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MÓDULO 2
Semiologia, fisiopatologia
e farmacoterapia
da febre e da dor
Autoras:
Mariana Martins Gonzaga do Nascimento
Raissa Carolina Fonseca Cândido
Sandra Regina dos Santos
SUMÁRIO
Este estudo dirigido tem como objetivo apontar aquilo que é mais relevante entre os conhecimentos
sobre a semiologia, fisiopatologia e farmacoterapia da febre e dor. Por isso, ao final desse módulo,
após assistir a aula, proceder com a leitura da presente apostila e das leituras complementares, você
deverá ser capaz de responder as questões a seguir:
5) Quais medidas, farmacológicas e não farmacológicas, podem ser instituídas para manejo da
febre?
8) A dor pode ser subdividida em quatro importantes tipos de acordo com critérios
semiológicos como: local, tempo e características da dor. Quais são eles?
9) Quais são os medicamentos indicados para a farmacoterapia da dor e quais são seus
parâmetros de segurança?
10) Quais são as medidas não farmacológicas que podem ser instituídas para manejo da dor?
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2 SEMIOLOGIA CLÍNICA E ANAMNESE FARMACÊUTICA
Semiologia é a ciência geral dos signos ou sinais. Estuda todos os fenômenos culturais como se
fossem sistemas de signos (ex.: imagens, gestos, vestuários, ritos, etc.) e propõe sistemas de
significação. A semiologia clínica, por sua vez, é o estudo do conjunto de sinais e sintomas com a
finalidade de realizar o diagnóstico ou diagnósticos clínicos. Neste âmbito é importante destacar as
diferenças entre sinais e sintomas:
A semiologia clínica é aplicada durante a anamnese, que é a entrevista clínica que visa a obtenção de
informações pertinentes às condições que levaram o paciente a procurar o atendimento, de forma
organizada e reprodutível. Em nosso âmbito, a anamnese farmacêutica, seria o procedimento de
coleta de dados sobre o paciente, realizada pelo farmacêutico por meio de entrevista, com a
finalidade de conhecer sua história de saúde, elaborar o perfil farmacoterapêutico e identificar suas
necessidades relacionadas à saúde.
A anamnese farmacêutica deve ser iniciada com o devido acolhimento do paciente, que, alinhado
com sua percepção interdisciplinar, é um processo construtivo que implica na responsabilização do
trabalhador e da equipe pelo paciente, desde a sua chegada até a sua saída do estabelecimento de
saúde. O destaque proposital da palavra “responsabilização”, tem como objetivo estabelecer que o
farmacêutico, assim como a equipe, é responsável pelo paciente, sua vida e suas necessidades em
saúde. O farmacêutico deve, então, ouvir a queixa do paciente, considerar suas preocupações e
angústias, utilizando escuta qualificada que possibilite analisar a demanda, colocar os limites
necessários, garantir atenção integral, resolutiva e responsável.
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3 O PROCESSO DE EXAME CLÍNICO
O exame clínico deve seguir algumas etapas essenciais, conforme detalhado na figura a seguir, que
devem ser desenvolvidas conforme a habilidade individual:
Exame setorial
e avaliação de
sinais e Identificação
sintomas
específicos
Avaliação de
sinais e Avaliação da
sintomas gerais queixa principal
e exame geral
Avaliação do
Avaliação da
histórico
história da
pessoal e
moléstia atual
familiar
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residência: local aonde reside;
profissão e ocupação: pode sinalizar situações de risco no ambiente de trabalho;
perfil socioeconômico: permite identificação e avaliação de vulnerabilidades e
determinantes sociais em saúde.
