no nosso grupo: ”Charro Boys”, começamos a escrever charros boys
por toda a escola e o caralho, depois escreviamos as nossas alcunhas todas
em baixo. Quando ‘tavamos na rua, íamos bué assim, ouviamos: -”Olha os
charro boys!” O pessoal andava todo contente, gostava mais era de roubar
chapéus, roubar chapéus e gorros e carteiras!
16 - Primeiros tempos!
4 - Depois na escola, orientava-me, foi quando eu comecei a roubar me’mo,
foi quando eu comecei a roubar me’mo forte e feio ...
E - Mas tu começaste a perder interesse na escola, começaste a andar
mais com o pessoal ...
4 - Yá, sempre lá na escola, ‘tá a ver? Ia p’á escola, as primeiras semanas ia
às aulas, passado mais algum tempo já nem ia às aulas, chegava na escola
com a minha mala, atirava a minha mala, pontapé na mala, ia só vadiar p’á
escola. Eu e os meus colegas, estávamos sempre, olha sentados lá fora, ao
pé da sala, e os meus colegas na sala, lá fora sentado a apanhar sol, g’anda
moca me’mo, na descontra, saia de casa vinha dormir p’á escola, todo
gansado ... Depois foi quando um gajo começou a roubar a sério me’mo,
fazer gandes fezadas, a assaltar casas e o caralho...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

16 - Yá, depois passei p’ó ciclo, não fumava nem nada, ninguém daquela
escola fumava, naquela escola, tipo só havia três ladrões, eram três pretos,
três ladrões. Depois conheci um gajo e quê, saíamos da escola íamos nos
supermercados assim, íamos lá fesar, chocolates, bolachas e íamos p’á
escola! Yá, comecei assim a escola! Depois primeiro ano do ciclo, chumbei,
porquê? Andava, ia p’ás aulas: -”Vieira Rua!”; -”Aluno Rua!”, yá! Depois
comecei a roubar mais, mas descobri tam’ém que quando ia fazer física
(Educação Física) os putos levavam cumbu (dinheiro) ...
4 - Yá, também roubava bué assim!
16 - Os putos levavam cumbu quando iam fazer Física, oh, fazia tanto p’a
ficar de castigo p’a ir p’á zona dos balneários, uma vez na zona dos balne-
ários, desmontava as malas todas, tututu, abri aqueles cacifos ... Depois já
no segundo ano, no quinto ano, a segunda vez que ‘tava no quinto ano, co-
mecei a fumar naites, yá todos os gajos assim: -”Ah não quero que fumes!”
E eu a fumar e quê! Continuava a fumar, a fumar, a fumar e a roubar, sem-
pre a roubar, sempre a roubar até era apanhado, os meus pais começavam

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

a encher, começaram a encher e quê ...


(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

A junção das duas situações, a escola como local onde se vai para não passar
fome e para roubar, é naturalmente também mencionada como frequente:

E – Porque é que um gajo começa a roubar lá na escola?


16 - É pá, um gajo é pobre, sabes com’é qu’é?
4 - Yá eu tam’ém roubava por causa dessa merda. P’a ir comprar uns ténis
de marca, sabe o qu’é qu’eu tinha que fazer? A minha mãe dava-me 300
paus, 400 paus, 500, às vezes 700, o meu pai também me dava 500, 700
e o caralho, eu juntava, não gastava, ia p’á escola não comia e o caralho,
não gastava, guardava no cubículo (casa), ia p’á escola roubava, tinha que
roubar, roubava. Tinha que comer. Ia p’á escola não tinha dinheiro nem p’a
tomar o lanche, nem p’a tomar o lanche da tarde, roubava os putos me’mo,
era sempre a roubar.
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

Como se pode deduzir dos excertos apresentados, tal como se verificava


junto dos grupos de amigos, também na escola a afirmação de um esta-
tuto reconhecido como superior e valorizado pelos demais sobrepõe-se
a qualquer outro elemento referencial (Elijah Anderson, 1992). A neces-
sidade constante de afirmação pessoal leva estes jovens a ‘engrenarem’
num ciclo crescente de práticas desviantes, sendo atribuído à droga (leve)
estatuto de centralidade.

4 - Roubava, tipo notas de 5, trocava logo, só em notas de mil e de quinhen-


tos, p’a ficar bué me’mo, p’a ir p’á escola, ‘tás a ver? Ia p’á escola na minha
pausa me’mo, cheio da chamon, eu ia p’á escola cheio da chamon me’mo,
foi quando eu comecei a fumar me’mo a sério. Ia p’á escola me’mo cheio
da chamon ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Em conclusão, ao contrário do que seria a sua função principal, a escola


torna-se local das primeiras práticas desviantes, local de ensino e apren-
dizagem, não de regras e valores de conduta social, mas de actos delin-
quentes (furtos, roubos, primeiros contactos com tabaco e droga). Exem-
plificativo desta reconceptualização do contexto escolar é o termo ‘colega’,
usualmente sinónimo de outro jovem que frequenta a mesma turma ou
mesma escola, utilizado por estes jovens em relação aos companheiros
de práticas desviantes.

Hugo Martinez de Seabra


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A escola não vai acabar


Na escola aprendes a ser escuteiro
Um pequeno guerreiro
Se vais à escola
Não é porque és imperfeito
É porque não tens nenhum defeito

6. Mercado de trabalho

Três questões foram incluída no questionário aplicado, relativamente ao


mercado de trabalho. A primeira reportava-se à possibilidade de no pas-
sado o inquirido já ter trabalhado, solicitando, em caso afirmativo, o tipo
de ocupação. As outras duas inquiriam qual a ‘profissão que gostaria de
ter’ e qual a ‘que acha que vai ter’.

Dezoito dos vinte e quatro respondentes (75%) afirmaram já ter trabalhado


antes da institucionalização. Tendo em conta as idades existentes neste
universo e a idade mínima legal para o início de uma actividade profissio-
nal (16 anos) conclui-se facilmente que muitas dessas actividades foram
praticadas na ilegalidade, através da exploração do trabalho infantil. Das
ocupações reveladas o trabalho na construção civil, vulgo ‘obras’, foi a
mais frequente (72,2%). No grupo dos seis jovens que nunca trabalharam
apenas um era pula. Dos que responderam positivamente, existe um equi-
líbrio entre blacks e pulas.

Relativamente à profissão idealizada e à profissão esperada, alguns des-


tes jovens não compreenderam o alcance da questão, ao responderem
igualmente um trabalho de menor qualificação para ambas as situações
(37,5%). Mais do que uma afirmação de modéstia pessoal, esta ocorrência
revela um apurado sentido de realismo, indutor nestes menores de uma
ausência completa dos característicos sonhos profissionais destas idades.
Se a estes acrescentarmos os cinco casos em que a resposta se baseou
num evasivo ‘não sei’ atingimos os 58,4% de respostas onde há uma au-
sência total de idealização da profissão que se gostaria de ter.

No que toca aos que descoincidiram nas respostas, o grupo dos blacks repre-
senta o dobro dos pulas, podendo este facto denunciar um maior inconfor-
mismo por parte dos primeiros quanto à sua situação profissional futura.

De entre as profissões imaginadas destacam-se os jogadores de futebol


(referidos em três ocasiões), os empresários (dois casos), o cantor rap, o

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

skater, o juiz, o engenheiro informático, o piloto, o bombeiro e o padeiro/


pasteleiro. Se em alguns destes casos o sonho de miúdo se mantém na
adolescência - futebolista, cantor, bombeiro e skater - já noutros casos
é o conhecimento adquirido ao longo dos últimos anos em contacto com
diversas esferas - economia informal, justiça - que os leva a optar por pro-
fissões usualmente menos mencionadas - juiz e empresário.

No que se refere à profissão que esperam vir a desempenhar, a ausência de


sonhos é total, o trabalho nas ‘obras’ ou ligado a estas (pintor, electricista,
montador de tectos) é dominante (42% dos respondentes à questão).

Por último, é de salientar, a título de curiosidade, a resposta de um dos


inquiridos à questão profissão que gostaria de vir a ter: -”A minha vida é
roubar!”, denunciador de que alguns destes jovens têm definida já a sua
prioridade em termos de ocupação futura.

O discurso destes jovens em relação ao tipo de trabalho que os espera é


coincidente com as poucas alternativas anteriormente identificadas (Eli-
jah Anderson, 1992: p. 243; Troy Duster, 1987). Desta forma, o trabalho na
construção civil é identificado como aquele que reúne maiores probabili-
dades de os vir a ocupar.

E - Que tipo de trabalhos é que há?


3 - Agora? Com a idade que a gente tem agora podemos fazer tudo! Mas
antes não podíamos fazer nada ...
E - Mas o que é que achas que te espera?
3 - O ‘andaime’ talvez! (risos)
1 - Pedreiro? Pedreiro ganhas bués pá! Pedreiro ganhas! Tu pedreiro ga-
nhas aí 200 e tal ‘béus’!
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 3 – Pula, 16 anos, Lisboa)
E - Porque não há empregos? Que empregos é que há para o pessoal
novo?
6 - Obras. O que eu conheço é obras! Não conheço mais nada.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Outros entrevistados manifestam um aprofundado conhecimento dos es-


quemas postos em prática por criminosos de maneira a dissimular as suas
práticas ilegais, repetindo com outros menores inimputáveis o ciclo por que
eles igualmente passaram. A procura de um trabalho ‘menor’ que sirva de
fachada constitui um desses estratagemas (Ruggiero e South, 1997).

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

11 - E é assim, um gajo quando é adulto, ainda mete o quê? Ainda mete um


ou dois putos a bolir p’ra ti, ‘tás ver? Tu estás ali na descontra! Ou tu arran-
jas um bule, arranjas um bule só p’ra disfarçar, ‘tás a ver?
7 - P’ra descartar, p’ra disfarçar!
11 - Metes quê? Metes dois putos assim a bolir p’ra ti e ‘tá-se bem, e tu ‘tás
a bolir, tu ‘tás a bolir e ‘tás a receber do outro lado também, ‘tás a ver?
E - Mas que tipo de bules é que tu podes assim arranjar p’ra disfarçar?
7 - Padeiro ...
11 - Tipo quê? Há tanto tipo de trabalho p’ra um gajo disfarçar!
E - É? Mas achas que consegues arranjar agora quando saíres daqui, assim
qualquer trabalho? Na jardinagem ou assim?
11 - Então não! Olhe por exemplo, a jardinagem como disseste agora há
pouco, a jardinagem, é um trabalho, ‘tás a ver? Respeitável ...
E - Estás a aprender aqui no Colégio e tudo?
11 - Claro! Um gajo até já tem um bocado de experiência e tudo. Estás a
receber do teu trabalho, ‘tás a receber o teu ordenado, e ‘tás a receber do
outro lado também, é sempre assim!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Seguindo a mesma orientação, outros alunos entrevistados referem as


actividades ilegais, como o tráfico de droga, como constituindo o trabalho
a que aspiram (Allan e Steffensmeier, 1989), aparentando esquecimento
momentâneo do facto de o mesmo ser crime.

E - Vieira esta é p’ra ti. Quando eu te perguntei o qu’é que tu gostavas de


fazer no futuro, tu disseste: -”Eu quero ser dealer!” O que é qu’isso quer
dizer?
16 - Yá! Quero traficar droga, uma boa maneira de ganhar dinheiro!
18 - Uma boa maneira d’ires parar na prisão!
E - E achas qu’isso vai acontecer?
16 - Não sei, é só querer, basta querer!
E - E é fácil um gajo estabelecer-se?
16 - Depende ...
4 - Depende da tua capacidade ..., mas acho qu’isso é uma estupidez da
parte dele...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos,
Lisboa)

Tendo o trabalho como tema central, o excerto que se segue revela um


pouco da consciência existente, junto de alguns destes jovens, do que o
futuro lhes pode reservar, conhecimento esse obtido através do contacto
directo com situações semelhantes.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

13 - Eu por exemplo, sabe porquê que a maioria deles vão de cana? Por
causa que, estão a estudar, né? E dizem: -”Ah eu vou roubar mas quando
chegar aos 16 eu vou parar, eu vou parar!” Falta às aulas qu’é p’ra ir rou-
bar, falta às aulas p’a ir ‘róbar’, no dia seguinte chumbo o ano, tenho 16
anos vou à procura de um emprego: -”Tens que ano?”, -”Ah chumbei no
quinto!”, -”Olha se tivesses passado de ano agora poderias trabalhar aqui,
mas como não passaste, olha não arranjo trabalho, vai p’ás obras!”, -”As
obras não é p’a mim pá! Curto mais ‘tar c’os meus amigos do qu’ir p’ás
obras, vou ‘róbar’ mas é!”, róbam ou então: -”Vou viver à pala da minha
mãe!” Vivo à pala da minha mãe, qualquer dia a minha mãe morre, ou deixa
de trabalhar, ou a minha mãe não vai trabalhar e depois o qu’é qu’eu faço?
Vou p’ás obras. Tenho duas opções, ou vou p’ás obras - ou vou trabalhar
rijo - ou vou róbar qu’é mais fácil. A primeira orientação é sempre p’ó mais
fácil! E o mais fácil, à primeira sai bem, à segunda sai bem, à terceira já não
saí, e à terceira vou de cana ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Em conclusão, uma significativa parte destes jovens, agora institucionali-


zados, no passado, ao largarem a escola, procuraram emprego, tendo sido
confrontados, na altura, com as limitadas opções que se lhes deparavam
(Natália Alves, 1997; Machado Pais, 1997) - essencialmente ‘obras’ ou ser-
viços de atendimento em restaurantes tipo fast-food. Ao mesmo tempo,
manifestam uma desistência relativamente à possibilidade de sonhar com
um emprego valorizado, resignando-se, desta forma, a duas possibilida-
des, ou o trabalho ‘pesado’ - as ‘obras’ - ou o trabalho fácil - o ilegal.

7. ‘Blacks’ - ‘Pulas’

A grande questão que se pode colocar é esta: qual a diferença a nível com-
portamental e de envolvimento em práticas desviantes entre jovens blacks
e jovens pulas oriundos dos mesmos estratos sociais que torna a partici-
pação dos primeiros tão flagrante como por vezes alguns meios de comu-
nicação social ou políticos pretendem afirmar?

Cremos que existem de facto algumas diferenças entre blacks e pulas no


envolvimento em práticas qualificadas como delinquentes, ainda assim, o
mesmo não aparenta ser flagrantemente superior.

A possibilidade de conhecer a realidade dos jovens blacks em Portugal,


isto é, saber quantos são, onde estão e o que fazem, possibilitaria, certa-
mente, um melhor entendimento dos fenómenos aqui sob estudo.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Admitamos que estes jovens, não quantificáveis como vimos através das
fontes oficiais, residem, na sua grande maioria, na Área Metropolitana de
Lisboa; admitamos ainda que devido às elevadas taxas de fecundidade
existentes junto destes grupos, estes representam presentemente uma
significativa secção das bolsas de pobreza dessa mesma área; acrescen-
te-se, por último, a forte visibilidade destes jovens (Elijah Anderson, 1992;
p. 165), nem que seja pela sua cor da pele. Será possível que o seu envol-
vimento em práticas desviantes se distinga do dos outros jovens pobres e
suburbanos brancos? Será que estes últimos não têm igualmente vindo a
registar aumentos graduais no envolvimento em práticas desviantes? Será
este mais um fenómeno de classe do que um fenómeno de cor da pele?

A estas questões não nos é possível, presentemente, dar resposta, mas algu-
mas hipóteses podem ser lançadas. Cremos efectivamente que mais que uma
questão de ‘cor da pele’ este é um fenómeno conhecido de sempre, resultante
da pobreza e da procura através de vias ilegais da satisfação de necessida-
des várias. No fundo, mais do que uma alteração na cor da delinquência em
Portugal, temos vindo a verificar a existência de uma transformação na cor
da pobreza, que produz reflexos, uns mais imediatos outros mais lentos, em
numerosas esferas da sociedade. O envolvimento em actos qualificados de
crime faz parte do grupo dos aspectos mais acessíveis e imediatos.

E - Pulas e blacks ou só blacks?


6 - Pulas e blacks, pulas também, não é muitos ...
E - Não, é mais blacks. Mas isso é porquê? Por causa do bairro, por causa
da zona ou por causa que o pessoal separa-se?
6 - Da zona.
E - A zona tem mais pessoal Black?
6 - E , e também o pessoal separa-se um pouco, os pulas que há é todos só
putos, que não andam connosco ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Porqu’é que vocês acham qu’aqui no Colégio há tantos blacks?


12 - Porqu’é que há aqui tantos blacks? É normal, aqui há tantos blacks
como há tantos lá fora ...
(12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Relativamente ao envolvimento conjunto de pulas e blacks nas práticas


delinquentes registaram-se diferentes opiniões. Se, por um lado, alguns
dos entrevistados manifestavam a participação em conjunto de todos, por
outro, alguns manifestavam a maior exclusividade dos blacks para deter-
minados tipos de práticas qualificadas de ‘mais pesadas’.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Lá em baixo também há blacks e pulas? Ou é mais pulas?


2 - Ya, dão-se todos bem, tanto blacks como pulas é tudo na descontra ...
E - E o pessoal que se mete nas fezadas, é tudo ...
2 - Tudo ao molho e fé em Deus, é mesmo assim.
(2 – Pula, 16 anos, Algarve)

E - Então e quando um gajo ‘tá nas fezadas, é só blacks, é só pulas, com’é


que isso funciona? Têm a mania de falar que os blacks é que são, isso é
assim ou não?
14 - Não! Eu andava com um gajo qu’era black, as fezadas qu’eu fazia era com
um black e com dois pulas, dois blacks e dois pulas, andávamos sempre juntos.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

E - ‘Pera aí, isto só se passa com os blacks ou também se passa com os


pulas?
16 - Há pulas que tam’ém é assim!
4 - Há pulas, tipo aqueles pulas que cresceram tipo, cresceram com blacks,
ficam sempre com a me’ma mentalidade ...
13 - Quer dizer, o meu melhor amigo em Setúbal, não é black, é branco,
‘tás a ver? E eu tenho a certeza, tenho a certeza, ele rouba junto comigo ...
E - Então porqu’é que normalmente falam sempre que são os blacks que
fazem as cenas?
16 - Porque somos mais abusados!
4 - Não porqu’é raro, é raro ...
13 - É raro tu veres um branco a roubar ...
E - Mas vocês acham qu’é só porque neste momento há mais blacks pobres
e por causa da cena das ...
16 - Yá, é isso! Há mais blacks pobres! Sentem-se mais indiferentes!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)
18 - Mas os pretos roubarem é tal e qual, se não houvesse pretos aqui ia
continuar a fazerem-se os mesmos roubos e as mesmas cenas ...
E - Quem é que ia fazer esses roubos?
18 - Sempre quando há roubos há um grupo de negros, metido nesse grupo
de negros há sempre um branco pelo menos, e eu meto a mão no fogo, um
branco, num grupo de pretos tem sempre um branco ...
4 - Há sempre um branco e é daqueles brancos ..., até é capaz de ser o mais
marado que ‘tá ali!
E - Então porque é que são mais os pretos?
18 - Olhe eu vou-lhe dizer, porque os pretos têm mais sangue quente do
que os brancos ..., sobressaiem mais, ‘tamos no país deles, ...
16 - Um preto sobressai mais sempre!
4 - ‘Tamos no país deles!
16 - Entra em qualquer loja um preto e um branco, o branco ‘tá a roubar,
mas o preto é que ‘tá a ser visto ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos, Lisboa)

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Este último excerto apresenta inclusivamente uma justificação, adiantada


por um jovem black, para as práticas desviantes de cariz biológico - ‘san-
gue mais quente’ - muito em voga no início da criminologia.

Concluindo, embora reconhecendo a existência de diferentes envolvimen-


tos, podendo algumas práticas mais ‘pesadas’ serem mais frequentes jun-
to dos jovens blacks, o que mais sobressai, a nosso ver, é o factor comum
e característico de ambos os universos - a pobreza.

8. Ilações finais

Duas fases de um mesmo processo são identificáveis no desenrolar da


adaptação e moldagem das instâncias clássicas de socialização e integra-
ção anteriormente mencionadas (classe social, família, bairro, grupo de
amigos, escola e mercado de trabalho) aos propósitos destes jovens.

Por um lado, a demarcação, explorada entre outros por Elias e Scotson


(1994), do Nós (grupo de amigos) em relação aos Outros (sociedade envol-
vente), demarcação esta que se processa através da atribuição de novas
funções às instituições supra mencionadas que se adeqúem aos propósitos
de normalidade destes jovens. O que mais sobressai dessa normalidade do
Nós (minoria) é a sua completa descontinuidade com a normalidade dos
Outros (maioria). A normalidade dos primeiros passa, frequentemente, pelo
desenvolvimento de um discurso de oposição e reacção acompanhado pela
prática de actos considerados pelos segundos como desviantes à regra.

Por outro lado, verifica-se um segundo processo, este dentro do Nós (grupo de
amigos). Aqui, assistimos à pretensão da demarcação do Eu (indivíduo) relativa-
mente aos restantes membros desse núcleo mais restrito. Esta procura de no-
toriedade individual, valorização e afirmação pessoais, passa, por sua vez, pelo
incorporar, da forma o mais extremista possível, dos ideais e práticas comuns a
este núcleo. Deste modo, o Eu, mais do que procurar ser um entre iguais, procu-
ra ser O (referência personalizada) dentro do Nós que se opõe aos Outros. O reco-
nhecimento individual, frequentemente personalizado numa alcunha carregada
de simbolismo, concede ao Eu o poder simbólico junto do grupo, do Nós, que este
interiorizou como sendo impossível de alcançar no universo dos Outros.

A possibilidade de ser, em resultado do poder simbólico acumulado, reconhe-


cido e valorizado individualmente no grupo minoritário torna-se consideravel-
mente mais significativa para estes jovens que o reconhecido anónimo e des-
prestigiante papel social que lhes estaria reservado no universo dos Outros.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

B - Maneiras Agir

O propósito desta secção assenta na descrição, apoiada no discurso re-


produzido pelos jovens observados, das suas práticas desviantes. A possi-
bilidade de ‘dar voz’ a estes jovens relativamente a temáticas tão ampla-
mente noticiadas como a existência de ‘gangs negros’ em Portugal e as
suas práticas delituosas constitui, a nosso ver, uma mais valia no aprofun-
damento do conhecimento desta realidade. Desta forma, alguns modus
operandi serão aqui igualmente destacados, como o tipo de delitos mais
frequentes, a escolha das vítimas, a utilização de armas brancas e/ou de
fogo, etc.

1. Primeiras ocorrências

Conforme foi anteriormente mencionado na secção relativa à escola, este


constitui o espaço pioneiro por excelência para a partilha de conhecimen-
tos e prática dos primeiros actos desviantes, desde o vandalismo aos fur-
tos.

13 - Cresci, fazia lá a minha vida, quando ‘tava na primária vivi esses qua-
tro anos sempre nas minhas brincadeiras, sempre assim. Depois nunca
ninguém tinha tido uma queixa de mim, né? Era sempre primária, escola
- casa, escola - casa, escola - casa, nunca saía p’ra brincar. Depois olha
passei p’ró ciclo, mudaram algumas coisas, conheci novos amigos. Pronto,
a primeira vez que roubei foi quando vi um amigo meu lá na escola, ‘tava
assim a roubar na cantina e eu: -“Não deve ter muito mal!”, roubei tam-
bém. Depois uns gajos lá do meu bairro viram e disseram: -“Ah vem com
a gente!”. Depois fui com eles, comecei a andar com eles, depois comecei
a roubar...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

16 - Na escola, comecei assim na primária e quê, ainda me lembro da pri-


meira coisa que roubei, (...) nesse dia cheguei atrasado, ‘tava a ver dese-
nhos animados - O Homem Aranha - e no fim apareceu aquele boneco
mexe-tudo, propaganda, eu disse: -“Eh a minha mãe não vai me comprar
esse boneco, o meu pai diz qu’eu estrago tudo, parto sempre tudo, então
tam’ém não vai me comprar esse boneco!” Yá, cheguei na escola, coinci-
dência, o meu colega tinha acabado de comprar o boneco Mexe-mexe-tudo.
Eu disse: -“Eu hoje vou ter qu’apanhar esse boneco!” Não sei o qu’é que
houve, na primária e quê, ‘távamos lá a fazer umas cenas em trabalho, eles
despacharam-se mais rápido porque eu tinha chegado atrasado, eu fiquei
lá a fazer e a stora disse: -“Vieira vou confiar em ti, vamos lá p’ra fora jogar
futebol, quando acabares vais jogar futebol!”, eu disse: -“Hoje é fezada!”.

