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Formação em Teologia

Volume 09

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Formação em Teologia

Livros Históricos: Juízes e Samuel – Um Período de Governo


Sacerdotal e Profético.

I O período dos juízes


Embora a terra tivesse sido conquistada e ocupada por Israel, sob a
liderança de Josué, ainda havia muitos focos de resistência cananeus. Contado no
Livro dos juízes, esse período demorou quase quatro séculos, e narra desde a morte
de Josué até o advento da monarquia em Israel.

“Esse foi um período de grandes migrações étnicas por todo o


Oriente Médio na segunda metade do segundo milênio a.c. Foi um
período que testemunhou o desaparecimento de algumas grandes
culturas, o começo da Idade do Ferro no Oriente Médio e a
chegada dos filisteus na planície litorânea.” ¹

O título do livro em português pode gerar uma conclusão precipitada e


equivocada, os "juízes" não eram propriamente autoridades judiciais, eram líderes
militares e chefes de clãs que surgiam de tempos em tempos, sendo que os
principais foram registrados nas páginas da Bíblia. Os juízes surgiam em diferentes
regiões e tribos, para salvar alguma parte de Israel que se encontrava sob ameaças
de algum inimigo (inclusive ele mesmo), e a pergunta que surge é: Como poderia
um Deus santo, que exige obediência e submissão do seu povo, tolerar a contínua
prática do pecado e rebeldia do povo? Curioso perceber que vários dos juízes foram
retratados como seres humanos profundamente corrompidos, escolhidos para
libertar uma nação profundamente corrompida. Com isso o leitor de Juízes
aprende como Deus é paciente e misericordioso, vemos nesse livro um Deus
amoroso que jamais revogaria a eleição de Israel devido ao Seu compromisso com
os descendentes de Abraão.

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Amor, justiça, santidade e misericórdia vão se equilibrando (sobre um povo


desequilibrado) ao longo das narrativas, mas é apenas na cruz que enxergamos
plenamente como essas realidades do “ser de Deus” se compõem e se comportam.
Há uma estrutura cíclica no comportamento do povo, que sempre volta a cometer
os mesmos erros, e essa tendência ao pecado é evidenciada no Livro de juízes.
Abaixo, o ciclo do pecado do povo em Juízes:

• 1- O pecado. Quando o povo peca, começa a abandonar os princípios de


Deus e ser influenciado pela cultura dos povos vizinhos.

• 2- Consequência. O povo passa a ser oprimido, como resultado do pecado.

• 3- Perda de identidade. O povo começa a se misturar com vários povos, e


sua fé e religião também. Começa um processo de perda da identidade.

• 4- Consciência. O povo percebe que está naquela situação por conta dos
pecados. O sofrimento está ligado ao fato de estar na direção errada.

• 5- Arrependimento. O povo volta ao caminho de Deus.

• 6- Súplicas (clamor por um libertador). Junto com o arrependimento eles


clamam a Deus por misericórdia.

• 7- Deus levanta um libertador, que trabalha primeiro para resgatar o que o


povo perdeu (identidade).

• 8- Resgate da identidade do povo.

• 9- Libertação. Depois que a identidade é resgatada vem a libertação.

A liberdade é proporcional à essência da identidade. Não seremos livres o


bastante e de verdade enquanto não entendermos quem somos em Cristo. Nosso
libertador resgatou nossa identidade, portanto, não precisamos rodar em ciclos de
pecado. Assim a liberdade de Israel era conectada à aliança com Deus, quando não
se viam como povo dEle, perdiam a identidade, a paz e a liberdade.

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Alguns estudiosos preferem não chamar de “ciclo”, sistematizando a


estrutura pecado-opressão-libertação como uma espiral descendente, justificando
que a palavra "ciclo" transmite a ideia de ser cada ciclo igual a todos os outros,
sendo que no Livro de Juízes não é assim que acontece, pois o ciclo não é uma
repetição do anterior, mas é uma deterioração.

