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Agalinha Minha mae e minha tia foram a feira. Minha m&e com 0 meu pai e minha tia com 0 meu tio. Mas todos juntos. Na camioneta da carreira. Na feira compraram muitas coisas @ a certa altura minha mae viu uma galinha e disse’ = Olha que galinha engragade E comprou-a também. Estava agachada como se a pér ovos ou a chocé-los, Era castanha nas ases, menos castanha para o pescogo, ¢ a crista @ o bico tinham a cor de um bico e de uma crista, Nas costas levara um corte a toda a volta para se formar uma tampa meterem coisas dentro, porque era uma galinha de barro, Minha tia, que se tinha afastado, veio ver, estava a minha me a pagar depois de discutir. E perguntou quanto custeva. A mulher disse que vinte mil réis, minha tia comegou aos berros, que aquilo s6 se o fosse roubar, e a mulher vendeu-Ihe uma outra igual por sete mil e quinhentos. Minha mie ai néo se conformou, porque tinha regateado mas sé conseguira baixar para doze e duzentos. A mulher disse: = Fol por ser a Ultima, minha senhora. Minha tia confrontou as duas galinhas, que eram iguais, achando que a de minha mae era diferente, = 86 se foi por ser mais cara — disse minha mae com a ironia que pode Minha tia aqui voltou a erguer a voz. Nio se via que era diferente? N3o se via que tinha 0 bico mais perfeito? E 0 rabo? = Isto € Id rabo que se compare? E tais coisas disse e tantas, com gente jé a chegar-se, que minha mae pds fim ao sermao, por no gostar de trovoadas: ~ Mas se gostas mais desta, levara, mulher. Foi o que ela quis ouvir, Trocou logo as galinhas, mas ainda disse: = Mas sempre te digo que a minha é de dura, basta bater-lhe assim (bateu) para se ver que é mais forte. = Entdo fica com ela outra vez ~ disse minha mi = Ndo, no. Trafulhices, no. Esté trocada, esté trocada, Meu tio estava a assistir mas néo dizia nada, porque minha tia dizia tudo por ele e, se dissesse alguma coisa de sua invengdo, minha tia engolia-o. Meu pai também estava a assistir, mas também no dizia nade, por entender que aquilo era assunto de mulheres. Acabadas as compras, minha mae voltou logo com o meu paina carroga do Anténio Capador, que tinha ido vender um porco. Mas @ minha tia ficava ainda com o meu tio, porque precisavam de ir visitar a D. Aurélia, que era uma pessoa importante e merecia por isso uma visita para se ser também um pouco importante, E como ficavam e 56 voltavam na camioneta da carreira, a minha tia pediu a minha mae que Ihe trouxesse a galinha, para n8o andar com ela o dia inteiro num bracado, que até se podia partir. De modo que disse: ~Tu podias levar-me a galinha, para no andar com ela o dia inteiro num bragado, que até se pode partir. Minha mée trouxe, pois, as duas galinhas na carroga do Anténio Capador, e a minha tia ficou. € quando & tarde ela voltou da feira, foi logo buscar @ sua. Minha me jé a tinha ali, embrulhada e tudo como minha tia a deixara, e deu-Iha, Mas minha tia olhou a galinha de minha mae, que jé estava exposta no aparador, @ 2o dar meia volta, quando se ia embora, no resistu: ~Tu trocaste mas foi as galinhas. Disse isto de costas, mas com firmeza, como quem se atira de cabega. E minha mae pasmou, de maos erguidas 20 céu = Louvado e adorado seja o Santissimo Nome de Jesus! Entdo eu toquei I na gelinhal Entdo a galinha no est ainda conforme tu ma entregaste? Ento tu no vés ainda o papel dobrado? Entlo no estards a ver oné do fio... Estavam sé as duas e puderam desabafer. - Trocaste, trocaste, Mas fica ld com a galinha, que no fico mais pobre por isso. Minha mi cheia de compreensio cist e de horror as trovoadas, ainda pensou em destrocar tudo outra vez. Mas aquilo jé ia to para além do que Cristo previra, que bateu o pé = Pois fico com ela, ndo a quisesses trocar. Sé tens gosto naquilo que é dos outros. E daqui para a frente, disseram tudo. Minha tia saiu num vendaval, desceu as escadas ainda aos berros, de modo que minha me teve de vir & janela dizer mais coisas. Minha tia foi indo pela rua adiante, sempre aos gritos, e de vez em quando parave, voltando-se para trés para dizer uma ou outra coisa em especial a minha mie, que estava a janela ¢ Ihe ia também respondendo como podia. Até que a rua