A queixa principal (QP) é o motivo que leva o paciente à consulta, seja por demanda espontânea ou
encaminhamento. Geralmente, ela orienta a atenção ao sistema acometido e deve prover um
registro curto por parte do farmacêutico, usando, se possível, as palavras do próprio paciente
(registrado com a sigla “SIC”, que representa “segundo informações colhidas” ou, do latim SICUT
”exatamente dessa forma”). Na avaliação da QP, deve-se proceder com a avaliação dos seguintes
fatores descritos na figura a seguir:
A caracterização do sinal ou sintoma referido na QP (ex.: dor, tosse) irá variar de acordo com o que é
esperado para tal na literatura, e, mais uma vez, dependerá dos conhecimentos semiológicos e
clínicos prévios do farmacêutico. Tais dados detalhados deverão ser colhidos e relatados em um
texto um pouco mais extenso para a história da moléstia atual (HMA), também denominada história
da doença atual (HDA), que deve trazer a descrição da evolução da queixa principal, com
apresentação de dados acerca de como e quando a queixa e sinas/sintomas associados se iniciaram,
como variaram ao longo do tempo, sua característica, intensidade, agravantes e sinais e sintomas
associados.
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3.3 Avaliação do histórico pessoal e familiar
Na avaliação da história médica pregressa (HMP), história familiar (HF) e história pessoal e social
(HPS), deve-se avaliar e documentar todos os problemas de saúde e todos os medicamentos
utilizados. Além disso, alguns fatores devem sempre ser questionados como: estado de gestação,
hábitos de vida, histórico de cirurgias e histórico familiar de doenças. Para doenças cardiovasculares,
o histórico familiar, principalmente de primeiro grau, com hipertensão, diabetes ou histórico de
doenças coronarianas, aneurisma ou acidente vascular cerebral (AVC) são especialmente relevantes.
Alguns sinais e sintomas gerais devem sempre ser avaliados em todos os pacientes nos quais
procede-se com o exame clínico. Destacamos alguns deles:
avaliação da presença e histórico de febre, sudorese e calafrios;
alterações no apetite e no peso;
presença de fraqueza e fadiga;
presença de tristeza e ansiedade;
padrão de sono.
O exame geral quantitativo e qualitativo permite a avaliação de sinais e sintomas gerais
inespecíficos, mas relevantes para caracterização do quadro clínico. Alguns parâmetros serão
abordados nas seções de sinais e sintomas relacionados a cada queixa principal abordada nos
módulos desse curso.
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4 FEBRE
Quando realizada a avaliação da febre, também deve-se proceder com o questionamento sobre uso
de medicamentos para seu controle, uso de medicamentos em geral e práticas para controle da
febre. Tais informações são importantes para identificar:
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preferências do paciente/familiar;
se o paciente usa um medicamento que promove controle da febre, mas que ele não sabia
que tinha tal propriedade (ex.: combinações de fármacos para dores musculares);
a adoção de práticas para controle de febre inseguras (ex.: uso de álcool nas axilas de
crianças expondo-o ao risco de queimaduras);
medicamentos utilizados que podem causar hipertermia.
Vários medicamentos podem causar febre como reação adversa. Dessa forma, deve-se proceder com
a avaliação da causalidade de tal efeito, com destaque para a análise do histórico e temporalidade de
uso do potencial medicamento causador da febre. Nesses casos, geralmente o paciente apresenta
um quadro de hipertermia, com temperaturas mais altas, presença de bradicardia frequente e sem a
presença de sinais e sintomas comuns em quadros febris, como a sinais de defervescência (sudorese,
calor), lassidão, mialgia e mal-estar.
No Guia de Prática Clínica sobre Febre do Conselho Federal de Farmácia disponibilizado na biblioteca
do curso, você poderá acessar uma lista de medicamentos que podem causar febre. Outras
informações sobre a febre, seu manejo e avaliação e manejo de outros sinais e sintomas gerais serão
apresentadas nos próximos módulos do curso.
