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ARTIGOS ORIGINAIS

A SAúDE MENTAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA

F. ESCARDÓ (*)
EVA GIBERTI (**)

Comunicação oficial (a conrvite) ao IV Congresso Latino-Americano de


Saúde Mf1ntal, realizado em Santiago do Chile, de
4- a 10 de dezembro de 1960
"A unidade da família continua sendo o
mecanismo mais efetivo para o cuidado e
a educação dos filhos e estas funções
lhe pertencem em tôdas as sociedades".
(R. Linton - Estudo do Homem -
A Familia).

I - Apresentação do Te/fY/;(J,

Compreende-se fàcilmente que, aos fins expositivos e didáticos, se


faça necessário uma divisão ~r idades; é preciso, porém, afirmar que
a Saúde Mental é o resultado duma concorrência de fatôres que afetam e
incumbem a todos e cada um dos grupos etários de maneira correlativa
e recíproca. Desiderativamente considerada, a Saúde Mental é um con-
tínuo e um ronseqüente. Ê necessária esta advertência para assinalar que
somos conscientes das omissões e limitações em que temos de incorrer
se queremos que o relato não se transforme num tratado.
O tema Saúde Mental impôs-se à consciência social pelo imperativo
de sua necessidade e sua incorporação às integrações culturais; não é
menos importante que a das normas higiênicas que se impuseram ao
descobrimento dos micróbios e sua história natural; essa incorporação,
porém, não está servida por suposições teóricas suficientemente claras
para deduzir princípius taxativos e formulários. Primeiramente, care-
cemos de definição simples do que se entende por saúde mental.
O Comitê de Expertos de O.M.S. (1) limita-se, judiciosamente, a
assinalar suas evidentes características. "É claro - diz - ser pouco
satisfatório definÍ-Ia negativamente como um estad0 no qual o indivíduo
não sofre nenhum transtôrno psiquiátricv evidente; porém, se mantemos
que a adaptação ao ambiente é, em todos os casos, um fenômeno mental
são, não consideramos que um ambiente possa ser tal que a reação saudá-

(• ) Professor de Pediatria. Faculdade de Medicina. Buenos Aires.


(**) Assistente Social. Professôra Normal. Chefe d::> Serviço Social de Maternidade
e In!ância. Buenos Aires. Santa Fé 2735. Buenos Aires, Argentina.
6 ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSICOTJi:CNICA

