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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

BRUNA ANDRADE IRINEU

A POLÍTICA PÚBLICA LGBT NO BRASIL (2003-2014):


HOMOFOBIA CORDIAL E HOMONACIONALISMO NAS TRAMAS DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL

RIO DE JANEIRO
2016
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

BRUNA ANDRADE IRINEU

A POLÍTICA PÚBLICA LGBT NO BRASIL (2003-2014):


HOMOFOBIA CORDIAL E HOMONACIONALISMO NAS TRAMAS DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social, Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do
título de Doutora em Serviço Social.

Orientadora: Profª. Drª Maria das Dores Campos


Machado

RIO DE JANEIRO
2016
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Nome: IRINEU, Bruna Andrade


Título: A política pública LGBT no Brasil (2003-2014): homofobia cordial e
homonacionalismo nas tramas da participação social

Tese apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro para


obtenção do título de Doutora em Serviço Social

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria das Dores C. Machado (ESS/UFRJ)
Orientadora e Presidenta da Banca

_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Myriam M. Lins de Barros (ESS/UFRJ)

_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Andrea Moraes Alves (ESS/UFRJ)

_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme S. de Almeida (FSS/UERJ)
Membro Externo
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marco José Duarte (FSS/UERJ)
Membro Externo
_______________________________________________________________________
Profª Drª. Glaucia Lélis Alves (ESS/UFRJ) – Suplente

_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Murilo Peixoto (NPPDH/UFRJ) – Suplente
3
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Dedico este trabalho a “minha namor”,


Mariana Rodrigues, pela inspiração da luta
presente. E a “minha irmona”, Ayrton Amaral,
pela esperança de um futuro em que se possa
brincar de ser, sem injúrias e interpelações de
ódio.
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AGRADECIMENTOS

Agradecer é um ritual necessário quando se reconhece que não se faz uma jornada
sozinha. Compartilhei muitas coisas com tantas pessoas e vivi várias histórias nesses cinco
anos de doutorado. Reconheci novos amigos, fortaleci velhas parcerias, perdi algumas
pessoas... meu avô Adélio Amaral, por motivos de saúde, e o querido amigo Lucas Fortuna,
que a homofobia nos roubou. Agradeço, não por praxe, mas porque existir e sobreviver em
tempos de barbárie é um ato de resistência compartilhada.
Há dois anos minha vida ganhou leveza e alegria, e isso só foi possível porque
encontrei minha família felina: Gennet, Wittig, CássiaBel, Cinza, Siá, Lari, Maria e Audroca
(cachorro-meio-gato), que me ensinam todos os dias o que é amor e liberdade, entre carinhos,
peripécias e ronronados.
A Mariana Rodrigues, pelos sonhos e projetos de vida divididos. Por me incentivar a
ser melhor para o mundo. Pelo amor, carinho e dedicação à nossa história. E por cada
momento que não me deixou desistir e que se empenhou em fazer meus dias melhores.
A minha mãe Marilda, meu irmão Ayrton, meu amigo-padrasto Anderson, minha
sogra Vanessa, minhas avós Donizeth e Elídia, pelo cuidado e suportes diversos nesses cinco
anos.
A Elaine, Josiley, Renatinha, Vinicius, Simone e José Francisco pela amizade
gratuita e apoio irredutível. Meu carinho também as amigues do Colcha de Retalhos e do Ser-
Tão/UFG, porque meu tempo de aprendizado em Goiânia palpita e pulsa diariamente em
mim.
A Izabel, Flávia, Moreno, Elô, Léo, Jandira, Bortolini, Reduzino, Joilson e Pedro,
que, em momentos diferentes, na Lapa ou em qualquer outro lugar, me fizeram me sentir
acolhida em solo carioca durante meu período de ponte aérea Rio-Palmas.
Às companheiras de militância Brendhiva, Karol Chaves, Marina Galvão, Dani
Braga, Alexandre Araripe, Cleide Diamantino e Fran Scopetec, com quem divido a luta
cotidiana por um Tocantins mais justo socialmente.
A Marcos, Milena, Helys, Pedro Thiago, Wanessa, Brendhon, João Vitor, Danuta,
Marcela e Jean, que fizeram do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade,
Corporalidades e Direitos um lugar de aprendizados coletivos e de muito afeto.
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Ao colegiado de curso de Serviço Social da UFT, especialmente a Rose Santos,


Sabrina Celestino e Célia Albieiro. As colegas de outros colegiados da UFT Damião Rocha,
Rubenilson Araújo, Rafael Noleto e Karina Souza pelas parcerias profissionais e pessoais.
Às companheiras da “sexualidade no Serviço Social” Kleber Navas, Guilherme
Ferreira, Tibério Oliveira, Jéssika Ribeiro, Luiza Carla, Alan Loiola, Simone Brandão, Marco
Duarte e Guilherme Almeida, pelas inúmeras trocas, conselhos, sugestões e palavras de força,
como: “Fica, não vai para outra área. Você é importante aqui!”.
Às companheiras da coordenação GTP da ABEPSS Fernanda Queiroz, Magali
Almeida, Val Peixoto, Mirla Cisne, Milena Barroso, Bete Pinto, Glaucia Russo e Graça
Gomes pelos diálogos e compromisso com a construção do campo de gênero, raça/etnia,
sexualidades e geração no Serviço Social.
A Caio Varella, Mitchelle Meira, Vinicius Alves, Janaína Lima, Leandro Colling,
Eduardo Santarello e Roselaine Dias, que encontrei, abracei e ri durante tantas vezes no
campo.
Apresentei versões diversas do meu trabalho em mesas de seminários e GT’s de
eventos como ABEH, Fazendo Gênero, RBA, Desfazendo Gênero, CBAS, ENPESS, Corpo e
Gênero, Enlaçando Sexualidades, entre outros. Agradeço aqui as/aos colegas que se
colocaram em diálogo comigo e contribuíram com seus comentários e sugestões: Felipe
Fernandes, Suely Messeder, Anna Paula Vencato, Anelise Fróes, Camilo Braz, Moisés Lopes,
Vanessa Leite, Luma Nogueira, Sam Bourcier, Marlene Teixeira e Regina Ávila.
Às colegas de turma do doutorado, especialmente a Laura Machado, Andrea Dalton e
Suenya Santos, pelas tardes de debate.
A Andrea Moraes, Guilherme Almeida e Marco Duarte agradeço as sugestões feitas
na ocasião da qualificação. E às professoras/es que aceitaram compor a banca da defesa, como
titulares e suplentes, um agradecimento especial: Myriam Lins de Barros, Andrea Moraes,
Guilherme Almeida, Marco Duarte, Murilo Peixoto e Glaucia Lélis.
A minha orientadora, Maria das Dores Campos Machado, pelo respeito e
compreensão no processo de orientação.
A Priscila Martins, pela revisão cuidadosa em um prazo tão exíguo, e pela força
nessa reta final.
As minhas e meus alunas/os por não me deixarem esquecer o quanto a universidade
tem potência de engajamento e transformação social.
E, por último, agradeço as/os militantes, gestores/as públicos e pesquisadoras/es que
têm se dedicado a desenhar uma política pública efetiva para população LGBT. Meu trabalho
7

não teria sentido se não reconhecesse que, independentemente de orçamento ou baixa


institucionalização desta política, há pessoas comprometidas em desenvolver ações sérias de
enfrentamento ao sexismo e à LGBTfobia.
Que as forças da natureza e as energias superiores, seja qual crença possuamos ou
não, emanem sentidos democráticos e éticos para a construção de uma sociabilidade mais
justa socialmente. Muito obrigada e Axé!
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Acho que sempre deveria haver pessoas


autônomas que, por mais quixotesco que
pareça, tentam arrancar mais algumas cabeças,
tentando acabar com a alucinação, a falsidade
e a demagogia, tornando as coisas mais
complicadas, pois existe um impulso
inevitável em tornar as coisas mais simples.
Mas, para mim, a coisa mais terrível seria
sentir que concordo com as coisas que já disse
e escrevi - isso me tornaria ainda mais
desconfortável, pois significaria que parei de
pensar.
(Susan Sontag)

No desejo de que todos/as nós abramos as


nossas mentes e corações para pensar e
repensar, criando novas visões, eu celebro uma
educação que possibilite transgressões – um
movimento contra e além das fronteiras. É esse
movimento que faz da educação uma prática
de liberdade.
(bell hooks)
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RESUMO

IRINEU, Bruna Andrade. A política pública LGBT no Brasil (2003-2014): homofobia


cordial e homonacionalismo nas tramas da participação social. 2016. 277f. Tese
(Doutorado em Serviço Social). Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Esta tese analisa processos que constituíram políticas públicas para lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT) durante as duas gestões do governo Lula (2003-2010) e a
primeira gestão do governo Dilma (2011-2014). Neste sentido, são examinadas a formulação
do Programa Brasil sem Homofobia, bem como a criação da Coordenação Geral de Promoção
dos Direitos Humanos LGBT’s e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT.
O estudo traça um panorama da inserção dos direitos sexuais na pauta global dos direitos
humanos e problematiza concepções de cidadania e política social em tempos de
neoliberalismo. Para compreender a dinâmica entre Estado e Sociedade Civil na arena de
disputas pelos direitos destes segmentos sociais, combino diferentes técnicas de coleta de
dados: a) observação participante nas reuniões do Conselho Nacional (2011-2013) e em
eventos da agenda do movimento; b) análise documental de atas, moções, resoluções e notas
públicas produzidas pela entidade, bem como documentos produzidos pela Coordenação
LGBT e relatos de conselheiros/as do CNCD-LGBT nas redes sociais; c) entrevistas com
ativistas não vinculados a redes de militância, mas que têm representação no conselho; d)
entrevistas com gestoras/es que atuaram nas políticas públicas durante o período recortado na
pesquisa; e) dados secundários de outras pesquisas que dedicaram-se a mapear o perfil de
conselheiras/os do CNCD-LGBT. Na discussão teórica, revejo o projeto de nação brasileiro
para demonstrar como o ideal da branquitude e masculinidade delimitou a esfera pública no
campo das lutas por direitos sexuais. Os estudos feministas e os conceitos de “reconhecimento
com justiça”, “redistribuição socioeconômica” e “representação com paridade de
participação” me ajudam na reflexão sobre as reivindicações feministas e LGBT’s no Brasil.
Analiso da história do movimento homossexual do final da década de 1970 até sua
configuração atual, e destaco sua relação com o PT, sinalizando, ainda, para a relação de
diálogo prioritário entre a gestão Lula e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) na formulação do Brasil sem Homofobia. A
realização da I Conferência Nacional de Políticas Públicas LGBT, a publicação do I Plano de
Promoção dos Direitos Humanos LGBT e do decreto do Conselho Nacional LGBT
caracterizam o governo Lula como uma gestão “participativa” e “comprometida” com as
pautas deste segmento, segundo o discurso hegemônico no movimento social. Já o governo
Dilma é avaliado de forma negativa, devido ao veto ao Kit Escola sem Homofobia e a não
publicação do II Plano LGBT, ainda que durante a sua gestão tenha ocorrido a II Conferência
Nacional e a formulação do Sistema Nacional de Enfrentamento a Violência contra LGBT.
Embora interprete o Conselho como lócus de maior pluralidade de sujeitos coletivos na
formulação de políticas públicas para o segmento em questão, critico a reduzida dotação
orçamentária e a baixa institucionalização das iniciativas governamentais neste campo. O
conceito de homonacionalismo é retomado no final deste trabalho para explicar as
dificuldades enfrentadas pelas minorias sexuais na luta pela ampliação da cidadania. A
“homofobia cordial”, ou o “pinkwashing à brasileira”, são apresentados como dispositivos do
neoliberalismo para incidir sobre nossas vidas.

Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Direitos; Políticas Públicas; Movimento LGBT.


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ABSTRACT

IRINEU, Bruna Andrade. LGBT public policy in Brazil (2003-2014): cordial homophobia
and homonacionalism in the plots off social participation. 2016. 277f. Thesis (Doctorate in
Social Work). Pos Graduate Program in Social Work. School of Social Work at the Federal
University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Abstract: This thesis analyzes the processes which constitute public policies for lesbian, gay,
bisexual and transgender (LGBT) during the two terms of Lula's government (2002-2010) and
the first government management Dilma (2011-2014). In this senseare examined the
formulation of the Brazil without Homophobia Program, as well as the creation of the General
Coordination of Human Rights LGBT's Promotion and the National Concil of Combat
Against LGBT Discrimination . The study provides an overview of the inclusion of sexual
rights on the global agenda of human rights and discusses the concepts of citizenship and
social policy in neoliberalism times. In order to understand the dynamics between the State
and Civil Society in the arena disputes the rights of these social segments, do combine
different data collection techniques: a) participant observation at meetings of the National
Council (2011-2013) and calendar events of social movement; b) document analysis of
minutes, motions, resolutions and public notes produced by the entity, as well as documents
produced by the LGBT Coordination and counselors reports of the CNCD-LGBT in social
networks; c) interviews with activists not linked to militant networks but have representation
on the board; d) interviews with managers who worked in public policy during the period cut
in research; e) secondary data from other research dedicated to map the profile of the CNCD-
LGBT’ counselors. In the theoretical discussion, I review the Brazilian national project to
demonstrate how the ideal of whiteness and masculinity narrowed the public sphere in the
field of struggles for sexual rights. Feminist studies and the concepts of "recognition with
justice", "socio-economic redistribution" and "representation with parity of participation" help
me to reflect on feminist and LGBT's demands in Brazil. I analyze the history of the gay
movement of the late 1970s to its current configuration, and highlight their relationship with
PT, pointing also to the priority dialogue relationship between the Lula administration and the
Brazilian Association of Lesbian, Gay, Bisexual, transvestites and Transsexuals (ABGLT) in
Brazil without Homophobia formulation. The realization of the First National Conference on
Public LGBT policies, the publication of the First Promotion Plan on Human Rights LGBT
and the National LGBT Council decree characterize the Lula government as a "participatory"
and "committed" management with the agendas of this segment, according to the hegemonic
discourse in the social movement. Already the Dilma government is evaluated negatively,
because of the veto to School without Homophobia’s Kit and the non-publication of the II
LGBT Plan, although during his tenure has been the II Nationial Conference and the
formulation of the National Combat System of Violence against LGBT. Although interpreting
the Council as a place of greater plurality of collective subjects in the formulation of public
policy for the sector in question, criticize the reduced budget allocation and lower
institutionalization of government initiatives in this field. The concept of homonacionalismo
is taken at the end of this paper to explain the difficulties faced by sexual minorities in the
struggle for expansion of citizenship. The "cordial homophobia", or "pinkwashing as the
Brazilian", are presented as neoliberalism devices to influence our lives.

Keywords: Gender; Sexuality; rights; Public policy; LGBT movement.


11

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Presidente Lula na I Conferência Nacional de Políticas 103


Públicas LGBT
Figura 2 – Toni Reis (presidente da ABGLT) entrega bandeira do arco- 137
íris a Lula em evento com lideranças dos movimentos sociais.
Figura 3 – Material informativo sobre 17 de maio - Dia Nacional de 146
Combate a Homofobia, elaborado pela SDH.
Figura 4 – Ativistas manifestam contra postura do governo Dilma na II 158
Conferência Nacional
Figura 5 – Convocação da população LGBT para posse de Dilma Roussef 163
Figura 6 – Fotografia oficial da posse da primeira gestão do Conselho 175
Nacional de Combate à Discriminação LGBT – CNCD/LGBT
Figura 7 – Mapa de distribuição das/os conselheiras/os do CNCD-LGBT 179
por região geográfica, conforme cidade de residência
Figura 8 – Circulação das entidades no plenário 186
Figura 9 – Pactuações e aproximações entre as entidades da sociedade 187
Civil
Figura 10 – Cartazes das edições da Marcha Contra Homofobia 201
Figura 11 – Manifestações contrárias a Bolsonaro e Dilma 204
Figura 12 – Encontro entre as manifestações do MST e do movimento 206
LGBT em Brasília
Figura 13 – #LGBTcomDilma nas eleições de 2014 229
Gráfico 1 - Renda familiar por segmento no CNCD-LGBT 178
12

LISTA DE QUADROS

Quadro A – Conselheiros/as por identidade sexual autoatribuída 173

Quadro B – Pauta Prioritária por Reunião Ordinária e Extraordinária 182


(2011)
Quadro C – Pauta Prioritária por Reunião Ordinária e Extraordinária 183
(2012-2013)
13

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABEH Associação Brasileira de Estudos da Homocultura


ABEPSS Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social
ABIA Associação Brasileira Interdisciplinar em Aids
ABGLT Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros
ABL Articulação Brasileira de Lésbicas
ABRAGAY Associação Brasileira de Gays
ABHT Associação Brasileira de Homens Trans
ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF Arguição de descumprimento de preceito fundamental
AGU Advocacia Geral da União
AI Ato Institucional
AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
ALCA Área de Livre Comércio da America
APLOGLBT Associação da Parada do Orgulho LGBT
ANTRA Articulação Nacional de Transgêneros
ARTGAY Articulação de Gays
ARTGAY JOVEM Articulação de Gays Jovens
ASJUFE Associação dos Juízes Federais do Brasil
BID Banco Interamericano para o Desenvolvimento
BSH Programa Brasil Sem Homofobia
CADS Coordenadoria de Assuntos para Diversidade Sexual
CBAS Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais
CDH Conselho de Direitos Humanos da ONU
CEDAW Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher
CEPAC Centro Paranaense de Cidadania
CEPAL Comissão Econômica para America Latina e Caribe
CFESS Conselho Federal de Serviço Social
CFL Coletivo de Feministas Lésbicas
CFM Conselho Federal de Medicina
14

CFP Conselho Federal de Psicologia


CGDH Coordenação Geral de Direitos Humanos
CID Código Internacional de Doenças
CLAM Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos
Humanos
CMP Central de Movimentos Populares
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNBB Conferência Nacional dos Bispos
CNCD Conselho Nacional de Combate à Discriminação
CNDM Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CNPIR Conselho Nacional de promoção da Igualdade Racial
CNTE Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
CORSA Grupo Cidadania, orgulho, Respeito, Solidariedade e
Amor
CRD Centro de Referência da Diversidade
CRDHCH Centro de Referência em Direitos Humanos e Combate a
Homofobia
CS Convergência Socialista
CST Corrente Socialista dos Trabalhadores
CQC Programa Custe o Que Custar
CUT Central Única dos Trabalhadores
DDH Disque Defesa Homossexual
DEM Partido dos Democratas
DF Distrito Federal
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
EBGLT Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros
EBHO Encontro Brasileiro de Homossexuais
ECOS Comunicação em Sexualidade
ENPESS Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social
ENTLAIDS Encontro Nacional de Travestis e Transexuais
ENUDS Encontro Nacional Universitário pela Diversidade Sexual
EUA Estados Unidos da America
FHC Fernando Henrique Cardoso
FMI Fundo Monetário Internacional
15

Fonges Fórum Nacional de Gestores e Gestoras LGBT


FPMCLGBT Frente parlamentar mista pela Cidadania LGBT
FPMLES Frente Parlamentar Mista pela Livre Expressão Sexual
GDE Gênero e Diversidade na Escola
GDS Gênero e Diversidade Sexual
GGB Grupo Gay da Bahia
GLBT Gays, lésbicas, bissexuais e transexuais
GLS Gays, lésbicas e simpatizantes
GT Grupo de Trabalho
GTP Grupo Temático de Pesquisa
GUDDS Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual
HIV Vírus da imunodeficiência humana
HSH Homens que fazem sexo com homens
IBASE Instituto Brasileiro de Analises Sociais e Econômicas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRAT Instituto Brasileiro de Transmasculinidades
ILGA Associação Internacional de gays e Lésbicas
INESC Instituto de Estudos Socioeconômicos
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social
IPEA Instituto de Pesquisa Aplicada
LBL Liga Brasileira de Lésbicas
LGBT Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
LGBTTT Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais,
transgênero
LDO Lei de Diretrizes orçamentárias
LOA Lei Orçamentária Anual
MDS Ministério de Desenvolvimento Social
MEC Ministério da Educação
MinC Ministério da Cultura
MJ Ministério da Justiça
MPOG Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
MPS Ministério da Previdência Social
MRE Ministério das Relações Exteriores
MS Ministério da Saúde
16

MST Movimento dos Sem Terra


MTE Ministério do Trabalho e Emprego
NAHT Núcleo de Apoio a Homens Trans
NRDHCH Núcleo de Referência em Direitos Humanos e Combate a
Homofobia
ODM Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio
OEA Organização dos Estados Americanos
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PCR Parceria Civil Registrada
PDC Projeto de Decreto Legislativo
PDT Partido Democrático Trabalhista
PEN Partido Ecológico Nacional
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PFL Partido da Frente Liberal
PHS Partido Humanista da Solidariedade
PL Projeto de Lei
PLC Projeto de lei da Câmara
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
PNE Plano Nacional de Educação
PNLGBT Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POLOP Política Operária
PPA Plano Plurianual
PR Presidência da República
PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
PSB Partido Socialista Brasileiro
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSOL Partido Socialismo e Liberdade
PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
17

PRTB Partido Renovador Trabalhista Brasileiro


PSC Partido Social Cristão
PT Partido dos Trabalhadores
PV Partido Verde
RAADH Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos do
Mercosul
REDE AFRO LGBT Rede Nacional de Negras e Negros LGBT
RPU Revisão periódica Universal
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
Diversidade e Inclusão
SDH Secretaria de Direitos Humanos
SDH/PR Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República
SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos
SENALE Seminário Nacional de Lésbicas
SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SER-TÃO Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade
SIDA Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
SOMOS Grupo de Afirmação Homossexual
SPM Secretaria de Políticas para Mulheres
SPW Observatório de Sexualidade e Política
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
UE União Europeia
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFG Universidade Federal de Goiás
UFMT Universidade Federal do Mato Grosso
UFT Universidade Federal do Tocantins
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS
UNASUS Universidade Aberta do SUS
18

UNESCO Organização das Nações Unidas para a educação, a


ciência e a cultura
VPR Vanguarda Popular Revolucionária
19

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 21

PARTE I – GÊNERO, SEXUALIDADE E NAÇÃO 40


2. CAPÍTULO 1 - NACIONALISMOS SEXUAIS E DE GÊNERO NO 40
BRASIL: ESTADO, POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS
2.1 Estado, Nação, Nacionalismo e Estado-Nação: aportes preliminares 41
2.1.1 Brasil moderno e o projeto de nação 47
2.2 Cidadania e Política Social 51
2.3 Neoliberalismo e erosão do Estado-Nação 56
2.4 Direitos humanos: entre o formalismo do discurso e o “anseio ético” 60

3. CAPÍTULO 2 - GÊNERO E SEXUALIDADE NA PAUTA DAS LUTAS 69


SOCIAIS FEMINISTAS E LGBT
3.1 Pensamento e crítica feminista 71
3.2 Correlacionando sexualidade e gênero 83
3.3 Do Movimento Homossexual ao Movimento LGBT 90

PARTE II - AS POLÍTICAS PÚBLICAS LGBT NO GOVERNO LULA (2003- 102


2010)
4. CAPÍTULO 3 - “NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAÍS”, A 103
CONTRUÇÃO DE UMA AGENDA ANTI-HOMOFOBIA
4.1 O PT, suas metamorfoses e o Lulismo 105
4.2 A relação entre movimento LGBT e PT: precedentes ou atenuantes de uma 108
política pública específica?
4.3 Ambivalências e contradições da política de direitos humanos 112
4.4 “Brasil, um país de todos”: a formulação e a execução do Programa Brasil sem 117
Homofobia (BSH)
4.4.1 O caso dos centros de referência em direitos humanos e combate à 123
homofobia
4.5 A I Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT 126
(2008)
4.6 “Nunca se teve tanto e o que há é praticamente nada”: programas, planos, áreas 135
técnicas e órgãos gestores da política LGBT
4.7 Breve balanço das ações ministeriais na gestão Lula 145
4.8 Agenda anti-homofobia na política externa do governo Lula 148

PARTE III - AS POLÍTICAS PÚBLICAS LGBT NO GOVERNO DILMA 157


(2011-2014)
5. CAPÍTULO 4 - ENTRE O DISCURSO DE “NÃO PROPAGANDA DE 158
OPÇÃO SEXUAL” E A PROMESSA DE “COMBATE A VIOLENCIA”
5.1 Eleições Presidenciais de 2010: Dilma, presidenta! 160
5.2 Controle social e os Conselhos no cenário brasileiro 164
5.2.1 A criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT: o 168
histórico, a estrutura e os sujeitos
5.2.2 O perfil das/os conselheiras/os do CNCD-LGBT segundo a pesquisa “Projeto 175
Conselhos Nacionais: perfil e atuação dos conselheiros” do IPEA
20

5.2.3 Estrutura, eleições e funcionamento do CNCD-LGBT 179


5.2.4 A(s) dinâmica(s) do/no CNCD-LGBT 184
5.3 Em marcha contra as respostas conservadoras a agenda anti-homofobia 192
5.3.1 Veto ao Kit Escola sem Homofobia 194
5.3.2 Veto a Campanha de Prevenção à Aids, “Cura Gay” e Marco Feliciano na 197
CDH
5.3.3 As marchas nacionais contra homofobia: o Legislativo na “mira” das 201
estratégias
5.4 Continuidades e Descontinuidades na gestão federal do PT: ambiguidades na 207
arena política LGBT
5.4.1 A realização da II Conferência Nacional LGBT: monitoramento e expectativas 208
de um “novo” Plano
5.4.2 Do II Plano LGBT ao Sistema Nacional de Enfrentamento a Violência LGBT 214
5.4.3 “Não queremos mais falar sobre o kit, agora é o PLC” 218
5.5 O “tripé da cidadania”: êxito internacional ou política “para inglês ver”? 221
5.5.1 Em defesa do “tripé da cidadania”, mas qual cidadania? 223

CONSIDERAÇÕES FINAIS 231

REFERÊNCIAS 237

APÊNDICES 260
ANEXOS 271
21

1. INTRODUÇÃO

A tese aqui apresentada analisa as políticas públicas para os coletivos de Lésbicas


Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT) no Brasil a partir da correlação das categorias
gênero, sexualidade e política social. Realizar tal correlação, deve-se esclarecer, tornou-se um
grande desafio para a pesquisadora e exigiu que a mesma se percebesse também enquanto
sujeito que se reconhece no campo em que se propõe investigar. Dito isto, me interessa, neste
estudo, explicar como os atores políticos LGBT têm atuado na luta por reconhecimento de
direitos e na formulação de políticas públicas específicas, e os desdobramentos desta ação na
construção de novos campos de conhecimento e formas de intervenção política. Como recorte
temporal, estabeleci o período que vai de 2003 a 2014 e engloba as três primeiras gestões do
Partido dos Trabalhadores (PT) no governo federal. Assim, realizei um cuidadoso trabalho de
campo na I e II Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT; na I,
II e III Marcha Nacional de Combate à Homofobia; nas reuniões do ano de 2011 a 2013 do
Conselho Nacional de Combate da Discriminação LGBT – CNCD/LGBT, e em vários
eventos realizados pela Coordenação Geral de Promoção da Cidadania e Direitos LGBT,
ambos espaços vinculados à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República –
SDH/PR (que a partir de outubro de 2015 integra o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial
e dos Direitos Humanos).
Durante esta fase da investigação, fui direcionada pelas seguintes questões: a) Quais
concepções sobre gênero e sexualidade orientam as políticas públicas que vêm sendo
desenvolvidas em âmbito federal para a população LGBT?; b) De que forma sociedade civil e
Estado têm se relacionado no processo de formulação dessas políticas, especialmente junto à
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República?; c) Como tem se dado as ações
desenvolvidas pelo movimento LGBT no monitoramento das políticas públicas para esta
população no Brasil?; d) Qual a percepção sobre cidadania, democracia e direitos evidenciada
na política pública para o segmento em questão?; e) De qual maneira os discursos sobre
reconhecimento, redistribuição e visibilidade se articulam nos discursos produzidos e
reproduzidos no/pelo CNCD-LGBT?

1.1 Concepção de ciência e engajamento político


22

Neste trabalho, partilho de concepções teórico-metodológicas e políticas decorrentes


das Teorias Feministas, Estudos Gays e Lésbicos, Estudos Queer, Estudos Subalternos e
Teorias Pós-Coloniais. Também mantenho diálogo com a perspectiva marxista nas
formulações sobre Estado, sociedade civil, hegemonia e ideologia, e com as discussões
foucaultianas sobre sexualidade e biopolítica. A opção por estas vertentes teóricas se faz
possível quando adotada uma perspectiva de ciência que compreenda um saber situado e uma
práxis engajada com proposições anticapitalistas1, antirracistas2 e anticissexistas3.
Não partilho de compreensões que dissociam teoria e prática, e como sendo a
primeira elaborada pela academia e a segunda pelos movimentos sociais ou profissionais
atuantes no mercado de trabalho. Tampouco acredito que a produção de conhecimento
científico possa ser realizada dentro de parâmetros de neutralidade. Pensar a/o sujeito-
pesquisador/a em sua relação com seu objeto de pesquisa exige reconhecer a identidade entre
sujeito objeto nas ciências sociais e a implicação das visões sociais de mundo que constituem
a subjetividade dessa pesquisadora. Como convida Donna Haraway (1995, p.24), advogo por
“uma prática da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em
rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver”.
Deste modo, aciono a crítica de Raewyn Connell (2012) sobre as hierarquias
ocidentais na produção científica das teorias do norte global (termo utilizado para definir o
que advém da Europa e América do Norte).