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4.2 Manejo da febre
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Fármaco Apresentação Posologia Principais efeitos adversos Monitorização (segurança) Contraindicação
Naproxeno Comprimidos: 275 mg e 550 mg Adulto: 275 mg de Edema, hipertensão, Dengue/Chikungunya
12/12h ou 24/24h evento cardiovascular, Crianças < 12 anos.
ou 550 mg de hemorragia Evitado na gravidez (Risco C)
24/24h gastrointestinal, úlcera
Dose máxima: 550 péptica, injúria renal,
mg/dia prurido, rash, dor
- Pressão arterial
Crianças: maiores abdominal, constipação,
- Sinais e sintomas de
de 12 anos, vide náusea, tontura,
eventos cardiovascular
posologia de sonolência, zumbido,
- Efeitos sobre o TGI:
adultos. ototoxicidade, dispneia,
dispepsia, fezes
broncoespasmo
enegrecidas.
Ácido Comprimido: 100, 500 mg Adulto: 500 mg de Úlcera péptica, - Hipersensibilidade a salicitados ou
- Sangramento: urina, fezes,
acetilsalicílico Comprimido efervecente: 500 4/4h ou 6/6h. hemorragia, degeneração outro compontente
hemograma.
mg Dose máxima: macular, zumbido, - Histórico de asma induzida por
- Sinais e sintomas de asma
4.000 mg/dia broncoespasmo, salicilatos ou outro AINE
angioedema, síndrome de - Úlceras gastrintestinais agudas;
Reye - Diátese hemorrágica;
- Crianças com suspeita de infecção
viral (risco de síndrome de Reye)
Dengue/Chikungunya Gravidez (risco
C)
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4.2.2 Terapia não-farmacológica
Medidas não-farmacológicas podem ser recomendadas em conjunto com o uso de medicamentos,
especialmente durante o período entre a administração e pico de ação dos antipiréticos. O objetivo
dessas medidas é diminuir o desconforto causado pela febre, além de contribuir para a redução da
temperatura corporal por meio da perda de calor.
IMPORTANTE!
Embora já tenham sido empregados no passado, o uso de banhos ou compressas com álcool e
a aplicação de gelo em pontos específicos (ex.: axilas, virilha e pescoço) não são mais
recomendados devido ao risco elevado de causarem eventos adversos graves, incluindo
queimaduras e intoxicação.
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Vômitos ou diarreia, especialmente em crianças;
Dor intensa na barriga, nas costas, ou
Hemorragia, icterícia ou palidez marcada;
Presença sinal/sintoma que não seja comum e gere preocupação;
Utilização de oxigênio comprometida (ex.: doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) grave,
alterações na respiração, insuficiência cardíaca descompensada);
Sistema imune comprometido (ex.: pessoas vivendo com HIV, paciente com câncer sob
tratamento imunossupressor);
Possível lesão no sistema nervoso central (ex.: tumores ou danos no sistema nervoso central
pré-existente);
Crianças menores de dois meses com febre;
Crianças não imunizadas, entre 3 e 36 meses com febre ≥ 39°C;
Pacientes com <6 meses de idade, com temperatura retal ≥38ºC ou equivalente;
Pacientes com >6 meses de idade, com temperatura retal ≥40ºC ou equivalente;
Crianças que se recusam a ingerir qualquer líquido e que, por isso, não conseguem fazer o
tratamento antipirético por via oral;
Gravidez com febre persistente;
Mulheres no puerpério;
Pacientes com sinais/sintomas sugestivos de dengue, chicungunha ou infecção pelo vírus da
zika.
ATENÇÃO
Febre e dor são alguns dos primeiros e mais frequentes sinais/sintomas presentes na COVID-19!
Apesar de comuns e inespecíficos, febre, mialgia, fadiga e dor podem ser considerados
sinais/sintomas de alerta para COVID-19 e demandam anamnese criteriosa.