Hugo Martinez de Seabra


165
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Fui abri a MonteCampo do meu colega, tirei o boneco meti na minha mo-
chila, mochila toda podre me’mo, eu era o mais pobre de lá, abri a Monte-
Campo tirei. Depois lembrei-me que tinha um estojo todo podre, abri outra
mochila, tirei o estojo, tirei, yá, tufas, passei. Depois fui jogar futebol. Na
segunda hora, controlei ..., eu não sei, não sei porquê, eu tinha tipo instinto
de roubar, eu não sei d’onde é que surgiu me’mo. Vi um meu colega com
um relógio, ohh o gajo tirou, assim meteu em cima do estojo, o gajo virou a
cara, tche, roubei o relógio ao tipo e a seguir fui p’ra casa meti o relógio em
casa ... Eu roubava cenas p’a desmontar, roubava, desmontava relógios e o
caraças, desmontava, fazia ligações muita maradas e o caraças ...
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

Este último excerto relativo às primeiras ocorrências denuncia a existência, no dis-


curso destes jovens, de inúmeras influências sobre o início das práticas desviantes.
Por um lado, a pressão da publicidade conducente ao consumismo e materialismo
nas idades jovens, por outro, a consciência de impossibilidade aquisitiva por parte
dos progenitores e, por último, e claramente associado ao anterior, a consciência da
situação de pobreza. Relativamente ao impulso para roubar, ele assemelha-se, no
discurso destes jovens, ao instinto de sobrevivência animal: se o têm são bem suce-
didos, caso contrário estão condenados à resignação e ao anonimato.
Elemento igualmente revelador da centralidade que estes jovens confe-
rem às suas práticas desviantes encontra-se patente na forma como dis-
cursam relativamente à sua ‘primeira vez’.

E - Diz-me uma coisa, eu já percebi mais ou menos a ideia que o pessoal


que tem mais poder nos grupos é aquele que já fez mais fezadas, é aquele
pessoal que já tem mais histórias p’a contar e que já teve mais estrilhos, é
assim ou não?
13 - Mais ou menos assim. Por exemplo um que já roubou mais qu’os ou-
tros, começa assim a contar histórias dele, né? Sim, a maioria das coisas
que nós conversamos é a primeira vez que roubámos.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

O contar da história da ‘primeira vez’, usualmente associado à primeira


vez que beijaram, ou à primeira vez que tiveram relações sexuais, surge
junto destes jovens associado à prática desviante, revelando esta situação
a importância integradora que estas práticas adquirem nestes meios. A
centralidade que as relações amorosas usualmente têm junto de jovens
adolescentes encontra-se aqui superada pela relevância atribuída às prá-
ticas desviantes, vistas como veículo fundamental para alcançar, entre ou-
tros objectivos, a própria realização amorosa.

Estudo de Jovens em Reinserção


166
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

2. ‘Fezadas’

Nas ruas saiam para roubar


O puto com uma Gun pronta a matar
Com um carro na estrada sempre a andar
Malas por fechar

‘Fezada’ ou ‘business’ são os vocábulos utilizados no discurso dos jovens


como sinónimos de prática desviante. Procuraremos neste ponto porme-
norizar o conhecimento relativo ao tipo de práticas mais comuns e os res-
pectivos meios auxiliares utilizados.

2.1 ‘Fezadas’ mais frequentes

No questionário aplicado ao universo de jovens internados por delinquên-


cia juvenil foi incluída uma questão relativa aos actos praticados antes do
internamento99.

Infracções Penais Sim Não


Total Blacks
Roubo de pessoas 18 10 6
Furto em estabelecimentos 20 10 4
Furto em posto de abastecimento 5 3 19
Roubo por esticão 7 4 17
Assaltos à mão armada 7 5 17
Furto em residências 13 5 11
Tráfico de droga 16 9 8
Furto em automóveis 19 9 5
Furto de automóveis 18 9 6
Condução de automóvel sem licença 13 7 11

Agressões/espancamentos 16 8 8
Difamações, injúrias ou calúnias 18 9 6
Vandalismo 20 10 4
Detenção ou porte de arma 18 9 6
Agressões a agentes da autoridade 13 8 11
Declaração de testemunhos falsos 20 11 4

Fonte: Questionário aplicado ao universo em estudo (N=24).

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Procurando não entrar numa análise demasiadamente detalhada, proce-


deremos à súmula do quadro apresentado100, destacando alguns elemen-
tos:

A. Ao contrário do que é vulgarmente mencionado pelos meios de


comunicação social, a participação em ‘furtos em posto de abas-
tecimento’, ‘roubo por esticão’ e ‘assaltos à mão armada’, os dois
últimos delitos considerados violentos, é bastante reduzida junto
dos jovens observados;
B. Por sua vez, o ‘furto em estabelecimentos’, o ‘furto em automó-
veis’, o ‘vandalismo’ e a ‘declaração de testemunhos falsos’ são
infracções bastante frequentes;
C. Igualmente frequentes, mas em menor grau, encontramos o ‘rou-
bo de pessoas’, o ‘furto de automóveis’, as ‘difamações, injúrias ou
calúnias’ e a ‘detenção ou porte de arma’;
D. Em apenas quatro, das dezasseis tipologias de infracções penais
apresentadas, se denotam discrepâncias comportamentais entre
blacks e pulas:
I. O tipo ‘assalto à mão armada’, apesar de pouco praticada, en-
contra maior participação por parte dos jovens blacks, indo ao
encontro de algumas das conclusões anteriormente apresen-
tadas em excertos de entrevistas quanto ao seu envolvimento
em delitos mais ‘pesados’;
II. Por sua vez, a tipologia ‘furto em residências’ reúne maior
atractividade junto dos pulas;
III. O ‘tráfico de droga’, em sintonia com as conclusões retiradas
aquando da análise das fontes oficiais relativas ao envolvimen-
to de africanos adultos em práticas delituosas, regista valores
superiores junto dos blacks, ainda assim, não muito distantes
dos verificados para os jovens pulas;
IV. Por último, as ‘agressões a agentes da autoridade’ revelam
igualmente um envolvimento ligeiramente superior por parte
dos jovens blacks.
E. Refira-se ainda que das dezasseis infracções consideradas todos
os jovens pulas manifestaram ter já participado em três situações:
99. Por forma a simplificar o entendimento das tipologias usualmente utilizadas nas estatís-
ticas oficiais da justiça tutelar, o investigador optou por re-nomear algumas delas. Desta for-
ma, correndo-se, assumidamente, o risco de descoincidência interpretativa entre as categorias
formais e as por nós criadas, serão seguidamente apresentados os resultados a essa questão
utilizando as segundas, isto é, categorias mais simplistas.
100. Relembremos que este universo era constituído por 24 indivíduos: 13 blacks, 10 pulas e
um cigano.

Estudo de Jovens em Reinserção


168
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

‘furto em estabelecimentos’, ‘furto em automóveis’ e ‘vandalismo’,


não se verificando esse ‘pleno’ relativamente aos blacks.

Da análise do quadro resumo relativo aos tipos de delitos mais frequen-


tes concluímos que não aparentam existir diferenças flagrantes entre os
actos praticados por jovens pulas e jovens blacks, revelando este facto a
democratização da delinquência (Eliana Gersão e Manuel Lisboa, 1994)
igualmente numa perspectiva cultural para além de classista.

Procurando aprofundar a questão do tipo de ‘fezadas’ mais habituais, as


entrevistas revelam-se coerentes com o anteriormente verificado.

E - Que fezadas é que tu já fizeste, tipo mais ou menos?


6 - Casas, lojas de desporto, lojas de telemóvel, carros, cotas, taxistas, pu-
tos, deixa ver mais ... É só isso!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Que tipo de fezadas é que um gajo faz?


15 - Lojas de desporto, ouriversarias, já fiz ouriversarias, lojas de desporto
...
14 - Cafés!
15 - Cafés!
14 - Cafés, carros, pessoas!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

11 - Agora eu, estou mais à base de desviar-me deles e entrar num outro
filme, ‘tás a ver! Entrar num mais, mais maluco!
E - Mas esse filme mais maluco, era o quê, as fezadas? As fezadas mais
rápidas?
11 - Yá! As fezadas, tipo cafés, ‘tas a ver, essas cenas assim, cafés, cubí-
culos (residências)!
E - Esta pergunta agora é p’ra todos. Que tipo de fezadas é qu’um gajo faz?
Quais é que são as fezadas habituais d’um gajo?
7 - Cafés, putos na escola, roubar motas também, bicicletas ...
9 - Carros!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 9 – Pula, 14 anos, Norte; 11 – Cigano, 16 anos,
Alentejo)

No discurso destes jovens o furto de automóveis surge no topo da lista


como um acto, não apenas valorizado, como bastante simples de prati-
car.

Hugo Martinez de Seabra


169
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Diz-me uma coisa, que carros é que vocês limpam?


6 - VTI, deixa ver mais, é todo o tipo de carros, só menos aqueles assim os
fracos...
E - Menos os fracos? O quê o que vocês curtem mais são carros modifica-
dos e quê?
6 - Agora quase todos querem assim tipo PORSHE, BM’s, CLK ...
E - Mas há uns mais fáceis e outros mais difíceis de roubar, não é?
6 - Agora? Agora já não há problemas, um gajo chega, é só um gajo ver
assim um cota mesmo assim com as chaves do carro, ou assim, que o gajo
não se aguente muito, é só chegar lá zzee ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Tenho uma pergunta para ti para falares um bocadinho também, que


carros é qu’um gajo faz? Quais é que são as marcas?
9 - (Sem hesitar) Fiat Uno, CRX, Civic
E - Já vi qu’há aqui muita gente que prefere o Subaru Impreza?
11 - O Subaru, o Subaru é assim, catam muito mais Subaru porqu’é assim,
tu vais fazer uma fezada, tipo com um carro, tipo com um Fiat Uno, tipo vais
fazer uma fezada, tipo tu queiras dar de fuga é escasso, tipo tu tens um
Subaru ou um CRX p’a dar fuga é os melhores carros!
(9 – Pula, 14 anos, Norte; 11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Dois propósitos distintos são identificados no furto de automóveis, impli-


cando critérios distintos na escolha do veículo a furtar. O primeiro está
associado à diversão, furtam para se deslocarem sem as restrições dos
transportes públicos ou das boleias. Podendo ainda estar associada a este
propósito o divertimento de destruição do veículo furtado. Neste caso os
veículos furtados são usualmente aqueles considerados mais ‘fáceis’: Fiat
Uno e Fiat Punto estão no topo da lista.

E - E qual é que é o objectivo quando se limpa um carro?


6 - Há uns que tem o objectivo de ir curtir, partir o carro e não sei quê, não
sei que mais, eu tive esse objectivo, nem era bem esse objectivo que eu
tive, eu tinha era quando eu entrava num sítio e tinha a vareta de óleo no
bolso, eu às vezes vou a festas e encontro com bué da pessoal. Yá, nunca
vou com ninguém no barco, vou sempre sozinho porque sei que encontro
bué da pessoal, yá, acabou pego num carrinho, toca a ir p’á margem sul.
Tipo quando já não há transportes, uma festa até às 3 da manhã, não há
comboio, não há nadinha, olha, vou pela ponte.
E - Depois largas o carro do outro lado! Largas ao pé de casa ou longe de
casa?
6 - É longe, perto, desde que não seja mesmo lá assim ao pé do meu prédio,
tipo da parte de trás. Aqui também não, por causa da casa da minha avó!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Alguns destes jovens defendem algo que se assemelha a um ‘código de


ética’ do delinquente, opondo-se relativamente a práticas de puro vanda-
lismo sem qualquer proveito material.

13 - Mas coisa qu’eu nunca fiz e nunca curti muito ver eles a fazer é a partir
os carros, não entendo, né? Não percebo porqu’é que eles partem, partem
os carros à toa!
E - O objectivo de roubar o carro é p’ra isso?
13 - É p’a andar, p’a curtir, p’a a gente poder ir p’a Palmela, p’à praia,
passar noitadas na praia, assim ... Já roubamos cafés, roubam-se muitos
cafés. Tiram-se maços de tabaco, tira-se as bebidas, não é preciso partir,
não é preciso mexer nas coisas que não queremos: -”Olha não quer deixa
‘tar aí! Quando vier o homem pode crer!” Depois vamos embora ...
E - Mas há pessoal que não é assim?
13 - Há pessoal é, ‘tamos a assaltar quero partir tudo e o quê, e «Porque o
carro fui eu que roubei, e porque tu não tens nada a ver com isso e cala a
boca, o carro é me’mo p’a partir, é bem feita é p’a pagar!», o carro fica todo
rebentado não sei quantos ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Um segundo propósito do furto de automóveis encontra-se relacionado


com as actividades delituosas, servindo o mesmo para auxílio na prática
do acto e na possível fuga às autoridades, caso tal seja necessário. Des-
ta forma, a escolha do veículo a furtar revela-se mais cuidadosa, sendo
preferidos automóveis robustos e potentes, casos dos Hondas, Subarus e
BMWs.

E - Então p’ra qu’é que um gajo limpa os carros? É p’ra fazer fezadas ou é
p’ra ir curtir, desfazer o carro ou ...
11 - Roubar!
12 - É curtir!
7 e 9 - É as duas coisas, é as duas coisas!
7 - É p’ra ir curtir e partir os carros, ouve lá roubar só p’ra curtir. E outros
carros é p’ra roubar e são p’ra fazer assaltos!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 9 – Pula, 14 anos, Norte; 11 – Cigano, 16 anos,
Alentejo; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Foram igualmente identificados diferentes escalões de gravidade de ‘feza-


das’, estando a cada um deles acoplado um igualmente distinto estatuto
simbólico.

E - Então e fezadas de lojas?


7 - Isso está tudo incluído! Quem assalta cafés também assalta lojas!

Hugo Martinez de Seabra


171
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

11 - Isso é o que os jovens querem mais fazer, ‘tás a ver? É lojas, lojas de
desporto já são mais assaltadas do que ir assim p’rá escola e roubar as-
sim putos. Essas cenas assim já não entram tanto, entram mais naquela,
g’andas lojas de desporto, g’andas cafés!
E - O pessoal já está a ir a cenas mais altas?
7 - P’a dar mais lucro!
11 - Yá! Tipo ouriversarias, catar essas cenas assim! Grandes carros!
E - Então e, por exemplo, traficar droga não dá guita também fiche?
Todos - Dá!
7 - A droga é o que dá mais!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Os objectivos destas práticas, para além do poder simbólico (Howard Mc-


Gary, 1999: p.72), revestem-se de uma procura da satisfação das neces-
sidades materialistas (Albert Cohen, 1965). Se em alguns casos foram
mencionados propósitos de satisfação de necessidades básicas, estas são
amplamente superadas pelas associadas à materialização dos desejos
não alcançados pelas vias legais - auxílio da família ou trabalho.

E - Porque é que um gajo faz as cenas? É para conquistar damas, é para ter
dinheiro, é para ter algum estatuto dentro do grupo?
4 - Népia! É para um gajo se aguentar, ‘tás a ver, é para um gajo andar
cheio da ‘paca’, e o caralho!
1 - Yá, um gajo todo ‘grifado’, cheio da ‘guita’, meias, telemóvel, ... também
o que está aí mais é roubo de telemóveis, é o que está a dar ...
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 4 – Black, 16 anos, Lisboa)

6 - Dantes era para um gajo ir comprar uns rubeçadinhos, umas pasti-


lhas, umas cenazitas qualquer, ténis fatelas ou um bonezinho ... Agora não,
agora o objectivo de um gajo é ir a um bar, que é para um gajo vestir-se
bem, então vamos fazer uma coisa boa, não arriscamos o nosso corpo para
comprar uma coisa fatela, mais vale um gajo fazer assim uma cena mais
grande mas depois ficar com bastante dinheiro e não sei quê ...
E - Roupas quê?
6 - Roupas de marca - Nike, Reebok, Kappa - essas coisas.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Igualmente, entre os propósitos das ‘fezadas’ não é negligenciável a in-


fluência que, tanto em termos de poder simbólico como em termos de
possibilidades económicas, os resultados destas práticas produzem nas
suas relações amorosas, isto é, a conquista de ‘damas’.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Qual é o objectivo das fezadas? O objectivo é o guito, o guito serve p’ra


quê?
12 - O guito serve p’ra quê? P’ra ires curtir, p’ra beber ...
11 - Tipo comprar roupa ...
12 - Comprar roupa, meteres-te me’mo pausado, ‘tás a ver!
11 - G’andes shows, g’andas ténis, ires g’andas damas! (...) Um gajo às
vezes cata mais qu’é p’rar comprar roupa, ‘tás a ver? Qu’é p’ra um gajo gri-
far, qu’é p’ra um gajo ter aquela barra, ‘tás a ver? Um gajo tipo entra numa
zona, ‘tás a ver? Entras mal vestido, toda a gente olha p’ra ti, ‘tás a ver?
Mas entras bem vestido, bem apresentado, ‘tás a ver? Todo grifado, entras
com uma barra daquelas, toda a gente olha p’ra ti: -”Foge g’anda barra e
o caraças!” E até tipo as damas, entras todo porco, ninguém te liga, entras
todo fino, toda a gente ...
12 - Ficam logo todas a controlar!
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

E - Então p’aquê que um gajo rouba?


14 - Ter dinheiro, ter roupa, ter ouro!
E - O quê que isso te dá?
14 - Dá-me o quê?
E - Dinheiro roupa e ouro, o quê que tu fazes com isso?
14 - Conquistar a minha grife (estilo)!
15 - P’a um gajo mostrar qu’anda bem vestido, e p’a um gajo mostrar que
tem isto melhor qu’os outros, p’ás damas ficarem a olhar bué p’a um gajo
...
14 - Pois e p’a puxar damas!
E - O quê o objectivo final é ter as damas?
14 - Todas! Quanto mais melhor! (risos)
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Directamente relacionada com os objectivos destas práticas encontra-se


aquilo que Becker (1985) denomina de ‘carreiras desviantes’. Constata-se,
a partir das histórias de vida destes jovens, a existência de um percurso
gradual nas suas práticas desviantes, iniciado no simples furto, muitas
vezes por forma a satisfazer necessidades biológicas - fome -, passando
pela crescente complexificação da actuação, até à completa dependência
do acto. O roubo é apontado por estes jovens como vício e como o mais
poderoso obstáculo à sua regeneração.

16 - Dessa coisa que tu ‘tás a dizer, qu’agora vão continuar, para mim
roubar já é de geração em geração, ‘tás a ver? Porque eu ouvia histórias
d’outros bacanos que roubavam quês,(...), que roubavam cenas mais fra-
cas, qu’agora hoje em dia eles roubam ouriversaria. ‘Tão esses putos a
crescer, ‘tão a ver roubo, que gostam de roubar, que daqui a um dia vão

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

roubar bancos, que depois disso acabar vão roubar outras coisas, os roubos
vão ser cada vez mais altos, isso é verdade!
(16 – Black, 16 anos, Lisboa)

E - Mas com que idade é que começaste?


7 - Com 12 anos!
E - Começaste com 12 anos a quê? Nas fezadas mais pequenas e isso?
7 - Não, já roubava há muito tempo, já roubava assim, mas não rouba-
va assim coisas me’mo de valor, roubava chupas, aquelas bombinhas de
carnaval e o caraças. Depois comecei a meter-me com grandas seitas e
comecei a roubar carros.
(...)

7 - Eu já roubava era por vício.


E - Por vício?
7 - Yá! Comecei a roubar assim umas ceninhas de merda, cenas de merda
que não valiam nada, depois comecei a roubar me’mo cenas de valor, na
praia e o caraças, a partir daí apanhei-lhe o gosto e foi sempre a roubar.
(7 – Pula, 16 anos, Porto)

E - Achas que o pessoal que faz fezadas é só pessoal pobre?


15 - É pessoal que precisa, se não precisasse não faziam isso ...
14 - É pessoal que precisa, ..., ou então é pelo gosto me’mo de róbar, por-
que há pessoas que têm gosto de róbar!
15 - Apanham o vício, depois já nem é gosto de róbar é me’mo vício, vício!
14 - Isto de róbar é mesmo vício! Por exemplo, ter dinheiro fácil, ter aquilo
que quer facilmente sem precisar de se mover ...
15 - Sem precisar de trabalho!
14 - Só correr o risco de ser apanhado que vale mais o esforço se tivesse
a trabalhar!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Um rap escrito por um dos jovens blacks do Colégio é exemplificativo das


etapas que vão progressivamente sendo transpostas:

Puto de Rua

Eu já fui um puto de rua e tive de sustentar a minha vida no mundo do


roubo. Nunca quis ser um delinquente.
Chaves de fenda na mão rouba um grande carrão; ir assaltar uma loja de
desporto no Porto era a minha vida de puto de rua. Para sustentar a minha
vida, para sobreviver, para poder ver o que é a vida do puto da rua, ter de
fazer assaltos à mão armada em Almada, ter de levar fuga da polícia, aqui-

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

lo era uma delícia. Puto de rua tinha uma caçadeira, cena verdadeira, eu
roubava e fumava uéla com ela. Roubar, andar, rastejar humildade atrás
da verdade é a vida do puto de rua.

NA Pena:Toni Di

Quando questionados relativamente à actuação consciente de infracção


de regras de conduta em sociedade, estes jovens referem, em consonân-
cia com o que D. Winnicott (1987, pp.111-117) defende, ter presente que os
actos que cometem são ilegais. No entanto, se esta é a única via que vêem
como possível de ser seguida por forma a alcançarem os seus propósitos,
não hesitam em tomá-la.

E - Então e diz-me uma coisa, tu sabias na altura quando estavas a fazer


essas cenas que estavas a ir contra algumas regras da ..., pronto que isso
é proibido?
6 - Hum, hum!
E - Sabias disso. O que é que um gajo pensava? Cagava na cena!
6 - Não ligava, foge! Eu estou fugido, vou p’ra casa o meu pai vem aqui me
entregar, então, fico fora de casa, eu não vou bater à porta dos outros que
é para ir pedir comida, não quero ficar envergonhado à frente da porta das
casas de pessoas que me chamam mendigo, que é p’ra eu pedir comida.
Então prefiro ser ladrão em vez de ser mendigo!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Refira-se, por último, os parcos resultados em termos de reinserção so-


cial dos institutos com esse propósito, pelos quais alguns destes jovens
passaram, revelando-se, mais do que locais de ensinamento da vida re-
grada em sociedade, locais de aprendizagem, por efeito de contágio, de
novas técnicas e esquemas de infracção penal.

6 - Depois vim aqui para o Colégio, o x (ex-aluno) me ensinou a ‘fazer’ o Fiat


Uno, fazes assim e assim, uma vez depois fugi eu e o y fomos tentar não
deu, depois houve uma vez que fugi eu e o z cheguei ao carro comecei a
perceber um pouco mais da máquina e não sei quê, estava já quase. Depois
houve outra vez, que eu ‘tava sozinho, era um Ford Escort, tinha a direcção
destrancada, entrei no carro, liguei, ligou o carro, comecei a andar, fui an-
dando e, fixe, foi nesse dia que eu aprendi.
E - Foi, sozinho portanto, mas só depois de teres entrado para o Colégio?
6 - Hum, hum. Quando estava no Colégio nem sabia o que era roubar car-
ros, nem sabia que um gajo podia fazer um carro ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Hugo Martinez de Seabra


175
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Desde que vieste p’ó Colégio pioraste?


16 - Piorei!
13 - Piorei!
(...)
17 - Eu quando sair lá p’ra fora, eu já não roubo mais!
4 - Roubas, mas não roubas como d’antes ...
16 - Yá, roubas com umas ideias mais avançadas, qu’é pior!
17 - No Colégio aprendes mais, e mais, ainda aprendes mais! (ri-se)
18 - Isso é mentira!
16 - No Colégio não aprendes mais?
18 - Não! Imagina neste tempo ...., Vieira estás aqui no Colégio há quanto
tempo? 16 - Dois anos!
18 - Se tivesses ficado..., esses dois anos que ‘tiveste aqui roubaste muito
ou roubaste pouco?
16 - Roubei pouco!
18 - Muito, roubaste me’mo muito pouco! Porque se tu tivesses me’mo lá
fora, a essa hora já roubavas helicópetro (risos) ... A falar a sério, porque
todos os dias tu avanças, todos os dias tu roubas uma cena diferente, né?
Aqui não, tu aqui és capaz de ficar p’aí seis meses sem roubar se não fores
a casa.
(...)
16 - Jardel, tu ‘tás a dizer qu’essa história do vires p’ó Colégio não aumen-
tou, tu alguma vez antes de vir p’ó Colégio pensavas em andar em carros
roubados?
18 - Vieira s’eu ‘tivesse lá fora, esse um ano qu’eu ‘tive cá dentro, eu ‘tou cá
há um ano, s’eu ‘tivesse lá fora ..., Vieira tu és me’mo burro! Olha queres
qu’eu te diga um exemplo, eu e o x, quem é que ‘tá mais avançado agora a
roubar?
16 - É o x ...
18 - Porquê?
16 - Porque ‘tá lá fora ...
18 - Mas porquê diz lá!
16 - Porque ‘tá lá fora ...
18 - E eu ‘tou cá dentro, eu sou capaz de ficar aqui seis meses sem roubar,
e o x lá fora ele rouba, vende gansa, consegue roubar putos ainda, ele só
tem uma coisa, teve sorte em não ser agarrado, mais nada. É só isso, tu
lá fora evoluis muito mais do que evoluis aqui, a roubar. Tu aqui ..., eles lá
devem ter uma nova maneira de roubar carro, tu ‘tás aqui ainda nem sabes!
Pensa um bocado!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 18 – Black, 16 anos, Lis-
boa)

Em consequência da abertura da discussão, conclui-se que, mais do que


local de aprendizagem de novos métodos e técnicas delituosas, a institui-

Estudo de Jovens em Reinserção


176
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ção aproxima-se dos seus propósitos, acima de tudo, através da reclusão


destes jovens. A desconstrução do discurso adaptativo das funcionalida-
des de cada instituição aos propósitos dos jovens delinquentes é aqui rea-
lizada por um dos próprios delinquentes, manifestando intencionalmente
aos demais a necessidade de reflexão sobre aquilo que se diz, discurso
muitas vezes já ‘herdado’ de terceiros.