[...] o mundo colonizado e a periferia global pós-colonial tem sido a zona na qual se
coletam os dados em grande escala, e, posteriormente, aplica-se o conhecimento
organizado. A metrópole, o centro imperial, tem sido o lugar preeminente para a

1
Em nossa compreensão, assenta-se no modo de produção capitalista uma sociabilidade centrada na exploração
e no antagonismo de classe, produzindo relações de opressão e hierarquias raciais, sexuais e de gênero
maquiadas em um discurso colonizador de modernidade e processo civilizatório, protagonizadas pelo norte
global (CONNELL, 2012) que sustentam uma “barbárie civilizada” (LOWY, 2006).
2
A modernidade, iniciada a partir do mercantilismo espanhol e das expedições portuguesas na concepção pós-
colonial de Dussel (2006), trouxe em seu projeto colonial eurocêntrico a dizimação dos povos originários das
regiões invadidas e a dominação econômica e político-cultural desses povos para fins de exploração territorial.
Com o desenvolvimento do capitalismo, as desigualdades produzidas nesse processo de exploração e dominação
delinearam a divisão racial do trabalho, que se perpetua mesmo com o fim da colonização em contextos como o
brasileiro.
3
Entendemos que o sistema patriarcal, que se constituiu umas das bases do projeto colonial, opera na
supervalorização do masculino em detrimento ao feminino, reforçando lugares na sociedade para homens (vida
pública) e mulheres (mundo doméstico), a divisão sexual do trabalho e o controle dos corpos e da autonomia das
mulheres – que denominamos sexismo. O debate foi ampliado quando da utilização do termo cissexismo, no
sentido de compreender as formulações do movimento transexual sobre a cisgeneridade (identificação com o
gênero ao qual se foi designada ao nascer), tendo em vista que a transgeneridade (não identificação com o gênero
ao qual se foi designada ao nascer) encontra-se em uma posição socialmente inferiorizada em relação à
cisgeneridade − o que reflete em discursos de não reconhecimento de travestis e transexuais enquanto mulheres
ou de transmasculinos enquanto homens. Ao referendar o termo cissexismo, compreende-se que a categoria
mulher é demasiadamente universal, e não abrange as múltiplas feminilidades. Logo, acredita-se que o sexismo
atinja todas as mulheres na sua diversidade.
23

teoria. Metodologia, formação conceitual, processamento de dados e debate


intelectual aconteceram principalmente nas universidades, nos museus, nos jardins
botânicos e nos institutos de pesquisa dessa região do mundo. Assim uma divisão
imperial do trabalho estrutura do processo social que fundamenta os textos que
usualmente nomeamos como “teoria”. As formas de trabalho que constituem e
direcionam o processo de produção de conhecimento estão concentradas
principalmente nas instituições de elite do norte global (CONNELL, 2012, p.10).

A autora compreende que as teorias do norte global não são produzidas observando
o lugar do colonizado, e em grande medida excluem o colonialismo de suas análises ou
tampouco utilizam autores/as do sul global para ampliar suas noções sobre o sul. O
conhecimento produzido pelos cânones das ciências sociais é um discurso sobre a “periferia”
pela ótica da “metrópole”. E, como produtor do discurso de “centro”, o norte global tem
delimitado o que é “verdade” no campo do método, da metodologia, do rigor e das normas
que legitimam o saber acadêmico.
Assim, “as circunstâncias materiais de pesquisa podem, portanto, criar uma
dependência de pacotes teóricos e metodológicos já prontos oriundos da metrópole”
(CONNELL, 2012, p.15), tanto pela vontade do reconhecimento quanto pela necessidade de
legitimidade daquele estudo produzido enquanto um trabalho que tenha sido elaborado nos
parâmetros do rigor acadêmico canônico. Nesta linha de interpretação, o “fazer ciência” é
sempre situado, ou seja, o resultado é um saber a partir de um ponto de vista geopolítico-
social; está imbricado em relações de poder e dominação; mas as vozes da resistência, como
aquelas que denunciam a violência epistêmica do imperialismo (SPIVAK, 2010), também
existem e produzem outras gramáticas.
Foucault (2005) chamou atenção para o surgimento dos ‘saberes sujeitados’. Por
saberes sujeitados ele entende: 1) “conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em
coerências funcionais ou em sistematizações formais [...] enfim, são blocos de saberes
históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e
sistemáticos”, e 2) “saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como
saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos”. E esses saberes ele
os denomina: “saberes das pessoas” - saberes particulares, regionais, locais e diferenciais
(p.11-12).
A obra foucaultiana é vista por Spivak (2010), de certa maneira, como pertinente,
mas que extrapola quando pretende “falar” pelos outros países, em especial os esquecidos, do
terceiro-mundismo, subalternos – especialmente por ignorar a violência epistêmica do
24

imperialismo. Nessa perspectiva, a voz do subalterno deve ser pronunciada pelo próprio
subalterno. Mas quem é esse subalterno? O termo subalterno não pode ser usado para se
referir a todo e qualquer sujeito marginalizado. O termo deve ser resgatado retomando o
significado que Gramsci lhe atribui ao se referir ao proletariado, ou seja, àquela coletividade
cuja voz não pode ser ouvida. O termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante” (SPIVAK, 2010, p.12).
Spivak (2010) se opõe a todo tipo de essencialismo e não vê uma única
vontade/desejo, um único ser subalterno, mas sim pessoas subalternas, cujas vozes são
silenciadas e desqualificadas. Dessa maneira, surgem os estudos subalternos, que se propõem
a recontar, reanalisar histórias dos povos subalternos a partir de uma perspectiva pós-colonial,
isto é, a partir de uma localidade, conforme expresso pela ideia de “saberes de pessoas, ou dos
subalternos” de Foucault e Gramsci.
O sujeito colonial para Spivak (2010) é um sujeito inefável, ou seja, sem palavras,
sem voz, ao mesmo tempo que muitos tentam falar por ele. Edward Said (1990) chama
atenção para esse “falar pelo outro” quando discorre sobre o fazer “orientalismo” com seus
mitos e visões exacerbadas de uma narração que mais serviu para dominação e subjugo que
para conhecimento e trocas.
Nesse sentido, o orientalismo criou o oriente e se encarregou de mostrar, por meio de
uma escrita “acadêmica e/ou imaginativa”, os costumes, hábitos, pessoas, lugares,
sexualidade, produzindo no ocidente uma visão do que seria aquele lugar distante e exótico.
Em momento algum as vozes locais foram reproduzidas, nem ao menos representadas 4. “O
oriente foi orientalizado não só porque se descobriu que ele era “oriental” em todos aqueles
aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu médio do século XIX, mas
também porque podia ser – isto é, permitia ser – feito oriental.” (SAID, 1990, p.17). Ou seja,
o que muito se acreditou ser do oriente ou oriental, na verdade foi criação, vozes dos
intelectuais dos saberes hegemônicos – orientados pelos cânones do Ocidente – que
descreveram e buscaram falar pelos outros, os colonizados. Por isso Spivak (2010) provoca:
pode o subalterno falar?
Connell (2013), em “O império e a criação de uma ciência social”, argumenta que a
concepção sociológica da história humana, que marca o final do século XIX e início do século

4
Ver a análise de Gayatri Spivak (2010) dos conceitos de vertreten/darstellen em Pode o subalterno falar?.
25

XX, baseia-se na diferença entre a civilização da metrópole e o primitivismo das culturas, em


especial as das colônias das sociedades europeias. Essa é uma ideia, chamada por Connell
(2012) de “diferença global”, sobre a qual sociólogos desenvolviam uma discussão a respeito
das origens postuladas sobre o estado original da sociedade e especulavam sobre sua
‘evolução’. O método comparativo, herdeiro das ‘leis sociais’ de Comte, pretendia agrupar
“espécies” sociais e examinar suas variações. Este método se apoiava em abundantes
informações e uma livre circulação entre as sociedades, o que circunscreve uma explícita
relação de dominação colonial (CONNELL, 2012).
Este método presumia o que Connell (2012) nomeou de ‘olhar imperial’ a partir da
descrição de Letorneau sobre um observador suspenso acima do esquadro terrestre, ou seja,
em uma posição superior ao globo terrestre. No que se refere a gênero e sexualidade, Connell
(2012, p.317) aponta que uma “ciência social baseada nas relações sociais do império
certamente se relaciona com raça e uma ciência social preocupada com o progresso evolutivo
e hierarquias de populações certamente se relaciona com gênero e sexualidade”. Neste
sentido, as dimensões de gênero e da sexualidade teriam marcado o pensamento sociológico a
partir − do prisma deste ‘olhar imperial’ − da preocupação evolutiva e dos problemas do
império. O endurecimento das linhas de cor e o medo da miscigenação também
acompanharam a expansão dos poderes norte atlânticos (CONNELL, 2012). Estes fatores
certamente se conectam com o fato de que “a sociologia se desenvolveu entre homens da
burguesia metropolitana liberal. [...] A maioria viveu modestas vidas burguesas, sustentadas
pelo trabalho doméstico das mulheres em famílias patriarcais” (CONNELL, 2012, p.321).
As denúncias de uma violência epistêmica em relação às mulheres são iniciadas
pelas feministas e, mesmo nas tradições pós-coloniais, pode se perceber o predomínio de
homens. Na América Latina, os estudos dos subalternos também têm ganhado espaço a partir
de reflexões que abordam a “colonialidade do saber”, primeiro numa crítica ao eurocentrismo,
e, depois, na proposição de uma construção dos saberes locais, ou seja, pós-coloniais
(QUIJANO, 2000). Todavia, autores da primeira geração do pós-colonialismo, a exemplo de
Franz Fanon, não se detiveram em refletir sobre as desigualdades de gênero. De acordo com
Ochy Curiel, apesar do esforço de setores políticos e acadêmicos em buscar espaço no que se
denomina subalternidade, esta é construída por posições “elitistas, masculinistas e
androcêntricas” (CURIEL, 2007 apud PELÚCIO, 2012, p.406).
Ao levar em consideração o exposto, reitera-se que compartilho das contribuições
dos estudos feministas, queer e pós-coloniais, considerando suas críticas às perspectivas
eurocêntrica, masculinista, heterossexual e burguesa. Associo-me também à afirmação de
26

Connell (2012, p.17) sobre a necessidade de “democratizar todo processo dirigido pela teoria,
isto é, a produção e circulação de conhecimento social”.

1.2 Memorial político-acadêmico

Desde o ano de 2003 tenho me ocupado dos estudos de gênero e sexualidade, campo
de conhecimento cuja produção do Serviço Social ainda é incipiente. Não por acaso minha
trajetória se entrelaça ao recorte temporal dessa pesquisa. Destaco que as primeiras ações de
pesquisa e extensão sobre homossexualidades no Serviço Social, que existiam desde a década
de 1980, foram pontuais e por décadas menos visibilizadas pelos ‘cânones’ da profissão.
O acercamento a essa temática se deu no meu processo de iniciação científica na
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), durante a graduação em Serviço Social.
Apenas posteriormente iniciei a militância em movimentos LGBT’s, especificamente em
grupos universitários de diversidade sexual.
Entre os anos de 2003 e 2005, iniciei minhas leituras sobre gênero e sexualidade,
vinculadas à área da Educação e Psicologia. Naquele contexto, não era recorrente ter docentes
do curso de Serviço Social que se dedicassem a pesquisar gênero e articular esta dimensão
com a sexualidade. Havia estabelecido um debate sobre gênero, mas focado nos “estudos
sobre a mulher”, “violência contra a mulher” e “educação não sexista”, sendo que esta última
não abordava de forma direta a questão da diversidade sexual na escola, que me interessava já
naquele período.
Sob o prisma de teóricas feministas marxistas (utilizadas no Serviço Social) e
teóricos da psicologia (usados no grupo de pesquisa no qual fiz iniciação científica), realizei
minha busca para identificar o significado político-pedagógico do se “assumir” lésbica na
universidade. Ainda fazendo uso de termos como “homossexualidade”, sem uma reflexão à
luz dos estudos sobre gênero e sexualidade, fiz minha pesquisa com jovens estudantes das
áreas de ciências humanas e sociais e ciências exatas e da terra durante dois anos. Durante
este período, ocorreu uma Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC-2004) na UFMT, onde fiz um minicurso sobre gênero e sexualidade com um professor
de sociologia. Nesta oportunidade, tive acesso às teóricas feministas pós-estruturalistas e aos
Estudos Gays e Lésbicos a partir dos domínios da antropologia e da sociologia.
27

O espaço da militância universitária de diversidade sexual também me possibilitou


novas leituras. Vale lembrar que nesse momento da história o acesso à internet era bastante
restrito, e os bancos de teses, dissertações e periódicos também estavam sendo inicialmente
digitalizados. Entre 2006 e 2007, pude me articular com jovens universitárias/os que
construíam o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (Enuds5). No Enuds tive
meu primeiro contato com os Estudos Queer, e, portanto, com a perspectiva plural de gênero.
O acesso gradual que pude ter ao campo de gênero e sexualidade foi essencial para que eu
pudesse apreender as hierarquias que constituem o campo de produção de conhecimento em
gênero e sexualidade, e também o efeito desta discussão na vida cotidiana dos sujeitos,
principalmente daqueles que escapam às normas de gênero e ao imperativo heterossexual.
Como exemplo do que mencionei sobre a hierarquia na produção de conhecimento,
pode-se ilustrar a recente aproximação do Serviço Social com o debate da sexualidade, da
diversidade sexual e dos direitos LGBT. Neste sentido, cabe destacar a atuação do Conselho
Federal de Serviço Social (CFESS) na aprovação da resolução 489/2006, que veda conduta
profissional discriminatória por motivo de orientação sexual, e da resolução 615/2011, que
garante o uso do nome social de travestis e transexuais nos documentos profissionais.
Ressalto, ainda, a inserção do grupo de trabalho “gênero, raça/etnia e orientação
sexual” no Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) em 2003 e no Encontro
Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) em 2004. Embora a produção de
conhecimento concernente a esta temática ainda seja pouco visível no Serviço Social, é
importante ressaltar que estas já existiam antes de 2004, ainda que de forma pontual e mais
centralizadas nos cursos do eixo Rio-São Paulo. Observa-se que nos últimos oito anos este
cenário tem sido alterado, tanto pela proeminência das manifestações do movimento LGBT,
que trouxeram consigo a denúncia de índices de violência letal e demandas por leis e políticas
específicas, quanto pela emergência das primeiras políticas governamentais para a população
LGBT, que envolveram o incentivo financeiro – ainda que tímido – à produção acadêmica
nesta área.
Desta forma, a pesquisa que envolve esta Tese de Doutoramento é um esforço de
aprofundamento teórico-metodológico. Apresento reflexões desenvolvidas no processo de
doutoramento na Escola de Serviço Social/UFRJ, mas que são também frutos de indagações

5
O Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (Enuds) realizou, no ano de 2014, sua décima
segunda (12ª) edição. O evento pode ser considerado, na atualidade, um dos maiores sobre diversidade sexual no
Brasil, dado seu tempo de existência e pelos debates quem vêm reunindo ao longo de 12 anos, e, por sua
potência indescritível em propiciar um espaço para vivências político-acadêmicas, têm reunido, anualmente,
centenas de universitários/as e jovens militantes e pesquisadores/as de todas as regiões do país.
28

elaboradas nestes dez anos de militância em defesa da diversidade sexual e de minha


formação acadêmica anterior, desde a iniciação científica, na discussão realizada na
dissertação de mestrado, e, posteriormente, nos projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos
na docência pública, desde 2009, em Tocantins.

1.3. O atual cenário paradoxal da política LGBT brasileira

Como já adiantado, a minha preocupação central é compreender como sujeitos


políticos, que provocam os limites do gênero e da sexualidade convencionados socialmente,
têm atuado na luta por reconhecimento de direitos e na formulação de políticas públicas que
atendam as suas demandas. Para entender a dinâmica destes sujeitos, em seus espaços
coletivos de reivindicação, discuto as identidades produzidas por este movimento para dar
visibilidade às experiências íntimas, tornando-as públicas. Assim, busca-se destacar o
processo organizativo de sujeitos que escapam à heterossexualidade, do “silêncio” ao
protagonismo nas lutas pela ampliação da cidadania e dos direitos humanos no Brasil.
Nos doze anos (2002-2014) que envolvem os governos Lula e Dilma, ambos do
Partido dos Trabalhadores (PT), as lutas promovidas pelo movimento LGBT geraram ações
governamentais como: Programa Brasil sem Homofobia (2004), vinculado à Secretaria
Especial de Direitos Humanos (SEDH), que originou posteriormente a Coordenação Geral de
Promoção dos Direitos LGBT (2009), e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação
LGBT (2011) − responsáveis pela execução e monitoramento do Plano Nacional de Promoção
dos Direitos e Cidadania LGBT (2009), produto da I Conferência Nacional de Políticas
Públicas e Direitos Humanos LGBT (2008). Também foi realizada pelo Conselho Nacional
LGBT a II Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos LGBT (2011).
A criação do Programa Brasil sem Homofobia iniciou ações específicas, implicando
em uma inserção expressiva, se considerada a existência reduzida de iniciativas
governamentais neste campo na agenda política brasileira antes da formulação deste
programa. Acrescente-se também a realização das duas conferências nacionais, em 2008 e
2011, supracitadas; a criação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT pelo Ministério da
Saúde em 2010; o reconhecimento da diversidade de “condições sexuais” no âmbito do Plano
de Política Criminal e Penitenciária em 2011, que gerou a culminância da Resolução Conjunta
nº01/2014, entre Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e Conselho
29

Nacional de Combate à Discriminação – LGBT (CNCD), que estabelece parâmetros de


acolhimento de LGBT em privação de liberdade; e a criação do Sistema Nacional de
Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra LGBT no ano de 2013.
Todavia, apesar dessas iniciativas que indicam avanços na agenda anti-homofobia,
retrocessos também podem ser percebidos no período posterior, como o veto ao “Kit Escola
sem Homofobia” em 2011, sustentado pela declaração da presidenta Dilma, que afirmou que
em seu governo não faria “propaganda de opções sexuais”; a retirada do termo ‘gênero’ do
Plano Nacional de Educação (PNE) no ano de 2014; a propositura do Estatuto do Nascituro 6,
que aguarda para ser votado; o Projeto de Decreto de Lei conhecido como o projeto da “Cura
Gay7”, que foi arquivado por decisão do próprio autor, devido às manifestações de junho em
2013; e, mais recentemente, o Estatuto da Família, que reconhece como instituição familiar
uma relação formada por homem e mulher, aprovado na Comissão de Direitos Humanos no
segundo semestre de 2015. Estas ações demonstram o quanto gênero e sexualidade estão
envoltos em um “pânico moral8” e os desafios enfrentados pelas políticas propostas pelo
Executivo no poder Legislativo.
O recrudescimento do conservadorismo frente às demandas dos movimentos que têm
em sua agenda a luta pela inserção da pauta dos direitos sexuais e reprodutivos caminha
paralelo às conquistas destes grupos no campo da cidadania, o que pode ser interpretado como
um sinal dos limites de uma política centrada na identidade e no reconhecimento da diferença.
De qualquer forma, ao mesmo tempo em que ocorreram vetos e proposituras violadoras de
direitos humanos, o movimento social teve importantes conquistas no âmbito do Judiciário,
como a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em relação ao casamento civil9. O que

6
Projeto de Lei (PL) 478/2007, em tramitação, de autoria de Luiz Bassuma (PEN) e Miguel Martini (PHS). O
Estatuto visa a tipificar como crime atos como “causar a morte de nascituro; anunciar processo, substância ou
objeto destinado a provocar o aborto; congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de
experimentação; fazer a apologia de aborto, dentre outros”. O projeto também proíbe o congelamento, a
manipulação ou o uso do nascituro como experimento, no caso incluindo as pesquisas com células-tronco, sob
pena de um a três anos de prisão, mais o pagamento de multa. O Estatuto também é conhecido como “bolsa
Estupro”, já que em seu Art. 13 prevê que o nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado
pensão alimentícia pelo Estado. Vale ressaltar que o Código Penal Brasileiro, que permite a interrupção da
gravidez no caso de violência sexual e de risco à integridade física da gestante, data de 1940.
7
O projeto de decreto legislativo – PDC 234/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB), sugeria a extinção de
dois trechos de uma resolução de 1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que diz que “os psicólogos não
colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades” e que “os psicólogos não
se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a
reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem
psíquica”.
8
Rubin (1989) define pânico moral como a existência de instrumentos e mecanismos conservadores de
resistência às mudanças sociais repentinas a partir do medo social.
9
Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução proposta pelo ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, que obriga os cartórios de todo o país a registrar o casamento
30

também demonstra o processo de ‘judicialização10’ de direitos a que tem se submetido as


pautas de direitos humanos, cujos efeitos recriam entendimentos falaciosos sobre uma
‘cidadania LGBT plena’, já que essas ‘conquistas’ estão condicionadas a instrumentos
jurídicos frágeis, que podem ser revogados e retirados a qualquer momento. Embora avalie
como pedagógicos os significados destas decisões no STJ e STF (Superior Tribunal Federal),
é necessário compreender a dimensão desse processo de judicialização.
Esses processos de avanços e retrocessos contaram com um elemento importante no
delineamento das políticas sexuais do governo federal nos últimos quatro anos: o Conselho
Nacional de Combate à Discriminação LGBT (CNCD-LGBT), também reconhecido como
“Conselho Nacional LGBT”. Este órgão, que começou a atuar em 2011, participou de todas as
situações que mencionei anteriormente. Mediante esta conjuntura, a pesquisa investe em
análises sobre o Conselho Nacional LGBT (2011-2013) e sobre as políticas que precederam o
CNCD, como: Programa Brasil sem Homofobia, I e II Conferência Nacional LGBT e I Plano
Nacional de Políticas Públicas para LGBT e o Sistema Nacional de Enfrentamento à
Violência contra população LGBT.

1.4 Percursos metodológicos

O percurso metodológico desta pesquisa combinou diferentes técnicas de coletas de


dados: a) observação participante nas reuniões do Conselho Nacional (2011-2013) e em
eventos da agenda do movimento; b) análise documental das atas, moções, resoluções e notas
públicas produzidas pelo Conselho, bem como documentos produzidos pela Coordenação
LGBT e relatos de conselheiros/as do CNCD-LGBT nas redes sociais; c) entrevistas com
ativistas não vinculados a redes de militância representadas no Conselho; d) entrevistas com
gestoras/es que atuaram nas políticas públicas durante o período recortado na pesquisa; e)

civil entre pessoas do mesmo sexo. Essa resolução baseou-se em decisões proferidas pelo STF e pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) no ano de 2011.
10
Sobre esse processo de judicialização citamos Luiz Werneck Vianna, Marcelo Burgos e Paula Salles (2007,
p.41): “(...)a invasão do direito sobre o social avança na regulação dos setores mais vulneráveis, em um claro
processo de substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente republicanos pelo judiciário,
visando a dar cobertura à criança e ao adolescente, ao idoso e aos portadores de deficiência física. O juiz torna-se
protagonista direto da questão social. Sem política, sem partidos ou uma vida social organizada, o cidadão volta-
se para ele, mobilizando o arsenal de recursos criado pelo legislador a fim de lhe proporcionar vias alternativas
para a defesa e eventuais conquistas de direitos. A nova arquitetura institucional adquire seu contorno mais forte
com o exercício do controle da constitucionalidade das leis e do processo eleitoral por parte do judiciário,
submetendo o poder soberano às leis que ele mesmo outorgou”.
31

dados secundários de outras pesquisas que dedicaram-se a mapear o perfil de conselheiras/os


do CNCD-LGBT.
É essencial fazer escolhas durante o processo da construção do trabalho. Escolhas
essas que perpassam desde as disciplinas a cursar, perspectivas teóricas com as quais
partilhar, o percurso metodológico a seguir, que técnicas de obtenção dos dados utilizar, quem
entrevistar, como analisar as entrevistas, se a natureza da pesquisa será qualitativa ou quali-
quantitativa. Este trabalho é, portanto, produto de reflexões acadêmicas, pessoais,
epistemológicas e teórico-metodológicas, sujeito a todo rigor a que um trabalho científico
deve se submeter.
As metodologias qualitativas parecem mais pertinentes para o exame das questões
que direcionaram este trabalho. E isto porque estas perspectivas metodológicas permitem a
abordagem de um conjunto de expressões humanas constantes nas estruturas, nos processos,
nos sujeitos, nos seus significados e representações. A pesquisa qualitativa responde a
questões particulares; trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Busca a
compreensão da realidade humana vivida socialmente, ou seja, procura compreender e
explicar a dinâmica das relações sociais, que são integradas de crenças, valores, atitudes e
hábitos. Dessa forma, o significado é o conceito central na investigação (MINAYO, 1994).
Nesse estudo, realizei levantamento e estudo bibliográfico sobre Estado, nação,
nacionalismo, política social, direitos, diversidade, diferença, democracia, cidadania,
reconhecimento, redistribuição e controle social, somando-se ao que está sendo pensado e
produzido na academia e no ativismo a respeito de gênero e sexualidade. Tive como maior
preocupação a multiplicidade geográficas de “vozes” teóricas, tendo em vista meu
comprometimento com o desenvolvimento de novas teorias ou das “Teorias do Sul”
(CONNELL, 2012; 2013; 2015).
Busquei não me orientar somente por feministas norte-americanas e europeias,
dialogando com brasileiras, colombianas, argentinas, indianas e australianas. Também me
comprometi em reconstruir uma história do movimento LGBT brasileiro descentralizada do
eixo Sul-Sudeste. Assim, trago experiências do Centro-Oeste e do Norte, pouco exploradas,
ainda ou talvez não visibilizadas nas publicações acadêmicas de Rio Janeiro e São Paulo.
Empenho algumas críticas ao campo dos estudos queer, orientadas também pelo compromisso
com a memória do campo dos estudos da sexualidade. É preciso agir cuidadosamente com
sobreposições de realidade entre Estados Unidos e Brasil, percepção que me fez não iniciar o
32

debate sobre o movimento homossexual através de referências históricas estadunidenses.


