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Coerência e integridade
Olavo de Carvalho
Meu artigo anterior poderia dar ocasião a inumeráveis outros, tantas são as
conseqüências que anuncia e as perguntas que sugere. Uma destas é: qual a
importância da lógica na formação do filósofo? De certo modo essa pergunta já
foi respondida pelo próprio desenrolar dos fatos históricos: existiu filosofia, e
grande filosofia – a maior delas –, uma geração antes de que Aristóteles
formulasse pela primeira vez as regras da lógica. O pensamento lógico é, decerto,
uma capacidade natural do ser humano, e desde os tempos mais remotos a
especulação filosófica faz uso dele quase que por instinto, mas a lógica enquanto
técnica explícita só apareceu quando a filosofia, sem ela, já havia alcançado seus
mais altos cumes, nunca ultrapassados pela evolução posterior. Quando Arthur N.
Whitehead disse que a história da filosofia não passa de uma coleção de notas de
rodapé aos escritos de Platão, incluía nisso, é claro, a filosofia inteira de
Aristóteles. Assim como esta é apenas a exploração avançada de sendas já abertas
pelo platonismo (e o filósofo de Estagira é o primeiro a reconhecê-lo, ao referir-se
a si próprio como um de “nós, os platônicos”), a tekhne logike não passa de um
ramo especial da filosofia aristotélica, que a transcende infinitamente e não é de
maneira alguma determinada por ela nem na sua forma expositiva, nem no seu
sentido íntimo.
Aristóteles sempre esteve consciente de que o discurso lógico não surge no ar,
mas se ergue em cima de todo um caleidoscópio de percepções e recordações que
não cede ao impulso da formalização lógica senão após uma série de depurações
muito trabalhosas, que vão passando da linguagem poética (muitíssimo bem
definida por Benedetto Croce como expressão de impressões), através das
escolhas retóricas e confrontações dialéticas, até o formalismo da demonstração
lógica, incapaz de abranger senão um fragmento mínimo da experiência humana
(escrevi um livro inteiro sobre isso e não preciso me repetir). Quando se perdem
de vista as raízes que o raciocínio lógico tem nas modalidades menos abstratas de
discurso (e estas na complexidade da alma vivente), os progressos da
formalização arriscam tornar-se pretextos de uma irresponsabilidade cognitiva
quase demencial, tanto mais danosa quanto mais adornada de perfeições técnicas
imponentes.
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