Algumas conclusões podem ser equacionadas relativamente ao tipo de


actos cometidos por estes jovens.

Em primeiro lugar, a denunciada diferenciação de envolvimento em actos


delinquentes entre jovens blacks e jovens pulas não se encontra manifes-
tamente presente nos dados recolhidos no universo em estudo. Detecta-
se alguma diferenciação na participação em delitos mais ‘pesados’, tendo
os jovens blacks manifestado maior envolvimento, ainda assim nunca des-
toando significativamente relativamente aos demais.

Sendo os ‘furtos em estabelecimentos’ os delitos mais frequentes, o ‘furto


de automóveis’ destaca-se pelas suas diversas funcionalidades, isto é, não
apenas confere estatuto simbólico ao autor, como possibilita a sua desloca-
ção, seja em lazer, seja com propósitos delituosos. Realce-se igualmente o
desenvolvimento de autênticas carreiras desviantes fruto de um crescimen-
to da complexidade e gravidade dos actos cometidos, tendo por fase última
o carácter aditivo dos níveis de adrenalina alcançados nestas práticas.

Os objectivos das denominadas ‘fezadas’ passam, desta forma, pela afir-


mação pessoal, possível apenas através da materialização de determinados
desejos - indumentária, adornos vários, telemóveis, etc -, a qual por sua vez
facilita o envolvimento emocional com os elementos do sexo oposto.

Esta é a pequena história


De quem veio aqui parar
Não por ser um santo,
Mas por andar a roubar
Mais tarde ou mais cedo
Tinha que acontecer,
É como a nossa sina
Viver para Morrer,
É a história verdadeira
De quem só fez asneira

Hugo Martinez de Seabra


177
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

2.2 Gangs

A minha clic desespera, impera


Prepara ela uma nova era Hard Core
Subindo na atmosfera
Esperando calmamente, tipo aquela fera
Quando caça a sua presa

A referência recorrente dos mass media e, inclusivamente, de alguns polí-


ticos relativamente à existência de gangs de jovens africanos em Portugal
intersecta em alguns pontos o discurso destes jovens. Esses pontos de
contacto verificam-se essencialmente no desconhecimento da definição
conceptual do termo gang (Ball e Curry, 1995). Mais prudentes que alguns
jornalistas, estes jovens, quando interrogados relativamente à existência
de gangs em Portugal, revelam estar conscientes da existência de alguma
confusão discursiva.

E - Os jornais e as pessoas têm a mania de falar de gangs, tu achas


qu’existem gangs em Portugal?
13 - Não digo gangs né? Digo mais assim grupos de amigos, gangs é uma
coisa diferente, pelo menos assim pelo qu’eu sei, dos meus amigos não
digo qu’é um gang, um gang é pessoas que se metem com droga e que-
rem fazer confusões e isso. Digo mais assim, digo mais um grupo, vêm um
homem né? Yá roubam assim, né? Se for gang não, uma gang quer ma-
tar, quer fazer tráficos de droga. Nós não, nós compramos umas cervejas,
vamos p’ró café, vamos p’ra casa de um, vamos ouvir música, temos que
curtir assim ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - P’ra já o que é qu’é um gang?


16 - Um gang é um grupo de marginais ...
17 - ... de rapazes, que roubam, vão às lojas assaltar, ...
16 - É um grupo de marginais!
17 - Viu aquela reportagem do Carrefour, deu os gangs do bairro do Horta
Nova, é o meu bairro!
E - Mas tu achas qu’existem gangs no teu bairro?
17 - Não, existir, existem, mas eles inventaram, meteram: -”Os gangs do
Horta Nova invadiram o Carrefour”, meteram lá. Gangs, eu sei lá o qu’é que
quer dizer, quer dizer um grupo?
(16 – Black, 16 anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul)

A actuação em grupo de uma forma organizada e planeada constitui, para


estes jovens, uma maior aproximação ao conceito de gang. No seu discur-

Estudo de Jovens em Reinserção


178
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

so verifica-se a primeira condição, uma actividade grupal, mas a segunda


não, as ocorrências são apresentadas como ocasionais (M. Jacinto Sar-
mento, 1999: p.62; Sani e Matos, 1998). Como o próprio termo por eles uti-
lizado - ‘fezada’ - indicia, algo que resulta da oportunidade, do momento.

E - Yá! Não é as notícias que estão sempre a falar em gangs e ...


6 - Eu não acho que há gangs ...
E - O que é que tu achas que é um gang?
6 - Um gang é um grupo assim que chega e faz e acontece ...
E - Mas o pessoal costuma combinar um dia antes -”Ah amanhã vamos
fazer um carro ou isto ou aquilo” ou é assim na altura um gajo reúne-se e
não sei quê?
6 - Na altura!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

16 - Yá, isso é verdade, um gang p’a mim é aquele pessoal que ‘tá sempre
todos os dias, sentam à volta duma mesa, combinam ...
17 - Yá, isso é qu’é!
16 - Combinam as cenas que vão fazer, tipo assim, tipo um gang de dea-
lers, ‘tás a ver? Os gajos todos os dias sentam à volta duma mesa, um dá:
-”Toma esta parte, a ti vai vender a tal e tal!”, ou então sentam-se à volta
d’uma mesa: -”Hoje vamos buscar aquilo no sítio tal e tal!”
E - Tu achas qu’isso existe? Junto com a malta jovem lá fora nos bairros?
18 – Existir, existem, mas dum certo modo geral nós, pelo menos qu’eu
ache aqui no Colégio ninguém faz parte dum gang.
(16 – Black, 16 anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 18 – Black,
16 anos, Lisboa)

No fundo, o reconhecimento da existência de algo aproximado aos gangs


existe. O planeamento das ‘fezadas’ não está completamente ausente, e
existe principalmente quando o alvo é complexo. Nestas situações, reúne-
se um grupo que estuda as actividades do local alvo do delito e planeia o
desenvolvimento do mesmo.

E - O pessoal quando vai fazer uma ourivesaria ou um supermercado o


pessoal planeia alguma coisa ou é assim à maluca?
14 - Eu fazia planos sim!
E - Mas planeavam tipo reuniam-se e viam ...
14 - Tipo já planeámos, tipo quando é assim a cafés e não sei quê ... Pri-
meiro, tipo um dia antes, vamos lá ver com’é que é. Sítios p’a roubar, e ver
com’é que é aquilo, onde é que é!
15 - Como é que ‘tão os cadeados, em que posição é que ‘tão, se é preciso
alguma coisa p’a arrombar.

Hugo Martinez de Seabra


179
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

14 - Yá! O qu’é que precisam, que material é que precisam p’a abrir aquilo
sem dar estrilho, com o menos estrilho possível.
E - E o carro de fuga, arranja-se antes ou arranja-se na altura?
14 - Na altura! Tipo: -”Olha vai lá buscar aquele bote!” Já micamos um car-
ro: -”Olha aquele carro ‘tá sempre ali!” -”Olha tu vais lá mais aquele, vais lá
buscar o carro, metes aqui sem estrilho, apagas as luzes enquanto a gente
despeja cá p’a dentro!” Depois vamos p’a um monte, tipo escondemos as
cenas num monte e só o guito é que vem connosco!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Ainda assim, do conhecimento que alcançámos do universo, estas práti-


cas afiguram-se minoritárias, pois, embora os estabelecimentos estejam
no topo da lista das preferências, são bastante mais complexos e menos
imediatos a nível de resultados que assaltar ‘bétinhos’ nas ruas.

Numa das várias discussões geradas numa das entrevistas colectivas, e


com o propósito de demonstrar ao investigador a inexistência de gangs,
pelo menos nos moldes em que são usualmente referidos, foram abor-
dados, com algum conhecimento de causa, os casos do ‘verão quente’ de
2000 - os assaltos da CREL e do comboio da Linha de Cascais.

E - Porqu’é qu’eles falaram logo no Gang da CREL, tu achas qu’era um


gang aquilo?
16 - Era um gajo d’um bairro, um gajo d’um outro bairro, um gajo d’outro
bairro. Aquilo é um gang?
13 - Sabes porquê que os ladrões da CREL não eram um Gang? Sabes
porquê? Aquilo foi ..., aquilo é assim, eu agora quando sair nas férias ‘tou
a girar, não ‘tou orientado, encontro o Peter, eu e o Peter encontramos o
Bergkamp, eu o Bergkamp e o Peter, encontramos o Jardel, nós os quatro,
‘tamos sem guita, dizemos: -”Eh temos que orientar, qual é um sítio fixer
p’a nos orientar? Eh nas bombas, nas bombas se calhar, nas bombas é
fixe!” Vamos lá!
4 - Isso aí não é gang!
17 - Então, então aqueles 50 gajos que roubaram um combóio, não sei
quê que roubaram as pessoas, isso então é um gangão, eram 50 era um
gangão! (risos)
16 - Essa cena, essa cena aí ‘tá muito mal, ‘tás a ver? Vou-te explicar já
porquê qu’essa cena do combóio ‘tá muita mal. Porqu’eles meteram no te-
lejornal: -”Um gang de trinta e tal pessoas hoje assaltaram um combóio”,
um gang haã! Um gang! P’ra mim, um gang é um grupo qu’anda todos os
dias, um gang ali eram um gajos de todos os bairros, praticamente de to-
dos os bairros, isso é um gang?
16 - Hugo, eles tinham ido p’rá praia, a maioria deles nem se conheciam,
mas como um conhecia o outro, o outro conhecia outro, outro conhecia

Estudo de Jovens em Reinserção


180
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

outro, entraram no comboio, já viram: -”Somos muitos!”, eles são poucos,


roubaram!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul)

Refira-se, por último, no sentido da apropriação e moldagem dos concei-


tos que estes jovens desenvolvem discursivamente, por um lado, a identifi-
cação de outro tipo de gangs em Portugal e, por outro, a conceptualização
discriminatória de gang realizada pelos mass media.

E - Voltando ao grupo de amigos, o pessoal, jornalistas e não sei quê, tem


a mania de falar em gangs, vocês acham qu’há gangs lá fora?
14 - Não é gangs! Eu acho que gangs é aqueles que se juntam todos p’a
fazer distúrbios, né? Ou que se juntam p’a fazer qualquer coisa, é um gru-
po unido só p’a fazer disparates, né? Acho que não ..., eu não ando com
nenhum gang.
E - Mas acham que há gangs em Portugal?
14 - Eu acho que há! Há bastantes até! Tipo os skinheads, os skinheads é
gangs!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

14 - Os bétos também andam em grupo, não é só as pessoas como nós


qu’andam em grupo, os bétos também andam em grupo, e dá p’ra reco-
nhecer bem um béto de uma pessoa normal. Tipo se vires assim, gajos
com calças largas de fato de treino e não sei quê cheias de fios de ouro,
pensam logo qu’aquilo é um gang. Agora se virem um grupo de bétinhos, é
um grupo de bétinhos, dá logo p’a ver qu’é um grupo de bétinhos.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Concluindo, estes jovens reconhecem a existência de gangs em Portugal,


que não consideram ser exclusivos dos jovens blacks. Discursivamente
distanciam-se dessa terminologia, preferindo a utilização de termos como
crew, clic ou simplesmente grupo de amigos. Mas, pelo relato que fazem
do seu envolvimento em práticas delituosas, não apenas a actividade em
bando é inquestionável, como se verifica haver por vezes articulação orga-
nizada das mesmas. Em suma, a sua inclusão em gangs carece de uma
elaboração conceptual deste termo.

2.3 Vítimas

Contrariando alguns estudos (Lawrence E. Cohen et al., 1981; Randall Ken-


nedy, 1997) que assinalam a proliferação igualmente junto das camadas
sociais mais baixas da vitimização deste tipo de delinquência, detectou-se

Hugo Martinez de Seabra


181
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

que, conforme foi anteriormente mencionado, a vítima mais frequente das


práticas destes jovens é o bétinho, sinónimo de jovem branco rico.

16 - São uns meninos mimados que têm tudo, que têm direito a mais qu’um
gajo...
E - Mas é só pulas?
4 - Não, blacks também ...
16 - Blacks também, mas a maioria é pulas!
E - E vocês se apanharem um bétinho black, vocês roubam o gajo?
16 - Não, eu sou preto, eu não roubo pretos!
13 - Não, ‘tás a ver?
4 - Eu não sei, um gajo tem aquela paranóia, me’mo se for um preto burro
vais roubar, não entra me’mo, não consigo me’mo. Não é ser racista ‘tá a
ver? Não é ser racista, eu não sei explicar mas eu nunca roubei um preto,
só roubo brancos!
16 - Eu digo-te é ter respeito entre a raça!
13 - Como eu, por exemplo há dois tipos de bétinhos, né? Há aquele tipo de
bétinho pobre que não faz nada, vai à escola, por causa da mãe, porque a
mãe diz: -”Estuda, queres um dia ter uma boa profissão, não sei quê, não
sei que mais!”, mas tam’ém tem aquele tipo de bétinho mais rico, o bétinho
rico. Eu por exemplo, se for p’a roubar, se por exemplo tem o bétinho pobre
mas esse bétinho pobre tenha 1000 escudos e o bétinho rico tenha 500 es-
cudos eu vou logo ao bétinho rico, ‘tás a ver? Sabes porquê? Não interessa
se é branco ou preto, porquê? Porque o bétinho rico, é pá normalmente
costuma ganhar a mania ‘tás a ver?
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

A existência de aparentes códigos de honra que levam estes jovens a sen-


tirem-se constrangidos na prática de actos semelhantes tendo por alvos
jovens com a mesma cor de pele, leva a que as suas actividades sejam
conotadas, por alguns meios de comunicação social, de discriminatórias e
xenófobas, uma vez que têm apenas por vítimas jovens pulas. Mas parece-
nos que a atitude é mais complexa, uma vez que a cor simboliza as desi-
gualdades sociais e a diferenciação na prática delituosa reveste-se tam-
bém, no discurso dos jovens, da legitimidade da recusa de inequidade.

Verifica-se algo semelhante no que se refere à idade das vítimas, sendo


frequente referirem a preferência por indivíduos do sexo masculino e de
idades semelhantes às suas, em detrimento dos idosos, vistos como im-
possibilitados de reagir.

Estudo de Jovens em Reinserção


182
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

15 - De mota puchões a malas, eeuu!


E - Então e vocês não têm problemas em fazer essas cenas? Não pensam:
-”Eh parti a cota toda e o caralho!”?
14 - Ah eu nunca assaltei nenhuma cota, tentei uma vez só que deu-me
pena. Deu-me bué da pena, a partir daí nunca mais róbei nenhuma velha!
Só bétinhos, me’mo assim: -”Tu anda cá!” ...
15 - Bétinhos é que dá me’mo gosto róbar eles ... Todos armados em es-
pertos, e isso, todos fricks: -”Vai abre lá a carteira, dá aí, guito!”; -”Ah não
tenho, não tenho!”, Um gajo abre a carteira ao fim ao cabo tem! Depois um
gajo, zzeett, vai dar umas voltas.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Refira-se, por último, o facto de o fenómeno da moda encontrar-se, igual-


mente, presente na escolha do alvo das ‘fezadas’.

E - Então e depois são esses bétinhos pulas que vocês depois às vezes
também limpam, não?
6 - Ah pois! Se um gajo tiver assim, enrascado, mas também agora já não
‘tá na moda ...
E - O que é que está na moda agora?
6 - É lojas de desporto, telemóvel, ouriversaria ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Em resumo, se por um lado parece existir algum senso de adequação do


alvo em termos de idade e género às características do infractor, por outro
a exclusividade ‘racial’ dos alvos denuncia um comportamento discrimina-
tório, mesmo racista.

2.4 Armas

Agora no microfone
Dá-lhe tipo Alcapone
Rimas que saem disparadas
Tipo uma bala

A utilização de armas, inclusivamente de fogo, é referida como frequente,


adequando-se as mesmas aos fins da acção. Desta forma, se o propósito é
assaltar um outro jovem, no máximo utiliza-se uma navalha (chino), agora
se o alvo é um estabelecimento, o recurso à arma de fogo é preferido.

E - E um gajo usa armas ou não?


14 - Quando é preciso! Tinha sempre uma navalha no bolso ...
15 - Yá!

Hugo Martinez de Seabra


183
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - O pessoal aqui dentro já me falou em canhões!


14 - Canhões, quando era estrilhos assim mais pesados, quando é me’mo
fight, fight.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

E - O pessoal quando está a fazer essas fezadas, tu já falaste em ouriversa-


rias, lojas de desporto, o pessoal usa armas ou leva armas?
6 - Às vezes. Aquilo não é assim tem que se levar qu’é p’ra intimidar os
donos das ouriversarias. É tipo, o dono da ouriversaria vê um gajo a chegar,
mão a abanar (simulando uma arma com a mão dentro do casaco): -”Ah
quero esse ouro todo!”, põe-se a gritar Ahhh! Um gajo se está com uma
arma: -”Pouco barulho, olha que morres já agora me’mo!” O gajo fica: -
”Porra eu não quero morrer agora, podes levar aquilo que quiserem!”, não
é?
E - Que armas é que usam?
6 - As que tiverem qu’é p’ra intimidar o dono da loja.
E - O qu’é normalmente? Ponta e molas ou pistolas?
6 - Pistolas!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Os propósitos de utilização destas armas revelam-se descoincidentes no


discurso destes jovens. Se uns afirmam servirem as mesmas apenas para
intimidar, evitando ao máximo a sua utilização, outros resumem a questão
à máxima do ‘tudo ou nada’, se a sua liberdade estiver em questão, utili-
zam as armas.

E - Voltando às armas. Vocês acham que o pessoal que faça uma fezada e
leve um canhão, se o tiver que usar, usa na descontra?
4 - Não, não, depende, depende, eu pelo menos eu p’a usar uma arma, eu
p’a usar uma arma, oh pá não sei. P’ra mim chegar e logo dar no momento,
não consigo, tem que haver sempre uma raiva, tem que haver sempre uma
raiva.(...) É raro, um black quando vai fazer uma fezada só aponta, nunca
dispara, ou dispara p’ó lado ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

E - Tu não hesitarias de puxar um chino e de te defenderes com um chi-


no?
13 - Não! Eu digo que tenho um chino no bolso, mas eu não era capaz de
chegar numa pessoa e dar-lhe um tiro ou dar-lhe uma facada assim á toa,
não era capaz.
(...)
E - O pessoal quando vai fazer fezadas costuma levar armas ou não?
13 - É mais assim p’á bófia, né? Mas levam sempre!
E - S’a bófia aparecer o pessoal não vai hesitar?

Estudo de Jovens em Reinserção


184
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

13 - Vão! Disparam tiros p’ó ar, a dar tiros na bófia assim à toa ... nunca vi!
Não, já vi uma vez a darem tiros, né? Mas nada, acho que não dá!
E - E achas qu’isso ‘tá a aumentar lá fora?
13 - Isso cada dia que passa aumentam, hoje em dia você vai roubar uma
loja você tem que roubar aquela loja a todo o custo, me’mo se for preciso
disparar um tiro contra uma pessoa você dispara qu’é para ela não ir-se
chibar!
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - Quando o pessoal vai fazer ouriversarias ou um café, o pessoal leva só


navalhas ou ...
15 - Arma!
14 - Canhão!
E - E vai carregado ou vai ...
15 - Carregado!
E - E vocês acham que o pessoal se houver estrilho ‘tá pronto a ...
15 ...a disparar.
14 - Está! se tiver na cabeça que tem que fazer aquilo, vai fazer aquilo, nada
nos impede, se tiverem de morrer morrem.
E - Mas o qu’é que isso significa, é desespero, é loucura, é o quê?
14 - É desespero, se não conseguirem fazer aquilo que querem ou ..., pre-
ferem morrer do que ir p’á cadeia aqueles tantos anos.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

A obtenção das armas de fogo revela-se, para estes jovens, relativamente


fácil, havendo diferenciação de preços conforme se trate de uma arma
com carregador, apenas de alarme ou sem carregador, sendo, inclusiva-
mente, referido que a proveniência habitual das mesmas é Espanha.

E - Onde é que o pessoal arranja isso?


6 - Compra ou ‘feza’, vão roubar tipo armas de polícias ou aqueles cotas
que têm pistolas de alarme, ou pistolas que estão dentro de um carro. Por
exemplo, roubam um carro tem lá a pistola, pronto fezada. Outros fezaram
uma pistola normal, que apanharam aí em algum sítio, entram numa loja
de caçadeira, numa loja de armas e toca a trazer armas ...
E - E esse pessoal assim bué de novo com armas? Assim p’aí da tua ida-
de?
6 - (Sem hesitar) Ah da minha idade há muitos!
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Lá p’rás tuas bandas há muita gente com arma ou não?


13 - Yá! Lá isso há, não é?
E - O quê? Só facas ou canhões mesmo?
13 - Pistola, pistola! Tem mais pistolas que faca.

Hugo Martinez de Seabra


185
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Com’é que o pessoal arranja as pistolas? É fácil arranjar uma pistola?


13 - Nada! Mas é contrabandos de Espanha, lá! Costumam mais vir de Es-
panha, pelo menos lá em cima na Bela Vista a maioria das armas qu’estão
lá vêm todas de Espanha.
E - Quanto é que custa uma arma, sabes?
13 - Não! Eu só comprei uma, foi quando a minha mãe queria-me queimar
as mãos, levei p’rá escola aquela pistola, levaram-me ao Conselho Directi-
vo, apanharam-me com a pistola, e com uma navalha com mais de quatro
dedos, foi por isso qu’eu vim p’ó Colégio!
E - Uma navalha e mais o quê?
13 - Mais de quatro dedos, como se chama na tropa, mais ou menos assim!
Qu’eu tinha na mala p’a roubar os putos da escola (rindo-se).
E - Quanto é que te custou a pistola?
13 - Sem balas, 7, 7 e meio (contos)!
E - Mas estava a funcionar se pusesses balas lá dentro?
13 - S’eu pusesse balas funcionava, mas eu nunca na minha vida me’mo ia
andar com uma pistola ..., já andei com uma pistola com balas tipo a dar
tiros p’ó ar no ano novo, caçadeiras e isso a disparar, ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - E é fácil arranjar um canhão?


14 - Eu sei quem vende, né? Só que não é chegar lá: -”Olha quero ...!” Tipo
falas com o gajo: -”Olha não dá para arranjares aí um canhão e não sei
quê!” Passados uns tempos vais lá e dão-te o canhão. Só que ninguém sabe
a origem dos canhões.
E - Já me disseram que muitos deles vêm de Espanha!
14 - Vêm de Espanha porque lá é mais fácil de obter as armas, trazem de lá.
Ou então pessoas que têm licença de porte d’armas e depois vendem.
E - Quanto é que custa um canhão?
14 - Tipo ... O meu irmão foi buscar um canhão a 25 contos, 9 mm, é uma
pequenina ...
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Para estes jovens a navalha ou a pistola são armas conhecidas. Quer as


usem com propósitos essencialmente intimidatórios, reservando, como
dizem, a sua efectiva utilização para casos de extrema necessidade, ou
não, é um facto que fazem parte do seu quotidiano, em casa, na rua ou na
escola.