II Análise literária
A maioria dos estudiosos concorda que o livro contém três partes distintas:
um prólogo (Juízes 1: 1-2,5), um núcleo (Jz 2: 6; 16; 31) e um epílogo ou apêndice
(Jz 7.1-21; 25), consistindo em duas narrativas principais²:

Prólogo - O livro começa recordando a morte de Josué, (Josué 24: 29-31), em


seguida informa como a conquista da terra continuou após a sua morte (Juízes 1:
1-36). A atitude de Israel de fazer aliança com os povos nativos desagradou a Deus
e a consequência imediata foi que os israelitas não conseguiriam mais expulsá-los
da terra, e além disso, se transformaram em inimigos domésticos. Essa é a função
do prólogo do livro, estabelecer o pano de fundo para os relatos seguintes, nos
quais Israel será várias vezes oprimido por esses vizinhos remanescentes (Jz 3: 1-
5). A desobediência do passado se tornou a pedra de tropeço do presente, e ao
longo de sua narrativa, o Livro de Juízes responde a pergunta: Por que os cananeus
não foram completamente expulsos da terra?

Núcleo - Nessa parte do livro, surgem as narrativas dos juízes maiores. São eles:
Otniel (Jz 3: 7-11). Um modelo do que um juiz deveria ser, ele é elevado por Deus e
investido com o Seu Espírito. Foi um hábil guerreiro no tempo de Josué (Js 15: 13-
19) e conduziu Israel numa guerra bem sucedida, semelhante ao próprio Josué.

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Eúde (Jz 3: 12-30) - Várias informações e detalhes estão ausentes em sua história,
e comparativamente, o livro não declara que Deus o escolheu, como fez com Otniel,
nem Eúde foi investido com o Espírito de Deus, nem "julga" Israel, pela acepção da
palavra nesse contexto. O que sabemos é que era canhoto (!). Uma curiosidade
ainda mais estranha está na narração de sua história, a Palavra diz que Eúde
“liberta” Israel por meio de artimanha e traição, mas nada informa sobre os
sentimentos e o relacionamento de Deus com ele. Tal característica foi encontrada
entre muitos da tribo de Benjamim (Jz 20: 15-16; 1. Cr 12: 2). Mas, devemos nos
atentar, também, para o uso da palavra, pois "Benjamim" em hebraico significa "o
filho de minha mão direita".

Débora (Jz 4: 1-5,31) - Era profetisa quando julgou a nação de Israel, e seu período
levanta uma questão controversa: o fracasso da liderança masculina em Israel.
Nesse episódio vemos tanto a vitória militar, quanto as artimanhas para matar o
general do exército inimigo. Para além da figura de Débora, a história bíblica nos
apresenta Jael, que não era juíza nem profetiza, de fato, era somente meio-israelita,
e apesar disso, foi responsável direta pela morte de Sísera, o comandante inimigo
(Jz 4:11,17; 5:24). Interessante notar que o famoso “Cântico de Débora” inclui
maldições contra outras tribos que não se uniram à batalha (Jz 5:15 b, 18,23), a
letra da canção antecipa o partidarismo e a desunião entre as tribos de Israel, que
aparecem de forma explícita no final do livro (Jz 20-21).

Gideão (Juízes 6: 1-9, 5:6) - Juiz, guerreiro e fazendeiro, o início de sua história
chama a atenção, se pautando na demora para reconhecer/responder ao chamado
de Deus. Sua atitude insegura fez com que fosse necessários três milagres para
alcançar seu coração, mas por outro lado, a obediência de Gideão é um exemplo.
Apesar de sua marcada timidez, é importante lembrar que ele derrubou o altar de
Baal e o poste-ídolo, como Deus ordenara.

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Embora Gideão tenha ganhado o apelido Jerubaal, que significa "Baal contenda
contra ele" (Jz 6:32), ao fim, ele próprio sucumbiu à falsa adoração que desviou o
povo de Israel (Jz 8: 22-27). Conforme o desenrolar dos capítulos, vez após vez nos
deparamos com a rivalidade entre as tribos e clãs (Jz 8: 1-9). Outro fato a ser
mencionado é que o filho de Gideão “não se torna um libertador, mas um opressor,
não um servo da nação, mas um assassino de israelitas e da sua própria família” ³.

Jefté - Até certo ponto, a narrativa explicita dois lados de um conflito, humano e
divino: num extremo a rebeldia de Israel, que peca e provoca a ira divina (Jz 10: 6-
16), e no outro a aliança que Deus fez com o povo, inquebrável devido ao Seu caráter
santo. Mais uma vez, notamos que a ira divina e a misericórdia, o amor e a lealdade
de Deus não se excluem mutuamente.