Afinal, nosso desbunde já existia muito antes de Cabral.
Sobre o trabalho de campo, embora tenha começado a realizar as observações no
Conselho Nacional LGBT em Brasília/DF, em 2011, período da primeira gestão de Dilma,
optei por não abandonar dados pertinentes levantados por meio de entrevistas, no período da
gestão Lula, em pesquisas que desenvolvi como docente na UFT. Escolhi também não
restringir minhas observações apenas às reuniões, e, portanto, circulei por eventos diversos
que reuniram militantes, pesquisadoras/es e gestoras/es da área de diversidade sexual. Os
espaços de sociabilidade extraoficiais também me possibilitaram contatos, histórias e vasto
acesso aos bastidores da política. Faço um exercício de escrita memorial, em vários
momentos dos dois últimos capítulos, retomando cenas que expressam vivências da
militante/pesquisadora anteriores ao doutorado.
Assim, minha imersão no CNCD iniciou-se na 1ª Reunião Ordinária do CNCD, na
qual ocorreu a posse das/os conselheiros/as em Brasília/DF. Esta inserção ocorreu com a
ajuda da Secretaria Executiva do CNCD, que, naquele momento, era dirigida por um militante
gay que havia ido para gestão da política LGBT no início de 2010. O fato de ter uma
circulação considerável no contexto do movimento LGBT brasileiro − seja por vias de uma
militância organizada que iniciei em 2005, ou por vias de uma carreira acadêmica iniciada
com circulação nacional na área LGBT em 2008 − também contribuiu para que tivesse maior
acesso aos “canais de comunicação” e “espaços de articulação” do CNCD. O que me remete
às reflexões de Mello, Fernandes e Grossi (2013) sobre a articulação entre militância e
pesquisa, cuja compreensão as faz distinguir dois “estilos de liderança” que vão colocar a
pesquisadora em um “tipo particular de relação” com as/os interlocutores/as. São estes os dois
estilos: “o poder de perícia (uso do conhecimento na ação militante) e o poder referente (ser
referência pela experiência militante para os outros)” (MELLO, 2012 apud MELLO,
FERNANDES e GROSSI, 2013, p.24).
Deste modo, agrego também a análise documental do Programa Brasil sem
Homofobia, I Plano Nacional de Promoção dos Direitos Humanos LGBT, Anais e Texto-Base
da II Conferência Nacional de Políticas Públicas LGBT, Documento Base do Sistema
Nacional LGBT; III – análise das Atas, Decretos, Notas e Moções do Conselho Nacional de
Combate à Discriminação (CNCD) produzidas entre 2011 e 2013; IV - Relatos produzidos
por conselheiros/as do CNCD e disponibilizados nas redes sociais; V – documentos
produzidos pela Coordenação Geral de Promoção dos Direitos LGBT da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) entre 2009 e 2014; VI -
33

entrevistas11 semiestruturadas com gestores/as, militantes e pesquisadores/as que atuam no


âmbito dos direitos LGBT no Brasil.
No que se refere à análise documental, Jane Prates e Flávio Prates (2009) afirmam
que os documentos expressam: “discursos, normativas, sentidos atribuídos, regras, conceitos,
delimitações, valores, descrição dos fatos, [...] elementos que permitem uma análise mais
aprofundada e coerente para algumas investigações” (p.116), especialmente no âmbito de
políticas e programas sociais.
Prates e Prates (2009) acrescentam ainda que a análise documental é uma técnica de
grande confiabilidade, já que trata dos registros históricos enquanto fontes imprescindíveis de
pesquisa, pois são “contraprovas históricas de representação que os sujeitos, naquele dado
contexto, faziam sobre determinada realidade” (p.118).
No “Apêndice A” descrevemos os documentos que compuseram o material da
análise de dados, destacando a data a que se refere e a forma do documento analisado. Cabe
ressaltar que algumas reuniões presentes no recorte temporal da pesquisa não tiveram sua Ata
transcrita e aprovada. Neste caso, acionamos a Secretaria Executiva que assumiu o cargo no
final da primeira gestão do CNCD para envio do áudio das reuniões. Os áudios que não
estavam danificados foram transcritos por mim. Já aquelas reuniões cujos áudios não foram
enviados pela secretaria ou foram enviados com gravação danificada foram analisadas através
de documentos complementares, como relatos de conselheiros/as publicizados nas redes
sociais e pelas observações descritas no meu caderno de campo.
Ocorreram 15 reuniões no período da 1ª gestão do CNCD LGBT, dentre as quais 13
acompanhei presencialmente. Acrescento ao corpus da análise das 15 reuniões outras duas
reuniões em que ocorreu a Posse dos Novos Conselheiros/as e, posteriormente, a eleição da
nova Mesa Diretora em maio de 2013, por acreditar que em algumas movimentações feitas
pela sociedade civil e pelo poder público durante a primeira gestão se evidenciam nestas duas
últimas reuniões agregadas à análise.
Também encontram-se entre os documentos analisados as 16 notas públicas, cinco
resoluções e seis moções publicadas na gestão 2011-2013 do CNCD-LGBT, descritos nos
“Apêndices B e C”, nos quais foram destacadas a data e a finalidade a qual se vinculava
aquele documento em questão. Explorei todos esses documentos com auxílio do software de
análise qualitativa NVivo, cuja busca foi orientada pelas palavras-chave: “controle social”,

11
Utilizo entrevistas coletadas para outros projetos de pesquisa desenvolvidos junto ao Núcleo de Estudos,
Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos da UFT. Agradeço as/aos bolsistas de extensão
e iniciação científica, pesquisadores/as e colaboradores/as do núcleo, pelo auxílio com elaboração de roteiro,
termo de consentimento livre esclarecido e transcrições destas entrevistas.
34

“participação social”, “Plano LGBT”, “Sistema LGBT”, “Brasil sem Homofobia”,


“monitoramento”, “PT”, “Dilma”, “Lula”, “diversidade”, “diferença”, “igualdade”,
“cidadania”, “orçamento”, “desigualdades”, “militância”, “academia”, “gestão”, “direitos”,
“homofobia”, “lesbofobia”, “transfobia” e “avaliação”.
Os documentos corroboraram as evidências colhidas nas observações, mas também
fizeram refletir sobre o lapso entre o “documento oficial” e a realidade presencial do CNCD,
haja vista que as atas, ao longo da história do conselho, passam a apresentar apenas as
deliberações em si, ocultando, na maioria delas, os votos por entidade. Isso reforça o que
Thompson (1992, p.28) apontou: “Sem a evidência oral, a/o pesquisador/a pode descobrir
pouca coisa, quer sobre os contatos comuns da família com os vizinhos e parentes, quer sobre
suas relações internas”.
Agreguei duas entrevistas com ativistas autônomas/os12, além de outras duas que
havia realizado em pesquisa anterior a esta. Utilizo a entrevista como técnica de coleta de
dados, compreendendo como um caminho necessário a ser trilhado para a realização de nossa
investigação empírica, todavia definimos por privilegiar gestores/as da política LGBT e
militantes ou pesquisadores/as que tivessem circulação internacional. Era meu interesse
reconstruir os processos históricos que envolveram a formulação dessa política e também
compreender o impacto da política LGBT no contexto internacional.
As quatro entrevistas semiestruturadas foram realizadas entre 2010 e 2014, com duas
pessoas que passaram pela gestão da política LGBT na SDH, um/a pesquisador/a e um/a
militante (ambos com inserção internacional). No que se refere à entrevista semiestruturada,
concordamos com as proposições de Thiollent (1982), que considera que a mesma permite
uma maior liberdade para a/o entrevistada/o. Essa conclusão também aparece nas
considerações de Uwe Flick (2004), que discorre ainda sobre as narrativas colhidas através
destas entrevistas semiestruturadas como dados utilizáveis, que, para ele, permitem à
pesquisadora apreender o “mundo experimental” do/a entrevistado/a. Também acrescentei a
esse material um artigo que avalia a política LGBT, publicado por outra pessoa que atuou na
gestão desta política entre esse período, e uma iconografia que ilustra o percurso histórico e
dinâmicas da política.
As observações realizadas no ano de 2011 ocorreram em seis das sete reuniões do
CNCD (na impossibilidade de acompanhar presencialmente umas das reuniões, procurei a

12
Essas entrevistas foram coletadas para outras pesquisas que coordenei na UFT, já durante o doutorado, para
uso também nesta pesquisa. Os dados me auxiliaram a refletir especialmente sobre a conjuntura institucional da
política LGBT brasileira antes e durante a primeira gestão do CNCD.
35

transmissão online pelo sistema de teleconferência do Ministério da Saúde). No ano de 2012


foram realizadas seis reuniões, nas quais pude estar presente em quatro; e, em 2013,
acompanhei duas reuniões referentes à primeira gestão do CNCD e a elas agreguei a análise
de outras duas reuniões, que não presenciei, mas pude obter acesso a atas e relatos das/os
conselheiras/os. Em 2011 e 2012 também participei das II e III marchas contra homofobia em
Brasília; entre 2010 e 2013 acompanhei as agendas das Paradas de Orgulho LGBT de São
Paulo e do Rio de Janeiro; em 2011, das Conferências Estaduais dos Direitos LGBT do Rio
Grande do Sul, Tocantins e do Rio de Janeiro; e, em 2013, realizei observação em uma
reunião sobre o Sistema LGBT em São Paulo e uma reunião de articulação dos Comitês de
Enfrentamento à Homofobia (integrante do Sistema LGBT) em Palmas.
No ano de 2011, em dezembro, houve a II Conferência Nacional de Políticas
Públicas e Direitos Humanos LGBT, em que participei também na condição de “delegada13”
(representando o Estado do Tocantins) e como debatedora14, a convite do CNCD, de uma das
mesas-redondas. Esse momento em que as múltiplas identidades políticas são interpeladas
ocasiona o que Mello, Fernandes e Grossi (2013), analisando processos pessoais semelhantes,
denominaram como “intensos deslocamentos etnográficos”, e que considero um dos maiores
desafios desse trabalho: apresentar uma analítica crítica, comprometida teoricamente e
engajada politicamente a partir de um saber que é situado numa experiência militante
articulada em uma sistematização da minha prática política.
Quando delimitei o objeto desse estudo sabia dos “riscos” que poderia incorrer se
adotasse uma postura crítica à gestão do PT, como, por exemplo, uma indisposição com o
próprio campo. A trajetória de muitas/os militantes no CNCD foi marcada por subjugamentos
e processos discriminatórios, tendo sido os marcadores de “classe” e “raça” estruturantes
nessas experiências. As cisões ocasionadas pela presença de uma “acadêmica”, “mulher
branca” e de classe média fazendo pesquisa em um espaço da militância evidencia as
fronteiras entre ativismo e academia. Embora partilhe da experiência do ativismo, venho de
uma experiência de militância na universidade, marcada pela experiência da universidade.
Extrapolar os muros da universidade às ruas foi uma inevitável necessidade conjuntural, dadas
as transformações do movimento LGBT após processo de onguização. Em vários momentos
do campo percebi minha identidade “pesquisadora” ou “militante universitária” acionada

13
Nas conferências estaduais são eleitas pessoas da sociedade civil e do poder público para representar o Estado,
sendo estas pessoas nomeadas por “delegadas”, tendo como direito a voz e voto durante a conferência nacional.
14
Em virtude das pesquisas sobre políticas públicas LGBT, mas também pela circulação nas reuniões do CNCD,
recebi a indicação deste conselho para compor uma mesa na conferência na condição de debatedora. Coube a
mim, nessa função, debater as exposições de alguns ministérios (Justiça, Cultura, Desenvolvimento Social e
SDH).
36

como impeditivo de diálogo com conselheiras/os, por não compartilhar do marcador de


“militante verdadeira”. Com o decorrer do tempo, esse cenário foi sendo alterado, e cito como
exemplo as diversas vezes em que me tornei uma referência para informações sobre a
“militância” em Tocantins.
O estudo reflete a relação entre Estado-sociedade civil, Estado-Estado, e sociedade
civil-sociedade civil. Inevitavelmente, exponho as redes de diálogo entre as redes nacionais e
o governo, bem como evidencio aquelas redes que têm suas demandas atendidas com mais
empenho na estrutura governamental. Esta análise não pretende eleger “vilões e mocinhos” no
âmbito do movimento social, mas demonstrar como o governo atua e como os coletivos
LGBT articulam seus modos de representação coletiva. Haraway (1995, p.27) afirma que a
posição dos subjugados não é isenta de “reavaliação crítica, de decodificação, desconstrução e
interpretação”, não existe inocência nas posições.

As perspectivas dos subjugados são preferidas porque parecem prometer explicações


mais adequadas, firmes, objetivas, transformadoras do mundo. Mas como ver desde
baixo é um problema que requer, pelo menos, tanta habilidade com corpos e
linguagens, com as mediações da visão, quanto têm as mais "altas" visualizações
tecno-científicas. A preferência por tal posicionamento é tão hostil às várias formas
de relativismo quanto às versões mais explicitamente totalizantes das alegações de
autoridade científica (HARAWAY, 1995, p.27).

Como alternativa ao relativismo ou à visão única, a autora aponta os saberes


localizados, parciais, críticos e “apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de
solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia” (op.cit.).
Compartilho dessa proposta, pois não acredito na possibilidade de dissociação da minha
compreensão militante do meu fazer científico. O saber que produzo é situado, portanto
localizado e parcial, ainda que não perca de vista a totalidade.

1.5. Definindo um vocabulário ético-político

As terminologias consonantes ao campo da diversidade sexual têm ocupado esforços


da militância e de estudiosas/os da temática. Apresento aqui as definições a respeito do
vocabulário apresentado na redação desta tese. Não obstante, as palavras têm efeitos
discursivos e político importantes, e as tomo como integradas ao compromisso ético-político
que tenho com o campo.
37

A linguagem não-sexista tem sido uma das muitas preocupações da escrita feminista.
Assim, o uso do @ ou exclusivo do feminino foram minhas estratégias em trabalhos
anteriores. O “x” tem sido utilizado em propostas queer, mas a dificuldade de leitura das
palavras com “x” por pessoas com deficiência visual que utilizam softwares especializados o
mostra contraproducente. Mais recentemente tem sido utilizado o “e” em substituição das
vogais que definem o masculino e o feminino. Nesse trabalho, optei pelo uso da barra com
as/os, vindo sempre com o feminino à frente.
Para nomear o movimento, aciono o termo “movimento homossexual” para
recompor os momentos que remontam do ativismo entre os anos de 1970 ao final de 1980. A
partir da década de 1990, estou nomeando-o de movimento LGBT. Também faço uso dos
termos “sujeitos LGBT”, “segmento LGBT”, “pessoas LGBT” para me referenciar a
população em questão. As palavras “lutas pela diversidade sexual e de gênero” e “luta LGBT”
são usadas enquanto sinônimos, de modo a não exaurir a/o leitor/a.
Homofobia também poderá ser encontrada como “LGBTfobia” ou
“homo/lesbo/transfobia”, respeitando o debate do movimento sobre as diferentes formas de
violências e violações que atingem os distintos segmentos. Em outros trabalhos utilizei a
ordem das letras “TLGBfobia”, por exemplo. Mas aqui optei pelo exposto anteriormente, não
por uma definição ideológica, mas por adoção das categorias êmicas.
Militantes e ativistas foram utilizados ora indistintamente enquanto sinônimos, ora
para delimitar “ativismos” como um campo plural de sujeitos (militantes, pesquisadoras/es e
gestoras/es). O termo “sujeitos” é utilizado para denotar capacidade de resistência e exercício
do poder − em outros termos, agenciamento. Todavia não faço uso do termo “agentes”, por
não dedicar uma conceituação profunda à categoria “agência”. Também tenho compreensão
dos riscos em usar o termo “sujeitos”, podendo incorrer nas críticas que o debate sobre
assujeitamento desenvolvido por Butler (2003) já o fizeram.
Por último, fiz a opção de trabalhar com o conceito de “política pública”, no que se
refere às ações do Estado desenvolvidas junto ao segmento LGBT. No entanto, não perco de
vista que meu compromisso téorico-político é com a política social em seu sentido amplo de
proteção social.
Dentro desta lógica, optei em não identificar as/os sujeitas/os entrevistadas/os quanto
a gênero, raça/etnia e geração mantendo suas identidades em sigilo a partir das identificações
genéricas de “Ativista” e/ou “Gestor/a”. Entre as/os conselheiras/os do CNCD optei em usar
seus nomes já que as Atas são de acesso público e a nominação contribui também para a
memória do movimento e para história da política pública. Em situações específicas aciono o
38

nome da entidade a que representam ou as identidades sexuais a que se auto atribuíram nas
reuniões. No que se refere a história do movimento LGBT, também construo a partir de notas
de rodapé, o perfil de ativistas através de informações em seus perfis de rede sociais ou
websites das entidades as quais se vinculam, com objetivo situar a/o leitor/a sobre quem são
essas pessoas e como estão circunscritas no campo.

1.6 A estrutura da Tese

No primeiro capítulo, apresento noções e conceitos sobre Estado, política e direitos, a


partir do debate sobre nacionalismo, Estado-Nação, políticas sexuais e direitos humanos.
Reflito sobre os processos de colonização do sul global e o impacto do projeto de
modernidade no ideário de nação brasileiro. Aponto os processos de racismo, sexismo e
homofobia que marcaram o Brasil moderno. Relaciono esse debate ao surgimento do campo
dos direitos humanos, destacando o percurso histórico para inserção dos direitos sexuais nesta
seara em âmbito global. Articulo os conceitos de Fraser sobre “reconhecimento”,
“redistribuição” e “representatividade” para discutir os limites da política de identidade em
tempos de neoliberalismo. Meu argumento é de que interseccionar o marcador “nação” às
dimensões de gênero, sexualidade e raça/etnia é essencial para compreensão dos processos
discriminatórios e das respostas do Estado às lutas sociais.
No segundo capítulo, retomo as lutas sociais no campo de gênero e sexualidade,
observando a crítica e o pensamento feminista. Destaco os desencontros entre gênero e
estudos gays e lésbicos no Brasil. Apresento algumas reflexões sobre os estudos queer e suas
contribuições para as teorias feministas. Aponto também a crítica de Connell às teorias do
Norte e lanço mão da crítica feminista pós-colonial. A partir disso, recomponho a história do
movimento homossexual brasileiro até a atualidade.
No terceiro capítulo examino o surgimento da política nacional LGBT na gestão do
governo Lula. Indico os antecedentes históricos desta política e os correlaciono com o cenário
das políticas de direitos humanos da SDH, identificando as influências dos organismos
internacionais nestas políticas. Exemplifico esse argumento por meio do lugar de destaque do
ineditismo da política LGBT de Lula no cenário internacional.
O quarto capítulo apresenta um perfil do CNCD-LGBT e as análises do diário de
campo, das atas, moções, notas e decretos do CNCD-LGBT. Exponho as diferenças nos
39

discursos veiculados durante os governos de Lula e de Dilma, as descontinuidades e a falta de


institucionalização da política pública LGBT. Embora interprete o Conselho como lócus de
maior pluralidade de sujeitos coletivos na formulação de políticas públicas para o segmento
em questão, critico a reduzida dotação orçamentária e a baixa institucionalização das
iniciativas governamentais neste campo.
Retomo o conceito de homonacionalismo ao final deste trabalho para explicar as
dificuldades enfrentadas pelas minorias sexuais na luta pela ampliação da cidadania. A
“homofobia cordial”, ou o “pinkwashing à brasileira”, são apresentados como dispositivos do
neoliberalismo a incidir sobre nossas vidas.
40

PARTE I
GÊNERO, SEXUALIDADE E NAÇÃO
41

2. CAPÍTULO 1 - NACIONALISMOS SEXUAIS E DE GÊNERO NO BRASIL:


ESTADO, POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS

Compreender o Estado como um ator nas políticas


sexuais é uma tarefa distinta, quando o interesse do
Estado é uma colônia, ou uma pós-colônia dependente,
ou um Estado em desenvolvimento que segue a
estratégia da CEPAL para industrialização, ou um
Estado periférico buscando vantagens competitivas nos
mercados mundiais neoliberais.

(Raewyn Connell)

Entre 28 e 28 de abril de 2010, ocorreu em Brasília-DF o I Seminário Nacional de


Gestores e Trabalhadores no Combate à Homofobia, no qual foi realizada uma reunião
denominada encontro de núcleos de pesquisa que atuam nas questões LGBT, conveniados e
não conveniados à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). O evento foi organizado
pela Coordenação Geral de Promoção dos Direitos LGBT, criada em dezembro de 2009,
vinculada à Subsecretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da SEDH.
Naquele momento, estive15 presente por meio do grupo de pesquisas que coordeno
desde 2009 na universidade em que leciono e que havia tido aprovação de um convênio com
a [referida] secretaria naquele mês. Duas situações chamaram minha atenção no evento: a
primeira referia-se ao encontro ser considerado o primeiro encontro dos núcleos, tendo em
vista que eu mesma já havia participado de um encontro em 2007 e outro em 2008, ambos
convocados pela própria SEDH. Durante a programação foram questionadas as ausências de
alguns grupos de pesquisa consolidados, que haviam, inclusive, participado dos outros dois
encontros anteriores. A representação da SEDH no encontro justificou essas ausências
afirmando não possuir uma listagem dos núcleos e que havia desconhecimento de sua parte
da realização de encontros anteriores. Um ponto interessante é que os encontros ocorridos
foram na mesma gestão presidencial e ministerial, alterando apenas o contexto de
surgimento da Coordenação Geral LGBT, já que até os seis meses anteriores ao evento a
pauta LGBT estava vinculada ao setor do Programa Brasil sem Homofobia, que, na nova
estrutura da secretaria, deixou de existir enquanto uma área. A outra situação que destaco

15
Optei por colocar em itálico minhas observações, registradas em memórias pessoais, que não fizeram parte do
processo que envolveu meu trabalho de campo do doutoramento. Entretanto, as cenas que fazem parte do
período que envolveu o trabalho de campo, também destacadas em itálico, estarão apresentadas com recuo de
quatro centímetros, conforme as normas de citação. Entre colchetes estarão inserções que situam meus
apontamentos em relação ao texto do corpo do trabalho.
42

relaciona-se com a intervenção de uma militante, durante uma das mesas de abertura do
Seminário, que questionava uma representante da SEDH sobre a efetivação das políticas de
combate à homofobia, dizendo: “Os LGBT estão morrendo, e o Estado não tem feito nada.”
A resposta da representante da SEDH era que “tínhamos” (no caso, a militância) que
reconhecer que existiam avanços, mas “o tempo da gestão é diferente do tempo da
militância”. Em seguida, outro militante se inscreve, aponta os desafios de levantar o tema
da diversidade sexual no cotidiano, afirma o quanto as pessoas LGBT têm contribuído com
uma nação “plural” e “produtiva” e tece elogios à SEDH pelo trabalho que vem
desenvolvendo: “Acredito que estamos caminhando para o reconhecimento da cidadania
LGBT. Certamente queremos que o presidente Lula e o ministro Vanucchi continuem
investindo, cada vez mais, nas políticas de combate à violência.”
As duas cenas que trago como abertura deste capítulo retomam ideias de Estado e
sociedade civil que pretende-se discutir ao longo do mesmo. A compreensão de um Estado
“demiurgo”, que tem capacidade de erradicar problemas instantaneamente, é recorrente em
algumas intervenções na/da militância. Ao mesmo tempo, a perspectiva de que a gestão
pública pode justificar suas ineficiências com alegações de “tempo” aloca na burocracia
estatal este “lugar” demiurgo, abstrato e inalterável. As dificuldades de estabelecer uma
comunicação eficaz e uma memória documental pública na gestão governamental também
torna a administração pública um “agente do impasse” na execução de ações contínuas,
independentemente das alternâncias partidárias na gestão federal.
Essas relações estabelecidas tanto na compreensão do papel do Estado (e sua
burocracia) quanto no papel da sociedade civil correspondem a ideários de nação, de Estado-
nação, que se configuram de uma forma rígida em nosso pensamento, de tal maneira que
dificilmente conseguimos pensar uma cultura sem Estado, ou em uma sociabilidade e formas
de viver e lutar fora do Estado (BUTLER e SPIVAK, 2009; CURIEL, 2011). Essa linguagem
naturalizada que tem o Estado como centro, dificulta a observação de que o racismo, o
sexismo e a homofobia estão mais imbuídos no projeto de nação de um Estado do que na
cultura dos povos originários de nossas regiões.

2.1 Estado, nação, nacionalismo e Estado-Nação: aportes preliminares

Curiel (2011) elaborou reflexão sobre o regime heterossexual e a nação, destacando


como o primeiro se vincula ao projeto de nação desenhado nos moldes coloniais no período
da Constituinte na Colômbia. Alguns trabalhos brasileiros também têm se dedicado a
43

reconstituir de forma interseccionada os nacionalismos raciais, sexuais e de gênero, todavia


pelo âmbito da literatura (MISKOLCI, 2012; MOUTINHO, 2004). O debate inspirou que os
capítulos desta tese de doutoramento fossem iniciados refletindo sobre Estado, nação,
nacionalismo, Estado-Nação, cidadania e democracia, destacando os processos que
envolveram a concepção e formação da identidade nacional no “Brasil moderno16”.
O Estado, o nacionalismo, a nação e o Estado-Nação ocuparam as reflexões de
diversos autores/as clássicos e contemporâneos da sociologia, antropologia, filosofia e ciência
política. Esses termos estão vinculados nesses estudos, independentemente de sua filiação
teórica, à modernidade – cujo projeto histórico estaria imbricado nas concepções do
Iluminismo, da Revolução Francesa e no advento do capitalismo.
Harvey (2009) afirma que a história do termo “moderno” é bem mais antiga do que o
“projeto de modernidade”, conceito que Habermas (1983 apud HARVEY, 2009, p.23) utiliza
para descrever o projeto dos intelectuais iluministas de domínio científico da natureza, com
vistas à “liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais”.
Assim, o pensamento iluminista articulou-se em torno da ideia do progresso, buscando
romper com a história e a tradição através da modernidade (HARVEY, 2009). Todavia,
pensadores das teorias pós-coloniais têm questionado essa linha temporal, propondo, como
Dussel (2005), que a modernidade tivesse como marco inicial o mercantilismo mundial
inaugurado pela Espanha, primeira nação moderna17; a expansão portuguesa ao extremo
Oriente no século XV e o descobrimento da América hispânica. E, como segunda etapa da
Modernidade, a Revolução Industrial e a Ilustração no século XVIII teriam aprofundado o
processo iniciado no século XV – que tornou a Europa Moderna “centro” da história mundial
–, reforçado pelo investimento em tornar outras culturas como sua “periferia”.
A modernidade foi caracterizada pelas transformações das relações humanas e
estruturas de sentimento, nomeadas por Elias (1993) como “processo civilizador”. Dussel
(2005), ao questionar o caráter mítico da modernidade, critica o caráter civilizatório da
modernidade, atribuído como inevitável tanto quanto os prejuízos e sofrimentos advindos da
modernização dos “povos atrasados, das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser
frágil” (p.29). Se, para Elias (1993), o Estado é quem assumiria o papel central na construção
dessa sociedade “civilizada”, para Lowy (2006) será ele o operador da “barbárie civilizada”,

16
O termo “Brasil moderno” é utilizado em referência a Octávio Ianni (2004) em A ideia de Brasil moderno,
obra na qual o autor destaca que “a nação é real e imaginária” (p. 08) e que em nosso país predominou o
“fascínio pela modernidade como ideia, forma ou ilusão, sem questionar de onde vem, para onde vai” (p.45).
17
Segundo Dussel (2005), os processos que localizam a Espanha como primeira nação moderna são: a criação da
Inquisição (como um consenso de “cima para baixo”), a conquista de Granada (emergindo um poder militar
nacional), o domínio da Igreja pelo Estado (com apoio de cardeais) e a edição da gramática castellana (em 1492).
44

ao camuflar, em um ideário de “progresso”, a essência intolerante de atitudes destrutivas,


possibilitando o extermínio da diversidade humana.
Neste bojo, cabe evidenciar algumas noções sobre Estado. Numa definição pela
sociologia weberiana, cabe considerá-lo detentor do “monopólio da violência legítima”,
conceituação corrigida por Bourdieu (2014, p.30), que o redefine enquanto “monopólio da
violência física e simbólica” ou “setor do campo do poder que se pode chamar de campo
administrativo ou campo da função pública”.
Numa leitura marxista, definiu-se o surgimento do capitalismo como exigência à
constituição de novas formas de reprodução social, que substituíram as organizações do
feudalismo europeu e o escravismo colonial na América (MASCARO, 2013) pelo Estado
moderno. Cabe relembrar que em Marx o Estado é um aparato essencial para reprodução do
capitalismo e tinha por finalidade proteger e gerir “os interesses da burguesia”.
Posteriormente, Engels (2002) desenvolve a compreensão de que o Estado está atrelado à
necessidade ocasionada por um determinado grau de desenvolvimento econômico, tornando-
se efeito da divisão da sociedade em classes. Deste modo, o Estado é a expressão da
dominação de uma classe. Ainda no campo da tradição marxista, Gramsci (1976) amplia essa
concepção afirmando que o Estado – formado pela sociedade política (Estado) e a sociedade
civil18 – é sempre uma combinação de hegemonia19 e coerção, ou seja, é produto de uma
correlação de forças. Outras concepções decorreram das reflexões de Marx e Gramsci, como
aquelas desenvolvidas por Althusser e Poulantzas, não sendo, contudo, de meu interesse
desenvolvê-las neste trabalho.
Segundo Mascaro (2013), embora haja recorrente identificação entre Estado e nação,
o que forjou inveridicamente a compreensão de que o Estado é a forma política nascida da
nação, as sociedades capitalistas é que se utilizaram do Estado para conceber o conceito de
nação.
Neste sentido, Curiel (2011), apoiando-se nas contribuições de Benedict Anderson,
traz a seguinte definição de nação:

[...] una comunidad política imaginada inherentemente limitada y soberana:


comunidad porque a pesar de las desigualdades y la explotación existentes en su
interior, sus integrantes se conciben desde un compañerismo, profundo, fraterno,
horizontal; imaginada porque existe por tanto la idea de comunión, aunque sus
integrantes no se conozcan y no se relacionen entre sí; limitada, porque sus fronteras
son finitas aunque elásticas, y porque la nación nunca se assumirá como la
humanidad completa; soberana porque todos y todas en la nación sueñan con ser

18
Esse conceito é desenvolvido nos demais capítulos deste trabalho.
19
A hegemonia é entendida aqui como predomínio dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas.
45

libres, siendo la garantia y el emblema de esa libertad, el Estado Soberano. Las


raíces culturales del nacionalismo están en esa fraternidad y esta libertad imaginada
que justifican incluso que se mate y que se esté dispuesto a morir por la nación
(CURIEL, 2011, p.55).