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5 DOR AGUDA E CRÔNICA
A via nociceptiva é iniciada na etapa de transdução periférica, quando um dado estímulo ativa
receptores periféricos de dor denominados nociceptores. Caso o estímulo seja intenso o bastante,
ocorre a despolarização da membrana do neurônio primário e a geração de um potencial de ação
que percorrerá toda a extensão da fibra na etapa da via nociceptiva denominada condução.
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pelas células imunes como a IL-1 e histamina, fator de necrose tumoral e fator de crescimento do
nervo. Os mediadores inflamatórios promovem de forma sinérgica uma alteração no mecanismo de
transdução periférica do estímulo nociceptivo aumentando a sensibilidade nociceptores ao reduzir
seu limiar de ativação.
Para a definição da intensidade da dor, utiliza-se escalas, sendo a Escala Analógica Visual (EVA) e suas
adaptações, apresentadas no vídeo do curso, a mais utilizada. Ela associa a avaliação das expressões
faciais com a intensidade autorreferida da dor pelo paciente dentro de uma escala de 1 a 10. Escalas
estritamente visuais podem ser aplicadas para avaliar pacientes pediátricos, e escalas estritamente
analógicas para avaliar pacientes adultos, sendo que pontuações de 1 a 3 se refeririam à dor leve; de
4 a 6 dor moderada e de 7 a 10 dor intensa. Em pacientes sedados e/ou ventilados, é mais comum a
aplicação da escala de dor comportamental, que avalia a expressão facial, movimentos dos membros
superiores e a profundidade da ventilação mecânica.
Outro aspecto importante da dor que deve ser avaliado é o quanto a dor limita as atividades do
indivíduo, sendo classificada como sem limitação; com limitação leve, se o paciente realiza a
atividade mas apresenta dor moderada a grave; ou com limitação significante, quando o paciente
não consegue completar a atividade devido à dor ou efeitos adversos do tratamento instituído pelo
controle da dor.
A dor também pode ser classificada como aguda ou crônica de acordo com seu tempo para
desencadeamento e de duração. Geralmente, dores crônicas possuem considerável componente
psicológico e não apresentam uma causa orgânica específica. É comum a detecção concomitante de
depressão e o quadro tende a cursar com dependência e tolerância a medicamentos. Dores agudas
geralmente apresentam causa específica e cursam com cura após estabelecido tratamento
adequado.
Agrupando critérios semiológicos como local, tempo e características da dor, podemos subdividir a
dor em quatro importantes tipos:
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Dor visceral: quando são ativados nociceptores viscerais. Possui características de dor
somática profunda podendo acentuar-se medicante palpação do órgão acometido;
Dor referida: quando a dor é sentida à distância de sua origem (local da lesão), em estruturas
inervadas pela mesma raiz nervosa.
A enzima COX apresenta duas isoformas, a COX1 e COX2, que são sintetizadas por genes diferentes
localizados em cromossomos diferentes e também possuem perfil genético, celular, fisiológico,
patológico e farmacológico diferentes. Desta forma, as isoformas produzem conjuntos distintos de
eicosanoides, envolvidos em diferentes vias e funções. Acredita-se que a COX1, expressa de modo
constitutivo, atue em atividades fisiológicas ou de manutenção, como homeostasia vascular,
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manutenção do fluxo sanguíneo renal e do trato gastrointestinal, função renal, proliferação da
mucosa intestinal, função plaquetária e antitrombogênese. Já a COX2 possuiria funções
especializadas que poderiam ser ativadas quando necessário, incluindo atividades em inflamação,
febre, dor, mitogênese, adaptação renal a estresses, deposição de osso trabercular, ovulação,
placentação e contrações uterinas. Desta forma, acredita-se até o momento que grande parte dos
efeitos anti-inflamatórios e analgésicos dos AINES decorra da inibição da COX2.
No caso dos inibidores da COX2, destaca-se sua seletividade para inibição dessa isoformas da
ciclooxigenase. Seus representantes disponíveis no Brasil são o celecoxibe, parecoxibe e etoricoxibe.