acabou e minha mae fechou a janela. E af comegou o meu pai, quando Ié longe minha tie Ihe passou ao pé e meu pai Ihe perguntou o que havia e ela Ihe disse 0 que havia, chamando mentirosa a minha me. Meu pai ent disse: = Mentirosa é vocé E comecou a apresentar-Ihe os factos comprovativos do que afirmara e que ja tinha decerto enaipados de cutras ocasides, porgue nfo se engasgava = Mentirosa é vocé e sempre o foi. Jé quando voc contou a historia do Corneta, andou a dizer que... ~ Mentiroso é vocé, como sua mulher. Uma vez na padaria a sua mulher disse que... E dai foram recuando no tempo a procura das mentiras um do outro. Estavam jé chegando a infancia, quando apareceu 0 meu tio. Minha tia passou-the a palavra e comecou ele. Mas como a coisa agora era entre homens, meu tio cerrou os punhos e disse ~ Eu mato-o, eu mato-o, Meu pai, que ja devia estar cansado, ficou quieto, a espera que ele 0 matasse, ¢ como ficou quieto, meu tio recuou uns passos, tapou os olhos com um brago e disse outra vez = Foge da minha vista que eu mato-te, Entretanto olhou em volta a espera que o segurassem. E quando calculou que tudo estava a postos para o segurarem, ergueu outra vez os punhos @ avancou para 0 meu pai. Finalmente seguraram-no, e meu tio estrebuchou @ querer libertarse para matar 0 meu pai. Mas ld 0 foram arrastando, enquanto o meu tio se voltava ainda para trés, escabujando de raiva e de ameaga. E chegade a coisa @ este ponto, era a altura de se formarem partidos, como sempre que hé uma razdo para se formarem partidos. Velhos édios, invejas e cidimes vieram ao de cima para um ajuste de contas. No domingo seguinte, jé com vinho a empurrar, houve mesmo facadas. O Comets tinha com o Catrelha uma questo de aguas de hd séculos e aproveitou, Os partidos subdividiram-se assim em grupos pelo Catrelha e pelo Cometa, Foi quando 0 Béia, que no gramava o Capador desde @ historia de um porco mal capado, adiantou na taberna que as galinhas possivelmente tinham sido trocadas por ele, que ndo gramava o meu tio desde uma histéria de mordomia do Martir S. Sebastiéo. © Carapanta ouviu € foi dizer. Num outro domingo, ¢ jé entusiasmado de briol, 0 Capador pediu satisfagdes. Armou-se ent&o um arraial cujo balanco deu trés feridos com facadas, dois & paulada e um morte com um tiro de cacadeira. E desde ent toda a aldeia ficou em pé de guerra, Metade da populago foi metida na cadei , mas depois de muitos interrogatérios ndo se passou daquilo que jé se sabia © era quem tinha ficado ferido e quem tinha ficado morto. De modo que se reconstituiu a populacso com a libertago dos presos. E dado isso, recomecou-se outra vez. No domingo seguinte, melhorou-se o saldo com dois mortos e vinte feridos. Veio a guarda ¢ levou a outra metade da populacdo com um ou outro elemento da primeira metade. Mas no se melhorando o resultado das investigagdes, uns dois ou tr meses depois voltou tudo para casa, até porque a metade que ficara livre ia continuando o trabalho, com um saldo, aliés pouco brilhante, de cinco feridos e um moribundo. Trocadas as metades e recomecadas as investigacdes sem resultado, houve quem propusesse meter tudo na cadeia. Mas havia 0 problema dos velhos e das criancas, que precisavam dos outros e talvez estivessem inocentes, € veio tudo outra vez para a rua. Mas agora, aos domingos, 2 aldeia ficava coalhada de guardas. A principio deu resultado, porque nas discusses no se passou de palavras. Até que certs vez uma pedrada andnima acertou em chel nna cabeca de um agente e logo se armou uma sarrabulhada enorme, com gritos, gente a fugir e tiroteio para o ar. E como a dada altura as pedradas recomesaram, 0 tiroteio recomegou também, mas mais baixo. O saldo dessa vez foi francamente positivo, com cinco mortos e vinte feridos. E como a luta continuou, alguns habitantes, que no podiam estar & espera de que acabasse, foram morrendo de morte natural. € como havia intervalos na luta com a autoridade, alguns habitantes aproveitavam pare irem entre si acertando contas em atraso. Verificada a certa altura a insuficigncie da guarda, veio a tropa. Primeiro a infantaria, depois @ cavalaria, esperando-se depois a artilharia. Reduzida @ populaco 2 metade, também as