Em consonância, Bourdieu (2014) aponta que a comunidade imaginária que define as


nações é uma construção de intelectuais que se interessam na nação. Os intelectuais têm a ver
com o que se refere ao capital cultural: “Ora, o capital cultural é tanto mais nacional na
medida em que é mais ligado à língua nacional, e tanto mais internacional na medida em que
é mais independente da língua nacional” (BOURDIEU, 2014, p.452).
Destarte, corroboramos com a compreensão bourdieusiana de que uma nação é
composta por um conjunto de pessoas que comungam da mesma percepção de Estado, a partir
da mesma visão sobre os problemas fundamentais.

Tanto assim que a noção de “caráter nacional”, que estava muito na moda no século
XIX, aparece na verdade como a simples ratificação de estereótipos nacionais, de
preconceitos nacionais: ela deve ser completamente varrida do espaço teórico – é
uma forma de racismo apenas sublimada (BOURDIEU, 2014, p.452).

Logo, é possível afirmar que a definição de nação é fruto de concepções recentes,


delineadas no percurso histórico pós século XVIII. Eric Hobsbawm (2011), um dos
pensadores que mais contribuíram para a compreensão dos conceitos de nação e
nacionalismo, afirma que em uma nação moderna a característica básica é sua modernidade.
A afirmação é feita no sentido de confrontar a ideia naturalizada da identificação nacional
como algo fundamental e precedente à construção da própria nação moderna. Com o intuito
de opor-se a essa suposição, o pesquisador busca reconstituir os sentidos aplicados aos termos
nação ao longo da história. Como exemplo, ele utiliza o Dicionário da Real Academia
Espanhola, onde a palavra “nación” ganha significados distintos durante os anos.
Até 1884 o termo nación significava um conglomerado de habitantes em uma
província, país ou reino. Após esse período, a palavra passa a ser aplicada a um Estado ou
corpo político cujo governo delimita um território constituído por este Estado, bem como seus
habitantes. Deste modo, na visão ibérica, a nación conforma um conjunto de habitantes de
uma país sob mesmo governo (HOBSBAWM, 2011).
Na Alemanha, o termo “nação” era frequentemente usado como sinônimo de
“estamento” da sociedade ou para qualquer associação ou sociedade. Logo, é possível afirmar
que, em seu sentido moderno e político, nação é um termo recente. Frequentemente, o
46

significado de “nação” era vinculado a um sentido político, equalizando o povo e o Estado aos
moldes das revoluções francesa e americana (HOBSBAWM, 2011).

[...] a nação era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva constituía como um
Estado concebido como sua expressão política. Pois, fosse o que fosse uma nação,
ela sempre incluiria o elemento da cidadania e da escolha ou participação de massa.
John Stuart Mill não definiu nação apenas pela posse do sentimento nacional.
Também acrescentou que os membros de uma nacionalidade “desejam que seja um
governo deles próprios, ou exclusivamente de uma porção deles” (HOBSBAWM,
2011, p.31).

Analisando as reflexões de alguns pensadores influentes do século XIX, Hobsbawm


(2011) destaca a compreensão de Pierre Vilar, para quem a característica do povo-nação seria
a representação do “interesse comum contra os interesses particulares e o bem comum contra
o privilégio” (HOBSBAWM, 2011, p.32), e de John Stuart Mill, para quem o Estado nacional
deveria encontrar viabilidade e ser desejado pela própria nacionalidade. Este, embora tenha
seu trabalho considerado menos expressivo que o de Adam Smith no final do século XVIII,
apresenta compreensão central na perspectiva liberal de “nação”, demonstrando reflexões
mais substanciais sobre esse debate. Assim, o investimento intelectual de um expoente liberal
fez com que Hobsbawm (2011, p.37) questionasse se havia sido um “acaso histórico o fato de
a era clássica do liberalismo do livre comércio ter coincidido com a “formação de nações”.
Retomando Molinari, Hobsbawm (2011, p.40) destaca que “a fragmentação da humanidade
em nações é útil na medida em que se desenvolve um princípio extremamente poderoso de
competitividade econômica”.
É nos tratados de paz da Primeira Guerra Mundial que o “princípio de nacionalidade”
se estabelece como tema maior da política internacional (dando margem à criação de 27
Estados na Europa), colocando em cena critérios para legitimidade de uma nação. Assim, para
ser uma nação era preciso, portanto, uma associação com um Estado existente ou com um
passado recente e estável e a “existência de uma elite cultural longamente estabelecida, que
possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito” (HOBSBAWM, 2011, p.49). Some-
se ainda a isso possuir condições de dominar e colonizar outras regiões, conforme a ideologia
liberal – o que implica em um discurso da “nação como progresso” –, legitimando a
assimilação de comunidades e povos.

[...] o nacionalismo e o raciocínio eugênico vão juntos com um entusiasmo pela


revolução industrial e, mais surpreendentemente ainda, pela criação de um corpo de
“cidadãos do mundo” (HOBSBAWM, 2011, p.52).
47

Embora a naturalização do nacionalismo faça com que se suponha que Estado e


nação nasçam juntos, a nação só se tornou viável com o surgimento do Estado moderno20,
mais precisamente com a criação de Estados-nações. O nacionalismo, independentemente dos
sentimentos que podem envolver o pertencimento a uma “comunidade imaginada”, inexiste
sem a criação de Estados-Nação adequados aos critérios étnico-linguísticos (HOBSBAWM,
2011).
Cabe retomar que os Estados são lugares de poder, mas não a única forma de poder.
Não existe apenas o modelo Estado-Nação. Há diversos exemplos de estado não nacionais. O
que demonstra que Estado e nação são termos que podem ser usados de forma dissociada ou
conjuntamente. O Estado-Nação é uma estrutura de poder, iniciado sobre um território e sua
população, onde o processo de nacionalização se desenvolve em um dado período de tempo e
em um espaço razoavelmente estável e um poder político centralizado. “Este espaço é, nesse
sentido, necessariamente um espaço de dominação disputado e conquistado a outros rivais”
(QUIJANO, 2005, p.119).
O Estado-Nação irá determinar a estrutura institucional e legal que delimita o
território, independentemente do fato de determinadas estruturas não fazerem parte do
aparato. Desta forma, o Estado supõe modos de pertencimento jurídico, mas também pode
definir a fonte de não pertencimento (BUTLER e SPIVAK, 2009).
Tal modelo de Estado, se organiza politicamente por ser uma sociedade
nacionalizada. O que faria alusão a “instituições modernas de cidadania e democracia
política” (QUIJANO, 2005, p.119). Portanto, se conjectura que o Estado deva ser a matriz
para “derechos y obligaciones del ciudadano, lo cual define las condiciones por las cuales
estamos vinculados juridicamente” (BUTLER e SPIVAK, 2009, p. 44). Todavia, Butler e
Spivak (2009) também apontam formas de como ser “sem-estado” estando dentro do Estado –
ser “sem-estado” é estar desprovido de formas jurídicas de pertencimento –, exemplificadas
na condição dos encarcerados, escravizados ou de pessoas que residem e/ou trabalham
ilegalmente.
Quijano (2005) descreve que o processo de expressão da identidade dos membros de
um Estado-Nação depende de uma limitada participação e democratização do “controle do
trabalho, dos recursos produtivos e do controle da geração e gestão das instituições políticas”

20
Embora estejamos utilizando o termo Estado “moderno”, concordamos com a afirmação de Quijano (2005):
“A modernidade é, assim, também uma questão de conflito de interesses sociais. Um deles é a contínua
democratização da existência social das pessoas. Nesse sentido, todo conceito de modernidade é necessariamente
ambíguo e contraditório” (p. 114).
48

(p.119). Esse processo de “homogeneização”, conforme classifica o autor, não poderia vir a
implicar cidadania no plano da igualdade jurídica, civil e política às pessoas desiguais
socialmente se fossem radicalmente antidemocráticas (QUIJANO, 2005).
Desta forma, podemos afirmar que o processo que antecedeu a formação do Estado-
Nação na Europa envolveu um duplo movimento. De um lado, a colonização interna de povos
cuja identidade se diferenciava, como os muçulmanos e judeus; e do outro lado, a colonização
imperial de povos externos à Europa, em outros territórios como na América e África.
(QUIJANO, 2005). Neste movimento interno, o sucesso da nacionalização se deu tendo como
condição básica o processo de democratização da sociedade e de sua organização política em
um Estado-Nação moderno. Quanto ao movimento externo, vamos nos dedicar a analisá-lo a
partir da situação brasileira, conectando-a brevemente às experiências latino-americanas.

2.1.1 Brasil moderno e o projeto de nação

O sentido da colonização brasileira ocupou as análises de Prado Júnior (2011), que


enfatiza a servilidade do país nas dinâmicas de fornecimentos de mercadorias ao comércio
europeu − movimento que organizou tanto a sociedade quanto a economia do Brasil, e que
perdurará por séculos, se agravando no século XX. Ianni (2004) identificou a contínua
associação de capitais estrangeiros e nacionais, o monopólio do aparelho estatal pelo capital
financeiro, a economia primária exportadora e a industrialização substitutiva de exportações
como desdobramentos desse processo.
Do declínio do regime escravocrata à abolição, e da emergência do trabalho às lutas
por melhores condições de trabalho que sucederam esse período, constituiu-se a “questão
social” na sociedade nacional, segundo Ianni (2004). Sobre a escravidão, Souza (2003) afirma
que não apenas ela como os “interesses organicamente articulados à escravidão” (p.103)
foram determinantes na promoção da unidade no território brasileiro, como também definiram
o modo de vida do homem livre. Souza (2006), utilizando o trabalho de Freyre21, também
destaca o trabalho escravo, atrelado à agricultura da monocultura, à família patriarcal, como
base social da empreitada colonial. Deste modo, o patriarcalismo seria

21
Gilberto Freyre é citado por Souza (2003, p.102) como um dos pensadores sociais mais talentosos, mas
também como “nosso maior ideólogo e mistificador”. Destaco que Freyre tornou-se conhecido como o
idealizador do “mito da democracia racial”. Segundo Sueli Carneiro (2011), ele elaborou em sua obra parâmetros
de regulação das relações raciais no Brasil, sendo estas consideradas harmoniosas em Freyre.
49

[um] modelo de organização social, [no qual] a autoridade máxima é exercida pelo
pater famílias, que, através de relações pessoalizadas, articula o público e o privado
em torno de seu poder de mando. A imagem do pater famílias funciona em Freyre (e
nas análises que a tomam como um modelo) como a representação da virilidade –
com sua dupla moral sexual –, e, ainda, como um modelo nacional de dominação,
vide o “sadismo de mando” – algo que abarca desde a conduta mais individual até
uma representação nacional. Às mulheres cabe, nesse modelo, atuar no espaço
doméstico e zelar, através de uma conduta moral e sexual retilíneas e da educação
das crianças, pela honra da família. Aos homens, no “patriarcalismo poligâmico”, é
concedida a autoridade máxima como pai e marido. O pater famílias não vivia com a
esposa “branca” a satisfação do desejo sexual e sim com a amante “negra”. O
casamento, aliás, não é o espaço para a vivência do erotismo: nem para o homem,
nem para a mulher (MOUTINHO, 2004, p.66).

O pacto colonial sobreviveu por cerca de 400 anos, quando iniciam-se os processos
que culminarão em sua ruptura e na formação de um novo Estado-Nação. Vianna (1996, s/p)
aponta que a experiência do Brasil se diferenciou da América Hispânica, cujo impulso inicial
teria “características de um típico processo revolucionário nacional-libertador”. Enquanto
aqui o ato político que culminou na independência, de iniciativa do príncipe herdeiro da Casa
Real, foi um “processo clássico de cooptação das antigas lideranças de motivação nacional-
libertadora”, a ausência do encontro “intelectuais-povo” gerou uma “revolução passiva”, nos
termos de Gramsci, que deu-se lentamente na transição da ordem escravocrata para a ordem
competitiva, perpassando da abolição à constituição do mercado livre também pelas forças de
trabalho, sem mudanças no interior das elites (VIANNA, 1996). Essa dinâmica demonstra as
características que o Estado-Nação delineará em si, demonstrando que:

Não são as estruturas econômicas herdadas da Colônia que impõem a forma do


Estado, e sim o oposto: é o Estado que, ao restaurá-las, inicia a sua história com a
única alternativa econômica compatível com a vocação da sua estratégia
territorialista. O período da Regência vai deixar claro que o impulso americano em
favor da livre iniciativa, do mercado e da descentralização política, se podia trazer a
afirmação da liberdade, certamente implicava a perda da unidade territorial. E esse
compromisso do Estado de forma liberal com meios pré-capitalistas de extração do
excedente econômico vai caracterizar, na ampla galeria de casos nacionais de
revolução passiva, a solução brasileira como talvez a sua modalidade mais recessiva,
e não apenas por sua precocidade, mas sobretudo pelo sistema de orientação pré-
moderno das suas elites políticas, cujo liberalismo é prisioneiro do iberismo 22
territorialista (VIANNA, 1996, s/p.).

22
Durante o delineamento do projeto de nação e a constituição do Estado brasileiro, a elite intelectual se pôs em
disputa de concepções. Segundo Vianna (1991), as análises eram divididas entre os Americanistas e Iberistas.
Aqueles viam na transplantação do patrimonialismo português no período colonial e na vinda da família real ao
Brasil a grande fonte de nossas mazelas, e teve por expoente Tavares Bastos. Estes identificavam em nosso
particular processo de formação social o grande responsável pelo chamado “atraso” brasileiro, e teve por
representante Oliveira Vianna. Ambas percepções tinham em comum a compreensão de que o processo da
independência envolvia construir uma ordem que prevalecesse em relação ao “localismo e as forças centrífugas
que animavam as novas nações depois de expulso o aparelho estatal do colonizador” (p.149).
50

De tal forma, o projeto de nação no Brasil vai sendo desenhado ao final do século
XIX, assim como, de uma forma geral, na América Latina os processos de independência e
início da república ocorrerão entre meados e fim desse mesmo século. Hobsbawm (2011)
reflete sobre os movimentos nacionalistas de libertação do “Terceiro Mundo” nos fins de
século XIX e durante o século XX, e afirma que, embora tenham sido teoricamente moldados
no nacionalismo ocidental, os Estados que construíram foram “o oposto das entidades
linguísticas e etnicamente homogêneas que vieram a ser encaradas como a forma de padrão
do “Estado-Nação” no Ocidente” (p. 196). A exemplo disso, Curiel (2011) destaca que a
Constituição da Colômbia reconheceu a multietnicidade de seu povo (tendo sido feita sua
tradução, a pedido dos grupos indígenas, a sete línguas vernáculas), utilizando também, como
forma de garantir sua assimilação à identidade nacional, caminho diferente dos processos de
constituição do Estado-Nação na Europa. Contudo, esses Estados se assemelharam fortemente
ao nacionalismo da era liberal no ocidente (HOBSBAWM, 2011).
No Brasil, conforme as análises de Miskolci (2012), a recém-proclamada República
precisava provar que era uma forma de governo que garantiria a ordem, o progresso e a
estabilidade. Nas concepções de Ortiz (1992), Ianni (2004) e Vianna (1991;1996), a transição
da monarquia (baseada no modelo escravista) para república (alçada no trabalho livre) é
considerada em termos políticos, intelectuais e econômicos. Somando-se a essas análises,
destacamos as contribuições de Moutinho (2004) e Miskolci (2012), que apresentam
argumentos em que evidenciam que, para além dessas interpretações atreladas às análises das
leis, intenções de regulamentações e proibições, se formulou, sem planejamento, uma
“política demográfica estatal” (MISKOLCI, 2012, p.26).
A ideia de nação que se consolidou neste momento histórico definia-se pelo
autoritarismo, reunindo concepções do modernismo – e do progresso – a um forte
conservadorismo político, “um desejo de mudança sem alterar hierarquias e privilégios”
(MISKOLCI, 2012, p.22). O culto ao progresso pela elite do século XIX demonstra a
avaliação negativa que esta fazia do povo brasileiro e a esperança no futuro guiada pela
vontade de se assemelhar à Europa.
Destarte, o desejo que se construiu de nação se ancorava em um “desejo de
modernidade”, todavia atrelado a um princípio de reforma da ordem social. Essa “avaliação
negativa” do próprio brasileiro também foi explicada por Ortiz (1992, p.16) em análise
literária na qual afirma que a história do Brasil foi “apreendida em termos deterministas”
como “clima e raça” para ilustrar a suposta indolência brasileira.
51

A nação foi interpretada pela elite econômica, política e intelectual do Brasil como
“sinônimo de homogeneidade racial e de harmonia política ou, melhor dizendo, de
branquitude e civilização” (MISKOLCI, 2012, p.30). Raça, gênero e sexualidade se
conectavam nos medos da elite e se associavam nas analogias de inferioridade, nas quais
mulheres, negros e “os recentemente denominados de homossexuais eram vistos como
“ameaças” à ordem, daí começarem a ser associados à anormalidade, ao desvio e até mesmo à
doença mental”. Sendo vistos de maneira suspeita justificando “demandas estatais, sobretudo
médico legais, de controle e disciplinamento” (MISKOLCI, 2012, p.39).

O desejo da nação se associava à emergência de uma demanda de controle e


regulamentação modernas, antitradicionais, incompatíveis com a estrutura da ordem
monárquica. O ideal de nação branca e civilizada vinculava o projeto político
iminentemente coletivo com o controle e disciplinamento da vida individual e
íntima. As ansiedades coletivas e individuais tinham um eixo comum já que se
baseavam em inimigos internos simetricamente constituídos pelos discursos
intelectuais vigentes. Em termos coletivos, temia-se a reprodução ou a
preponderância das raças consideradas inferiores e inaptas ao progresso, o que
ocorreria inevitavelmente se não se inculcasse no indivíduo a responsabilidade pelo
autocontrole e domínio sobre os instintos, vistos como ameaça e sempre à espreita à
moralidade da qual dependia a formação de casais saudáveis que gerariam os filhos
da nação (MISKOLCI, 2012, p.42-43).

Esse temor da preponderância das raças consideradas inferiores (negros e indígenas)


vai esboçar uma política de miscigenação que acabará sendo o maior suporte do mito da
democracia racial. Nesta linha político-interpretativa, em que a relação sexual entre brancos e
negras ou indígenas indicaria nossa “tolerância racial”, o que na reflexão de Carneiro (2011,
p.66) “omite o estupro colonial praticado pelo colonizador sobre as mulheres negras e
indígenas”, a miscigenação tornou-se um “instrumento eficaz de embranquecimento”,
hierarquizando no topo o “branco da terra” e na base o “negro retinto”, beneficiando
simbolicamente os intermediários na sua proximidade com o “ideal humano, o branco”
(CARNEIRO, 2011, p.67). Diferenciações estas que, para a autora, vêm fragmentando a
identidade negra, dificultando a aglutinação no campo político para as reivindicações de
equidade racial.
Retomando o debate a respeito das consequências da miscigenação na definição de
nação, destacamos que juntamente com a questão racial também estavam em jogo as
diferentes definições de feminilidade e de masculinidade. Como argumento, destaca-se que o
mestiço era sinônimo de efeminado ou de pederasta passivo, nos termos da época. Essa
posição o diferenciava do branco, alocado na condição de heterossexual (CORREA, 1996).
52

Assim, a assimilação ou não ao ideário de nação serviu para justificar, no plano da


cidadania, o monopólio das elites, “excluindo os negros, todas as mulheres, menores, pobres,
loucos, mendigos, prisioneiros e desonrados, todos aqueles que não consideravam ter uso
completo de sua liberdade, razão ou posses” (MISKOLCI, 2012, p.52). Observa-se, diante
disso, as conexões que raça, gênero e sexualidade tiveram no contorno do projeto de nação do
Brasil.
Destacamos aqui, em concordância com Vianna (1996), que

Se a revolução passiva das elites territorialistas traduziu o seu programa de criar


uma nação para o seu Estado, a nação que vem emergindo do processo de conquista
de direitos e da cidadania por parte das grandes maiorias ainda não concebeu o seu
Estado. A história da sua constituição tem-se dado mais no plano societário,
americanização tardia, "por baixo", que se realiza em um movimento de rupturas
moleculares com o que importa constrangimentos à sua autonomia e em suas ações
em defesa dos seus interesses e direitos (VIANNA, 1996, p.24).

Assim, o desejo de nação brasileiro foi-se construindo pressupondo uma correlação


entre o poder estatal e as elites (MISKOLCI, 2012). Percebe-se, então, o quanto esse projeto
impactará no desenho de Estado, e, consequentemente, nos processos de cidadania e nas
políticas sociais do Brasil.

2.2 Cidadania e política social

É notório que com o surgimento do Estado-Nação, no bojo da transição capitalista,


emergiu também o reconhecimento da “condição de cidadão” ao povo. O que estabeleceu um
vínculo do cidadão com o Estado através de uma lógica de direitos e deveres no espaço
público.
A esfera pública23 é tomada de Habermas (2003; 2007), neste trabalho, como um
conjunto de “configurações de visibilidade” dados através de controvérsias públicas expressas

23
Habermas, ao analisar o desenvolvimento do capitalismo mercantil na Europa do século XVII, demonstra que
este desenvolvimento incitou o surgimento de um espaço entre a esfera privada e o Estado, espaço este
caracterizado pela discussão livre e racional do exercício da autoridade política. Para o autor, “há duas mudanças
fundamentais subjacentes à emergência dessa esfera. A primeira refere-se ao que ele denomina de separação
entre os interesses vinculados à economia doméstica e à subjetividade. [...] A segunda [...] refere-se à mudança
na relação da burguesia com o poder. A burguesia é a primeira classe governante cuja fonte de poder é
independente do controle do Estado e que se localiza no nível privado. Sua relação com o poder é, nesse sentido,
estruturalmente diferente de outras classes na história, uma vez que renuncia ao exercício direto do governo,
reivindicando, contudo, o direito de ter conhecimento do que faz o Estado. Tal demanda serviu, assim, para
conferir um caráter público às relações entre Estado e sociedade. Isto é, como resultado da reivindicação por
53

em um processo discursivo que produz legitimidade social. É na esfera pública, “lugar da


participação direta” (AVRITZER e COSTA, 2004), que as disputas e tensões discursivas em
torno do exercício de cidadania ocorrem. Entende-se aqui, portanto, que

[...] a esfera pública é constituída basicamente de fluxos discursivos. Quem e o que


se pode dizer passa sempre por um processo, historicamente determinado de
produção de legitimidade para falar e produção de legitimidade sobre o que pode ser
dito (MONTERO, 2012, p. 177).

Neste sentido, no que se refere à “condição de cidadão”, há um fetiche identificado


por Simone Lessa (2006, p.10-11) no fato de que “em um Estado Liberal constituir-se-á uma
cidadania liberal”. Em outras palavras, o direito estabelecido pelo Estado não é suficiente para
definir e assegurar a cidadania de todas as pessoas, tendo em vista que se inscreve numa
determinada correlação de forças sociais. Apoio-me aqui na noção de correlação de forças de
Antônio Gramsci (2000), que reconhece um movimento dual de concessão-conquista, que se
reflete no campo das políticas sociais, por exemplo.
Ao referirmo-nos à cidadania, é inevitável não citar a análise de T. H. Marshall24,
elaborada no final dos anos de 1940. Marshall considerou que a cidadania era composta de
três grupos de direitos, desenvolvidos em épocas diferentes: direitos civis (século XVIII),
direitos políticos (século XIX) e direitos sociais (XX). Na compreensão de Pereira (2011,
p.98) os direitos tradicionais (civis e políticos) e os novos direitos (sociais e econômicos) são
discrepantes e incompatíveis entre si, posto que os primeiros servem à ideologia do
individualismo e do livre mercado, enquanto os segundos impõem limites ao “despotismo do
mercado” e ao “individualismo possessivo dos cidadãos”. É plausível também considerar a
crítica de Rios (2006) quando aponta que a noção clássica de Marshall sobre cidadania utiliza
uma perspectiva de universalidade que desconsidera a dimensão de gênero e invisibiliza
àqueles que não se conformam na ideia de “sujeito universal” – homem, europeu, branco,
cristão e heterossexual.
Outra noção de trajetória dos direitos pode ser encontrada em Norberto Bobbio
(2004), que propõe pensarmos a cidadania a partir de “gerações de direitos”. O autor as divide
quatro gerações, sendo: a primeira, referente aos direitos individuais, pressupondo igualdade
formal perante a lei e liberdades individuais; a segunda, relacionada ao direitos coletivos, que

parte da burguesia da prestação pública de contas, emergiu uma esfera constituída por indivíduos que buscam
submeter decisões da autoridade estatal à crítica racional” (AVRITZER e COSTA, 2004, p. 707).
24
A concepção de Marshall foi criticada por alguns segmentos dos movimentos feministas, mas muito aceita
pelos movimentos filiados à perspectiva da social-democracia nos anos 50, 60 e 70 na Europa. Todavia, Pereira
(2011, p.95) aponta que ele foi central no dimensionamento da compreensão da política social para além de
“uma visão paternal ou contratual”.
54

permeiam os direitos sociais, que objetivam a garantia de condições materiais


imprescindíveis, como o direito ao trabalho; a terceira, alusiva ao direito de fraternidade ou
solidariedade, que indicam os direitos coletivos e difusos, como o direito do consumidor e o
direito ambiental; e a quarta, remissiva aos direitos de manipulação genética que tratam das
questões de vida e da morte.
Rita Segato (2006) acompanha a crítica de Cançado Trindade (2000, apud SEGATO,
2006) quanto as gerações de direitos de Bobbio.

Antônio Augusto Cançado Trindade, em sua crítica à formulação da tese das


"gerações de direitos humanos" de Norberto Bobbio25, pergunta-se: Por que razão a
discriminação é combatida e criticada somente em relação aos direitos civis e
políticos e é tolerada como inevitável em relação aos direitos econômicos, sociais e
culturais? Porque são supostamente de "segunda geração" e de realização
progressiva. Então, vemos uma condenação absoluta de qualquer tipo de
discriminação quando se trata do direito individual, ou mesmo de direitos políticos,
mas uma tolerância absoluta quando se trata de disparidades em matéria de salários,
de renda e assim por diante. Em vez de ajudar a combater esta visão atomizada, essa
teoria das gerações dos direitos valida esse tipo de disparidade [...]. [No entanto], no
caso da China, para os chineses, ao contrário dos norte-americanos, os verdadeiros
direitos são econômicos e sociais. Os direitos civis e políticos, os direitos ao devido
processo ficam para o século XXI ou para o século XXII (Cançado Trindade, 2000).
(CANÇADO TRINDADE, 2000 apud SEGATO, 2006, p. 213).

A definição de cronologias incorre em modelos que dificilmente serão aplicáveis


para a história de nações distintas, mas esse instrumento tem sido recorrentemente usado
pelos cânones das ciências sociais inclusive entre aquelas/es que compartilham de visões
políticas progressistas como Bobbio (2004) e Marshall (1967). Acerca deste segundo autor,
observando o processo de construção da cidadania no contexto nacional, cabe ressaltar que

A cronologia e a lógica da sequência descrita por Marshall foram invertidas no


Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de
supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se
tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A
maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os
órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime.
Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall,
continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada
de cabeça para baixo (CARVALHO, 2008, p. 220).

25
“Tese cuja formulação original, diga-se de passagem, Cançado Trindade atribui a Karel Vasak, em uma
conferência pronunciada em 1979 no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo, sem que seu
criador lhe tenha dado, mais tarde, grande transcendência. Segundo Cançado Trindade, o próprio Vasak
confessou-lhe, depois, que se tratava simplesmente de uma forma de organizar sua exposição, à falta de uma
idéia melhor na ocasião, mas não de um enunciado de um modelo definitivo para a compreensão dos direitos
humanos” (SEGATO, 2006, p.213).
55

O que José Murilo de Carvalho (2008) anuncia acima se correlaciona com o que
Marilena Chauí (2007) diz ao afirmar que “ter direitos é também ter poder”. Um direito não é
concedido, mas é, portanto, conquistado e cultivado, por ser uma forma de poder. Partindo
daí, Chauí descreve que,

[...] na sociedade brasileira, a maioria da população está desprovida de direitos


porque está desprovida de poderes. E que, portanto, o processo político no Brasil,
ao ser um processo de criação de direitos, é um processo de constituição de
poderes, populares, sociais, culturais – que se exprimem como poderes políticos.
Nós estamos num processo de constituição dos direitos-poderes, mas nós não os
temos ainda. O que temos é aquilo que ainda classicamente se chama à democracia
formal. Mas é preciso uma democracia social e cultural (CHAUÍ, 2007, p.41).

