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Eurico, o presbítero
O Romantismo chega a Portugal no momento em que o país vivia uma das suas mais
graves crises sociais e políticas. Dividido entre o absolutismo de Dom Miguel e o
liberalismo de Dom Pedro IV – Dom Pedro I no Brasil –, a nação portuguesa se viu
envolvida numa violenta guerra civil entre os anos de 1832 e 1834. A revolução
romântica alimenta-se, em Portugal, dessa revolução social e política. Os primeiros
escritores românticos portugueses – Almeida Garret (1799-1854) e Alexandre
Herculano (1810-1877) – participam ativamente da revolução liberal e, após sua vitória,
em 1834, retornam do exílio para implantar em Portugal a nova literatura romântica.
Alexandre Herculano foi o iniciador do romance histórico em Portugal seguindo o
modelo de Walter Scott, romancista que fez reviver em dezenas de obras as velhas
tradições do seu país e todo o pitoresco da vida medieval inglesa. Herculano soube
relacionar a história com a imaginação sem que uma destruísse a outra retratando
épocas de particular interesse para a escola romântica, como a fundação da
nacionalidade e a consolidação da sua independência no tempo de D. João I; são
fidelíssimos em conservar a história e o local dos acontecimentos narrados: exatidão de
vestuário, de armas, de costumes, de interiores e exteriores, de leis, de arquitetura, etc...
Na obra Eurico, o Presbítero evidencia-se mais nítida ainda a estrutura a modo de
tragédia. Ao contrário, o problema amoroso é que se torna incidental e marginal ao
panorama histórico aberto pela retrospectiva de Herculano: serve mais de pretexto para
a reconstituição histórica que de eixo da intriga novelesca.
HERCULANO, ROMANCISTA
Nos seus romances e narrativas históricas, Herculano deu expressão a múltiplas
tendências e interesses que as poesias, as obras polêmicas e as obras históricas apenas
parcialmente revelam. O romance histórico era aliás um gênero de limites indefinidos,
em que se misturavam prosa poética, a erudição, os comentários filosófico, social e
político, a descrição pitoresca, a pretexto de narração.
Nas suas narrativas históricas encontramos o sentimento da eternidade em contraste
com o efêmero das vidas humanas. As ruínas assinalam a passagem do homem rolando
no despenhadeiro dos tempos. Onde outrora ferveu o bulício da vida, há hoje desertos.
São de origem religiosa certos temas característicos dos romances de Herculano. Em
quase todos eles ocupam posição central o tema do sacrilégio, isto é, a violação de
mandados divinos, que precipita os protagonistas na expiação cruciante. Eurico não
consegue resignar-se espiritualmente ao celibato sacerdotal.
As principais personagens dos romances de Herculano são como que encarnações,
dotadas de forças sobre-humanas, anjos ou diabos, consagrados a uma obra de maldição
ou de santificação: é o caso de Eurico anjo negro no meio dos combates e de outras
personagens dos seus romances. Esta polarização bem romântica entre os dois extremos
do sagrado (o divino e o demoníaco) transparece também na adjetivação (solene, santo,
maldito,) e em imagens tiradas do culto (lâmpada do santuário, anjo do Senhor, etc.).
Outra característica geral do seu romance é o gosto da reconstituição minuciosa de
trajos, interiores, arquiteturas, cerimônias e festividades. Revela-se aqui um intenso
sentimento do concreto exterior. Mas este gosto do concreto alterna com o dos cenários
vagos e puramente imaginários, dominantes no romance Eurico, o Presbítero situado
numa época sobre a qual Herculano dispunha de poucas informações. Há ainda outra o
culto do cavaleiresco.
Nota-se a intenção poética da prosa de Herculano, sobretudo
no Eurico, deliberadamente concebido como um poema em prosa, quer pelo
vocabulário afinado segundo o tom visionário, quer pelo fôlego versicular do ritmo,
quer pelo sentido epopeico da própria imaginação plástica.