2.5 Sazonalidade

No discurso destes jovens delinquentes foram identificadas diferentes épo-


cas do ano em que a sua actividade difere em termos de intensidade. Desta

Estudo de Jovens em Reinserção


186
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

forma, o verão apresenta-se como o período mais frequente para estas prá-
ticas, por oposição ao inverno, época habitualmente mais calma .102

13 - Às vezes me’mo por mim mesmo nem saio à noite. Porquê? Porqu’eu,
por exemplo no Inverno, no inverno é raro verem-me na rua, o melhor tem-
po da minha vida não é o verão ... é o inverno. Porquê? Porque no inverno
eu vou ali acendo a lareira, meto uma manta, eu a minha mãe e a minha
irmã, no inverno passado, metemos uma manta, vamos à chuva a correr
aluga-se um filme, volta-se p’a casa, vês grandes filmes, quentinho assim.
Tenho fome, não ‘tou na rua, não preciso d’ir róbar p’a ir comer. Depois en-
tra o verão, vou p’á praia hoje que ‘tá calor, amanhã vou p’á praia outra vez,
vou p’ás piscinas, -”Eh boy tenho que levar bué da pitéu, eh! Oh, vou róbar,
não faz mal!” No inverno eu não tenho pica p’a sair, qu’é p’a sair p’a ir levar
com a chuva, não tenho pica, no inverno ... você vai ver os meus processos
a maioria deles são todos no verão! Tenho dois processos no inverno, há
dois anos que no inverno não entro numa esquadra. Porquê? Porque no
inverno passo o dia todo em casa. No inverno os polícias, todos os polícias
que me conhecem dizem: -”’Tamos no inverno, temos sorte, pelo menos
do Semedo podemos ‘tar descansados qu’ele agora pára em casa!” . Eu o
inverno é p’a ficar em casa me’mo, o Inverno tenho lá o colinho da minha
mãe, quentinho, uma mantinha, vejo um filme, vejo dois ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - Há diferentes alturas do ano em qu’um gajo rouba mais?


4 - Há!
13 - É no verão! É o verão!
16 - Faz menos frio, o tempo ‘tá melhor, dá mais jeito ...
13 - Quero sempre m’orientar p’a ir p’á pisicina, p’a ir p’á praia ...
4 - Sabe porquê, um gajo vai p’á piscina, um gajo vai p’á praia, um gajo vai
p’ó Algarve ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

Algo de semelhante verifica-se relativamente aos dias do mês seleccio-


nados para os actos delituosos que têm pessoas por alvos. Aqui o fim do
mês, coincidente com a recepção do ordenado mensal, tem preferência.

E - Se vocês escolhem alturas do mês p’a fazerem fezadas?


14 - Eu já escolhi porque tinha mesmo que ser. Nós tinhamos feito uma
fezada, tinhamos sido apanhados pelo senhor, tinhamos ido assaltar um

102. Ver Boaventura de Sousa Santos, Maria M. Leitão Marques, João Pedroso e Pedro Lopes
Ferreira (1996), Os tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso Português, Centro de
Estudos Sociais, Centro de Estudos Judiciários, Edições Afrontamento, Porto, p.327.

Hugo Martinez de Seabra


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café já ‘tava lá o homem com uma caçadeira dentro. -”Vocês ‘tiveram aqui
dentro noutro dia roubaram não sei o quê ..., eu não quero problemas com
vocês só quero, agora só quero os 40 contos em material que vocês tiraram
daqui!” ‘Teve lá a GNR e não sei quê e esse senhor disse: -”Se vocês trou-
xerem o dinheiro antes de não sei quando eu retiro a queixa!”. Depois nós
tivemos que escolher o fim do mês qu’é p’a ir fazer fezadas. Qu’era quando
as pessoas ‘tavam com mais dinheiro. Era dia de receber, p’aí dia 1, dia 31,
fomos p’a Lisboa, tufa, cada pessoa qu’aparecesse era logo, mal fizemos
40 contos, voltámos outra vez.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

2.6 Mobilidades

Regista-se igualmente uma escolha em termos geográficos dos locais mais


propícios e adequados à realização de determinados tipos de infracções103 .

E - Em Lisboa onde? Ond’é qu’é mais fácil parar p’a fazer essas cenas?
14 - No Campo Grande! No Campo Grande há assaltos a torto e a direito
...
E - Onde nos jardins?
14 - No jardim não, no Metro. Ali no Metro, ali há tipo os terminais todos, né?
Apanha-se metro, autocarros e não sei quê, lá é onde gira mais pessoas,
e tipo há uma rua ali, qu’é tipo mais escondida, cada um que passasse ali:
-”Olha anda cá, vai dá-me já a guita toda que tens se não fodo-te todo!”
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

E - Porqu’é que um gajo tem esta atracção tão grande pelo Colombo, vocês
davam o foguete daqui ia p’ró Colombo, porquê p’ró Comlombo?
1 - Sabe porquê? É p’ra ver gajas, p’ra ver gajas! P’ra roubar!
E - P’ra roubar? P’ra roubar as gajas?
1 - Não, os gajos!
(1 – Black, 16 anos, Setúbal)

Em paralelo, ao contrário do que é habitual em jovens de 15 e 16 anos, os


entrevistados manifestaram um conhecimento pessoal bastante apurado
da geografia portuguesa e, igualmente, espanhola. Efectivamente, a mo-
bilidade destes jovens é acentuadíssima, sendo possível num mesmo dia
viajarem, por meios próprios, para o Algarve, o Porto ou Espanha104.
103. Ver Alina Isabel Pereira Esteves (1999), A Criminalidade na Cidade de Lisboa, uma geogra-
fia da insegurança, Edições Colibri, Lisboa.
104. Relativamente à problemática da abertura das fronteiras europeias e da facilitação da
movimentação de criminosos ou delinquentes ver Günter Krause (1998), “L’ouverture des fron-
tières en Europe. Une voie de pénétration pour les drougues et la criminalité?”, in Documents
– Revue des Questions Allemandes, Nº1/98, pp. 41-46.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - E é só aqui p’a Lisboa que o pessoal faz as cenas ou já ‘tão a ir mais


longe?
6 - Nós vamos mais longe. Tipo, Algarve vão p’a lá de carro, Porto, o pessoal
mete-se nas estradas e ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Há diferentes alturas do ano em qu’um gajo rouba mais?


(...)
4 - Sabe porquê?, um gajo vai p’á piscina, um gajo vai p’á praia, um gajo vai
p’ó Algarve ...
16 - P’ó Algarve!
4 - Ou um gajo rouba um carro e vai p’a Espanha ...
E - Vai muito people p’ó Algarve nessa altura fazer fezadas?
13 - É sempre!
(...)
4 - Sabe porquê? Tipo, eu roubei em Évora, Porto, Castelo Branco, e Algar-
ve, bué da cenas ... vai p’a longe me’mo, lá p’a longe, qu’é p’a não haver
espiga, tipo roubas um carro lá, vens p’aqui na descontra ...
E - E o facto de ser assim tão longe, p’a vocês não é estrilho, não é proble-
mático?
Todos - Não!
E - Então ‘perem lá. Porqu’é que as notícias têm a mania de dizer que o
pessoal da margem sul é qu’é o pessoal mais, mais duro?
16 - Não é nada, o pessoal daqui é que vai p’a lá, espigar a zona deles! Yá,
vamos espigar a zona deles.
4 - Aqui em Lisboa ...
16 - Já ‘tá muito espigada.
4 - Aqui é bué da bófia, bué da trânsito, e não sei quê ...
13 - Enquanto que lá na margem sul a maioria são Alentejanos ...
16 - E lá na margem sul tem mais lojas ...
17 - Tem mais lojas e é mais fácil!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul)

Factor comum à elevada mobilidade destes jovens é a sua ilegalidade, seja


nas trajectórias mais pequenas nos transportes públicos - ‘andar ao pica’
- seja nas deslocações maiores - veículo furtado. Nesse sentido, as deslo-
cações destes jovens não são encaradas, pelos próprios, como problemá-
ticas, o furto de um automóvel possibilita a sua autonomia a nível nacional
e mesmo no país vizinho. Quando o propósito é desenvolver actividades
delituosas, estes jovens deslocam-se para longe do local de residência
por forma a não atrair maior controlo policial para essa área, procurando
transferir essas preocupações de controlo social formal para zonas con-
sideradas ‘rivais’.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

2.7 Conhecimento da Lei

Dos vinte e quatro respondentes ao questionário aplicado, dezoito (nove


blacks e nove pulas) revelaram ter conhecimento do funcionamento da
lei anteriormente ao seu internamento nos colégios de reinserção social.
Isto significa que uma larga parte destes jovens ao praticarem as suas
acções delituosas tinha consciência das restrições legislativas existentes
relativamente aos inimputáveis, nomeadamente a impossibilidade de se-
rem presos.

E - Até aos 16 anos pensavas assim ou ias a tudo, e agora que passaste os
16 já...
12 - Não, quando passei os 16 comecei a pensar duas vezes. Porque p’ra
já já tenho responsabilidades, já tenho idade p’ra responder, e depois tam-
bém não me vou ‘tar a prejudicar. Já tenho tantos processo, já levei tanta
porrada nas esquadras, porqu’é que agora vou ‘tar a me prejudicar mais, é
me’mo assim!
(12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

E - P’a quê que um gajo rouba?


13 - Ah se vou p’á esquadra não faz mal, eu vou p’á esquadra tantas vezes
nunca me aconteceu nada, nunca me bateram, nem nunca me meteram no
calabouço, não faz mal!
(...)
E - Achas que o pessoal quando ‘tá a fazer as fezadas, assim malta nova,
eles sabem qu’até aos 16 anos ‘tão na boa, que não há estrilhos?
13 - Sabem, toda a gente sabe, toda a gente sabe.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - Tu há bocado disseste que o pessoal sabia que podia fazer as cenas por
causa da idade e isso, o pessoal quando ‘tá lá fora sabe que até aos 16 anos
em princípio não há grande estrilho, o pessoal tem isso em consciência
quando ‘tá a fazer as fezadas?
14 - Claro! Todos dizem: -”Olhem aproveitem mas é até aos 16 anos, qu’é
enquanto podes fazer merda e que safas-te sempre!” Mas não é bem as-
sim, não!
15 - -”Aproveita agora qu’apartir dos 16 já vais de cana!”, -”Faz agora, tens
hipótese de roubar cenas fixes p’a ti porque depois a partir dos 16 já não
tens hipótese, fazes qualquer merdinha vais logo de cana!”
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

O hábito do lucro fácil, por um lado, e a impossibilidade de inserção no


mercado de trabalho nos moldes em que pretendem, por outro, levam al-

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

guns destes jovens a arriscar a continuação das práticas desviantes, numa


escalada crescente de custos/benefícios, para além da meta inicialmente
definida dos 16 anos.

2.8 Reincidência

A reincidência torna-se desta forma fenómeno comum. O trabalho de res-


socialização que os Colégios de Reinserção Social deveriam realizar jun-
to destes jovens produz resultados efectivos muito diminutos. Uma larga
percentagem dos jovens institucionalizados, mesmo aqueles que estão
para além da idade da inimputabilidade, estão conscientes da sua possí-
vel futura reincidência. É nesta sequência que, frequentemente, os mass
media, produzem uma correlação directa entre algumas ocorrências de-
linquentes e jovens fugidos ou com historiais de passagem por este tipo
de instituições.

No questionário, apenas 7 dos inquiridos admitiram a possibilidade de vol-


tar a cometer delitos, tendo os blacks (cinco) sido mais numerosos que os
pulas (dois)105. No entanto, outros 6 (três para cada lado) revelaram não
saber o que o futuro lhes reservava em termos de reincidência. Estes va-
lores mostram, mais do que a ressocialização produzida pela situação de
internamento, uma completa desconfiança e desconhecimento do que no
futuro poderá estar reservado a estes jovens, havendo consciência de que
poucos são aqueles que, ao saírem dos colégios, conseguem manter-se
nos cursos técnico-profissionais e levar uma vida ‘diferente’.

E - Qual é que é o teu objectivo quando fores lá p’ra fora? Vais continuar a
fazer estrilho ou não?
6 - Não sei.
E - Não sabes? Estás com que idade?
6 - 16.
E - 16? Já és imputável, não é? Depois já não é pr’aqui, é lá para cima (Ins-
tituto Prisional)! Achas que agora ..., tipo a tua mãe vem cá amanhã, não
é? Achas que o pessoal em casa também já está pronto p’a te receber e os
gajos te arranjarem lá um curso e isso? Achas que vais atinar ou não?
6 - Vou tentar.
E - Vais tentar. O qu’é que pode acontecer?
6 - Tipo, pode acontecer qu’eu não arranje dinheiro p’a mim e tenha que

105. Para um aprofundamento da questão da reincidência junto de grupos juvenis minoritários


ver George S. Bridges e Sara Steen (1998), “Racial disparities in official assessments of juvenile
offenders: attributional stereotypes as mediating mechanisms”, in American Sociological Re-
view, Volume 63, Agosto de 1998, pp. 554-570.

Hugo Martinez de Seabra


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fazer alguma coisa p’a m’orientar.


E - Mas tu agora já tens 16 anos, se fizesses alguma coisa o qu’é que tu
fazias?
6 - Fazia uma ouriversaria ou uma loja de desporto ...
(...)
E - Achas que lá fora, p’a trabalhares, não há nada assim que tu curtas
fazer, que dê p’ra fazer? O qu’é que tu curtias fazer?
6 - Sei lá! É tudo bué da fatela. Curto trabalhar sentado, estar aqui sentado
a desenhar, assim a escrever.
E - E achas que não vais conseguir arranjar um trabalho assim?
6 - (aceno negativo com a cabeça olhando o chão).
E - Que tipo de trabalho é que achas que vais ter de fazer?
6 - Eu não vou trabalhar!
E - Hum?
6 - Eu não vou trabalhar!
E - O qu’é que vais fazer?
6 - Vou roubar! Faço uma g’anda fezada numa ouriversaria, e fico logo
orientado p’á vida toda ...
E - Então e se fores agarrado?
6 - Se for agarrado, fui!
E - Se fores agarrado é cana!
6 - Fico lá o tempo. Se for agarrado ou agarram-me antes de fazer a ouri-
versaria ou depois, ou antes de eu sair ou antes de eu entrar, se não posso
guardar a massa...
(O Toni, jovem black de 16 anos, aqui entrevistado encontra-se presente-
mente num Instituto Prisional aguardando julgamento. É um dos quatro
casos de jovens que participaram nesta observação que estão actualmente
em situação de reclusão)

E - Tu achas que vais voltar a fazer estrilhos António?


14 - Eu? Eu tipo não ‘tou a dizer que não vou voltar a fazer, mas tipo da
maneira que fazia e com a regularidade com que fazia, não!
E - Já ‘tão ambos com 16 anos! Né?
14 - Yá! Nã, não quero voltar a fazer, não é que não acabe na tentação, né?
É mesmo aquele bichinho do ladrão, mas vou fazer um esforço p’a não
roubar!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Associado à reincidência vem frequentemente o argumento do vício, con-


dizente com a anteriormente mencionada carreira desviante (H. Becker,
1985; Gameiro e Duarte, 1999) desenvolvida pelos delinquentes.

4 - Quem rouba agora? São tipo aqueles bacanos que começaram a roubar
já desde os 10 anos, 12 anos, já começaram a roubar, aquilo torna-se um

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

vício, roubar. Tipo eu sou um ladrão, dos mais passados, que há dois anos
ou três eu roubava, andava sempre cheio da dinheiro e não sei quê, eu não
vou conseguir parar ...
E - Vocês acham que quando saírem daqui vão conseguir parar?
4 - É difícil, é difícil, aqui uma pessoa pára, mas tam’ém não há g’andas...
(...)
E - Não! É que da próxima vez que tu roubares não é p’aqui que vens!
4 - Um gajo rouba sempre, um gajo rouba sempre ...
16 - Nem que seja uma coisinha assim pequena.
4 - Mas um gajo rouba com mais cabeça!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa)

A elevada reincidência dos jovens inimputáveis que passaram pelo siste-


ma de reinserção social português denuncia, por um lado, a falência dos
propósitos da Organização Tutelar de Menores, em vigor até finais de 2000
e, por outro, o engrossar dos números da delinquência e criminalidade
juvenil portuguesa.

3. Consumos aditivos

São os putos
Que metem a uéla a girar
Se for boa, fumamos
Se não, só para paiar
A minha vida lá fora é sempre a fumar
Sempre a dar no álcool
Sempre a driguidar, yá!

Na procura do melhor conhecimento das práticas habituais destes jovens,


debruçar-nos-emos seguidamente sobre os seus consumos de substân-
cias aditivas, nomeadamente de álcool e droga.

Duas questões foram incluídas no questionário relativamente a este tipo


de consumos. A primeira associada ao consumo de drogas, onde em caso
afirmativo se pedia ao inquirido para mencionar que drogas e com que ida-
de fora realizado o primeiro contacto. Relativamente à segunda, os moldes
eram os mesmos, desta feita relativamente ao consumo de álcool.

Cândido da Agra e colaboradores publicaram em 1997 um estudo intitulado


Padrões de consumo e desviância em menores sob tutela, onde apontam
algumas estatísticas que nos auxiliam no enquadramento dos resultados
que se seguem. No que se refere ao consumo de álcool, a taxa de prevalên-

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

cia ‘ao longo da vida’ foi de 79,1% e relativamente às drogas de 36,8% .106
Os resultados evidenciam elementos perturbantes, tendo em conta a ju-
ventude do universo em estudo.

Relativamente ao consumo de álcool destaque-se:

A. Apenas dois dos inquiridos manifestaram nunca terem tido con-


tacto com bebidas alcoólicas, ambos blacks. Acrescente-se a ‘não
resposta’ de um outro jovem igualmente black;
B. Em termos de idades do primeiro consumo, realce-se a precocida-
de do mesmo, sendo que perto de 60% do universo (catorze indi-
víduos) o fizeram até aos doze anos, inclusive. Destes a maioria é
pula (oito casos), tendo um destes jovens sido mesmo alimentado
desde novo com as denominadas ‘sopas de cavalo cansado’. Ainda
dentro deste grupo, destaquem-se os quatro blacks, contra três
pulas, que iniciaram o seu consumo de álcool antes dos dez anos.
O início do consumo de álcool dos treze anos em diante (máximo
quinze) aplica-se a 33,4% dos casos (oito indivíduos), sendo os bla-
cks aí maioritários (cinco casos);
C. O tipo de bebidas mais frequentemente referidas foram as denomi-
nadas bebidas brancas ou espirituosas (83,3%), das quais se des-
taca o whisky, o Gold Strike e o Pisang Ambon. Incluem-se neste
grupo todos os pulas e todos os blacks que referiram ter, no pas-
sado, contactado com álcool. A cerveja foi referida em apenas uma
situação, tendo o Grogo (bebida tradicional africana) sido mencio-
nada por um black e um pula.

No caso da droga107, destaque-se:


A. A existência de apenas três jovens (todos blacks) no universo ob-
servado que nunca tiveram contacto com drogas de qualquer es-
pécie;
B. Até aos doze anos, 50% (doze casos) deste universo consumiu
droga. Nenhum jovem black contactou com a droga antes dos dez
anos. Ainda assim, 29,2% do universo total teve até essa idade

106. Cândido da Agra (Direcção Científica) et al. (1997), Padrões de consumo e desviância em
menores sob tutela, Colecção Droga Crime, Volume 5, Gabinete de Planeamento e de Coorde-
nação do Combate à Droga, Lisboa, p.92.
107. Para um aprofundamento da temática dos consumos de drogas no início da adolescência
ver Steven S. Martin e Cynthia A. Robbins, “Personality, Social Control, and Drug Use in Early
Adolescence” in Howard B. Kaplan (Editor), Drugs, Crime, and other Deviant Adaptations. Lon-
gitudinal studies, Plenum Press, New York, pp. 145-162.

Estudo de Jovens em Reinserção


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o seu primeiro consumo, revelando um início muito precoce por


parte dos pulas. Dos dez aos treze anos cinco jovens (três bla-
cks e dois pulas) contactaram com a droga. No grupo dos doze
em diante (máximo quinze) encontramos uma maioria de jovens
blacks (sete em nove) revelando um contacto, dentro do precoce,
mais tardio;
C. As drogas leves reúnem claramente o maior número de adep-
tos, no caso do haxixe o valor percentual atinge os 90,5% de todo
o universo de consumidores. Verifica-se um quase equilíbrio en-
tre blacks (nove) e pulas (dez), denunciando a forte atractividade
que este tipo de droga tem junto dos jovens. Por sua vez, a erva
havia sido consumida por 33,3%, (sete casos, entre eles quatro
blacks). O consumo de ácidos e ‘pastilhas’ foi realizado por 42,9%
(nove casos) dos consumidores, verificando-se, uma vez mais, um
equilíbrio entre jovens blacks e jovens pulas. É relativamente às
denominadas drogas pesadas que o cenário se altera. O consumo
é aqui quase exclusivo dos jovens pulas, pois entre os nove casos
(42,9% dos consumidores) apenas dois são relativos a jovens bla-
cks. Destaque-se, por último, este alarmante valor de consumido-
res de drogas pesadas com idades tão jovens.

Tanto no caso do consumo de álcool como de drogas verificou-se uma


adesão quase generalizada de todos os jovens presentes no universo em
estudo. A diferença mais substancial a nível de consumos de substâncias
ilícitas situa-se nas drogas pesadas, onde o número de jovens pulas é cla-
ramente superior ao dos blacks, denunciando um maior envolvimento dos
primeiros nesse tipo de consumos.

Em sintonia com esta situação verificamos o facto de entre os nove casos


(37,5%) de jovens que contactaram com a droga antes de consumirem ál-
cool apenas dois serem blacks. Com coincidência das idades de início de
consumos verificaram-se cinco casos (20,8%), três blacks e dois pulas.

Uma vez que o fenómeno da droga é tema central no discurso destes jo-
vens, procurámos, nas entrevistas, aprofundar o conhecimento sobre essa
realidade. No que se refere aos consumos diferenciados de drogas pesa-
das entre blacks e pulas a justificação apresentada pelos primeiros explo-
ra novamente o discurso da sua situação de pobreza e inferioridade social
relativamente à situação de desafogo económico dos segundos.

Hugo Martinez de Seabra


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4 - Deixa-me explicar porquê que há mais brancos metidos na droga pesa-


da do que pretos. Porque o preto ..., o branco às vezes já tem tudo, já tem
tudo o que quer, já tem roupa, já tem tudo o que quer, a mãe dá tudo o que
quer,...
16 - Só falta a droga!
4 - Só falta a droga p’ó gajo exprimentar! O preto não, o preto ainda falta
ter roupa de marca, ter boa vida e não sei quê ... Se os pretos fosse tipo os
brancos, com as me’mas hipóteses de vida, com a me’ma posse de vida,
era certo qu’os pretos eram carochos (toxicodependentes) e os brancos não
eram. É que os brancos já têm tudo, já têm tudo o que querem, o que faz até
experimentarem a droga pesada. Os pretos não, sabem se experimentar a
droga pesada, não, fazem isto e aquilo mas se experimentar a droga pesada
já não vão ter a oportunidade p’a roubar ou p’a ter qualquer coisa ...
13 - Por exemplo, eu s’eu experimentar a droga pesada hoje, penso: -”Oh
depois vou ficar carocho, a partir daí todo o dinheiro qu’eu tiver já não vou
andar grifado em roupa da FuBu, nem vou ter a minha dama, nem vou ter
nada daquilo!”, p’a quê qu’eu quero isso? Pá, prefiro antes ter o meu fato
de treino do que ter aquilo. Agora eles já têm o fato de treino, não podem
pensar: -”Ah eu não posso preferir ter esse fato de treino com’ó Semedo!”
Porquê? Porque o Semedo ainda tem que pensar no fato de treino p’a de-
pois começar a pensar nisso.
E - Então ‘pera aí. Há pulas pobres a agarrarem-se ou não?
4 - Não, eu acho que não! Eu acho que se houver são poucos!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal)

O envolvimento dos blacks com a droga, como vimos, realiza-se mais na


vertente do tráfico. O lucro que esta actividade possibilita leva jovens inim-
putáveis a servir de ‘passadores’ (‘fazer de pombo’) para os traficantes
(‘dealers’) mais velhos.

E - Há muitos chavalos a fazer tráfico de droga lá fora ou não?


1 - Há muitos, há muitos ...
E - Pessoal novo?
3 - Isso é o que se pensa, isso é o que se pensa! (...) A verdade é assim:
O grandes dealers (traficantes) vão buscar os putos, aos putos pagam e
dizem:-“Olha dou-te tanto por isto e tu vais entregar àquele ali, ou vais ven-
der a não sei quê”, depois os putos fazem o trabalho sujo. Porque arranjar
a quantidade não é difícil, difícil é passá-la!
1 - Depois não podem sair dessa cena, dessa cena dos business, se ele sair
vão dizer ao boss ...
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 3 – Pula, 16 anos, Lisboa)

E - Há muito pessoal assim malta nova a traficar droga?


6 - Nova só vende, só a vender.

Estudo de Jovens em Reinserção


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E - Yá, yá! Assim a vender e isso ...