Para os demais AINES, o grau de seletividade para COX1 ou COX2 é variado, mas não há atividade
seletiva para um subtipo. O grau de seletividade não aumenta a eficácia dos agentes anti-
inflamatórios, mas pode afetar seu perfil de segurança.
Por exemplo, agentes como o AAS ou naproxeno, com maior seletividade para COX1 que para COX2,
possuem elevado potencial de causar dano ao trato gastrointestinal alto e baixo. Isso porque a
prostaglandina E2, sintetizada pela COX1, reduz a produção de ácido estomacal basal e estimulada,
aumentam a produção de muco e bicarbonato pelas células epiteliais, aumentam a renovação celular
e o fluxo sanguíneo do TGI. Neste caso, é recomendada a associação de AINES com inibidores de
bomba de próton para prevenir a formação de úlceras induzidas pelo uso de AINES, sobretudo entre
pacientes com maior risco de sangramento gastrointestinal com indivíduos com mais de 65 anos,
com histórico de úlcera com sangramento, usuários de altas doses de AINES, usuários concomitantes
de glicocorticoides, AAS e/ou anticoagulantes.
A troca por agentes seletivos para COX2, que apresentam menos potencial de dano no TGI, também
é uma opção entre pacientes com alto risco de sangramento quando não é possível suspende o uso
de anti-inflamatórios. O uso de agentes tamponados não reduz o risco gastrointestinal
proporcionado pelos AINES. Por outro lado, o uso de anti-inflamatórios tópicos, como o diclofenaco
spray, estão associados a incidências consideravelmente menores de distúrbios gastrointestinais,
devendo seu uso ser incentivado substituir agentes orais em dores miofasciais, ou para minimizar o
uso de agentes orais na osteoartrite de joelho ou mão. Não foi demonstrada eficácia de agentes
tópicos no tratamento da osteoartrite de quadril ou coluna.
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encefálico (AVE) ou morte cardiovascular. Em 2017, dois novos estudos, uma metanálise de 26
estudos com mais de 228 mil indivíduos e uma coorte com mais de 446 mil indivíduos, inluindo
aqueles com histórico de IAM, comparam inibidores seletivos da COX2 com AINES não seletivos e
não detectaram diferença nos desfechos infarto agudo do miocárdio, acidente vascular encefálico ou
morte por doenças cardiovasculares. No estudo de coorte, destacou-se também o fato do risco de
IAM estar aumentado inclusive entre indivíduos que utilizaram anti-inflamatórios pelo período de 1 a
7 dias. Nestes três grandes estudos, o naproxeno, agente anteriormente preferido para indivíduos
com alto risco cardiovascular, não foi o agente mais seguro. Estas novas evidências colocam o uso de
AINES sob uma nova ótica de avaliação de segurança, devendo o farmacêutico clínico estar atento e
qualificado para avaliar novas evidências e levá-las à equipe de saúde auxiliando no processo de
escolha de agentes terapêuticos.
Outra questão que demanda atualização constante é o potencial dos AINES interagirem com o AAS
de baixa dose e anticoagulantes orais. Pouco se sabe sobre as interações com os novos
anticoagulantes, mas tanto para a varfarina quanto para o AAS, já é mais consolidada o potencial de
interação com o ibuprofeno, naproxeno e indometacina. Por outro lado, ainda não foram detectadas
evidências de interação com o diclofenaco ou celecoxibe. A interação pode reduzir o potencial de
proteção cardiovascular e, ao mesmo tempo, expor os pacientes a um maior risco de sangramento.
Sempre que possível, esta interação deve ser evitada, visto seu potencial fatal e a baixa sensibilidade
de monitorização de parâmetros de segurança para sangramento (ex.: muitos indivíduos apresentam
hemorragia digestiva alta sem que antes seja detectado sangue oculto nas fezes ou sinais cutâneos
como petéquias e hematomas). Se realmente indispensável, é necessário avaliar o risco de
sangramento individual, propondo orientações farmacêuticas mais reforçadas e monitorização mais
frequente.