Neste percurso, as políticas sociais vêm se configurando em respostas às demandas


da sociedade civil por ampliação de direitos – ora legitimadoras da ordem estabelecida, ora
potenciais instrumentos para emancipação política. Corroboro as explanações de Elaine
Behring e Ivanete Boschetti (2007) quando se opõem a análises que compreendem as políticas
sociais enquanto “iniciativas exclusivas do Estado para responder a demandas da sociedade e
garantir hegemonia ou, em outro extremo, [que] explicam sua existência exclusivamente
como decorrência da luta e pressão da classe trabalhadora” (p.37). Não significa que as
políticas sociais não assumam essas configurações, mas estas análises são “unilaterais” e
descartam as contradições “inerentes aos processos sociais”. As políticas sociais devem ser
entendidas a partir da compreensão de sua inserção na lógica do capital, enquanto “expressão
contraditória da realidade” (IDEM, p.39). É necessário considerar também a “dimensão
cultural” que está relacionada à política, “considerando que os sujeitos sociais são portadores
de valores e do ethos de seu tempo” (IDEM, p.45).
Potyara Pereira (2011) denomina ‘política social’ como sendo uma categoria
acadêmica e política que não se limita a conhecer e interpretar o mundo real, mas atua com
vistas a transformá-lo. Alertando para as inúmeras leituras sobre política social, especialmente
em tempos neoliberais, Pereira (2011) explica que no Brasil há apenas um termo para
definições diferentes do agir no Estado, e que, portanto, deve-se atentar a essas diferenciações
entendendo que a definição de ‘política social’:

Refere-se à política de ação que visa, mediante esforço organizado e pactuado,


atender a necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada,
individual e espontânea, e requer deliberada decisão coletiva regida por princípios
de justiça social que, por sua vez, devem ser amparados por leis impessoais e
objetivas, garantidoras de direitos. [...] A política social está inextricavelmente
relacionada ao Estado, governo, políticas (no sentido de politics e polity) e aos
movimentos da sociedade [...]. Ao contemplar todas as forças e agentes sociais,
56

comprometendo o Estado, a política social se afigura uma política pública, isto é,


um tipo, dentre outros, de políticas públicas. Ambas as designações (política social e
política pública) são policies (políticas de ação), integrantes do ramo de
conhecimento denominado policy science, só que a política social é
uma espécie do gênero política pública (public policy) (PEREIRA, 2011, p.172-
173).

Destarte, como afirmam Ivanete Boschetti e Elaine Behring (2007, p.25) “toda
análise de processos e relações sociais, na verdade, é impregnada de política e disputa de
projetos societários”, não havendo, portanto, uma única perspectiva analítica para a
compreensão das políticas sociais. As autoras consideram equivocadas as análises que
discutem como as políticas sociais deveriam ser, ao invés de discutir como elas são/estão.
Esses equívocos são produto de “tensões políticas e societárias que marcam a formulação e a
cobertura das políticas sociais” (BOSCHETTI e BEHRING, 2007, p.26).
A existência de políticas sociais está associada à constituição da sociedade burguesa,
ou seja, do específico modo capitalista de produzir e reproduzir-se. Boschetti e Behring
(2007) localizam seu surgimento no período de reconhecimento da questão social inerente às
relações sociais no modo de produção capitalista, concomitante ao início de organização da
classe trabalhadora, momento em que assumem papel político revolucionário e de resistência
à exploração capitalista. Assinalam, ainda, que as classes dominantes “nunca tiveram
compromissos democráticos e redistributivos”, e que “tem-se um cenário complexo para as
lutas em defesa dos direitos de cidadania, que envolvem a constituição da política social”
(BOSCHETTI e BEHRING, 2007, p.79).
Se o surgimento das políticas sociais se relaciona com o reconhecimento da questão
social, especialmente enquanto resposta às resistências da classe trabalhadora à exploração, às
desigualdades sociais e condições de trabalho, logo, o surgimento das políticas sociais,
principalmente por se tratarem de uma ação do Estado (PEREIRA, 2011), também se articula
com a configuração do Estado-Nação. Assim, as alterações no Estado Nacional também vão
impactar na concepção das políticas sociais.
A partir deste período de surgimento, a política social se estruturou
institucionalmente – passou por experiências de bem-estar, como naqueles países que
vivenciaram o Welfare State26 – e se esfacelou após emergência do neoliberalismo,
reestruturando-se novamente no início do século XXI. A diminuição da “intensidade protetora
do Estado, no debilitamento do universalismo e no auge do privatismo, [vem] trazendo para o
26
Pereira (2011, p.23) define-o como “moderno modelo estatal de intervenção na economia que, ao contrário do
modelo liberal que o antecedeu, fortaleceu e expandiu o setor público e implantou e geriu sistemas de proteção
social”. Implantado ao final do século XIX, antes poréma reconhecido com a expressão Welfare State, foi
traduzido para “Estado de Bem Estar Social” somente no pós Segunda Guerra na Europa.
57

centro do processo de gestão do bem-estar contemporâneo arranjos tradicionais” (PEREIRA,


2011, p.201-202) que se vestem de novos, cujo objetivo é uma coesão social por meio de
pactos corporativos pautados no princípio da subsidiaridade, que incorrem em um apelo
voluntarista e baseado na lógica compensatória (PEREIRA, 2011).
Neste sentido, acreditamos que a erosão do Estado-Nação, nos termos de Netto
(2012), foi fundamental na redefinição das políticas sociais, que neste trabalho ganham
centralidade, já que se pretende traçar uma análise das políticas públicas para população
LGBT no Brasil.

2.3 Neoliberalismo e erosão do Estado-Nação

Harvey (2009) descreve que, após a crise monopolista que emerge com a recessão
generalizada em 1974-1975, o capital monopolista procura alternativas para a substituição do
padrão de acumulação “fordista-keneysiano” por outro padrão de acumulação, “flexível”, que
pressupõe um modo de regulamentação correspondente, aqui compreendido como ação
interventiva do Estado.
A redução da ação regulamentadora e o esfacelamento do Welfare State se iniciam
com a retirada das coberturas sociais públicas, rompendo com os direitos sociais através da
estratégia de “redução do Estado27” no programa de Margareth Thatcher (BOSCHETTI e
BEHRING, 2007; PEREIRA, 2011). Essa redução se mostrou nos processos de
“flexibilização”, “desregulamentação” e “privatização”, que ocorreram em decorrência da
“globalização”, ou de “mundialização do capital” (CHESNAIS, 2005).

De uma parte, a magnitude das atividades planetárias das corporações monopolistas


extrapola largamente os controles estatais, fundados na circunscrição nacional do
Estado; de outra, dada a articulação privada daquelas atividades, torna-se limitada à
intervenção estatal no nível macroeconômico. É evidente que o tardo-capitalismo
não liquidou com o Estado nacional, mas é também claro que vem operando no
sentido de erodir a sua soberania - porém, cumpre assinalar a diferencialidade dessa
erosão, que atinge diversamente Estados centrais e Estados periféricos (NETTO,
2012, p.422).

27
Essa estratégia ganhou dimensão na ótica neoliberal, iniciada no Chile no governo ditatorial de Pinochet, nos
anos 1970, apesar de ser a Inglaterra reconhecida como o primeiro país a aplicar as leis neoliberais. Contudo, é
nos anos 1990 que “o ideário neoliberal atinge predomínio mundial, como ideologia e prática, modo de
compreender e agir, forma de gestão do mercado e poder político, ordenação da sociedade e visão do mundo”
(IANNI, 1996, p.59).
58

Sobre o enfraquecimento dos Estados Nacionais, Vieira (2004) aponta que a


incapacidade de controlar as dinâmicas que extrapolam os limites territoriais − como o
fortalecimento de organismos multilaterais, a exemplo do Banco Mundial, do Fundo
Monetário Internacional, “instrumento do Norte para abrir os mercados do sul” (p.107)
atrelado à ideologia do “livre mercado” − também corroboraram para a perda da soberania
nacional nos Estados Nacionais. Ianni (1995 apud VIEIRA, 2004) considerou esses fatores
enquanto um sinal do “declínio” e abalo “pela base” do Estado-Nação. Em uma leitura mais
recente, Butler e Spivak (2009, p.99-100) afirmam que “[...] La política tanto como la
economía están intimamente ligadas a la decadencia del estado-nación”.
As formulações geradas nesse momento analítico, em que se reconheceu a perda de
soberania do Estado Nacional, promoveram expectativas diversas nos intelectuais
preocupados com o debate da cidadania e da democracia. A ideia de “sociedade civil
globalizada” e “cidadania planetária” creditam à internacionalização da esfera pública uma
alternativa de “regulação política global” (VIEIRA, 2001). Todavia o controle violento das
imigrações em alguns países e o favorecimento aos capitais especulativos em detrimento de
uma produção planejada demonstram estratégias de acirramento de uma tentativa política de
reestruturação dos Estados Nacionais.
Pesquisadores/as do direito internacional e cientistas políticos latino-americanos vêm
defendendo uma proposta de ruptura do Estado-Nação devido à emergência da noção de
Estado-plurinacional, cujas inspirações viriam de experiências latino-americanas de países
como Bolívia e Equador – do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Países que em
suas recentes constituições reconhecem o multiculturalismo de seus povos e apresentam
propostas constitucionais de paridade de participação na esfera pública aos povos originários,
rompendo com a marca de intolerância contida nas práticas colonizadoras de instauração do
Estado-Nação moderno (TAPIA, 2007).
Nancy Fraser (2002) também elaborou reflexões no início deste novo século que
perpassavam os problemas, riscos e possíveis soluções no cenário da “globalização”:

Primeiro, para contrariar o risco da substituição [das lutas pela redistribuição pelas
lutas pelo reconhecimento], propus uma concepção bidimensional de justiça que
abrange tanto o reconhecimento como a distribuição. Segundo, para contrariar a
ameaça da reificação [o risco da atual centralidade da política cultural], propus uma
concepção do reconhecimento baseada no estatuto que não conduz a uma política de
identidade. Terceiro, para contrariar a ameaça do enquadramento desajustado [o
risco de a globalização estar a subverter as capacidades do Estado para reparar
ambos os tipos de injustiça], propus uma concepção de soberania de múltiplos níveis
que descentra o enquadramento nacional. Todas estas propostas se baseiam em
traços emergentes da globalização (FRASER, 2002, p.10).
59

A justiça em Fraser (2002) é bidimensional e opera na necessidade de existir uma


redistribuição de recursos materiais que garanta “independência e voz” aos sujeitos e “[…] a
segunda condição requer que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual
respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a
consideração social” (FRASER, 2002, p. 3). A segunda é identificada pela autora enquanto
princípio da política de reconhecimento, e para ela não deve haver uma preponderância de
uma sobre a outra, pois redistribuição e reconhecimento precisam caminhar
concomitantemente. Posteriormente, Fraser (2007) adensa essa analítica com a perspectiva de
representação ou paridade de participação, como retomamos abaixo.
Segundo a autora (FRASER, 2007), a Segunda Onda28 do feminismo ocorreu no
momento de reestruturação da política social na Europa. Na década de 1960, a juventude
radical ocupou as ruas, “primeiro para se opor à segregação racial e à Guerra do Vietnã”
(FRASER, 2007, p.295), e, posteriormente, para discutir

Características centrais da modernidade capitalista que a social-democracia tinha


naturalizado até então: repressão sexual, sexismo e heteronormatividade;
materialismo, cultura corporativa e a “ética do sucesso”; consumismo, burocracia e
“controle social”. Rompendo as rotinas políticas normalizadas da era anterior, novos
atores sociais formaram novos movimentos sociais, com a segunda onda do
feminismo entre os mais visionários (FRASER, 2007, p.295).

O feminismo desse período, ao lado de outros movimentos sociais, desafiou as


desigualdades de gênero na social-democracia (regime focado na redistribuição
socioeconômica, mas com intuito de movimentar a economia). Fraser (2007, p.295) relembra
que, ao questionar e problematizar o paternalismo do Estado de Bem-Estar Social e a família
burguesa, “os feminismos expuseram o profundo androcentrismo da sociedade capitalista.

28
É na segunda metade do século XIX que se inicia a organização de mulheres, marco do que conhecemos como
primeira “onda do feminismo”, com demandas relacionadas às mulheres brancas de classe média e com
propostas de mudanças sociais mais imediatas: acesso da mulher à educação, organização da família e os
casamentos arranjados, igualdade entre mulheres e o direito ao voto. A “segunda onda do feminismo” acontece a
partir da década de 1960, com a influência da contracultura, trazendo demandas por mudanças sociais e políticas
das mulheres na época. Preocupava-se também em avançar na produção do conhecimento e aprofundamento das
teorias sobre gênero. É no desdobramento da segunda onda, e com a influência direta do movimento negro, que a
terceira onda do feminismo acontece, a partir da década de 1990. A terceira onda avança nas discussões sobre a
categoria teórica ‘gênero’, problematizando que o feminismo deveria também incluir outras experiências vividas
por mulheres que não fossem apenas as mulheres brancas de classe média. Uma ressalva, entretanto, deve ser
feita sobre esta nota. A maior parte da literatura produzida no Brasil sobre o feminismo traz um “olhar imperial”
(CONNELL, 2012) das correntes encontradas nos movimentos feministas. Entendo, contudo, que o trânsito de
pensamentos e posições são inerentes às dinâmicas dos movimentos sociais, e, consequentemente, às suas
construções, que não são estanques. Sendo assim, a perspectiva adotada nesta discussão tem efeito pontual de
localizar historicamente parte desse movimento.
60

Politizando o ‘pessoal’, expandiram as fronteiras de contestação para além da redistribuição


socioeconômica – para incluir trabalho doméstico, a sexualidade e a reprodução”. Com os
questionamentos ao dirigismo keynesiano, às demandas por reconhecimento levadas pelos
movimentos de contracultura e à queda do comunismo no leste europeu, as estratégias
ideológicas do livre-mercado ressurgiram e se recriaram no neoliberalismo. Fraser (2007)
critica, a partir desse contexto de emergência do neoliberalismo, as táticas adotadas pelo
feminismo do início da Terceira Onda, que, segundo ela, estavam “efetivamente encantadas
pela política de reconhecimento”, e sem intuito “direcionamos a teoria feminista para canais
culturalistas precisamente quando as circunstâncias requeriam atenção redobrada às políticas
de redistribuição” (p.297).
Fraser (2007) reflete sobre o enigma da igualdade e a cilada da diferença,
provocando-nos a ponderar sobre qual prisma deve-se atuar: por reconhecimento das
identidades e da diferença a partir de uma transformação cultural, ou por uma redistribuição
socioeconômica através de um novo modelo econômico? Fraser (2007) concluirá que as duas
dimensões não podem estar indissociadas, mas alerta para um mau enquadramento, combatido
pelas feministas que vêm se dedicando a uma atuação transnacional, no sentido de ampliar
críticas aos regimes territoriais que conformam as desigualdades sociais em um sentido
global. Para a autora, este mau enquadramento se resolveria incluindo uma terceira dimensão:
da representação, que traria o direito à voz política em pé de igualdade a todas as mulheres.
Isto é, promoveria justiça de gênero em um espectro transnacional – em uma integração
equilibrada.
Embora acreditemos na relevância da proposta de Fraser (2007), é preciso refletir
sobre a realidade dos países do sul global, que não vivenciaram nenhum aspecto do Welfare
State, ou tampouco se constituíram em sociedades universalistas, como a da França, que,
embora tenha apresentado um “Estado de Bem-Estar compensatório brando” (PEREIRA,
2011), tem em sua formação político-cultural valores universalistas. Observando a situação
brasileira, é importante destacar que a atual conjuntura política reflete um momento de
redução de direitos, em um Estado que constituiu suas “políticas sociais sem direitos sociais”
(VIEIRA, 2007). Acirrando as impossibilidades de reconhecimento e redistribuição, dada à
intensificação do trinômio do neoliberalismo, já em curso desde a década de 1990 em nosso
país, por via da privatização, da focalização e descentralização no âmbito destas políticas
(BEHRING, 2008).
Essa redução de direitos e esse trinômio marcam as políticas neoliberais por meio da
privatização, da focalização e da descentralização. Como exemplo, podemos citar a
61

focalização na distribuição monetária aos pobres, a partir de transferência de renda, em


segmentos populacionais e com foco na família. Importante destacar que trata-se de um
modelo de família heterocentrada, que, maioritariamente, contém um núcleo que dista de
nossos modelos e (re)arranjos familiares enquanto pessoas “L”, “G”, “B” e “T”. Outra
questão, que marca essas políticas neoliberais, refere-se além do apelo à família, também ao
voluntariado e ao chamado terceiro setor (BEHRING, 2008).
Raewyn Connell (2014, p.12) destaca ainda que “o pensamento neoliberal não tem
lugar para o gênero, além de garantias vagas de que a igualdade de oportunidade no mercado
irá resolver todos os problemas relativos à questão”. A pesquisadora australiana relembra que,
em seu país e na Nova Zelândia, o neoliberalismo foi trazido por governos trabalhistas de
centro-esquerda “em meio ao pânico diante da posição competitiva declinante na economia
global” (CONNELL, 2012, p.14). E acrescenta que, até o momento, o neoliberalismo, ainda
que amplamente criticado no sul global, tem sido teorizado a partir do norte global, o que
suporia um vínculo com as ideologias da metrópole.

De uma perspectiva do Sul, contudo, deve-se começar com o fato de que o primeiro
regime neoliberal não emergiu nem nos Estados Unidos, nem no Reino Unido, mas
no Chile (Silva, 1996). Boa parte da periferia global não tinha um Estado de bem-
estar social para ser revertido. Na Austrália e na Nova Zelândia, foram os governos
trabalhistas de centro-esquerda, não os da nova direita, os quais trouxeram o
neoliberalismo, em meio ao pânico diante da posição competitiva declinante na
economia global. A coerção também esteve relacionada à história latino-americana
do neoliberalismo, tanto quanto o pânico social (Gómez, 2004). Em boa parte do
mundo, a mudança chave trazida pelo neoliberalismo foi uma alteração na estratégia
desenvolvimentista, de uma industrialização substitutiva da importação para um
crescimento liderado por exportações e baseado em vantagens competitivas. A
estatística chave para o neoliberalismo não é o tamanho do setor público em relação
ao setor privado na economia nacional, mas o crescimento agregado do comércio
mundial (CONNELL, 2010 apud CONNELL, 2012, p.14).

Deste modo, não se deve entender o neoliberalismo somente pelo campo da


economia política, porque este se relaciona fundamentalmente com mudanças nas relações
sociais e na vida organizacional (CONNELL, 2012). O que nos faz questionar: de que modo o
neoliberalismo tem impactado nas políticas públicas LBGT? Quais as particularidades do
neoliberalismo no Brasil e como elas se relacionam com o cotidiano da população em
questão?

2.4 Direitos humanos: entre o formalismo do discurso e o “anseio ético”


62

Utilizamos aqui o termo “anseio ético” de Rita Segato (2006), cujo conceito reforça a
centralidade do valor ético da alteridade e o impulso ético como um salto em direção ao outro.
O anseio ético para a autora seria o “princípio que promove a expansão dos direitos em seu
movimento universal” (p.229). Neste sentido, embora referende-se a importância de se iniciar
o debate sobre direitos humanos a partir de seu percurso declarativo, acredita-se que para
expansão dos direitos humanos é necessária uma ética da insatisfação: “[...] encontrável entre
os cidadãos de qualquer nação e nos membros das mais simples e coesa das comunidades
morais, o que constitui o fundamento dos direitos humanos” (p.229).
Assim, cabe ressaltar que o debate sobre os direitos humanos sempre esteve envolto
em polêmicas, haja visto suas diferentes interpretações teórico-políticas. Contudo, não se
pode esquecer sua vinculação ao pensamento moderno ocidental, destacando especialmente
pensadores como Hobbes, Locke e Rousseau (TRINDADE, 2011).
Os Direitos Humanos têm seu nascimento nas lutas burguesas pela queda do
absolutismo feudal, dos privilégios da nobreza e do clero no final do século XVIII. Valéria
Forti (2012) considera indiscutível que tenha havido avanços nas propostas destas lutas
decorrentes da “perspectiva de autonomia, ou seja, das leis como produto da razão humana, se
comparada à lógica da heteronomia – preponderante no mundo feudal – e da possibilidade de
Direitos Humanos (civis e políticos)” (FORTI, 2012, p.274).
Todavia, é importante lembrar que, embora seja considerada o marco dos direitos
humanos, a Revolução Francesa conforma seu legado a uma perspectiva liberal. Após meados
do século XIX, o discurso dos direitos humanos se dissociou da tradição revolucionária,
sendo atrelado a uma gramática despolitizada. O Estado subsumiu esses direitos, assumindo o
monopólio da produção do direito e da justiça (SANTOS, 2013).
Assim, inspirada em um direito ‘natural’, que incorre em uma noção individualista e
a-histórica da humanidade, reforçou uma concepção de ser humano eurocêntrica, branca e
sexista. O discurso hegemônico dos direitos humanos relacionado à dignidade humana esteve
em consonância com as políticas liberais, o colonialismo e as metamorfoses do
desenvolvimento capitalista (SANTOS, 2013).
Determinou o domínio de uma elite a partir do estabelecimento da propriedade
privada e da igualdade civil (perante a lei), assegurando a liberdade individual, mas não de
forma universal. Deste modo, a instauração do binômio igualdade/liberdade abriu
possibilidades para o surgimento jurídico do termo “sujeito de direitos”, subsidiando a livre
contratação do trabalho, essencial ao capitalismo (MASCARO, 2013; TRINDADE, 2011).
63

Em outra perspectiva, Vieira (2005, p.21) apontou a transição do Estado Absolutista


para o Estado de Direito, inverteu a “relação tradicional de direitos dos governantes e deveres
dos súditos, agora o indivíduo tem direitos, e o governo obriga-se a garanti-los”. O autor
afirma que a concepção jusnaturalista presente na declaração francesa também foi incorporada
na Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas (ONU),
particularmente em seu primeiro artigo: “Todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos”. Apoiando-se em Hannah Arendt, Vieira (2005, p.21) reitera que a
igualdade “não é um dado, é um construído”, e afirma que “é com o nascimento do Estado de
Direito que o ponto de vista do príncipe se transforma em ponto de vista do cidadão”,
passando a ter não só “direitos privados”, mas também “direitos públicos”.
Num outro prisma, destacamos a crítica de Spivak, que em diálogo com Butler
afirma que “Arendt plantea la condición de sin-estado como el espacio de los derechos más
alla de la nación” (BUTLER e SPIVAK, 2009, p.99), e que Marx aponta que, embora a
revolução burguesa demonstre introduzir uma aparente democracia parlamentar participativa,
com a participação dos cidadãos, o que houve foi a consolidação do poder executivo
(BUTLER e SPIVAK, 2009).

Judith habla de un derecho que tiene la forma de una contradicción performativa. Lo


que yo quería decir es que esos derechos que se encuentran en el modo declarativo,
en el estado de una declaración universal más que de una contradicción
performativa, se pronuncian a partir del fracaso tanto del estado (Arendt) como de la
revolución (Marx) (BUTLER e SPIVAK, 2009, p.99-100).

Neste sentido, também cabe ressaltar a crítica à “ilusão” do triunfalismo dos direitos
humanos feita por Santos (2013). Reconhecendo que o discurso dos direitos humanos
significou coisas diferentes em contextos diferentes, este autor afirma que atualmente não é
possível precisar se os direitos humanos do presente são herdeiros das revoluções modernas
ou de suas ruínas.

Ao longo dos últimos duzentos anos os direitos humanos foram sendo incorporados
nas constituições e nas práticas jurídicas-políticas de muitos países e foram
reconceptualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos pelo Estado e
aplicados coercitivamente pelos tribunais: direitos cívicos, políticos, sociais,
econômicos e culturais. Mas a verdade é que a efetividade da proteção ampla dos
direitos de cidadania foi sempre precária na grande maioria dos países. E a evocação
dos direitos humanos ocorreu sobretudo em situações de erosão ou violação
particularmente grave dos direitos de cidadania. Os direitos humanos surgem como
o patamar mais baixo de inclusão, um movimento descendente da comunidade mais
densa de cidadãos para a comunidade mais diluída da humanidade (SANTOS, 2013,
p.50).
64

Reconhecendo que as interpretações sobre os direitos humanos têm estado


imbricadas em ilusões, atribuídas por Santos (2013) à ideia de consenso ou de um caminho
linear na construção de tais direitos, tratarei da internacionalização deste ideário, que se
institui no período posterior à Segunda Guerra Mundial e nas tensões envolvendo os direitos
sexuais no campo dos direitos humanos.

O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento


extremamente recente na história, surgindo a partir do pós-guerra, como resposta às
atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. A era Hitler foi marcada
pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, que resultou no
extermínio de 11 milhões de pessoas (PIOVESAN, 2014, p.2).

Para Flávia Piovesan (2014) a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
de 194829 é o maior marco do “processo de reconstrução dos direitos humanos”. A afirmação
da autora baseia-se no fato de que esta Declaração introduziria na concepção contemporânea
de direitos humanos a universalidade e a indivisibilidade destes direitos.

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a
crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e
titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e
políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e
vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos
humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-
relacionada (PIOVESAN, 2014, p. 3).

Outro fator levantado pela autora refere-se ao fato de que a constituição dos direitos
humanos ‘globais’ formou um sistema normativo internacional de proteção dos direitos
humanos. Este sistema é complementado por instrumentos de alcance geral e específicos,
como Pactos, Conferências e Convenções Internacionais. Piovesan (2014) ainda avalia que,
ao tornar-se signatário destes instrumentos, o Estado consente a fiscalização e o controle da
comunidade internacional quando se trata de violações dos direitos humanos. A aplicabilidade
destes instrumentos depende da ação internacional e da ação regional, que são
complementares, todavia a ação internacional é sempre “suplementar”. A autora afirma que
em grande medida “a resposta das instituições nacionais se mostra insuficiente e falha, ou, por
vezes, inexistente” (PIOVESAN, 2014, p.6).

29
É interessante relembrar que o processo de formulação da Declaração foi arenoso, o que se expressou em seu
caráter ‘generalizante’ sobre vida, desigualdade e discriminação, por exemplo. Potyara Pereira (2011) afirma que
os ‘direitos sociais’ só foram inseridos na Declaração de 1948 por pressão do Terceiro Mundo e do mundo
comunista.
65

Essa perspectiva universalista e indivisível, apresentada na Declaração de 1948,


trouxe algumas proclamações generalizadas acerca do direito à vida, integridade física, saúde,
igualdade e não discriminação. Em um processo de democratização e ampliação da concepção
internacional dos direitos humanos, os direitos reprodutivos e sexuais passam a ser
considerados partes essenciais destes direitos, o que configurou uma evolução histórica de
conquistas e avanços em âmbito internacional. Todavia é importante ressaltar que esse
percurso só se tornou viável pelo protagonismo dos movimentos feministas, e mais
recentemente LGBT, em esferas nacionais e internacionais, que impulsionaram a construção
dos direitos sexuais e reprodutivos, trazendo um aporte teórico para as experiências militantes
pelos direitos das mulheres (PIOVESAN, 2006).
O processo de reconhecimento dos direitos reprodutivos como direitos humanos se
iniciou no ano de 1979, com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW). Também foram centralmente importantes neste
processo a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento30, realizada no
Cairo, em 1994, e da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em 1995.
Assim, a inclusão dos direitos sexuais na pauta global de direitos humanos só foi
consolidada a partir de propostas nas áreas referentes à população e à mulher, e não em um
espaço específico − como uma conferência sobre direitos sexuais e reprodutivos. O que nos
possibilita inferir que, sem minimizar a relevância dessa inserção, a compreensão de ‘direitos
sexuais’ tem em sua origem a correlação com o controle populacional e com a saúde
reprodutiva da mulher, o que demonstra os limites do processo inicial dessa inclusão.
Neste sentido, Sonia Corrêa e Maria Betânia Ávila (2003) apontam que “a afirmação
e construção do conceito de direitos sexuais e reprodutivos vêm se dando, basicamente, no
campo da saúde, o que implica, por vezes, restringi-lo às questões de saúde sexual e
reprodutiva”. Para estas autoras o desafio para a afirmação deste conceito é evitar a sua
restrição às questões de saúde e normativas, mas alocá-lo na esfera da cidadania plena,
tratando-o na sua dimensão política, “como prerrogativa de autonomia e liberdade dos sujeitos
humanos nas esferas da sexualidade e reprodução” (CORRÊA e ÁVILA, 2003).
A essas iniciativas internacionais soma-se, no âmbito da América Latina, a
Convenção de Belém do Pará, realizada em 1994, tendo como foco a violência contra a

30
A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento se desdobrou no Plano de Ação do Cairo,
considerado mais um avanço na construção dos direitos reprodutivos, pois foi o primeiro instrumento a sinalizar
o reconhecimento da existência de direitos sexuais, com destaque ao direito de exercer a sexualidade e a
reprodução livre de violência, discriminações e coerções − mesmo que ainda não compreendesse as questões de
orientação sexual e identidade de gênero.
66

mulher e a responsabilidade dos Estados no que se refere à tolerância à violência dos atos
privados e na negligência por não promover políticas públicas para coibir a violência contra a
mulher. Posteriormente, a realização da 4ª Conferência Mundial da Mulher na China, em
1995, produziu como documento a Plataforma de Ações de Pequim − instrumento que seguiu
as diretrizes da Conferência do Cairo, em 1994, no que se refere ao reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos −, propondo uma atenção maior ao
acesso à informação, educação e saúde sexual. As duas conferências, Cairo e Pequim,
trataram o aborto enquanto questão de saúde pública e apontavam para uma revisão de
legislações que criminalizassem as mulheres que o praticassem.
Corrêa (2006) considera que, apesar do fortalecimento do campo dos direitos sexuais
nas duas conferências, este visível avanço dos “direitos sexuais” nestes eventos não
acompanhou em mesma medida a questão da diversidade sexual. Corrêa (2006) aponta ainda
que não houve menção explícita à orientação sexual nesses documentos e mesmo na revisão
de cinco anos da Conferência de Pequim, em 2000, não foi possível incluir no texto − em
decorrência dos países islâmicos − as múltiplas formas de discriminação contra as mulheres
no que se refere exclusivamente à orientação sexual e, consequentemente, na abordagem de
questões relacionadas à identidade de gênero.