6 - Há muita, muitíssima, os novos é que vendem.
E - Porque é que achas que é assim?
6 - Porque se os novos forem agarrados, não vão presos nem nada, se for
um velho já vai preso.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)
E - Há muita gente a fazer de pombo?
13 - Há bués me’mo!
E - Malta nova como tu?
13 - Yá! Então agora é tudo malta nova a fazer de pombo!
E - Porquê?
13 - Porquê? Oh, porque dá mais dinheiro e ganha-se charro, por exemplo.
Eu, por exemplo, digo assim: -”Olha tu tens dois sabugos (500 gramas de
haxixe) para eu levar ao y, né? Se orientares mais um para eu fazer de pom-
bo correio, não te esqueças qu’eu posso ser apanhado pelo caminho, por
isso tens que orientar mais um p’a mim!” E ele dá-me aquele charro, eu
vou levar até lá abaixo, se for apanhado era melhor ser apanhado com dois
do que com três, né? Mas o terceiro é meu, se não for apanhado, fico com
o terceiro p’a mim. Por exemplo, vou vender, ele dá-me p’a vender, eu vou
vender, chego lá e divido por nós os dois.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Inevitavelmente, algum empolamento visando sobressair perante o entre-


vistador acompanha o discurso destes jovens relativamente ao negócio
da droga. Usualmente tais exageros vêm acompanhados de um elabora-
do ‘vocabulário marginal’, com o propósito de conferir poder simbólico a
quem o domina.

E - Então e, por exemplo, traficar droga não dá guita também fiche?


Todos - Dá!
7 - A droga é o que dá mais!
11 - A droga .... Eu paiava (traficava) droga, eu num dia tirava 100 contos,
num dia hã! 100 contos!
E - Mas 100 contos depois tinhas que dar aos dealers ou 100 contos p’ra
ti?
11 - Não, 100 contos batidos p’ra mim!
E - Num dia? Que droga, xamon?
11 - Não, não só xamon, xamon, e duto e coca! E pastilhas, ácidos, estás a
ver? Eu paiava tudo, ‘tás a ver? Xitos, duto, coca ...
E - Algum de vocês mexeu em droga ou não?
7 - Eu já mexi quando era puto, agora já não ...
E - Quando era puto? Com qu’idade?
7 - Por volta de quê? 13 anos ...
11 - E quando eu sair daqui ainda vou mexer! Eu já mexi, e quando sair

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

daqui ainda vou mexer novamente. Um gajo foi tipo criado no meio dela,
um gajo foi criado nesse ambiente, a passarem e o caraças, e a ter grandas
negócios, a falar com g’andes dealers, e g’andas cenas, é só pentes (placa
de haxixe) que tu dás, ‘tás a ver, do tipo 5 gramas, 10 gramas, acima de 50
gramas, 200 gramas, meio kilo, um kilo, é só tipo assim. Porque um gajo
apanhar tipo assim 5, 10 gramas um gajo não pensa, não resulta muito, ‘tás
a ver? Resulta o quê? Resulta assim 50 gramas, 100 gramas, 200 gramas,
porqu’é assim, tu vendes por junto ganhas bué!
E - Estamos a falar de branca?
11 - De branca e de duto, de cavalo (heroína)! Ganhas muito mais, ‘tás a
ver!
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

Por vezes, o envolvimento destes jovens no tráfico de droga, mais do que


surgir por influência do grupo de pares, faz, desde sempre, parte do per-
curso de vida dos mesmos.

E - Sandro podes-me dizer como é que começaste a traficar?


2 - Pronto, a minha mãe traficava e como ela traficava ela pedia-me para
eu ir buscar as cenas para ela, era na descontra, eu ia buscar as cenas. De-
pois, passados uns tempos, quando a minha mãe começou a tomar mesmo
confiança em mim, eu ia lá buscar as cenas e ela começou a dar-me para
‘paiar’ (passar), e eu se ‘paiasse’ ia ganhar algum dinheiro com isso. Na
descontra, ela dava-me tanto para fumar como para vender para ganhar
dinheiro para mim, para lucrar dinheiro para mim. Foi assim que começou
e há muita gente assim!
E - O quê, famílias envolvidas, há muitas?
2 - Há muitas!
(2 – Pula, 16 anos, Algarve)

O consumo de ácidos, frequentemente associado às ‘raves transe e techno’


(Margarida Rebelo, 1999), tem igualmente alguma adesão junto destes jovens.

E - Marco, diz-me uma coisa, tu falaste-me que já deste em drogas mais


pesadas, vocês falam-me das raves e não sei quê, João! Com’é qu’é essas
cenas? Um gajo começa a entrar nessa onda e ...
7 - Ouve lá afundas-te tótil! A primeira vez fiquei marcado, a primeira vez
marca-te mesmo, ‘tás a ver? Marca-te mesmo! Depois queres sempre ir a
festas, curtir, ouve lá porqu’aquelas drogas, ouve lá, um gajo toma pasti-
lhas e o caraças, ouve lá, é uma moca me’mo bué da potente, me’mo. Nem
tenho me’mo palavras p’ra explicar, ouve lá, porqu’é uma moca me’mo po-
wer ... Dá para fazeres me’mo, atirares-te a mulheres, tu queres curtir, ‘tás
a ver? Tu queres ser amigo de toda a gente, é a moca qu’essa merda dá,
‘tás a ver? É por isso qu’isso depois marca-te, ‘tás-te sempre a lembrar

Estudo de Jovens em Reinserção


198
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

daquelas coisas, do que fizeste noutro dia e o caraças (...) Houve colegas
meus qu’até já partiram dentes à pala dessa merda!
(7 – Pula, 16 anos, Porto)

E - Então e droga é só chamon ou o pessoal consome mais alguma coisa?


14 - Eu já consumi mais, mas não tenho nada a dizer ..., já consumi, consu-
mi às vezes quando ia p’a festas transe e techno, dava o meu risquinho da
branca, e pastilhas e ácidos era o que tinha ...
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Em conclusão, detecta-se uma elevada precocidade nos consumos de ál-


cool e de drogas junto destes jovens, sendo inclusivamente de realçar que
uma boa parte destes ‘conheceram’ a droga antes do álcool. A droga é
uma das peças mais importantes do mundo destes jovens. Seja através do
consumo, seja pelo tráfico, estes jovens manifestam aprofundado conhe-
cimento dos seus efeitos físicos e/ou financeiros.

As primeiras doses são as ciladas da morte


Esta é a crueldade da sorte
Por ela começas a sentir prazer
Mas começas a perder a vontade de viver
Com ela dizes que te sentes melhor
Sem saber que ela é um horror
(...)
Começa a ser aquele aperto infernal
Que para o teu corpo cada vez é mais normal
Começas a sentir-te em desertos
Vais esquecendo os teus projectos

4. Polícia

Mas se vires uma farda azul


À tua frente
Não te preocupes
É que lá os ‘chorrons’
Não palam grupes
Se forem narcóticos
É preciso ter cuidado
Se fores branco
Te safas
Se fores preto
És mal tratado

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

A polícia (bófia) é o inimigo para estes jovens, poucos são aqueles que
reconhecem à polícia uma função válida na sociedade (Greg Smith, 1982;
Randall Kennedy, 1997). O discurso do jovem pula ou black relativamente
à polícia acentua, frequentemente, a violência utilizada por estes no con-
tacto com o menor delinquente.

E - Então e fala-me lá da bófia, como é que é a bófia?


6 - A bófia é fatelas! Dão porrada a um gajo. Uma vez na esquadra de Al-
mada, dessa vez que eu roubei o carro, deram-me bué da porrada... Aquilo
tinha bué da lama, logo o gajo assim para mim: -”Então pá, queres limpar
aqui os meus sapatos!” A limpar a lama assim na minha cabeça, eu estava
assim de costas, né?...
E - Tirou a lama dos sapatos na tua cabeça?
6 - Eu estava assim de costas e ele zzee, depois veio outro e deu-me um
pontapé nas costas, mas com força ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

E - Falem-me da bófia!
11 - A bófia é assim, cá p’ra mim os bófias são todos filhos da puta, são
uns g’andas filhos da mãe, g’andas cabrões, ‘tás a ver? Porqu’é assim, eles
cada vez qu’apanham um gajo na esquadra massacram um gajo todo, ‘tás
a ver?
E - Mesmo sendo menor?
11 - Mesmo sendo menor eles massacram-te à toa! Dão-te sovas que tu
ficas à toa!
E - Que tipo de sovas?
11 - Até te passas! Tipo castigo, tipo a gozarem contigo, tipo mandarem-te
tirar a roupa toda e darem-te com uma toalha molhada, ‘tás a ver?
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo)

E - E na esquadra alguma vez houve ...


14 - Oh esquadra! (...) Já levei belas na esquadra, sim! Por racismo, e não
foi da PSP não, foi da GNR ...
E - Era isso qu’eu te queria perguntar, achas qu’a polícia é racista?
14 - Há mais da parte da GNR do que da PSP, só que os da PSP mais gra-
duados têm também a mania que podem fazer tudo.
E - Eles batem-te como?
14 - (...) lista telefónica na cabeça, já me bateram joelhadas e não sei quê,
já me algemaram ... Já me deram me’mo massacre por causa d’uma coisa
qu’eu não tinha feito, nem sabia o qu’é que era, mas também ...
E - Porqu’é que eles te apanharam a ti?
14 - Porque pensam qu’eu sei tudo o que se passa lá! Aquilo é uma zona
pequena, depois qualquer coisa que haja é logo, sr. António e o z é que têm
a culpa!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Na resposta à questão ‘Alguma vez foi maltratado pela polícia?’ do ques-


tionário aplicado, todos os vinte e quatro jovens observados afirmaram ter
sido ‘maltratados’ no passado. A ausência de uma definição uniforme de
‘maltratado’ impossibilita um aprofundamento desta questão em termos
de efeitos físicos, verbais ou emocionais.

Por vezes, as acusações de violência surgem acompanhadas de referên-


cias à discriminação e ao racismo na actuação da polícia (Howard McGary,
1999). Esta temática torna-se mesmo central quando, essencialmente os
jovens blacks, discursam sobre as autoridades policiais.

E - O x já me disse uma coisa uma vez, tu chegas à esquadra e o polícia diz


que o pula que está contigo é que foi influenciado pelo preto?
4 - Isso aí é verdade ...
E - Isso acontece?
4 - Sim senhor! Vai dois blacks e um pula para a esquadra, o pula é logo
posto de lado ... Depois enchem um gajo de porrada!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Foi igualmente sugerido, no discurso destes jovens, o possível envolvimen-


to de alguns elementos das autoridades policiais em actividades ilegais.

E - Tu achas qu’há bófias aí no business também?


(agitação total, todos querem falar)
7 - É só grandes negócios de droga!
(...)
E - Mas achas qu’a bófia faz mais estrilhos, droga e o caraças?
12 - Quê? Pois faz, no Estoril conheço bófias que dão no cavalo (heroína) e
na coca, se for preciso revistam-te, apanham as cenas e ficam com elas!
E - Marco, lá no Porto a bófia também se mete em esquemas?
7 - Claro, quando eles fazem rusgas e o caraças, não desmarcam droga
p’ra eles?
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Nem todo o discurso destes jovens é negativo relativamente à actuação


policial. Alguns referem inclusivamente a necessidade de agentes que
mantenham a ordem numa sociedade.

13 - É como um polícia, ninguém curte d’um polícia, os pretos ninguém


curte d’um polícia, têm todos raiva. Mas eu acho que não é p’a ter raiva
d’um polícia. Porquê? Porque o polícia faz o trabalho dele! Eles dizem: -”Os
bófias são bué da caretas, levam logo a gente p’á esquadra, se levassem a
gente a dar um giro e se deixassem a gente ir embora era mais fixe!”, mas

Hugo Martinez de Seabra


201
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

eles também têm que pensar, se os polícias não nos agarrassem, um dia a
minha mãe ‘tava a andar na rua e chegava um bacano e lh’assaltava! E aí,
eu ia dizer: -”Ond’é que ‘tá a políca agora, onde é que ‘tá a políca agora,
a polícia não o apanhou a ele mas a mim apanha-me!” Há pessoas que
gostam da polícia p’a sua protecção.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

E - Vocês não querem dizer nada sobre a bófia?


16 - São uns g’andas filhas da puta!
19 - Os bófias, só porque têm aquela farda, já pensam que são os maiores
...
18 - Eu agradeço aos bófias ...
19 - Os bófias começam aí a mandar bocas só porque têm ...
16 - Uma pistola e um cacetete ...
18 - Calma, eu vou explicar uma cena. Imagina que não existe bófia, existe
só uma organização que quando vê que estás a abusar chega e mete-te na
cadeia, imagina que não existe bófia. Imagina. Olha se não existisse bófias
um gajo não ‘tava aqui, ‘tava na cadeia! Se não existisse bófias, o mundo
‘tava perdido, roubavam, assaltavam a tua casa, ias-te chibar a quem? Os
bófias, o qu’é qu’eles fazem, um bófia p’a dominar o preto tem que dar p’a
esperto, porque se se arma em bonzinho, tu vais partir p’a cima dele, partir
p’a cima dele no bom sentido não é chegar lá, vais dominá-lo por palavras,
agora com’é que queres que um bófia te mande parar, vai chegar lá: -”Ah tu
pára de roubar!” Achas qu’isso vai resultar? Achas? Tem que te dar tareia,
p’a tu perceberes que não se rouba mais. Mas é o trabalho deles, há certos
bófias qu’ultrapassam o trabalho deles ...
(16 – Black, 16 anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos, Lisboa; 19 – Black, 15
anos, Lisboa)

Na mesma linha, há quem manifeste alguma reserva no que se refere às


histórias de violência exercida por agentes da autoridade sobre menores
inimputáveis.

18 - Dá-me um exemplo!
19 - Sim senhor, ‘tava na esquadra e menores, menores, podem bater nos
gajos?
18 - Aí é, e os menores podem roubar? Essa história dos menores ... Deixa-
me dizer uma cena, o Sr. Paulo uma vez disse uma cena: -”É à pala dessa
merda dos menores, de não poderem fazer nada, à pala disso daqui a uns
anos vai haver gajos com 10 anos a ser presos à pala dessa porcaria!” Di-
zem: -”Ah eu sou menor, não me podem fazer nada!”, quer dizer, ai é, então
diz-me lá: Os menores podem roubar? Os menores podem assaltar lojas?
Podem fazer isto e aquilo? Então se um menor rouba e faz isto e aquilo, não
lhe podem meter na cadeia, não lhe podem fazer nada, o quê qu’eles vão

Estudo de Jovens em Reinserção


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fazer? O qu’é qu’eles vão fazer? Os polícias não podem fazer nada mas o
menor pode roubar!
19 - Deixa-me dizer, quantas vezes é qu’eu já levei nos cornos da bófia de
coisas qu’eu não fiz? Ahhhh
18 - Assim ‘tá bem! Quantas vezes os bófias levaram tiro’, quantas vezes
os bófias levaram tiro’ ..., mas tu foste p’á esquadra, não foi por seres bon-
zinho, não, ‘tavas no grupo ... Clama, e quando os bófias levam tiro nos
tiroteios, p’a salvar pessoas inocentes, quantos? Ahhhh
(18 – Black, 16 anos, Lisboa; 19 – Black, 15 anos, Lisboa)

As generalizações que discursivamente estes jovens fazem ao comporta-


mento da polícia, após algum questionamento de filtragem, revelam-se
extrapolações de situações particulares, que acontecem mas que não são
necessariamente características de toda a intervenção das autoridades
policiais. As acusações de discriminação e racismo, embora presentes,
são, por vezes, matizadas e as críticas substituídas por um reconhecimen-
to da importância da polícia para o funcionamento da vida em sociedade.

5. Ocupações

Procuraremos nesta secção desvendar quais as actividades diárias usuais


destes jovens. A denominada ‘cultura do lazer’ encontra-se no topo da
lista, acompanhada das deslocações às grandes infra-estruturas comer-
ciais, locais de diversão, salas de jogos, discotecas, entre outros locais108.

De dia:

9 - Eu ia p’á escola, ‘tava lá um bocado, os intervalos e quês, depois trazia


a minha mochila, ia lá no intervalo, a stora não estava lá, pegava na minha
mochila, fugíamos, saltava a rede ...
E - E vocês fugiam p’ra quê?
7 - P’ra ir lá p’ra fora curtir! Eu fugia p’ra ir curtir lá p’ra fora!
E - O qu’é que é curtir?
7 - Passear, ir pr’a festas, andar em carrinhos de choque e o caraças ...
(7 – Pula, 16 anos, Porto; 9 – Pula, 14 anos, Norte)

À noite:

E - Curtes ir às discotecas?
6 - Hum, hum. Mais discotecas assim de Quizomba.

108. Ver igualmente Helena Neves (1996), “Os jovens da periferia: estranhos na cidade”, in Imi-
grantes um desafio Ético, Colecção Reflexão Cristã; Maio/Agosto 1996, Lisboa, pp. 43-46.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - É? mais discotecas Africanas, não é? Aonde, cá em Lisboa ou do outro


lado?
6 - Lisboa.
E - E há muitos pulas nessas discotecas ou não?
6 - Há muitos? Há quase a mesma coisa, mas há sempre mais blacks.
(...)
E - Tu quando largaste a escola qual é que era o teu objectivo? Era ir p’às
fezadas, era ir trabalhar ou era pura e simplesmente não fazer nenhum?
6 - Não fazer nenhum.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

13 - (...) A minha mãe dizia-me as horas p’ra eu estar em casa, eu nunca


estava chegava sempre mais tarde. Lá em baixo conheci outros amigos,
não eram grandes amigos também né? Eram iguais aos outros, mas ...
E - A tua mãe não estrilhava por tu chegares mais tarde?
13 - Estrilhava, queria-me sempre em casa às 7 e meia, chegava sempre
em casa às 7 e meia do outro dia, 8, meio dia do outro dia, ficava na Troia,
ficava na Red Bull, nos cafés sempre a falar, depois quando amanhecia vi-
nhamos p’ra casa. Tomava-se banho passava-se o dia todo a dormir, ia-se
ter com os amigos outra vez ...
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

A ‘cultura do ócio’ encontra-se bem patente no excerto que se segue:

E - O pessoal passa montes de tempo só parado, né? Conversa e ...


13 - A deitar conversa fora, nós jogamos mais conversa fora do que fazemos
mal. As pessoas dizem, ah andam juntos na rua qu’é p’a apanharem, qu’é
p’a roubarem, ou porque querem roubar um carro, ou assaltar uma loja.
(...) Não, roubo um carro, as coisa p’a mim qu’eu faço, não tenho dinheiro
posso roubar assim uma pessoa, ou roubar um café ou uma cervejaria,
uma cena assim depois vou-me embora. Costumo mais ir p’á praia, ‘tou
lá na praia na minha, na boa, depois deixo lá o carro e venho-me embora
p’a casa. Costumo ir p’a Troia, ficar no jardim ou na praia, é sempre lá qu’a
gente fica, ficamos lá. Uma pessoa passa ali e vê-nos a conversar e a rir,
quem diz que somos capaz de fazer mal a alguém? Se ninguém se meter
connosco, nós também não metemos, ‘tá a ver?
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Após a desistência dos estudos e a impossibilidade legal de trabalhar


acrescida da não adequação do que existe em termos de trabalho aos de-
sejos destes jovens, restam-lhes as ocupações de ócio e lazer (Matza e
Sykes, 1957; Simon Frith, 1984). Uma vez que estas não são gratuitas, es-
tes jovens envolvem-se em práticas delituosas por forma a satisfazer as
suas necessidades financeiras diárias.

Estudo de Jovens em Reinserção


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6. Ilações finais

Não se verificam acentuadas discrepâncias discursivas relativas ao com-


portamento entre jovens blacks e jovens pulas institucionalizados no Co-
légio, no que se refere às suas maneiras de agir.

Tendo em conta as diferentes origens geográficas destes jovens, os blacks


mais localizados na zona da capital e arredores e os pulas oriundos de
Norte a Sul (ilhas incluídas), mais do que uma diferenciação acentuada de
comportamentos entre uns e outros notou-se uma aproximação do dis-
curso relativo ao modus operandi da actividade delinquente, do ócio e do
lazer.

Se, por um lado, foi possível identificar algum maior envolvimento dos bla-
cks em práticas delinquentes mais ‘pesadas’ como os ‘assaltos à mão
armada’ e o ‘tráfico de droga’, por outro, outros tipos de actividades, igual-
mente graves, como o ‘consumo de drogas pesadas’ ou o ‘furto em resi-
dências’ revelaram-se mais característicos dos jovens pulas.

As semelhanças em termos de tipo de ‘fezadas’; alvos usuais das mes-


mas; conhecimento da legislação relativa aos menores; utilização de ar-
mas brancas; reincidência; contactos com consumos aditivos e ilegais;
visões relativas às autoridades policiais e respectivas ocupações diárias,
relegam, do observado no universo sob estudo, para segundo plano as
(não questionadas) conclusões alarmistas de determinadas esferas rela-
tivamente ao crescimento da delinquência juvenil no universo dos filhos de
imigrantes africanos em Portugal.

Se considerarmos, uma vez mais, estes fenómenos como característicos


de um determinado escalão social, mais do que um crescente envolvi-
mento dos jovens blacks em práticas delituosas, poderemos associar o
fenómeno da delinquência à existência de um crescente número de jovens
blacks na subclasse109 social nacional, resultando a sua maior exposição
em termos mediáticos e políticos igualmente da sua novidade e maior vi-
sibilidade social (Elijah Anderson, 1992; p. 165).

109. Relativamente ao termo subclasse (underclass) ver Herbert J. Gans (1994), “From “Un-
derclass” to “Undercaste”: some observations about the future of the post-industrial economy
and its major victims”, Urban poverty and the underclass, Blackwell e Enzo Mingione (1994), «
Urban Poverty in the advanced industrial world: concepts, analysis and debates», in Enzo Min-
gione (Editor) Urban poverty and the underclass, Blackwell, 1994, pp. 3-40.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

C - Maneiras de Pensar e Sentir

Nesta secção pretende-se conhecer melhor o discurso dos jovens obser-


vados relativamente às suas maneiras de pensar e sentir determinados
temas. Procura-se, desta forma, identificar as influências ideológicas so-
bre o raciocínio e discurso destes jovens.

Pretende-se igualmente detectar a existência de possíveis orientações


discrepantes entre os jovens blacks e os jovens pulas observados.

1. Estigmas/Racismo

A existência de racismo110 na sociedade portuguesa (Vala et al., 1999), pro-


dutor de forte estigmatização (Erving Goffman, 1980), é identificada pelos
jovens blacks como algo de negativo, despoletador de possíveis contra-
reacções discriminatórias por parte destes.

E - Achas que há racismo em Portugal?


6 - Eu acho que há!
E - Já sentiste alguma vez? ... O pessoal às vezes conta: -”Ah eu entro numa
loja e vem logo o pessoal atrás de mim!” ...
6 - É verdade, isso já me aconteceu! Tipo, vêem assim um grupo de pretos,
negros, acabou de sair de uma discoteca, está a sair p’a casa numa boa, na
social, já há muitos gajos qu’é: -”Olha aqueles ali já vão roubar carros, te-
mos chamar a polícia!” Porque são pretos, se fossem brancos: -”Ah aque-
les acabaram de sair da discoteca, aqueles ali já vão onde vão!”
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Outros jovens revelam uma aguda consciência do fenómeno da genera-


lização em que radica a construção de estereótipos e, admitindo algum
racismo por parte da sociedade envolvente, admitem também auto-es-
tigmatização por parte dos próprios negros em Portugal, em virtude do
comportamento desviante das suas franjas marginais.

110. Para um aprofundamento da relação entre composição racial e atitudes discriminatórias


na sociedade ver Marylee C. Taylor (1998), “The effect of racial composition on racial attitudes
of whites”, American Sociological Review, Volume 63, nº 4, pp. 512-535 e Lincoln Quillian (1995),
“Prejudice as a response to perceived group threat: population composition and anti-immigrant
and racial prejudice in Europe”, in American Sociological Review, volume 60, Agosto de 1995,
pp. 586-611. Ver igualmente Michael Billig, “Racisme, préjugés et discrimination”, Psychologie
Sociale, pp. 449-472.