RESUMO: “EURICO, O PRESBÍTERO”
O romance Eurico, o Presbítero, conta a triste história de amor entre Hermengarda e
Eurico. A história se passa no início do século VIII na Espanha Visigótica. Eurico e
Teodomiro são amigos e lutam juntos com Vitiza (imperador da Espanha) contra
os “montanheses rebeldes e contra os francos, seus aliados”.
Depois desse bem sucedido combate, Eurico pede ao Duque de Fávila a mão de sua
filha, Hermengarda, em casamento. No entanto, Fávila ao saber da intenção de Eurico e,
sabendo ainda que esse era um homem de origem humilde, recusa o pedido de Eurico.
Certo de que sua amada também o repelia, o jovem entrega-se ao sacerdócio, sendo
ordenado como o presbítero de Carteia.
A vida de Eurico então resume-se às suas funções religiosas e à composição de poemas
e hinos religiosos, tarefas essas que ocupavam sua mente, afastando-se das lembranças
de Hermengarda. Essa rotina só é quebrada quando ele descobre que os árabes,
liderados por Tarrique, invadem a Península Ibérica. Então Eurico toma para si a
responsabilidade de combater o avanço árabe. Inicialmente, alerta seu amigo Teodomiro
e, posteriormente, já adiante da invasão, o Presbítero de Cartéia transforma-se no
enigmático Cavaleiro Negro.
Eurico, ou melhor, o Cavaleiro Negro luta de maneira heróica para defender o solo
espanhol. Devido a seu ímpeto, ganha a admiração dos Godos e lhes dá força para
combater os invasores. Quando o domínio da batalha parece inclinar-se para os Godos,
Sisibuto e Ebas, os filhos do Imperador Vitiza, traem o povo Godo com a intenção de
assumir o trono. Assim o domínio do combate volta a ser árabe. Logo em seguida
Roderico, rei do Godos, morre no campo de batalha e Teodomiro para a liderar o povo.
Nesse meio tempo, os árabes atacam o Mosteiro da Virgem Dolosa e raptam
Hermengarda. O Cavaleiro Negro e uns poucos guerreiros conseguem salvá-la quando o
“amir” estava prestes a profaná-la.
Durante a fuga, Hermengarda, foi levada desmaiada às montanhas das Astúrias, onde
Pelágio, seu irmão, está refugiado. Nesse momento, essas montanhas são o único e
verdadeiro refúgio da independência Goda, uma vez que, depois de uma luta terrível
contra os campos da Bética, que lhe pertenciam, continuariam em seu poder.
Em segurança, na gruta Covadonga, Hermengarda depara-se com Eurico e, enfim, pôde
declarar seu amor. No entanto, Eurico revela a ela que o Presbítero de Cartéia e o
Cavaleiro Negro são a mesma pessoa. Ao saber disso, Hermengarda perde a razão e
Eurico, convicto e ciente das suas obrigações religiosas, parte para um combate suicida
contra os árabes.
ANÁLISE CRÍTICA
O romance de 1844, que retrata o início do século VIII ou momento da invasão
da Península pelos árabes é considerado, dentre os romances de Herculano, o que menos
se prendeu ao rigor historicista, devido à utilização de uma maior liberdade imaginativa
e talvez porque a época enfocada fosse pouco documentada.
A obra tem o caráter grandioso de uma “canção de gesta” e situa-se na
passagem da epopéia para o romance histórico. A psicologia não podia ser analisada
porque as personagens, sobretudo Eurico, desenham-se num módulo acima do humano,
quase semi-deus, como os heróis de Homero, e praticam feitos inverossímeis: o
Cavaleiro Negro, na batalha de Criso, a passagem da Sália, o episódio da abadessa do
Mosteiro. Vultos agigantados em matéria épica e que é preciso manter na bruma e no
prestígio de grandes acontecimentos do passado longínquo.