Outro efeito adverso associado ao uso de AINES é a lesão renal aguda (LRA), uma vez que a
prostaglandina possui papel vasodilatador da arteríola glomerular aferente. O risco de LRA entre
usuários de AINES é três vezes maior que na população geral, sendo que pode estar ainda mais
aumentado se há interação com outros agentes causadores deste evento, como a furosemida e/ou
agentes da classe inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA). Por esta razão, usuários de
AINES, com interações presentes ou não, devem ser monitorados quanto à sua função renal e níveis
de potássio sérico. No caso de aumento de mais de 30% na função renal, deve-se suspender os
agentes nefrotóxicos. Reposição volêmica e suspensão do medicamento geralmente restauram a
função renal.
No caso dos salicilatos, também existe o risco de desenvolvimento da síndrome de Reye, uma
encefalopatia metabólica progressiva que pode ocasionar falência de múltiplos órgãos e óbito,
sobretudo entre crianças, que geralmente é desencadeada por quadros virais.
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5.3.2 Paracetamol
O paracetamol, ou acetaminofeno, é um analgésico e antipirético cujo mecanismo teórico seria a
inibição da COX3, presente no sistema nervoso central. Enquanto a forma de ação do fármaco ainda
não está bem definida, sabe-se, por outro lado que o efeito adverso mais comum associado ao seu
uso é a lesão hepática, frequente sobretudo em doses elevadas (> 4 g em adultos) e em indivíduos
com disfunção hepática estabelecida. Neste caso, o metabólito do paracetamol produzido por
oxidação, o NAPQI teria potencial hepatotóxico direto. A reversão da intoxicação por paracetamol
deve ser realizada com a administração de acetilcisteína.
O paracetamol deve ser utilizado para dor de leve a moderada, como agente único ou adjuvante para
minimizar a dose ou frequência de utilização de outros agentes como AINES e opioides. Deve ser
agente de escolha, por exemplo, no manejo de dor em osteoartrite, devendo-se lançar mão do uso
de AINES somente quando o paracetamol não controlar a dor adequadamente.
5.3.3 Dipirona
Suspeita-se que a dipirona, ou metamizol, atue reduzindo a síntese de PGE1 e PGE2, mas seu
mecanismo ainda não foi elucidado. Possui potência analgésica similar ao AAS e, apesar de muito
utilizada no Brasil, foi suspensa há algumas décadas em vários países do mundo devido a estudos que
demonstraram a ocorrência elevada de discrasias sanguíneas.
Porém, uma metanálise publicada em 2015, demonstrou que a dipirona não seria menos segura que
paracetamol ou AINES mediante uso de curta duração. Entretanto, a qualidade dos estudos
analisados foi baixa e os resultados devem ser analisados criticamente. Também há carência de
estudos que avaliem as interações medicamentosas potenciais envolvendo a dipirona, devendo seu
uso ser realizado preferencialmente em dose única para manejo de dores agudas entre pacientes
com baixo risco para reações hematológicas.
5.3.4 Opioides
Os opioides atuam inibindo a etapa de transmissão da via nociceptiva ao ativarem receptores do tipo
µ tanto pré-sinápticos em neurônios primários, quanto pós-sinápticos em neurônios secundários. Na
terminação pré-sináptica, a ativação do receptor diminui o influxo de cálcio em resposta a um
potencial de ação e, consequentemente, reduz a liberação de glutamato e outras substâncias
excitatórias. No neurônio pós-sináptico, ocorre o aumento do efluxo de potássio, diminuindo assim a
resposta pós-sináptica à neurotransmissão excitatória.
