Você está na página 1de 26

Emergentismo Perspectivista nas Humanidades

Luiz Henrique de Araújo Dutra1


UFSC/UnB/CNPq

Neste texto vamos discutir as noções mais fundamentais de uma versão do realismo social, a
saber, o emergentismo perspectivista. O perspectivismo é, por assim dizer, uma conciliação en-
tre a perspectiva realista, segundo a qual as ciências estudam realidades dadas, e a perspectiva
idealista, para a qual o que nos é dado é essencialmente dependente de nós, de nossas formas
de percepção e entendimento, não sendo possível conhecer as coisas-em-si. Para o realismo, as
ciências retratam as coisas tal como elas são. Para o idealismo, ao contrário, as ciências retra-
tam apenas as coisas para nós, não sendo possível nem mesmo talvez, em última instância, fa-
larmos de uma realidade estudada pelas ciências, mas apenas dos fenômenos que a mente hu-
mana produz, dadas suas capacidades representacionais. O principal problema com o realismo
é certa ingenuidade, isto é, o fato de desconsiderar nossa estrutura mental, que também é de-
terminante na imagem do mundo que temos. O principal problema do idealismo é que não pa-
rece plausível encarar o mundo como puro produto da mente humana, independentemente de
alguma realidade em si que com ela interage.
Essas questões possuem um aspecto epistemológico e um aspecto ontológico, e têm
preocupado os filósofos desde sempre. Uma conhecida forma de conciliação entre a perspectiva
realista e a perspectiva idealista é o idealismo transcendental proposto por Immanuel Kant.2
No aspecto ontológico (ou metafísico, para utilizarmos o termo mais tradicional), Kant afirma
que há coisas-em-si, os noumena, mas que elas não podem ser conhecidas tal como são em si
mesmas. O que podemos conhecer, segundo o filósofo, são as coisas-para-nós, os phainomena, os
fenômenos ou coisas que nos aparecem segundo nossas formas da sensibilidade (espaço e tem-
po) e que o entendimento julga segundo determinadas categorias dadas a priori. Kant rejeita,
assim, tanto o realismo ingênuo quando o idealismo puro. Há certamente um elemento pers-
pectivista em seu idealismo transcendental, mas que é diferente do perspectivismo que vamos
discutir.
A diferença fundamental entre o perspectivismo a ser discutido aqui e aquele de Kant é
que, para o perspectivismo que queremos defender, a interação entre as coisas e a mente hu-
mana também é um aspecto a ser estudado; ela é também objeto de investigação científica, pu-
ramente empírica, não de uma investigação transcendental e a priori. Como sabemos, para a

1
filosofia kantiana, apenas a estrutura da razão ou de suas principais faculdades cognitivas (sen-
sibilidade e entendimento) era objeto de um estudo a priori. A forma como as coisas-em-si afe-
tam a mente humana empiricamente falando, para o filósofo, também faria parte do domínio
metafísico que não pode ser resgatado para as ciências, aquela parte da metafísica tradicional
que Kant rejeitou juntamente com a teologia racional e a cosmologia, a saber, a psicologia. No
horizonte intelectual do filósofo não há nada semelhante à neurofisiologia, nem sua relação es-
trita com os processos mentais, tal como encaramos o tema hoje. Além disso, no aspecto estri-
tamente ontológico, para o perspectivismo que desejamos expor, não há a necessidade de pos-
tular a existência de coisas-em-si.
Podemos tomar a solução kantiana como resultado das considerações que tiveram início
com os empiristas britânicos, a saber, Locke, Berkeley e Hume, e a ideia de que o que conhe-
cemos são apenas nossas ideias, ainda que para Locke e Hume, embora não para Berkeley, não
possamos negar a existência de um mundo material por trás desse véu de ideias. Mas esse mun-
do material, tal como ele é em si e independentemente de nossas ideias, não tem como ser ob-
jeto de estudo das ciências, como conclui Kant o que já estava naqueles espiristas. Entretanto,
desde então, as ciências mudaram muito (talvez possamos nos sentir tentados a dizer que elas
progrediram muito, mas isso não importa), e mudaram tanto no domínio de nosso conhecimento
dos processos materiais, digamos, aqueles estudados pelas ciências físicas, quanto no domínio
do conhecimento do que há dentro de nós, do aparato neurofisiológico que é uma das condi-
ções de base para nosso conhecimento do mundo e para toda nossa vida mental. Onde não
avançamos muito, certamente, foi na relação entre o domínio neurofisiológico e aqueles que
são explorados pela psicologia e pelas humanidades em geral, pela sociologia, antropologia,
economia etc., para citarmos apenas as mais comumente praticadas com claras pretenções de
serem científicas, em suma, o domínio social todo.
Entretanto, como pretendemos mostrar, o perspectivismo está plenamente à vontade
quando considera os eventos humanos ou sociais — vamos chamar assim todos aqueles que têm
sido estudados pelas humanidades em geral. E aqui devemos então lembrar de mencionar tam-
bém o Direito, as artes e as religiões. Essas atividades humanas são produtoras de conhecimen-
to e, para o perspectivismo, produtoras de conhecimento plenamente objetivo. Como esses
comentários já sugerem, com isso devemos também repensar nossa própria concepção da ciên-
cia em geral. O perspectivismo é uma ontologia e uma epistemologia plenamente capazes de
superar a cisão tradicional entre as humanidades e as ciências da natureza.
Na primeira seção, vamos recapitular as principais noções relativas ao perspectivismo.
Na seção 2, vamos explorar o aspecto ontológico que essas questões envolvem, discutindo as
noções centrais do emergentismo, ontologia essa que se ajusta perfeitamente ao perspectivismo
2
e à ideia básica de que o conhecimento humano evolui juntamente com o restante da realidade.
Na seção 3 vamos argumentar por que essa associação entre o emergentismo e o perspectivismo
resulta em uma postura tipicamente realista. Na seção 4 vamos aplicar essas noções epistemo-
lógicas e ontológicas ao caso das humanidades, isto é, vamos argumentar em favor do realismo
social.
Ao contrário da forma mais comum de tratar as coisas, vamos argumentar que, para o
perspectivismo, começar as considerações a partir das realidades sociais é uma vantagem — e
não uma desvantagem — epistemológica. Tradicionalmente, encaramos as realidades sociais
como resultantes da ação dos seres humanos, e essa última como produto de nossos estados
mentais. Tais estados mentais, por sua vez, representam um desafio maior para a ciência, sendo
que as disciplinas mais tradicionalmente consolidadas, as ciências físicas, não parecem nos ofe-
recer meios adequados para o entendimento do mental. Assim, uma acomodação costumeira
consiste em declarar que as humanidades não são disciplinas científicas — pelo menos não da
mesma forma que as ciências da natureza. E, algumas vezes, a isso se acrescenta que as humani-
dades não possuem a mesma objetividade das ciências da natureza, que elas são meras discipli-
nas interpretativas e, portanto, sempre carregadas de certa subjetividade. O perspectivismo,
como veremos, permite conciliar adequadamente o caráter interpretativo das humanidades
com a objetividade que desejamos para todas as ciências.

1. A realidade da perspectiva humana

Da perspectiva humana, a realidade nos é dada primeiro como formas de convivência com ou-
tros seres humanos, como interações entre nós. Embora seja um truísmo, devemos lembrar que
todos nós começamos a perceber o mundo paralelamente às interações com o grupo social a
que pertencemos — e, devemos dizer, inclusive na dependência de tais interações.
É claro que é possível elaborarmos o modelo fantasista (que, no passado, já foi levado a
sério por determinados pensadores racionalistas) segundo o qual um ser humano por si mesmo,
sem as interações sociais nas quais a esmagadora maioria de nós vem ao mundo, poderia chegar
a ser o que todos nós acabamos sendo: sujeitos cognoscentes e agentes morais. A esse respeito,
vale mencionarmos uma das fantasias nativistas (ou inatistas) mais curiosas que há na literatura:
a obra O filósofo autodidata, de Ibn Tufayl.3
Para defender seu racionalismo inatista, esse autor pré-cartesiano imagina uma criança
que sobrevive e se desenvolve plenamente em uma ilha deserta, adquirindo linguagem própria,
elaborando conhecimentos detalhados do mundo etc., até mesmo uma filosofia. Nos termos de
hoje, tecnicamente falando, esse indivíduo seria uma criança feral, isto é, um indivíduo humano
3
que sobrevive isolado do meio social.4 E como sabemos pelos casos estudados com rigor cientí-
fico, tais crianças não possuem linguagem e, depois de levadas ao convívio humano, nem mes-
mo conseguem aprender uma língua. Elas apresentam também severas deficiências cognitivas e
não são dotadas de qualquer moralidade. Por isso podemos dizer que a suposição desse tipo de
nativismo ingênuo é completamente absurda, o que quer dizer que qualquer modelo cognitivo
do ser humano deve começar por considerar sua dependência com relação ao meio social no
qual ele adquire sua língua materna e, com ela, seus primeiros e mais fundamentais conceitos e
valores. Muito mais que isso, ao que parece, o próprio amadurecimento neurofisiológico e o
desenvolvimento de determinadas funções mentais (como a fala justamente) dependem do es-
tímulo social que a criança recebe desde os primeiros dias de vida.
É claro que a sociedade também nos habilita a, com o tempo, termos a capacidade men-
tal de criar nossa própria versão pessoal dos conceitos e valores que ela nos oferece, nossa pró-
pria visão de mundo, enfim. Mas isso tem de ser feito com o material oferecido pela sociedade
a cada um de nós a partir da mais tenra idade, nem tanto a partir do que nos é dado pela natu-
reza, digamos. Mas, de fato, o melhor é dizermos que a natureza no nosso caso humano inclui
sempre a sociedade. E, realmente, não sabemos bem se mesmo no caso de inúmeros outras es-
pécies animais não seria também assim.5
Desse modo, da perspectiva humana possível, mesmo a natureza como um domínio de
objetos de estudo, nos aparece por intermédio das interações sociais mais básicas que nos for-
mam cognitivamente. E a sociedade nos aparece como esse domínio de objetos intencionais e
mesmo morais que, de certo modo, parece se sobrepor à natureza. Este é um aspecto a ser con-
siderado mais adiante. Por ora, fiquemos apenas com o caso de como as coisas nos aparecem,
desconsiderando a maneira como a própria convivência em sociedade molda nossa forma de
perceber o mundo e pensá-lo. Os empiristas britânicos, já mencionados, tomavam as coisas as-
sim, isto é, entendiam a percepção como uma relação apenas entre nossa estrutura mental
pronta e acabada e os objetos a nossa volta.
Um caso conhecido na literatura desde então é a distinção que eles e mesmo os autores
racionalistas anteriores, como Descartes e seus seguidores, faziam entre as qualidades primárias
e secundárias dos corpos. As qualidades primárias são, por exemplo, extensão e massa que, se-
gundo esses filósofos, não dependem da perspectiva humana, isto é, de nossa forma específica
de perceber as coisas. As qualidades secundárias são, por exemplo, as cores, que dependem de
como vemos. Essas últimas eram consideradas não reais, mas ideais por essa razão. As cores não
estão nos objetos. Nesse aspecto elas seriam semelhantes a determinadas atribuições de valor,
como considerarmos um objeto bonito, por exemplo. Uma rosa é extensa em si mesma, mas ela