vel seja tentar mudá-lo. O impulso para adaptar-se a qualquer ambiente


não é, sem dúvida, uma característica da saúde mental; a capacidade de
estabelecer~ relacães harmcmiosas com outras pessoas sim, o é".
Aceita apenas a questão, percebem-se as dificuldades de aplicá-la à
primeira infância; a capacidade de "estabelecer relações harmoniosas com
outras pessvas" mostra-se, na criança, muito mais como função de outras
pessoas que como a possibilidade de atitudes reguláveis da mesma criança.
Isso implica situar a higiene da criança entre dois parâmetros: psi-
cogênese - higiene mental da família, ou, dito de outro modo: não há
higiene mental da criança; há higiene mental da criança em seu núcleo
primário: a família, e em seus núcleos secundários: escolas, vizinhança,
hospital etc.
Não há dúvida de que o assunto p'0de também intentar-se unilateral-
mente, porém seus resultados serão forçosamente parciais, o que vem
sucedendo até agora. Quando a psicologia veio ao âmbito cultural com
suas exigências de profilaxia, estas puderam estabelecer-se sôbre esque-
mas psicogenétic.Js prévios, com o que a higiene mental se converteu
num conjunto de formulações dogmáticas que dependiam dos "a priori"
teóricos de quem os aplicasse, o que trouxe conselhos fundamentalmente
contraditórios; assim, para uns, a criança deve adaptar-se a um ritmo
regular de alimentação, compatível com as necessidades da vida fami-
liar; para outros, é necessário que se lhe dê de mamar tão logo chore,
a fim de preservá-la de frustrações traumáticas (2). De qualquer forma,
'alguns dêsses esquemas constituem valiosos pontos de partida para o
clínico (3) ( 4). O essencial, porém, p'ara edificar uma norma, consiste
'em encontrar as relações positivas básicas entre o indivíduo que se desen-
volve e o meio que o plasma.
Mais uma vez a patol.:>gia veio em auxílio da higiene, mostrando-lhe,
'por redução ao absurdo, os caminhos que percorreu, permitindo-lhe a
obtenção de documentos clínicos isentos de deformação teórica. Nos últi-
mos quinze anos reuniu-se uma informação coincidente que requer com
urgência apresentação sintética (5). O primeiro fato impressionante foi
Q estabelecido por Margaret Ribble (6): uma criança recém-nascida,
rejeitada passivamente por sua mãe, cai em coma unicQ;mente pelo fato
da carência afetiva, que determina a impossibilidade de colocar em marcha
seu órgão psico-social; a observação amplia-se e ratifica-se por numerosos
,observadores (7) e culmina no importante infurme Aubry (8), minucioso
conjunto de histórias clínicas rigorosamente analisadas.
A guerra, determinando mutilações sociais brutais, apresenta situa-
ções dêste tipo; Anna Freud y Dorothy T. Burlingham (9) recolhem
observal$ões básicas. .. "as crianças de um a quatro anos comovem-se de
acôrdo C.Jm a angústia que experimentam seus pais, sendo a influência
da mesma tanto maior quanto menor seja a criança" (lO). É fato com-
provado que a criança não abandona a mãe, por mais cruel e exigentp.
que esta seja para com ela. O vínculo que une a criança à mãe nada tem
que ver, g.eralmente, com as qualidades pessoais desta ou sua habilidade
para educá-la (11). A estas premissas concorrem estudos empreendid0s
em países diferentes, por pessoas de muito diversa preparação cultural
A SAÚDE MENTAL NA PRIMEmA INFANCIA 7

e por trabalhadores com diferentes pontos de vista. "O que falta de


exatidão e de segurança científicas ou de precisão em cada um dêsses
trabalhos é compensado em grande parte pela harmonia do cunjunto:
não há nada no método científico que tenha maior pêso que isto" (12).
A conclusão é inexcusáVtel: A Saúde mental da 'JYrim,eira 'ÜnfâncixJ, reside
bàsicamente na profilaxia da separação da criança do núcleo primário e
'TlIa organizaçã.o de 8Wa8 relações harmoniosas dentro dêie.

O INSTITUCIONALISMO
II - :Apresentação (];o relato

Assim definid~ o problema, pensamos que êste relato pode alcançar


éficácia se procede à análise e denúncia dos sistemas que, atentando à
união criança-família, se transformam em focos de enfermidades mentais.
Não se trata das situações em que a família se destrói por causas fortui-
tas, mas das determinadas por um regime ronsciente que deve ser revisto
desde suas bases. Dubois e Leschanowsky (13) oferecem para o fenô-
meno o nome genérico de institucümalismo. Dêste grupo, o hospitalismo
representa a nÓ'Xia da que é diretamente culpável a organização médico-
sanitária; em 1945, Spitz (14) reapresenta com nôvo rigor as profundas
modificações somáticas, psicológicas e psíquicas que produz na criança
a brusca privação de seu vínculo com a mãe; desde então, os estudos são
progressivamente crescentes e culminam no citado informe Aubry (8);
mostram como \) hosrpitaJismo significa a atrofia do órgão social em for-
mação e também como podem durar tôrla vida as conseqüências de tal
atrofia. "É esta - escreve Bowlby - (15) uma conclusão sombria, mas
que devemos considerar desde já como verdade estabelecida". Os quadros
vão desde a angústia aguda inicial até as atrofias psíquicas e a desinte-
graçã'l> da personalidade. A permanência de crianças em orfanatos, asilos
e instituições semelhantes, não é senão a ampliação, sem razão de enfer-
midade atual, da deletérea situação do hospitalis.m.o.
O importante resumo feito por Bowlby (5) sugere que há três expe-
riências diferentes que podem determinar o caráter psicopático:
a) ausência absoluta de ocasiões de estabelecer laços de uniãQ com
a figura materna durante os três primeiros anos da vida.
b) Privação durante período limitado - três meses como mínimo
e, provàvelmente, mais de seis - durante êsses três ou quatro
anos.
c) Mudança de uma figura materna a outra durante êsses três ou
quatro anos.
E éonclui: "No moment0 é preciso reconhecer, como conclusão, que
todos os estudiosos do tema coincidem em atribuir grande importância à
privação que se produz na segunda metade do primeiro ano e que muitos
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a consideram também grave quando ocorre dentro dos selS primeiros,