Esses agentes possuem papel importante no controle de dores graves, incluindo dores malignas
associadas ao câncer. Para guiar o uso de opioides e outros agentes analgésicos nestas situações, foi
criada pela OMS a “pain ladder” ou “escada da dor”. Esta, apresenta três degraus, sendo o primeiro
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representado pela dor de leve a moderada, para a qual pode ser utilizados analgésicos não opioides;
o segundo seria a dor moderada para o qual deve-se associar opioides fracos como a codeína; no
terceiro e último, representando a dor intensa, é demandado o uso de opioides fortes como a
morfina, fentanil e metadona. O uso desta escada também foi ampliado pela própria OMS para dores
crônicas de difícil manejo, cada vez mais prevalentes na população.
Além da indicação terapêutica conforme sua potência analgésica, diferentes opioides apresentam
diferentes perfis farmacocinéticos, favorecendo o uso de um ou outro agente, ou até mesmo a
associação. No caso do fentanil, por exemplo, observa-se início de ação rápido (cerca de 5 minutos) e
tempo de ação curto (de 15 a 30 minutos), sendo um bom agente de ataque para controle de dor
crônica agudizada. A morfina representa um agente intermediário, apresentando tempo de início de
ação de cerca de 20 minutos e tempo de ação total de até 4 horas, servindo como opioides de
manutenção, sendo administrado em horários fixos ao longo do dia em pacientes com dor crônica ou
após procedimentos cirúrgicos com elevado potencial doloroso, por exemplo. Uma opção posológica
interessante é o uso da morfina de liberação prolongada ou da metadona, que possui tempo de ação
de até 8 horas.
Apesar de possuírem elevada eficácia analgésica, os agentes opioides apresentam perfil de segurança
preocupante. Provocam, sobretudo no início do tratamento, náusea, sedação, urticária e depressão
respiratória; ao longo de todo o tratamento, também são esperados quadros de retenção urinária e
constipação. A depressão respiratória seria o evento mais grave e potencialmente fatal dentre esses,
devendo ser monitorado e revertido com o uso do antídoto naloxona caso se instale. A sedação
causa preocupação considerável entre idosos com histórico de quedas, colocando os agentes
opioides como medicamentos potencialmente inadequados segundo o critério de Beers para idosos
com tal histórico. A constipação geralmente apresenta perfil progressivo e deve ser manejada com
medidas não farmacológicas e farmacológicas, sobretudo em pacientes neutropênicos, entre os
quais o quadro pode levar à translocação bacteriana e bacteremia.
Também é comum observar o desenvolvimento de tolerância entre usuários de opioides bem como a
dependência física, que leva ao risco de síndrome de abstinência e à necessidade de retirada com
desmame progressivo no caso de suspensão de tratamento. Entretanto, não se deve confundir a
pseudo-adição com a adição ou vício, que também podem ser detectados com o uso de opioides. A
pseudo-adição envolve a súplica pelo medicamento geralmente desencadeada por dor não
controlada por posologias e doses inadequadas. Já a adição real o vício são mais raros e envolvem
dependência psicológica, quadro de compulsão e uso para prazer e autogratificação.
Também é importante destacar que opioides são medicamentos potencialmente perigosos segundo
listagem do ISMP Brasil; ou seja, erros envolvendo estes medicamentos possuem potencial elevado
de ocasionar dano, inclusive morte ao paciente. Erros com opioides geralmente envolvem
sobredosagem e falta de orientação ao usuário, colocando esses medicamentos entre as quatro
classes terapêuticas mais associadas a eventos adversos graves nos EUA, junto aos anticoagulantes,
insulinas e antimicrobianos.
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Desta forma, é necessário instituir barreiras diversas para prevenção de erros com estes agentes.