habitacdes, talvez por serem desnecessarias, ficaram reduzidas a metade. E quando finalmente os combatentes rarearam ou sucumbiram a uma imprevista cobardia, a luta cessou. E acabada luta, recomecou a paz. No meu balango pessoal verifiquei a morte de meu tio com trés facadas a uma esquina e 2 morte natural de meu pai, que aliés, cumprida a sua miso no barulho, se reformara logo a seguir. E alguns anos depois de se fazerem as pazes, morreu minha Como eu era o linico herdeiro, dispus-me @ tomar posse do que era meu. Mas por isso mesmo, a primeira coisa que entendi necesséria foi arrumar a cacaria com que minha mae fora adornando a casa. Antes de mais, atireieme aos santos de toda ¢ hierarquia celeste, porque sou ateu, Havia-os em estampas, em louca, em metal. Dependurados em molduras, metidos em redomas, com ou sem lamparina. € em livros de missa, folha sim, folha no. E, escacada @ santaria, dispus-me a atacar o resto, Irritavam-me sobretudo os vasinhos que se multiplicavam por todo o lado e umas andorinhas em louca pregadas na parede da sala de visitas. € estava eu nnisto quando chegou a minha tia, Ela fore ao enterro de minha mae, fora Ié a casa dar os sentimentos, abragando-se-me aos gritos antes de eu ter tempo de uma reacgo apropriada. Entrada que foi agora, estava eu na tarefa da limpeza, sentourse compungida e disse: + Olha, filho, o que Id vai la vai e s6 Deus sabe o que tenho chorado e rezado pela tua mle. Calou-se. Eu, como néo tinha nada a objectar, também néo disse nada. E minha tia, aproveitando o siléncio, disse: Ail. Eu continuei calado, por nao haver raz8o para falar. Mas qualquer coisa em mim se fora preparando para o que viria, porque quando veio no me surpreendi. E 0 que veio foi = Oha, meu filho. Minto, Antes disso, minha tia disse ainda: Ail. E sé ento, sim: = Olha, meu filho, eu tinha uma coisa a pei ,, enfim, como foi 0 caso da galinha, A tua mae, que Deus tenha. Interrompi-a ~ Quer 2 galinha? Leve-a Ela teve ainda um claro de célera: = No 2 quero! Ndo quero o que é teu! Quero sd, s6 0 que é meu. E amansou. Baixou o tom: = Queria s6 que ma trocasses, Trago aqui esta, E tirou-a de um cabaz, pondo-a ao pé da outra no aparador. Eu sorri ~Leve as dues = Nao quero o que é teu! - disse ela outra vez, alcando 0 tom. Sorri outra vez também: ~ Deixe entdo essa e leve 2 outra, Ela agradeceu, ja sossegada, de olhos baixos ¢ virtuosos. Abri a tampa da galinha — estava cheia de estampas, carros de linha, agulhas, amostras de fazenda. E comecei a tirar. Minha tia, ento, de sibito, deitou as mos ao ventre, ergueu pare mim uns olhos necessitados. = Ao fundo do corredor ~ disse eu, - Veja se hé papel. Ela foi, eu continuei o despejo. No fundo da galinha havia uma estampa de Santa Barbara. Achei piada, deixei ficar. Especializada em trovoadas, a santa, té-la-ia posto ali a minha mie? Deixei-a ficar. Minha tia regressou, mais reconciliada com a vida. Ful dentro procurar papel para o embrulho, mas ela interrompeu-me: = Nao é preciso, Mal eu virara costas, empalmara logo a galinha, metera-a no cesto. Abragou-me ¢ chorou. No percebi porqué ~ chorou. Acompanhei-a & porta, regressei & sala, Ento, com um ddio reforsado, fui-me & galinha de martelo no ar. Os cacos voaram pare todo o lado. Jé no havia mais galinha, mas eu continuava a martelar, Até que, enfim, parei. E s6 ent&o é que vi: entre a cacaria que se espalhara em volta, mesmo no meio dos destrocos, estava a estampa de Santa Bérbara, Vergilio Ferreira, Contos, Bertrand "A GALINHA” de Vergilio Ferreira, in Contos ‘TESTE DE COMPREENSAO DO ORAL. ica atentamente o excerto do conto “A galinha”, de Vergilio Ferreira. 4) De seguida assinale com V (verdadeiro) on F (falso) as seguintes afirmagées: 8) Os pais e os tios do narrador apanharam um taxi e foram a feira b) Amie ea tia do narrador compraram uma galinha de barro pelo mesmo preco. ©) Atia discuti acesamente com a mae do narrador, mas esta pds fim a diseussio, porque niio gostava de conflitos. 4) O tio assistin a discussio sem interferir ©) Atia do narrador permaneceu na vila porque pretendia fazer mais compras. 1) Quando regressou, a tia acusou a mae de ter trocado as galinhas. 