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Filólogo, linguista e gramático

Não, não é tudo a mesma coisa. Saiba como cada um desses estudiosos contribui para o conhecimento sobre a língua e a
linguagem
Carlos Alberto Faraco

Parafraseando o filósofo Gramsci, para quem todos os seres humanos são filósofos, podemos dizer que todos os
seres humanos são também linguistas, já que todos nós levantamos intuitivamente questões sobre a língua que
falamos e sobre fenômenos linguísticos como a diversidade das línguas, a origem da linguagem, a aquisição da
língua pelas crianças.
Quando se trata, porém, de estudar sistematicamente os fenômenos linguísticos, são três os especialistas que
vamos encontrar: o filólogo, o gramático e o linguista. Desses, o mais conhecido do público é o gramático. Bem ou
mal, todos estudamos um pouco de gramática na escola e nos familiarizamos com seu trabalho.
Já dos outros dois as pessoas sabem muito pouco. A razão disso talvez seja o fato de que suas respectivas
atividades se realizem no contexto da pesquisa universitária, que é, em geral, menos visível ao público pelo seu
grau maior de especialização.
Embora hoje encontremos esses três especialistas trabalhando simultaneamente, cada uma dessas especialidades
surgiu em diferentes momentos históricos. Os filólogos surgiram por volta do século III a.C.; depois, apareceram
os gramáticos (por volta do século II a.C.) e, no fim do século XVIII, os linguistas.
A filologia e a gramática são, portanto, ramos do conhecimento criados pela cultura helenística. Já a linguística
surgiu no contexto da ciência moderna.
Chamamos de cultura helenística as manifestações culturais gregas do período que vai do reinado de Alexandre
(336 a 323 a.C.) até a incorporação do mundo grego pelos romanos, concluída com a anexação do Egito em 30
a.C. O centro cultural mais importante desse período foi Alexandria, cidade fundada em 323 a.C. por Alexandre na
foz do rio Nilo. Ali foram criadas instituições voltadas para a investigação e o ensino, entre as quais estava a
famosa biblioteca.
Nela se reuniu uma imensa coleção de manuscritos gregos antigos com textos de poetas, dramaturgos, filósofos e
historiadores. Seu corpo de estudiosos se dedicou a catalogar esse precioso acervo e a estabelecer, com base no
exame criterioso dos fragmentos disponíveis, o texto que se poderia considerar como definitivo da obra de cada um
dos autores gregos clássicos. Por motivos óbvios, as epopéias de Homero (Ilíada e Odisséia) receberam particular
atenção desses estudiosos.
Esse trabalho minucioso era necessário porque os manuscritos de um mesmo texto variavam entre si ou estavam
danificados, tinham lacunas, trechos obscuros, acréscimos ou cortes indevidos. Dedicando-se a fixar uma forma
aceitável dos clássicos, os sábios alexandrinos preservaram e nos legaram todo um conjunto de obras
fundamentais da cultura humana.
Para realizar esse estudo, os alexandrinos tiveram de criar os métodos que, mesmo aperfeiçoados depois,
constituem ainda hoje a base de qualquer atividade de edição crítica dos textos reconhecidos como clássicos da
cultura – textos literários, filosóficos, religiosos.
Em resumo: o objeto de estudo do filólogo são manifestações escritas antigas culturalmente importantes e seu
objetivo é fixar esses textos numa forma que possa ser considerada confiável, isto é, a mais próxima possível do
original. Para isso, o filólogo tem de comparar vários manuscritos ou (depois da invenção da imprensa) diferentes
edições de um texto, buscando livrá-lo de defeitos decorrentes do processo de sua transmissão.
Parte desse trabalho envolve o estudo das palavras e de seus sentidos nos textos. Por isso, os filólogos se dedicam
também à etimologia (a investigação da origem e da história das palavras) e se envolvem diretamente com a
feitura – ou o modo de fazer – dos dicionários. Assim é que os organizadores dos dois mais importantes dicionários
brasileiros contemporâneos da língua portuguesa – Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Antônio Houaiss – se
consideravam filólogos.