Deve-se, por exemplo, colocar etiquetas nas doses unitárias destes medicamentos, destacando-os
enquanto medicamentos potencialmente perigosos. Além, disso, sua dispensação, preparo e
administração devem ser antecedidos de dupla checagem independente. No uso ambulatorial,
orientação adequada e educação em saúde quanto à dose e frequência de uso, e estratégias para
identificação de eventos adversos, são de extrema importância para a promoção da segurança do
paciente usuário de opioides. Estas estratégias são algumas das múltiplas estratégias de prevenção
de erros que devem ser colocadas em prática para o alcance da meta global proposta pela
Organização Mundial da Saúde em 2017 para reduzir em 50% a ocorrência de danos graves evitáveis
relacionados ao uso de medicamentos em 5 anos.
5.3.5 Anticonvulsivantes
Anticonvulsivantes vêm sendo cada vez mais utilizados na farmacoterapia da dor, uma vez que são
cada vez mais prevalentes doenças associadas a dor crônica. Esses agentes, de uma forma geral,
lentificam as etapas de condução e transmissão. Seus mecanismos de ação são variados, mas
destaca-se mecanismos de bloqueio de canais de sódio, detectado na lamotrigina, carbamazepina,
lidocaína e fenitoína. Agentes com outros mecanismos de ação, como a gabapentina e Pregabalina,
são constantemente utilizados no tratamento da fibromialgia, relativamente seguros, mas
apresentam elevado potencial de sedação.
5.3.6 Antidepressivos
Antidepressivos também possuem crescente aplicabilidade no manejo de dores crônicas como a
fibromialgia, neuropatia diabética e neuropatia associada à herpes zoster. A eficácia em diferentes
quadros álgicos varia, mas, de uma forma geral, os agentes mais estudados são a amitriptilina,
imipramina, venlafaxina e duloxetina, que atuam inibindo a recaptação de norepinefrina e
serotonina; e a fluoxetina, paroxetina e citalopram, que são inibidores seletivos da recaptação de
serotonina. O uso desses agentes para essa finalidade terapêutica tem como base o importante
efeito modulador que as vias descendentes de monoaminas exercem sobre a dor.
Já os ISRS possuem como principais eventos adverso a inquietação, insônia, cefaleia, disfunção
sexual, anorexia e outras alterações gastrointestinais. Geralmente esses efeitos cedem após algumas
semanas de tratamento. ISRS também podem exacerbar ou causar a síndrome da secreção
inadequada de hormônio antidiurético, sobretudo em idosos, devendo ser utilizados com cautela
nesta faixa etária segundo o Critério de Beers. Além disso, o critério também aponta que esses
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agentes são medicamentos potencialmente inadequados para idosos com histórico de quedas ou
fraturas. Os inibidores da recaptação de norepinefrina e sertralina são mais bem tolerados, com
destaque para a duloxetina.
a colchicina, é um fármaco com baixo índice terapêutico e tende a ocasionar náusea, diarreia
e vômito em cerca de 80% dos seus usuários;
os triptanos, por serem agonistas dos receptores de serotonina, podem ocasionar eventos
adverso similares àqueles já citados para os ISRS;
os relaxantes musculares apresentam potencial sedativo elevado, podendo expor indivíduos
ao risco de quedas e acidentes, sobretudo se pacientes idosos, conforme ressaltado no
critério de Beers, que classifica todos os medicamentos desta classe como potencialmente
inadequados para idosos.
Para todos os tipos de dores crônicas, mas com destaque para a fibromialgia, a psicoterapia é um
importante adjuvante terapêutico, uma vez que é frequente a associação de transtornos depressivos
e históricos traumáticos no desenvolvimento deste quadro. Ensaios clínicos com exercícios de baixo
impacto, como hidroterapia, também demonstram elevada eficácia no manjo da dor da fibromialgia.
Além disso, o fortalecimento das redes de suporte, ajustes nas rotinas laborais e domésticas e
controle do sono e de outras comorbidades também possuem importante papel no manejo da dor.
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REFERÊNCIAS
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Potentially Inappropriate Medication Use in Older Adults. J Am Geriatr Soc., v. 67, n. 4, p. 674-694,
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