4
tem determinada cor, vermelha, suponhamos, em nós, não em si mesma, assim como ela é bela
para nós, não em si mesma.
Nos caso específico das cores como um tipo de qualidade secundária (tal como aqueles
autores entendiam), sabemos hoje que eles estavam errados. Aliás, segundo teorias físicas atu-
ais, eles estavam errados também a respeito das próprias qualidades primárias, tal como vamos
comentar adiante. As cores que vemos são reais e dependem de interações que envolvem três
ordens de fatores. Para explicar seu perspectivismo, Ronald Giere (2006) toma exatamente esse
caso. Ele recapitula uma boa parte da literatura atual referente à ciência das cores. Resumida-
mente, a cor que um de nós vê (o vermelho da rosa, por exemplo) depende da natureza da luz
que incide na atmosfera de nosso planeta, de certas propriedades da superfície que reflete cer-
tas faixas do espectro eletromagnético e da constituição de nossos olhos. A retina humana pos-
sui células cone que, na maioria da população, são de três tipos, sendo responsáveis por nossa
visão das cores. O outro tipo de células que há na retina são os bastonetes, que são responsáveis
pela percepção de intensidade da luz. A maioria da população é constituída de tricromatas. Os
diversos tipos de daltonismo resultam de constituições di, mono e acromática nos seres huma-
nos. E há também casos raros de tretracromatismo. Deste modo, a grande maioria da popula-
ção humana forma uma comunidade cromática, a comunidade dos tricromatas, para os quais as
cores que há são aquelas que usualmente a maioria de nós vê.
Contudo, isso não torna as cores que vemos menos reais, embora elas existam apenas
para a nossa perspectiva de tricromatas. Elas não são reais para outras comunidades cromáticas,
mas nem por isso deixam de ser reais para nós. E é inevitável que assim seja porque não pode-
mos evitar de ver as cores que vemos, dada nossa constituição, dada aquela da luz que incide
neste planeta e dadas as propriedades dos objetos com os quais assim interagimos. As cores são
tão reais quanto a resistência de um corpo sólido e impenetrável para nós. E, contudo, a ciência
atual também nos diz que num corpo sólido há mais vazio do que matéria, por assim dizer,
como uma parede que não conseguimos atravessar. Se fôssemos do tamanho de um quark, pas-
saríamos pela parede sem qualquer dificuldade, navegando no vazio como uma nave espacial
entre a terra e a lua, por exemplo.
O espaço no qual localizamos essa parede, aquela rosa e tantos outros objetos materiais
tem sido também considerado algo dado, uma realidade física do mundo, em nossa visão co-
mum das coisas e naquela da mecânica clássica, newtoniana — um espaço tridimensional. Para
nós, algo que existe tem de ter pelo menos três dimensões, tem de ser um sólido no sentido ge-
ométrico do termo. Coisas bidimensionais, como um plano, ou unidimensionais, como uma
reta, só podem existir no domínio da geometria pura, sendo completamente abstratas. Isso faz
com que nossa imaginação não nos ajude nem um pouco ao lermos uma obra como o Flatland,
5
de Abbott (1991), na qual há realidades não tridimensionais que são coisas físicas e mesmo
conscientes.
Suponhamos então que haja uma comunidade cognitiva de humanos que não percebem
as coisas em três dimensões, mas em duas. Ou seja, eles veriam os sólidos que a maioria de nós
vê como tridimensionais como se fossem figuras planas sobre um plano, que seria para eles o
espaço, esse último também bidimensional. Eles seriam então indivíduos não dotados de qual-
quer estereopsia. Para eles não haveria objetos sólidos. Mas nós diríamos que os sólidos estão lá
no mundo; eles é que não os percebem. No caso da visão das cores, para os tricromatas há cores
que supostamente estão lá, nas coisas; os daltônicos é que não as veem. E há cores que os tre-
tracromatas veem e nós, os tricromatas da maioria da população, não vemos. Para eles, os tre-
tracromatas, tais cores estariam lá, nas coisas; nós é que não as vemos. Ora, a ciência das cores
já nos esclareceu a estes respeitos e não vamos dizer que tais cores que uns veem e outros não
estão nas coisas. Diremos que elas dependem de complexos processo de interação. Mas no caso
dos objetos sólidos, tridimensionais para nós, mas que seriam bidimensionais para aquela co-
munidade desviante de humanos destituídos de estereopsia, resistimos a tirar a conclusão equi-
valente. Contudo, ela é irrecusável. Os corpos que percebemos não são tridimensionais em si.
Eles não são nem mesmo extensos em si, tal como pensavam os pensadores modernos, como
Descartes e Locke. A espacialidade dos corpos, assim como suas cores, depende também de
determinadas interações e de processos físicos, fisiológicos e mentais complexos.
O realista ingênuo poderia agora argumentar que a percepção de corpos tridimensionais
que temos não depende apenas da visão, mas também de outros sentidos: o olfato, a audição e,
principalmente, o tato. Ele poderia dizer que se houver alguém que perceba os corpos como
figuras planas, bastaria lhe dizermos para tocar determinado objeto. O olfato e a audição talvez
não fossem de grande ajuda, já que eles permitiriam localizar objetos no plano. Mas pelo tato o
indivíduo se daria conta de que determinado corpo é tri e não bidimensional. Contudo, isso de
nada adiantaria, uma vez que os indivíduos vivendo em um mundo plano teriam o tato adapta-
do a tal realidade espacial também. Acrescentemos a sua falta de estereopsia também sua falta
de estereognose, ou seja, sua incapacidade de pelo tato reconhecer as formas dos sólidos. Não
apenas suas terminações nervosas na periferia do corpo, na pele, mas também suas estruturas
neuronais no sistema nervoso central lhes daria uma forma de percepção tátil também desvian-
te da nossa. Nesse caso, esses indivíduos perceberiam tudo num espaço bidimensional.
Além disso, que é apenas uma suposição implausível, sabemos da parte da física atual
que não apenas os fenômenos do movimento, como velocidade e aceleração, dependem da in-
teração entre sistemas físicos e da perspectiva do observador, mas também magnitudes como a
própria massa dos corpos estão na dependência das mesmas variáveis físicas. E, em geral, to-
6
mando o caso da própria estrutura da realidade física, considerando diferentes teorias atuais
(macro e microfísicas), não há acordo sobre, por exemplo, quantas seriam as dimensões da rea-
lidade em si, para além das três dimensões do espaço e daquela do tempo, que são a base de
nossa percepção comum do mundo físico. Para as teorias físicas mais avançadas de hoje, consi-
derar diferentes dimensões ajuda a resolver problemas físicos complicados, com um aparato
matemático sofisticado. Mas isso está para além da capacidade de imaginação da pessoa co-
mum, sem os adequados conhecimentos científicos, para a qual o mundo é aproximadamente
da forma como a mecânica newtoniana o descrevia.6
De qualquer maneira, essas considerações nos ajudam a chamar a atenção para o fato de
que o mundo — não apenas em seu aspecto físico, mas também biológico, psicológico e social
— é o mundo tal como ele aparece para nós.7 A pluralidade de teorias, que atribuem à própria reali-
dade diferentes dimensões, propriedades etc., nos leva então a não vermos como podemos
apostar em um conjunto de características que seriam atribuíveis à própria realidade. Assim, a
realidade com a qual toda ciência deve lidar é a realidade dada à nossa comunidade perceptiva
e, de maneira mais geral, se considerarmos também nossos conceitos e opiniões, nossas teorias
e modelos compartilhados, aquilo que é dado à nossa comunidade epistêmica, para utilizarmos
uma noção mais abrangente.
Isso não faz com que toda ciência caia numa relatividade insuperável, uma vez que es-
tamos considerando aquilo que pertence à grande maioria da população humana, e de tal ma-
neira que muitos dos casos mais comuns de desvio em relação à norma epistemológica geral
podem ser também compreendidos. No que diz respeito à percepção, por exemplo, casos como
o dos diversos tipos de daltonismo, como já mencionamos, são acomodados como desvios par-
ciais que não comprometem a perspectiva humana geral. No plano dos conceitos, opiniões e
crenças, por sua vez, os casos de excepcionalidade mental, como o autismo e a esquizofrenia,
também são compreendidos e acomodados ao padrão epistemológicos geral. A existência des-
sas subcomunidades epistêmicas parcialmente desviantes não torna despropositada a tese de
que há um padrão humano de percepção e pensamento e que é o mundo segundo esse padrão
que as ciências estudam.
Se um tipo de relativismo generalizado pode ser evitado, como argumentamos acima,
por outro lado, o idealismo também pode ser evitado. Não há por que não considerarmos reais
as coisas tal como elas se nos apresentam. Lembremos ainda o caso das cores que a maioria de
nós vê e a solidez dos corpos que para nós são fenômenos inevitáveis. No plano ontológico,
aquilo que não podemos evitar tem de ser considerado real. Esse é, afinal, o critério adotado
pelo realismo perspectivista. E ele não representa nenhuma dificuldade pelo menos enquanto
estamos falando das realidades meramente físicas ou daquelas que consideramos seres vivos. Na
7
estratificação geral e tradicional dos entes, os corpos materiais e as plantas e animais parecem
casos ontologicamente fáceis diante dos casos que envolvem fenômenos mentais (estados de
consciência reflexiva, por exemplo) e sociais (especialmente as instituições). E se mesmo no
caso das realidades mentais uma assimilação ao caso dos seres vivos pode ser feita, o caso das
realidades sociais é o maior desafio até hoje. Pois podemos tomar os eventos mentais como
acontecimentos meramente neurofisiológicos, como muitas teorias reducionistas ou eliminati-
vistas da mente sustentam hoje. E com isso se acredita estar livre de parte da dificuldade onto-
lógica. Mas os eventos sociais são abstratos. Se o reducionismo no caso de encararmos os even-
tos mentais como eventos meramente neurofisiológicos não parece eliminativo demais, por sua
vez, considerar, por exemplo, os eventos sociais como apenas padrões de comportamento dos
seres humanos, que é uma forma comum de reducionismo social, parece ir longe demais.
É certo que só há acontecimentos sociais onde há dois ou mais seres humanos intera-
gindo. Mas não é também certo que a apenas isso se reduza um evento social. E a melhor razão
que podemos dar para sustentar essa ideia é de caráter perspectivista: os agentes humanos que,
ao agir, dão lugar no mundo a um evento social, não encaram o que estão fazendo como algo
que diz respeito apenas a suas ideias, crenças, hábitos e padrões de comportamento. A ação
possui uma dimensão normativa que não pode ser reduzida a realidades mentais dos agentes
humanos. Pois se fosse assim, eles não agiriam, eles não se veriam compelidos (às vezes, obriga-
dos mesmo) a agir. O caráter normativo, embora abstrato, do evento social é algo que também
nos é dado. É assim que a realidade social nos aparece. Acreditamos, contudo, que a compreen-
são deste ponto requeira discutirmos primeiro as noções relativas ao emergentismo, como fa-
remos na próxima seção.