Etiqueta da língua
Falemos, agora, do gramático. Sua especialidade nasceu do trabalho dos filólogos. O estudo criterioso dos textos
levou os eruditos alexandrinos a comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica, ortografia e
pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções,
etc.); a estrutura sintática da oração simples (sujeito, predicado, complementos, adjuntos) e dos períodos
(coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem, por exemplo.
Com o tempo, esses estudos passaram a constituir um ramo específico do conhecimento: a gramática. Costuma-se
atribuir a um erudito alexandrino, Dionísio Trácio, do século II a.C., a autoria da primeira gramática. Ao consolidar
descrições de aspectos da língua grega, sua obra foi tomada como modelo das análises gramaticais posteriores.
Dionísio Trácio conceituava a gramática como o estudo empírico dos fatos linguísticos que ocorrem comumente nas
obras dos poetas e prosadores. O objeto do gramático era, portanto, a língua escrita exemplar. E seus objetivos
eram descrever essa língua e, ao fazê-lo, estabelecer um padrão a ser seguido na escrita.
A gramática é, assim, uma espécie de livro de etiqueta: ela diz, em princípio, quais usos linguísticos são aceitáveis
na escrita. Por isso, a gramática já de início se tornou matéria da escola, instituição que, em princípio, deveria
ensinar as pessoas a escrever bem.
Dos três, o gramático é o especialista que tem uma preocupação nitidamente normativa: ele se ocupa em
estabelecer as normas do chamado "bom uso" para a escrita.
Também é o que mais recebe críticas. A razão principal para isso é o fato de que muitos deles não pesquisam
criteriosamente o uso corrente entre os escritores. Contentam-se em reproduzir, por inércia, usos que já não são
comuns (a língua é um fenômeno que muda continuamente) e condenam, sem muito fundamento, novas formas
de expressão já usadas na escrita.
Desse modo, a gramática vai perdendo a funcionalidade como instrumento de referência normativa. Em
consequência, a escola e quem escreve ficam sem um manual confiável.
Alguns dos nossos gramáticos, por terem sólida formação filológica e linguística, produziram gramáticas um pouco
mais arejadas. É o caso de Celso Cunha e Evanildo Bechara. Mas há ainda um longo caminho a ser percorrido até
alcançarmos, no Brasil, uma boa gramática normativa de referência, isto é, atualizada e realista.

Complexidade
O modelo de descrição gramatical criado pelos gregos, embora útil, é insuficiente para descrever toda a
complexidade de uma língua ou para dar conta da enorme diversidade estrutural das línguas do mundo.
Contudo, desde o século XIX, no contexto da ciência moderna, tem havido sucessivos esforços para encontrar
modelos mais adequados.
A tarefa é hercúlea e está longe de ser alcançada. Só para ter uma idéia da complexidade dos fenômenos
linguísticos, basta lembrar que nenhuma língua foi ainda razoavelmente descrita. Embora as línguas sejam tão
banais na nossa vida, não conseguimos ainda dar a elas uma representação científica abrangente.

Foco na língua falada


E aqui entra em cena a linguística – a disciplina científica moderna que tem como objeto as línguas em si mesmas
consideradas.
O que distingue o linguista dos outros especialistas? São muitas as diferenças, mas podemos citar as mais
evidentes. Para começar, o linguista se interessa por todo e qualquer fenômeno linguístico, enquanto o filólogo só
se interessa pelos textos escritos canônicos e o gramático só se interessa pela língua-padrão.
Enquanto o filólogo e o gramático dirigem seu foco de atenção para a língua escrita, o linguista prioriza a língua
falada. Isso porque a fala é a modalidade de expressão universal: todas as línguas têm uma face oral, apenas
algumas têm também uma face escrita.
Apesar dessa primazia, o linguista, pelo fato de se interessar por todos os fenômenos linguísticos, se volta também
para a língua escrita (a linguística textual, por exemplo, tem trazido muitas contribuições para uma compreensão
mais refinada da escrita). Nesse caso, o linguista não se limita à escrita de prestígio, mas estuda toda e qualquer
manifestação escrita.
Por fim, enquanto o gramático é essencialmente normativo, o linguista não o é. Em termos simples, o linguista diz
como a língua é. O gramático, como certos comportamentos linguísticos devem ser.
Esse último ponto tem gerado vários equívocos. Alguns gramáticos (e, por consequência, pessoas da mídia e
mesmo professores) têm dito que os linguistas são contra a língua-padrão e seu ensino, porque, segundo esses
detratores, para os linguistas "vale tudo". Embora algumas vezes a falação contra os linguistas chegue a ser
sanguínea e raivosa, tudo não passa de um tigre de papel.
Claro que para os linguistas tudo vale: como bons cientistas, eles querem descrever e compreender todo e
qualquer fenômeno linguístico, inclusive a língua-padrão. Aliás, foram os linguistas, na sociolinguística, que
desenvolveram os melhores métodos para descrever a língua-padrão.
Justamente por isso, os linguistas são críticos do excessivo conservadorismo das nossas gramáticas. Mas, por
entenderem as funções socioculturais da língua-padrão e por terem desenvolvido os métodos para sua descrição,
defendem a elaboração de referenciais normativos sustentados pelos fatos e não pela mera opinião.
Em resumo, as três especialidades não se excluem. Cada uma tem suas tarefas específicas e deve cumpri-las bem,
sendo indispensável o intercâmbio dos respectivos resultados. Sem uma sólida base filológica e linguística, uma
gramática deixa muito a desejar.
Por outro lado, a informação filológica é indispensável para o linguista que estuda a história da língua. Conhecer o
saber gramatical acumulado é sempre ponto de partida para os estudos linguísticos e filológicos.
Por fim, os instrumentos descritivos desenvolvidos pela linguística, seguindo os pressupostos da atividade científica
moderna, são fundamentais para renovar a gramática e a filologia.

Carlos Alberto Faraco é linguista, autor, entre outros, de Linguística Histórica (Ed. Ática).
Foi reitor da Universidade Federal do Paraná.

Revista Discutindo Língua Portuguesa – Ano 1, nº 1, novembro de 2005, p. 50-53.

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