“Embora o Espírito de Deus já tivesse vindo sobre ele para a


batalha com Amom (v. 29), Jefté faz um voto impulsivo e
desnecessário (v. 30), como se fosse preciso mais para garantir a
vitória. Aquele que foi tão calculista em seu egoísmo acaba por
destruir o que calculava ser o mais valioso; a sua única filha (Jz 11:
34-40). Uma vez mais uma vitória faz irromper a disputa
intertribal e a rivalidade regional (Juízes 12: 1-6).” ⁴

Sansão - O último dos juízes maiores, cuja história é a mais conhecida, ele está
longe de ser um juiz modelo, ao contrário, trata-se de alguém buscando desculpar
os próprios erros, que aceita facilmente os próprios defeitos.
Uma característica notória foi o descontrole do próprio apetite sexual, a
inclinação de Sansão para as mulheres estrangeiras tornou-se uma metáfora do
próprio Israel, pouco disposto a resistir à tentação de prostituir-se aos deuses
estrangeiros (Jz 2: 17; 8: 27,3).

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Numa afronta direta, o casamento de Sansão com uma mulher de outro povo viola
a ordem divina (Jz 3:56). Ironicamente, o homem que foi consagrado a Deus
quando nasceu, viveu centrado em si mesmo, e sua morte trouxe mais benefícios à
Israel do que toda a sua vida (Jz 16:30).

Concluímos o panorama desse livro lembrando da herança deixada por


Josué e no que ela se tornou: uma nação unificada que foi desintegrada ao longo
do tempo por rivalidades partidárias e regionais. Esse cenário criou o caos religioso
e político que exigiram a expectativa para um novo tipo de liderança, e agora, a
questão é se a monarquia desejada pelo povo será uma solução às crises de Israel
(Jz 17-21). As últimas duas histórias preparam o terreno para uma mudança em
direção à monarquia.
Segue uma tabela com os juízes e suas referências:

Nome Referência Identificação


Otniel Jz 1.12-13;3.7-11 Conquista cidade Cananéia

Eúde Jz 3.12-30 Derrotou Moabitas

Sangar Jz 3.31 Matou 600 filisteus

Débora Jz 4-5 Convenceu Baraque comandar exército

Gideão Jz 6-8 Liderou 300 homens contra 135 mil Midianitas

Tola Jz 10.1-2 Julgou por 23 anos

Jair Jz 10.3-5 Julgou por 22 anos

Jefté Jz 11.1-27 Derrotou amonitas

Ibsã Jz 12.8-10 Julgou por 7 anos

Elom Jz 12.11-12 Julgou por 10 anos

Abdom Jz 12.13-15 Julgou por 8 anos

Sansão Jz 13-16 Julgou por 20 anos

Samuel 1 e 2 Samuel Último juiz, primeiro profeta

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III Mensagem teológica de juízes


Existem duas questões teológicas principais no Livro de Juízes:

Graça e lei - Dois conceitos que se traduzem em outros dois: condicionalidade e


incondicionalidade. Conforme a história se expande, dos Livros de Josué à Reis, a
relação de Deus com Israel é investigada e apresentada ao leitor de forma muito
especial, surgindo questões cruciais à teologia cristã.
Destacamos os pontos brilhantemente formulados por Dillard e Longman II:

• A santidade de Deus e a exigência de obediência às Suas ordens anulariam


Suas promessas à Israel?

• O compromisso irrevogável com a nação, e as Suas promessas de graça aos


patriarcas, significariam que Ele, de alguma maneira, deixaria passar os
seus pecados?

• Quem tem prioridade, a lei ou a graça?

Devemos admitir que o Livro de Juízes, de fato, não resolverá essa questão.
A partir daí percebe-se um paradoxo na relação de Deus com Israel, ao mesmo
tempo condicional e incondicional, numa tensão que movimenta toda a narrativa.

A administração do governo de Deus sobre o seu povo - Deus era o rei e senhor
de Israel (Jz 8:23), então, qual seria a melhor forma de governo para produzir uma
nação santa e fiel a Deus? Um governo descentralizado? Monarquia? Ou alguma
outra? A resposta dos livros históricos é que nenhum sistema é capaz de produzir
uma nação santa e fiel a Deus.