Estudo de Jovens em Reinserção


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4 - Sabe porquê que eu acho que não há racismo no meio disso tudo?
Porqu’é assim, somos a gente me’mo, a gente me’mo de raça negra, que
mete a nossa raça a perder valor ...
13 - Isso é verdade!
4 - A gente mete a nossa raça a perder valor! Um preto, pronto, eu sou um
g’anda ladrão, o Semedo é um g’anda bétinho, assim tipo CascaisShoping,
CascaisShoping é quase só gente fina e não sei quê, entra lá o Semedo, não
é ladrão, é preto, não é ladrão nem nada, têm sempre um olhar diferente,
olham p’a um gajo diferente, seja ladrão ou não seja!
13 - ‘Tás a ver, isso dá-me raiva Hugo, dá-me raiva! Eu entro no PingoDoce,
ao me’mo tempo qu’eu entro, entram 20 pessoas, mas o segurança insiste
em ir atrás de mim, com tantas pessoas pá.
(...)
4 - Sabes porquê? Sabes porquê?
16 - És preto!
4 - És preto e os pretos ..., quem é que rouba mais? quem é qu’é mais apa-
nhado a roubar nas lojas?
13 - São os pretos, são os pretos, só qu’eu não tenho culpa, Peter! Por
exemplo, eu sou bétinho e tu roubas, somos os dois pretos, eu não roubo
e tu róbas, ‘tás a ver? Eu acho que ‘tão a julgar mal uma coisa, há aí bué
da pretos bétinhos, há aí bué da pretos bétinhos e esses pretos ‘tão a ficar
mal vistos à pala dos pretos ladrões, ‘tás a ver? Eles vão a passar na rua e
os brancos dizem assim: -”A mim não me interessa, são todos pretos! Se tu
não róbas, os teus amigos róbam!” É isso!
4 - É por isso qu’eu digo qu’a gente é que mete a nossa raça a descer de
nível! É raro, é raro me’mo veres um branco aí a roubar à toa na loja, s’eu
róbo e tu és de cor como eu, tu não róbas mas eu já fui apanhado a roubar,
claro a culpa é sempre do preto!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

Uma pequena nota para algumas situações detectadas in loco de comen-


tários racistas entre jovens blacks, apoiados nas suas referências de ori-
gem, sendo o Angolano, na hierarquia dos cidadãos das ex-colónias por-
tuguesas, o menos valorizado.

O racismo, ainda assim, segundo alguns destes jovens, encontra-se prati-


camente ausente das camadas mais jovens (Hallinan e Williams, 1989) das
áreas onde os imigrantes provenientes de África se radicaram. Podendo
este factor revelar uma maior habituação e adaptação dos mais jovens
relativamente à convivência com o, outrora, estranho.

Hugo Martinez de Seabra


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13 - Blacks e pulas, uma coisa qu’eu não vejo em Setúbal, pelo menos dos
12 aos 20 anos você não encontra nenhum racista em Setúbal. Eu ‘tou a
andar na rua aparece um senhor de idade, branco: -”Olhe desculpe, tem
horas que me diga?” Não me liga vai-se embora. Aparece um rapaz com 22,
18, 12 mais novo do qu’eu -”Ouve lá diz lá qu’horas é que são?” -”3 e meia!”
Fala assim na boa.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Os mass media são igualmente apontados como elementos difusores de


orientações racistas e estigmatizantes relativamente aos jovens filhos de
imigrantes africanos em Portugal.

E - Achas que é uma consequência eles estarem a ser mais duros, ..., de-
vido às notícias que andam aí fora?
4 - Pois é, eles aumentam pá, os jornais aumentam sempre ...
1 - Ha! Os pretos, não sei quê não sei que mais, anda a roubar e não sei quê
e roubou, e depois dizem os pretos não sei quê não sei que mais na televi-
são é mesmo assim pá ... Agora quando um gajo vai a passar, têm medo,
têm medo dos pretos, têm medo por causa dos roubos, fogem ...
(1 – Black, 16 anos, Lisboa; 4 – Black, 16 anos, Lisboa)

Analisemos então o discurso destes jovens relativamente aos meios de


comunicação social portugueses.

2. Mass Media111

Os meios de comunicação social (audiovisuais ou escritos) são vistos com


elevada desconfiança (Tommy L. Lott, 1999), revelando uma boa parte des-
tes jovens terem contactado, no passado, com jornalistas que deturparam
a informação partilhada.

E - João porqu’é que não curtes os jornalistas?


11 - Porqu’é qu’eu não curto? Porqu’é assim, esses palhaços ‘tás a ver?
Tipo tu ‘tás a dar uma entrevista, tu dizes uma cena, eles no jornal já me-
tem mais outras ...
9 - Metem cenas não, metem outras cenas!
11 - E mete outras cenas piores, ‘tás a ver!
12 - Olha ‘tiveram aqui, ‘tiveram aqui e disseram logo, Jovens Delinquen-
tes! (título de uma reportagem da Visão) Porquê, não sabiam dizer ...

111. Para um aprofundamento da relação entre mass media e crime ver Richard V. Ericson,
Patricia M. Baranek e Janet B. L. Chan (1991), Representing Order: Crime, Law, and Justice in
the News Media, University of Toronto Press, Toronto.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

9 - Jovens do Colégio x ...


12 - Exacto Jovens dos Colégios internos e não sei quê ...
9 - Jovens delinquentes? Delinquentes são eles!
11 - Yá! Delinquentes são eles!
(9 – Pula, 14 anos, Norte; 11 – Cigano, 16 anos, Alentejo; 12 – Pula, 17 anos,
Lisboa)

No discurso destes jovens, a falta de ética profissional é igualmente real-


çada como característica de alguns jornalistas.

E - Então e agora mudando de assunto, o qu’é que vocês acham dos jor-
nalistas?
14 - São ratos! São uns ratos, só querem fazer o trabalho deles e estão-se
a cagar p’áquilo qu’é dos outros. ‘Tão a servir-se das dificuldades de um
gajo, de uma pessoa, tipo a servir-se dos problemas das pessoas p’a ga-
nharem tipo se for na televisão - audiência -, se for na rádio - audiência. Se
for p’a jornais p’a vender.
E - Tu com isso ‘tás a dizer o quê? Qu’eles se aproveitam das pessoas, que
mentem? Achas qu’eles mentem quando escrevem ou ...
14 - Alguns mentem. Tipo quando veio cá a Visão aqui, disseram que não
ia aparecer rostos de ninguém e para eles é indiferente se aparece ou não,
me’mo que seja assim, me’mo se a foto ‘tá desfocada, se uma pessoa te co-
nhece lá fora, alguém que não saiba que ‘tamos cá no Colégio, e vai ver ali
Jovens Delinquentes, aparece logo assim na revista, me’mo na capa - fula-
no tal - me’mo que não ‘teja lá o nome dele, reconhece logo pelo aspecto.
E - Isso aconteceu?
14 - Aconteceu!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

E - Voltando aos jornalistas, hoje em dia em Portugal, quando se fala em


criminalidade ou em delinquência juvenil, associa-se a quem?
18 - A nós!
E - A nós quem?
18 - Aos pretos ...
E - Porquê?
18 - Sabe porquê? Eu vou-lhe dizer uma cena, jornalistas quando eles di-
zem há um assalto e quê, não! Eles falam logo em pretos, não há confusão,
não há problemas em falarem dos pretos, mas eles não fazem ideias do que
os brancos fazem lá fora, nem fazem ideia! Depois nós é que somos ... Por
exemplo, já me aconteceu ‘tar a andar num passeio, e ver pessoas brancas
a mudarem de lado, porquê? Era preto!
4 - Os jornalistas fazem, fazem isso p’a mostrarem que são bons jornalis-
tas, mas por outro lado só nos lixam ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos, Lisboa)

Hugo Martinez de Seabra


209
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Esta situação, considerada inaceitável, dá aso a uma reacção negativa


que, por sua vez, desencadeia uma espécie de jogo. Os jovens que aceitam
ser inquiridos, quando contactados por jornalistas, efabulam e mentem,
conscientes de que estão a dar informação falsa ou irrealista. Desta for-
ma, entra-se num círculo vicioso, que contribui para o reforço dos proces-
sos que a produção de informação era suposto contrariar: por um lado, os
próprios jovens, que se prestam a esse jogo, pensam ganhar pois, através
de um discurso agressivo e repleto de calão, adquirem poder simbólico
junto dos outros, por outro lado, os jornalistas também pensam ter reali-
zado o seu trabalho ao recolherem a informação com impacto que vende
e atrai audiências.

E - O qu’é que tu achas dos jornalistas?


6 - Acho que são uns ganda mentirosos, mentirosos não! Comem com
tudo!
E - Comem com tudo? O qu’é que queres dizer com isso?
6 - Então, tudo o que dizem acreditam.
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

Como anteriormente verificado relativamente à polícia, também uma ou-


tra perspectiva, mais matizada, existe relativamente ao comportamento
dos jornalistas decorrente da legitimidade resultante de o seu ofício ser
justamente o de difundir informação.

E - Mudando de assunto, jornalistas, o qu’é que tu achas dos jornalistas?


13 - Eu nem curto os jornalistas, mas eu acho qu’o problema nem são os
jornalistas, porqu’os jornalistas metem no jornal assim: -”Grupo de negros
róbam”, só que a gente leva a mal, porque a gente pensa logo: -”Ah jor-
nalistas né, são isto e são aquilo e ‘tão a falar da gente à toa e não sabem
nada do que se passa, nós róbamos porque a sociedade é assim, porque a
sociedade obriga-nos a róbar, não nos dão nada, eu quero um fato de treino
ond’é que ‘tá a sociedade, eu quero comer ond’é que ‘tá a sociedade, por-
que a minha mãe trabalha o dia inteiro ...” Só qu’eu acho qu’os jornalistas
fazem aquilo que gostam, né? Nós fazemos o que gostamos e eles tam’em
têm o direito. Eu acho qu’eles não metem na revista -”Grupo de negros as-
salta uma loja” porque eles querem, acho qu’eles metem na revista porqu’é
p’a chegarem no fim do mês ganharem o seu ordenado, né? Cada qual tem
vários tipos de trabalho, né?
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

Concluindo, existe um misto de perspectivas relativamente aos jornalistas:


se, por um lado, estigmatizam e descriminam sem ética profissional, por
outro, estão a fazer o seu trabalho; se, por um lado, empolam e mentem

Estudo de Jovens em Reinserção


210
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

relativamente ao que ‘realmente’ se verificou (Viegas Ferreira, 1998: p.4;


A. Pires Pereira, 1999: p.141), por outro, são descreditados e manipulados
por aceitarem, não questionando, toda a informação, muita da qual cons-
truída de raiz, que estes jovens lhes fornecem.

3. Estado

A figura abstracta do Estado encontra-se bastante presente no discurso


diário destes jovens:
- Hugo, olha só os ténis que o Estado me ofereceu!
- Anda daí jantar, hoje é o Estado que paga!

Frases como estas, recolhidas em diário de campo, foram frequentemente


referidas ao longo do período de observação no Colégio. Procurámos apro-
fundar a perspectiva discursiva destes jovens relativamente ao Estado.

Do desconhecimento ao oportunismo inúmeras perspectivas foram iden-


tificadas.

E - E o Estado qual é que é a vossa opinião sobre o Estado?


3 - O Estado é uma merda de chulos! (risos)
2 - Aqui é só comer à pala do Estado, os ténis aqui ... roupa de merda!
(2 – Pula, 16 anos, Algarve; 3 – Pula, 16 anos, Lisboa)

E - Então e qual é a vossa opinião sobre o Estado?


14 - O Estado? O Estado é bom, enquanto ‘tamos cá dentro dá-nos comida,
mais o quê ...
15 - Dormidas!
14 - Yá! Dormidas, dá-nos passeios, tipo aqui no Colégio dá-nos a oportu-
nidade de fazer aquilo que lá fora não fazemos, mas sempre com aquela
de ‘tarmos presos...
15 - Cá dentro às vezes têm mais oportunidades do que a gente tem lá de
fora, temos mais hipóteses de fazer isto do que lá fora, lá fora se a gente
quer andar num curso temos qu’andar tempos e tempos, temos qu’andar a
tratar de papéis disto e daquilo qu’é p’a ir p’ó curso, e p’áquilo, e aqui isso é
uma coisa que não é preciso. Tipo pede p’a ir p’áquele curso e ...
14 - Yá! Tipo uma pessoa lá fora tinha que zelar pelos interesses dele sozi-
nho, e cá dentro há sempre alguém que nos está a apoiar ...
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

Novamente Jardel (entrevistado 18) surge com uma posição dissonante


desconstruindo o discurso habitualmente reproduzido relativamente a
esta temática, sobressaindo a sua visão da função educadora do Estado.

Hugo Martinez de Seabra


211
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

18 - Os teus pais não tiveram capacidades, nem morais nem físicas, p’a
t’educar, não foi? Agora ‘tás no Colégio, agora já não é os teus pais, não
tem nada a ver, agora ‘tás a ser educado pelo Estado, e o Estado é quem
manda, e nós não temos capacidades de lutar contra o Estado, o Estado é
que ‘tá a mandar. E vocês têm sorte porque eles só metem aqui monitores,
porque s’eles metessem aqui polícia p’a nos educar era pior. O Estado é
que ‘tá te a mandar educar, se o Estado meter aqui pessoas p’a te bater
tens que te aguentar! Quê que tu vais fazer?
4 - ‘Tão aqui p’a me bater?
18 - Quê que tu vais fazer?
4 - Vou-me defender!
16 - Yá, na Lei os monitores não ‘tão aqui p’a bater ...
13 - Não, os monitores ‘tão aqui p’a t’educar, p’a t’educar!
18 - Calma, deixem-me falar! Tu sabes qu’em todos os Colégios que ba-
tem, o Estado toma conhecimento disso, se o Estado ainda não mudou é
porque o Estado gosta dessa Lei, o quê que tu vais fazer?
19 - Lembras-te daquela vez que fizeram aqui um circo, monitores que nem
‘tavam de serviço foram buscar a bófia e até caçadeira e tacos de beisebol
trouxeram. Apontar com caçadeira tam’ém deve ser educar! Ahhhhh!!
18 - Este gajo ainda não percebeu o quê qu’eu ‘tou a dizer. Se o Estado..., tu
os teus pais não te conseguiram educar, estás no colégio, o Estado agora
é qu’é o teu pai, a tua mãe, o Estado agora é que mete as regras, o Estado
diz qu’é p’a bater, qu’é que tu vais fazer? O quê? O quê que tu vais fazer?
O quê?
19 - Eu viro-me!
18 - É isso mesmo, tu viras-te mas o Estado vai continuar a mandar bater,
porquê? Porque o Estado agora é que te ... que t’educar!
19 - Eu digo-te, a única pessoa a quem eu não me viro é ao meu pai e à
minha mãe!
17 - Mai’ nada!
18 - Se o Estado diz agora qu’é essa a Lei, é essa a Lei, o qu’é que tu podes
fazer contra essa Lei? Se o Estado diz que aqui é bom bater - é bom bater!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 18 – Black, 16 anos, Lisboa;
19 – Black, 15 anos, Lisboa)

Uma duplicidade de sentimentos emana do discurso produzido relativo ao


Estado. Por um lado, o Estado é visto como negativo, uma vez que a situa-
ção de ‘reclusão’ em que estes jovens se encontram conecta-se ao Estado
e às suas Leis mas, por outro, é encarado como positivo, pois possibilita
adquirir formação profissional a qual se encontra, no exterior, dificilmente
ao alcance destes jovens.

Estudo de Jovens em Reinserção


212
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4. Juízes

Em consequência da situação legal de menores sob observação extrava-


sar significativamente os dois meses previstos na Organização Tutelar de
Menores para o jovem ser encaminhado ao tribunal, sobressaiu com algu-
ma surpresa o facto de a grande maioria dos menores observados nunca
ter tido qualquer contacto com um juiz. Tal situação é apenas possível
em consequência dos, conhecidos, atrasos da justiça portuguesa, mesmo
em ramos considerados prioritários como o dos menores - isto devido à
fortíssima influência que tal facto tem no limitado período de juventude de
cada indivíduo.

Em consequência do desconhecimento da figura do juiz, mais do que pro-


ceder a uma avaliação do mesmo, partilham-se estratégias comporta-
mentais antevendo a futura audiência.

1 - Digo-te mesmo, o juíz olha, se alguém souber bem falar e se souber


bem olhar o que é que ele está ali a dizer, olhar para o juíz em frente, o
juíz não vai dizer nada, ele depois pede para ler o que se está a dizer pelas
cotas que estão lá a escrever, né? - vocês nunca olhem para o chão nem
para cima, olhem sempre para o juíz, digo mesmo isso, olhem sempre para
o juíz, depois pedem para ler o papel que a senhora escreveu, o que ela
escreveu risca tudo, já aconteceu isto...
(1 – Black, 16 anos, Lisboa)

Um caso em concreto questiona a imparcialidade da figura do juiz, uma


vez que a razão pela qual estava internado no Colégio se ligava ao roubo
que havia cometido à filha de um juiz, tendo este último supostamente
intervindo para dificultar a resolução do processo.

E - Então e os juízes?
14 - Os juízes, há uns que são juízes que se servem da função p’ra lixar os
outros, apesar de ser preciso, né? Alguém tem que julgar ... Eu acho que
devia d’haver uma pessoa qu’é p’a coiso, qu’é p’a condenar por aquilo que
nós fazemos, né? Só que há juízes que se servem dessa função qu’é p’a
abusar. Tipo se não vai com a cara daquela pessoa, o juíz tem a decisão de
coiso, acha qu’é assim ...
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Por último, e em consonância com o anteriormente verificado relativa-


mente aos polícias e jornalistas, alguns dos jovens referem que os juizes
apenas desempenham a sua função.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

3 - Os juízes tomam as decisões através dos papéis, dos processos, das


merdas que aparecem nas mãos deles ...
E - Achas que os juízes vos ouvem?
3 - Os juízes, os juízes fazem as coisas à toa, fazem as coisas à toa ...
4 - Porque é que achas que eles fazem as coisas à toa? Eles fazem o tra-
balho deles!
E - E achas que é bem feito?
1 - Eh pá eu acho que sim, não é ... (1 - nunca esteve em tribunal)
E - Peter o que é que tu achas do trabalho dos juízes?
4 - Fazem o trabalho deles!
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 3 – Pula, 16 anos, Lisboa; 4 – Black, 16 anos,
Lisboa)

5. Indumentária de marca

Os niggers estão no top


Só querem marcas Reebok
Adidas, Nike
Vieira, Peter e António no Mike

Conforme é possível concluir a partir de vários excertos anteriormente


apresentados existe uma ligação directa da afirmação da identidade pes-
soal destes jovens através da indumentária que vestem. Das meias e bo-
xers utilizados ao boné todo o vestuário é estudado e adaptado ao estilo
(grife) que se pretende afirmar (Y. Pedrazzini et al., 1994; Elijah Anderson,
1992). Deste modo, apenas roupa de marca é ponderada como passível de
servir estes propósitos.

A marca da indumentária utilizada não pode estar igualmente ausente de


significado, desde as marcas tradicionais dos desportos radicais (O’neill,
Lightning Bolt, Quicksilver, etc.) até a marcas desconhecidas para a gran-
de maioria dos jovens, importadas directamente dos Estados Unidos e im-
buídas de significados muito próprios (FuBu)112.

14 - Agora há mais lojas de street wear, qu’é lojas tipo que onde há roupa
p’a skate! Tipo marcas que vieram dos Estados Unidos, via-se já nas tele-
visões, e as pessoas que vinham de fora vinham assim vestidas assim de
calças largas e fato de treino e não sei quê ...
E - Então é uma moda, estamos a falar de moda?

112. Para um aprofundamento desta questão ver Janine Lopiano-Misdom & Joanne De Luca
(1998), Street Trends. How today’s alternative youth cultures are creating tomorrow’s mainstre-
am markets, HarperBusiness, New York.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

14 - Moda, sim. Há quem vista por moda, há quem vista me’mo por achar
qu’é assim, afirma-se com aquilo que veste! Tipo há pessoas que não sa-
bem que FuBu é uma marca racista, não sei se sabes?
E – Porque é que dizes isso?
15 - Porque foi feita p’ós pretos!
14 - Porque foi feita p’ós negros, For Us By Us. Isso foi os pretos que fi-
zeram, essa marca. Tipo nos Estados Unidos se virem um pula tipo num
bairro com FuBu há logo estrilho!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste; 15 – Pula, 16 anos, Setúbal)

A marca FuBu é o exemplo mais flagrante deste simbolismo da própria


roupa. Todos os jovens blacks do colégio não apenas tinham ou ambicio-
navam ter uma peça de roupa desta marca, como conheciam o seu signi-
ficado. Curioso foi o facto de igualmente junto dos jovens pulas haver uma
procura, com conhecimento, destes elementos de indumentária, sendo
significativo o facto de uma boa parte deles ter solicitado e recebido, da
parte do Colégio, pelo Natal, um boné FuBu.

A transição da moda das margens ou periferias para o centro (vd. descri-


ção do processo em Edmond Goblot, 1967: pp.41-59) processou-se rela-
tivamente a esta marca no Portugal urbano. A rápida difusão da FuBu a
nível nacional junto dos jovens adolescentes (pulas ou blacks) levou inclu-
sivamente à falsificação nacional da mesma, típica das feiras nacionais,
procurando manter os traçados originais mas com pequenos detalhes al-
terados (por exemplo, BuFu ou BF).

A generalização das modas da margem, imbuídas de significados e ca-


racterísticas de sub-culturas juvenis, processa-se acompanhada de uma
perda do significado simbólico original. Sendo-lhes reatribuídos novos
significados, deixa-se de ser inovador para passar a ser uniforme. Um dos
jovens entrevistados definiu o termo utilizado para descrever os jovens que
adoptam estas modas sem absorver o seu significado simbólico - pow-
sers.

E - Mas por exemplo, há pulas a usar FuBu ou não?


14 - Há, só que isso é qu’é os powsers, não sabem tipo o qu’é que aquilo
significa, usam aquilo porque aquilo é bonito. É bonito usam, mas não sa-
bem realmente o significado porqu’é qu’é assim. Nem sequer se interes-
sam, se acham qu’aquilo é bonito.
E - (...) A minha pergunta é esta, tu ias na rua e em vez de veres um bétinho
vias um powser, um gajo que está vestido assim como vocês andam mas que
tu achas: -”Este gajo não percebe nada desta merda!” Tu ias e fazias o gajo?

Hugo Martinez de Seabra


215
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

14 - Ia sim senhor! Tipo aqueles da minha zona, que dão-se bem a andar
de skate, andam sempre de skate debaixo do braço e eu digo: -”Olha dêm
lá um kickflip!” e ele não sabe fazer nem sequer um holly, eu acho qu’ele
é um powser, anda só com o skate debaixo do braço só p’a marcar a sua
pausa (estilo). Um skate novinho. Mas eu ando sempre com o meu skate
debaixo do braço, mas apesar de ser velhinho, do meu skate ser velhinho,
s’eu andar com o skate assim um bocado estragado vão logo olhar: -”Olha
aquele anda com o skate estragado e não sei quê, ‘tá ali com o skate todo
rasco!” Mas se for pedir p’a mandar algum toque, se calhar, abafo-os (su-
pero-os) todos!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

A generalização destes comportamentos a outras áreas, como os des-


portos radicais, revela a existência efectiva de um processo de criação
de uma moda na margem e posterior difusão desta para o centro, sendo
aqui a margem sinónimo de sub-culturas urbanas juvenis (D. Matza e G.
Sykes, 1957; Edward Shils, 1992), possivelmente oriundas de meios menos
abastados, e o centro a generalidade dos jovens de classe média urbana
nacional.

Estilo é só meu
É meu e de mais ninguém
Não preciso de copiar
Para me afirmar alguém
Bem sabes que o que tu dizes não me importa
Se não gostas do meu estilo
Então sai por essa porta

Um processo semelhante observou-se no Colégio relativamente ao tipo de


música usualmente ouvido nos quartos de cada jovem internado.

6. Música
É gringo
Os teus filhos
Hão de estudar Rap em História
A proliferação a nível nacional da música hip-hop verificada nos últimos
anos foi igualmente observada em finais de 2000 no CAEF em estudo. Quem
conhece alguns ‘bairros de barracas’ ou bairros sociais dos arredores da
capital tem presente que este tipo de música é aí consumido desde há pelo
menos quatro a cinco anos. Novamente a ‘onda’ da moda parece ter um
início modesto, marginal, crescendo, generalizando-se à posteriori.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

6.1 Rap e Hip-Hop

Eles vieram só para me caçar


Tentei fugir, mas não deu para escapar
Meteram-me no Colégio
Lá tenho que aguentar
Fui introduzido no de Caxias
Junto com muitos putos que faziam porcarias
Porcaria é pouco pró que fiz
Agora só o Hip-Hop me faz feliz
Hardcore é o movimento
Não sei se tenho talento
Mas eu só canto para passar o tempo
Enquanto estou cá dentro
É que o tempo a passar é muito lento
Viver aqui dentro trancado, aprisionado
Quer queiras ou não, sou um puto fechado

O Rap ou Hip-Hop, como António C. Contador (2001) refere, na sua obra


Cultura Juvenil Negra Portuguesa, representa, para estes jovens, um dos
seus mais fortes referenciais identitários.113

Durante os quatro meses de trabalho de terreno o investigador colaborou


na criação de um grupo rap - os ‘de la casa’ - composto por três jovens
blacks. Através da sugestão de alguns temas de letras e da transcrição
das mesmas foi possível compilar, com autorização dos próprios, um con-
junto de algumas letras rap. Este incentivo levou inclusivamente o Colégio
a patrocinar a gravação de duas faixas dos de la casa num CD de música
Capoeira e Rap desenvolvida no Colégio.

E - A minha pergunta é esta: O qu’é qu’é o Rap p’a vocês?