2. Condições de base e emergentes

Duas distinções são importantes para entendermos adequadamente o posição dos emergentis-
tas. A primeira é aquela proposta por George H. Lewes entre resultantes e emergentes.8 A ou-
tra é aquela entre as causas de uma ocorrência (um efeito) e as condições de base (de um emer-
gente).9 A ideia de Lewes é que quando conhecemos os antecedentes de um resultante, pode-
mos prever seu acontecimento e mesmo suas propriedades. Mas isso não é possível no caso dos
emergentes, cujas propriedades não podem ser conhecidas em seus elementos constituintes.
São esses últimos que preferimos denominar condições de base de um emergente.
Lewes defende também uma concepção da relação causal que é bem peculiar e que está
relacionada com essas noções, mas vamos deixar de lado aqui este aspecto de seu pensamento.
De nossa parte, a distinção mais importante a fazer é aquela entre causas e condições de base.
8
A concepção padrão da causação contra a qual Lewes argumenta, concepção que remonta aos
autores racionalistas e empiristas já mencionados, entre eles Hume, e que é também assumida
por Kant, é aquela segundo a qual a causa é um evento anterior a seu efeito.10 Lewes não con-
corda com tal concepção e argumenta que causa e efeito são dois aspectos do mesmo aconte-
cimento. Mas, de nossa parte, o que importa é não identificarmos as condições de base de um
emergente com suas causas.
Tomemos um exemplo comum que é dado pelos próprios emergentistas desde Lewes e
John Stuart Mill, que é no século XIX outro dos precursores do emergentismo britânico que,
nas primeiras décadas do século XX teve como principais defensores Samuel Alexander e C.
Lloyd Morgan. Trata-se do exemplo da água. A molécula de água tem como (parte de suas) con-
dições de base dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, que são dois gases. Essa molécula é
um emergente porque não podemos conhecer suas propriedades conhecendo aquelas do hidro-
gênio e do oxigênio. É claro que, na molécula de água, aqueles átomos continuam existindo,
mas suas propriedades não se manifestam mais. As propriedades que se manifestam são aquelas
da realidade emergente. Os dois átomos de hidrogênio e o átomo de oxigênio estão lá, ao mes-
mo tempo que a molécula de água. Há simultaneidade entre eles.
Se aceitarmos então — ao contrário do que argumentava Lewes, mas concordando com
Hume, Kant e tantos outros — que as causas de um evento são anteriores a ele (o efeito), então
aqueles três átomos que entram na constituição da molécula de água, existindo eles ao mesmo
tempo que essa última, não podem ser tomados como causas da água. Mas eles são (parte de)
suas condições de base, já que sem eles não há água.
Suponhamos agora que já conhecemos tudo isso — como, de fato é o caso — e que te-
mos como manipular outros fatores para, a partir de oxigênio e hidrogênio, produzirmos água.
Suponhamos que misturemos os dois gases em um recipiente e façamos passar por dentro dele
uma faísca elétrica e que isso libere energia suficiente para que haja a ligação molecular e a for-
mação de moléculas de água. Nesse caso, aquela situação em que temos o recipiente com os
dois gases e então disparamos a faísca elétrica são as causas da água que, logo depois, se forma.
Não haveria por que não aplicarmos a tais circunstâncias a categoria de causação, nos diria
Kant.
Contudo, no caso da existência simultânea entre os dois átomos de hidrogênio e um de
oxigênio e a molécula de água que eles formam, não é essa categoria kantiana que utilizaríamos,
nos diria esse próprio filósofo, mas a categoria de comunidade que, na tábua das categorias do
entendimento puro apresentada na Crítica da razão pura, é a terceira das três categorias de rela-
ção, sendo a causação a segunda. As condições da experiência são diferentes para a aplicação de

9
uma ou de outra dessas categorias por meio das quais formulamos juízos sobre os acontecimen-
tos que presenciamos no mundo.
Assim, nossa ideia da relação entre um emergente e suas condições de base, em todos os
casos, obviamente, é que há simultaneidade e comunidade entre eles. E isso resolve um dos
problemas mais complicados com os quais a tradição emergentista lida, senão o mais complica-
do de todos os seus problemas, que é aquele da chamada causação descendente, isto é, de que ma-
neira é possível que um emergente pode influenciar o comportamento de suas condições de
base. A nosso ver, há uma relação, de fato, do emergente para com suas condições de base, mas
essa não é uma relação causal. Há apenas determinação, e não causação. “Determinação” é um
termo mais geral, que pode indicar, por exemplo, uma relação normativa entre dois fatores,
como veremos adiante.
No mesmo exemplo que estivemos examinando, da molécula de água, é claro que as
propriedades desse emergente funcionam como fatores inibidores das propriedades do hidrogê-
nio e do oxigênio, isto é, daquelas propriedades desses gases que se manifestam quando eles
estão fora da ligação molecular que produz água. Se tais fatores inibidores forem neutralizados,
que é o que acontece se quebrarmos a ligação molecular, então os dois gases voltam a exibir
suas propriedades usuais. Na relação entre um emergente e suas condições de base há sempre
diversos fatores inibidores e estimuladores. Chamemos todos esses fatores de condicionantes ou
de fatores condicionantes. Deste modo, tanto as condições de base de um emergente são seus fa-
tores condicionantes, quanto o próprio emergente é também um fator condicionante de suas
condições de base. O emergente é uma totalidade que se forma a partir das condições de base e
essa nova realidade altera a ordem das coisas no mundo. Permite surgirem propriedades novas
(do todo, do emergente, e não de seus constituintes) e permite alterar o comportamento de
seus próprios constituintes, de suas condições de base.
Os melhores exemplos dos quais os emergentistas podem se valer vêm, de fato, do
mundo da vida. Os emergentistas são materialistas não reducionistas, o que faz com que eles
acreditem que, por exemplo, num ser vivo há apenas as mesmas substâncias que poderiam — e
muitas vezes podem — ser encontradas fora dele. Mas a organização, a totalidade, a economia
geral do ser vivo funciona como um condicionante para aquilo que o constitui. Assim como os
materialistas (reducionistas), os emergentistas recusam a ideia de um princípio vital. Um ser
vivo é apenas matéria como o resto do mundo. Mas não podemos dizer que nele há apenas
propriedades físico-químicas da matéria em geral. Há também propriedades vitais, que são
aquelas do todo e que agem como condicionantes de seus constituintes.
Do mesmo modo, os emergentistas recusam também quaisquer princípios mentais ou
sociais, para irmos para os outros domínios da realidade que nos interessam. Assim, por exem-
10
plo, um evento mental no cérebro humano tem como condições de base os eventos neurofisio-
lógicos que ali se dão e apenas eles, se desconsiderarmos os outros fatores orgânicos e os fato-
res ambientais. Mas o evento mental é um emergente. Ele não é efeito dos eventos neurofisio-
lógicos, que seriam sua causa, pois é simultâneo com eles. Há entre esse emergente e suas con-
dições de base uma relação de comunidade, de tal forma que ambos os lados são condicionan-
tes um do outro. Devemos salientar de passagem, embora não vamos entrar nessa discussão,11
que com isso podemos resolver o tradicional problema da relação entre corpo e mente, pro-
blema esse que tanto tem atormentado os filósofos desde sempre. O corpo (especificamente, o
cérebro ou o sistema nervoso central) não é causa da mente, nem pode haver qualquer poder
causal da mente sobre o corpo. Mas corpo e mente estão numa relação de comunidade, como
classes de mútuos fatores determinantes, mútuos condicionantes.12