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Um grupo de estranhos e improváveis heróis nos é apresentado em Juízes:


o fazendeiro inconstante, uma mulher profetiza, um assassino canhoto, um bandido
bastardo, um nazireu viciado em sexo, etc. Seremos nós melhores do que esses
estranhos personagens? Observe os textos a seguir, no primeiro, o apóstolo Paulo
dá uma lição de humildade, afinal de contas, com semelhante misto de ignorância,
fraca obediência e motivos confusos, nós, como eles, fomos:

"(...) lavados, santificados e justificados em nome do nosso


Senhor Jesus, pelo Espírito do nosso Deus.” (1 Co 6:11)

Através de todas as suas falhas, aprendemos de sua fé, pois foram Gideão,
Baraque, Jefté, e Sansão que:

"(...) por meio da fé, subjugaram reinos, praticaram a


justiça, obtiveram promessas" (Hebreus 11: 32-33)

Não obstante os fracassos, sua fé não foi equivocada, eles se tornaram uma
parte daquela grande nuvem de testemunhas que nos clama a perseverar e firmar
os nossos olhos em Jesus (Hb 12:1-2). Também precisamos de um redentor para
garantir a herança que Deus prometeu, alguém que aperfeiçoará a nossa fé no meio
das nossas inconsistências.

IV O livro e a vida de Samuel


Destacamos Samuel do grupo dos grandes juízes em virtude de sua função
como o primeiro profeta de Israel e de sua posição na própria narrativa, e seu livro
marca a transição do período de juízes ao período monárquico. Samuel foi
sacerdote, profeta e o último juiz, usado por Deus para levantar e ungir os primeiros
reis da nação e orientá-los a como proceder diante de Deus e do povo.

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A partir desse resumo, estabelecemos o pano de fundo para entender a relação


entre os personagens principais desse livro: Samuel (o último juiz), Saul (o primeiro
rei) e Davi (o fundador da dinastia). O primeiro Livro de Samuel termina com a
morte de Saul, ao passo que o segundo livro é dedicado em grande parte ao reinado
de Davi. Em sua maior parte, o livro é composto em prosa, porém, surgem algumas
seções poéticas, e as principais dizem respeito à Ana e Davi: uma mãe e um rei.
Segundo Polzin, essas seções fornecem “uma espécie de moldura para o
todo do livro: a oração de Ana em 1 Samuel 2: 1-10 e os cânticos de David em 2
Samuel 22: 1-23.7”. Na opinião de Dillard e Longman II, essas orações mostram
“como os sentimentos do triunfante rei se fundem com os de uma mãe triunfante''.
Ambas as composições se regozijam por haver se libertado dos inimigos (1 Sm 2:
1-4), celebram Deus como “uma rocha” (1 Sm 2:2), falam de Sheol (1 Sm 2:6),
descrevem Deus “trovejando na escuridão” (1 Sm 2:10), sua proteção ao crente (1
Sm 2:9) e seu “fiel amor pelo ungido do Senhor” (1 Sm 2:10).
O cântico de Ana (1 Sm 2), resume e antecipa os temas de todo o livro:

• O anseio pelo surgimento da realeza em Israel (1 Sm 2: 7-8)

• A preconização das vitórias de Davi (1 Sm 2:10)

• A santidade e proteção do seu ungido (1 Sm 2: 9-10)

Ana e Eli se referem a Samuel como o "pedido" ou "rogado" ao Senhor (1 Sm


1: 17,20,27; 2: 20). Um fato interessante é que a raiz verbal hebraica “sa'al”, que
encontramos na referência ao filho de Ana, também é expressa no pedido do povo
por um rei (1 Sm 8:10; 12;13; 17:19). Outra curiosidade é que o nome Saul é
construído com base na mesma raiz verbal “sa'úl”: “o pedido”. Trata-se de uma
variação sutil, melhor observada na grafia: sa'al e sa'úl. De forma poética, histórica
e até etimológica, Samuel é o símbolo do pedido de uma mãe, enquanto Saul é o
símbolo do pedido do povo. Então, vamos olhar a vida e o chamado de Samuel.

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Nascimento - O nascimento de Samuel foi um grande presente na vida de Ana. A


narrativa mostra essa personagem sendo esmagada tanto pela maldade de Penina,
a outra mulher de Elcana, quanto pelo peso de sua condição de esterilidade. A dor
e o sofrimento transformaram Ana em uma mulher de oração, e Samuel chega à
vida de sua mãe como bálsamo. Em seus momentos de aflição, Ana fez um voto a
Deus, ofereceria seu filho ao Senhor, caso Ele a concedesse essa benção.