sobretudo entre os três e os seis.
Do oportuno balanço dessas opiniões resulta, pois, que é grave o
prejuízo que a privação dos cuidados maternos, durante ésses meses,
pode produzir na saúde mental da criança - e insiste: "Ponto de vista
que se apóia firmemente nas observações diretas qUe estabelecem de modo
decisivo a gravidade dos efeitos imediatos da privação sóbre a saúde
mental das crianças dessa idade". ,Ter-se-ia a impressão de que a provisão
de cuidados maternais pode compensar êsses efeitos, porém não sucede
assim: se a reintegração se faz antes do terceiro trimestre, podem-se
compensar os efeitos de um primeiro semestre de abandono; após os
12 meses o remédio é duvidoso e, depois dos dois anos e meio, a ineficácia
é quase segura. Bender (16) afirma "que, uma vez nascido o defeito,
não há modo de corrigí-h)", assim, renunciando à cura ou correção, há
que resignar-se à mais oportuna proteção ou dependência, o que significa
aceitar como inevitável a invalidez psico-social e obriga, desde já, a esta-
belecer com rigor os princípios psico-higiênicos da adoção. A gravidade e
transcendência destas comprovações justificam a airada exclamação de
Bowlby: "As crianças privadas de afeto, seJa nos lares ou fora dêles.
são fonte de infecção social, real e grave como os vetores da difteria ou
da febre tifóide".
~ realidade e sua conceitualização patográfica não pode ser desco-.
nhecida le implica automàticamente a necessidade urgente e imposter-
gável de renascer totalmente o sistema de hospitalização da criança, pro-
clamar a caducidade de todo tipo de asilo ou orfanato, substituindo-os
por um sistema eficaz de lares substitut.os e reformar de raiz os conceitos
teóricos e práticos que regem a adoção. li A máxima paradoxal no campo
da assistência infantil é constituída, de um lado, pelos milhares de lares
sem. filhos e ansios'vs de tê-los, e, por outro, pelo número igual de lares
cheios de crianças necessitadas de vida familiar efetiva", escreve o chefe
de assistência infantil do Condado de Croydon na lnglaterra em seu
informe do período de 1948-49. O plano parece ambicioso, porém. seu
principal obstáculo radica na dificuldade demonstrada por médicos, higie-
nistas, trabalhadores sociais e legisladores em aceitar a realidade e gravi-
dade da situação e em admitir que são cúmplices e administradores de
enormes focos de enfermidades psíquicas e mentais. O único plano no
qual se esboça um tímido movimento é o que faz a hospitalização de
meninos; Spence (18) recomendou-a, há treze anos, dizendo de suas
vantagens: "As vantagens do sistema são quádruplas: é vantajoso para
o menino. ~ vantaJoso para a mãe que, depois de passar por esta expe-
riência e sentir-se responsável pelo retôrno da saúde a seu filho, se encon-
trará mais ligada ao filho e mais segura de si mesma, fatos êstes de bom
augúrio para o futuro; é vantajoso para as enfermeiras pelo muito que
lhes pode ensinar o contato direto com mães dignas dêsse nome, nã:v
sàmente sôbre o Mvdo de tratar a criança, mas sôbre a vida em geral.
Ê vantajoso para as demais crianças hospitalizadas, às quais as enfer-
meIras podem dedIcar mais tempo". Estas observações coincidem plena-
mente com a realidade obtida em três anos de internação de crianças com
A SAÚDE MENTAL NA PRIMEffiA INFANCIA 9

suas mães (av6s ou irmãs) no Serviço a cargo de um de nós, com evidentes


vantagens ainda de ordem econômIca, assistencial e educativa: Neste
critéri\> coincidem distintas autoridades médicas, especialmente inglêsas
(19). No estado atual do conhecimento nada há que justifique os métodos
de hospitalização que mutilam a criança e sua família e que obedecem
a uma concepção médica exagerada, materialista e mecanicista e faz-se
necessário suprimir ou atenuar o método de visitas com ll'Vra marcada, o.
isolamento e imobilidade das crianças, sua internação sem causas funda-
mentais, a indevida prolongação da estada e de tôdas as medidas cuja
existência constitui o fenômeno de carência reconhecido como hospita-
lism,); a recalcitrância dos médicos para empreender a reforma é eqüi-
valente à que se negaram a administrar vitamina D, conhecido que é
seu papel na gênese do raquitismo. 'É certo que se opõem à mudança uma
empedernida atitude cultural e um sistemático esquecimento dos fatôres
pSlCógen\>S do desenvolvimento da crIança, fatos que Justificam êste pará-
grafo de Bowlby: "Convidamos, fmalmente, o leitor a refletir por um.
momento sôbre a assombrosa prática seguida em certas salas de Mater-
rudade de separar as crianças das mães IInediatamente depois de haver
dado à luz e a perguntar se esta é a melhor maneira de criar um estado
de íntima relação entre o filho e a mãe. E de esperar que esta aberração
da civilização \>Cidental não seja tomada por modêlo nos países insufi-
CIentemente desenvolvidos ou tidos por tais".
De qualquer modo, é necessário pensar que, se no terreno físico se
mantIvessem focos de infecção semelhantes aos que se mantêm no terreno.
psíquico, a opiniã\> pública estalaria de indignação.
Outro perIgo do institucionalismo reside em instituições cuja prática
estâ Isenta de base pedagógica. Cnadas para resolver problemas de
abandono e de orfandade, certas instituições mudaram para a adoção de
tutela de CrIanças com pais reaIS que não cumprem seu papel funcional:.
a criança permanece o dia inteiro em casas das quais a mãe a retira.
no final d\> dia, trocando o sistema protecional pelo assistencial, tal qual
é o asilo, sem informar e instruir a mãe da necessidade e importância dos
contams emocionais com seu filho; assim, a creche converte-se em depó-
sito passivo em lugar de intermediáno ativo entre a família ea sociedade.
Entretanto, que sucede com a saúde mental da mãe que cvloca seu filh()
sob a guarda de outras pessoas? Por um Jado, desfruta de maior como-
didade para utilizar seu tempo, mas, por outro lado, frustra seus senti-
mentos e desejvs maternais. Se, como é comum, isso lhe determina senti-
mentos de culpa, o retôrno do filho desenvolve mecanismos neuróticos
de compensação, de superproteção, tornando-se, assim, a creche um centro
anti-higiênico, em troca de um benefíci\> material. A única maneira de
neutralizar tal nocividade é incorporar regularmente as creches a insti-
tuições similares a um sistema de Escola para Pais. Não há dúvida de
que, a miúdo, o trabalho da mãe é imprescindível, porém, sôbre êste parti-
cular, o Comitê de Expertos da O.M.S. escreve estas impressionantes pala-
vras: "A existência de "creches" e berçários ê, freqüentemente, um dos.
meios de que se vale a política governativa para estimular essa tendência.
Evidentemente, só \>s governos nacionais são capazes de avaliar areIa.
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tiva importância da produtividade industrial, não obstante, a firme con-


vicção do comitê é que, em muitos casos que requeriam uma avaliação
entre as necessidades das crianças e da produção nacional, foram toma-
-das decisões em completa ignorância do preço que a geraçã\) futura pagará
pelos prejuízos permanentes do desenvolvimento emocional".

IH - A saúde mental da fwmüia

As premissas sustentadas no parágrafo anterior obrigam a fazer da


família o centro da saúde mental; no plano direto nã'.> se pode tratar da
saúde mental da primeira infância como de uma espécie dialética diferen-
ciada; o que diz respeito à psico-higiene da criança está contido na psico-
higiene da família. 'É claro que, tecnicamente, não nos referimos à famí-
lia como a uma entidade jurídica, mas com\) a um conjunto funcional.
Os observadores registram que, sob a expressão "lar desfeito ou destruí-
do", se reunem situações tão diferentes, que deve a mesma ser abando-
nada pOr carência de sentido Técnico. "Não se pode deixar de tomar em
consideração que, mesm\) os pais que descuidam a atenção de seus filhos
lhes proporcionam muitos benefícios" e que, exceto em casos extremos,
o pior pai répr,esenta valor básico para a constituição psico,-emocional,
com'v obriga a aceitá-lo o fato provado pela clínica cotidiana de que
todo menino está muito melhor em um mau lar que em uma b0a insti-
tuição e que. em realidade, a única coisa pior que um mau lar é a falta
de um lar (7fheis-Simonsen). O ponto de partida teórico da constituição
normal duma família é constituído pelo que acertadamente se cham\)u
reSrponsabilidade procriacional ou paternidade consciente; é um amplo
movimento educacional que pretende promover nos possíveis pais uma
séria noção de capacidade e de correm conhecimento das circunstâncias
em que hão de ter filhos. A criação de tal responsabilidade é a única
profilaxia possív,el da ilegitimidade. Como, em realidade, todo ser humano
é potencialmente pai ou mãe, esta educação deverá ser dada a tôda popu-
lação e incluída na educação geral. Nã\) há muita dúvida de que o ponto
de partida desta consciência é a paternidade planificada, donde a educa-
cão sexual vem a ser o antecedente imprescindível da saúde mental do
filho (20).
Num planejamento a longo prazo esta educação e tôda a conexa deve,
desiderativamente, incutir-se desde a primeira hora da vida e desde o
primeiro grau escolar, porém no que diz respeitv aos cuidados imediatos
não há dúvida de que a escola pa,ra pais, conforme se desenvolve na França
(21), significa o único esfôrço coerente que pode prover os elementos
da profilaxia, a educação, a instrução e \) tratamento dos temas da Saúde
Mental. Descendo ao terreno prático, é necessário assinalar as três atitu-
des que, no estado atual das coisas, atentam contra a saúde mental da
criança pequena. A primeira é de origem iatrógena e lamentável porque
o médico é o natural guia da saúde mental na infância, porém sua escassa
ou nula formaçã'v psicológica o torna, com freqüência, um ator altamente
nocivo.
A SAúDE MENTAL NA PRIMEIRA INFANCIA 11

Documentamos, em mais de uma ocasião, como as práticas pediátricas


contêm, a miúdo, ingrediente de agressão que alcança extremos de cruel-
dade (22).
O Comitê de Expertos da O.M.S. (23) registra: "Os conhecimentos
de assepsia, higiene da alimentação e de epidemologia, adquiridos nos
últimos anos do século XIX, contribuíram, em alguns países, para um
sistema de higiene dos lactantes e crianças que subordina as necessidades
psicológicas do ser humano jovem a suas condições fisiológicas. O equilí-
brio deve ser restabelecido e não correr o risC'v de salvar a vida das
crianças à custa da atrofia permanente do desenvolvimento de sua perso-
nalidade. Muitas práticas atuais no cuidado dos lactentes são prejudiciais
para o desenvolvimento da criança e, por conseqüência, para a saóde
mental do adultv de amanhã: os horários rígidos de alimentação e sono,
o tratamento impessoal da criança, o hábito de limpeza prematura e
intolerante, a restrição do movimento infantil e a hospitalização evitável
e prolongada". A situação é muit.:> mais grave do que se pode supor.
Bevet (24) C'.)nsidera entre as causas que costumam perturbar as rela-
ções entre mãe e filho "a irregularidade derivada das leituras e confe-
rências psicológicas mal assimiladas"; a advertência cabe, em alto grau,
aos médicos; num livro de um Professor de Pediatria (25) lêem-se estas
simples linhas: "Nas crianças de um a três anos de idade que padeçam
de "vômit.:>s nervosos" é eficaz, em alguns casos, molhar-lhes bruscamente
o rosto (com esponja embebida em água fria) quando anunciam o vÔlnito.
Assim, algumas crianças impressionadas abandonam o "mal costume"
(sic)". E acrescenta: "Exce(pcionalmente será eficaz o castigo ou a
violência". Ê o cas'.:> de repetir a grave advertência do Prof. Rof Carballo:
"A quantia do mal iatrógeno não se valoriza nunca o ·suficiente" (26).
Propusemos o têrmo panogenia (de Pan, no sentid'.:> de pai) para designar
o C'vnjunto de nóxias que os pais podem exercer sôbre os filhos no plano
psico-emocional, e o de tJer'ogenia (de teros, mestre) para designar as
correlativas de mestre ou mestra. O estudo desta tríade patogênica cons-
tituiria valioso manual de psico-higiene, porém escapa aos limites dêste
relato, a'v que somente é possível uma apresentação genérica do problema.
A saúde mental da criança pequena resulta de uma ininterrupta
cadeia: higiene mental pré-matrimonial, vida sexual, gravidez, parto, lac-
tância, desmame ... e que implica diretrizes que obrigam a rever, sob
nova luz, a ginecotocologia e a puericultura. Parece-nos ainda próprio
assinalar as práticas e institUIções que, pela quantia e profundidade de
seus prejuízos constituem sérios e vastos focos de enfermidade mental.
As bases teóricas e documentais já existem, mas "Talvez a resistência
a aceitá-las obedeça à idéia de que seu acolhimento implicaria mudanças
de extraordinário alcance na concepção da natureza humana e nos méto-
dos de atenção e cuidado da infãncia".
Atualmente, \) menino passa muito cedo para núcleos secundários;
a família, "nursery da personalidade" (Newcomb), encontra-se numa
etapa de transição do tradicional ao moderno; essa transição traduz-se
numa família conflitual, com grandes tensões internas e sérios desencon-
tros de gerações que não ofert!Cem garantias de saúde mental para a
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crIança. COID'':> resultado dessa situação, tende a delegar suas funções


para núcleos secundários mal preparados para sua incumbência (vide
infra); tais núcleos apresentam-se esquemàticamente como soluções e
não como ajuda, por ausência de um critério psico-higiênico social, o que
determina novas disv,)rções no ser em formação.
De qualquer maneira, seria elementar supor que os problemas da.
saúde mental podem considerar-se desvinculados dos problemas gerais.
da vida civilizada; ao contrário, mostram-se aguda e intensamente in-
fluídos por ela. Assinalaremos algumas dificuldades cuja consideraçoo
p;xle contribuir para um plano racional de saúde mental na primeira.
infância.
Dificuldades pedJagógÚXLs: A vida moderna, com a peculiar trans-
formação do tipo de família (27), obriga, com freqüência, o grupo primá-
rio a recorrer cedo ao auxílio e colaboração de grupos secundários. Oster-
rieth (28) assinala os aspectos mais importantes para levar em conta.
em prol da Saúde Mental: ingresso tardio (nunca antes dos dois anos)
da criança ll!':> Jardim de Infância; preparação familiar adequada da auto-
nomia da criança no marco intrafamiliar de modo que o Jardim não lhe
signifique um "destete" violento; integração gradativa e progressiva a<>
meio e ao ambiente escolares; meio escolar que proporcione aclimatação
gradativa de modo que a criança não passe brutalmente de sua casa a.
uma classe; presença na escola de uma figura materna eficaz e suficiente;.
presença eventual de uma figura masculina eficaz. fl'udo isso pressupõe
um Jardim de Infância tecnicamente concebido e manejado e a necessi-
dade de considerar nocivos \)s estabelecimentos que, coro tal nome, são-
meras creches, mais ou menos dissimuladas, quando não são depósitos.
heterólogos de crianças. A necessidade de grupos reduzidos e a impossi-
bilidade de real socialização das crianças nessa idade marcam as pautas
psico-higiênicas (29). Convém, além disso, lembrar que, ao aproximar-se
a idade escolar, as habituais advertências dos adultos constituem esquema
negativo que costumam apresentar a prõxima experiência como dificul-
tosa e repressiva (a miúdo em forma de ameaças) ; o que costuma criar
numa criança clima de angústia e mêdo que atenta contra sua adaptação-
esci>lar. Deve salientar-se, como fator colateral, o hábito de fazer com
que as crianças ingressem na instrução primária sem a devida e analítica.
avaliação de sua real maturidade social e pedagógica, o que produz não
raros problemas de saúde mental no próprio indivíduo, na família e na.
escola. Tais desOilhJ,piJações podem originar-se de inadequada organização-
da personalidade social da criança na primeira infância (vide acWw,)
p'l>r impropriedade funcional de núcleos secundários; a creche significa,
tecnicamente, um prolongamento do regaço materno, fortalecendo a efe-
tiva união mãe-filho; o Jardim intenta aclimatar progressivamente a.
criança à futura experiência escolar por meio do jôgo hierarquizado; \)
jôgo é a básica e essencial ocupação da criança na primeira infância, o
que obriga a que o jôgo seja o centro motivacional do Jardim de Infância.
De qualquer mooo, ambas as instituições (a primeira liberando a mãe
de obrigações concretas; a segunda dando à criança experiências concre-
A SAÚDE MENTAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA 13

tas) obrigam-se a organizar-se em cadeia com o primeiro núcle'v, a famí-


lia e o seu sentido social.
Dificuldades sociológicas: A existência de crianças com família ou
com famílias muito deficitárias (mães com situação econômica que as
obriguem ao abandono psico-emocional do filho) força a encarar com
critério sociológico baseado em noções atuais tôda a obra de proteção
ao menor. Assinalaremos alguns fatos flagrantes. A quantidade de mu-
lheres que trabalham fêz com que floresc2cem, com '0 nome de creches,
depósitos de crianças que constituem verdadeiros asilos pagos, carentes
de tôda orientação psico-higiênica (*). Urge regulamentação e vigilância
adequadas. Corresponde proclamar, em nome da Saúde Mental, a urgente
caducidade de todo sistema de asilo e sua rápida e total substituição pelos
métodos de colocação familiar, bem como a organização dentro do tipo
familiar mais tecnIcamente estabelecido dos estabelecimentos de trânsito,
espera e classificação. "É preciS'o colocar-se em guarda contra os inte-
resses criados, quando se trata de instituições de assistência infantil"
(Bowlby). As pessoas que vivam das crianças são muito mais numerosas
do que parece à primeira vista. :É necessário reformar com novo critério
todo o sistema de adoçã\). As leis atuais parecem prevenir muito mais
os interêsses do pressuposto pai que os da criança a ser adotada e a
experiência unânime aconselha que a criança seja adotada o mais cedo
possível. Como resultado das realidades urbanísticas sem contexID psi-
cológico e do modo da vivência moderna, a criança das cidades encontra,
desde cedo, limitada e talvez SUprimida sua necessidade de movimento
(o "cercado" aboliu pràticamente a etapa do engatinhar). Assim, é
freqüente que as essenciais experiências sensório...m.'0toras da criança se
cumpram fora do núcleo familiar: em instituições auxiliares, tais como
creches e jardins de infância. Frente à realidade clínica, assinalaríamos
a "carência de jogos" como causa mais freqüente de transtornos de con-
duta no segundo período da primeira infância.

(*) Estas afirmações correspondem à cidade de Buenos Aires - Argentina.

CONCLUSOES

1) A Saúde Mental da Primeira Infância forma uma constante e um contínuo com


a Saúde Mental da Comunidade.
2) A Saúde Mental da Primeira Infância está implícita na Saúde Mental do núcleo
pr(mário: a familia.
::I) A Saúde Mental da Primeira Infância reside bà'Sicamente na profilaxia da se-
paração da criança do seu núcleo primário e na organização de suas relações
harmoniosas dentro dêle.
4) O lnstituoõ,onalismo destrói o órgão psico-social da criança e constitui, no mo-
mento atual, o foco mais grave e extenso de enfermidade mental. Suas formas
notórias: o hospita.:tsmo e o asilismo reclamam urgente remédio.
14 ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSICOT:l1:CNICA

5) O médico é o natural agente da saúde mental da Primeira Infância: urge dotá-lo


de instrução, educação e informação suficientes.
6) A Puericultura clássica, que s6 atende ao 'aspecto somático da cri-ança, é nociva
para a Saúde Mental da criança e seu futuro psico-emocional.
7) A pessoa que esteja encarregada de crianças institucionalizadas deve possuir
idoneidade técnica e equilíbrio psico-afetdvo e emocional.
8) Os Jardins de Infância, Creches e instituições similares devem ser integrados a
um sistema coerente de Escola para Pais, que as articule num método de instru-
ção e psico-higiene familiar.
9) Grande parte das medidas de psico-higiene, que requerem a Primeira Infância,
são possíveis e praticáveis.

Tradução de REGINA DIAS

BIBLIOGRAFIA

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(5) Euena parte de esa bibliografia puede encontrarse en BOWlby J. Los cuidados
maternos y la 8alud Mental - O. M. S. Publicaciones Cientificas N'I 14. Dic.
1954 - 1 tomo 225 x 15 de 232 pag., rústica, en espaüol.
(6) Ribble Margaret A. ClinicaI Studies of Instinctive Reaetions in Ncwborn Eabic~
- Am. J. Psychiatry - 95 - 1938.
(7) Vease Spitz René. La Premiêre année de la Vie de l'Enfant. 1 tOl:1.0 18 x 11 Cc
146 pág. Edit. Presses Universitairf.'3 de France 1918 Capo X.
(8) Aubry Jenny. La Carence de Soins Maternels 1 tomo 24 x 15 de 188 pago Edit.
deI Centre Internationel de l'Enfance Paris 1955.
(9) Freud A. y Burlingham D. La guerra y los nmos 1 tomo 215 x 15 de J8.J pago
Lman Buenos Aires.
(10) Ibid pago 31.
(11) Ibid pago 44.
(12) Bowlby J. op. cito (5) pago 19.
(13) Dubois et Leschanowsky - Observation d'Hospitalisme L'Enfant 2 - 93 -
1958 Cf. Acta Paediatrica Bélgica. Vol. II Fase. 4_1957.
(14) Spitz R. A. Hospitalism: an inquiry into the genesis of psyhiatric conrlitions
in early childhood. I In The psichoanalitie study of the cb~ld. 1 - 53 - 1945.
(15) Op. cito (5) pago 19.
A SAúDE MENTAL NA PRIlVIEIRA INFANCIA 1&

(16) Bender Lauretta. P~ychopatric behaviors disorders on chileren In Lindncr R. M.


and Seliger R. V. Har.dbook of correctional pSY'chology N. York 1947.
(17) Op. cito (5) pago 192.
(18) Spence J. 13. Brit. medo J. 1.125 - 1917.
(19) Vease la discusión sobre eI tema en Técnica Hospitalaria. Caracas V. 2 Junio,
1950. S.vmposium sobre hospitales àe nmos; discussión de trabajo de Lelong
M. Problemas psicológicos surgidos de la hospitalización de niíios pago 31..
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(20) bscardó F. Sexologia de la Familia Edit. :m Ateneo Bm,nos Aires, ín press.
(21) L'lilcole des Parents - 4 vue Brunel Paris 17.
(22) Escardó F. La noxa "ex médico" en Pediatria Arch Ped Uruguay 26 NQ 1
100 a 117 1955 bibliografia.
(23) Op. cito (1) pago 9.
(24) Bovet L. Aspectos psiquiátricos de la delincuencia Juvenil. 1 opúsculo 107 pago
rúsLlCa. Publicación de la O. M. S. Sede de Monografias No 1 Publicaciones
científicas n 9 1:~ en espaüol. Capo Pertubacioncs en el desarrollo Psicológico de
la Personalidad Pago 63.
(25) Garrahan J. P. La Salud deI Hijo. Puericultura. El Ateneo Buenos Aires 1955
pago 403, el subrayado es nuestro.
(26) Prof. Carballo J. La Medicina Actual. Edit. Barná Barcelona pago 159 Capo
La Investig'ación en Clínica lvfédica y passim,
(27) Escardó F. Anatomia de la Familia. 3- edic. El Ateneo 1960. Cap La familia.
de hoy, pag 14 y p(.t.'isir(~.
(28) Osterrieth Paul. Parents e l'education prescalaire. L'Enfant. Bruxelles 2-101-
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(29) Coussinet R. La vida social de los nifios. Ed. Nova, Buenos Aires 1958.

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