3. A realidade dos emergentes

Uma metáfora muito utilizada pelos autores ligados à tradição emergentista é aquela dos níveis.
Por exemplo, tomando aquelas categorias tradicionais de coisas no mundo, os emergentistas
costumam falar de realidades físicas, vitais, mentais e sociais, entendendo que as primeiras são
condições de base das que vêm em seguida, imaginando uma espécie de pirâmide, cuja base se-
ria aquela das coisas físicas, ou seja, dos corpos inanimados, vindo em seguida os seres vivos,
depois aqueles que exibem fenômenos mentais mais elaborados, como estados de consciência
e, por fim, com os seres humanos, as realidades sociais que dependem de nossos estados de
consciência reflexiva e do uso da linguagem simbólica ou verbal. Se nessa sucessão de níveis, os
primeiros são condições de base dos que vêm em seguida, nem por isso devemos tomar os
eventos relativos a um nível que é condição e base de outro como causas dos eventos que ocor-
rem nesse outro, uma vez que esses diferentes eventos, dos diversos níveis, são simultâneos.
De fato, a metáfora dos níveis, tão disseminada nos textos dos emergentistas, é engana-
dora; e é ela que conduz ao falso problema da causação descendente, que já mencionamos. E
mesmo a suposta causação ascendente, que haveria entre as condições de base de um emergente e
esse último, é uma noção inadequada e resulta apenas da dificuldade conceitual de conceber as
condições de base de um emergente de maneira não causalista e de um princípio tácito — e às
vezes explícito — de que todas as relações genuínas ou determinantes entre coisas são causais.
Ora, é obvio que não, e tal falso princípio decorre apenas da tentativa de aplicar aquilo que se
acredita ser o caso das relações no nível físico aos demais níveis, especialmente o nível social.
De fato, a nosso ver, é mais produtivo deixarmos de lado a metáfora dos níveis e nos concen-

11
trarmos na ideia de que, numa mesma região do mundo, no mesmo locus, pode haver diferentes
estruturas, algumas das quais são condições de base de outras.
Antes de examinarmos esse ponto que é essencial para compreendermos o caráter es-
sencialmente perspectivista do emergentismo, consideremos ainda o caso das relações que há
no domínio social, embora na próxima seção as questões relativas a ele venham a ser tratadas
com mais detalhe. O mais simples evento social envolve condicionantes que não são de nature-
za causal (nem, devemos dizer, material ou física, nem vital e nem mental), mas fatores norma-
tivos. E um princípio que deve ser mantido — esse sim, sem dúvida — é aquele segundo o qual
não podemos inferir o que é normativo do que é, por exemplo, causal ou do que é factual, na
versão mais comum que encontramos nos filósofos. Os fatores condicionantes normativos
permeiam todas as relações entre os seres humanos que possam ser consideradas de caráter so-
cial. E é claro que elas não podem ser compreendidas por meio de explicações causais, nem fac-
tuais em geral. Ou seja, de maneira muito simples, nem tudo o que é fato vira norma.
Voltemos, contudo, ao outro ponto, que diz respeito ao fato de que, na mesma região do
mundo, podemos encontrar fenômenos de diversas ordens. Passemos dos casos mais simples
aos mais complexos. O emergentismo é uma ontologia da complexidade e essa última só pode
ser bem compreendida se encararmos o mundo não como uma pluralidade de entes, tal como
as teorias metafísicas mais tradicionais propõem, mas como uma série de processos interliga-
dos. Se observamos uma moeda de um metal puro qualquer (cobre, digamos), temos diante de
nós uma parte do mundo que exibe apenas fenômenos físicos. Há também, é claro, certa emer-
gência das propriedades macroscópicas dessa moeda em relação a suas condições de base mi-
croscópicas, que são os átomos de cobre. Mas, de qualquer modo, na atual visão científica do
mundo, não acreditamos que isso envolva mais do que processos moleculares e, portanto, pro-
cessos meramente físicos.
Nesse caso, da perspectiva científica humana hoje, não há por que falarmos de quaisquer
outros tipos de fenômenos que não sejam meramente físicos. Mas consideremos agora o orga-
nismo vivo mais simples, um unicelular. Suponhamos que ele seja uma bactéria, por exemplo. E
suponhamos, como a visão científica atual do mundo também nos diz, que nesse ser vivo há
apenas as mesmas substâncias que podem ser encontradas fora dele. Mas nele, elas estão em
certos tipos de relação que permitem a emergência da vida. Há aí fatores estimulantes especiais
e suas propriedades. Assim, nessa mesma região do mundo, para nós, há não apenas processos
físico-químicos, mas também processos vitais. Podemos observar a economia vital dessa bacté-
ria, seus processos de nutrição, excreção, reprodução etc. De nossa perspectiva, que envolve a
noção de vida, nessa região do mundo há pelo menos duas ordens distintas de fenômenos, os
físicos e os vitais. Os primeiros são condições de base dos últimos, mas não suas causas, como
12
já dissemos. E mais, essa estrutura viva (a bactéria) e seus processos emergentes, por sua vez,
constituem fatores condicionantes dos processos físico-químicos que ali ocorrem.
O ponto que queremos mais enfatizar é que é da perspectiva científica humana atual
que podemos distinguir naquela bactéria duas ordens de processos e uma relação de comunida-
de entre os fenômenos físico-químicos e aqueles que encaramos como vitais. É sempre um ser
humano, munido de teorias científicas, que pode descrever essa região do mundo como o locus
de duas ordens de processos inter-relacionados, e a bactéria enquanto organismo vivo como um
emergente a partir de suas condições de fase bioquímicas.
Tomemos agora outra realidade de maior complexidade, um organismo pluricelular
qualquer dotado de uma estruturação neurofisiológica que o capacite a perceber e, de certo
modo, representar internamente, outras coisas a sua volta, coisa que a bactéria não pode fazer.
Aqui os exemplos são inúmeros, é claro, mas suponhamos que estejamos observando um gato
em todas as suas atividades comuns. Esse indivíduo é dotado daquilo que na literatura atual em
filosofia da mente se tem denominado consciência básica, para alguns algo que se identificaria
com a noção tradicional de sensiência. A ideia aproximada aqui é que tal indivíduo dotado de
consciência (básica) é o locus de processos mentais que, por mais complexos que sejam, não são
tão complexos quanto aqueles processos da consciência reflexiva que encontramos nos seres hu-
manos. Essa última modalidade da consciência, que é condição de base, aliás, para a consciência
moral, como sabemos, é concomitante com o uso da linguagem simbólica e é o que habilita aos
indivíduos humanos a terem noção de si mesmos como alguém distinto do resto do mundo e
mesmo de seus semelhantes físicos. É o que habilita o ser humano a se ver como um eu entre
outros eus.13
Entretanto, voltemos um instante àquele gato. Ele é o locus não apenas de processos físi-
cos e vitais, mas de processos mentais que emergem de condições de base vitais, a saber, especi-
ficamente, os processos neurofisiológicos em seu sistema nervoso central. Seus estados de
consciência básica são simultâneos e estão em uma relação de comunidade com esses processos
neurofisiológicos. Ora, o mesmo é o que ocorre com um ser humano, caso em que, além da
consciência básica, temos também os processos da consciência reflexiva. E, mais uma vez, é o
ser humano que pode distinguir naquele gato e em si mesmo diferentes tipos de processos
mentais emergentes, aqueles da consciência básica no caso do gato, e aqueles da consciência
reflexiva em seu próprio caso. É apenas de sua perspectiva que diferentes emergentes podem
ser identificados e descritos. O gato, obviamente (é o que acreditamos hoje), não é capaz de fa-
zer essas distinções.
Contudo, é no caso dos processos sociais que temos, de fato, o melhor exemplo do cará-
ter perspectivista de nossa identificação dessas diversas ordens de processos no mundo. Supo-
13
nhamos que o mencionado gato esteja ao lado de um campo de futebol no qual certo artilheiro
acaba de fazer um gol, e suponhamos que esse gato veja a bola entrando no gol e que ele seja
capaz de entender o que está acontecendo do ponto de vista físico, o que é muito provável,
dado o que sabemos do comportamento dos gatos. Mas é claro que o gato não sabe o que é
marcar um gol no jogo de futebol. O gato observa apenas o movimento de um corpo, da bola
que passa entre as traves do gol. Os humanos que também assistem ao jogo observam isso tam-
bém, é claro, e por isso também observam que aquele atacante fez um gol, que seu time marcou
um ponto na partida etc. O gol marcado não é um evento diferente daquele em que a bola atra-
vessa as traves no campo de futebol — fisicamente falando —, mas é um evento social comple-
tamente diferente, evento que tem dentre suas condições de base aquele evento físico do mo-
vimento da bola.
O movimento da bola que o gato observa é um evento puramente físico, podemos dizer.
É também um evento causal no qual, por exemplo, a força exercita pelo pé do artilheiro foi
transmitida à bola etc. Mas o gol marcado pelo jogador que conta como ponto para seu time é
um evento social e não causal. Ao contrário, ele tem poder normativo sobre o comportamento
das pessoas, de todos os envolvidos na partida de futebol de alguma forma que seja. O caráter
normativo e emergente desse evento social faz desse gol marcado um acontecimento emergen-
te no mundo, algo de natureza abstrata, diferentemente da concretude do rolar da bola por en-
tre as traves do gol, o que pode ser um estímulo para que o gato tente pegar a bola, mas não é o
mesmo estímulo que levou o goleiro a tentar pegá-la. Para esse último, o estímulo social é mais
determinante. É claro que, além do movimento da bola, são condições de base do evento social
os estados mentais dos humanos que observam a partida e que conhecem o jogo. Mas o gol
marcado não se reduz a tais condições de base. Ele depende muito mais das regras do jogo, que
possuem caráter institucional. E apenas os seres humanos são capazes de compreender essas e
outras instituições.
Em suma, o que queremos sustentar é que as estruturas, eventos e propriedades emer-
gentes são reais apenas da perspectiva humana. Essas realidades dependem da ciência, das teo-
rias, conceitos, normas etc., da linguagem verbal que usamos e, em última instância, da consci-
ência reflexiva que, ao que sabemos, apenas os indivíduos da espécie humana possuem (pelo
menos no que sabemos da vida neste planeta).
A distinção entre concreto e abstrato é um dos temas importantes — e polêmicos — na
filosofia desde sempre. Muitas vezes, identifica-se o que é real ao que é concreto, e o que é abs-
trato com o que seria meramente imaginário. Isso não ajuda a compreendermos muita coisa a
nossa volta, sobretudo as realidades sociais. Elas são abstratas, e nem por isso são menos reais
para nós. O rolar da bola é concreto, mas o gol marcado é abstrato. E, retomando aquele crité-
14
rio ontológico acima enunciado, podemos dizer que tais realidades são reais, embora abstratas,
porque elas se nos impõem, assim como os corpos concretos e sólidos se nos impõem. Mas as
realidades abstratas se nos impõem de outra maneira, que não é causal, mas normativa. E o
normativo é essencialmente perspectivista, é claro.
Na visão de mundo segundo o ponto de vista da emergência, todas as estruturas, proces-
sos e propriedades emergentes são, de fato, abstratos. E mesmo o que é concreto, segundo essa
concepção ontológica, é algo residual. Tomemos o caso mais paradigmático de concretude se-
gundo o senso comum, a saber, os corpos. Esses objetos macroscópicos, nos diz a física atual,
são, de fato, agregados de inúmeros processos microscópicos envolvendo partículas e, se avan-
çarmos para o domínio que as teorias das cordas desejam explorar, agregados dessas que talvez
sejam as realidades últimas, os tijolinhos fundamentais dos quais o universo é feito. Portanto,
nem os corpos são, de fato, reais, nem as próprias partículas da microfísica mais tradicional se-
riam reais. Eles seriam todos fenômenos envolvendo entidades menores.
É claro que, por outro lado, entre o limite do muito pequeno (as cordas) e aquele do
muito grande (talvez as galáxias) encontra-se a escala humana, e qualquer critério ontológico
razoável deveria levar isso em conta. Assim, para o emergentismo, são reais não apenas os cor-
pos, mas os emergentes de todos os tipos que resultam de processos mais complexos, inclusive
aqueles de natureza social. Mas é claro que eles são reais apenas da perspectiva humana.

