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Luiz Antônio Cunha

Moacyr de Góes

O Golpe
na Educação
10!! edição

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
UNIOESTE
Campus de Foz do Iguaçu
BIB_f-IOTECA Sumário .
N.o Reg.: .0 3066
Data: 1G I O1 I_,;UJO 1

Moacyr de Góes
VOZ ATIVA 7
uiz Antônio Cunha e Moacyr de Góes
I. Por Dentro do Contexto 8
Todos os direitos reservados. 11. JK-Jânio-Jango:
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo Canúnhos e Descanúnhos da
ou em pmte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)
Educaçao Nacional 11
1999
Direitos para esta edição contratados com: UI. Os Movimentos de
Jorge Zahar Editor Ltda.
Cultura/Educação Popular 16
rua México 3 I sobreloja IV. 1964 - Os Acordos MEC-USAID:
20031-144 Rio de Janeiro, RI Em Direçao aos "Anos de Chumbo" 32
te!.: (021) 240-0226 I fax: (021) 262-5123
Edições anteriores: Luiz Antônio Cunha
1985, 1986, 1986, 1987, 1988, 1989, 1991, 1994, 1996 RODA-VIVA · 35
Impressão: Prol Editora Gráfica
I. "Educaçao" pela Repressão 36
Il. Educação: Grande Negócio 42
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. UI. A Exclusão pela Base 55
C978g Cunha, Luiz Antônio, 1943- IV. A Profissionalizaçao Fracassada 62
1O.ed. O golpe na educação I Luiz Antônio Cunha, Moacyr de V. A Educação Moral, Cívica e Física 73
Góes . - 1O.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999
(Brasil: os anos de autoritarismo) VI. A Universidade:
Modernizada, Amordaçada e Privatizada 81
ISBN: 85-7110-487-5
1. Educação e estado - Brasil. 2. Brasil - Política e Luiz Antônio Cunha
governo- 1964-1985. I. Góes, Moacyr de, 1930-. 11. Título. Moacyr de Góes
III. Série. PARA REVERTER O GOLPE 91
CDD-379.81
98-1988 CDU 37.321 (81) Sobre os Autores 95
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar VOZ ATIVA
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Moacyr de Góes
CHICO BUARQUE
I. Por Dentro do Contexto _em que o movimento operário era vuln~rável, pela sua dependência
de Estado interventor de sindicatos;
_em que o campo estava no início da organização de seus trabalhado·
res em Ligas Camponesas e sindicatos rurais;
-em que as camadas médias eram atravessadas pela "indústria do anti·
comunismo"; .
_em que a Aliança para o Progresso constituía-se na grande ideóloga
contra a Revolução Cubana e financiava "ilhas de sanidade" hostis ao.
governo reformista de Jango;
Nos anos 60 a crise brasileira é econômica, é social e é política. Desde o -em que os intelectuais orgânicos da classe dominante atuavam no
Movimento de 1930 -resposta tupiniquim à crise de 1929 do capitalis- Congresso Nacional, formavam opinião pública através dos meios de co-
mo internacional - que o Brasil procurava saídas face à ruptura da Re- municação de massas, da escola, de parte das Igrejas, de organizações
pública. agro -exportadora, à crescente urbanização e à influência dos tipo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto
militares que des~javam construir as próprias armas (ver os discursos do Brasileiro de Ação Democrática), instrumentalizando conceitos ideoló·
ditador do Estado Novo). O primeiro patamar do novo modelo foi cons- gicos de "civilização ocidental e cristã", corrompendo com o dinheiro ·
truído por Vargas, com Volta Redonda, negociando com os america- da embaixada americana (eleições de 1962) com o objetivo políti.co de
nos o apoio do Brasil. aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Direci~­ conservaçífo das estruturas, contra as reformas ou qualquer mudança,
nou-se o país para a industrialização. escamoteando a discussão da luta de classes.
Na reordenação que se processou, após a crise do Estado liberal- Nesta conjuntura, o confronto "abertura de mercado interno"
oligárquico, a sociedade política (o Estado) incorporou setores da classe versus "exportar é a solução". foi decidido pela força em 1964. O seg·
dominante com interesses voltados para o setor industrial e, a partir daí, menta industrial, fmanciado pelo chamado "capital associado", cresce·
procurou conciliar capital e trabalho. Instalou-se, posteriormente, o ria com a demanda externa, e o Brasil rumou em direção à Belindia, isto
chamado "modelo de substituição das importações" que possibilitou a é, à construção de uma Bélgica (a minoria rica e industrializada) em
emergência do setor industrial como hegemõnico nos anos 60. cima de uma Índia (a massa de despossuídos e miseráveis), como já se
Já no fmal dos anos 50 este processo parecia estar em vias de con· disse tantas vezes.
· clusão e o seu desdobramento implicaria abrir um mais amplo mercado Na sociedade civil, o discurso político progressista dos anos 60
interno. Este foi o desafio ao governo João Goulart e ao seu programa remeteu, freqüentemente, ãs figurações de "povo e anti-povo" e de
de "Reformas de Base". "naçífo e anti-nação", fluindo para a denúncia do latifúndio e do impe·
A situação, todavia, nã'o era tão fácil e esquemática. O Brasil era rialismo. Não percebeu, todavia, com maior clareza, que a sociedade é
e é um país terceiro-mundista, dependente. Aqui se confrontavam inte- dividida ém classes, que a crise social existente era também interna e
resses econômicos das mais diversas ordens: que só com uma análise de apropriaçãofexpropriação do trabalho a
questão poderia ser djscutida. Assim, apesar da relativa liberdade asse-
-o latifúndio, impenetrável às mudanças sociills;
gurada pelo populismo aos movimentos sociais, a discussão da luta de
-os grupos ligados à internacionalizaçlfo do capital que buscavam o po·
classes ficou restrita aos setores marxistas e não alcançou o palanque
der político, indispensável à segurança de sua reprodução;
político dos comícios. A crise socjal continuou latente e latejante, sem
-a chamada "burguesia nacional" que preferia aliar-se ao capital inter-
um canal efetivo de comunicação com as massas.
nacional a fazer concessões à força de trabalho, apesar dos ideólogos do Na sociedade civil no Nordeste, este discurso remeteu, também, à
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) teorizarem a aliança de preocupação com as tendências para a consolidação do capitalismo mo-
classes.
nopolista e à modernização da produção industrial do Centro-Sul e seu ·
Esta luta de foice no escuro se processava numa sociedade: avanço sobre o mercado nordestino. A criação da Sudene em 1958 foi