8) O pai do narrador agiu em defesa da esposa. h) O tio do narrador manteve-se tranquilo e conseguiu acalmar os animos. 2) Corrija as afirmagées falsas. "A GALINHA” de Vergilio Ferreira, in Contos ‘As categorias da narrativa © texto que acabaste de ler é um texto narrative, ja que apresenta uma aceao, que se desenrola num determinado espago e tempo, e na qual intervém personagens. Indica: As personagens — Oespaco em que se movimentam ~ O tempo em que decorre a acgio - As principais aeedes: a1. Aidad 2. Acomprada ; 3. As discussdes entre a e ,a e Um texto narrativo apresenta também um narrador, isto é, uma entidade que narra, que conta a histéria. Se o narrador narra a historia: # na 1® pessoa (eu), dizemos que ¢ participante; + na3* pessoa (ele), é no participante. Classifica agora 0 narrador desta histéria: 0 Um texto narrativo apresenta momentos de narracao ou narrativos ¢ momentos de descricfio on descritives. Como ja aprendeste 0 que é a descrigho, copia agora do texto um exemplo. Anarracio é 0 relato dos acontecimentos, isto é, das acgdes. Copia também um exemplo. Para narrar utilizam-se sobretudo os verbos de acgiio ou movimento. Escreve agora os verbos que esto presentes no exemplo que copiaste e diz em que tempo e modo verbal se encontram (podes consultar a ficha informativa dos verbos). Areprodugio das falas das personagens podem ser feitas em: + discurso direto ~ se o narrador reproduz exactamente o que disseram, = antecedendo, ou seguindo a fala, de um verbo come dizer, perguntar, afirmar, responder, declarar, etc.; - fazendo preceder as falas de sinais graficos como dois pontos, aspas, travessfio, ou mesmo de nmdanga de linha. Exemplo (copia do texto) + on discurso indireto — se 0 narrador integra a fala da personagem no sen discurso, fazendo alteragdes a nivel das pessoas, tempos e modos verbais, etc.; Exemplo (copia do texto) Os eseritores servem-se se de palavras, de frases, como todos nés, mas gostam de dizer aquilo que é banal de forma original, criando assim um mundo de fantasia que desperta em nés, leitores, imagens das coisas a que se referem. E esse o seu segredo! A sua originalidade leva - nos a dizer que tém um estilo préprio. Para criar um estilo, os escritores servem-se dos mais variados meios -os recursos estilisticos, de forma a tornarem a frase mais sugestiva, mais expressiva, mais musical. Numa das tiltimas aulas j4 aprendeste uma figura de estilo como a comparacio. Copia do texto um exemplo: Hoje vais conhecer outras FIGURAS DE ESTILO, como a repetigao ea metifora A repeti¢ao consiste, como é evidente, em repetir palavras, expressdes ou frases para realcar uma ideia. Se reparares, 0 escritor gosta muito desta figura de estilo ¢ com ela consegue captar a nossa atencio, fazendo com que mais facilmente memorizemos a historia. E como se estivesse a “dar mtisica aos nossos ouvidos”. Copia um exemplo de uma frase do texto que surja repetida (parcial ou totalmente) no texto. Agora, repara na seguinte frase: “E tais coisas disse € tantas, com gente jé a chegar-se, que minha méie pés fim ao sermao, por ndo gostar ce trovoadas ...” Procura no dicionario o significado da palavra a negrito. Copia. Achas que o narrador utilizou a palavra “trovoadas” com esse sentido? Se no concordas, indica o verdadeiro sentido da palavra na frase acima transcrita. A palavra “trovoadas “ é aqui empregue com 0 sentido de _ entre estas e as trovoadas existem semelhangas, ou seja, ambas provocam muitas pessoas fogem delas por A esta figura de estilo damos 0 nome de METAFORA. Uma metifora é uma figura de estilo que consiste em empregar una palavra com um sentido diferente do que é habitual, por ela apresentar semelhangas com a realidade que queremos representar. Metiforas empregamos nés todos os dias, mas nao somos muito originais, porque nao somos 0s tinicos Completa as frases em que sio empregues metéforas banais: 1. O Joao é um coragao de manteiga, pois é muito _ Por favor, anda com pés de veludo para Quem tem macaquinhos no sétao esta sempre a ep ‘Vou fazer um pé-de-meia para — bates com o nariz na porta. Nao percebes nada do assunto, és um eabeca de swan Nao me apetece eserever mais, Vai chatearo

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