4. Emergentes sociais

Em meados do século XIX, quando as ciências biológicas tiveram um grande impulso e obtive-
ram grandes desenvolvimentos experimentais graças à teoria celular e à teoria do meio interno,
travaram-se as últimas batalhas científicas entre os vitalistas e seus oponentes. Um dos pensa-
dores importantes nesses debates foi Claude Bernard, descobridor da função glicogênica do
fígado e pioneiro da fisiologia experimental na França, autor da teoria do meio interno.14 Esse
pensador, cujas ideias foram de difícil compreensão em sua época, ao mesmo tempo que negava
a existência de qualquer princípio vital e afirmava que todas as propriedades encontradas no
organismo vivo são propriedades físico-químicas da matéria, afirmava também a existência de
fenômenos vitais. De fato, segundo ele, havia em sua época uma única exceção, que era a irrita-
bilidade do protoplasma celular, sendo essa, então, a única propriedade vital.
Contudo, Bernard afirmava ainda que, com o progresso da ciência, assim como ocorreu
com outras supostas propriedades, a irritabilidade também poderia ser reduzida a propriedades
mais fundamentais, vindo então a ser encarada como um fenômeno. Em suma, a ideia de Ber-
nard é que o progresso da ciência pode levar aquilo que, em determinado momento, encaramos
15
como propriedades de certas coisas a ser visto depois como um fenômeno devido a proprieda-
des de coisas mais fundamentais. Em virtude dessa e de outras ideias, em seus dias, Bernard ora
era acusado de ser um materialista reducionista, ora de ser o oposto. Ele não era nem uma coi-
sa, nem outra. Ele apenas apostava no aumento de nossa capacidade de entender o mundo com
mais detalhes.
Todavia, essa noção de que determinadas propriedades podem vir a ser encaradas como
fenômenos ou, mais exatamente, em termos ontológicos mais tradicionais, que determinadas
supostas entidades podem vir a ser vistas como relações entre entidades mais fundamentais —
noção essa que, com formulações diferentes, aparece em diversos pensadores desde os dias de
Bernard —, tem sido encarada como uma espécie de princípio inabalável do pensamento redu-
cionista. Assim, em analogia com o caso do vitalismo, muitos apostam na possibilidade de, por
exemplo, mostrarmos que os eventos mentais são, de fato, meramente eventos neurofisiológi-
cos, assim como que os eventos sociais são apenas eventos de comportamento e, por isso, em
última instância, resultado de eventos mentais dos seres humanos. No primeiro caso, temos
aquela posição que na filosofia da mente passou a ser denominada materialismo eliminativista, no
segundo, o que na filosofia das ciências sociais se denomina individualismo metodológico. Em
suma, para essa espécie de indução pessimista, assim como o vitalismo é hoje uma doutrina do
passado, não podendo mais ser levada cientificamente a sério, o mesmo vai ocorrer com toda
forma de mentalismo que postule princípios mentais e de realismo social que postule princípios
de caráter social que regulariam a convivência humana.
O emergentismo se opõe a ambas essas doutrinas e as considerações que fizemos nas
seções precedentes são suficientes para percebermos por quê. Ele se opõe também a quaisquer
princípios não empíricos, mas de forma diversa das duas posturas acima mencionadas. No caso
da ideia de reduzir os eventos mentais a eventos neurofisiológicos, os emertentistas estão de
acordo com os supervenientistas, isto é, com aqueles pensadores para os quais os fenômenos
mentais são supervenientes em relação aos fenômenos neurofisiológicos, mas a esses últimos
irredutíveis.15 No caso daquela ideia segundo a qual os fenômenos sociais são redutíveis a fenô-
menos do comportamento humano e, assim, a fenômenos mentais, a proximidade é entre o
emergentismo social e aqueles pensadores que defendem a autonomia das realidades sociais,
embora reconheçam que elas são resultado da ação humana.16
O caráter perspectivista das realidades sociais, o fato de que só há um evento social
onde dois ou mais seres humanos assim entendem, faz com que nossos estados mentais sejam
parte das condições de base dos eventos sociais ou, se preferirmos, de todos os acontecimentos
culturais em geral, o que podemos resumidamente denominar o mundo social ou cultural e que
Popper (1995) chamou de Mundo 3. Trata-se de um domínio de objetos e acontecimentos que
16
são produzidos pela ação humana, mas que ganham autonomia em relação às vontades indivi-
duais. Essa é também a perspectiva adotada por Durkheim (1924). Para o realismo social ou cul-
tural emergentista, as realidades sociais emergem da ação humana; os grupos humanos, seus
estados mentais e suas relações são o locus de tais realidades no mundo; mas elas transcendem
os indivíduos humanos e suas ações. Os objetos sociais adquirem propriedades emergentes que
os constituintes humanos de suas condições de base não podem possuir. A principal proprieda-
de que os objetos culturais possuem é sua normatividade, isto é, o fato de que eles agem como
fatores condicionantes da ação humana individual.
Não apenas a realidade social é geneticamente anterior à constituição mental dos indi-
víduos humanos, como já mencionamos (e vale lembrarmos mais uma vez o caso negativo das
crianças ferais), uma vez que todos nós somos o que somos cognitiva e emocionalmente aquilo
que nossa sociedade faz de nós, para mencionarmos os dois aspectos talvez mais relevantes para
a ação humana, inclusive a ação moral, mas, além disso, cada vez que agimos, o fazemos inter-
pretando um contexto social que nos oferece determinados estímulos (cognitivos e emocionais)
e respondendo a eles. Nossas respostas produzem consequências nesse contexto em que agi-
mos, consequências essas que, a longo prazo, podem alterar a ordem social, obviamente. Mas
esses são processos lentos e parcelares. Agimos sempre numa espécie de espaço cultural, que só
existe para nós, de nossa perspectiva. E esse espaço cultural tem origem no que podemos de-
nominar o espaço linguístico, que é sua condição de base mais fundamental. Viver dentro de uma
cultura é, em primeiro lugar, falar a língua.
De fato, o exemplo mais fundamental daquilo a que nos referimos é a própria lingua-
gem, a língua falada por uma grupo humano. É apenas ao aprendermos a língua que entramos
no espaço cultural de determinado grupo. Assim como outras instituições humanas, a língua
falada pelo grupo possui um enorme poder normativo sobre sua ação, em todos os seus aspec-
tos, inclusive os cognitivos e mesmo emocionais, em suma, em todos os aspectos do mentalis-
mo humano. Deixemos de lado o aspecto sintático, que também é relevante, é claro, e no qual
há grandes divergências até hoje sobre seu caráter ou inato, ou adquirido. Tomemos o aspecto