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ir

precedida de uma discussão, que se prolongou pelo pedodo, na qual o n. JK -Jân io-Jango: .·
perfll do novo órgão e seus objetivos foram questionados. A discussão Caminhos e Descaminhos da Educação Nacional
da colonização brasileira pelas forças do capital internacional foi deco-
dificada .para questionar a possível colonização do Nordeste pelas forças
econômicas do Centro-Sul: o chamado "imperialismo interno". Apesar
de tudo, a Sudene deflagrou grandes esperanças para a região.
Diante de uma situação que se tornava cada vez mais complexa, a
aliança PSD-PTB, voto rural e voto urbano, não resistiu aos interesses
divergentes entre cidftde e campo, entre grupos nacionalistas e outros
ligados ao capital externo. A crise faz crescer. Ou, em outras palavras, a contradição move a Histó-
A crise· política se revela, principalmente,· pelo esgotamento do ria.
modelo populista (1930-1964). Com a ruptura da República agro-
Apesar de um forte conservadorismo e do medo das mudanças
exportadora, em 1930, o Brasil conheceria a experiência latino-america-
na populista, tal como a Argentina de Perón, o México de Cárdenas, o (que têm sido a tônica em educação), alguns educadores começaram a
Peru da APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), etc. . perceber que os problemas de sua sala de aula não se resolveriam, ape-
No Brasil o populismo foi "revolucionário" em 1930; ''bonapar- nas, dentro dela. Era preciso espiar o~ se passaYanO_c_ampo social co-
.I tista" em 193 7; nacionalista e an tiímperialista de 19 50 a 19 54; desenvol- mo um todo e voltâra sala dG--a-Ufll-eom-a-visão da realidade do processo
'I
vímentista no fmal dos anos 50; moralista em 1961; nacionalista e sindi- que _e~iru:a send.g_ vívido. Nos anos 20 e 30, Pascoal leme fora p_illn€liro
calista até a sua queda em 1964. d~sia :Rrática. Esta preocupação, todavia, ficou sa._terrada. pela-2:.~J?fessãp
O populísmo esgotou-se pelo avanço das camadas urbanas e dos do Estado Novo (123]~1345). Com a crise dos anos 50-60, ma.J.or n\k
setores ligados ao campo que escaparam do controle dos grupos dirigen- mero de educa_dores começou
~-~
a botar a _çabeça para
-------
fora da sala de aula
------
para olhar e estudar()_ mundo. · ·
. tes. Nesta situação excepcional deu-se uma crise orgânica na classe diri- -~---