18 - Olha, eu aposto o qu’é qu’é rap p’a eles. Rap é uma maneira de expor
o qu’eles sentem ...
16 - Como as coisas são, ...
4 - O Rap é um desabafo, é um desabafo! É tipo criticar o que o senhor ‘tá

113. Ver igualmente Jorge Vala e Sheila Khan (1999), “Traços Negros (Aculturação e identida-
des de jovens de origem africana)”, in Traços e Riscos de Vida – uma abordagem qualitativa
aos modos de vida juvenis, Ambar Editora, pp. 145-169; Fernando Luís Machado (1994), “Luso-
africanos em Portugal: nas margens da etnicidade”, Sociologia – Problemas e Práticas, nº16,
pp.111-134 e Tommy L. Lott (1999), The invention of race. Black culture and the politics of re-
presentation, Blackwell Publishers, Malden.

Hugo Martinez de Seabra


217
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

a perguntar aqui, tudo, a gente critica tipo a rappar ...


(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos,
Lisboa)

Os ‘de la casa’ orgulham-se de cantar em Português114, utilizando, nos


seus ‘desabafos’, frequentes referências e alusões bélicas à sua forma de
encarar a vida. Eis um exemplo:

1, 2, somos 3
Não falamos Inglês
Representamos em Português
Espalhamos de azar
O Hip-Hop no ar
Com a nossa rima nuclear
É uma doença cerebral
Fazemos do Rap um combate verbal
A nossa ceia de cada dia
Pegamos no microfone
Matamos a fome
Somos tipo Alcapone
Guerreiro forasteiro
Tudo o que não é Rap
Se repete pelo traseiro
Aonde passa, aonde passamos
Alcançamos sempre o que queremos
Com a nossa arte vocal
Fazemos uma vida normal
Não somos interesseiros
Porque o Rap em Portugal
Não tem cheiro a dinheiro

M.C. Peter

Relativamente à possibilidade de seguir uma carreira de cantor rap em


Portugal, os entrevistados estão conscientes da sua inviabilidade.

114. Relativamente às opções de jovens imigrantes nos Estado Unidos, em termos de domínio
de línguas, ver Alejandro Portes e Lingxing Hao (1997), English first or english only? Bilingua-
lism and parental language loss in the second generation, (policopiado).

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Vocês acham que o rap poderá levar-vos a algum lado?


4 - Talvez, talvez ...
17 - Dá p’a levar dinheiro, mas ...
E - Vocês acham qu’em Portugal conseguem vir a viver do Rap?
16 - Não, não!
4 - Talvez sim, talvez não!
16 - Eu digo não!
18 - O gajo mais ...tipo esse gajo que tu vês aí, o Boss AC (black rapper
português mais conhecido), bule na obra, o gajo tem cd e não sei quê, ele
não é ninguém, (...) Esse outro gajo que tu vês aí na televisão e não sei quê,
aquele que tem rasta e não sei quês (General D), ... vi o gajo uma vez no
Rossio ..., nem carro tem ...
16 - Anda aí em combóio, esse otário, esse g’anda burro! (risos)
18 - Lá porque vão gravar um cd vocês pensam o quê?
16 - Não, Portugal não tem cultura! Não tem cultura p’ó Rap!
18 - Tu pensas o quê, qu’esses gajos que cantam Rap nos Estados Unidos
tam’ém são ricos? Toma ali (fazendo um gesto obsceno) ...
4 - São é grandes traficantes ...
18 - Claro! Em França tam’ém se perguntarem quem é rico com o Rap,
então vais ter qu’arranjar dois empregos então, o rap e outra coisa, ond’é
que vais conseguir dinheiro p’a gravar outro cd?
17 - Não é o rap. Tu tens que cantar aquelas músicas tipo Quizomba, isso
dá dinheiro!
18 - Quizomba dá dinheiro, cantar quizomba dá dinheiro ...
16 - Quizomba dá dinheiro? Muitos gajos cantam Quizomba e bulem na
obra!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 16 – Black, 16 anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos,
Margem Sul; 18 – Black, 16 anos, Lisboa)

A música tradicional africana encontrava-se igualmente presente nas prá-


ticas ‘sonoras’ do dia a dia do Colégio em estudo.

Mas aqui em Portugal


‘Tá-se mal
Tem de dar ao cabedal
Para representar um Rap radical

6.2 Música africana

Um processo em tudo semelhante ao verificado relativamente aos consu-


mos habituais (moda) em termos de indumentária, verificou-se nos con-
sumos musicais. Mais do que o próprio rap ou o hip-hop a música africana
era comum à grande maioria dos jovens presentes.

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

Na secção dedicada à música do questionário aplicado inquiria-se ‘quais


as tuas músicas preferidas?’. Verificaram-se três respostas generalistas,
as três de jovens pulas - uma ‘não sei’, outra ‘todas’ e uma última ‘calma’
-, não propriamente enquadráveis numa categoria específica.

A música africana foi aquela que recolheu maior número de adeptos no


universo em estudo com dezassete respostas afirmativas (70,8%), de en-
tre as quais cinco jovens pulas, isto é, metade dos existentes. Por sua vez
o rap/hip-hop recolhe uma adesão de dez jovens (dois dos quais pulas),
sendo aqui de realçar a não adesão, como se verificou relativamente à
música africana, de todos os blacks. O reggae constitui o terceiro tipo de
música com maior número de adeptos, nove no total, quatro deles pulas,
revelando novamente uma adesão significativa destes últimos. Por último,
o trance ou techno recolhe adesão maioritária por parte dos jovens pulas
(quatro contra dois blacks). A título de curiosidade refira-se que o rock foi
mencionado em apenas uma ocasião, por um jovem black, e ainda assim
como ‘punk rock’, sobressaindo um desinteresse, por parte do universo
observado, relativamente a este conhecido estilo de música.

Na análise do fenómeno de atracção que se verifica entre os jovens pulas


relativamente à música africana concluímos que praticamente nenhum
destes jovens havia, no passado, contactado com este tipo de música, tor-
nando-se este um fenómeno específico e localizado espacialmente na ins-
tituição sob estudo.

Dando voz aos pulas:

E - Então e a música africana, eu curto uma coisa aqui, vocês metem músi-
ca africana ali na sala e tanto pulas como blacks dançam música africana,
eu acho isso um espectáculo...
1 - Já estão mais habituados, está aqui dentro a andar com o pessoal de
cor, ensinam o crioulo, aprendem né? ...
E - António, curtes música africana?
3 - Yá, yá! Porquê? Porque aprendi a viver com ela, aprendi a ouvir 2Pac,
Bob ...
E - E mesmo música tradicional, os funanás, as quizombas ...
1 - Olha vou só dizer uma coisa. Se os pretos não ouvissem quizomba os
brancos só ouviam fado, depois começaram a andar com os blacks agora
já estão a curtir quizomba ...
3 - O pessoal aprende a viver a ouvir música africana, reggae ...
(1 – Black, 16 anos, Setúbal; 3 – Pula, 16 anos, Lisboa)

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Expliquem-me uma coisa (...) Porqu’é que vocês ‘tão agora a ouvir mú-
sica africana e não ‘tão a ouvir música portuguesa? (de fundo ouve-se, no
quarto, música tradicional africana a tocar e alguns a cantar)
12 - Porquê? Por causa dos movimentos cá dentro! Um gajo vem cá p’ra
dentro já é outro ambiente, que não tem nada a ver com aquilo que ‘tá ha-
bituado lá fora!
E - Vocês acham qu’isso é influência também do pessoal black qu’aí
anda?
12 - E não só, é ambientes de bairro e não sei quê, uma pessoa vem p’ráqui
torna-se completamente outra coisa, outra personagem, já não é a me’ma
coisa que andava lá fora ...
11 - Tipo um cu duro, tu estás a dançar, de repente aparece uma dama
assim começa a dançar contigo e é mais aquele ritmo, do que ‘tar assim
músicas de brancos, aquelas músicas lentas. Eu não curto essas músicas,
curto muito mais músicas africanas qu’um gajo a dançar sente muito mais
paixão, ‘tás a ver?
12 - Não é só paixão, é mesmo o ritmo, dá-te mesmo mais potência me’mo!
Ficas mais alegre, a música portuguesa é mais ... não gosto!
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

Dando a palavra aos blacks:

18 - Calma, eu vou lhe explicar. Eu vou dar um exemplo logo, o x, ele sabe
que se ele não se enquadar aqui, ele não fuma gansa, ele sabe que se não
se enquadrar me’mo com o grupo ele vai ser mal visto, o x sabe que se
ele não se enquadrar bem com o grupo ninguém lhe vai ligar, vai ficar aí
desprezado lá no canto dele. Qual é a melhor maneira qu’ele tem p’a se
enquadrar no grupo? Yá! É gostar das mesmas coisas que nós, é fazer o
qu’agente faz, ...
4 - Gostar, não, fingir!
18 - É fazer as mesmas coisas qu’a gente faz. Até a maneira de vestir dele
ele mudou ...
E - Então diz-me lá, o y e o z, eles não são obrigados a ..., eles não fazem
isto tam’ém p’a sentirem que vocês os aceitam ou fazem? Achas que os
outros pulas, o k que está sempre a levar porrada dos outros, qu’é um
gajo que ‘tá sempre um bocado à margem, também ele gosta destes sons
agora, porquê?
16 - Influência negra!
E - Mas porqu’é que são essas as coisas mais fortes? Porquê que não é ao
contrário, porquê que não são os blacks que ouvem música Portuguesa?
16 - Porque aqui há mais blacks!
13 - Porque mesmo os próprios brancos não curtem o malhão-malhão, é
verdade sim senhora! A música dos brancos é só p’a cotas!
18 - Calma, se você reparar uma coisa, os brancos que ‘tão aqui, a maior
parte não tiveram infância, a maioria dos brancos que ‘tão aqui não tiveram

Hugo Martinez de Seabra


221
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

infância ... E qual é a maneira deles agora mostrarem que tiveram, tipo o x,
o x fala, fala, fala, mas quem pensar bem, sabe que tudo o qu’ele ‘tá a falar
não fez, não fez. Ele faz isso p’a manter a pose dele, é mentira ... Qual é a
melhor maneira dele fazer p’agente lhe aceitar no grupo? é mentir ...
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa; 18 – Black, 16 anos, Lisboa)

A conclusão a que podemos chegar, do universo observado, é que num


contexto de igual proporção de jovens blacks e jovens pulas oriundos de
semelhante condição social, em situação de isolamento de influências ex-
teriores, os elementos referenciais dos primeiros são adoptados, mesmo
que com sentimentos e propósitos distintos, pelos segundos. Tal situação
foi verificada relativamente à indumentária, à música e, como veremos
seguidamente, aos próprios ídolos destes jovens.

7. Ídolos

Med vai ter rimas eternamente


Aceita isso generosamente
Na cabeça às vezes ponho lenço
Para imitar 2Pac, como ele rimo imenso
Se ‘tiveres ao pé de mim não tens de temer
Não te vou fazer desaparecer

O discurso dos jovens internados no Colégio encontra-se repleto de situa-


ções imaginárias, nestas enquadram-se, com frequência, as histórias dos
seus ídolos. A transferência da sua personalidade, ainda em formação,
para a personalidade imaginada de um determinado ídolo é constante,
procurando-se junto de personagens com historiais com os quais estes
jovens se identificam os pontos de referência a idolatrar (Randall Kenne-
dy, 1997: p.24). Desta forma, e amplamente influenciados pelas enormes
‘máquinas’ de merchandising, estes jovens encontram na denominada
cultura afro-americana esses ídolos (L. Sansone, 1994; Paul Gilroy, 1993;
Maryse Potvin, 1997).

Bob Marley e 2Pac Sukur são, inquestionavelmente, os dois maiores ído-


los destes jovens. Em resposta à questão ‘Quais os teus ídolos?’ dezanove
em vinte e quatro (79,2%) afirmaram o nome do primeiro e quinze (62,5%)
o do segundo. A uma distância bastante considerável vem um outro caris-
mático cantor de hip/hop americano Snoop Doggy Dog com nove respos-
tas (37,5%). Existem ainda uma série de outras referências com apenas

Estudo de Jovens em Reinserção


222
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

uma menção, a título de exemplo temos desde Mário Soares a monitores


do próprio colégio, não esquecendo os sempre presentes cantores de hip-
hop americano como Lauren Hill, Dr. Dree, Puff Dady, Notorious BIG, en-
tre outros. Uma última nota de destaque para a referência em uma única
situação em que o ídolo é a própria mãe.

Regressando a Bob Marley e 2Pac Sukur há a destacar a igualdade no nú-


mero de votos de preferência entre jovens blacks e jovens pulas relativa-
mente ao primeiro, e o quase equilíbrio no caso do segundo (oito para seis
respectivamente). Esta situação enquadrada no processo anteriormente
identificado de transmissão de modas e hábitos comportamentais afigura-
se-nos perfeitamente coerente.

Aprofundemos, com o auxílio das entrevistas, estas preferências por ído-


los da denominada cultura afro-americana, começando por procurar en-
tender o porquê das escolhas de Bob Marley e 2Pac Sukur.

E – Porque é que o pessoal curte bué o Bob Marley e o 2Pac? O qu’é que o
pessoal vê por de trás desses gajos?
12 - Por detrás? Muita droga, muitos negócios, muita coisa, ambientes de
bairros, e gangs ...
E - É porque eles próprios já pertenceram a gangs e foram ...
11 e 12 - Yá! Nem mais!
11 - Já foram gajos, gajos muita orientados! Tipo Bob Marley, 2Pac, essa
malta assim, esses têm muita valor p’rá gente, ‘tás a ver? Já foram g’andes
gajos, tiveram g’andas cenas, tiveram g’andes filmes, já passaram por
grandes situações, ‘tás a ver? E eram uns gajos da gansa, ‘tás a ver? A
gente curte esses gajos porqu’é assim: esses gajos andavam, fumavam
gansas com’a gente fuma, com’a gente quer tipo representar esses gajos!
A gente quer tipo representá-los, ‘tás a ver? Eles já não existem, a gente
representa eles!
(11 – Cigano, 16 anos, Alentejo; 12 – Pula, 17 anos, Lisboa)

E - Então e o 2pac, porqu’é que achas que o pessoal curte o 2pac?


14 - 2pac foi um símbolo, me’mo nos videoclips que mostra, mostra desde
a infância dele até aos dias de agora, ele tabém foi uma pessoa igual a nós.
Tipo quando era jovem era delinquente, róbava, fazia g’andas movimentos,
fuma as suas gansas, tipo é uma pessoa como nós, só que teve um futuro,
futuro de ser músico. Foi parar à cadeia, tem tudo a ver connosco, só que
foi um símbolo, foi um símbolo do Rap ...
E - E achas qu’é por isso que o pessoal curte tanto do 2pac?
14 - Acho que sim. Não é bem pela música ..., há músicas que toda a gen-
te curte, mas a maior parte das músicas ..., eu não gosto assim muito do

Hugo Martinez de Seabra


223
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

2pac, gosto de alguns temas, ‘tá a ver? Mas me’mo aquilo qu’ele significa,
aquilo qu’ele já viveu, e aquilo qu’ele diz em certas músicas isso é que vale.
Mas há músicas qu’eu não gosto nada.
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Mais do que a própria música, é o que é transmitido por diversas vias de


informação relativamente ao comportamento destes indivíduos que leva
estes jovens a ter neles os seus referenciais identitários115. Mas quais as
vias de transmissão dessa informação?

E – Porque é qu’o pessoal curte tanto o 2pac e o Bob?


13 - Pá, Bob Marley eles curtem por causa do Bob Marley ..., pelo menos
pelas cassetes de video, pelo qu’eu vi na televisão, gostava me’mo de ter
conhecido o Bob Marley porque foi uma pessoa aberta ‘tá a ver, foi uma
pessoa que não teve medo de mostrar os vícios dele, né? Ele disse me’mo
p’á televisão: -”Eu fumo charros, se me quiserem prender, prendam.” Eh
pá, é uma coisa qu’eu quando vi aquilo eu gostei, ‘tá a ver? Por causa que
..., o pessoal aí pensa, ou a maioria das pessoas que está lá fora, pensam
qu’a gente gosta do Bob Marley e do 2pac porque eles fumam charros, mas
não é por causa disso, nem por causa do estilo deles, é por causa qu’eles
foram homens, transmitiram me’mo e disseram, o Bob Marley eu tenho
uma cassete de video qu’ele diz lá: -”Eu não fumo charro p’a ficar moca-
do, não fumo charro p’a mostrar estilo nem p’a nada pá. Eu fumo charro
porqu’é uma coisa qu’eu gosto!” Por exemplo, ele Bob Marley disse assim:
-”Eu cada vez vez que fumo charro fico contente, mas se não fumar charro
eu tenho a certeza que não morro!”
(13 – Black, 14 anos, Setúbal)

14 - Eu acho qu’aqui dentro quase ninguém gosta de Bob Marley, da música


me’mo dele assim, gosta é da bandeira dele e dos charros, é o que vêm no
Bob Marley, só que não é bem assim não! Essas pessoas não compreen-
dem nem um bocado do que ele ‘tá a tentar transmitir, nas músicas, né?
Eu gosto de Bob Marley, já o meu pai ..., sempre, sempre ouvi Bob Marley
em minha casa, o meu pai gosta de Bob Marley e quê, cresci a ouvir Bob
Marley, o meu pai explicava-me porquê, com’é qu’era as músicas, porque
eu sentia as músicas com’é qu’era p’a ele. Como o meu pai acha qu’é eu
acho qu’está certo!
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

115. Relativamente à afirmação identitária junto dos jovens descendentes de imigrantes ver
João Arriscado Nunes (1997), “Boundaries, margins and migrants. On paradigm shifts, hetero-
geneity and culture wars”, in Maria Ioannis Baganha (Editora) Immigration in Southern Europe,
Celta Editora, Oeiras, pp. 89-100.

Estudo de Jovens em Reinserção


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

O reconhecimento por parte dos próprios da existência de uma forte influ-


ência da cultura afro-americana no seu comportamento diário, não ape-
nas num espaço de reclusão, mas principalmente nos comportamentos
do dia-a-dia está patente no próximo excerto.

E - Mas por exemplo, o Raggae e o Rap, d’onde é qu’isso vem?


19 - África, há africanos que cantam Rap ...
E - Vem d’uma cultura Áfro-americana, ou não?
16 - Yá, Áfro-Americana!
17 - Yá, boa, Áfro-americana! Yá, yá!
(16 – Black, 16 anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 19 – Black,
15 anos, Lisboa)

Em formato conclusivo três elementos poderão ser destacados relativa-


mente aos ídolos dos jovens internados observados: o primeiro prende-se
com a afirmação de uma identidade negra junto destes jovens; o segun-
do liga-se à confirmação, também nesta área, da adopção por parte dos
jovens pulas de elementos identitários e referenciais característicos dos
blacks; a terceira, relaciona-se com a acentuada influência que o mer-
chandising, mais do que a música, da própria imagem dos cantores tem
sobre estes jovens.

8. Futuro

O imediatismo, o ‘aqui e agora’, é o elemento referencial temporal destes


jovens (Moura Ferreira, 2000; Marques et al., 2001). Questioná-los sobre
o seu futuro é sinónimo de incerteza e desapontamento, bem patentes na
anteriormente verificada ausência de sonhos para o futuro no que se refe-
re aos empregos que gostariam de vir a ter116.

4 - Eu quando roubava, ‘tás a ver? eu quando roubava..., nunca pensava no futuro...


16 -Pois é! Agora é qu’eu penso nisso! Eu quando roubava nunca pensa-
va: -”O quê que me vai acontecer depois d’eu roubar?” Agora qu’eu fiz 16
anos é qu’um gajo pensa -”Eu não pensava no qu’é que fazia, não pensava
nas consequências!” Eu comecei a aprender isso, quando fui p’á esquadra,
uma vez roubei e depois: -”’Tou farto de ‘tar aqui!”, o bófia disse: -”Olha
não roubasses, vocês quando roubam não pensam no que vai acontecer, só
pensam em roubar e safar!”
116. Para um aprofundamento das expectativas de jovens delinquentes em termos de futuro
ver igualmente Maria João Leote de Carvalho (1999), “Um Passado, um Presente. Que Futuro?
Desvio e delinquência juvenis: aspirações e expectativas pessoais, escolares e profissionais de
jovens em regime de internamento em Colégio do Instituto de Reinserção Social”, in Infância e
Juventude, Revista do Instituto de Reinserção Social, Outubro-Dezembro 1999-4, Lisboa.

Hugo Martinez de Seabra


225
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

4 - Yá, eu quando ‘tava a roubar pensava naquele momento, ‘tá a ver? Orien-
tar muito dinheiro, orientar ouro, ...
16 - Esqueces-te de tudo, cada vez queres mais, yá, qu’o teu pai vai-te bater
...
13 - Esqueces-te de tudo! Eu saía e esquecia-me que a minha mãe amanhã
se calhar não tem dinheiro p’ó pequeno almoço, mas esqueço mesmo, só
quero é pensar no meu fato de treino da FuBu, na minha bicicleta, na minha
coisa, qu’é p’amanhã quando chegar à escola ter as damas todas atrás de
mim, p’a ter os meus amigos todos a dizer: -”Yá, what’s up neager! Yá ‘tá-
se bem!” Eh pá quero ficar mais bem visto de todos, quero sempre, sempre
mais, sempre mais! Nunca tinha pensado no futuro, nunca!
(4 – Black, 16 anos, Lisboa; 13 – Black, 14 anos, Setúbal; 16 – Black, 16
anos, Lisboa)

A transferência das ‘culpas’ da situação presente, passada e futura para


outros elementos, que não os próprios, faz parte do processo de ‘fuga para
a frente’ característico do discurso destes jovens.

E - O que é que achas do teu futuro Toni?


6 - Acho normal ...
E - O que é que achas que te vai acontecer depois?
6 - Não sei, a sério não sei ... Penso nisso todos os dias e não ..., nunca
chego a nenhuma conclusão.
E - Achas que o Colégio te vai ajudar?
6 - O Colégio não ajuda ninguém, só piora.
E - Porque é que dizes isso?
6 - Porque, se não tivesse vindo aqui para o Colégio, não sabia roubar car-
ros, não andava .., não tinha os processos (no tribunal) que tenho ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul)

A grande questão para o futuro destes jovens encontra-se ligada à possi-


bilidade de reincidência, agravada se ocorrer após os 16 anos podendo aí
ser sinónimo de cadeia.

E - Quais são os teus objectivos de futuro?


13 - É sair, quando eu sair daqui faço o sétimo, depois quando chegar a
Setúbal a minha mãe tinha lá uma senhora da assistência social que disse
que podia fazer um curso comigo de ficar com o nono ano, e eu disse que
sim. Eu jurei p’a mim mesmo, que um dia eu ia sair deste Colégio não havia
de ser por uma grade, e não havia de ser p’a sair p’a depois voltar! No dia
de sair, vou sair porque me mandaram, e é isso qu’eu quero, p’a sair de
uma vez por todas. Por exemplo, eu no dia em qu’eu sair de vez daqui vou
sair mas vou deixar aqui todas as coisas qu’eu roubei, vou deixar p’a trás
no dia em qu’eu sair daquela porta p’a fora d’uma vez por todas, vou sair

Estudo de Jovens em Reinserção


226
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

como uma nova pessoa, ‘tá a entender? Vou sair p’a nunca mais roubar!
Mas isso é a minha opinião, né? Vou tentar nunca mais roubar. Posso não
conseguir, posso conseguir, posso até pensar quando eu entrar no super-
mercado vir aquela carteira e apanhar, a tentação é sempre a tentação.
Mas se depender de mim, vou estudar! A única coisa qu’a minha mãe me
pede, desde qu’eu estou naquela casa a minha mãe só me pediu uma coisa:
para estudar.
(13 – Black, 14 anos, Setúbal - O jovem Semedo, alguns meses após ter sa-
ído, em meados de 2001, conforme pretendia, com autorização do Colégio
regressou devido a práticas delinquentes)

E - Achas que o pessoal lá fora sabe disso? O que é que achas que vai acon-
tecer agora, tipo o pessoal chega aos 16 anos achas que o pessoal acalma
ou não?
6 - Eu acho que sim, mas nem todos. Alguns vão fazer coisas piores, depois
assim se é p’ra ir de cana por causa de 10 contos ou 20 ou 30, mais vale tipo
100, ou 200 ou 300. Né, um gajo pensa assim ou pá mais vale ...
(6 – Black, 16 anos, Margem Sul - O jovem Toni está presentemente na
cadeia)

O futuro afigura-se como uma grande incógnita para estes jovens, o seu
maior receio está associado, mais do que à procura de emprego ou consti-
tuição de família, à tentação da prática delituosa, à reincidência que torna
inviável qualquer outro tipo de futuro.