[...] a tensão entre Estado e anti-estado permanece e tem uma vigência especifica na
tensão entre as chamadas gerações de direitos humanos. Este é o domínio em que os
direitos humanos mais se confundem com os direitos de cidadania. [...] na maioria
dos países, a história dos diferentes tipos de direitos humanos é uma história muito
contingente, acidentada, cheia de descontinuidades, com avanços e recuos
(SANTOS, 2013, p.65).

Em 2006, após grandes pressões do movimento feminista e LGBT no sistema das


Nações Unidas, foram promulgados os “Princípios de Yogyakarta”, que se configuram em um
documento que contém 29 princípios de amplo espectro de normas de direitos humanos e de
sua aplicação às questões de orientação sexual e identidade de gênero, principalmente em
âmbito internacional. Como uma carta-reivindicação de direitos já estabelecidos, a construção
dos Princípios Yogyakarta se baseou em uma lógica que buscou se distanciar de uma política
de identidade fixa, alocando os sujeitos de direitos nos seus processos para enfatizar as
circunstâncias de violação e discriminação (CORRÊA, 2006).

A tensão entre direitos individuais e direitos coletivos decorre da luta histórica dos
grupos sociais que, por serem excluídos ou discriminados enquanto grupos, não
podiam ser adequadamente protegidos por direitos humanos individuais. As lutas
das mulheres, dos povos indígenas, dos povos afrodescendentes, dos grupos
vitimizados pelo racismo, dos gays e das lésbicas marcam os últimos cinquenta anos
67

do processo de reconhecimento dos direitos coletivos, um reconhecimento sempre


muito contestado e sempre em vias de ser revertido. Não existe necessariamente
uma contradição entre direitos individuais e direitos coletivos, mas que não seja pelo
fato de existirem muitos tipos de direitos coletivos (SANTOS, 2013, p.63).

Assim, evidencia-se que o direito à igualdade e a não discriminação, no contexto


regulatório dos instrumentos internacionais, tem se desenvolvido a partir das pressões da
sociedade civil de forma a abranger as novas realidades históricas. A sociedade civil é vista
neste trabalho como “lócus de cidadãos organizados” (NOGUEIRA, 2011, p.60), cuja
organização se dá nos termos do fundamento da cidadania, ou seja, do “direito a participar do
jogo político” e do “dever de participar do jogo político” (BOURDIEU, 2014, p.463).
Destaca-se, ainda, que o Estado corresponde a um governo que exerce o poder em
nome de uma nação, cuja soberania plena se manifesta em sua distinção/separação da
sociedade civil. Esta separação se processa também entre a esfera produtiva, vinculada aos
interesses econômicos individuais, e a esfera do poder político, polarizando assim público e
privado (FLEURY, 1994). E, deste modo, é na “esfera pública burguesa31” que se mediará “as
necessidades da sociedade civil diante do Estado (e também no interior do Estado)”.
(RAICHELIS, 2005, p.48). O discurso dos direitos humanos, por exemplo, pressupõe a
existência da sociedade civil, mas também do Estado, que reconhecerá e garantirá o respeito a
esses direitos (THERBORN, 1999).
Retomando o cenário brasileiro, Roger Raupp Rios (2006) afirma que nosso país,
além de ser signatário desses instrumentos internacionais que destacamos acima, teria na
própria Constituição Federal de 1988 a abertura para o reconhecimento jurídico da livre
orientação sexual e identidade de gênero.

[...] seja pela quantidade de normas constitucionais expressas, definidoras de direitos


e garantias individuais e coletivas, seja pela explícita cláusula de abertura a novos
direitos humanos, segundo a qual “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte” (art. 5º, parágrafo 2º, grifo meu). A essa cláusula explícita de abertura
constitucional ao reconhecimento de outros direitos humanos deve-se acrescer a
enumeração constitucional de direitos nos artigos 5º, 6º e 7º, bem como a previsão
de outros tantos direitos humanos individuais e coletivos ao longo do texto, tais
como os direitos relativos à seguridade social e à comunidade familiar (artigos 194 e
226, respectivamente) (RIOS, 2006, p.79).

31
Em diálogo com as contribuições de Habermas, Raichelis (2005, p.55) destaca que com as transformações na
esfera pública burguesa – que vai se constituindo de segmentos de pequenos proprietários privados, depois de
“massas despossuídas e não instruídas e, por último, por um público consumidor de cultura, surgindo assim uma
esfera social repolitizada – vai se impondo uma dialética de “socialização do Estado” e de “estatização da
sociedade civil”.
68

Therborn (1999) aponta que a necessidade da mutualidade não fica clara entre
sociedade civil e Estado no campo dos direitos humanos, como supracitado. Ao ilustrarmos o
contexto nacional com Rios (2006), conseguimos compreender que há lacunas entre direito,
democracia e justiça. Pois, se no plano jurídico formal, se estabelece o reconhecimento
jurídico, em que medida vem se dando a sua implementação? Santos (2013) destaca que
grande parte da população no mundo é apenas objeto de discurso de direitos humanos, e não é
sujeito de direitos humanos.

Num contexto em que a distinção entre o poder político e o poder econômico se


dilui, a centralidade do Estado na discussão dos direitos humanos não permite
estabelecer o nexo de causalidade entre poderosos atores não estatais e algumas das
mais massivas violações de direitos humanos, como sejam as que hoje atingem
milhões de trabalhadores, imigrantes, pensionistas e estudantes no sul da Europa em
resultado da crise causada em boa parte pela desregulação do capital financeiro, a
especulação financeira, a evasão fiscal, os paraísos financeiros, a corrupção
generalizada e os parlamentos transformados em balcão de negócios (SANTOS,
2013, p.52).

O processo ambivalente32 e contraditório de efetivação dos direitos sexuais e


reprodutivos no Brasil está imbricado em um contínuo movimento de avanços e retrocessos
no campo do direito a não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero na
esfera pública brasileira. Por isso é importante salientar que não é possível pensar a agenda de
direitos humanos fora do processo de consolidação democrática no Brasil, o que pressupõe a
retirada de barreiras para o exercício da cidadania e a afirmação de uma esfera pública
diferenciada do modelo vigente de “democracia sem cidadania” (PINHEIRO e SOUZA, 2000,
apud ALMEIDA, 2011, p.233).
No que se refere ao seguimento LGBT, sabe-se também que tanto a gestão de Lula
quanto a de Dilma estiveram imbuídas em negociações com setores conservadores, que
impactaram no campo dos direitos33, como procurarei mostrar nos capítulos 3 e 4. Antes,
porém, faz-se necessário analisar a luta histórica que tem envolvido as pautas de gênero e
sexualidade em âmbito global e nacional, bem como verificar as demandas por cidadania

32
Utilizo o termo “ambivalência” em seu sentido etimológico de existência simultânea de dois sentimentos ou
duas ideias de uma mesma coisa e que se opõem mutuamente.
33
Os embates neste campo não são, entretanto, circunscritos ao Brasil. Segundo Santos (2013), “a luta pelos
direitos humanos nas primeiras décadas do século XXI enfrenta novas formas de autoritarismo que convivem
confortavelmente com os regimes democráticos. São formas de fascismo social, como as tenho designado no
meu trabalho. Se a voracidade de recursos naturais e de terra deste modelo de desenvolvimento continuar a
influenciar os Estados e governos democráticos para, por um lado, fazer tábua rasa dos direitos e cidadania e
humanos, incluindo os que estão consagrados pelo direito internacional e, por outro, para reprimir brutal e
impunemente todos aqueles que ousam resistir-lhe, é possível que estejamos ante uma nova forma de fascismo
social, fascismo desenvolvimentista” (SANTOS, 2013, p.122).
69

empreendidas pelos grupos LGBT e as respostas que o Estado tem dado a estas através das
políticas sociais. Temáticas que trarei no próximo capítulo.
70

3. CAPÍTULO 2 - GÊNERO E SEXUALIDADE NA PAUTA DAS LUTAS


SOCIAIS FEMINISTAS E LGBT

[...] Uma vez que o gênero é entendido como uma


estrutura das relações sociais, o pensamento feminista é
uma reivindicação por justiça social. “Justiça” é, em
primeira instância, uma reivindicação de reparação. A
justiça social é uma reivindicação de reparação da
desigualdade, que acaba por trazer tanto vantagens
quanto desvantagens, enquanto características
institucionalizadas da vida social. Tais vantagens e
desvantagens nas relações de gênero assumem múltiplas
formas. Essa é uma lição realmente importante advinda
da pesquisa em Ciências Sociais e, neste aspecto, as
concepções de análise de gênero atuais avançaram
decisivamente para além dos modelos unidimensionais
de patriarcado, correntes há trinta anos.

(Raewyn Connell)

A reivindicação por justiça social tem tergiversado as pautas das lutas feministas e
LGBT ao longo da história. É notório que existam mudanças nas formas, jeitos de fazer e
pensar feminismo(s) e sexualidade(s). O modo de organização política dos homossexuais e
travestis modificou-se consideravelmente dos tempos de Rosely Roth34, Herbert Daniel35,
Brenda Lee36 e Janaína Dutra37 até os tempos atuais. Hoje a arena ganhou outras

34
Rosely Roth foi uma militante lésbica paulista que atuou desde os anos de 1980 nos grupos “Lésbico-
feministas” “SOS Mulher” e “Grupo Ação Lésbico-Feminista”, do qual foi fundadora. Neste último, contribuía
com os boletins do ChanacomChana e Um Outro Olhar. Em 1983, no Ferro’s Bar, a publicação
ChanacomChana teve sua venda proibida, e Rosely foi uma das militantes expulsas do bar que, no dia 19 de
agosto, organizaram uma manifestação, relembrada como Dia do Orgulho Lésbico. Essa data tem tido menor
projeção fora de São Paulo, pois é comumente lembrado o dia 29 de agosto como data de comemoração do Dia
da Visibilidade Lésbica, em memória da realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), em 1996.
Rosely suicidou-se em agosto de 1990.
35
Herbert Daniel foi guerrilheiro nas organizações Política Operária (POLOP), Colina, VAR Palmares e VPR
(Vanguarda Popular Revolucionária) e exilado político durante a ditadura militar, tendo sido um dos
participantes dos sequestros do embaixador alemão Holleben e do embaixador suíço Bucher, ambos ocorridos
em 1970. Anistiado em 1981, militou pelo PT e participou da fundação do Partido Verde (PV), em 1989. Morreu
em 1992, devido a complicações da Aids.
36
Brenda Lee foi uma travesti pernambucana que viveu em São Paulo-SP, militante pelos direitos das travestis e
pessoas com HIV/Aids. Fundou a Casa de Apoio Brenda Lee, em 1988, também conhecida como “Palácio das
Princesas”. Segundo a Agência de Notícias da Aids, a militante divide com o Grupo de Apoio à Prevenção à
Aids (GAPA) o mérito de ter iniciado os trabalhos de acolhimento as pessoas com HIV em São Paulo. Foi
assassinada em 1996.
37
Janaína Dutra foi militante travesti e advogada em Fortaleza-CE, onde fundou a Associação das Travestis do
Ceará (Atrac) e o Grupo de Apoio Asa Branca (GRAB). Atuou junto ao Ministério da Saúde na elaboração da
primeira campanha de prevenção à Aids destinada às travestis. Ela também integrou a Articulação Nacional das
Travestis (Antra), a qual representou no CNCD no período de formulação do BSH. Morreu em fevereiro de
2004, devido a um câncer pulmonar.
71

características decorrentes do ciberativismo e do processo de autonomização e pluralidade dos


grupos de ativismos.
Quando iniciei minha militância, no início dos anos 2000, em grupos universitários
de diversidade sexual, questionávamos a institucionalização das ONG’s, a militância
partidarizada, a fixidez das identidades e tentávamos vivenciar a horizontalidade e a
autonomia financeira. Nos encontrávamos semanalmente, possuíamos espaços de formação
teórico-política periódicos e tínhamos uma agenda de atividades e ações circunscritos à
universidade, mas que foram se extrapolando às ruas. Se minha geração se diferenciava
daquela dos anos de 1980 e 1990, posso afirmar que pouco tem de semelhanças com a atual,
cujas formas de fazer ativismo estão fortemente vinculadas a espaços virtuais nas redes
sociais e com ações eventuais, sem uma obrigatoriedade da ação direta e da presencialidade.
Entretanto, os múltiplos ativismos, “novos” ou “tradicionais”, se é que podemos assim dividi-
los, coabitam entre alianças e disputas e com conflitos e também coligações com outros
movimentos sociais.
O que aponto inicialmente, neste capítulo, o propósito de reiterar as observações de
Sônia Alvarez (2014) sobre o período atual em que vivemos nos movimentos feministas, mas
que estendo também aos ativismos LGBT’s. A autora nomeou este momento de
“sidestreaming”, devido aos “fluxos38 horizontais dos discursos e práticas de feminismos
plurais para os mais diversos setores paralelos na sociedade civil” (p.17). O que demonstra,
para pesquisadora, uma multiplicação de campos feministas, e aqui acrescento LGBT’s.
Os “campos discursivos de ação” (ALVAREZ, 2014) que compõem as lutas sociais
articulam-se de maneira formal e informal através de redes ou teias político-comunicativas
interconectadas.

Ou seja, as atoras/es que neles circulam se entrelaçam em malhas costuradas por


cruzamentos entre pessoas, práticas, ideias e discursos (Doimo, 1995). E essas teias
não só vinculam grupos estruturados e ONGs. Também interconectam indivíduos e
agrupamentos menos formalizados, situados em diversos espaços na sociedade civil,
na sociedade “não cívica”, que se manifesta politicamente nas ruas e no campo (que
costumo chamar do “outro” da sociedade civil), na sociedade política, no Estado,
nas instituições intergovernamentais, nos movimentos e redes de advocacy
transnacionais, na academia, nas indústrias culturais, na mídia e na internet, e assim
por diante (ALVAREZ, 2014, p.16).

Reconhecendo essa pluralidade de sujeitos no campo, cabe retomar processos


históricos que constituíram essa arena de luta e produção de conhecimento. Deste modo,
38
Alvarez (2014) sugere que revisemos a perspectiva de análise dos movimentos sociais baseada na ideia de
fluxos e refluxos. “Os campos discursivos de ação são elementos permanentes das formações políticas na
modernidade tardia/descolonial” (p.45).
72

destaco que as múltiplas formas de vivenciar sexualidades e gênero são resultados das ações
de “minorias” que passaram a se afirmar gerando “outras” formas de falar sobre estes temas
que desafiam o modelo hegemônico masculino, heterossexual e branco que permanece na
ciência, nas artes e nas leis (BUTLER, 2003; BRAH, 2006). Estas questões são colocadas
pelos movimentos feministas e LGBT, a partir de suas experiências e histórias, provocando
questionamentos na área científica. Deste modo, emergiram outros campos de estudos que são
marcados pela dedicação à compreensão da lógica simbólica que envolve estes processos de
dominação-subordinação e subalternização-emancipação, contidos na hierarquia das
invisibilidades, como os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer
(LOURO, 2004).
Como referenciado anteriormente, as políticas sociais resultam de uma correlação de
forças de onde emergem as demandas das/os atoras/es sociais. Isto requer a mobilização dos
indivíduos interessados a dar visibilidade às mesmas e o surgimento de uma ação que as
contemplem. Essas respostas são negociadas por meio de uma relação concessão-conquista
das demandas a serem outorgadas. É fato que este movimento não se dá de maneira unilinear,
mas sim de forma processual e dialética.
Nesta perspectiva, as intervenções e posições governamentais em relação aos direitos
da população LGBT decorrem de processos de hegemonia marcados por uma dinâmica
intrincada de visibilidade-invisibilidade e concessão-conquista. Ou seja, uma relação em que
as/os envolvidas/os na luta e implicadas/os nessa negociação conquistam e concedem ao
mesmo tempo. Neste capítulo retomo os processos históricos envolvendo as lutas feministas e
LGBT, destacando o pensamento e a crítica feminista. Em seguida, apresento os conceitos
centrais para a compreensão da dinâmica entre Estado e sociedade civil no campo das
políticas públicas destinadas a esta população no Brasil.

3.1 Pensamento e crítica feminista

A ideia de igualdade de direitos que se apresentava no século XIX impulsionou


mobilizações feministas em diversas regiões da Europa e América do Norte. Entre os anos de
1920 e 1930, nesses países, as mulheres conquistaram direito ao voto, à propriedade e à
educação. (PISCITELLI, 2002).
73

Embora o pensamento feminista não seja composto de uma única vertente39 teórico-
prática, pode-se afirmar que o único consenso entre as diversas correntes feministas é que o
gênero é construído socialmente e que as mulheres ocupam “lugares sociais subordinados em
relação aos mundos masculinos” (PISCITELLI, 2002, p.9).
A mudança na forma como as mulheres eram percebidas socialmente tornou-se foco
central na discussão sobre as posições assimétricas dos segmentos femininos e masculinos.
Assim, as reivindicações feministas centraram-se na “igualdade no exercício de direitos”,
estabelecendo, a partir de um sujeito político coletivo assentado na categoria “mulheres”,
estratégias para superação da submissão feminina. A explicação desta subordinação, a partir
de instrumentos teóricos, também foi um caminho trilhado pelo pensamento feminista
(PISCITELLI, 2002).

Após arrombarem as portas do saber acadêmico e universitário ao longo dos séculos


XVIII e XIX, foi no alvorecer do século XX, especialmente entre os anos 30 e 70,
que surgiram grupos de acadêmicas que problematizaram a produção do
conhecimento a partir de um viés crítico, gerando os estudos feministas (feminist
studies) ou os estudos de mulheres (women studies). Após consolidarem arenas
consistentes de debate científico, tendo realizado toda sorte de inflexões em vários
campos disciplinares, partindo das críticas aos vieses androcêntricos encontrados
nesses campos, os questionando fortemente, assim como também, algumas delas,
voltando-se para a crítica consistente ao “fetichismo da objetividade”, as mulheres
feministas no campo acadêmico visaram ampliar, nas ciências humanas e sociais, o
escopo das reflexões para adotar uma nova proposta teórico-conceitual: os estudos
de gênero (MATOS, 2008, p.335-336).

Na mesma direção, Bandeira (2008) destaca que os argumentos naturalistas, a


neutralidade científica e a indução do universalismo do conhecimento e da racionalidade
científica são colocados em questão pelo feminismo e observados como perspectivas
marcadas pela visão masculina e pela linguagem androcêntrica.
Ao falarmos de formulações teóricas, cabe destacarmos que as reflexões feministas
construídas a partir do pensamento de Simone de Beauvoir40 foram determinantes para o

39
De acordo com Piscitelli (2002), as vertentes feministas estadunidenses da década de 1960 apresentam
diferentes concepções acerca da origem da opressão das mulheres. As feministas socialistas creditam a origem
da opressão, assim como a exploração de classe, ao advento do capitalismo, ou seja, no surgimento das classes
sociais. Em outras análises do feminismo socialista, especialmente aquelas que foram feitas após a experiência
socialista em alguns países, o capitalismo associado ao patriarcado, levando em consideração produção e
reprodução, é que seriam origem da opressão das mulheres. Para o feminismo radical, a derrota do patriarcado é
o caminho para libertação das mulheres, assim as mulheres deveriam controlar o processo de reprodução,
tornando-o exclusivamente artificial para eliminação da distinção sexual. Assim, as categorias centrais do
pensamento feminista deste período histórico se orientam pelos conceitos de opressão, patriarcado e mulher.
40
“Ao afirmar que a ‘mulher não nasce, torna-se’, Simone de Beauvoir buscava mostrar os mecanismos que dão
consistência ao ‘tornar-se’, constituindo um movimento teórico de desnaturalização da identidade feminina”
(BENTO, 2006, p. 70).
74

questionamento da condição de submissão da mulher, fundada principalmente pela hierarquia


substanciada na correlação das diferenças dos aspectos biológicos dos corpos com a
construção sociocultural dos gêneros (BENTO, 2006). Percebe-se que a dissociação destas
“diferenças” possibilitou às mulheres submergir da condição de subalternidade em relação aos
homens, embora esta reconfiguração tenha fortalecido esta lógica binária entre a ordem do
biológico e construção sociocultural.
Bento (2006) divide os debates teóricos endógenos aos estudos de gênero em três
tendências, denominadas pela autora de “universal, relacional e plural”. A tendência
universalista englobaria as primeiras reflexões sobre o conceito de gênero, baseando-se no
entendimento de uma concepção binária (calcada na relação entre os sexos: masculino e
feminino) e universal (válida para todas, independente de recortes espaciais) dos gêneros. Esta
seria a herança das contribuições de Beauvoir. Incorporam-se a essas compreensões a
concepção de poder e a dimensão relacional das identidades de gênero. Todavia, a concepção
de mulher de Beauvoir foi criticada pelas feministas negras e posteriormente pelas lésbicas,
que se dedicaram a explicitar o limite deste conceito universalista.
A ampliação dos estudos de gênero para inserção das sexualidades não
heterossexuais constitui a tendência plural, tendo Rich (2007) e Wittig (2010) como
precursoras destas discussões. A adoção do termo gênero nos anos de 1970 visava indicar a
seriedade e a erudição do debate feminista, uma vez que a expressão tem uma conotação mais
objetiva e imparcial do que mulher (SCOTT, 1995). Nos anos de 1980, o uso desta
terminologia teve grande disseminação nas ciências humanas. As primeiras análises
empregavam este termo com objetivo de estabelecer uma distinção em relação à concepção de
“sexo”, dominante naquele contexto, que era marcada pelo essencialismo biologizante. Ou
seja, pretendia-se enfatizar as dimensões sociais e culturais dos gêneros.
Gênero é difundido conceitualmente a partir da publicação de Gayle Rubin, “Tráfico
de Mulheres: notas sobre a economia política do sexo”, no ano de 1975. A autora reflete sobre
a “economia política do sexo” a partir do que denomina de sistema sexo/gênero, que pode ser
definido como conjunto de arranjos “através dos quais a matéria-prima biológica do sexo e da
procriação humana é moldada pela intervenção humana e social e satisfeita de forma
convencional” (p.5).
Rubin (1993) faz uma distinção na relação entre gênero/sexo na qual o gênero está
ligado à construção social do sexo e o sexo está no âmbito biológico e natural. Portanto, este
sistema sexo/gênero nos possibilita pensar gênero e sexualidade como atributos desatrelados
dos aspectos biológicos.
75

Toda sociedade tem também um sistema de sexo/gênero − uma série de arranjos


pelos quais a matéria-prima biológica do sexo humano e da participação é moldada
pela intervenção humana, social, e satisfeita de um modo convencional, por mais
bizarras que algumas dessas convenções sejam (RUBIN, 1993, p.10-11).

(...)

Enquanto proposta de um sistema de classificação, a “categoria” gênero, em sua


forma mais difusa e difundida, tem sido acionada quase sempre de forma binária
(raramente em formato também tripartite) para se referir à lógica das diferenças
entre: feminino e masculino, homens e mulheres e, também, entre a homo e a
heterossexualidade, penetrando já aí neste segundo eixo fundamental deste novo
campo que é a fronteira da sexualidade (MATOS, 2008, p.336).

Segundo Joan Scott (1995):

O gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das


feminilidades. As que estavam preocupadas com o fato de que a produção dos
estudos femininos centrava – se sobre as mulheres de forma muito estreita e isolada,
utilizaram o termo gênero para introduzir uma noção relacional no nosso
vocabulário analítico (SCOTT, 1995, p.4).

Tanto as categorias “mulher” e “sexo” quanto “gênero” vêm sendo discutidas,


contestadas e reformuladas com intuito de desestabilizar os pensamentos binários e
naturalizados que fortalecem a fixidez dos lugares de gênero. Essas análises têm apontado a
necessidade de interseccionar dimensões de classe, raça, etnia, sexualidade e geração, como
apontam Piscitelli (2002) e Matos (2008)41.
A principal contribuição de Rubin é deslocar a condição da mulher atrelada à ordem
do natural42. O parentesco, sistema criado a partir da cultura, seria o criador do gênero. Dito
de outro modo, mulheres e homens se encontram em posições hierárquicas desiguais por
causa das relações de parentesco estabelecidas no âmbito da cultura (PISCITELLI, 2002).
Deste modo, o uso do conceito de gênero torna-se, então, um marco teórico nas abordagens
feministas, distinguindo este momento histórico daquele da primeira fase do feminismo.

O “conceito” de gênero será, teoricamente, o divisor de águas para uma outra fase
distinta desta primeira, e anunciador, de certa forma (ainda que do ponto de vista
temporal tenha sido tardiamente acionado), de uma segunda onda do próprio

41
Matos (2008) afirma que, apesar de “gênero” tornar a discussão mais inclusiva, parcela considerável do
feminismo veio a questionar o “potencial politicamente desmobilizador do conceito” (p.337).
42
Posteriormente a autora dá continuidade à discussão acerca deste “sistema sexo/gênero” como dois sistemas
diferentes. A análise da autora é considerada por Piscitelli (2002) como um termo com mais consistência e com
maior neutralidade para refletir sobre gênero do que o conceito de “patriarcado”, pois não subsumiria “sexo” e
“gênero” em único termo. O sistema sexo-gênero se refere ao mundo sexuado em que a opressão é produto das
relações sociais.
76

feminismo, em que se passou a valorizar significativamente mais o diferencialismo e


a afirmação política das diferenças (identitárias substantivamente, mas não apenas
elas) do que propriamente a igualdade e o igualitarismo. Nessa segunda onda o que
estava em jogo era a diversidade ou as “diferenças dentro da diferença”. Nessa
afirmação diferencialista emergiram correntes inclusive antifeministas,
prenunciando os ‘perigos’ já explicitados. Importa salientar que boa parte dos anos
80 e 90 foi marcada por inúmeras manifestações que poderíamos designar como
sendo pós-feministas ou até não-feministas (ou de recuo do feminismo),
apresentando-nos um novo quadro institucional e político que se caracterizou por: 1)
forte dissociação entre pensamento feminista e movimento; 2) ‘profissionalização’
do(s) movimento(s), com o surgimento e proliferação das ONGs voltadas para
mulheres e também a formação de ‘redes’ feministas ou não. Segundo Celi Pinto,
“enquanto o pensamento feminista se generaliza, o movimento, por meio das ONGs,
se especializa” (MATOS, 2008, p.338).

A arena dos debates feministas mostra-se polifônica, terreno fértil do ponto de vista
teórico-prático e político. Desde os anos 1970, as formulações de Gayle Rubin ocasionaram o
uso frequente do conceito gênero para definir o que antes se chamava sexo. A partir de 1988,
a historiadora Joan Scott coloca em tela o fato de que, para ela, gênero:

[...] rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um


denominador comum, para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de
que as mulheres têm capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força
muscular superior. Em vez disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar
“construções culturais” – a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens
exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres (SCOTT,
1995, p.75).

A interpretação do gênero enquanto construção cultural, caracterizada por relações


sociais desiguais entre homens e mulheres, é reforçada pela ênfase no exame dos símbolos,
leis, normas, valores, instituições e subjetividades predominantes nas sociedades. Isto colocou
em destaque o sujeito da subordinação com características universais – a mulher universal –,
distante de marcadores sociais de raça, classe, geração, sexualidade, entre outros. Para Joan
Scott (1995), gênero é uma categoria que deve ser percebida além do aspecto cultural.
Bento (2006) afirma que as reflexões de Scott foram fundamentais para o debate
sobre gênero pela ótica relacional. Somente a partir da segunda metade da década de 1980,
efetivamente, passou-se a incorporar os homens aos estudos de gênero, considerando as
relações estabelecidas com as mulheres e também entre si. Contudo, a concepção de Scott de
que gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1995, p.86) excluiu diferentes identidades de gênero
desenvolvidas por pessoas do mesmo sexo, e convergiu no sentido de considerar o binarismo
feminino/masculino sob a perspectiva heterossexual.
77

O heterossexismo generalizado nas teorias feministas não possibilitou escutar outras


vozes oprimidas que exprimiam outro tipo de exclusão: o da sexualidade divergente.
Tanto no primeiro quanto no segundo momento, considerados aqui como
“universal” e “relacional”, respectivamente, a sexualidade, o gênero e a
subjetividade não foram pensados fora de uma relação binária (BENTO, 2006, p.77-
78).