semântico — que é também conceitual — e que, de forma menos polêmica, é considerado uma
conquista cultural. O que significam as palavras do vocabulário de uma língua é algo construído
socialmente ao longo do tempo, à medida que os falantes falam essa língua. E a língua permite
aos falantes o acesso ao mundo das abstrações, o Mundo 3 de que fala Popper, o mundo da cul-
tura, cujos objetos são todos abstratos e de natureza perspectivista. A própria língua é parte
desses objetos abstratos que povoam o espaço cultural.
A base do realismo social emergentista e perspectivista está em reconhecermos a auto-
nomia e o poder normativo dos objetos culturais sobre a ação humana. Falar uma língua de
17
modo a ser compreendido pelos outros falantes já é um exemplo disso. O falante deve utilizar o
vocabulário da língua de acordo com a sintaxe estabelecida, pois, se não o fizer, não haverá co-
municação. Ora, os efeitos sintáticos e semânticos que uma língua tem sobre seus falantes não
são causais, mas normativos. Seguir a norma sintática e semântica é indispensável para a comu-
nicação. Mas isso nem é anterior à fala, nem se localiza em parte alguma do mundo concreto.
Não está na cabeça do falante. Trata-se de uma realidade abstrata e difusa. Ela está espalhada
pelos falantes da língua e suas práticas comunicativas. Ela está distribuída diversamente pelos
membros da comunidade de falantes, assim como em alguns dispositivos não humanos de me-
mória. É claro que podemos encontrar representações (compilações) de uma língua em um ma-
nual de gramática e em um dicionário. Mas esses últimos não são a língua. Eles são apenas dis-
positivos ambientais de memória que ajudam na representação da língua. Esses dispositivos e
os próprios falantes são o locus da língua. Eles são, portanto, parte de suas condições de base.
Mas a língua é uma realidade emergente e abstrata que, contudo, funciona como fator condici-
onante da fala.
Podemos dizer que tal poder normativo da língua só existe porque o falante, de certa
forma, escolheu falar essa língua. Isso é bem verdade e é uma experiência comum para aqueles
que aprendem uma língua estrangeira. Tal experiência mostra empiricamente aquilo que disse-
mos acima, embora mostre também que há um papel ativo do falante, que aceita as regras sin-
táticas e semântica para poder se comunicar com os outros falantes daquela língua. Mas o
mesmo não vale para nossa língua materna, pois seria uma ficção tola e fantasiosa imaginarmos
que a criança escolhe falar sua língua materna. Não é assim que entramos no primeiro espaço
linguístico de nossas vidas. A criança apenas começa a começa a partir de determinado momen-
to a participar de certas práticas sociais que seu meio social lhe apresenta. A partir de certa
idade ela começa a ser capaz de perceber certos estímulos verbais e a tentar responder a eles.
Quando ela vier a se dar conta de que fala uma língua, ela já está definitivamente marcada por
ela, completamente sob seu controle normativo. Ao ter ideia de que fala uma língua, a criança já
é capaz de compreender um dos objetos abstratos de sua cultura; ela já está se movendo com
certa desenvoltura no espaço cultural de seu grupo social, de maneira a nunca mais poder dele
sair.
A língua e a cultura nos dão acesso aos valores do grupo, dentre os quais estão os valores
morais, o domínio mais importante — e também mais controverso — de objetos culturais.
Normalmente, na filosofia, as questões morais são encaradas pelo viés da ética do dever, o que é
pertinente também, é claro. Mas, da perspectiva da ética da virtude, a moralidade é algo mais
interessante. Ela está baseada em modelos de comportamento, em modelos da ação humana
mais adequada para as condições sociais, em modelos de pessoas. Particularmente, as religiões
18
são uma parte do espaço cultural que dá atenção especial a tais modelos e à ética da virtude em
geral. Independentemente dos aspectos teológicos que possam estar envolvidos em cada uma
delas, elas todas têm em comum a elaboração de modelos de pessoas ou, para utilizarmos uma
expressão tradicional, modelos de virtude. São modelos do que é para cada um de nós ser um
indivíduo humano — e ser um bom indivíduo humano.
Os modelos são realidades ubíquas no espaço cultural.17 Normalmente, é nas ciências
que a noção de modelo é mais explicitamente empregada e de uma maneira mais exata. Mas
todo o espaço cultural pode ser encarado como um domínio de elaboração e uso de modelos
dos mais diversos tipos. A própria língua falada é uma coleção de modelos para a comunicação.
Os valores de todos os tipos estão incorporados nos diversos tipos de modelos. É sobretudo
através da apresentação de modelos que transmitimos valores. Quando discutimos formas de
ação, por exemplo, de ação moral, estamos discutindo modelos do dever ou da virtude; estamos
discutindo de que maneira devemos nos comportar; discutimos que modelos devemos imitar.
Ao seguirmos o modelo, em qualquer atividade, tentamos fazer a realidade concreta se aproxi-
mar da realidade abstrata do modelo, do ideal.
Em resumo, a autonomia dos objetos culturais é inegável; seu poder normativo sobre a
ação humana é indiscutível. E ao reconhecermos isso, estamos reconhecendo que um domínio
de realidades abstratas e reconhecíveis apenas por nós é amplamente determinante do que so-
mos e fazemos. Esse é o domínio da cultura, cujos objetos são reais de maneira perspectivista.
Ou seja, para o realismo social emergentista, a cultura é construída por nós, modificada por
nós, coletivamente e a longo prazo; ela existe como um domínio de objetos abstratos. Quando
um de nós dela participa — e todos nós participamos de alguma cultura, exceção feita apenas às
crianças ferais e aos casos de patologias mentais muito graves —, quando um de nós é parte de
seus elementos constituintes concretos, parte de suas condições de base, ao mesmo tempo, esse
indivíduo está sob seu poder normativo; ele tem sua ação sob o controle dessa ordem de fatores
condicionantes.
Um modelo mais abrangente e adequado da ação humana, contudo, deve levar em conta
também outros elementos que fazem parte de suas condições de base. Se idealmente isolarmos
um indivíduo humano e o que ele faz, para compreendê-lo, devemos levar em conta então não
apenas sua cultura, mas sua trajetória individual nessa cultura, sua história pessoal, e seu apara-
to neurofisiológico, assim como, em última instância, pode ser relevante também considerar
sua herança genética. Em outras palavras, é claro que só podemos entender o que um indivíduo
faz se levarmos em conta a cultura a que ele pertence, sua história pessoal e suas condições
mentais individuais. Todas essas coisas contêm fatores condicionantes que podem ser relevan-