9. Soluções

Sendo estes jovens os maiores conhecedores do ‘mundo’ da marginali-


dade e da delinquência poderão ser igualmente importantes fontes de in-
formação relativamente às medidas mais adequadas a desenvolver com o
propósito de diminuir essa mesma delinquência juvenil.

E - Vocês acham que não há solução lá fora, não há uma maneira de tentar
agarrar a malta nova?
11 - Não há!
12 - Não há!
E - E acham que isto (internamento) é solução?
12 - Eu acho!
E - Mss vocês estão-me a dizer que quando saírem daqui se houver uma
fezada que valha me’mo a pena que vão voltar a fazer!
11 - Yá!
12 - Se der muito dinheiro que tu podes desaparecer, ai sim! Que eu saiba
que vai correr bem!
(12 - Silva, jovem adulto, pula, encontra-se presentemente fugido às au-

Hugo Martinez de Seabra


227
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

toridades devido a um furto; 11 - João, jovem adulto, cigano, encontra-se


presentemente na cadeia)

E - O qu’é que se pode fazer nos bairro p’ra evitar qu’os jovens enveredem
por estes caminhos? O qu’é qu’os pode agarrar?
18 - O qu’é que se pode fazer?
17 - Nada!
(17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 18 – Jardel, jovem adulto, Black, encon-
tra-se presentemente na cadeia)

Alguns destes jovens mostram conformismo e aceitação dos actuais ce-


nários, convencidos de que nada pode ser feito. Outros arriscam soluções
variadas, desde as mais ‘leves’, como a transformação do Estado numa
autêntica instituição de caridade, às mais ‘punitivas’, como o endureci-
mento das medidas educativas dos Colégios de internamento.

E - Lá fora o qu’é que achas que se devia fazer? É uma questão de pobreza,
é uma questão de ...
14 - Mais oportunidades, dar mais oportunidades, tipo grupos de lazer, tipo
nas horas livres uma pessoa ia p’ra lá. Ou tipo um skate park, na minha
zona o skate park é essencial porque há miúdos qu’iam parar à polícia
por andar a destruir bancos de jardim e andar a roubar madeira nas obras
qu’é p’ra construir rampas p’a andarem, e por causa de roubarem isso iam
parar à polícia e era mais um processo. Agora com o skate park..., a maior
parte dos jovens de lá anda de skate, se construirem o skate park, se an-
darem lá não ‘tão a fazer distúrbios com certeza, e acho que a Câmara
Municipal já viu isso ...
E - Achas que a ocupação de tempos livres seria um passo importante para
impedir o pessoal de continuar aí ...
14 - Sim, sim!
(14 - António, passa os dias no skate park, aguardando ser chamado para
um curso profissional)

3 - Pá, se tu fumas tabaco, vais aprender como é que é ressacar tabaco,


vais aprender o que é fazer merda e depois estar fechado e não poderes ter
um único cigarrinho, devia ser assim mas durante dois ou três meses (...)
A única solução é trazer o gajo cá p’ra dentro, tirar-lhe toda a privacidade
possível, que é p’ra quando voltar lá p’ra fora saber como se comportar, é
só isso! (...) Não falar com ninguém a não ser com pessoas boas, pessoas
que ajudam, se não não vai aprender de maneira nenhuma!
(3 - Pula, 16 anos, Lisboa)

O apoio familiar reveste-se, para estes jovens, de especial importância,


mas sempre em sintonia com a própria vontade do indivíduo.

Estudo de Jovens em Reinserção


228
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

E - Vocês acham que se houvesse alguém com um projecto qualquer ...


14 - Oh vai sempre haver ladrões! Acho que vai sempre haver criminosos,
sempre houve, acho que sempre houve criminosos ... Às vezes tam’ém é
das famílias, tipo o tempo que nos dedicam na família, tipo os conselhos
que nos dão. Alguns são espertos e seguem os conselhos que os pais lhes
dão, tipo os meus pais já tiveram uma vida difícil e não sei quê, explicam
isso. Só que alguns não querem saber, é só naquele momento: -”Neste
momento ‘tou a roubar ‘tou fixe, e vou sempre continuar assim, nunca vou
ser pior!”
(14 – Black, 16 anos, Região Oeste)

Outros revelam a necessidade de melhorar o conhecimento relativo tanto


à intervenção das autoridades policiais como às punições para práticas
ilegais.

E - A solução passa por’quê então? O quê que se pode fazer para?


18 - O quê que se pode fazer? É melhorar o conhecimento ..., vou-lhe dizer
porquê que a gente começou a roubar. É um g’ande ilusão uma g’ande e
poderosa ilusão, um gajo entra e começa a roubar assim à toa, e isso é uma
g’ande ilusão, a pensar que se roubava, e tem poder e quê, mas ...
16 - Então porquê que quando sais daqui continuas a roubar?
18 - Prontos é isso qu’eu ‘tou a dizer, essa ilusão é grande poderosa, ...
17 - É o diabo, pica-te atrás a dizer vai, vai, vai!! (risota geral)
(16 – Black, 16 anos, Lisboa; 17 – Black, 17 anos, Margem Sul; 18 – Black,
16 anos, Lisboa)

A transferência de papéis sociais do delinquente, usualmente alvo de pu-


nições, para o idealizador de soluções, punidor, revela-se difícil de desen-
volver para estes jovens. Quando apresentam soluções os jovens ficam-se
por meras reproduções de esquemas institucionais em vigor e de clichés.

10. Ilações finais

Das maneiras de pensar e sentir dos jovens observados destaca-se a


fortíssima influência dos valores culturais de referência afro-americana
em todo o universo estudado, denunciando uma superior valorização do
simbolismo associado aos elementos culturais de referência dos jovens
blacks em consequência da ausência de valores semelhantes junto dos
jovens pulas.

Da análise do discurso destes jovens detectou-se a flagrante diferença de


‘capital’ cultural entre os jovens pulas e os jovens blacks. Esta situação
pode dever-se à maior dispersão geográfica dos primeiros, por oposição à

Hugo Martinez de Seabra


229
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

concentração na grande metrópole dos segundos. No entanto, a segunda


fase deste processo manifesta-se através da adopção inquestionada, em
contexto de reclusão, dos elementos identitários dos segundos por parte
dos jovens pulas.

Não apenas na sua maneira de vestir esta transição foi observada, o vo-
cabulário, a música consumida, a atracção pelo graffiti (Jeff Ferrell, 1995;
Filomena Marques et al., 1999), os símbolos identificativos (folha da can-
nabis, bandeira da Jamaica), as personagens idolatradas são igualmente
áreas onde este processo se desenvolveu.

Hipoteticamente esta uniformidade de referências culturais dos jovens


blacks delinquentes poderá ser outro dos elementos potenciadores da ge-
neralização mediática da associação entre delinquência juvenil e os filhos
de imigrantes africanos.

Estudo de Jovens em Reinserção


230
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

VIII - CONCLUSÕES

A nosso ver, a grande conclusão a que se pode chegar desta investiga-


ção reside na necessidade de implementar mais e melhores investiga-
ções deste género por forma a apurar o conhecimento científico relativo
à relação entre desvio, delinquência juvenil e filhos de imigrantes (sejam
eles africanos ou outros). A quase ausência de monografias sobre os jo-
vens provenientes da imigração (a por muitos chamada segunda geração)
é confrangedora e torna-se tanto mais necessária quanto é sabido que os
poderes públicos, em Portugal, continuam a não dispor dos meios para
evitar uma exposição longa (e, como se viu, perigosa) de crianças e jovens,
durante uma larga fatia do seu período de socialização, a situações de
exclusão e marginalidade.

Neste sentido, mais do que a produção de conclusões com carácter de-


finitivo, que se nos afigura difícil a partir de um simples estudo de caso,
tentaremos reflectir sobre duas questões: o interesse do aprofundamento
monográfico de situações limitadas, para o conhecimento da realidade; e,
numa perspectiva mais interventiva, os bloqueios administrativos que de-
tectámos e que deverão ser repensados num quadro de aperfeiçoamento
das políticas públicas.

Comecemos pela segunda. A existência de parâmetros quantificáveis de


contextualização, apenas possíveis através de um apuro das categorias
estatísticas oficiais, possibilitando a recolha de novos e essenciais indica-
dores, de entre os quais o grupo étnico, terá que estar presente, possibili-
tando no futuro alcançar um diagnóstico menos distorcido desta realidade.
Adiante voltaremos a esta questão.

Quanto ao primeiro aspecto, um estudo de caso, como o presente, permite


aprofundar o conhecimento cientifico relativamente a um universo especí-
fico, delimitado temporal e espacialmente. Metodologicamente a extrapo-
lação de resultados é pois incorrecta. Ainda assim determinados aspectos
particulares observados (tanto nos contextos de origem, como confirma-
dos nesta monografia) de práticas desviantes e delinquentes destes jovens
possibilitam, mais do que uma generalização, uma abertura ao conheci-
mento dos mesmos e, por conseguinte, ao lançamento de novas hipóteses
para a investigação científica destes fenómenos.

Conscientes das limitações conclusivas existentes numa investigação


onde o universo observado é constituído por não mais que trinta jovens e

Hugo Martinez de Seabra


231
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

que, à partida, partilhavam apenas três características – as suas práticas


desviantes anteriores à institucionalização; a própria situação de interna-
mento num espaço partilhado; sendo, desta forma, a face mais visível da
delinquência pertencendo ao topo de uma pirâmide largamente desco-
nhecida -, arriscaremos ir ao encontro dos modelos teóricos anteriormen-
te apresentados e problematizados. Passaremos, pois, agora a colocar em
evidência o que consideramos ser o valor acrescentado dos resultados
desta observação em relação aos quadros teóricos conhecidos.

Se à partida somente se detectavam três flagrantes características co-


muns, após quatro meses de investigação concluímos que os pontos de
contacto entre jovens delinquentes de norte a sul do país, indiferente-
mente das suas demais características, são significativamente superio-
res. Constatou-se que factores estruturais como a situação de pobreza,
o contexto habitacional degradado e desregrado internamente, a família
frequentemente ‘desregulada’ e a deficiente ligação entre aprendizagem
escolar e inserção no mercado de trabalho, tomam a dianteira no pressio-
nar as crianças e jovens locais para a procura, através de vias ilegítimas,
da satisfação das suas diversas necessidades. Estas características apa-
rentam ser generalizáveis a todos os jovens oriundos da base da pirâmide
da estrutura de classes, a denominada subclasse117.

Uma das mais importantes conclusões desta investigação reside na cen-


tralidade dos factores estruturais, possibilitando mesmo a substituição,
conforme sugerido por Fernando Luís Machado118, do termo filhos de imi-
grantes africanos por jovens dos segmentos mais precários das classes
populares. Seja qual for a ‘cor da pele’ destes jovens (pulas ou blacks)
existem fortíssimas semelhanças tanto nas condicionantes estruturais
que lhes são impostas como no seu discurso relativo às suas maneiras de
agir pensar e sentir.

Centremo-nos agora especificamente no universo dos jovens filhos de


imigrantes africanos. Estes estão expostos a quatro fundamentais e in-
terligados tipos de exclusão. A exclusão económica traduzida por um
afastamento tanto do mercado de trabalho como consequentemente das
oportunidades de consumo características da adolescência. A exclusão
social não apenas resultante do seu inferior posicionamento na estrutura
de classes mas igualmente dos estigmas e discriminações de que são, ou

117. Termo que utilizamos aqui como tradução directa de underclass.


118. Comunicação pessoal (Outubro de 2002).

Estudo de Jovens em Reinserção


232
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

de que interiorizam ser, alvos. Significativamente relacionada com estas


duas, a exclusão cultural, reflexo de um incerto posicionamento em ter-
mos de referenciais culturais destes jovens na sociedade portuguesa. Por
último, relacionada com, e muitas vezes consequência de, todas as ante-
riores, a exclusão racial.

Se os dois primeiros tipos de exclusão apresentados podem ser genera-


lizáveis aos demais jovens provenientes de contextos semelhantes, o ter-
ceiro e especialmente o quarto assumem junto dos jovens filhos de imi-
grantes africanos uma importância extraordinária. Ao não se identificarem
nem com os referenciais culturais do país onde habitam e desenvolveram,
na sua grande maioria, a sua socialização, nem com a cultura do país de
origem de seus pais ou avós, estes jovens procuram construir as suas
próprias referências culturais. Este processo passa pela adopção selectiva
de particularidades culturais de cada uma das vertentes anteriormente
identificadas (cultura portuguesa e africana), sujeitas a uma apropriação
e redefinição dos respectivos significados, através da sua moldagem aos
propósitos dos próprios.

Às duas referências culturais identificadas há que acrescentar uma ter-


ceira, a denominada cultura afro-americana veiculada, entre outras vias,
através dos mass media. Aí estes jovens encontram toda uma miríade de
posturas e posicionamentos de índole cultural que lhes permitem construir
e reforçar uma unidade identitária coerente. A importância desta torna-se
flagrante em consequência tanto da postura oposicionista relativamente à
sociedade envolvente, suas regras e códigos de conduta, como da afirma-
ção em paralelo da existência de uma cultura negra da qual sobressai o
discurso vitimizante do racismo. Esta situação está, no entanto, longe de
ser fácil de apreender em termos ‘simplesmente’ raciais ou étnicos. A aná-
lise dos discursos revela a existência de uma multireferencialidade junto
destes jovens, onde a ‘bandeira‘ da pan-negritude emerge como espaço
de confluência de manifestações várias de exclusão. Este é um processo
que se enraíza, portanto, a dois níveis: o global, vivido através dos mass
media, e o local. O nível intermédio não se manifesta, como se estes jovens
vivessem em pequenas ‘bolhas’ num limbo sem referências perceptíveis:
a sociedade são simplesmente ‘os outros’. Na segunda dimensão, a local,
os discursos identitários enraízam-se em particularismos não generalizá-
veis, localizados e característicos dos contextos destes jovens.

A actividade grupal, característica de qualquer adolescente, adquire fun-


ções acrescidas nestes contextos. A socialização no sentido do conformis-

Hugo Martinez de Seabra


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D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

mo com os valores, normas e regras da sociedade exterior, usualmente


desenvolvida no seio da família e da escola, é, nos contextos grupais des-
tes jovens, subvertida e invertida no sentido da auto-afirmação através da
não conformidade com tais referências, ou seja, da conformidade com os
valores, normas e regras do grupo de pares.

Dois factores centrais produzem, a nosso ver, a maior mediatização e as-


sociação deste tipo de práticas a jovens de origem africana. O primeiro
prende-se com a própria visibilidade destes jovens, não apenas resultante
da ‘cor da pele’ mas igualmente da sua adopção de um comportamento
adversarial, caracterizado pelo enraizamento de um posicionamento opo-
sicional, por vezes violento, de reacção às estigmatizações de que são alvo
– a de classe, comum aos demais jovens pobres, acrescida da racial. A
segunda, e possivelmente a mais importante, ainda assim não compro-
vável devido à ausência de meios estatísticos apropriados, associa-se ao
seu crescente peso relativo na denominada subclasse social. Tal situação
poderá advir, não apenas da ascensão social de alguns segmentos da po-
pulação branca e pobre nas últimas duas décadas, como igualmente das
dinâmicas não apenas migratórias como demográficas adoptadas pelos
imigrantes africanos no país de destino. As elevadas taxas de fecundidade
e a fortíssima concentração na região de Lisboa são disso ilustrações.

Os factores culturais, particularmente os que se articulam com a pertença


ao grupo de pares, têm igualmente um papel fundamental neste envol-
vimento em práticas desviantes. A adesão às denominadas subculturas
juvenis, caracterizadas pelo seu posicionamento à margem, na periferia,
procurando dessa forma uma auto-identificação singular, particularista,
individualizada, generaliza-se junto destes jovens. Realce-se, como vimos,
a cultura negra, importando significados e referenciais identitários do ima-
ginário afro-americano adquirindo uma significativa adesão por parte dos
jovens filhos de imigrantes africanos em Portugal, numa primeira fase,
generalizando-se posteriormente aos demais jovens dos mesmos contex-
tos sociais. Por vezes, determinados elementos simbólicos dessa mesma
cultura negra, como peças de indumentária, estilos musicais ou mesmo
preferências artísticas são generalizados, num processo em tudo seme-
lhante ao da proliferação do fenómeno da moda, aos jovens da usualmente
denominada classe média, perdendo no processo uma significativa parte
dos significados simbólicos a eles associados.

A produção e difusão de um discurso legitimador das práticas dos grupos


de pares ‘marginais’, através do qual se moldam e adaptam as definições

Estudo de Jovens em Reinserção


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e usos das diversas instâncias com as quais interagem no dia-a-dia, tor-


na-se essencial por forma a visualizar tais actividades como as únicas ao
seu alcance, no sentido da satisfação das materialistas necessidades de
qualquer adolescente.

Como o coloca o jovem Semedo:

13 - Eh pá, isso me’mo só depende das pessoas, não depende do Estado,


não depende de nada, somos nós que misturamos isso com o Estado, nós
... nós dizemos qu’o Estado é isto, qu’o Estado é aquilo, qu’os bófias são
isto, qu’os bófias são aquilo, mas isso é uma desculpa nossa, né? Uma
desculpa que nós inventamos qu’é p’a nós nos podermos agarrar a alguma
coisa, qu’é p’a poder roubar! (13 – Black, 14 anos, Setúbal)

É através da desconstrução do discurso destes jovens que se atinge um


conhecimento mais aprofundado das suas orientações. É igualmente nes-
te ponto que a nossa crítica à produção despreocupada dos mass media
relativamente a estas questões adquire especial importância, pois a pro-
cura desenfreada da notícia que pode fazer manchete leva à inquestionada
aceitação dos discursos, desinformando, contribuindo para a estigmati-
zação e o empolamento - em lugar de esclarecer desenvolve-se um ciclo
vicioso de efabulação e alarmismo.

Em termos conclusivos cremos que estes jovens são o produto de formas


de integração marginal na sociedade portuguesa. Dela conhecem, e bem,
os valores, as regras e as normas de conduta. A sua não identificação com
os mesmos, e o seu posicionamento marginal na estrutura social, acres-
cido das pressões para a adopção de referenciais oposicionistas, vistos
como contra-reacções aos fenómenos do racismo e da discriminação de
que afirmam ser alvos diariamente, põem em marcha uma estratégia in-
tegradora de assimilação selectiva, onde apenas parcial e selectivamente
são adoptados referenciais culturais, posteriormente moldados às suas
identidades. A centralidade do discurso construído encontra-se associada
à sua útil função legitimadora das maneiras de agir, pensar e sentir des-
tes jovens.

Estando o investigador directamente ligado ao Ministério da Justiça, a


pretensão desta investigação não seria plenamente alcançada caso não
procedesse a uma sumaríssima identificação de áreas de possível inter-
venção preventiva.

Hugo Martinez de Seabra


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A implementação e inovação em termos de estratégias de prevenção do


desvio e da delinquência juvenil em Portugal afigura-se, a nosso ver, como
crucial. Nesse sentido arriscamos a sugestão de algumas áreas de in-
tervenção: a necessidade de intervenções precoces; o procurar um maior
envolvimento da comunidade local, incentivando a criação de associações
juvenis e posterior dinamização, nas mesmas, de actividades mediadoras
e reparadoras; a re-educação parental; o desenvolvimento de campanhas
de informação (relações sexuais, crime, delinquência, mercado de trabalho,
escola, droga, álcool, etc.); a melhoria da atractividade dos programas es-
colares em contextos sociais desfavorecidos; a estabilização dos professo-
res nas escolas locais; a responsabilização da instituição escolar; um maior
esclarecimento das autoridades policiais; a dinamização de actividades
culturais associadas à exposição das práticas destas subculturas (hip-hop,
graffiti, dança, etc.); a implementação de cursos profissionais atractivos e
responsabilizantes; procurar agir também sobre o grupo de pares aproxi-
mando-o das instituições; intervenção a nível local por forma a procurar na
comunidade um aliado através do controlo social informal ...

No estudo da ‘delinquência a preto e branco’ muitas dúvidas permanecem


e poucas respostas existem. Procuremos conhecer, para agir prevenin-
do. Um primeiro passo procurou ser realizado através desta investigação.
Para que este não seja mais um passo em vão cabe igualmente às autori-
dades oficiais possibilitarem pôr em marcha este processo, implementan-
do um apuro dos instrumentos de registo estatístico, não com pretensões
discriminatórias, pelo contrário, com intenções de identificar com alguma
precisão o universo em causa, para posteriormente agir adequadamente
em termos preventivos.

Estudo de Jovens em Reinserção


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Hugo Martinez de Seabra


259
D E L I N Q U Ê N C I A A P R E T O E B R A N C O

ANEXOS

ANEXO I - CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

1- Miguel - Black - 16 anos - Setúbal

2- Sandro - Pula - 16 anos - Algarve

3- António - Pula - 16 anos - Lisboa

4 - Peter - Black - 16 anos - Lisboa

5 - Aníbal - Pula - 14 anos - Lisboa

6 - Toni - Black - 16 anos - Margem Sul

7 -Marco - Pula - 16 anos - Porto

8 - Filipe - Pula - 13 anos - Lisboa

9 - Manuel - Pula - 14 anos - Norte

10 - Xavier - Pula - 14 anos - Madeira

11 - João - Cigano - 16 anos - Alentejo

12 - Silva - Pula - 17 anos - Lisboa

13 - Semedo - Black - 14 anos - Setúbal

14 - António - Black - 16 anos – Região Oeste

15 - Eduardo - Pula - 16 anos - Setúbal

16 - Vieira - Black - 16 anos - Lisboa

17 - Jerupiga - Black - 17 anos - Margem Sul

18 - Jardel - Black - 16 anos - Lisboa

19 - Bergkamp - Black - 15 anos - Lisboa

Estudo de Jovens em Reinserção


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ANEXO II - GLOSSÁRIO

Abafar alguém – superar alguém


Andaime (trabalhar no) – trabalhar nas obras
Andar ao pica – andar em transportes públicos sem pagar
Arrematar a dama – conquistar a rapariga
Bafo - dar uma passa no cigarro/charro
Baldar às aulas – faltar às aulas
Barra - estilo
Barroso - gajo mau, bem visto
Bater coro – dar conversa
Bê - Xamon em Setúbal
Blacks – qualquer indivíduo com a tez da pele escura
Bolir – trabalhar
Boss – líder, chefe, patrão
Bote – carro
Branca - cocaína
Business – o mesmo que fezada
Cana (estar de) – estar preso
Canhão – pistola, revolver
Cara Podre - sem hesitar, sem problemas, sempre em frente
Carochos – toxicodependentes
Carregar (droga) – passar droga
Catar – roubar
Cavalo - heroína
Charro – cigarro de droga
Chibar – denunciar
Chino – canivete ou navalha
Clic – grupo de amigos
Crew – mesmo que clic
Cubículo - casa
Damas - raparigas
Dar Banhada - furtar
Dar cana - dar prisão
Dar o bigode - roubar alguém, entrar num esquema e ficar com o lucro
todo em vez de dividir o mesmo - algo frequente que vai contra as normas
próprias interiorizadas pelo grupo de pares
Dealer – mesmo que boss
Desmontar alguém – espancar alguém
Dread(s) – sócio(s) com quem se identifica
Duto – heroína
Espigar algo - Deixar mal algo
Estar em Brasa - Estar aflito, chateado
Estonado - sob a influência da droga

Hugo Martinez de Seabra


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Fazer algo - Roubar algo


Fazer de pombo - passar droga
Fezadas - esquemas ilegais por forma a arranjar dinheiro, pode ser roubo,
tráfico, etc...
Fight - luta
Free style – improviso de rap, ofensivo e despreocupado
G’anda falha – actuação disforme com o estabelecido
G’anda pausa - grande estilo
Gansas – mesmo que charro
Grampado - apanhado
Grif – estilo, roupa de marca
Guita - dinheiro
Levar barra - levar um não de uma dama
Mandar estilo - ter estilo
Marcar pausa – mesmo que mandar estilo
Micar - controlar
Move (de droga) – mesmo que carregar
Movimento – mesmo que carregar
Na descontra - descontraidamente
Na pausa – mesmo que na descontra
Naite - cigarro
Negócio – mesmo que fezada
Paca – mesmo que guita
Paiar – mesmo que carregar
Pausar – descontrair, afirmar estilo
Pechangas – prostitutas, vendidas
Pentes – placas de droga
Pitéu - refeição
Placa - pedaço de sabonete
Powsers - imitadores de estilo
Pulas – branco português
Quinhenta - tira de uma placa de droga avaliada em 500$
Rap Comercial – letra de música rap não ofensiva
Rematar alguém - dar pancadaria em alguém
Representar (Ganzas) – ser aquele que partilha a sua droga
Representar (Rap) – cantar rap
Sabonete - Bocado de Xamon essencial para se iniciar a prática de venda
do mesmo
Sabugos – placas de haxixe
Tiro - mesmo que bafo
Troupe - grupo
Uéla, Caia - erva
Vitamina - Haxixe
Xaxom - Haxixe

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