Adrienne Rich (1980) e Monique Wittig (2010) serão fundamentais na crítica ao


heterossexismo das teorias feministas e representariam a última tendência intitulada como
plural por Bento. Rich (2007) apresenta em seu texto “Heterossexualidade compulsória e
existência lésbica”, publicado em 1980, uma importante leitura na qual sustenta que “a teoria
feminista não pode mais afirmar ou meramente declarar uma tolerância ao “lesbianismo”
como um “estilo de vida alternativo”, ou fazer alusão às lésbicas” (RICH, 2007. p.22). Nas
reflexões da autora, a heterossexualidade é constituída de forma compulsória e obrigatória.
Assim, ela propõe a existência lésbica enquanto forma de ruptura e rejeição a este modo
compulsório de viver.

La obligatoriedad de la heterosexualidad para Rich está ligada por demás a las


formas de producción capitalistas que producen la segregación por sexo en la esfera
laboral, asignando las mujeres posiciones menos valorizadas en la división del
trabajo como empleadas domésticas, secretárias, nanas, educadoras o meseras,
dando lugar a una sexualización en el trabajo mismo en donde se ejerce además, em
muchas ocasiones y en muchos momentos, el acoso sexual (CURIEL, 2011, p.59).

Wittig (2010) mostra em sua obra “The straight mind and other essays”, publicada
em 1992, que a heterossexualidade é um regime político que se sustenta em numerosos
discursos que produzem e instauram normas heterossexuais.

Wittig amordaza el consentimiento para las mujeres como classe de sexo, pues no
existe reciprocidad, condición necesária para la libertad. [...] El contrato social para
Wittig es el conjunto de reglas y convenciones que nunca han sido formuladas y
enunciadas explécitamente, que se dan por supuestas al estar unidos por un vínculo
social, por el hecho de vivir en la heterosexualidad por tanto, desde este punto de
vista, contrato social y heterosexualidad son dos nociones que se superponen
(CURIEL, 2011, p.68).

Na visão de Wittig (2010), as lésbicas não são mulheres, na medida em que foram os
homens que criaram o termo “mulher” e que o “ser mulher” envolveria submissão ao homem
e às normas heterossexuais que envolvem o contrato sexual43.

43
A partir de uma análise feminista, Paterman (1988 apud CURIEL, 2011) compreende que a história do
contrato social, em termos propostos por Rousseau, seria uma história de liberdade. Existe, porém, outra face da
história, aquela que envolve uma história de sujeição, que é a do “contrato sexual”: “[...] pero para que funcione
este contrato social, necesita de un contrato sexual implícito que nadie nunca há firmado, que haya permitido a
78

Monique Wittig define la heterosexualidad como un régimen político cuya la


ideología está basada fundamentalmente en la idea de que existe (LA) diferencia
sexual. En su ensayo “La categoria de Sexo” (1982) analiza cómo la diferencia
sexual que define los sexos, en uma formación imaginária que coloca La naturaleza
como causa (CURIEL, 2011, p.60).

Mediante os questionamentos levantados por Rich e Wittig no início da década de


1980, observa-se um profícuo campo de críticas ao feminismo protagonizado por escritoras
lésbicas. Soma-se a esta conjuntura as reflexões de Audre Lorde (poetisa, negra e lésbica) e
Gloria Alzandúa (chicana e escritora), sendo esta última central no que se intitulou
“feminismo da diferença”.
Também no mesmo período, a categoria “interseccionalidade44” é alcunhada pela
feminista negra Kimberlé Crenshaw, com intuito de ampliar a compreensão das diversas
fontes de identidade.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p.177).

Embora sem o uso expresso do termo “interseccionalidade”, Sueli Carneiro e Tereza


Santos (1985) já apontavam, em meados dos anos 1980, no contexto brasileiro, que à mulher
negra cabia a “dupla militância”, e denunciavam que a emancipação das mulheres de classe
média nos anos de 1960 vinha sendo possível através da exploração do trabalho doméstico de
negras e pobres. Demonstram, assim, o instrumento político que a interseccionalidade em
termos de prática política pode ter no aprofundamento das hierarquias sociais.

los varones regular y acceder a los cuerpos de las mujeres (y yo agrego a su fureza de trabajo), y que a la vez
excluye a las mujeres del contrato social en cuanto sujetas” (CURIEL, 2011, p.67).
44
No Serviço Social está em curso um debate sobre o uso do conceito consubstancialidade em detrimento da
interseccionalidade. A partir das feministas materialistas francesas, como Kergouat, critica-se os usos do
conceito de “interseccionalidade” sob argumento de que o mesmo incorreria no risco de uma “segmentação
positivista de entendê-las como relações separadas e não enoveladas” (CISNE, 2014, p.153). Propõem-se, assim,
a compreensão de que sexo, raça e classe são “consubstanciais” e “coextensivas”, por formarem um “nó que não
pode ser sequenciado”, já que esses marcadores “se reproduzem e se coproduzem mutuamente” (IDEM). Neste
trabalho faço uso do conceito “interseccionalidade”, discordando da crítica supracitada. Esta escolha se ancora
em Hirata (2014, p.69), que em artigo recente reflete sobre ambos os conceitos, concluindo que: “A
interseccionalidade é vista como uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas e, portanto,
como um instrumento de luta política. [...] ao mesmo tempo um “projeto de conhecimento” e uma arma
política”. A autora não descarta nenhum dos conceitos, vendo similaridades em suas proposições, ainda que
observadas controvérsias, salientando-os como instrumentos analíticos que precisam ser retomados no Brasil.
79

Localizei acima um exemplo de que no contexto brasileiro têm sido produzidos


debates intensos com a mesma temporalidade do norte global, mas em alguma medida sem as
presunções categoriais e conceituais norte-americanas, como exemplifiquei anteriormente.
Talvez a circulação do que produzimos se dê majoritariamente atrelada aos interesses
editoriais e dos cânones acadêmicos, e, portanto, conhecemos mais da história do norte global
do que de nossa própria história.
Retomo o percurso histórico, destacando que o contexto brasileiro dos anos de 1980
foi marcado pela emergência da Aids e por análises a respeito do medo da homossexualidade.
As publicações de Michel Misse (O estigma do passivo sexual, de 1979), Hiro Okita
(Homossexuais: da opressão à libertação, de 1981), Peter Fry (Para inglês ver: identidade e
política na cultura brasileira, de 1982) e Edward MacRae (Em defesa do gueto, de 1983),
Herbert Daniel e Leila Miccolis (Jacarés e Lobisomens: dois ensaios sobre a
homossexualidade, de 1983) e João Silvério Trevisan (Devassos no Paraíso, de 1986),
marcaram o início dos estudos sobre a homossexualidade no Brasil (GREEN, 2012;
DUARTE, 2015). Green (2012) acrescenta os trabalhos de Luiz Mott, Ligia Bellini e Ronaldo
Vainfas ao roll de pioneiros nestes estudos, destacando ainda que estas primeiras obras não
tiveram a influência de Michel Foucault.
Os primeiros trabalhos acadêmicos registrados no Brasil, como a monografia de
especialização na USP de José Fábio Barbosa, “Homossexualismo em São Paulo: estudo de
um grupo minoritário”, de 1959, e a dissertação de mestrado no Museu Nacional/UFRJ de
Carmem Dora Guimarães, “O homossexual visto por entendidos”, de 1977, inauguram
publicações distanciadas do olhar medicalizado, recorrente deste período sobre as
homossexualidades (GREEN, 2012).
Os trabalhos de Néstor Perlongher (Negócio do michê, de 1987, e O que é AIDS?, de
1987) também inauguram o cenário da produção sobre sexualidade. Pesquisadoras/es como
Simões (2005) e Pelúcio e Miskolci (2009) têm apontado que a obras de Perlongher foram
importantes para o surgimento dos estudos queer, tendo em conta que “as preocupações de
Perlongher podem ser assimiladas com o que talvez, se chamasse hoje, de virada pós-
estruturalista nos estudos de gênero e sexualidade” (SIMÕES, 2005, p.265). Essa influência
dos trabalhos do antropólogo argentino soma-se aos da feminista americana Rubin (“Thinking
Sex”), aos do ensaísta francês Hocquenghen (“Le désir homossexuel”) e às leituras de
Foucault sobre poder e disciplinamento, que também tiveram destaque nas compreensões de
Butler, Sedgwick, Kristeva e De Lauretis, e no questionamento dos regimes de normalização
e assimilação e sobre o pensamento binário (MISCKOLCI, 2012). Embora a Teoria Queer
80

tenha surgido a partir de autoras/es feministas, esta perspectiva teórica coloca em questão a
ideia de que as mulheres seriam o sujeito do feminismo (BENTO, 2006). Desta forma, coube
aos estudos queer a tarefa de extrapolar o heterossexismo nos debates feministas.

As questões que irão marcar o terceiro momento dos estudos de gênero dizem
respeito à problematização da vinculação entre gênero, sexualidade e subjetividade,
perpassadas por uma leitura do corpo como significante em permanente processo de
construção e com significados múltiplos. A idéia do múltiplo, da desnaturalização,
da legitimidade das sexualidades divergentes e das histórias das tecnologias para a
produção dos “sexos verdadeiros” adquire um status teórico que, embora vinculado
aos estudos das relações de gênero, cobra um estatuto próprio: são os estudos queer
(BENTO, 2006, p. 80).

O conceito de gênero de Butler (2003) é central na crítica queer, e direcionado a um


ativismo e teorias baseados na identidade. Para esta autora a identidade não é algo essencial
que defina o indivíduo, mas sim um efeito da repetida performance de certos signos e
convenções culturais, como por exemplo as significações do gênero e da sexualidade.

O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido,


consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e
estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um permanente marcado pelo
gênero (BUTLER, 2003, p.200).

Butler (2003) propõe uma definição de gênero em termos de performance, sendo o


sexo um efeito do processo de naturalização da estrutura social de gênero e da matriz
heterossexual, onde o sujeito é interpelado discursivamente, através da reiteração e
reinterpretação dos papéis estabelecidos. Conforme Bento (2006, p. 82), a política queer é
baseada na instabilidade das identidades.
Louro (2004), mesmo reconhecendo a importância histórica dos estudos de gênero e
estudos gays e lésbicos, argumenta que as transformações advindas destes campos vão além
do “terreno dos gêneros e da sexualidade” e envolvem as formas de “aprender e estar no
mundo” (p.2). Isto é, com ajuda de Michel Foucault, Louro (2004) localiza “pontos de tensão”
nesta “nova” política identitária, ou pós-identitária, como ela mesma define:

[...] uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela
pretende se insurgir na medida em que ela mantém como referência para construção
de suas demandas ou de suas lutas a “norma”, isto é, o sujeito masculino
heterossexual. Para teóricos e teóricas queer, seria necessário pensar, agora, numa
política e numa teoria pós-identitária, que se voltasse não propriamente para as
condições de vida de homens e mulheres homossexuais, mas que tivesse como alvo,
fundamentalmente, a crítica da oposição heterossexual/ homossexual onipresente na
81

sociedade; a oposição que, segundo suas análises, organiza as práticas sociais, as


instituições, o conhecimento, as relações entre os sujeitos (LOURO, 2004, p.3).

Butler (2003) critica os estudos de gênero, bem como os estudos gays e lésbicos,
pelo fato destes encontrarem-se circunscritos à sequência sexo/gênero/desejo. Louro (2004)
corrobora o pensamento de Butler, ressaltando que é necessário que as teorias e políticas
colaborem para que “a multiplicidade da sexualidade, dos gêneros e dos corpos possam
contribuir para transformar modos de pensar e aprender, de conhecer e de estar no mundo em
processos mais prazerosos, mais efetivos e mais intensos” (p.6).
Preciado (2002) tem desenvolvido suas reflexões procurando estabelecer um diálogo
entre os estudos queer e as contribuições de Lauretis a respeito da tecnologia do gênero.
Autora de uma proposta teórica que presume a contra-sexualidade enquanto fim da natureza
dos corpos, ela acredita que as tecnologias de gênero podem desconstruir o “lugar” do corpo
como espaço de opressão.
Além das autoras supracitadas, é preciso reconhecer também o pensamento de
autoras que vêm se dedicando a criticar o conhecimento produzido no norte global acerca de
gênero. Connell45 (2014) é uma pesquisadora transexual australiana que tem desenvolvido
uma crítica sobre a necessidade de formulações de uma teoria Sul sobre gênero. Para a autora,

[...] As questões de gênero não se envolvem num diálogo atemporal entre o


biológico e o simbólico. Ao contrário, abarcam vastos processos formativos da
história, ao mesmo tempo criativos e violentos (pode-se chamar estes processos de
ontoformativos, em vez de performativos), nos quais corpos e culturas estão
igualmente em jogo e são constantemente transformados, por vezes, destruídos
(CONNELL, 2014, p.26).

Neste sentido, Connell (2014, p.3) critica os argumentos que insistem que o gênero
possui caráter histórico, pois essa afirmação não seria a mesma que certificar que a questão
não depende de corpos. Para a autora, uma fragilidade da teoria de gênero do Norte é a
dimensão que aderiu a uma divisão “entre a biologia fixa e uma cultura em movimento”.

Na teoria do “papel sexual” a dicotomia do corpo se dá na forma de uma


interpretação social por meio de funções normativas; na teoria queer os modelos
normativos sobrepujam o corpo; no discurso biomédico a dicotomia corporal
subjulga a cultura e está imediatamente expressa na prática social (CONNEL, 2014,
p. 23).

45
Connell (2014) desenvolve seu trabalho considerando as contribuições de Lugones (2007) sobre o conceito de
“colonialidade do gênero”. Segundo Connell (2014), o trabalho da autora é esquemático, contudo possui uma
ideia que marca uma mudança no campo (CONNELL, 2014, p.25).
82

Apoiando-se em Montecino, Connell (2014) sugere duas formas distintas de luta


política das mulheres que a teoria do norte global teria ignorado a partir de seu viés
colonizador. Seriam elas: a maternalista e a feminista.

As identidades resultantes desta divisão estão conectadas as mudanças na situação


econômica das mulheres, de trabalhadoras domésticas não assalariadas a
trabalhadoras industriais assalariadas, o que inclui ainda transformações culturais
num contexto onde religião e costume patriarcais moldam fortemente as mulheres
dentro de padrões maternais, quer possuam ou não um emprego remunerado.
(CONNELL, 2014, p. 26).

Segundo a autora, o debate sobre identidade e os estudos em torno delas são


reflexões do norte global46e seria importante desenvolver uma perspectiva que se dê conta da
realidade social das populações que vivem fora deste contexto (CONNEL, 2014). Connell
(2015), preocupada com o poder dos homens que sustenta as desigualdades de gênero,
elaborou o conceito de “ordem de gênero”, que articula as noções patriarcado e
masculinidade. Embora reconheça a multiplicidade das feminilidades e masculinidades, a
pesquisadora afirma que este ordenamento se centra no domínio dos homens sobre as
mulheres. Logo, a masculinidade hegemônica subalterniza as outras masculinidades e
feminilidades, o que representa o roll da hierarquia de gênero. A ordem de gênero estaria
então assentada em três aspectos: I - o trabalho, especificamente relacionado à divisão sexual
do trabalho; II - o poder, cuja interação se dá a partir da autoridade e da violência; III - a
cathexis, que se correlaciona as relações íntimas e emocionais.

[...] trato essa questão como “ordem de gênero” de uma dada sociedade, entendida
como tendo múltiplas dimensões, incluindo poder, produção e catexia (Connel,
1987). Esta é uma forma de nomear a organização em larga escala das relações de
gênero, nas quais a educação dos filhos, o discurso, a violência, as instituições, as
emoções e a economia estão interligados (CONNELL, 2014, p.21).

Connell (2014) compreende que os feminismos do Sul e o pensamento sobre gênero


advindos do sul global centram a questão da diversidade e a multiplicidade de gênero no nível
da ordem de gênero, e não de forma individual. Ou seja, o que diferenciaria o pensamento do
Sul em relação ao Norte global é que o primeiro se atenta para o fato de que a dinâmica das
relações de gênero é marcada pelo âmbito social.

46
Connell (2014, p.13) afirma que, “a partir da perspectiva do Sul Global, o mundo parece diferente e os
problemas relevantes são diferentes”. Para exemplificar sua observação, ela destaca os Objetivos de
Desenvolvimento para o Milênio adotados pelas Nações Unidas – que não foram alcançados em 2015 e que,
embora incluam questões de gênero, não tratam de questões sobre identidade.
83

Na linha de pensamento crítico sobre as “teorias do Norte global”, podemos destacar


também a contribuição de Donna Haraway, para quem o uso do termo gênero implicaria numa
distinção com o sexo, e tais conceitos não seriam historicizados, tampouco relativizados.
Além disso, o conceito de gênero colocaria os conceitos de raça, nacionalidade e classe em
posição de subordinação, sendo, para a autora, problemático assumir gênero como uma
“categoria global (e central)” (PISCITELLI, 2002, p.13).
Neste sentido, embora reconheça os limites do conceito de gênero e o fato de o
mesmo estar em “disputa”, parece-me bastante pertinente o argumento de Matos (2008) de
que se faz necessário postular gênero a partir da compreensão de um campo legítimo e
legitimado nas ciências humanas e sociais, inclusive no sul global. A autora, utilizando-se das
contribuições de Joan Scott sobre a “relação lógica paradoxal” entre diferença e igualdade,
identidade individual e coletiva, propõe que esse conjunto de paradoxos seja o “núcleo duro”
do campo de gênero e feminista. Desta forma, Matos (2008) retoma três pontos da reflexão de
Scott:

1. A igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente.


2. Identidades de grupo definem indivíduos e renegam a expressão ou percepção
plena de sua individualidade.
3. Reivindicações de igualdade envolvem a aceitação e a rejeição da identidade de
grupo atribuída pela discriminação. Ou, em outras palavras: os termos de exclusão
sobre os quais essa discriminação está amparada são ao mesmo tempo negados e
reproduzidos nas demandas pela inclusão.
Ou seja, pensar simultaneamente, através desses paradoxos, significa repor
constantemente o lugar da nova forma de apreensão do universal/universalismo:
histórica, multicultural, emancipatória e contingentemente é que se pretende que
qualquer afirmação dos eixos temáticos desses paradoxos nunca seja ou possa vir a
ser definitivamente ‘resolvida’. Trata-se de uma forma de pensar o universal em
constante e inacabado movimento, onde seria, justamente, a tensão entre os eixos o
que os movimentaria. Nesse sentido, seja pela tentativa da criação de teorias
especificamente de gênero ou mesmo pela aproximação da temática de gênero de
outras ancoragens teóricas, o efeito foi fundamentalmente o mesmo: o
empoderamento recente e crescente de que o sistema clássico cartesiano e
instrumental de racionalidade é inadequado, obsoleto e até auto-ilusório, devendo,
portanto, ser revisto. O campo de gênero tem se dedicado fertilmente a essa árdua
tarefa. Mesmo a ciência moderna, em alguma perspectiva, visou recuperar elementos
das tradições de conhecimento não-ocidentais. Algo da ordem de um “empréstimo
científico” (scientific borrowing, nos termos de Sandra Harding), ou de um intenso
processo de trocas, sempre fez parte do discurso científico moderno (MATOS, 2008,
p.343-344).

Pensar sobre gênero é unir-se ao campo dos “saberes subalternos”, que só receberam
reconhecimento científico recentemente, devido ao fato de serem situados e localizados a
partir da experiência, o que entrava em desacordo com a suposta objetividade e
imparcialidade da ciência (FOUCAULT, 2000; PELÚCIO, 2012; MISKOLCI, 2012).
84

No bojo das reflexões sobre gênero, é importante pensarmos também o conceito de


“sexualidade”, tendo em vista que nas sociedades ocidentais modernas têm sido característica
a vinculação de gênero e sexualidade como se fossem a mesma coisa. Fato que, para autoras
como Butler (2003), reforça as hierarquias sexuais e de gênero a partir de uma linha de
inteligibilidade sexo-gênero-desejo. Nesta forma de pensar, espera-se socialmente que um
sujeito nomeado ao nascer como masculino a partir de uma determinada genitália (no caso o
pênis) cresça reproduzindo os valores, símbolos e interações de “homens”, e que em sua vida
juvenil/adulta se envolva afetivo-sexualmente com o sexo oposto (no caso, mulheres).
Esta leitura sobre o “imperativo heterossexual”, elaborada pela autora, se articula ao
conceito de heteronormatividade. Este conceito tem se popularizado no Brasil desde meados
dos anos 2000, não apenas na academia, mas também nos movimentos sociais feministas e
LGBT. A heteronormatividade atinge não apenas LGBT’s, mas também pessoas
heterossexuais. Basta mencionar o caso de mulheres heterossexuais que decidiram não se
casar, ou casais heterossexuais que decidiram não ter filhos/as. Obviamente que essas pessoas
não são agredidas fisicamente por suas decisões, diferentemente de travestis e transexuais.
Contudo, é importante ressaltar que a heteronormatividade também se reproduz em processos
de assimilação, higienização47 e busca pela normalização protagonizada por gays e lésbicas,
que podemos nominar de homonormatividade. Assim, cabe retomar a discussão sobre
sexualidade e articulá-la ao debate de gênero, abrindo espaço para a reflexão sobre a
homofobia e o heterossexismo identificados por vários autores em sociedades tanto do norte
global quanto do sul global.

3.2 Correlacionando sexualidade e gênero

Ao analisar a relação entre os conceitos de gênero e sexualidade, resgato o


argumento de Miriam Grossi (2005) no qual afirma que, na perspectiva ocidental, o conceito
de gênero “está colado ao de sexualidade, o que promove
uma imensa dificuldade no senso comum” (p.4).

47
Aqui refiro-me às estratégias de foro privado da doutrina do higienismo, que surgiu no século XIX na esfera
pública com um discurso de controle da saúde. Como exemplo cito a patologização de práticas sexuais como a
prostituição, que passa a ser vigiada do ponto de vista epidemiológico.
85

Em consonância, as reflexões de Rubin foram essenciais na “sexualização” do debate


sobre gênero, ampliando a crítica feminista. Esta autora afirma que existe uma relação entre
gênero e sexualidade e, ao mesmo tempo, diferenças fundamentais que exigem análises
distintas (RUBIN, 1989). A noção do sistema sexo-gênero é fundamental na explicação de
como uma sociedade transforma o sexo biológico em produto da atividade humana. O que
reforça as análises que dissociam o corpo biológico e a construção histórico-cultural,
permanecendo na perspectiva binária de compreensão da realidade. Afirma que as hierarquias
sexuais funcionam da mesma forma que os sistemas de racismo e etnocentrismo,
racionalizando o bem-estar dos sexualmente privilegiados, impondo graus de aceitação social
e invisibilizando o que está à margem. Neste sentido, Rubin (1993) critica a essencialização
do sexo como se este fosse algo natural (reduzindo-o à construção anatomo-biológica).
Assim, cabe expor que compreendo a sexualidade enquanto um conjunto de
elaborações culturais sobre os prazeres e os intercâmbios sociais e corporais, que conformam
desde o erotismo, o desejo e o afeto até noções relativas à saúde, à reprodução, ao uso de
tecnologias e ao exercício do poder na sociedade (WEEKS, 2000). Ela se relaciona com nossa
imaginação, com as nossas crenças e ideologias, tendo mais a ver com a nossa “cabeça” do
que com as nossas genitálias (VANCE, 1989).
A sexualidade é um construto social, uma invenção histórica que envolve uma série
de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente
modeladas, não podendo ser compreendida isoladamente (WEEKS, 2000). Deduz-se daí que
estamos frente a um conceito dinâmico, sujeito a diversos usos, e a múltiplas e contraditórias
interpretações nos diferentes períodos históricos. Isto é, como qualquer outro construto social,
a sexualidade está sujeita a debates e a disputas políticas.

[...] A sexualidade se refere às elaborações culturais sobre os prazeres e os


intercâmbios sociais e culturais que compreendem desde o erotismo, o desejo e o
afeto até o exercício do poder na sociedade. As definições atuais de sexualidade
abarcam significados, ideais, sensações, emoções, experiências, condutas,
proibições, modelos e fantasias que são configurados de modos diversos em
diferentes contextos sociais e períodos históricos (MISKOLCI, 2010, p.98).

Todavia é necessário relembrar, conforme Carrara (2009), que a ciência foi um


instrumento importante na reiteração da ausência de direitos às mulheres e na patologização
das sexualidades.

Lembremos, por exemplo, que até o início do século XX uma das justificativas para
a não extensão às mulheres do direito ao voto baseava-se na idéia de que elas
possuíam um cérebro menor e menos desenvolvido que o dos homens. Este
86

imperativo de encontrar no corpo as razões de tais diferenças, ou seja, de


essencializá-las ou naturalizá-las, explica-se pela preponderância formal dos
princípios políticos do Iluminismo, muito especialmente do princípio da igualdade.
Depois da Revolução Francesa, nas democracias liberais modernas, apenas
desigualdades naturais, inscritas nos corpos, podiam justificar o não acesso pleno à
cidadania. (CARRARA, 2009, p.13).

A produção e reprodução do discurso com efeitos de verdade possui a função de


conjugar poderes e perigos, ancorados pela vigilância, controle e disciplinamento das
instituições, que ratificam as violações e violências que atingem as dissidências na construção
da normalidade.

Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os
buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como
se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a
sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas
exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes
(FOUCAULT, 2009, p.10).

Neste sentido, ressalta-se o processo de biologização do sexo e a medicalização da


sexualidade observados ao longo da história por Foucault (1988). Este autor circunscreve esse
processo no âmbito das relações de poder e formas de constituição de saber. A regulação e o
controle da sexualidade humana foram problematizados pelo autor, especialmente a questão
da produção de discursos sobre o sexo nas sociedades modernas. Estes discursos teriam a
finalidade de produzir verdades e estas verdades constituem campo de poder-saber que
legitima quem está autorizado a produzir conhecimento, ou seja, o que pode ser conhecido e
as formas de como chegar a este conhecimento. Nesta perspectiva, a sexualidade é concebida
como um dispositivo regulador, normatizador e normalizador, e é utilizada não para separar o
verdadeiro do falso, mas sim o inqualificável do qualificável.
Observam-se investimentos e esforços para descobrir a verdade científica a respeito
do surgimento da homossexualidade, revelando uma suposta naturalidade, que conferiria
legitimidade à heterossexualidade como regime de poder e padrão de normalidade sexual.

Pensar a heterossexualidade como um regime de poder significa afirmar que longe


de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, inscreve-se reiteradamente
através de constantes operações de repetição e de recitação dos códigos socialmente
investidos como naturais (BENTO, 2008, p.24 ).

A cultura patriarcal atua na sociedade não só como forma de culpabilização, mas


também de responsabilização, considerando a produção sócio-histórica e cultural da
obrigatoriedade da maternidade da mulher e da responsabilidade de criação dos/as filhos/as, e,
87

ainda, no repasse de valores morais da família. Estes mesmos valores que estruturam o gênero
e a sexualidade reiteram a culpabilização da mulher, fundamentada na diferença sexual e
tornam compulsória a heterossexualidade (BUTLER, 2013).
Deste modo, a heterossexualidade se coloca enquanto regime político que atravessa a
nação (CURIEL, 2011).

[...] antes de la diferencia sexual y por causa de ella, existe lo que la antropóloga
francesa denominó diferenciación; es decir, un acto político que construye la
diferencia y que resulta de la division sexual del trabajo no solo material, sino
también emocional y subjetiva (Mathieu, [1989] 2005). (CURIEL, 2011, p.73).

A diferença sexual, do ponto de vista da anatomia, foi uma estratégia representativa


para que se considerasse a anatomia como um destino imutável, desde o período dos gregos a
Freud, como destacou Laqueur (2001). Portanto, manter a “diferença sexual” tornou-se
condição sine qua non para a unidade nacional (CURIEL, 2001), já que a heterossexualidade
define lugares supostamente naturais para homens e mulheres, cujos discursos excluem os
sujeitos fora da heterossexualidade.

A preocupação contemporânea com a esfera da sexualidade está intrinsecamente


ligada a um racismo moderno que se volta contra inimigos internos biologizados,
contra os quais a sociedade deve se defender (Stoler, 1995, p.60). Esta “necessidade
de defesa” demanda e justifica um aumento do poder do Estado, o qual é um único
instrumento neste confronto entre uma raça superior e uma inferior, sendo que esta
última representaria o reaparecimento do seu passado (MISKOLCI, 2012, p.44).