19
tes para determinada ação individual. Mas elas não são causas da ação do indivíduo; elas são
condições de base de sua ação como uma realidade emergente.
Nem todos os objetos culturais são instituições, embora todos eles possuam esse caráter
institucional. Mas as instituições são objetos sociais mais complexos. As línguas são institui-
ções. Assim como outras realidades sociais, elas são complexos de regras, valores e padrões de
comportamento. Dessa forma, as instituições passam a ser identificadas pela classe dos indiví-
duos para os quais valem tais regras e valores, aquelas pessoas cujo comportamento exibe os
padrões associados com a instituição. No caso da língua, podemos identificá-la com sua comu-
nidade de falantes. E é claro que só há uma instituição onde há essa classe de pessoas que é uma
parte de suas condições de base. E por isso não deixa de ser tentadora a ideia reducionista se-
gundo a qual uma instituição é apenas aquilo que tais pessoas ligadas a ela fazem. Mas não po-
deria ser, uma vez que o que elas fazem é fato — e quando falamos de instituições, estamos fa-
lando daquilo que de uma maneira intencional permite interpretar o fato. O som proferido pelo
falante de uma língua e compreendido por seu interlocutor é um fato; mas é a língua comparti-
lhada por eles, é essa norma que lhes permite, perspectivamente, tomar aquela perturbação so-
nora como forma de comunicação. Sua perspectiva, informada pela norma linguística, é que
transforma o fato físico da perturbação sonora em símbolo. Portanto, a norma linguística tem
de ser dada anteriormente.
As instituições sempre surgem de outras instituições, e o caso das línguas não é exceção.
As línguas faladas hoje provêm de línguas do passado. Mas é tentador também pensarmos no
passado mais remoto da humanidade, quando talvez um primeiro grupo humano começou a
utilizar vocalizações como símbolos. Nesse passado insondável que podemos imaginar, é claro
que a intenção de comunicação tem de ter vindo primeiro, para criar os primeiros símbolos
verbais e com o tempo dar corpo a uma língua, sintática e semanticamente estruturada. Esse
modelo genético da linguagem humana é algo tentador e que para muitos faz sentido. Mas ele
nada explica nada da instituição na qual os falantes de hoje vivem e se comunicam.18 Tal modelo
genético pode ser plausível porque desejamos sustentar que as línguas são criações nossas, as-
sim como os demais objetos culturais. Contudo, a autonomia das realidades sociais fica sem ex-
plicação por esse modelo. Essa autonomia emerge nas relações de comunicação, sem que as in-
tenções dos falantes possam nisso interferir. Ao contrário, é o objeto abstrato autônomo e
normativo que dá expressão, forma e matéria, a tais intenções de comunicação dos falantes. A
criança feral pode sentir em suas entranhas o desejo de dizer algo, mas não tem como fazê-lo.
Ela é de certa forma estimulada pelo que pode perceber de uma situação social, mas não tem
como nela entrar. O falante da língua está aí dentro o tempo todo — e não consegue sair.

20
As humanidades, enquanto aquelas disciplinas que estudam esse domínio cultural ou
social, estão mais bem colocadas do que seus praticantes possam imaginar para elaborar mode-
los e teorias que expressem o caráter perspectivista da realidade, da única realidade que pode
haver para nós, em todas as suas esferas, como já comentamos, e não apenas na esfera social.
No caso daqueles domínios de objetos que denominamos físicos, biológicos e psicológicos, as reali-
dades materiais, vivas e mentais, as disciplinas que os estudam ainda podem sustentar a ficção
de que esses objetos são coisas em si mesmas, independentemente de nossa perspectiva, embo-
ra, em última instância, como já dissemos, eles também não deixem de ser de natureza perspec-
tivista. Mas os objetos sociais são flagrantemente perspectivistas. Não há como pensá-los a não
ser como realidades que estão aí apenas para aqueles que fazem parte da cultura à qual tais ob-
jetos pertencem. Esses que são, aparentemente, os últimos emergentes, tal como a realidade do
mundo nos é dada, são os exemplos mais simples e claros de objetos científicos, por revelarem
sua natureza perspectivista tão prontamente.
Não deixa de ser então forçoso nos perguntarmos, por fim, por que não temos tanto su-
cesso nas humanidades quanto aparentemente conseguimos nas ciências físicas e biológicas.
Ora, também não temos conseguido grandes sucessos no domínio dos estudos da mente huma-
na. A nosso ver, o problema é da cultura científica e está na falta de teorias adequadas que nos
ajudem a elaborar modelos mais explicativos. As epistemologias e as ontologias reducionistas e
eliminativistas têm sua parcela de responsabilidade na inadequação dessa cultura científica.
Elas se valem do constante medo de cometer reificações e apontar falsas causas para os aconte-
cimentos. E é claro que, tal como ocorreram no passado, esses enganos podem voltar a aconte-
cer. Nunca estaremos livres do erro. Mas as concepções inadequadas impedem a introdução de
conceitos que permitem ver em determinado locus o que antes não víamos. E não é porque só
podemos ver certas coisas por meio de certos conceitos que o que vemos é ilusão. Pois tudo o
que percebemos e conhecemos nos vem por meio de conceitos também.
Afastado o realismo social, essa forma de emergentismo perspectivista que delineamos
aqui, vemos muito pouco do que fazem os indivíduos humanos e daquilo que os fazem como
são, vemos apenas um grupo de animais de comportamento caótico e, aparentemente, autodes-
trutivo. Não é assim que queremos nos ver.

Considerações finais

Embora nossos últimos comentários já tenham um tom conclusivo a respeito do que desejamos
dizer, vale ainda mencionarmos algo mais geral a respeito das ciências. Desde a modernidade,
uma tendência molecularista das disciplinas científicas mais bem sucedidas em explicações e
21
controle da natureza nos levaram a acreditar que uma adequada abordagem a quaisquer reali-
dades deve ser aquela de procurarmos entender o que ocorre com alguma coisa com base no
conhecimento de suas partes — e o quanto mais diminutas forem essas partes, melhor. Ao con-
trário, o emergentismo está fundamentado no princípio oposto do molarismo, segundo o qual é
o conhecimento da realidade maior que nos permite o entendimento adequado de suas partes.19
É claro que se pode argumentar que o uso equilibrado de estratégias molares e molecu-
lares é que vai nos conduzir à boa ciência. E isso é bem razoável. Mas para isso é preciso ter
uma postura pragmática em questões metodológicas, e não procurar seguir princípios metodo-
lógicos rigidamente. O emergentismo perspectivista, em seu aspecto epistemológico, adota a
perspectiva molar, na medida em que sustenta que as propriedades do todo emergente são fato-
res condicionantes do comportamento dos elementos de suas condições de base. E é claro que
toma a perspectiva molecularista quando reconhece que o emergente tem lugar apenas quando
seus elementos constituintes estão nas relações adequadas.
Contudo, insistirmos no aspecto molar é importante para fazermos frente à tendência
reducionista ou, às vezes, eliminativista que encontramos na filosofia das ciências humanas em
geral, em virtude daqueles mencionados receios com falsas causas e reificações. No plano onto-
lógico, justamente, o emergentismo perspectivista procura nos mostrar que tomarmos em con-
ta a economia do todo e suas propriedades não nos leva a estudar ficções e perseguir fantasmas.
Nas ciências biológicas as realizações mais significativas a partir de meados do século XIX fo-
ram possíveis, como, por exemplo, na fisiologia experimental com Claude Bernard, já citado,
quando as considerações molares a respeito da economia do organismo como um todo, por
meio da teoria do meio interno, substituíram as ficções vitalistas e se ajustaram às justas consi-
derações molecularistas oriundas das ciências físico-químicas.
Em analogia com esse caso, podemos ver que há muito a fazer nas humanidades. Pois
devemos associar os resultados relevantes das disciplinas que estudam o mentalismo humano,
particularmente a neurofisiologia e a psicologia, com a perspectiva molar que o realismo social
oferece, segundo o qual há propriedades das realidades sociais que precisam ser levadas em
conta primeiro, e cujo poder normativo precisa ser adequadamente compreendido, se quiser-
mos entender direito o que os seres humanos fazem.

Referências bibliográficas

ABBOTT, Edwin A. Flatland. A Romance of Many Dimensions. Princeton, N.J.: Princeton


University Press, 1991 [1884].

22
BERNARD, Claude. Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux. Paris:
Vrin, 1966 [1878].

BERNARD, Claude. Introduction à l’étude de la médecine expérimentale. Paris: Fammarion, 1984


[1865].

DAVIDSON, Donald. Essays on Actions and Events. Oxford: Oxford University Press, 1980.

DEACON, Terrence. The Symbolic Species. The Coevolution of Language and Brain. Nova York
e Londres: W. W. Norton, 1997.

DEACON, Terrence. Incomplete Nature. How Mind Emerged form Matter. Nova York e Lon-
dres: W. W. Norton, 2012.

DURKHEIM, Émile. Sociologie et philosophie. Paris: Félix Alcan, 1924.

DUTRA, Luiz H. de A. A epistemologia de Claude Bernard. Campinas: CLE/UNICAMP, 2001.

DUTRA, Luiz H. de A. Emergência e realismo perspectivista. Scienciae Studia (São Paulo), vol.
11, n. 3, p. 637-665, 2013a.

DUTRA, Luiz H. de A. Pragmática de modelos. Natureza, estrutura e uso dos modelos científi-
cos. São Paulo: Edições Loyola, 2013b.

DUTRA, Luiz H. de A. Emergência sem níveis. Scienciae Studia (São Paulo), vol. 13, n. 4, p. 841-
865, 2015.

DUTRA, Luiz H. de A. Autômatos geniais. A mente como sistema emergente e perspectivista.


Brasília: Editora UnB, 2018.

DUTRA, Luiz H. de A. O campo da mente. Introdução crítica à filosofia da mente. Florianópolis:


Editora UFSC, 201+a [no prelo].

DUTRA, Luiz H. de A. Leis, causas e poderes. Em preparação, 201+b.

GIERE, Ronald. Scientific Perspectivism. Chicago: University of Chicago Press, 2006.