Chamado - Por ter sido consagrado ao serviço a Deus, Samuel cresceu sob os
cuidados do sacerdote Eli, mas ele só pôde desempenhar esse ofício devido ao fato
de seus pais pertencerem à linhagem sacerdotal. Samuel era uma criança quando
teve sua experiência de chamado da parte de Deus, ao mesmo tempo, a Bíblia
relata que apesar de Eli ser temente a Deus, e de ter uma família que também tinha
origens na linhagem sacerdotal, seus filhos tinham corações pervertidos, mas
Samuel foi usado por Deus para restaurar a santidade e o temor do sacerdócio:

“Era, porém, Eli já muito velho e ouvia tudo quanto seus


filhos faziam a todo o Israel e de como se deitavam com
as mulheres que em bandos se ajuntavam à porta da
tenda da congregação.” (1 Sm 2:22)

“Era, pois, muito grande o pecado desses jovens


perante o Senhor, porquanto os homens desprezavam
a oferta do Senhor.” (1 Sm 2:17)

Ministério – Samuel foi além do sacerdócio, foi profeta, pois ouvia a voz de Deus,
continuamente: quando foi chamado, quando ungiu os reis de Israel e quando trazia
uma ordem de Deus ao povo, sendo também “juiz”, além de conselheiro e pastor,
que orientava o rebanho israelita, Saul entre estes, a próxima figura desse estudo.

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V História de Saul
Saul era da tribo de Benjamim, um homem cujo porte físico tomou destaque
na própria narrativa bíblica, ele inicia sua jornada caminhando com Deus, mas se
perde no caminho, e com o passar do tempo, as batalhas revelavam a essência
arrogante e vaidosa de Saul. No momento em que é confrontado (1 Sm 15) pelo o
sacerdote, onde Samuel lhe diz "Atenta, ouça, escute.", vemos no texto uma relação
entre as ideias “ouvir e escutar” contrapondo com “barulho, palavra, voz”. Saul
afirma estar escutando (1 Sm 15:13), mas quando Samuel ouve o barulho dos
animais (1 Sm 15:14) entendemos que Saul ouviu a voz do povo ao invés de ouvir a
voz de Deus (1 Sm 15: 19-24), e observando descobrimos que ele era:

• Tímido. Escondendo-se atrás da bagagem (1 Sm 10: 22,27)

• Desobediente. Conforme referência a seguir:

“Alguns deles atravessaram o rio Jordão e fugiram


para à terra de Gade e de Gileade. Entretanto, Saul
ficou em Gilgal e os que estavam com ele tremiam de
medo à espera do que poderia acontecer. Samuel
avisou anteriormente a Saul que deveria esperar sete
dias pela sua chegada...

“...Mas Saul, impaciente, vendo que ele não chegava, e


perante aquela fuga das tropas, decidiu sacrificar ele
próprio o holocausto e as ofertas de paz. Estava a acabar a
cerimónia quando Samuel chegou. Saul foi ao encontro dele
para o saudar. Samuel perguntou-lhe: Que foi que fizeste?”
(1 Sm 13: 7-11)

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• Invejoso. Uma vez mais, a Bíblia é clara e não nos furta o conhecimento do
caráter do primeiro rei de Israel:

“Enquanto dançavam, as mulheres cantavam: ‘Saul matou


milhares, e Davi, dezenas de milhares’. Saul ficou muito
irritado com esse refrão e, aborrecido, disse: ‘Atribuíram a
Davi dezenas de milhares, mas a mim apenas milhares. O
que mais lhe falta senão o reino?’ Daí em diante Saul
olhava com inveja para Davi.” (1 Sm 18: 7-9)

• Inconstante. Saul perseguia Davi de forma violenta e obstinada, mesmo


consciente do mal que estava fazendo:

“Tendo Davi falado todas essas palavras, Saul perguntou:


‘É você, meu filho Davi?’ E chorou em voz alta. ‘Você é mais
justo do que eu’, disse ele a Davi. ‘Você me tratou bem, mas
eu o tratei mal’”. (1 Samuel 24: 16,17)

Vemos ainda Saul sendo atormentado por um espírito, variando


dramaticamente de humor (1 Sm 16: 14-23).

• Supersticioso. Abaixo, o relato de Saul buscando uma vidente:

“Quando Saul viu o acampamento filisteu, teve medo; ficou


apavorado. Ele consultou o Senhor, mas este não lhe
respondeu nem por sonhos, nem por Urim, nem por
profetas. Então Saul disse aos seus auxiliares: [...]