Este regime político heterossexual ancora-se em uma oposição binária, na qual o


sujeito do masculino está no topo das hierarquias sexuais e de gênero. O que ilustra a
compreensão de Welzer-Lang sobre a masculinidade implicar em ‘dominação das mulheres’ e
na ‘homofobia’:

É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser
associado a uma mulher. O feminino se torna até o polo de rejeição central, o
inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma
mulher e ser (mal) tratado como tal (WELZER-LANG, 2001, p. 465).

Claramente, podemos ver então que os lugares sociais de homens e mulheres são
determinados a partir da correlação de sexo-gênero. Os lugares que mulheres ocupam não
podem ser ocupados por homens, pois “são ameaçados de serem desclassificados e
considerados com os dominados, como as mulheres” (WELZER-LANG, 2001, p.465).
Partindo deste entendimento, há uma restrição de espaços para a expressão da diversidade
88

sexual e de gênero, pois estes lugares reproduzem a lógica do sexismo 48 e da homofobia49, a


partir do imperativo heterossexual.
Neste sentido, Louro (2004) afirma que,

a identidade é assegurada através de conceitos estáveis de sexo-gênero e


sexualidade, mas há sujeitos de gênero "incoerentes", "descontínuos", indivíduos
que deixam de se conformar às normas generificadas de inteligibilidade cultural
pelas quais todos deveriam ser definidos (LOURO, 2004, p. 47).

A desnaturalização do sexo, da anatomia e do desejo é um caminho evidente para


assegurar a multiplicidade dos gêneros e a livre expressão sexual. Vance (1989) nos aponta, à
luz da teoria da construção social, que a direção do desejo sexual não é inerente ao sujeito,
mas construída. A autora reafirma que o “corpo” e seus sentidos e possibilidades é o lócus
fundamental de nossa formação individual. Como observado por Weeks (2000, p.49), “não
estamos preocupados com a questão do que causa a heterossexualidade ou a
homossexualidade”. Ao invés disso, interessa-nos os motivos e os modos pelos quais nossa
cultura determina processos de privilégio e marginalização quando discrimina e hierarquiza
uma expressão sexual em detrimento de outras.
Na visão de Foucault (1988), a sexualidade foi historicamente utilizada para moldar,
controlar e disciplinar os corpos. E, embora a sexualidade seja considerada no senso comum
um tema “tabu”, sempre se produziu e reproduziu discursos sobre o sexo. Analisando a
sexualidade enquanto um campo de conhecimento, Bozon (2004) descreve os anos de 1960
como um período de avanços sexuais nos países considerados desenvolvidos. O autor destaca
como centrais nesse processo a ampla difusão de métodos contraceptivos médicos,
relacionada a uma maior autonomia e controle do processo reprodutivo por parte da mulher. É
notório, em relação aos países considerados com menor desenvolvimento naquele período, o
impacto da adoção dos métodos contraceptivos modernos na vida familiar, especialmente
observados na redução dos casamentos (civil e religioso), no planejamento do número de
filhos e na racionalização do prazer. Contudo, Bozon (2004, p.94) afirma que “a sexualidade
não revolucionou as relações de gênero e nem modificou radicalmente os lugares de cada um,
as experiências sexuais continuam estruturadas por pares de oposição, em tensão

48
Conceito utilizado para refletir sobre a supervalorização do masculino em detrimento do feminino, conforme
exposto no subitem anterior.
49
Conceito teórico e político utilizado para definir a aversão e a discriminação contra pessoas LGBT, também
encontrado no léxico acadêmico-militante como LGBTfobia ou homo-lesbo-transfobia, sendo que este último
vem sendo mais acionado pela militância para explicitar e visibilizar as violências específicas sofridas por cada
segmento. O aprofundamento no debate desta categoria dar-se-á no subitem posterior.
89

permanente”. O que reforça o cenário de contínuos avanços e recuos no campo dos direitos
sexuais, como apontado no capítulo anterior.
Em termos conclusivos, as reflexões feministas foram fundamentais para o
desenvolvimento dos estudos de sexualidades, mas, segundo a crítica de Góis (2003), a forma
como estes permaneceram tão vinculados aos debates de gênero obstruiu uma possível
autonomia das análises no campo das sexualidades. O autor, em texto escrito no início dos
anos 2000, entendia como necessária a desvinculação dos estudos de gênero para que se
conseguisse captar as particularidades socioculturais que permeiam o universo homossexual
brasileiro.
A proposta de Góis (2003) já vinha sendo implementada em outros países, como os
Estados Unidos, onde já havia essa tensão entre estudos feministas e outro campo mais
dedicado a pensar as homossexualidades − os chamados Estudos Gays e Lésbicos. No Brasil,
essa movimentação também se iniciou nos anos de 1980, a partir das pesquisas de Peter Fry,
Edward MacRae, Michel Misse e Carmem Dora Guimarães, como mencionei anteriormente.
Há uma controvérsia sobre o enfoque destes trabalhos, cuja crítica vem sendo feita por
pesquisadores dos estudos queer, cuja citação abaixo ilustra.

Havia uma tentativa de mostrar que a sexualidade era construída, e que gays e
lésbicas eram mais normais ou comuns do que se pensava, mas, contra seu próprio
interesse, os estudos gays e lésbicos corroboravam a ideia de que a maioria das
pessoas eram heterossexuais e que a homossexualidade era algo restrito a uma
minoria de pessoas diferentes que a sociedade precisava aprender a conhecer e
respeitar (MISKOLCI, 2012, p.30).

A crítica queer de Miskolci (2012), entretanto, não menciona que, no Brasil, esses
estudos são desenvolvidos entre o período final da ditadura militar e o início da reabertura
política. Ou seja, em uma conjuntura política autoritária que dificultava a realização de
pesquisas socioantropológicas nas universidades brasileiras. Vance (1989) asseverou que uma
das dificuldades para a emergência dos estudos de sexualidade relacionava-se à
“desconfiança” sobre quem estudava essas questões. Portanto, embora circunscritas no campo
dos estudos gays e lésbicos, já que dificilmente se autonomeariam queer naquele período,
esses estudos somam-se a outros de igual relevância na emergência de um campo de estudos
em sexualidade no Brasil.
Richard Miskolci (2012) afirma que os estudos queer modificam essa realidade que
ele apontou como problemática em sua crítica. Para o autor, a Teoria Queer vem enriquecer os
estudos gays e lésbicos com sua perspectiva feminista, já que o anterior era “feito por homens
90

que não liam feministas” (p.31), e ampliaria o alcance do feminismo para além das mulheres.
Ele acrescenta em sua crítica que os estudos gays eram geralmente “estudos sobre homens
que adotavam uma postura masculina, uma imagem de respeitabilidade social” (p.31).
Afirmação da qual discordo veementemente, já que acredito que o referido contexto se
relaciona estritamente à realidade norte-americana, e não com a produção brasileira
relacionada pelo autor. A exemplo, ressalto o trabalho de Misse, que faz referência a Simone
de Beavouir e Margareth Mead; Jacarés e Lobisomens, escrito em parceria entre Daniel e
Miccolis, tendo, esta, produzido vasta literatura lésbica engajada com o feminismo. Já o
trabalho de Trevisan, faz uso do diálogo com Susan Sontag, filósofa de grande relevância para
o feminismo e inclusive para os estudos queer.
Cabe ressaltar que a produção de estudos sobre lesbianidades e homossexualidade
feminina foi iniciada por “um pequeno número de pesquisadoras/es, em sua maioria
comprometidas/os com o movimento organizado”, como observou Almeida (2010, p.97). O
pesquisador sinaliza como pioneiros no Brasil os trabalhos de “Daniel e Miccolis (1983),
Mott (1987), Portinari (1988), Macrae (1990), Muniz (1992), Carvalho (1994) e Vargas
(1995)” (Idem). As teses de Almeida (2005), Meinerz (2005) e Facchini (2008) dão pistas de
alteração nesse cenário de produções acadêmicas, todavia nos marcos históricos de fundação
do movimento homossexual brasileiro, as vozes lésbicas são pouco acionadas no recontar
dessa história50.
Sobre a produção acadêmica sobre travestilidades e transexualidades, identidades
coletivas que vêm se autonomizando do movimento LGBT mais recentemente, os trabalhos
“de mestrado de Marcos Benedetti (2005) e da tese de doutorado de Larissa Pelúcio (2009)”
são os primeiros a desvincular as travestis de um caráter exótico (CARVALHO, 2011, p.13).
Quanto à transexualidade, é a partir dos anos de 2000 que surgem produções fora do cunho
médico-psiquiátrico, são os trabalhos “de Berenice Bento (2006, 2008, 2010) e Márcia Arán
(2006, 2009)”, identificados por Carvalho (2011, p.14) como pioneiros, tendo eles recebido
forte influência do pensamento de Butler e dos estudos queer.
Neste sentido, concordo que a crítica queer sobre a pluralização da perspectiva de
gênero e as mudanças iniciais promovidas por esses estudos se relaciona com a perspectiva de
que tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são construções históricas, o que
traz a impossibilidade de elencar um quantitativo x ou y que determina quantos heterossexuais

50
O recente artigo de Marisa Fernandes (2014) intitulado “Lésbicas e ditadura militar: uma luta contra a
opressão e por liberdade”, publicado no livro de Green e Quinalha (2014) sobre a ditadura militar e
homossexualidades, merece leitura e incorporação em nossas retrospectivas sobre movimento homossexual.
91

ou homossexuais existem no mundo. Como definiu Guacira Louro (2001, p.16): “(...) ao
classificar os sujeitos, toda sociedade estabelece divisões e atribuí rótulos que pretendem fixar
as identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas, também restringe e
discrimina”.
Entretanto, é inegável que as pessoas tidas como “normais” – aquelas vinculadas os
grupos sociais hegemônicos racialmente, sexualmente, religiosamente e em termos de classe –
têm acesso à participação social e conseguem se representar, e, por conseqüência, representam
os “outros”. O que torna a “política de identidade” um caminho pelo qual “os grupos
subordinados contestam precisamente a normalidade e a hegemonia das identidades tidas
como normais” (SILVA, 1998 apud LOURO, 2001, p.16).
Chantal Mouffe (1996), ao analisar algumas posições do movimento feminista,
chama a atenção para o possível enfraquecimento político provocado pela essencialização das
identidades. A autora infere que no campo da luta pública não interessam as diferenças entre
homens e mulheres, mas sim por que estas diferenças implicam relações de opressão.
Prado e Viana Machado (2008) sugerem a aplicação do mesmo argumento para o
questionamento das diferenças entre heterossexuais e homossexuais, e pontuam que a
utilização de uma essência produtora de uma categoria fixa de identidade é estratégia de
muitos ativistas homossexuais para não “resvalar para o relativismo político” (p. 45). Para
eles, tais estratégias enfatizam identidades coletivas que politizam a intimidade dos sujeitos e
trazem para a esfera pública questões frutíferas na luta por direitos civis. Logo, é primordial
que tratemos de reconstruir a história do movimento LGBT para que possamos compreender
as dinâmicas e relações que constituem a luta por direitos sexuais e políticas públicas para a
população LGBT no Brasil.

3.3 Do movimento homossexual ao movimento LGBT

A identidade balizou a constituição inicial do movimento LGBT em âmbito global.


Do princípio do reconhecimento dessas identidades surgem demandas por respeito à
diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero, conceitos estes que hoje estão
presentes no vocabulário político do ativismo LGBT (FACCHINI e SIMÕES, 2009).
92

No Brasil, o então denominado movimento homossexual51 organiza suas primeiras


ações no final da década de 1970, embora desde os anos de 1950 já existissem atos
individuais de politização das identidades gay e lésbica em locais de lazer (GREEN, 2007).
Os primeiros grupos de militância LGBT organizados no Brasil foram o grupo
SOMOS (em São Paulo) e Triângulo Rosa (no Rio de Janeiro). Fundados entre 1977-1978
eles atuaram durante o período da Ditadura Militar, como descreveu James Green (2014) e
Marco Duarte (2015). O contexto do surgimento foi marcado por transformações culturais
visíveis na música popular brasileira, como o sucesso de cantoras como Gal Costa e Maria
Betânia, cujos rumores sobre suas sexualidades “criaram modelos alternativos para jovens
lésbicas que estavam descobrindo o mundo da sociabilidade entre mulheres” (p.185). Foi
também quando ocorreu o aparecimento do grupo de performances Dzi Croquettes e de Ney
Matogrosso, que, com sua postura “efeminada”, tornou-se um cantor muito popular. Estas
transformações internas estavam em consonância com a tendência de organização e
mobilização dos primeiros grupos de gays e lésbicas nos Estados Unidos, Europa e também
na Argentina, enquanto em 1968 o Ato Institucional 5 (AI-5) reprimia qualquer possibilidade
de reunião para discussões políticas. Alguns anos depois, em 1978, com a efervescência do
“Gay Power” estadunidense, divulgado nos jornais brasileiros despercebidamente pela
censura, tornou-se possível reunir pessoas para debater as discriminações sofridas por
homossexuais (GREEN, 2014). O Jornal Lampião de Esquina52, uma das primeiras53
publicações homossexuais do país, bem como as ações do Somos, compuseram uma
importante resistência no período ditatorial.
Apesar de o grupo Somos, em diversas literaturas paulistanistas54, ser considerado o
embrião do movimento homossexual organizado no Brasil, é nas décadas de 1980 e 1990 que
a invisibilidade homossexual começa a ser desvelada, especialmente com o advento da

51
A categoria homossexual, utilizada para identificar todas as pessoas que tinham relações sexuais com outras
do mesmo sexo, foi tida como universal. Na perspectiva do movimento social, a utilização do termo “movimento
gay”, herdeira dos EUA, também foi utilizado na década de 1980. Contudo, os termos “homossexual” e “gay”
estavam carregados da hegemonia masculina. O aumento da participação de mulheres no movimento e a
emergência de uma identidade trans, ou seja, a percepção de uma identidade de gênero não relacionada com a
orientação sexual, trouxe novas configurações identitárias a este movimento (MELLO, 2005).
52
O Jornal Lampião de Esquina circulou entre os anos de 1978 e 1981, e teve o Conselho Editorial constituído
pelo pintor Darcy Penteado, o escritor e jornalista (e hoje dramaturgo) Aguinaldo Silva, o cineasta e escritor
Jean-Claude Bernardet, o advogado e ativista João Mascarenhas (no próximo capítulo retomamos sua
importância na história do movimento homossexual) e o antropólogo inglês Peter Fry.
53
Entre 1963 e 1969 circulou no Rio de Janeiro o jornal Snob. Apesar de se caracterizar por uma publicação
doméstica, ela apresentava as tensões vinculadas ao estigma homossexual na década de 1960 (COSTA, 2010).
54
Utilizo este neologismo para referenciar as controvérsias, no campo LGBT, entre São Paulo e Rio de Janeiro,
que ora utilizam-se do apagamento histórico carioca e ora não referendam o protagonismo paulistano, como em
relação ao dia alusivo a visibilidade lésbica que mencionei anteriormente. No caso do embrião do movimento, as
inferências de Green (2012; 2014) e Facchini e Simões (2009) priorizam o Somos, como pioneiro.
93

epidemia de HIV/Aids (GREEN, 2014; FACCHINI e SIMÕES, 2009). O diálogo com o


poder público torna-se inevitável nesse período, devido ao estigma da “peste gay” −
denominação aplicada a Aids em seu surgimento. Esta “carapuça” acabou proporcionando
mais acesso e informações no que se refere à Aids.
Mello (2005) observa que:

[...] não restam dúvidas de que, no Brasil, o longo silêncio que cobriu as
homossexualidades por cinco séculos foi rompido, mais explicitamente, apenas a
partir do advento da epidemia de HIV/AIDS, a qual foi enfrentada pela sociedade
civil a partir de uma mobilização inédita, que levou o governo federal, inclusive, a
elaborar um programa de prevenção e de apoio aos doentes considerado modelo pela
Organização Mundial de Saúde – OMS (p. 38).

A reabertura política e o processo de redemocratização do Brasil foram fundamentais


no processo de expansão da produção de conhecimento sobre gênero e sexualidade em uma
perspectiva distinta as das ciências ‘psi’. Inicia-se, assim, um processo de articulação entre os
diversos sujeitos vinculados às lutas por direitos sexuais, que culminará em estratégias para
interferir no processo de formulação das demandas por políticas públicas. As áreas da saúde e
da educação tornaram-se o foco dos movimentos feministas e LGBT, o que parecia ser
justificável, no caso da primeira, pela referência na epidemia de HIV/Aids e, no caso da
segunda, na possibilidade de atingir as relações de preconceito e discriminação desde o
primeiro momento de socialização (FACCHINI et. al., 2013).
Ao longo da década de 1990, o movimento passou a ter relações estreitas com o
Estado, sobretudo por intermédio do Ministério da Saúde, e esse relacionamento impingiu-lhe
certa domesticação. Neste período, o processo de “onguização” do movimento se inicia,
especialmente pela necessidade de tornar-se juridicamente elegível ao pleito de editais
públicos de prestação de serviços de prevenção e combate ao HIV/Aids. Ao mesmo tempo,
foram estreitados os diálogos, importantes no processo de transformação da vida homossexual
para além do comportamento sexual, por colocarem em pauta a possibilidade de expressão
social (PARKER E GAGNON, 1994). Este também foi o contexto dos primeiros estudos
sobre homossexualidade no Brasil, que expressavam a preocupação com a distinção entre
gênero e sexualidade. Segundo Góis (2003), no Brasil as discussões sobre a subalternização
da homossexualidade foram possibilitadas pela redemocratização do país na década de 80 e
pela importação das discussões realizadas nos Estados Unidos e em alguns países europeus.
Com o advento da epidemia de Aids houve um crescimento significativo dos estudos
sobre homossexualidade, motivados especialmente pelas experiências dos movimentos
94

sociais. Contudo, estes estudos mantinham-se presos às significações dos processos saúde-
doença, reduzindo os contextos socioculturais e políticos da homossexualidade à patologia.
Facchini (2005) argumenta que este impasse se desfez na década de 1990, com a
diversificação de pesquisas, que passaram a ter objetivos voltados para a compreensão dos
processos de sociabilidades concernentes às vivências e experiências políticas destes sujeitos.
Este “outro olhar” gerou discussões sobre os significados do termo “homossexualidade”, o
que propiciou o surgimento de outros termos, como: homoerotismo, HSH55,
homoafetividade56, homocultura, GLS57, entre outras siglas. E influenciou também nas
categorias originárias do movimento de homossexuais, denominada por Facchini (2005) como
“sopa de letrinhas”: GLBT, GLBTT, GLBTTT, LGBT, LGBTT, LGBTQI (a letra G significa
gay; L significa lésbica; B significa bissexual; os “T” remeteriam a travestis, transexuais e
transgêneros; Q representaria queer; e I as pessoas intersexuais).
A década de 1990 foi marcada pelo surgimento de novos grupos de militância, mas é
somente após 1995 que isso se dá de forma massiva fora do eixo sul-sudeste. O ativismo
onguizado de gays, lésbicas e de grupos mistos também começa a se evidenciar. Guilherme
Almeida (2010) afirma que, nesse período, o movimento de lésbicas passa por um processo
progressivo de autonomização em relação ao movimento LGBT no qual o mesmo pode ser
observado como “correlato e concorrente do movimento LGBT e, em outra direção, um braço
dele” (p.85). As rupturas advindas de tensões de não reconhecimento das demandas
específicas lésbicas e do seu poder de voz e decisão se iniciam ainda no grupo Somos, como
nos conta Marisa Fernandes (2014). Esse processo gerou a formação de ONGs lésbicas58, e,
posteriormente, das primeiras redes nacionais lésbicas, como veremos adiante.
Outra cisão que necessita ser levantada relaciona-se ao segmento de travestis e
transexuais. As travestis passam a participar dos espaços de organização do movimento
homossexual a partir de 1995, e a inclusão do “T” na “sopa de letrinhas” só se deu por forte
pressão da militância travesti (SIMÕES e FACCHINI, 2007; CARVALHO, 2011). A
primeira organização de travestis brasileiras surge em 1992, no Rio de Janeiro, e entre as
“lideranças” que Carvalho (2011) entrevistou em seu trabalho percebe-se que a inserção

55
Esta sigla, que significa “homens que fazem sexo com homens”, tem sido amplamente utilizada por veículos e
ONG/Aids governamentais envolvidos com as políticas de saúde e da prevenção ao HIV/Aids.
56
Este termo tem se evidenciado principalmente no campo jurídico brasileiro, principalmente pelos esforços da
Desembargadora Maria Berenice Dias. Recuso seu uso em decorrência de sua proximidade com o direito da
família, área jurídica na qual tem preponderado decisões ancoradas em concepções heterocentradas de arranjos
familiares em detrimento das parentalidades e conjugalidades LGBT.
57
Sigla utilizada para definir espaços de sociabilidade de frequência de gays, lésbicas e “simpatizantes”,
recorrente no mercado do consumo.
58
Para um aprofundamento do processo de fortalecimento destes espaços do movimento, ver Almeida (2005).
95

destas na militância se deu a partir de participação em ONG’s que desenvolviam projetos


sobre prevenção a DST’s/Aids em locais de prostituição. As transexuais organizam um
primeiro grupo em Campinas, no ano de 1997, e, com a vinda de militantes internacionais, o
termo “transexual” passa a circular no vocabulário do movimento, instaurando-se a disputa
entre “travestis” e “transexuais”. No início dos anos 2000, também passa a ser gestada a
primeira rede nacional de travestis, nomeada de Rentral, um embrião do que viria ser a
Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), fundada no final dos
anos 2000.
Retomo novamente a linha histórica dos anos 90, e destaco que, no ano de 1995,
funda-se a primeira rede nacional de militância LGBT brasileira, a Associação Brasileira de
Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), após a realização de alguns Encontros
Brasileiros de Homossexuais (EBHO), posteriormente nomeados de Encontro Brasileiro de
Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (EBGLT). As cisões promovidas pela “política de
identidade” e o chamado “gaycentrismo” do movimento GLBT culminaram na criação da
primeira rede nacional de lésbicas, a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), no ano de 2003,
durante o Seminário Nacional de Lésbicas (Senale). Em virtude de rupturas políticas internas
à LBL, no ano de 2004 surgiu a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL). No ano de 2005
surge a Rede Nacional de Negros e Negras LGBT (Rede Afro LGBT), criada durante o
Encontro Nacional de Ativistas LGBT Afrodescendentes. Ainda em 2005 surgiram também
grupos engajados com pautas etárias, como o E-Jovem, rede nacional que surgiu no interior
de São Paulo, formada por jovens. Mais recentemente, no ano de 2012, foi criada a
Articulação de Gays (ArtGay) e, posteriormente, a Articulação de Gays Jovens (Artgay
Jovem)59.
Foi também nos anos 2000 que se deu o surgimento de grande parte das ONG’s
LGBT’s brasileiras. Algumas delas foram criadas através do “Projeto Somos60”, como
ocorreu com diversos grupos do interior de Goiás, segundo o estudo desenvolvido por Camilo
Braz (BRAZ et al., 2013). Em outros casos, existiram grupos, como em Tocantins e Mato
Grosso, que se fortaleceram através deste projeto, que visava também a capacitação da
militância para elaboração de projetos e captação de recursos (IRINEU e MERIQUI, 2015;
LÓPES, 2014). Ao mencionar a importância do “Kit Somos”, Braz (et. al., 2013, p. 17)

59
Existem outras redes nacionais LGBT, mas não foram citadas aqui devido à opção por mencionar apenas
aquelas que integraram ou integram o Conselho Nacional LGBT. Pretendo me aprofundar nas dinâmicas de
atuação dessas redes no próximo capítulo.
60
Conforme Facchini (2005, p.166), o Projeto Somos foi realizado pela ABGLT e “direcionava a formação e
capacitação de lideranças e grupos homossexuais em três regiões brasileiras (Sul, Sudeste e Nordeste)”.
96

destaca que, entre os militantes do interior de Goiás entrevistados em sua pesquisa, houve
críticas ao Projeto Somos por buscar “criar ONG a ‘toque de caixa’, não partindo ou
dialogando diretamente com as necessidades e demandas locais”. Mas também existiram
menções elogiosas ao projeto, com apontamentos sobre a “utilidade” do que foi aprendido nas
capacitações.
Os anos subsequentes a 2010 foram marcados pela dissolução de alguns grupos, nas
mais diversas regiões, o que se relaciona com o que foi identificado por Lópes (2014) e
também por Braz (et al., 2013) sobre a dificuldade de continuidade no trabalho em ONG,
principalmente no tocante às questões burocráticas e financeiras que envolvem um grupo
institucionalizado. Lópes (2014), ao investigar a história do movimento LGBT no Estado de
Mato Grosso, afirma que:

Apesar de parecer ter havido uma diversificação das Ongs que tem como foco a
questão da identidade sexual no cenário mato-grossense, no entanto em conversas
realizadas por mim com vários ativistas da Baixada Cuiabana, diversos ativistas
reiteradamente apontam a dificuldade de manter uma estrutura mínima em
funcionamento por parte deste movimento, quase todos assinalam um cenário no
qual há uma dificuldade de formação e renovação dos quadros das ONGs que se
veem sempre “reféns” de um centralismo e de um personalismo marcado na figura
fundadora dos grupos, a despeito da própria intenção destes ativistas [...] (LÓPES,
2014, p.4).

Em virtude destes processos, divergências e cisões ocorrem e novos grupos vão


surgindo, o que é recorrente na arena dos movimentos sociais, não apenas no movimento
LGBT (FACCHINI e SIMÕES, 2009).
Neste sentido, abordarei conceitos que tanto vem sendo formulados pelas/os
estudiosos/as de gênero e sexualidade quanto utilizados pelo movimento LGBT na construção
do discurso que denuncia a homofobia, sendo este um termo que definiria os padrões e
modelos que designam “um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como
norma social, política, econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”
(RIOS, 2007, p.33).
Este sistema baseia-se na complementaridade macho-fêmea e é reiterado nas práticas
sociais como natural. Nesta lógica, qualquer variação ou desvio se coloca à margem, sendo
perseguidos pelo perigo que significam à ordem social (BUTLER, 2005). O ato de assumir a
homossexualidade torna-se então “uma exposição ao mesmo tempo compulsória e proibida”
(SEDGWICK, 2007, p.24). Sedgwick (2007) considera a “epistemologia do armário” como
dispositivo regulador da vida de gays e lésbicas no século XX; a “estrutura definidora da
opressão” (p.26). Opressão que não se dá somente na dimensão subjetiva, já que a ausência de
97

direitos, de proteção jurídica e políticas que reconheçam as homossexualidades como práticas


sócio-sexuais legítimas é uma manifestação desta segregação social.

Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo


afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse
“contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com
sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal
prática e identidade. O resultado é, muitas vezes [...] um apartheid sexual, isto é,
uma segregação que é promovida tanto por aqueles que querem se afastar dos/das
homossexuais como pelos/as próprios/as (LOURO, 2001, p.29, itálico da autora).

Butler (2003) denomina esta imperiosa e rígida norma de “matriz heterossexual”, por
entender que ela trabalha compulsoriamente pelo estabelecimento da heterossexualidade. A
heteronormatividade é efeito da proibição da homossexualidade, bem como da dominação do
masculino e a homofobia. A homofobia − postura de aversão, repúdio, hostilidade e agressão
às homossexualidades61 − funciona como uma espécie de vigilante das fronteiras sexuais entre
a heterossexualidade e homossexualidade que produz o “controle de gênero”
(masculino/feminino) e contribui para que o desejo sexual heterossexualizado atue como
dispositivo de reprodução social (BORRILLO, 2001).

[...] designando um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como


norma social, política, econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou
implícito. Uma vez institucionalizada, o heterossexismo manifesta-se em instituições
culturais e organizações burocráticas, tais como a linguagem e o sistema jurídico.
Daí advém, de um lado, superioridade e privilégios a todos que se adequam a tal
parâmetro, e de outro, opressão e prejuízos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e até mesmo a heterossexuais que por ventura se afastem do padrão de
heterossexualidade imposto (RIOS, 2007, p.33).

No que tange às políticas sociais, esta lógica normativa é posta na arena política
pelos movimentos sociais a partir da afirmação de identidades subalternizadas que buscam o
reconhecimento da diferença. Tanto a identidade quanto a diferença não são meramente
definidas, são construídas e se situam no campo das relações de poder e de hierarquias. As
marcas da presença de poder são imbricadas e podem ser percebidas nas classificações
(mau/bom), nomeações e demarcações de fronteiras (nós/eles) e pertencimentos
(excluir/incluir).

61
Halperin (2004) aponta que a categoria “homossexual” é