GREENE, Brian. The Elegant Universe. Superstrings, Hidden Dimensions, and the Quest for
the Ultimate Theory. Nova York: W. W. Norton, 1999.

KANT, Immanuel. Critique of Pure Reason. Trad. Paul Guyer e Allen W. Wood. Cambridge:
Cambridge University Press, 1998 [1781/1787].

23
KIM, Jaegwon. Supervenience and Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

KIM, Jaegwon. Making Sense of Downward Causation. In ANDERSEN et al. (orgs.),


Downward Causation. Mind, Bodies, and Matter. Aarhus (Dinamarca): Aarhus University Press,
p. 305–321, 2000.

LEWES, George H. Problems of Life and Mind. First Series: The Foundations of a Creed, vol.
I. Boston e Nova York: Houghton, Mifflin & Co., 1875a.

LEWES, George H. Problems of Life and Mind. First Series: The Foundations of a Creed, vol. II.
Londres: James R. Osgood & Co., 1875b.

MORGAN, Conwy Lloyd. Emergent Evolution. The Gifford Lectures Delivered in the Univer-
sity of St. Andrews in the Year 1922. Londres: Willliams and Norgate, 1927 [1923].

POPPER, Karl R. Objective Knowledge. An Evolutionary Approach. Oxford: Oxford University


Press, 1995 [1972].

RANDALL, Lisa. Warped Passagens. Unraveling the Mysteries of the Universe’s Hidden Dimen-
sions. Nova York: Harper Collins, 2006.

ROVELLI, Carlo. L’ordre du temps. Paris: Flammarion, 2018.

SHATTUCK, Roger. The Forbidden Experiment. The Story of the Wild Boy of Aveyron. Nova
York: Washington Square Press, 1980.

SPERRY, Roger W. Science and Moral Priority. Merging Mind, Brain, and Human Values. Nova
York: Columbia University Press, 1983.

SAWYER, Robert Keith. Social Emergence. Societies as Complex Systems. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2005.

RACHLIN, Howard. Behavior and Mind. The Roots of Modern Psychology. Nova York e Ox-
ford: Oxford University Press, 1984.

RYMER, Russ. Genie. A Scientific Tragedy. Nova York: Harper, 1994.

TUFAIL, Ibn. The Awakening of the Soul. Londres: John Murray, 1907.

TUFAYL, Ibn. O filósofo autodidata. São Paulo: Editora Unesp, 2005. 


24
Notas
1Professor aposentado do Departamento de Filosofia da UFSC, docente permanente dos programas de pós-gra-
dução da UFSC e da UnB e pesquisador do CNPq.

2 Cf. sua Crítica da razão pura, em diversas edições e traduções, como, por exemplo: KANT, 1998 [1781/1787].

3Cf. TUFAYL, 2005. Abu Bakr ibn Tufayl foi um filósofo árabe do século XII que serviu ao sultão de Granada
como secretário, médico e vizir, tendo sido ali antecessor de Averróes. A citada obra foi, obviamente, escrita em
árabe, mas há diversas outras traduções, como, por exemplo, TUFAIL, 1907.

4 Há alguns casos bem estudados, sendo o primeiro deles a ser documentado cientificamente aquele do menino
Victor, encontrado na região de Aveyron, na França, na época da revolução francesa, e que acabou sob os cuidados
do médico Jean Itard, em Paris. Sobre este caso, cf. SHATTUCK, 1980, que apresenta uma detalhada narrativa.
Um caso muito mais recente e também amplamente estudado e documentado é o de Ginie, uma menina encon-
trada na California nos anos 1970s. Embora ela vivesse com uma família desfuncional, vivia em isolamento e tam-
bém não aprendeu a falar. Sobre esse caso, cf. RYMER, 1994.

5O instinto animal, tradicionalmente apontado nas outras espécies como o equivalente do conhecimento humano,
é uma noção, de fato, ultrapassada, uma vez que desconsidera muito do que as ciências dedicadas ao estudo dos
animais já revelaram. Um exemplo significativo é o caso da caça nos felinos. Hoje sabemos que eles aprendem a
caçar com suas mães. Logo, sem essa exposição ao estímulo ambiental e à interação social, um felino não tem
como desenvolver algo que é uma sua propensão ou predisposição natural. O equivalente humano mais significati-
vo é, obviamente, a linguagem. O que falta às crianças ferais é justamente a interação social na idade apropriada
para haver o desenvolvimento de suas potencialidades inatas para a fala.

6 Cf., por exemplo, GREENE, 1999, e RANDALL, 2006, para uma exposição geral da física contemporânea, es-
pecialmente o que se pode considerar até o momento sua última fronteira, a saber, a teoria das cordas (strings).
Ainda sobre as dimensões da realidade física e especialmente a realidade do tempo, cf. também ROVELLI, 2018.
Essas obras mostram em termos compreensíveis para não físicos como a visão científica do mundo hoje se distan-
cia de nossas noções comuns de tempo, espaço, matéria etc. E é claro que os próprios físicos profissionais também
não podem imaginar (pictoricamente, digamos) como seria o mundo de mais de quatro dimensões.

7George Lewes (1975a, p. 168) vai mais longe e, contra Kant, afirma mesmo que a ideia de coisa-em-si é um equí-
voco filosófico. Lewes é um dos precursores do emergentismo britânico, juntamente com John Stuart Mill, no sé-
culo XIX.

8 Cf. LEWES, 1875a, p. 90; e 1875b, p. 368.

9Cf. DUTRA, 2015 e 201+b. Para uma visão geral da tradição emergentista, cf. DUTRA, 2013a. Cf. ainda DUTRA,
2018, cap. 3.

10Discutimos a concepção de relação causal de Lewes no já citado DUTRA, 201+b. Com relação à nossa distinção
aqui em tela, cf. DUTRA, 2015, inclusive para a noção kantiana de comunidade. É claro que se não concebermos a
relação entre causa e efeito como uma relação temporal na qual a causa é um evento anterior a seu efeito, tal como
Hume e Kant defendem, mas a causa como determinado poder que certo objeto tem de produzir outro, então a
discussão é outra. Sobre isso cf. também DUTRA, 201+b. De qualquer forma, a ideia de condição de base é mais
adequada, porque inclui de forma não misteriosa a ideia tradicional de poder.

11 Mas cf. DUTRA, 2018, para discussões abrangentes e aprofundadas a este respeito.

12Além de DUTRA, 2015, e DUTRA, 2018, cap. 3, cf. ainda SPERRY, 1983, e DEACON, 1997 e 2012. Roger Sper-
ry e Terrence Deacon são dois emergentistas atuais, de cujas ideias as nossas se aproximam, embora com apresen-
tação um tanto diferente.

13 Sobre essas questões, inclusive as relações entre consciência básica, reflexiva e moral, cf. DUTRA, 2018, cap. 5.

14Cf. DUTRA, 2001, para uma visão geral do pensamento científico e epistemológico de Claude Bernard. Cf. ain-
da BERNARD, 1966 [1878] e 1984 [1865].

25
15 Há diferentes versões da posição supervenientista, mas um de seus célebres defensores é Donald Davidson
(1980). Para uma discussão crítica e bem fundamentada sobre a superveniência e a emergência, cf. KIM, 1993 e
2000. Cf. ainda DUTRA, 201+a, cap. 6. O supervenientismo e o emergentismo concordam em muito, pelo fato de
serem versões não reducionistas e não eliminativistas do materialismo. Eles discordam justamente quanto à ques-
tão da determinação descendente. Para os supervenientistas, em resumo, nos termos que tratamos esse problema
acima, as propriedades emergentes de um sistema não são fatores condicionantes de suas condições de base. As-
sim, no caso dos eventos mentais, embora todo evento mental tenha condições de base neurofisiológicas e possua
propriedades eminentemente mentais e irredutíveis às propriedades neurofisiológicas do sistema nervoso central,
sua presença não afeta a economia desse último. O autor emergentista que mais enfaticamente argumenta o con-
trário disso é o já citado Sperry (1983).

16 Há diversos pensadores que adotam essa perspectiva, mas gostaríamos de citar particularmente Émile
Durkheim (1924), pensador que, segundo SAWYER (2005) também defende o emergentismo social, e Karl Popper
(1995 [1972]), que também defende a autonomia das realidades sociais ou culturais em geral. Cf. ainda DUTRA,
2018, cap. 5.

17Para uma discussão abrangente e detalhada dos modelos, especialmente dos modelos nas ciências, cf. DUTRA,
2013b.

18Entretanto, a hipótese evolutiva de Deacon (1997) sobre a coevolução entre cérebro e linguagem pode ser levada
a sério, uma vez que, no plano ontogenético sabemos da dependência entre os fatores ambientais e o amadureci-
mento das estruturas cerebrais responsáveis pela linguagem, como ilustra o caso da falta de linguagem das crianças
ferais. Como, no plano filogenético, a discussão de Deacon no referido livro se insere no domínio da antropologia
evolutiva, o autor não faz quaisquer considerações sobre o caráter normativo da linguagem, o que, do ponto de
vista da antropologia cultural é o que mais interessa, obviamente.

19Cf., por exemplo, MORGAN, 1927, que utiliza o termo “molar” e que é um dos expoentes do emergentismo bri-
tânico. Cf. ainda RACHLIN, 1984, para o caso específico da psicologia e da filosofia da mente.

26

Você também pode gostar