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[...] ‘Procurem uma mulher que invoca espíritos, para que


eu a consulte’. Eles disseram: ‘Existe uma em En-Dor’”. (1
Sm 28:5-7)

Cada um desses motivos revela porque o reinado de Saul foi rejeitado por
Deus. O declínio de Saul segue na direção oposta a ascensão de Davi, seu sucessor:

“Então Samuel lhe disse: O Senhor tem rasgado de ti hoje


o reino de Israel, e o tem dado ao teu próximo, melhor do
que tu”. (1 Sm 15: 28)

VI História de Davi
A partir de agora, nos debruçaremos na biografia de um personagem bíblico
fascinante. Chamado de um “homem segundo o coração de Deus”, Davi foi um
indivíduo complexo, cheio de contradições; ora passivo, ora atuante; ora bruto, ora
sensível e dedicado. Sua história é recheada de retumbantes sucessos e de
fracassos terríveis. É apresentada como a interação entre o seu papel público
(realeza) e o privado (pai, marido).

O pastor de ovelhas - Duas experiências fundamentais são adquiridas enquanto


exercia a função de pastor: o cuidado e a invisibilidade. A expressão “Por trás das
malhadas” é reveladora:

"Eu te tirei do curral, de detrás das malhadas, para que


fosses chefe do meu povo Israel. E estive contigo por
toda parte, por onde foste". (1 Cr 17: 7,8)

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Quando Samuel vai à casa de Jessé para ungir o novo rei, os filhos do
patriarca são apresentados um a um. Entendendo da parte de Deus que nenhum
daqueles seria o novo rei, Samuel pergunta: Acabaram seus filhos? E o pai de Davi
diz: Ainda tem um! Mas está atrás das malhadas.
Essa frase revela muito sobre o lugar que Davi ocupava na família,
obviamente não era uma posição de destaque, mas um lugar periférico, e o próprio
Livro de Samuel relata como ele era enxergado por sua família (1 Sm 17:28). Em
sua missão solitária de apascentar nos campos, Davi aprendeu não somente a
cuidar das ovelhas, mas a contemplar a criação e expressar seu louvor e adoração
a Deus com harpas e canções.

O músico e compositor - Davi foi o responsável por introduzir música no culto do


Antigo Testamento:

"Também estabeleceu os levitas na Casa do SENHOR com


címbalos, alaúdes e harpas, segundo mandado de Davi e de
Gade, o vidente do rei, e do profeta Natã; porque este
mandado veio do SENHOR, por intermédio de seus
profetas." (2 Cr 29:25)

Sua experiência com louvores o fez perceber a importância que a música


podia exercer na vida e no culto. Davi canta quando vê a tempestade; quando vê o
perigo e o inimigo; quando vê o livramento divino; quando está aflito; quando está
alegre e quando contempla a criação. Cada circunstância da vida é pretexto para
cantar e tocar. Davi é o maior autor do Livro de Salmos, em suas composições, ele
expressa dúvidas e angústias, sofrimento e fé, e a esperança nas promessas de
Deus. Relacionando-o à fé, à música e à Palavra, o legado de Davi pode ser
sintetizado da seguinte maneira:

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“Louvai ao Senhor com harpa, cantai-lhe louvores com


saltério de dez cordas. Cantai-lhe um cântico novo; tocai bem
e com júbilo. Porque a palavra do Senhor é reta; e todas as
suas obras são feitas com fidelidade.” (Sl 33: 2-4)

O guerreiro - Davi possui uma extensa e bem-sucedida carreira no campo de


batalha. Derrotou os filisteus e tirou de seu controle a região de Metegue-Amá (2
Sm 8:1). Também derrotou os moabitas, os fez deitar-se no chão e mandou que os
medissem com uma corda; os moabitas que ficassem dentro das duas primeiras
medidas da corda eram mortos, mas os que ficavam dentro da terceira eram
poupados. Assim, os moabitas ficaram sujeitos a Davi, pagando-lhe impostos.
Além deles, Davi derrotou Hadadezer, filho de Reobe, rei de Zobá, na ocasião
em que Hadadezer tentava recuperar o controle na região do rio Eufrates. Davi se
apossou de mil dos seus carros de guerra, sete mil cavaleiros e vinte mil soldados
de infantaria. Ainda levou cem cavalos de carros de guerra, aleijando todos os
outros. Quando os arameus, de Damasco, vieram ajudar Hadadezer, rei de Zobá,
Davi matou vinte e dois mil deles. Em seguida estabeleceu guarnições militares no
reino arameu, sujeitando-os com impostos. Também levou à Jerusalém os escudos
de ouro usados pelos oficiais de Hadadezer. E de Tebá e Berotai, cidades que
pertenciam a Hadadezer, Davi levou grande quantidade de bronze:

“O Senhor dava vitórias a Davi em todos os lugares aonde ia.”