O estilo da obra ergue-se ao tom solene do dizer profético, não só porque a
ação era de calamidades, de castigos e de desfechos providencias como nível dos
acontecimentos se situa a uma altura que excede o módulo vulgar do viver. Estilo
portanto, sintético e embalado em onda rítmica, sem corte incisivo e minucioso da
análise. O conflito amoroso se dá a partir do amor desigual, contrariado pelo pai de
Hermengarda, Fávila, Duque de Cantábria, possuidor de status social e bens materiais à
verdadeira nobreza do outro, Eurico, que é poeta e mais puramente apaixonado. A
sociedade, mais uma vez, desconhece o mérito autêntico e cria uma vítima que, daí em
diante, saboreará na solidão o orgulho da sua própria tristeza. É este, no fundo, o sentido
dos primeiros capítulos do livro:
Lá, no tumulto dos cortesões, onde o amor é cálculo de
um sentimento grosseiro, terás achado quem te chame
sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para
dar ao teu pai o preço do teu corpo e te comprasse
como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho
estará contente, porque trocou sua filha por
ouro. ( p.35)
Com isso, Eurico vê-se “obrigado” a seguir, não sendo para um bem maior,
o sacerdócio, isto é, reduz-se a despeito suicida, fruto e expressão do fracasso amoroso.
Procura-se assim, uma espécie de morte mais elegante e sensacional, com o prestígio
dos martírios ocultos que, por outro lado, se fazem discretamente adivinhar aos olhos
dos homens.
De fato, Herculano vicia toda sua tese pela hipótese que lhe está subjacente:
Eurico não abraça o sacerdócio e o celibato por vocação, mas à boa maneira romântica,
como refúgio ou evasão para a sua frustração no casamento que projeta com
Hermengarda. Daí constitue para ele, uma “amputação espiritual” e uma ”solidão
irremediável”. Totalmente diferente da visão que a Igreja possui do sacerdócio e do
celibato; uma visão sobrenaturalista, à luz da fé, sendo que, só aqueles a quem o dom da
fé leva a ver com uma outra luz, e isso, só tem sentido para as pessoas possuidoras da
verdadeira vocação a servir Deus a missão que lhes fora chamados.
A solidão de Eurico é paralela a do romancista Herculano, e ambas
provocadas pela persuasão do homem superior e incompreendido. Um e outro
confundem solidão com a vida interior e riqueza moral, assim, um e outro se suicidam,
um na batalha, outro em Vale de Lobos. A mesma linha de individualismo estóico, falho
da dulcificação do amor incansável, nos conflitos, a ausência de perdão; nas crises,
ausência de remédio.
O espaço físico é notável quando é descrito o enredo concentrado na
Península Ibérica, a baía de Cartéia, a Ilha Verde, os vales, as margens de Crissus onde
ocorrem as batalhas, etc. Há também aqueles espaços fechados como a caverna, o
mosteiro, as tendas dos árabes, o presbítero entre outros. Tratando-se do espaço social,
devido aos conflitos civis e religiosos entre cristãos, godos e mulçumanos, era
caracterizado por valores nobres como o patriotismo ao extremo, a busca da liberdade, o
heroísmo, etc.
É importante esclarecer, na obra, alguns pontos em ralação ao tempo da
narração e da narrativa. O primeiro refere-se ao século XIX em 1844, enquanto que o
segundo refere-se à época da Idade Média, no início do século VIII, isso é perfeitamente
comprovado pelas informações históricas e por datas citadas pelo autor no início de
alguns capítulos. Dentro da obra o tempo é cronológico e psicológico, sendo que aquele
é predominante. Isso é perceptível nos momentos em que o narrador revela uma
sucessão cronológica com advérbios de valor temporal e/ou marca datas em alguns
capítulos: “Presbítero. Antemanhã. Oito dos idos de abril da era de 749.” (p 28). E a
presença do tempo psicológico é em função das vivências subjetivas das personagens,
como mostra o trecho a seguir: