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RIO DE JANEIRO
2016
1
RIO DE JANEIRO
2016
2
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria das Dores C. Machado (ESS/UFRJ)
Orientadora e Presidenta da Banca
_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Myriam M. Lins de Barros (ESS/UFRJ)
_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Andrea Moraes Alves (ESS/UFRJ)
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme S. de Almeida (FSS/UERJ)
Membro Externo
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marco José Duarte (FSS/UERJ)
Membro Externo
_______________________________________________________________________
Profª Drª. Glaucia Lélis Alves (ESS/UFRJ) – Suplente
_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Murilo Peixoto (NPPDH/UFRJ) – Suplente
3
4
AGRADECIMENTOS
Agradecer é um ritual necessário quando se reconhece que não se faz uma jornada
sozinha. Compartilhei muitas coisas com tantas pessoas e vivi várias histórias nesses cinco
anos de doutorado. Reconheci novos amigos, fortaleci velhas parcerias, perdi algumas
pessoas... meu avô Adélio Amaral, por motivos de saúde, e o querido amigo Lucas Fortuna,
que a homofobia nos roubou. Agradeço, não por praxe, mas porque existir e sobreviver em
tempos de barbárie é um ato de resistência compartilhada.
Há dois anos minha vida ganhou leveza e alegria, e isso só foi possível porque
encontrei minha família felina: Gennet, Wittig, CássiaBel, Cinza, Siá, Lari, Maria e Audroca
(cachorro-meio-gato), que me ensinam todos os dias o que é amor e liberdade, entre carinhos,
peripécias e ronronados.
A Mariana Rodrigues, pelos sonhos e projetos de vida divididos. Por me incentivar a
ser melhor para o mundo. Pelo amor, carinho e dedicação à nossa história. E por cada
momento que não me deixou desistir e que se empenhou em fazer meus dias melhores.
A minha mãe Marilda, meu irmão Ayrton, meu amigo-padrasto Anderson, minha
sogra Vanessa, minhas avós Donizeth e Elídia, pelo cuidado e suportes diversos nesses cinco
anos.
A Elaine, Josiley, Renatinha, Vinicius, Simone e José Francisco pela amizade
gratuita e apoio irredutível. Meu carinho também as amigues do Colcha de Retalhos e do Ser-
Tão/UFG, porque meu tempo de aprendizado em Goiânia palpita e pulsa diariamente em
mim.
A Izabel, Flávia, Moreno, Elô, Léo, Jandira, Bortolini, Reduzino, Joilson e Pedro,
que, em momentos diferentes, na Lapa ou em qualquer outro lugar, me fizeram me sentir
acolhida em solo carioca durante meu período de ponte aérea Rio-Palmas.
Às companheiras de militância Brendhiva, Karol Chaves, Marina Galvão, Dani
Braga, Alexandre Araripe, Cleide Diamantino e Fran Scopetec, com quem divido a luta
cotidiana por um Tocantins mais justo socialmente.
A Marcos, Milena, Helys, Pedro Thiago, Wanessa, Brendhon, João Vitor, Danuta,
Marcela e Jean, que fizeram do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade,
Corporalidades e Direitos um lugar de aprendizados coletivos e de muito afeto.
6
RESUMO
Esta tese analisa processos que constituíram políticas públicas para lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT) durante as duas gestões do governo Lula (2003-2010) e a
primeira gestão do governo Dilma (2011-2014). Neste sentido, são examinadas a formulação
do Programa Brasil sem Homofobia, bem como a criação da Coordenação Geral de Promoção
dos Direitos Humanos LGBT’s e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT.
O estudo traça um panorama da inserção dos direitos sexuais na pauta global dos direitos
humanos e problematiza concepções de cidadania e política social em tempos de
neoliberalismo. Para compreender a dinâmica entre Estado e Sociedade Civil na arena de
disputas pelos direitos destes segmentos sociais, combino diferentes técnicas de coleta de
dados: a) observação participante nas reuniões do Conselho Nacional (2011-2013) e em
eventos da agenda do movimento; b) análise documental de atas, moções, resoluções e notas
públicas produzidas pela entidade, bem como documentos produzidos pela Coordenação
LGBT e relatos de conselheiros/as do CNCD-LGBT nas redes sociais; c) entrevistas com
ativistas não vinculados a redes de militância, mas que têm representação no conselho; d)
entrevistas com gestoras/es que atuaram nas políticas públicas durante o período recortado na
pesquisa; e) dados secundários de outras pesquisas que dedicaram-se a mapear o perfil de
conselheiras/os do CNCD-LGBT. Na discussão teórica, revejo o projeto de nação brasileiro
para demonstrar como o ideal da branquitude e masculinidade delimitou a esfera pública no
campo das lutas por direitos sexuais. Os estudos feministas e os conceitos de “reconhecimento
com justiça”, “redistribuição socioeconômica” e “representação com paridade de
participação” me ajudam na reflexão sobre as reivindicações feministas e LGBT’s no Brasil.
Analiso da história do movimento homossexual do final da década de 1970 até sua
configuração atual, e destaco sua relação com o PT, sinalizando, ainda, para a relação de
diálogo prioritário entre a gestão Lula e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) na formulação do Brasil sem Homofobia. A
realização da I Conferência Nacional de Políticas Públicas LGBT, a publicação do I Plano de
Promoção dos Direitos Humanos LGBT e do decreto do Conselho Nacional LGBT
caracterizam o governo Lula como uma gestão “participativa” e “comprometida” com as
pautas deste segmento, segundo o discurso hegemônico no movimento social. Já o governo
Dilma é avaliado de forma negativa, devido ao veto ao Kit Escola sem Homofobia e a não
publicação do II Plano LGBT, ainda que durante a sua gestão tenha ocorrido a II Conferência
Nacional e a formulação do Sistema Nacional de Enfrentamento a Violência contra LGBT.
Embora interprete o Conselho como lócus de maior pluralidade de sujeitos coletivos na
formulação de políticas públicas para o segmento em questão, critico a reduzida dotação
orçamentária e a baixa institucionalização das iniciativas governamentais neste campo. O
conceito de homonacionalismo é retomado no final deste trabalho para explicar as
dificuldades enfrentadas pelas minorias sexuais na luta pela ampliação da cidadania. A
“homofobia cordial”, ou o “pinkwashing à brasileira”, são apresentados como dispositivos do
neoliberalismo para incidir sobre nossas vidas.
ABSTRACT
IRINEU, Bruna Andrade. LGBT public policy in Brazil (2003-2014): cordial homophobia
and homonacionalism in the plots off social participation. 2016. 277f. Thesis (Doctorate in
Social Work). Pos Graduate Program in Social Work. School of Social Work at the Federal
University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
Abstract: This thesis analyzes the processes which constitute public policies for lesbian, gay,
bisexual and transgender (LGBT) during the two terms of Lula's government (2002-2010) and
the first government management Dilma (2011-2014). In this senseare examined the
formulation of the Brazil without Homophobia Program, as well as the creation of the General
Coordination of Human Rights LGBT's Promotion and the National Concil of Combat
Against LGBT Discrimination . The study provides an overview of the inclusion of sexual
rights on the global agenda of human rights and discusses the concepts of citizenship and
social policy in neoliberalism times. In order to understand the dynamics between the State
and Civil Society in the arena disputes the rights of these social segments, do combine
different data collection techniques: a) participant observation at meetings of the National
Council (2011-2013) and calendar events of social movement; b) document analysis of
minutes, motions, resolutions and public notes produced by the entity, as well as documents
produced by the LGBT Coordination and counselors reports of the CNCD-LGBT in social
networks; c) interviews with activists not linked to militant networks but have representation
on the board; d) interviews with managers who worked in public policy during the period cut
in research; e) secondary data from other research dedicated to map the profile of the CNCD-
LGBT’ counselors. In the theoretical discussion, I review the Brazilian national project to
demonstrate how the ideal of whiteness and masculinity narrowed the public sphere in the
field of struggles for sexual rights. Feminist studies and the concepts of "recognition with
justice", "socio-economic redistribution" and "representation with parity of participation" help
me to reflect on feminist and LGBT's demands in Brazil. I analyze the history of the gay
movement of the late 1970s to its current configuration, and highlight their relationship with
PT, pointing also to the priority dialogue relationship between the Lula administration and the
Brazilian Association of Lesbian, Gay, Bisexual, transvestites and Transsexuals (ABGLT) in
Brazil without Homophobia formulation. The realization of the First National Conference on
Public LGBT policies, the publication of the First Promotion Plan on Human Rights LGBT
and the National LGBT Council decree characterize the Lula government as a "participatory"
and "committed" management with the agendas of this segment, according to the hegemonic
discourse in the social movement. Already the Dilma government is evaluated negatively,
because of the veto to School without Homophobia’s Kit and the non-publication of the II
LGBT Plan, although during his tenure has been the II Nationial Conference and the
formulation of the National Combat System of Violence against LGBT. Although interpreting
the Council as a place of greater plurality of collective subjects in the formulation of public
policy for the sector in question, criticize the reduced budget allocation and lower
institutionalization of government initiatives in this field. The concept of homonacionalismo
is taken at the end of this paper to explain the difficulties faced by sexual minorities in the
struggle for expansion of citizenship. The "cordial homophobia", or "pinkwashing as the
Brazilian", are presented as neoliberalism devices to influence our lives.
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 21
REFERÊNCIAS 237
APÊNDICES 260
ANEXOS 271
21
1. INTRODUÇÃO
[...] o mundo colonizado e a periferia global pós-colonial tem sido a zona na qual se
coletam os dados em grande escala, e, posteriormente, aplica-se o conhecimento
organizado. A metrópole, o centro imperial, tem sido o lugar preeminente para a
1
Em nossa compreensão, assenta-se no modo de produção capitalista uma sociabilidade centrada na exploração
e no antagonismo de classe, produzindo relações de opressão e hierarquias raciais, sexuais e de gênero
maquiadas em um discurso colonizador de modernidade e processo civilizatório, protagonizadas pelo norte
global (CONNELL, 2012) que sustentam uma “barbárie civilizada” (LOWY, 2006).
2
A modernidade, iniciada a partir do mercantilismo espanhol e das expedições portuguesas na concepção pós-
colonial de Dussel (2006), trouxe em seu projeto colonial eurocêntrico a dizimação dos povos originários das
regiões invadidas e a dominação econômica e político-cultural desses povos para fins de exploração territorial.
Com o desenvolvimento do capitalismo, as desigualdades produzidas nesse processo de exploração e dominação
delinearam a divisão racial do trabalho, que se perpetua mesmo com o fim da colonização em contextos como o
brasileiro.
3
Entendemos que o sistema patriarcal, que se constituiu umas das bases do projeto colonial, opera na
supervalorização do masculino em detrimento ao feminino, reforçando lugares na sociedade para homens (vida
pública) e mulheres (mundo doméstico), a divisão sexual do trabalho e o controle dos corpos e da autonomia das
mulheres – que denominamos sexismo. O debate foi ampliado quando da utilização do termo cissexismo, no
sentido de compreender as formulações do movimento transexual sobre a cisgeneridade (identificação com o
gênero ao qual se foi designada ao nascer), tendo em vista que a transgeneridade (não identificação com o gênero
ao qual se foi designada ao nascer) encontra-se em uma posição socialmente inferiorizada em relação à
cisgeneridade − o que reflete em discursos de não reconhecimento de travestis e transexuais enquanto mulheres
ou de transmasculinos enquanto homens. Ao referendar o termo cissexismo, compreende-se que a categoria
mulher é demasiadamente universal, e não abrange as múltiplas feminilidades. Logo, acredita-se que o sexismo
atinja todas as mulheres na sua diversidade.
23
A autora compreende que as teorias do norte global não são produzidas observando
o lugar do colonizado, e em grande medida excluem o colonialismo de suas análises ou
tampouco utilizam autores/as do sul global para ampliar suas noções sobre o sul. O
conhecimento produzido pelos cânones das ciências sociais é um discurso sobre a “periferia”
pela ótica da “metrópole”. E, como produtor do discurso de “centro”, o norte global tem
delimitado o que é “verdade” no campo do método, da metodologia, do rigor e das normas
que legitimam o saber acadêmico.
Assim, “as circunstâncias materiais de pesquisa podem, portanto, criar uma
dependência de pacotes teóricos e metodológicos já prontos oriundos da metrópole”
(CONNELL, 2012, p.15), tanto pela vontade do reconhecimento quanto pela necessidade de
legitimidade daquele estudo produzido enquanto um trabalho que tenha sido elaborado nos
parâmetros do rigor acadêmico canônico. Nesta linha de interpretação, o “fazer ciência” é
sempre situado, ou seja, o resultado é um saber a partir de um ponto de vista geopolítico-
social; está imbricado em relações de poder e dominação; mas as vozes da resistência, como
aquelas que denunciam a violência epistêmica do imperialismo (SPIVAK, 2010), também
existem e produzem outras gramáticas.
Foucault (2005) chamou atenção para o surgimento dos ‘saberes sujeitados’. Por
saberes sujeitados ele entende: 1) “conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em
coerências funcionais ou em sistematizações formais [...] enfim, são blocos de saberes
históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e
sistemáticos”, e 2) “saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como
saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos”. E esses saberes ele
os denomina: “saberes das pessoas” - saberes particulares, regionais, locais e diferenciais
(p.11-12).
A obra foucaultiana é vista por Spivak (2010), de certa maneira, como pertinente,
mas que extrapola quando pretende “falar” pelos outros países, em especial os esquecidos, do
terceiro-mundismo, subalternos – especialmente por ignorar a violência epistêmica do
24
imperialismo. Nessa perspectiva, a voz do subalterno deve ser pronunciada pelo próprio
subalterno. Mas quem é esse subalterno? O termo subalterno não pode ser usado para se
referir a todo e qualquer sujeito marginalizado. O termo deve ser resgatado retomando o
significado que Gramsci lhe atribui ao se referir ao proletariado, ou seja, àquela coletividade
cuja voz não pode ser ouvida. O termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da
sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social
dominante” (SPIVAK, 2010, p.12).
Spivak (2010) se opõe a todo tipo de essencialismo e não vê uma única
vontade/desejo, um único ser subalterno, mas sim pessoas subalternas, cujas vozes são
silenciadas e desqualificadas. Dessa maneira, surgem os estudos subalternos, que se propõem
a recontar, reanalisar histórias dos povos subalternos a partir de uma perspectiva pós-colonial,
isto é, a partir de uma localidade, conforme expresso pela ideia de “saberes de pessoas, ou dos
subalternos” de Foucault e Gramsci.
O sujeito colonial para Spivak (2010) é um sujeito inefável, ou seja, sem palavras,
sem voz, ao mesmo tempo que muitos tentam falar por ele. Edward Said (1990) chama
atenção para esse “falar pelo outro” quando discorre sobre o fazer “orientalismo” com seus
mitos e visões exacerbadas de uma narração que mais serviu para dominação e subjugo que
para conhecimento e trocas.
Nesse sentido, o orientalismo criou o oriente e se encarregou de mostrar, por meio de
uma escrita “acadêmica e/ou imaginativa”, os costumes, hábitos, pessoas, lugares,
sexualidade, produzindo no ocidente uma visão do que seria aquele lugar distante e exótico.
Em momento algum as vozes locais foram reproduzidas, nem ao menos representadas 4. “O
oriente foi orientalizado não só porque se descobriu que ele era “oriental” em todos aqueles
aspectos considerados como lugares-comuns por um europeu médio do século XIX, mas
também porque podia ser – isto é, permitia ser – feito oriental.” (SAID, 1990, p.17). Ou seja,
o que muito se acreditou ser do oriente ou oriental, na verdade foi criação, vozes dos
intelectuais dos saberes hegemônicos – orientados pelos cânones do Ocidente – que
descreveram e buscaram falar pelos outros, os colonizados. Por isso Spivak (2010) provoca:
pode o subalterno falar?
Connell (2013), em “O império e a criação de uma ciência social”, argumenta que a
concepção sociológica da história humana, que marca o final do século XIX e início do século
4
Ver a análise de Gayatri Spivak (2010) dos conceitos de vertreten/darstellen em Pode o subalterno falar?.
25
Connell (2012, p.17) sobre a necessidade de “democratizar todo processo dirigido pela teoria,
isto é, a produção e circulação de conhecimento social”.
Desde o ano de 2003 tenho me ocupado dos estudos de gênero e sexualidade, campo
de conhecimento cuja produção do Serviço Social ainda é incipiente. Não por acaso minha
trajetória se entrelaça ao recorte temporal dessa pesquisa. Destaco que as primeiras ações de
pesquisa e extensão sobre homossexualidades no Serviço Social, que existiam desde a década
de 1980, foram pontuais e por décadas menos visibilizadas pelos ‘cânones’ da profissão.
O acercamento a essa temática se deu no meu processo de iniciação científica na
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), durante a graduação em Serviço Social.
Apenas posteriormente iniciei a militância em movimentos LGBT’s, especificamente em
grupos universitários de diversidade sexual.
Entre os anos de 2003 e 2005, iniciei minhas leituras sobre gênero e sexualidade,
vinculadas à área da Educação e Psicologia. Naquele contexto, não era recorrente ter docentes
do curso de Serviço Social que se dedicassem a pesquisar gênero e articular esta dimensão
com a sexualidade. Havia estabelecido um debate sobre gênero, mas focado nos “estudos
sobre a mulher”, “violência contra a mulher” e “educação não sexista”, sendo que esta última
não abordava de forma direta a questão da diversidade sexual na escola, que me interessava já
naquele período.
Sob o prisma de teóricas feministas marxistas (utilizadas no Serviço Social) e
teóricos da psicologia (usados no grupo de pesquisa no qual fiz iniciação científica), realizei
minha busca para identificar o significado político-pedagógico do se “assumir” lésbica na
universidade. Ainda fazendo uso de termos como “homossexualidade”, sem uma reflexão à
luz dos estudos sobre gênero e sexualidade, fiz minha pesquisa com jovens estudantes das
áreas de ciências humanas e sociais e ciências exatas e da terra durante dois anos. Durante
este período, ocorreu uma Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC-2004) na UFMT, onde fiz um minicurso sobre gênero e sexualidade com um professor
de sociologia. Nesta oportunidade, tive acesso às teóricas feministas pós-estruturalistas e aos
Estudos Gays e Lésbicos a partir dos domínios da antropologia e da sociologia.
27
5
O Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (Enuds) realizou, no ano de 2014, sua décima
segunda (12ª) edição. O evento pode ser considerado, na atualidade, um dos maiores sobre diversidade sexual no
Brasil, dado seu tempo de existência e pelos debates quem vêm reunindo ao longo de 12 anos, e, por sua
potência indescritível em propiciar um espaço para vivências político-acadêmicas, têm reunido, anualmente,
centenas de universitários/as e jovens militantes e pesquisadores/as de todas as regiões do país.
28
6
Projeto de Lei (PL) 478/2007, em tramitação, de autoria de Luiz Bassuma (PEN) e Miguel Martini (PHS). O
Estatuto visa a tipificar como crime atos como “causar a morte de nascituro; anunciar processo, substância ou
objeto destinado a provocar o aborto; congelar, manipular ou utilizar nascituro como material de
experimentação; fazer a apologia de aborto, dentre outros”. O projeto também proíbe o congelamento, a
manipulação ou o uso do nascituro como experimento, no caso incluindo as pesquisas com células-tronco, sob
pena de um a três anos de prisão, mais o pagamento de multa. O Estatuto também é conhecido como “bolsa
Estupro”, já que em seu Art. 13 prevê que o nascituro concebido em decorrência de estupro terá assegurado
pensão alimentícia pelo Estado. Vale ressaltar que o Código Penal Brasileiro, que permite a interrupção da
gravidez no caso de violência sexual e de risco à integridade física da gestante, data de 1940.
7
O projeto de decreto legislativo – PDC 234/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB), sugeria a extinção de
dois trechos de uma resolução de 1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que diz que “os psicólogos não
colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades” e que “os psicólogos não
se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a
reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem
psíquica”.
8
Rubin (1989) define pânico moral como a existência de instrumentos e mecanismos conservadores de
resistência às mudanças sociais repentinas a partir do medo social.
9
Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução proposta pelo ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, que obriga os cartórios de todo o país a registrar o casamento
30
civil entre pessoas do mesmo sexo. Essa resolução baseou-se em decisões proferidas pelo STF e pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) no ano de 2011.
10
Sobre esse processo de judicialização citamos Luiz Werneck Vianna, Marcelo Burgos e Paula Salles (2007,
p.41): “(...)a invasão do direito sobre o social avança na regulação dos setores mais vulneráveis, em um claro
processo de substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente republicanos pelo judiciário,
visando a dar cobertura à criança e ao adolescente, ao idoso e aos portadores de deficiência física. O juiz torna-se
protagonista direto da questão social. Sem política, sem partidos ou uma vida social organizada, o cidadão volta-
se para ele, mobilizando o arsenal de recursos criado pelo legislador a fim de lhe proporcionar vias alternativas
para a defesa e eventuais conquistas de direitos. A nova arquitetura institucional adquire seu contorno mais forte
com o exercício do controle da constitucionalidade das leis e do processo eleitoral por parte do judiciário,
submetendo o poder soberano às leis que ele mesmo outorgou”.
31
11
Utilizo entrevistas coletadas para outros projetos de pesquisa desenvolvidos junto ao Núcleo de Estudos,
Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos da UFT. Agradeço as/aos bolsistas de extensão
e iniciação científica, pesquisadores/as e colaboradores/as do núcleo, pelo auxílio com elaboração de roteiro,
termo de consentimento livre esclarecido e transcrições destas entrevistas.
34
12
Essas entrevistas foram coletadas para outras pesquisas que coordenei na UFT, já durante o doutorado, para
uso também nesta pesquisa. Os dados me auxiliaram a refletir especialmente sobre a conjuntura institucional da
política LGBT brasileira antes e durante a primeira gestão do CNCD.
35
13
Nas conferências estaduais são eleitas pessoas da sociedade civil e do poder público para representar o Estado,
sendo estas pessoas nomeadas por “delegadas”, tendo como direito a voz e voto durante a conferência nacional.
14
Em virtude das pesquisas sobre políticas públicas LGBT, mas também pela circulação nas reuniões do CNCD,
recebi a indicação deste conselho para compor uma mesa na conferência na condição de debatedora. Coube a
mim, nessa função, debater as exposições de alguns ministérios (Justiça, Cultura, Desenvolvimento Social e
SDH).
36
A linguagem não-sexista tem sido uma das muitas preocupações da escrita feminista.
Assim, o uso do @ ou exclusivo do feminino foram minhas estratégias em trabalhos
anteriores. O “x” tem sido utilizado em propostas queer, mas a dificuldade de leitura das
palavras com “x” por pessoas com deficiência visual que utilizam softwares especializados o
mostra contraproducente. Mais recentemente tem sido utilizado o “e” em substituição das
vogais que definem o masculino e o feminino. Nesse trabalho, optei pelo uso da barra com
as/os, vindo sempre com o feminino à frente.
Para nomear o movimento, aciono o termo “movimento homossexual” para
recompor os momentos que remontam do ativismo entre os anos de 1970 ao final de 1980. A
partir da década de 1990, estou nomeando-o de movimento LGBT. Também faço uso dos
termos “sujeitos LGBT”, “segmento LGBT”, “pessoas LGBT” para me referenciar a
população em questão. As palavras “lutas pela diversidade sexual e de gênero” e “luta LGBT”
são usadas enquanto sinônimos, de modo a não exaurir a/o leitor/a.
Homofobia também poderá ser encontrada como “LGBTfobia” ou
“homo/lesbo/transfobia”, respeitando o debate do movimento sobre as diferentes formas de
violências e violações que atingem os distintos segmentos. Em outros trabalhos utilizei a
ordem das letras “TLGBfobia”, por exemplo. Mas aqui optei pelo exposto anteriormente, não
por uma definição ideológica, mas por adoção das categorias êmicas.
Militantes e ativistas foram utilizados ora indistintamente enquanto sinônimos, ora
para delimitar “ativismos” como um campo plural de sujeitos (militantes, pesquisadoras/es e
gestoras/es). O termo “sujeitos” é utilizado para denotar capacidade de resistência e exercício
do poder − em outros termos, agenciamento. Todavia não faço uso do termo “agentes”, por
não dedicar uma conceituação profunda à categoria “agência”. Também tenho compreensão
dos riscos em usar o termo “sujeitos”, podendo incorrer nas críticas que o debate sobre
assujeitamento desenvolvido por Butler (2003) já o fizeram.
Por último, fiz a opção de trabalhar com o conceito de “política pública”, no que se
refere às ações do Estado desenvolvidas junto ao segmento LGBT. No entanto, não perco de
vista que meu compromisso téorico-político é com a política social em seu sentido amplo de
proteção social.
Dentro desta lógica, optei em não identificar as/os sujeitas/os entrevistadas/os quanto
a gênero, raça/etnia e geração mantendo suas identidades em sigilo a partir das identificações
genéricas de “Ativista” e/ou “Gestor/a”. Entre as/os conselheiras/os do CNCD optei em usar
seus nomes já que as Atas são de acesso público e a nominação contribui também para a
memória do movimento e para história da política pública. Em situações específicas aciono o
38
nome da entidade a que representam ou as identidades sexuais a que se auto atribuíram nas
reuniões. No que se refere a história do movimento LGBT, também construo a partir de notas
de rodapé, o perfil de ativistas através de informações em seus perfis de rede sociais ou
websites das entidades as quais se vinculam, com objetivo situar a/o leitor/a sobre quem são
essas pessoas e como estão circunscritas no campo.
PARTE I
GÊNERO, SEXUALIDADE E NAÇÃO
41
(Raewyn Connell)
15
Optei por colocar em itálico minhas observações, registradas em memórias pessoais, que não fizeram parte do
processo que envolveu meu trabalho de campo do doutoramento. Entretanto, as cenas que fazem parte do
período que envolveu o trabalho de campo, também destacadas em itálico, estarão apresentadas com recuo de
quatro centímetros, conforme as normas de citação. Entre colchetes estarão inserções que situam meus
apontamentos em relação ao texto do corpo do trabalho.
42
relaciona-se com a intervenção de uma militante, durante uma das mesas de abertura do
Seminário, que questionava uma representante da SEDH sobre a efetivação das políticas de
combate à homofobia, dizendo: “Os LGBT estão morrendo, e o Estado não tem feito nada.”
A resposta da representante da SEDH era que “tínhamos” (no caso, a militância) que
reconhecer que existiam avanços, mas “o tempo da gestão é diferente do tempo da
militância”. Em seguida, outro militante se inscreve, aponta os desafios de levantar o tema
da diversidade sexual no cotidiano, afirma o quanto as pessoas LGBT têm contribuído com
uma nação “plural” e “produtiva” e tece elogios à SEDH pelo trabalho que vem
desenvolvendo: “Acredito que estamos caminhando para o reconhecimento da cidadania
LGBT. Certamente queremos que o presidente Lula e o ministro Vanucchi continuem
investindo, cada vez mais, nas políticas de combate à violência.”
As duas cenas que trago como abertura deste capítulo retomam ideias de Estado e
sociedade civil que pretende-se discutir ao longo do mesmo. A compreensão de um Estado
“demiurgo”, que tem capacidade de erradicar problemas instantaneamente, é recorrente em
algumas intervenções na/da militância. Ao mesmo tempo, a perspectiva de que a gestão
pública pode justificar suas ineficiências com alegações de “tempo” aloca na burocracia
estatal este “lugar” demiurgo, abstrato e inalterável. As dificuldades de estabelecer uma
comunicação eficaz e uma memória documental pública na gestão governamental também
torna a administração pública um “agente do impasse” na execução de ações contínuas,
independentemente das alternâncias partidárias na gestão federal.
Essas relações estabelecidas tanto na compreensão do papel do Estado (e sua
burocracia) quanto no papel da sociedade civil correspondem a ideários de nação, de Estado-
nação, que se configuram de uma forma rígida em nosso pensamento, de tal maneira que
dificilmente conseguimos pensar uma cultura sem Estado, ou em uma sociabilidade e formas
de viver e lutar fora do Estado (BUTLER e SPIVAK, 2009; CURIEL, 2011). Essa linguagem
naturalizada que tem o Estado como centro, dificulta a observação de que o racismo, o
sexismo e a homofobia estão mais imbuídos no projeto de nação de um Estado do que na
cultura dos povos originários de nossas regiões.
16
O termo “Brasil moderno” é utilizado em referência a Octávio Ianni (2004) em A ideia de Brasil moderno,
obra na qual o autor destaca que “a nação é real e imaginária” (p. 08) e que em nosso país predominou o
“fascínio pela modernidade como ideia, forma ou ilusão, sem questionar de onde vem, para onde vai” (p.45).
17
Segundo Dussel (2005), os processos que localizam a Espanha como primeira nação moderna são: a criação da
Inquisição (como um consenso de “cima para baixo”), a conquista de Granada (emergindo um poder militar
nacional), o domínio da Igreja pelo Estado (com apoio de cardeais) e a edição da gramática castellana (em 1492).
44
18
Esse conceito é desenvolvido nos demais capítulos deste trabalho.
19
A hegemonia é entendida aqui como predomínio dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas.
45
Tanto assim que a noção de “caráter nacional”, que estava muito na moda no século
XIX, aparece na verdade como a simples ratificação de estereótipos nacionais, de
preconceitos nacionais: ela deve ser completamente varrida do espaço teórico – é
uma forma de racismo apenas sublimada (BOURDIEU, 2014, p.452).
significado de “nação” era vinculado a um sentido político, equalizando o povo e o Estado aos
moldes das revoluções francesa e americana (HOBSBAWM, 2011).
[...] a nação era o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva constituía como um
Estado concebido como sua expressão política. Pois, fosse o que fosse uma nação,
ela sempre incluiria o elemento da cidadania e da escolha ou participação de massa.
John Stuart Mill não definiu nação apenas pela posse do sentimento nacional.
Também acrescentou que os membros de uma nacionalidade “desejam que seja um
governo deles próprios, ou exclusivamente de uma porção deles” (HOBSBAWM,
2011, p.31).
20
Embora estejamos utilizando o termo Estado “moderno”, concordamos com a afirmação de Quijano (2005):
“A modernidade é, assim, também uma questão de conflito de interesses sociais. Um deles é a contínua
democratização da existência social das pessoas. Nesse sentido, todo conceito de modernidade é necessariamente
ambíguo e contraditório” (p. 114).
48
(p.119). Esse processo de “homogeneização”, conforme classifica o autor, não poderia vir a
implicar cidadania no plano da igualdade jurídica, civil e política às pessoas desiguais
socialmente se fossem radicalmente antidemocráticas (QUIJANO, 2005).
Desta forma, podemos afirmar que o processo que antecedeu a formação do Estado-
Nação na Europa envolveu um duplo movimento. De um lado, a colonização interna de povos
cuja identidade se diferenciava, como os muçulmanos e judeus; e do outro lado, a colonização
imperial de povos externos à Europa, em outros territórios como na América e África.
(QUIJANO, 2005). Neste movimento interno, o sucesso da nacionalização se deu tendo como
condição básica o processo de democratização da sociedade e de sua organização política em
um Estado-Nação moderno. Quanto ao movimento externo, vamos nos dedicar a analisá-lo a
partir da situação brasileira, conectando-a brevemente às experiências latino-americanas.
21
Gilberto Freyre é citado por Souza (2003, p.102) como um dos pensadores sociais mais talentosos, mas
também como “nosso maior ideólogo e mistificador”. Destaco que Freyre tornou-se conhecido como o
idealizador do “mito da democracia racial”. Segundo Sueli Carneiro (2011), ele elaborou em sua obra parâmetros
de regulação das relações raciais no Brasil, sendo estas consideradas harmoniosas em Freyre.
49
[um] modelo de organização social, [no qual] a autoridade máxima é exercida pelo
pater famílias, que, através de relações pessoalizadas, articula o público e o privado
em torno de seu poder de mando. A imagem do pater famílias funciona em Freyre (e
nas análises que a tomam como um modelo) como a representação da virilidade –
com sua dupla moral sexual –, e, ainda, como um modelo nacional de dominação,
vide o “sadismo de mando” – algo que abarca desde a conduta mais individual até
uma representação nacional. Às mulheres cabe, nesse modelo, atuar no espaço
doméstico e zelar, através de uma conduta moral e sexual retilíneas e da educação
das crianças, pela honra da família. Aos homens, no “patriarcalismo poligâmico”, é
concedida a autoridade máxima como pai e marido. O pater famílias não vivia com a
esposa “branca” a satisfação do desejo sexual e sim com a amante “negra”. O
casamento, aliás, não é o espaço para a vivência do erotismo: nem para o homem,
nem para a mulher (MOUTINHO, 2004, p.66).
O pacto colonial sobreviveu por cerca de 400 anos, quando iniciam-se os processos
que culminarão em sua ruptura e na formação de um novo Estado-Nação. Vianna (1996, s/p)
aponta que a experiência do Brasil se diferenciou da América Hispânica, cujo impulso inicial
teria “características de um típico processo revolucionário nacional-libertador”. Enquanto
aqui o ato político que culminou na independência, de iniciativa do príncipe herdeiro da Casa
Real, foi um “processo clássico de cooptação das antigas lideranças de motivação nacional-
libertadora”, a ausência do encontro “intelectuais-povo” gerou uma “revolução passiva”, nos
termos de Gramsci, que deu-se lentamente na transição da ordem escravocrata para a ordem
competitiva, perpassando da abolição à constituição do mercado livre também pelas forças de
trabalho, sem mudanças no interior das elites (VIANNA, 1996). Essa dinâmica demonstra as
características que o Estado-Nação delineará em si, demonstrando que:
22
Durante o delineamento do projeto de nação e a constituição do Estado brasileiro, a elite intelectual se pôs em
disputa de concepções. Segundo Vianna (1991), as análises eram divididas entre os Americanistas e Iberistas.
Aqueles viam na transplantação do patrimonialismo português no período colonial e na vinda da família real ao
Brasil a grande fonte de nossas mazelas, e teve por expoente Tavares Bastos. Estes identificavam em nosso
particular processo de formação social o grande responsável pelo chamado “atraso” brasileiro, e teve por
representante Oliveira Vianna. Ambas percepções tinham em comum a compreensão de que o processo da
independência envolvia construir uma ordem que prevalecesse em relação ao “localismo e as forças centrífugas
que animavam as novas nações depois de expulso o aparelho estatal do colonizador” (p.149).
50
De tal forma, o projeto de nação no Brasil vai sendo desenhado ao final do século
XIX, assim como, de uma forma geral, na América Latina os processos de independência e
início da república ocorrerão entre meados e fim desse mesmo século. Hobsbawm (2011)
reflete sobre os movimentos nacionalistas de libertação do “Terceiro Mundo” nos fins de
século XIX e durante o século XX, e afirma que, embora tenham sido teoricamente moldados
no nacionalismo ocidental, os Estados que construíram foram “o oposto das entidades
linguísticas e etnicamente homogêneas que vieram a ser encaradas como a forma de padrão
do “Estado-Nação” no Ocidente” (p. 196). A exemplo disso, Curiel (2011) destaca que a
Constituição da Colômbia reconheceu a multietnicidade de seu povo (tendo sido feita sua
tradução, a pedido dos grupos indígenas, a sete línguas vernáculas), utilizando também, como
forma de garantir sua assimilação à identidade nacional, caminho diferente dos processos de
constituição do Estado-Nação na Europa. Contudo, esses Estados se assemelharam fortemente
ao nacionalismo da era liberal no ocidente (HOBSBAWM, 2011).
No Brasil, conforme as análises de Miskolci (2012), a recém-proclamada República
precisava provar que era uma forma de governo que garantiria a ordem, o progresso e a
estabilidade. Nas concepções de Ortiz (1992), Ianni (2004) e Vianna (1991;1996), a transição
da monarquia (baseada no modelo escravista) para república (alçada no trabalho livre) é
considerada em termos políticos, intelectuais e econômicos. Somando-se a essas análises,
destacamos as contribuições de Moutinho (2004) e Miskolci (2012), que apresentam
argumentos em que evidenciam que, para além dessas interpretações atreladas às análises das
leis, intenções de regulamentações e proibições, se formulou, sem planejamento, uma
“política demográfica estatal” (MISKOLCI, 2012, p.26).
A ideia de nação que se consolidou neste momento histórico definia-se pelo
autoritarismo, reunindo concepções do modernismo – e do progresso – a um forte
conservadorismo político, “um desejo de mudança sem alterar hierarquias e privilégios”
(MISKOLCI, 2012, p.22). O culto ao progresso pela elite do século XIX demonstra a
avaliação negativa que esta fazia do povo brasileiro e a esperança no futuro guiada pela
vontade de se assemelhar à Europa.
Destarte, o desejo que se construiu de nação se ancorava em um “desejo de
modernidade”, todavia atrelado a um princípio de reforma da ordem social. Essa “avaliação
negativa” do próprio brasileiro também foi explicada por Ortiz (1992, p.16) em análise
literária na qual afirma que a história do Brasil foi “apreendida em termos deterministas”
como “clima e raça” para ilustrar a suposta indolência brasileira.
51
A nação foi interpretada pela elite econômica, política e intelectual do Brasil como
“sinônimo de homogeneidade racial e de harmonia política ou, melhor dizendo, de
branquitude e civilização” (MISKOLCI, 2012, p.30). Raça, gênero e sexualidade se
conectavam nos medos da elite e se associavam nas analogias de inferioridade, nas quais
mulheres, negros e “os recentemente denominados de homossexuais eram vistos como
“ameaças” à ordem, daí começarem a ser associados à anormalidade, ao desvio e até mesmo à
doença mental”. Sendo vistos de maneira suspeita justificando “demandas estatais, sobretudo
médico legais, de controle e disciplinamento” (MISKOLCI, 2012, p.39).
23
Habermas, ao analisar o desenvolvimento do capitalismo mercantil na Europa do século XVII, demonstra que
este desenvolvimento incitou o surgimento de um espaço entre a esfera privada e o Estado, espaço este
caracterizado pela discussão livre e racional do exercício da autoridade política. Para o autor, “há duas mudanças
fundamentais subjacentes à emergência dessa esfera. A primeira refere-se ao que ele denomina de separação
entre os interesses vinculados à economia doméstica e à subjetividade. [...] A segunda [...] refere-se à mudança
na relação da burguesia com o poder. A burguesia é a primeira classe governante cuja fonte de poder é
independente do controle do Estado e que se localiza no nível privado. Sua relação com o poder é, nesse sentido,
estruturalmente diferente de outras classes na história, uma vez que renuncia ao exercício direto do governo,
reivindicando, contudo, o direito de ter conhecimento do que faz o Estado. Tal demanda serviu, assim, para
conferir um caráter público às relações entre Estado e sociedade. Isto é, como resultado da reivindicação por
53
parte da burguesia da prestação pública de contas, emergiu uma esfera constituída por indivíduos que buscam
submeter decisões da autoridade estatal à crítica racional” (AVRITZER e COSTA, 2004, p. 707).
24
A concepção de Marshall foi criticada por alguns segmentos dos movimentos feministas, mas muito aceita
pelos movimentos filiados à perspectiva da social-democracia nos anos 50, 60 e 70 na Europa. Todavia, Pereira
(2011, p.95) aponta que ele foi central no dimensionamento da compreensão da política social para além de
“uma visão paternal ou contratual”.
54
25
“Tese cuja formulação original, diga-se de passagem, Cançado Trindade atribui a Karel Vasak, em uma
conferência pronunciada em 1979 no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo, sem que seu
criador lhe tenha dado, mais tarde, grande transcendência. Segundo Cançado Trindade, o próprio Vasak
confessou-lhe, depois, que se tratava simplesmente de uma forma de organizar sua exposição, à falta de uma
idéia melhor na ocasião, mas não de um enunciado de um modelo definitivo para a compreensão dos direitos
humanos” (SEGATO, 2006, p.213).
55
O que José Murilo de Carvalho (2008) anuncia acima se correlaciona com o que
Marilena Chauí (2007) diz ao afirmar que “ter direitos é também ter poder”. Um direito não é
concedido, mas é, portanto, conquistado e cultivado, por ser uma forma de poder. Partindo
daí, Chauí descreve que,
Destarte, como afirmam Ivanete Boschetti e Elaine Behring (2007, p.25) “toda
análise de processos e relações sociais, na verdade, é impregnada de política e disputa de
projetos societários”, não havendo, portanto, uma única perspectiva analítica para a
compreensão das políticas sociais. As autoras consideram equivocadas as análises que
discutem como as políticas sociais deveriam ser, ao invés de discutir como elas são/estão.
Esses equívocos são produto de “tensões políticas e societárias que marcam a formulação e a
cobertura das políticas sociais” (BOSCHETTI e BEHRING, 2007, p.26).
A existência de políticas sociais está associada à constituição da sociedade burguesa,
ou seja, do específico modo capitalista de produzir e reproduzir-se. Boschetti e Behring
(2007) localizam seu surgimento no período de reconhecimento da questão social inerente às
relações sociais no modo de produção capitalista, concomitante ao início de organização da
classe trabalhadora, momento em que assumem papel político revolucionário e de resistência
à exploração capitalista. Assinalam, ainda, que as classes dominantes “nunca tiveram
compromissos democráticos e redistributivos”, e que “tem-se um cenário complexo para as
lutas em defesa dos direitos de cidadania, que envolvem a constituição da política social”
(BOSCHETTI e BEHRING, 2007, p.79).
Se o surgimento das políticas sociais se relaciona com o reconhecimento da questão
social, especialmente enquanto resposta às resistências da classe trabalhadora à exploração, às
desigualdades sociais e condições de trabalho, logo, o surgimento das políticas sociais,
principalmente por se tratarem de uma ação do Estado (PEREIRA, 2011), também se articula
com a configuração do Estado-Nação. Assim, as alterações no Estado Nacional também vão
impactar na concepção das políticas sociais.
A partir deste período de surgimento, a política social se estruturou
institucionalmente – passou por experiências de bem-estar, como naqueles países que
vivenciaram o Welfare State26 – e se esfacelou após emergência do neoliberalismo,
reestruturando-se novamente no início do século XXI. A diminuição da “intensidade protetora
do Estado, no debilitamento do universalismo e no auge do privatismo, [vem] trazendo para o
26
Pereira (2011, p.23) define-o como “moderno modelo estatal de intervenção na economia que, ao contrário do
modelo liberal que o antecedeu, fortaleceu e expandiu o setor público e implantou e geriu sistemas de proteção
social”. Implantado ao final do século XIX, antes poréma reconhecido com a expressão Welfare State, foi
traduzido para “Estado de Bem Estar Social” somente no pós Segunda Guerra na Europa.
57
Harvey (2009) descreve que, após a crise monopolista que emerge com a recessão
generalizada em 1974-1975, o capital monopolista procura alternativas para a substituição do
padrão de acumulação “fordista-keneysiano” por outro padrão de acumulação, “flexível”, que
pressupõe um modo de regulamentação correspondente, aqui compreendido como ação
interventiva do Estado.
A redução da ação regulamentadora e o esfacelamento do Welfare State se iniciam
com a retirada das coberturas sociais públicas, rompendo com os direitos sociais através da
estratégia de “redução do Estado27” no programa de Margareth Thatcher (BOSCHETTI e
BEHRING, 2007; PEREIRA, 2011). Essa redução se mostrou nos processos de
“flexibilização”, “desregulamentação” e “privatização”, que ocorreram em decorrência da
“globalização”, ou de “mundialização do capital” (CHESNAIS, 2005).
27
Essa estratégia ganhou dimensão na ótica neoliberal, iniciada no Chile no governo ditatorial de Pinochet, nos
anos 1970, apesar de ser a Inglaterra reconhecida como o primeiro país a aplicar as leis neoliberais. Contudo, é
nos anos 1990 que “o ideário neoliberal atinge predomínio mundial, como ideologia e prática, modo de
compreender e agir, forma de gestão do mercado e poder político, ordenação da sociedade e visão do mundo”
(IANNI, 1996, p.59).
58
Primeiro, para contrariar o risco da substituição [das lutas pela redistribuição pelas
lutas pelo reconhecimento], propus uma concepção bidimensional de justiça que
abrange tanto o reconhecimento como a distribuição. Segundo, para contrariar a
ameaça da reificação [o risco da atual centralidade da política cultural], propus uma
concepção do reconhecimento baseada no estatuto que não conduz a uma política de
identidade. Terceiro, para contrariar a ameaça do enquadramento desajustado [o
risco de a globalização estar a subverter as capacidades do Estado para reparar
ambos os tipos de injustiça], propus uma concepção de soberania de múltiplos níveis
que descentra o enquadramento nacional. Todas estas propostas se baseiam em
traços emergentes da globalização (FRASER, 2002, p.10).
59
28
É na segunda metade do século XIX que se inicia a organização de mulheres, marco do que conhecemos como
primeira “onda do feminismo”, com demandas relacionadas às mulheres brancas de classe média e com
propostas de mudanças sociais mais imediatas: acesso da mulher à educação, organização da família e os
casamentos arranjados, igualdade entre mulheres e o direito ao voto. A “segunda onda do feminismo” acontece a
partir da década de 1960, com a influência da contracultura, trazendo demandas por mudanças sociais e políticas
das mulheres na época. Preocupava-se também em avançar na produção do conhecimento e aprofundamento das
teorias sobre gênero. É no desdobramento da segunda onda, e com a influência direta do movimento negro, que a
terceira onda do feminismo acontece, a partir da década de 1990. A terceira onda avança nas discussões sobre a
categoria teórica ‘gênero’, problematizando que o feminismo deveria também incluir outras experiências vividas
por mulheres que não fossem apenas as mulheres brancas de classe média. Uma ressalva, entretanto, deve ser
feita sobre esta nota. A maior parte da literatura produzida no Brasil sobre o feminismo traz um “olhar imperial”
(CONNELL, 2012) das correntes encontradas nos movimentos feministas. Entendo, contudo, que o trânsito de
pensamentos e posições são inerentes às dinâmicas dos movimentos sociais, e, consequentemente, às suas
construções, que não são estanques. Sendo assim, a perspectiva adotada nesta discussão tem efeito pontual de
localizar historicamente parte desse movimento.
60
De uma perspectiva do Sul, contudo, deve-se começar com o fato de que o primeiro
regime neoliberal não emergiu nem nos Estados Unidos, nem no Reino Unido, mas
no Chile (Silva, 1996). Boa parte da periferia global não tinha um Estado de bem-
estar social para ser revertido. Na Austrália e na Nova Zelândia, foram os governos
trabalhistas de centro-esquerda, não os da nova direita, os quais trouxeram o
neoliberalismo, em meio ao pânico diante da posição competitiva declinante na
economia global. A coerção também esteve relacionada à história latino-americana
do neoliberalismo, tanto quanto o pânico social (Gómez, 2004). Em boa parte do
mundo, a mudança chave trazida pelo neoliberalismo foi uma alteração na estratégia
desenvolvimentista, de uma industrialização substitutiva da importação para um
crescimento liderado por exportações e baseado em vantagens competitivas. A
estatística chave para o neoliberalismo não é o tamanho do setor público em relação
ao setor privado na economia nacional, mas o crescimento agregado do comércio
mundial (CONNELL, 2010 apud CONNELL, 2012, p.14).
Utilizamos aqui o termo “anseio ético” de Rita Segato (2006), cujo conceito reforça a
centralidade do valor ético da alteridade e o impulso ético como um salto em direção ao outro.
O anseio ético para a autora seria o “princípio que promove a expansão dos direitos em seu
movimento universal” (p.229). Neste sentido, embora referende-se a importância de se iniciar
o debate sobre direitos humanos a partir de seu percurso declarativo, acredita-se que para
expansão dos direitos humanos é necessária uma ética da insatisfação: “[...] encontrável entre
os cidadãos de qualquer nação e nos membros das mais simples e coesa das comunidades
morais, o que constitui o fundamento dos direitos humanos” (p.229).
Assim, cabe ressaltar que o debate sobre os direitos humanos sempre esteve envolto
em polêmicas, haja visto suas diferentes interpretações teórico-políticas. Contudo, não se
pode esquecer sua vinculação ao pensamento moderno ocidental, destacando especialmente
pensadores como Hobbes, Locke e Rousseau (TRINDADE, 2011).
Os Direitos Humanos têm seu nascimento nas lutas burguesas pela queda do
absolutismo feudal, dos privilégios da nobreza e do clero no final do século XVIII. Valéria
Forti (2012) considera indiscutível que tenha havido avanços nas propostas destas lutas
decorrentes da “perspectiva de autonomia, ou seja, das leis como produto da razão humana, se
comparada à lógica da heteronomia – preponderante no mundo feudal – e da possibilidade de
Direitos Humanos (civis e políticos)” (FORTI, 2012, p.274).
Todavia, é importante lembrar que, embora seja considerada o marco dos direitos
humanos, a Revolução Francesa conforma seu legado a uma perspectiva liberal. Após meados
do século XIX, o discurso dos direitos humanos se dissociou da tradição revolucionária,
sendo atrelado a uma gramática despolitizada. O Estado subsumiu esses direitos, assumindo o
monopólio da produção do direito e da justiça (SANTOS, 2013).
Assim, inspirada em um direito ‘natural’, que incorre em uma noção individualista e
a-histórica da humanidade, reforçou uma concepção de ser humano eurocêntrica, branca e
sexista. O discurso hegemônico dos direitos humanos relacionado à dignidade humana esteve
em consonância com as políticas liberais, o colonialismo e as metamorfoses do
desenvolvimento capitalista (SANTOS, 2013).
Determinou o domínio de uma elite a partir do estabelecimento da propriedade
privada e da igualdade civil (perante a lei), assegurando a liberdade individual, mas não de
forma universal. Deste modo, a instauração do binômio igualdade/liberdade abriu
possibilidades para o surgimento jurídico do termo “sujeito de direitos”, subsidiando a livre
contratação do trabalho, essencial ao capitalismo (MASCARO, 2013; TRINDADE, 2011).
63
Neste sentido, também cabe ressaltar a crítica à “ilusão” do triunfalismo dos direitos
humanos feita por Santos (2013). Reconhecendo que o discurso dos direitos humanos
significou coisas diferentes em contextos diferentes, este autor afirma que atualmente não é
possível precisar se os direitos humanos do presente são herdeiros das revoluções modernas
ou de suas ruínas.
Ao longo dos últimos duzentos anos os direitos humanos foram sendo incorporados
nas constituições e nas práticas jurídicas-políticas de muitos países e foram
reconceptualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos pelo Estado e
aplicados coercitivamente pelos tribunais: direitos cívicos, políticos, sociais,
econômicos e culturais. Mas a verdade é que a efetividade da proteção ampla dos
direitos de cidadania foi sempre precária na grande maioria dos países. E a evocação
dos direitos humanos ocorreu sobretudo em situações de erosão ou violação
particularmente grave dos direitos de cidadania. Os direitos humanos surgem como
o patamar mais baixo de inclusão, um movimento descendente da comunidade mais
densa de cidadãos para a comunidade mais diluída da humanidade (SANTOS, 2013,
p.50).
64
Para Flávia Piovesan (2014) a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
de 194829 é o maior marco do “processo de reconstrução dos direitos humanos”. A afirmação
da autora baseia-se no fato de que esta Declaração introduziria na concepção contemporânea
de direitos humanos a universalidade e a indivisibilidade destes direitos.
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a
crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e
titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e
políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e
vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos
humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-
relacionada (PIOVESAN, 2014, p. 3).
Outro fator levantado pela autora refere-se ao fato de que a constituição dos direitos
humanos ‘globais’ formou um sistema normativo internacional de proteção dos direitos
humanos. Este sistema é complementado por instrumentos de alcance geral e específicos,
como Pactos, Conferências e Convenções Internacionais. Piovesan (2014) ainda avalia que,
ao tornar-se signatário destes instrumentos, o Estado consente a fiscalização e o controle da
comunidade internacional quando se trata de violações dos direitos humanos. A aplicabilidade
destes instrumentos depende da ação internacional e da ação regional, que são
complementares, todavia a ação internacional é sempre “suplementar”. A autora afirma que
em grande medida “a resposta das instituições nacionais se mostra insuficiente e falha, ou, por
vezes, inexistente” (PIOVESAN, 2014, p.6).
29
É interessante relembrar que o processo de formulação da Declaração foi arenoso, o que se expressou em seu
caráter ‘generalizante’ sobre vida, desigualdade e discriminação, por exemplo. Potyara Pereira (2011) afirma que
os ‘direitos sociais’ só foram inseridos na Declaração de 1948 por pressão do Terceiro Mundo e do mundo
comunista.
65
30
A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento se desdobrou no Plano de Ação do Cairo,
considerado mais um avanço na construção dos direitos reprodutivos, pois foi o primeiro instrumento a sinalizar
o reconhecimento da existência de direitos sexuais, com destaque ao direito de exercer a sexualidade e a
reprodução livre de violência, discriminações e coerções − mesmo que ainda não compreendesse as questões de
orientação sexual e identidade de gênero.
66
mulher e a responsabilidade dos Estados no que se refere à tolerância à violência dos atos
privados e na negligência por não promover políticas públicas para coibir a violência contra a
mulher. Posteriormente, a realização da 4ª Conferência Mundial da Mulher na China, em
1995, produziu como documento a Plataforma de Ações de Pequim − instrumento que seguiu
as diretrizes da Conferência do Cairo, em 1994, no que se refere ao reconhecimento dos
direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos −, propondo uma atenção maior ao
acesso à informação, educação e saúde sexual. As duas conferências, Cairo e Pequim,
trataram o aborto enquanto questão de saúde pública e apontavam para uma revisão de
legislações que criminalizassem as mulheres que o praticassem.
Corrêa (2006) considera que, apesar do fortalecimento do campo dos direitos sexuais
nas duas conferências, este visível avanço dos “direitos sexuais” nestes eventos não
acompanhou em mesma medida a questão da diversidade sexual. Corrêa (2006) aponta ainda
que não houve menção explícita à orientação sexual nesses documentos e mesmo na revisão
de cinco anos da Conferência de Pequim, em 2000, não foi possível incluir no texto − em
decorrência dos países islâmicos − as múltiplas formas de discriminação contra as mulheres
no que se refere exclusivamente à orientação sexual e, consequentemente, na abordagem de
questões relacionadas à identidade de gênero.
[...] a tensão entre Estado e anti-estado permanece e tem uma vigência especifica na
tensão entre as chamadas gerações de direitos humanos. Este é o domínio em que os
direitos humanos mais se confundem com os direitos de cidadania. [...] na maioria
dos países, a história dos diferentes tipos de direitos humanos é uma história muito
contingente, acidentada, cheia de descontinuidades, com avanços e recuos
(SANTOS, 2013, p.65).
A tensão entre direitos individuais e direitos coletivos decorre da luta histórica dos
grupos sociais que, por serem excluídos ou discriminados enquanto grupos, não
podiam ser adequadamente protegidos por direitos humanos individuais. As lutas
das mulheres, dos povos indígenas, dos povos afrodescendentes, dos grupos
vitimizados pelo racismo, dos gays e das lésbicas marcam os últimos cinquenta anos
67
31
Em diálogo com as contribuições de Habermas, Raichelis (2005, p.55) destaca que com as transformações na
esfera pública burguesa – que vai se constituindo de segmentos de pequenos proprietários privados, depois de
“massas despossuídas e não instruídas e, por último, por um público consumidor de cultura, surgindo assim uma
esfera social repolitizada – vai se impondo uma dialética de “socialização do Estado” e de “estatização da
sociedade civil”.
68
Therborn (1999) aponta que a necessidade da mutualidade não fica clara entre
sociedade civil e Estado no campo dos direitos humanos, como supracitado. Ao ilustrarmos o
contexto nacional com Rios (2006), conseguimos compreender que há lacunas entre direito,
democracia e justiça. Pois, se no plano jurídico formal, se estabelece o reconhecimento
jurídico, em que medida vem se dando a sua implementação? Santos (2013) destaca que
grande parte da população no mundo é apenas objeto de discurso de direitos humanos, e não é
sujeito de direitos humanos.
32
Utilizo o termo “ambivalência” em seu sentido etimológico de existência simultânea de dois sentimentos ou
duas ideias de uma mesma coisa e que se opõem mutuamente.
33
Os embates neste campo não são, entretanto, circunscritos ao Brasil. Segundo Santos (2013), “a luta pelos
direitos humanos nas primeiras décadas do século XXI enfrenta novas formas de autoritarismo que convivem
confortavelmente com os regimes democráticos. São formas de fascismo social, como as tenho designado no
meu trabalho. Se a voracidade de recursos naturais e de terra deste modelo de desenvolvimento continuar a
influenciar os Estados e governos democráticos para, por um lado, fazer tábua rasa dos direitos e cidadania e
humanos, incluindo os que estão consagrados pelo direito internacional e, por outro, para reprimir brutal e
impunemente todos aqueles que ousam resistir-lhe, é possível que estejamos ante uma nova forma de fascismo
social, fascismo desenvolvimentista” (SANTOS, 2013, p.122).
69
empreendidas pelos grupos LGBT e as respostas que o Estado tem dado a estas através das
políticas sociais. Temáticas que trarei no próximo capítulo.
70
(Raewyn Connell)
A reivindicação por justiça social tem tergiversado as pautas das lutas feministas e
LGBT ao longo da história. É notório que existam mudanças nas formas, jeitos de fazer e
pensar feminismo(s) e sexualidade(s). O modo de organização política dos homossexuais e
travestis modificou-se consideravelmente dos tempos de Rosely Roth34, Herbert Daniel35,
Brenda Lee36 e Janaína Dutra37 até os tempos atuais. Hoje a arena ganhou outras
34
Rosely Roth foi uma militante lésbica paulista que atuou desde os anos de 1980 nos grupos “Lésbico-
feministas” “SOS Mulher” e “Grupo Ação Lésbico-Feminista”, do qual foi fundadora. Neste último, contribuía
com os boletins do ChanacomChana e Um Outro Olhar. Em 1983, no Ferro’s Bar, a publicação
ChanacomChana teve sua venda proibida, e Rosely foi uma das militantes expulsas do bar que, no dia 19 de
agosto, organizaram uma manifestação, relembrada como Dia do Orgulho Lésbico. Essa data tem tido menor
projeção fora de São Paulo, pois é comumente lembrado o dia 29 de agosto como data de comemoração do Dia
da Visibilidade Lésbica, em memória da realização do I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), em 1996.
Rosely suicidou-se em agosto de 1990.
35
Herbert Daniel foi guerrilheiro nas organizações Política Operária (POLOP), Colina, VAR Palmares e VPR
(Vanguarda Popular Revolucionária) e exilado político durante a ditadura militar, tendo sido um dos
participantes dos sequestros do embaixador alemão Holleben e do embaixador suíço Bucher, ambos ocorridos
em 1970. Anistiado em 1981, militou pelo PT e participou da fundação do Partido Verde (PV), em 1989. Morreu
em 1992, devido a complicações da Aids.
36
Brenda Lee foi uma travesti pernambucana que viveu em São Paulo-SP, militante pelos direitos das travestis e
pessoas com HIV/Aids. Fundou a Casa de Apoio Brenda Lee, em 1988, também conhecida como “Palácio das
Princesas”. Segundo a Agência de Notícias da Aids, a militante divide com o Grupo de Apoio à Prevenção à
Aids (GAPA) o mérito de ter iniciado os trabalhos de acolhimento as pessoas com HIV em São Paulo. Foi
assassinada em 1996.
37
Janaína Dutra foi militante travesti e advogada em Fortaleza-CE, onde fundou a Associação das Travestis do
Ceará (Atrac) e o Grupo de Apoio Asa Branca (GRAB). Atuou junto ao Ministério da Saúde na elaboração da
primeira campanha de prevenção à Aids destinada às travestis. Ela também integrou a Articulação Nacional das
Travestis (Antra), a qual representou no CNCD no período de formulação do BSH. Morreu em fevereiro de
2004, devido a um câncer pulmonar.
71
destaco que as múltiplas formas de vivenciar sexualidades e gênero são resultados das ações
de “minorias” que passaram a se afirmar gerando “outras” formas de falar sobre estes temas
que desafiam o modelo hegemônico masculino, heterossexual e branco que permanece na
ciência, nas artes e nas leis (BUTLER, 2003; BRAH, 2006). Estas questões são colocadas
pelos movimentos feministas e LGBT, a partir de suas experiências e histórias, provocando
questionamentos na área científica. Deste modo, emergiram outros campos de estudos que são
marcados pela dedicação à compreensão da lógica simbólica que envolve estes processos de
dominação-subordinação e subalternização-emancipação, contidos na hierarquia das
invisibilidades, como os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e a teoria queer
(LOURO, 2004).
Como referenciado anteriormente, as políticas sociais resultam de uma correlação de
forças de onde emergem as demandas das/os atoras/es sociais. Isto requer a mobilização dos
indivíduos interessados a dar visibilidade às mesmas e o surgimento de uma ação que as
contemplem. Essas respostas são negociadas por meio de uma relação concessão-conquista
das demandas a serem outorgadas. É fato que este movimento não se dá de maneira unilinear,
mas sim de forma processual e dialética.
Nesta perspectiva, as intervenções e posições governamentais em relação aos direitos
da população LGBT decorrem de processos de hegemonia marcados por uma dinâmica
intrincada de visibilidade-invisibilidade e concessão-conquista. Ou seja, uma relação em que
as/os envolvidas/os na luta e implicadas/os nessa negociação conquistam e concedem ao
mesmo tempo. Neste capítulo retomo os processos históricos envolvendo as lutas feministas e
LGBT, destacando o pensamento e a crítica feminista. Em seguida, apresento os conceitos
centrais para a compreensão da dinâmica entre Estado e sociedade civil no campo das
políticas públicas destinadas a esta população no Brasil.
Embora o pensamento feminista não seja composto de uma única vertente39 teórico-
prática, pode-se afirmar que o único consenso entre as diversas correntes feministas é que o
gênero é construído socialmente e que as mulheres ocupam “lugares sociais subordinados em
relação aos mundos masculinos” (PISCITELLI, 2002, p.9).
A mudança na forma como as mulheres eram percebidas socialmente tornou-se foco
central na discussão sobre as posições assimétricas dos segmentos femininos e masculinos.
Assim, as reivindicações feministas centraram-se na “igualdade no exercício de direitos”,
estabelecendo, a partir de um sujeito político coletivo assentado na categoria “mulheres”,
estratégias para superação da submissão feminina. A explicação desta subordinação, a partir
de instrumentos teóricos, também foi um caminho trilhado pelo pensamento feminista
(PISCITELLI, 2002).
39
De acordo com Piscitelli (2002), as vertentes feministas estadunidenses da década de 1960 apresentam
diferentes concepções acerca da origem da opressão das mulheres. As feministas socialistas creditam a origem
da opressão, assim como a exploração de classe, ao advento do capitalismo, ou seja, no surgimento das classes
sociais. Em outras análises do feminismo socialista, especialmente aquelas que foram feitas após a experiência
socialista em alguns países, o capitalismo associado ao patriarcado, levando em consideração produção e
reprodução, é que seriam origem da opressão das mulheres. Para o feminismo radical, a derrota do patriarcado é
o caminho para libertação das mulheres, assim as mulheres deveriam controlar o processo de reprodução,
tornando-o exclusivamente artificial para eliminação da distinção sexual. Assim, as categorias centrais do
pensamento feminista deste período histórico se orientam pelos conceitos de opressão, patriarcado e mulher.
40
“Ao afirmar que a ‘mulher não nasce, torna-se’, Simone de Beauvoir buscava mostrar os mecanismos que dão
consistência ao ‘tornar-se’, constituindo um movimento teórico de desnaturalização da identidade feminina”
(BENTO, 2006, p. 70).
74
(...)
O “conceito” de gênero será, teoricamente, o divisor de águas para uma outra fase
distinta desta primeira, e anunciador, de certa forma (ainda que do ponto de vista
temporal tenha sido tardiamente acionado), de uma segunda onda do próprio
41
Matos (2008) afirma que, apesar de “gênero” tornar a discussão mais inclusiva, parcela considerável do
feminismo veio a questionar o “potencial politicamente desmobilizador do conceito” (p.337).
42
Posteriormente a autora dá continuidade à discussão acerca deste “sistema sexo/gênero” como dois sistemas
diferentes. A análise da autora é considerada por Piscitelli (2002) como um termo com mais consistência e com
maior neutralidade para refletir sobre gênero do que o conceito de “patriarcado”, pois não subsumiria “sexo” e
“gênero” em único termo. O sistema sexo-gênero se refere ao mundo sexuado em que a opressão é produto das
relações sociais.
76
A arena dos debates feministas mostra-se polifônica, terreno fértil do ponto de vista
teórico-prático e político. Desde os anos 1970, as formulações de Gayle Rubin ocasionaram o
uso frequente do conceito gênero para definir o que antes se chamava sexo. A partir de 1988,
a historiadora Joan Scott coloca em tela o fato de que, para ela, gênero:
Wittig (2010) mostra em sua obra “The straight mind and other essays”, publicada
em 1992, que a heterossexualidade é um regime político que se sustenta em numerosos
discursos que produzem e instauram normas heterossexuais.
Wittig amordaza el consentimiento para las mujeres como classe de sexo, pues no
existe reciprocidad, condición necesária para la libertad. [...] El contrato social para
Wittig es el conjunto de reglas y convenciones que nunca han sido formuladas y
enunciadas explécitamente, que se dan por supuestas al estar unidos por un vínculo
social, por el hecho de vivir en la heterosexualidad por tanto, desde este punto de
vista, contrato social y heterosexualidad son dos nociones que se superponen
(CURIEL, 2011, p.68).
Na visão de Wittig (2010), as lésbicas não são mulheres, na medida em que foram os
homens que criaram o termo “mulher” e que o “ser mulher” envolveria submissão ao homem
e às normas heterossexuais que envolvem o contrato sexual43.
43
A partir de uma análise feminista, Paterman (1988 apud CURIEL, 2011) compreende que a história do
contrato social, em termos propostos por Rousseau, seria uma história de liberdade. Existe, porém, outra face da
história, aquela que envolve uma história de sujeição, que é a do “contrato sexual”: “[...] pero para que funcione
este contrato social, necesita de un contrato sexual implícito que nadie nunca há firmado, que haya permitido a
78
los varones regular y acceder a los cuerpos de las mujeres (y yo agrego a su fureza de trabajo), y que a la vez
excluye a las mujeres del contrato social en cuanto sujetas” (CURIEL, 2011, p.67).
44
No Serviço Social está em curso um debate sobre o uso do conceito consubstancialidade em detrimento da
interseccionalidade. A partir das feministas materialistas francesas, como Kergouat, critica-se os usos do
conceito de “interseccionalidade” sob argumento de que o mesmo incorreria no risco de uma “segmentação
positivista de entendê-las como relações separadas e não enoveladas” (CISNE, 2014, p.153). Propõem-se, assim,
a compreensão de que sexo, raça e classe são “consubstanciais” e “coextensivas”, por formarem um “nó que não
pode ser sequenciado”, já que esses marcadores “se reproduzem e se coproduzem mutuamente” (IDEM). Neste
trabalho faço uso do conceito “interseccionalidade”, discordando da crítica supracitada. Esta escolha se ancora
em Hirata (2014, p.69), que em artigo recente reflete sobre ambos os conceitos, concluindo que: “A
interseccionalidade é vista como uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas e, portanto,
como um instrumento de luta política. [...] ao mesmo tempo um “projeto de conhecimento” e uma arma
política”. A autora não descarta nenhum dos conceitos, vendo similaridades em suas proposições, ainda que
observadas controvérsias, salientando-os como instrumentos analíticos que precisam ser retomados no Brasil.
79
tenha surgido a partir de autoras/es feministas, esta perspectiva teórica coloca em questão a
ideia de que as mulheres seriam o sujeito do feminismo (BENTO, 2006). Desta forma, coube
aos estudos queer a tarefa de extrapolar o heterossexismo nos debates feministas.
As questões que irão marcar o terceiro momento dos estudos de gênero dizem
respeito à problematização da vinculação entre gênero, sexualidade e subjetividade,
perpassadas por uma leitura do corpo como significante em permanente processo de
construção e com significados múltiplos. A idéia do múltiplo, da desnaturalização,
da legitimidade das sexualidades divergentes e das histórias das tecnologias para a
produção dos “sexos verdadeiros” adquire um status teórico que, embora vinculado
aos estudos das relações de gênero, cobra um estatuto próprio: são os estudos queer
(BENTO, 2006, p. 80).
[...] uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela
pretende se insurgir na medida em que ela mantém como referência para construção
de suas demandas ou de suas lutas a “norma”, isto é, o sujeito masculino
heterossexual. Para teóricos e teóricas queer, seria necessário pensar, agora, numa
política e numa teoria pós-identitária, que se voltasse não propriamente para as
condições de vida de homens e mulheres homossexuais, mas que tivesse como alvo,
fundamentalmente, a crítica da oposição heterossexual/ homossexual onipresente na
81
Butler (2003) critica os estudos de gênero, bem como os estudos gays e lésbicos,
pelo fato destes encontrarem-se circunscritos à sequência sexo/gênero/desejo. Louro (2004)
corrobora o pensamento de Butler, ressaltando que é necessário que as teorias e políticas
colaborem para que “a multiplicidade da sexualidade, dos gêneros e dos corpos possam
contribuir para transformar modos de pensar e aprender, de conhecer e de estar no mundo em
processos mais prazerosos, mais efetivos e mais intensos” (p.6).
Preciado (2002) tem desenvolvido suas reflexões procurando estabelecer um diálogo
entre os estudos queer e as contribuições de Lauretis a respeito da tecnologia do gênero.
Autora de uma proposta teórica que presume a contra-sexualidade enquanto fim da natureza
dos corpos, ela acredita que as tecnologias de gênero podem desconstruir o “lugar” do corpo
como espaço de opressão.
Além das autoras supracitadas, é preciso reconhecer também o pensamento de
autoras que vêm se dedicando a criticar o conhecimento produzido no norte global acerca de
gênero. Connell45 (2014) é uma pesquisadora transexual australiana que tem desenvolvido
uma crítica sobre a necessidade de formulações de uma teoria Sul sobre gênero. Para a autora,
Neste sentido, Connell (2014, p.3) critica os argumentos que insistem que o gênero
possui caráter histórico, pois essa afirmação não seria a mesma que certificar que a questão
não depende de corpos. Para a autora, uma fragilidade da teoria de gênero do Norte é a
dimensão que aderiu a uma divisão “entre a biologia fixa e uma cultura em movimento”.
45
Connell (2014) desenvolve seu trabalho considerando as contribuições de Lugones (2007) sobre o conceito de
“colonialidade do gênero”. Segundo Connell (2014), o trabalho da autora é esquemático, contudo possui uma
ideia que marca uma mudança no campo (CONNELL, 2014, p.25).
82
[...] trato essa questão como “ordem de gênero” de uma dada sociedade, entendida
como tendo múltiplas dimensões, incluindo poder, produção e catexia (Connel,
1987). Esta é uma forma de nomear a organização em larga escala das relações de
gênero, nas quais a educação dos filhos, o discurso, a violência, as instituições, as
emoções e a economia estão interligados (CONNELL, 2014, p.21).
46
Connell (2014, p.13) afirma que, “a partir da perspectiva do Sul Global, o mundo parece diferente e os
problemas relevantes são diferentes”. Para exemplificar sua observação, ela destaca os Objetivos de
Desenvolvimento para o Milênio adotados pelas Nações Unidas – que não foram alcançados em 2015 e que,
embora incluam questões de gênero, não tratam de questões sobre identidade.
83
Pensar sobre gênero é unir-se ao campo dos “saberes subalternos”, que só receberam
reconhecimento científico recentemente, devido ao fato de serem situados e localizados a
partir da experiência, o que entrava em desacordo com a suposta objetividade e
imparcialidade da ciência (FOUCAULT, 2000; PELÚCIO, 2012; MISKOLCI, 2012).
84
47
Aqui refiro-me às estratégias de foro privado da doutrina do higienismo, que surgiu no século XIX na esfera
pública com um discurso de controle da saúde. Como exemplo cito a patologização de práticas sexuais como a
prostituição, que passa a ser vigiada do ponto de vista epidemiológico.
85
Lembremos, por exemplo, que até o início do século XX uma das justificativas para
a não extensão às mulheres do direito ao voto baseava-se na idéia de que elas
possuíam um cérebro menor e menos desenvolvido que o dos homens. Este
86
Notaria apenas que, em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os
buracos negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como
se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a
sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas
exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes
(FOUCAULT, 2009, p.10).
ainda, no repasse de valores morais da família. Estes mesmos valores que estruturam o gênero
e a sexualidade reiteram a culpabilização da mulher, fundamentada na diferença sexual e
tornam compulsória a heterossexualidade (BUTLER, 2013).
Deste modo, a heterossexualidade se coloca enquanto regime político que atravessa a
nação (CURIEL, 2011).
[...] antes de la diferencia sexual y por causa de ella, existe lo que la antropóloga
francesa denominó diferenciación; es decir, un acto político que construye la
diferencia y que resulta de la division sexual del trabajo no solo material, sino
también emocional y subjetiva (Mathieu, [1989] 2005). (CURIEL, 2011, p.73).
É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser
associado a uma mulher. O feminino se torna até o polo de rejeição central, o
inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma
mulher e ser (mal) tratado como tal (WELZER-LANG, 2001, p. 465).
Claramente, podemos ver então que os lugares sociais de homens e mulheres são
determinados a partir da correlação de sexo-gênero. Os lugares que mulheres ocupam não
podem ser ocupados por homens, pois “são ameaçados de serem desclassificados e
considerados com os dominados, como as mulheres” (WELZER-LANG, 2001, p.465).
Partindo deste entendimento, há uma restrição de espaços para a expressão da diversidade
88
48
Conceito utilizado para refletir sobre a supervalorização do masculino em detrimento do feminino, conforme
exposto no subitem anterior.
49
Conceito teórico e político utilizado para definir a aversão e a discriminação contra pessoas LGBT, também
encontrado no léxico acadêmico-militante como LGBTfobia ou homo-lesbo-transfobia, sendo que este último
vem sendo mais acionado pela militância para explicitar e visibilizar as violências específicas sofridas por cada
segmento. O aprofundamento no debate desta categoria dar-se-á no subitem posterior.
89
permanente”. O que reforça o cenário de contínuos avanços e recuos no campo dos direitos
sexuais, como apontado no capítulo anterior.
Em termos conclusivos, as reflexões feministas foram fundamentais para o
desenvolvimento dos estudos de sexualidades, mas, segundo a crítica de Góis (2003), a forma
como estes permaneceram tão vinculados aos debates de gênero obstruiu uma possível
autonomia das análises no campo das sexualidades. O autor, em texto escrito no início dos
anos 2000, entendia como necessária a desvinculação dos estudos de gênero para que se
conseguisse captar as particularidades socioculturais que permeiam o universo homossexual
brasileiro.
A proposta de Góis (2003) já vinha sendo implementada em outros países, como os
Estados Unidos, onde já havia essa tensão entre estudos feministas e outro campo mais
dedicado a pensar as homossexualidades − os chamados Estudos Gays e Lésbicos. No Brasil,
essa movimentação também se iniciou nos anos de 1980, a partir das pesquisas de Peter Fry,
Edward MacRae, Michel Misse e Carmem Dora Guimarães, como mencionei anteriormente.
Há uma controvérsia sobre o enfoque destes trabalhos, cuja crítica vem sendo feita por
pesquisadores dos estudos queer, cuja citação abaixo ilustra.
Havia uma tentativa de mostrar que a sexualidade era construída, e que gays e
lésbicas eram mais normais ou comuns do que se pensava, mas, contra seu próprio
interesse, os estudos gays e lésbicos corroboravam a ideia de que a maioria das
pessoas eram heterossexuais e que a homossexualidade era algo restrito a uma
minoria de pessoas diferentes que a sociedade precisava aprender a conhecer e
respeitar (MISKOLCI, 2012, p.30).
A crítica queer de Miskolci (2012), entretanto, não menciona que, no Brasil, esses
estudos são desenvolvidos entre o período final da ditadura militar e o início da reabertura
política. Ou seja, em uma conjuntura política autoritária que dificultava a realização de
pesquisas socioantropológicas nas universidades brasileiras. Vance (1989) asseverou que uma
das dificuldades para a emergência dos estudos de sexualidade relacionava-se à
“desconfiança” sobre quem estudava essas questões. Portanto, embora circunscritas no campo
dos estudos gays e lésbicos, já que dificilmente se autonomeariam queer naquele período,
esses estudos somam-se a outros de igual relevância na emergência de um campo de estudos
em sexualidade no Brasil.
Richard Miskolci (2012) afirma que os estudos queer modificam essa realidade que
ele apontou como problemática em sua crítica. Para o autor, a Teoria Queer vem enriquecer os
estudos gays e lésbicos com sua perspectiva feminista, já que o anterior era “feito por homens
90
que não liam feministas” (p.31), e ampliaria o alcance do feminismo para além das mulheres.
Ele acrescenta em sua crítica que os estudos gays eram geralmente “estudos sobre homens
que adotavam uma postura masculina, uma imagem de respeitabilidade social” (p.31).
Afirmação da qual discordo veementemente, já que acredito que o referido contexto se
relaciona estritamente à realidade norte-americana, e não com a produção brasileira
relacionada pelo autor. A exemplo, ressalto o trabalho de Misse, que faz referência a Simone
de Beavouir e Margareth Mead; Jacarés e Lobisomens, escrito em parceria entre Daniel e
Miccolis, tendo, esta, produzido vasta literatura lésbica engajada com o feminismo. Já o
trabalho de Trevisan, faz uso do diálogo com Susan Sontag, filósofa de grande relevância para
o feminismo e inclusive para os estudos queer.
Cabe ressaltar que a produção de estudos sobre lesbianidades e homossexualidade
feminina foi iniciada por “um pequeno número de pesquisadoras/es, em sua maioria
comprometidas/os com o movimento organizado”, como observou Almeida (2010, p.97). O
pesquisador sinaliza como pioneiros no Brasil os trabalhos de “Daniel e Miccolis (1983),
Mott (1987), Portinari (1988), Macrae (1990), Muniz (1992), Carvalho (1994) e Vargas
(1995)” (Idem). As teses de Almeida (2005), Meinerz (2005) e Facchini (2008) dão pistas de
alteração nesse cenário de produções acadêmicas, todavia nos marcos históricos de fundação
do movimento homossexual brasileiro, as vozes lésbicas são pouco acionadas no recontar
dessa história50.
Sobre a produção acadêmica sobre travestilidades e transexualidades, identidades
coletivas que vêm se autonomizando do movimento LGBT mais recentemente, os trabalhos
“de mestrado de Marcos Benedetti (2005) e da tese de doutorado de Larissa Pelúcio (2009)”
são os primeiros a desvincular as travestis de um caráter exótico (CARVALHO, 2011, p.13).
Quanto à transexualidade, é a partir dos anos de 2000 que surgem produções fora do cunho
médico-psiquiátrico, são os trabalhos “de Berenice Bento (2006, 2008, 2010) e Márcia Arán
(2006, 2009)”, identificados por Carvalho (2011, p.14) como pioneiros, tendo eles recebido
forte influência do pensamento de Butler e dos estudos queer.
Neste sentido, concordo que a crítica queer sobre a pluralização da perspectiva de
gênero e as mudanças iniciais promovidas por esses estudos se relaciona com a perspectiva de
que tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são construções históricas, o que
traz a impossibilidade de elencar um quantitativo x ou y que determina quantos heterossexuais
50
O recente artigo de Marisa Fernandes (2014) intitulado “Lésbicas e ditadura militar: uma luta contra a
opressão e por liberdade”, publicado no livro de Green e Quinalha (2014) sobre a ditadura militar e
homossexualidades, merece leitura e incorporação em nossas retrospectivas sobre movimento homossexual.
91
ou homossexuais existem no mundo. Como definiu Guacira Louro (2001, p.16): “(...) ao
classificar os sujeitos, toda sociedade estabelece divisões e atribuí rótulos que pretendem fixar
as identidades. Ela define, separa e, de formas sutis ou violentas, também restringe e
discrimina”.
Entretanto, é inegável que as pessoas tidas como “normais” – aquelas vinculadas os
grupos sociais hegemônicos racialmente, sexualmente, religiosamente e em termos de classe –
têm acesso à participação social e conseguem se representar, e, por conseqüência, representam
os “outros”. O que torna a “política de identidade” um caminho pelo qual “os grupos
subordinados contestam precisamente a normalidade e a hegemonia das identidades tidas
como normais” (SILVA, 1998 apud LOURO, 2001, p.16).
Chantal Mouffe (1996), ao analisar algumas posições do movimento feminista,
chama a atenção para o possível enfraquecimento político provocado pela essencialização das
identidades. A autora infere que no campo da luta pública não interessam as diferenças entre
homens e mulheres, mas sim por que estas diferenças implicam relações de opressão.
Prado e Viana Machado (2008) sugerem a aplicação do mesmo argumento para o
questionamento das diferenças entre heterossexuais e homossexuais, e pontuam que a
utilização de uma essência produtora de uma categoria fixa de identidade é estratégia de
muitos ativistas homossexuais para não “resvalar para o relativismo político” (p. 45). Para
eles, tais estratégias enfatizam identidades coletivas que politizam a intimidade dos sujeitos e
trazem para a esfera pública questões frutíferas na luta por direitos civis. Logo, é primordial
que tratemos de reconstruir a história do movimento LGBT para que possamos compreender
as dinâmicas e relações que constituem a luta por direitos sexuais e políticas públicas para a
população LGBT no Brasil.
51
A categoria homossexual, utilizada para identificar todas as pessoas que tinham relações sexuais com outras
do mesmo sexo, foi tida como universal. Na perspectiva do movimento social, a utilização do termo “movimento
gay”, herdeira dos EUA, também foi utilizado na década de 1980. Contudo, os termos “homossexual” e “gay”
estavam carregados da hegemonia masculina. O aumento da participação de mulheres no movimento e a
emergência de uma identidade trans, ou seja, a percepção de uma identidade de gênero não relacionada com a
orientação sexual, trouxe novas configurações identitárias a este movimento (MELLO, 2005).
52
O Jornal Lampião de Esquina circulou entre os anos de 1978 e 1981, e teve o Conselho Editorial constituído
pelo pintor Darcy Penteado, o escritor e jornalista (e hoje dramaturgo) Aguinaldo Silva, o cineasta e escritor
Jean-Claude Bernardet, o advogado e ativista João Mascarenhas (no próximo capítulo retomamos sua
importância na história do movimento homossexual) e o antropólogo inglês Peter Fry.
53
Entre 1963 e 1969 circulou no Rio de Janeiro o jornal Snob. Apesar de se caracterizar por uma publicação
doméstica, ela apresentava as tensões vinculadas ao estigma homossexual na década de 1960 (COSTA, 2010).
54
Utilizo este neologismo para referenciar as controvérsias, no campo LGBT, entre São Paulo e Rio de Janeiro,
que ora utilizam-se do apagamento histórico carioca e ora não referendam o protagonismo paulistano, como em
relação ao dia alusivo a visibilidade lésbica que mencionei anteriormente. No caso do embrião do movimento, as
inferências de Green (2012; 2014) e Facchini e Simões (2009) priorizam o Somos, como pioneiro.
93
[...] não restam dúvidas de que, no Brasil, o longo silêncio que cobriu as
homossexualidades por cinco séculos foi rompido, mais explicitamente, apenas a
partir do advento da epidemia de HIV/AIDS, a qual foi enfrentada pela sociedade
civil a partir de uma mobilização inédita, que levou o governo federal, inclusive, a
elaborar um programa de prevenção e de apoio aos doentes considerado modelo pela
Organização Mundial de Saúde – OMS (p. 38).
sociais. Contudo, estes estudos mantinham-se presos às significações dos processos saúde-
doença, reduzindo os contextos socioculturais e políticos da homossexualidade à patologia.
Facchini (2005) argumenta que este impasse se desfez na década de 1990, com a
diversificação de pesquisas, que passaram a ter objetivos voltados para a compreensão dos
processos de sociabilidades concernentes às vivências e experiências políticas destes sujeitos.
Este “outro olhar” gerou discussões sobre os significados do termo “homossexualidade”, o
que propiciou o surgimento de outros termos, como: homoerotismo, HSH55,
homoafetividade56, homocultura, GLS57, entre outras siglas. E influenciou também nas
categorias originárias do movimento de homossexuais, denominada por Facchini (2005) como
“sopa de letrinhas”: GLBT, GLBTT, GLBTTT, LGBT, LGBTT, LGBTQI (a letra G significa
gay; L significa lésbica; B significa bissexual; os “T” remeteriam a travestis, transexuais e
transgêneros; Q representaria queer; e I as pessoas intersexuais).
A década de 1990 foi marcada pelo surgimento de novos grupos de militância, mas é
somente após 1995 que isso se dá de forma massiva fora do eixo sul-sudeste. O ativismo
onguizado de gays, lésbicas e de grupos mistos também começa a se evidenciar. Guilherme
Almeida (2010) afirma que, nesse período, o movimento de lésbicas passa por um processo
progressivo de autonomização em relação ao movimento LGBT no qual o mesmo pode ser
observado como “correlato e concorrente do movimento LGBT e, em outra direção, um braço
dele” (p.85). As rupturas advindas de tensões de não reconhecimento das demandas
específicas lésbicas e do seu poder de voz e decisão se iniciam ainda no grupo Somos, como
nos conta Marisa Fernandes (2014). Esse processo gerou a formação de ONGs lésbicas58, e,
posteriormente, das primeiras redes nacionais lésbicas, como veremos adiante.
Outra cisão que necessita ser levantada relaciona-se ao segmento de travestis e
transexuais. As travestis passam a participar dos espaços de organização do movimento
homossexual a partir de 1995, e a inclusão do “T” na “sopa de letrinhas” só se deu por forte
pressão da militância travesti (SIMÕES e FACCHINI, 2007; CARVALHO, 2011). A
primeira organização de travestis brasileiras surge em 1992, no Rio de Janeiro, e entre as
“lideranças” que Carvalho (2011) entrevistou em seu trabalho percebe-se que a inserção
55
Esta sigla, que significa “homens que fazem sexo com homens”, tem sido amplamente utilizada por veículos e
ONG/Aids governamentais envolvidos com as políticas de saúde e da prevenção ao HIV/Aids.
56
Este termo tem se evidenciado principalmente no campo jurídico brasileiro, principalmente pelos esforços da
Desembargadora Maria Berenice Dias. Recuso seu uso em decorrência de sua proximidade com o direito da
família, área jurídica na qual tem preponderado decisões ancoradas em concepções heterocentradas de arranjos
familiares em detrimento das parentalidades e conjugalidades LGBT.
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Sigla utilizada para definir espaços de sociabilidade de frequência de gays, lésbicas e “simpatizantes”,
recorrente no mercado do consumo.
58
Para um aprofundamento do processo de fortalecimento destes espaços do movimento, ver Almeida (2005).
95
59
Existem outras redes nacionais LGBT, mas não foram citadas aqui devido à opção por mencionar apenas
aquelas que integraram ou integram o Conselho Nacional LGBT. Pretendo me aprofundar nas dinâmicas de
atuação dessas redes no próximo capítulo.
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Conforme Facchini (2005, p.166), o Projeto Somos foi realizado pela ABGLT e “direcionava a formação e
capacitação de lideranças e grupos homossexuais em três regiões brasileiras (Sul, Sudeste e Nordeste)”.
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destaca que, entre os militantes do interior de Goiás entrevistados em sua pesquisa, houve
críticas ao Projeto Somos por buscar “criar ONG a ‘toque de caixa’, não partindo ou
dialogando diretamente com as necessidades e demandas locais”. Mas também existiram
menções elogiosas ao projeto, com apontamentos sobre a “utilidade” do que foi aprendido nas
capacitações.
Os anos subsequentes a 2010 foram marcados pela dissolução de alguns grupos, nas
mais diversas regiões, o que se relaciona com o que foi identificado por Lópes (2014) e
também por Braz (et al., 2013) sobre a dificuldade de continuidade no trabalho em ONG,
principalmente no tocante às questões burocráticas e financeiras que envolvem um grupo
institucionalizado. Lópes (2014), ao investigar a história do movimento LGBT no Estado de
Mato Grosso, afirma que:
Apesar de parecer ter havido uma diversificação das Ongs que tem como foco a
questão da identidade sexual no cenário mato-grossense, no entanto em conversas
realizadas por mim com vários ativistas da Baixada Cuiabana, diversos ativistas
reiteradamente apontam a dificuldade de manter uma estrutura mínima em
funcionamento por parte deste movimento, quase todos assinalam um cenário no
qual há uma dificuldade de formação e renovação dos quadros das ONGs que se
veem sempre “reféns” de um centralismo e de um personalismo marcado na figura
fundadora dos grupos, a despeito da própria intenção destes ativistas [...] (LÓPES,
2014, p.4).
Butler (2003) denomina esta imperiosa e rígida norma de “matriz heterossexual”, por
entender que ela trabalha compulsoriamente pelo estabelecimento da heterossexualidade. A
heteronormatividade é efeito da proibição da homossexualidade, bem como da dominação do
masculino e a homofobia. A homofobia − postura de aversão, repúdio, hostilidade e agressão
às homossexualidades61 − funciona como uma espécie de vigilante das fronteiras sexuais entre
a heterossexualidade e homossexualidade que produz o “controle de gênero”
(masculino/feminino) e contribui para que o desejo sexual heterossexualizado atue como
dispositivo de reprodução social (BORRILLO, 2001).
No que tange às políticas sociais, esta lógica normativa é posta na arena política
pelos movimentos sociais a partir da afirmação de identidades subalternizadas que buscam o
reconhecimento da diferença. Tanto a identidade quanto a diferença não são meramente
definidas, são construídas e se situam no campo das relações de poder e de hierarquias. As
marcas da presença de poder são imbricadas e podem ser percebidas nas classificações
(mau/bom), nomeações e demarcações de fronteiras (nós/eles) e pertencimentos
(excluir/incluir).
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Halperin (2004) aponta que a categoria “homossexual” é