(2 Sm 8 :1 -14)

Quando Toú, rei de Hamate, soube que Davi derrotara o exército de


Hadadezer, enviou seu filho, Jorão, ao rei Davi para parabenizá-lo por sua vitória
na batalha contra Hadadezer, que esteve em guerra contra Toú. Através de Jorão,
mandou todo tipo de utensílios de prata, de ouro e de bronze.

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Davi consagrou esses utensílios ao Senhor, como fizera com a prata e o ouro
tomados dos povos e nações que havia subjugado: Edom e Moabe; os, amonitas e
os filisteus; e Amaleque. Também consagrou os bens tomados de Hadadezer.
Davi ficou mais famoso ao voltar da batalha em que matou dezoito mil
edomitas, no Vale do Sal, e dominando, estabeleceu guarnições militares em todo
o território de Edom. Guerreiro vitorioso, o que trouxe consequências boas e ruins,
os bons resultados vieram na finalidade que o Senhor à sua coragem e habilidades:
realizar grandes conquistas. Entretanto, houve aspectos negativos:

“Agora, pois, a espada jamais se apartará da tua casa,


porquanto me desprezaste, e tomaste a mulher de Urias, o
heteu, para ser tua mulher”. (2 Sm 12:10)

A união do desejo desordenado com sua destreza militar trouxe uma


consequência trágica à sua vida, atingindo as gerações futuras. O castigo divino
vem quando Davi se desvia de seu propósito, empregando sua competência de
guerreiro estrategista para satisfazer seus desejos. Outra consequência foi não ter
a permissão de Deus para construir um templo para adoração:

“Bem sabes que Davi, meu pai, não pôde edificar casa ao
nome do Senhor seu Deus, por causa das guerras que o
cercaram, até que o Senhor lhe pôs os inimigos debaixo dos
pés. Agora, porém, o Senhor meu Deus me tem dado
descanso de todos os lados: adversário não há, nem
calamidade alguma. Pretendo, pois, edificar uma casa ao
nome do Senhor meu Deus, como falou o senhor a Davi, meu
pai, dizendo: Teu filho, que porei em teu lugar no teu trono,
ele edificará uma casa ao meu nome”. (1 Reis 5:3-5)

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O Rei - Em seu reinado, Davi consolidou Israel como nação, conquistou outros
povos e estabeleceu a paz. Teve uma voz de governo, não como líder autoritário,
mas como alguém que se posiciona como modelo, fazendo o que manda fazer.
Davi reinou por 40 anos, sendo os sete primeiros anos do seu reinado
sediados na cidade de Hebrom. Depois que seu general conquistou a cidade dos
jebuseus, transferiu a capital para Jerusalém. De acordo com a Palavra, as
conquistas de Davi e Salomão estenderam o território de Israel, adicionando
territórios que correspondem a partes da Síria, Jordânia, Faixa de Gaza, Palestina,
uma parte do Egito e uma parte do Líbano (1 Reis 4: 21). De fato, muitas nações
foram trazidas para debaixo do domínio de Israel. A casa de Davi, e sua dinastia, é
a consequência da aliança que Deus fez com Davi, prometendo-lhe:

“Quanto a você, sua dinastia e seu reino permanecerão para


sempre diante de mim; o seu trono será estabelecido para
sempre”. (2 Sm 7:16)

O Homem - Enquanto o rei Davi era conhecido por sua bravura, habilidade de
combate e competência ao liderar, o homem Davi é marcado por inconstância e
dramas pessoais. Citamos a esterilidade de sua esposa Mical, filha de Saul, e o
pecado com Bate-Seba, este último é marcado por uma atitude passivo-
agressiva, conforme algumas narrativas apresentam. Por vezes, Davi assumia um
traço de passividade, porém em outras, é mostrado como aquele que conquista
pelo favor e poder:

“Por exemplo, o rei que não conquista o reino de Saul (2 Sm 2-5) é


o mesmo que está disposto a conquistar uma mulher que é o objeto
de seu desejo (Bate-Seba).” ⁵

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Davi era cheio de contrastes e dilemas, foi extremamente sábio e honrado


em algumas circunstâncias, mas em outras foi carnalmente insensato; foi um ótimo
rei, mas um péssimo pai; um guerreiro corajoso, mas um homem omisso. Alguém
demasiadamente humano, e apesar de uma vida de contradições, tinha a virtude
de guardar um coração quebrantado diante de Deus. Em última análise, era um
homem disposto a se arrepender diante do Senhor, o que nos leva a refletir sobre
o real significado ser alguém segundo o coração de Deus.

O Pai - A parte mais assustadora da vida de Davi ocorreu em seu próprio círculo
familiar, encontramos uma série de acontecimentos trágicos aqui. Tudo começa
com o estranho envolvimento de Davi com Bate-Seba. Anos depois, seu filho
Amnom, estupra Tamar, sua própria irmã. Depois, Absalão, revoltado com o
ocorrido, mata Amnon, afronta o pai, e se insurge contra o reinado dele, violentando
as concubinas do rei (2 Sm 16:21-22).
O silêncio e a omissão de Davi deixam um rastro de tragédias. Absalão fugira
por três anos, e mesmo após sua volta, não houve uma conversa franca entre pai e
filho. A lição surpreendente desses acontecimentos é que, o fracasso de Davi como
pai e suas tragédias familiares, não são sinônimo de ausência de uma fé genuína.

VII Conclusão
As vidas de Davi e Saul fazem perguntar: Por que Davi foi aprovado e Saul
não? O que valeu mais para Deus? O que coloca Davi acima de Saul? O preparo e
o caráter para reinar os diferiu, mas a separação mais significativa foi a fé que
tinham. A vida de Davi é um caso clássico de causa e efeito, seus pecados pesaram
sobre sua casa, porém, nem as circunstâncias mais terríveis mudaram seu coração
quebrantado, e estava aí seu valor.
Sobretudo, o Livro de Samuel mostra que nem mesmo os melhores reis
conseguem, por si só, governar, todos dependem da graça divina.

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Notas:
Todas as notas (1-5) fazem referência à obra: Introdução ao AT, por Dillard e Longman II

Bibliografia:
PRICE, Randall. Manual de arqueologia bíblica (Thomas Nelson/ Randall Price e H Wayne
House. Tradução: Wilson Ferraz de Almeida- Rio de Janeiro: Thomas Nelson. 2020)

KLEIN, William W. HUBBARD JR, Robert L. BLOMBERG, Craig L. (Tradução: Maurício


Bezerra Santos Silva. 1 ed. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017)

Manual bíblico vida nova (Editor geral: David S. Dockery. Tradução: Lucy Yamakami.
Hans Udo Fuchs, Robinson Malkomes. - São Paulo: Edições Vida Nova, 2001)

DILLARD, Raymond B. Introdução ao Antigo Testamento (Raymond B. Dillard, Tremper


Longman III. Tradução: Sueli da Silva Saraiva.- São Paulo: Vida Nova, 2006)

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. (Tradução: Vicente Pedroso. Rio de Janeiro. CPAD,
1990)

BROWN, Raymond. Entendendo o Antigo Testamento - esboço, mensagem e aplicação


de cada livro (Shedd Publicações)

CARSON, G. K. BEALE, E D. A. Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo


Testamento

PINTO, Carlos Osvaldo. Foco no Antigo Testamento (Editora: Hagnos)

BUSH, Frederic W. HUBBARD, David A. LASOR, Willians. Introdução ao Antigo


Testamento. MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e Nações do Mundo Antigo (Editora:
Hagnos)

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PHILLIPS, John. Explorando as Escrituras: uma visão geral de todos os Livros da Bíblia.
2. ed. (Rio de Janeiro: CPAD, 2005)

SHEDD, Russel. O Novo Comentário da Bíblia. (Editora Vida Nova, 1997)

DAVIS, John D. Dicionário da Bíblia. (São Paulo: JUERP, s/d)

DOUGLAS, J. O Novo Dicionário da Bíblia. (São Paulo: Edições Vida Nova, 1986)

Insight on the Scriptures, 2 vols. EUA: Watch Tower, 1988

RAWLINSON, George. The Historical Evidence of the Truth of the Scripture Records
(1892)

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