gente, que se sentiu ameaçada na sociedade civil e na própria estrutura


econômica, visualízando riscos para a acumulação de capital.
Assim, quando se armou o confronto - como desdobrar o mode- O "trânsito"
lo de substituição das importações no bojo de uma crise social? -o po- _g possível que um marco dessa nova postura tenha sido Paulo Freire,
pulísmo já não teve coelhos para tirar de sua cartola de mágico. quando relatou o tema "Educação dos adultos e as populações margi-
Sem condições políticas para se transformar no popular, o popu- nais: o problema dos mocambos", vinculando analfabetismo e pauperis-
lismo, em 1964, deixou a cena para o novo Estado tecnocrático-civil- mo (Seminário Regional de Pernambuco, preparatório ao II Congresso
militar. Os novos tempos serão comandados pela internacionalização do Nacional de Educação de Adultos). Neste Congresso (Rio, 1958), o
capital, que se aprofundará, e dirigidos pela tradicional classe dominan- educador nordestino defen~~QllL~m~enunciando
te, agora com mais uma proposta de modernização. a entao vígent~~_ucação~f2ara o }lgmem. E ainda: a substitu~~() da ~ula
Face às novas condições, o novo ·Estado definiu-se pela coerçl!o expositiva pela discussão, a utilíz_ação de modernas técllicas-de educação
para manter a dominação, no sentido gramsciano do termo. de grupçs com -ª_aju4a <,le_recürsos__áudio,visuais,etc. Demonstrou preo-
Na crise de 1964, onde estavam os educadores? Que faziam? Qual cupaç[o_m~ogias e, principalmente, conLoJugar~(social, polí-
a vis[o de mundo de suas vanguardas? Qual o papel do Estado na educa- tico, educacional, de autoridade) a ser assumido por educador e educan-
ç1fo nacional? E o povo? dos. Com a defesa da tese "Educação e atualidade brasileira" (Recife,
1959), Paulo Freire voltou ao tema e discutiu o seu carismático cÜI).cei-
to de "trânsito": nos anos 60 o povo viveria o "trânsito" de uma socie-
dade fechada para uma sociedade que se abria, e o cidadão ultrapassaria

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un;~ consciência mágica/intransitiva para uma consciência transitiva/ Médio (decreto 51552, de setembro). No primeiro decreto falou-se, ex-
cntlca. pressamente, de um entrosamento de propósitos de alfabetização e edu-
O li Congresso, onde se discutiram 210 teses, foi um momento de cação de base com o problema do desenvolvimento social e econômico.
esperanças, mesmo que os seus andaimes estivessem fmcados num cha'o O decreto, todavia, não passou de uma carta de intenções. Para o Minis-
de fracassos e de destroços de experiências passadas: a da Alfalit (Agên- tro Darcy Ribeiro o Programa de Emergência redescobria o município
cia Alfabetizadora Confessional), a· Cruzada Nacional de Educação como "núcleo operativo em que se processa a ação educacional".
(1932), a Bandeira Paulista de Alfabetização (1933), a Cruzada de Edu- São os tempos de descentralização da LDB, e ao MEC cumpre o
cação de Adultos (1947), o Serviço de Educação de Adultos (1947), o repasse dos recursos para sua aplicação nos Estados.
I Congresso Nacional de Educação de Adultos (1947), o Sistema Radio-
educativo Nacional - Sirena (1957), a Campanha de Educação de
Adultos e Adolescentes (1947-1954), a Campanha de Educação Rural A Lei de Diretrizes e Bases
(1952-1959), a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo
(1958). A mais longa discuss[o da quesf[o da educação em,nível nacional que já
. O final do governo JK foi marcado pela discussão sobre a Lei de ocorreu neste p&ís foi o debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases. Come-
Dire:rizes e Bases da EdiieãÇ[o Nacional JLDBl_rlo Congresso Nacional, ~ em ,)-948...... quando já. se discutia o Projeto Mariani; incendiüü=Sea
nos orgãos educacionais, sindicais, estudantis, na imprensa e nos comí- questão com o Substitutivo Lacerda; não se concluiu a polêmica com a
>1: cios da campanha eleitoral de 1960. promulgação da lei 4.024 em dezembro de 1961. O debate assumiu um
li
Jânio Quadros governou sete meses e assinou um convênio com a par:_!_g.uestionador até 1964, quando ocorreu, com o golpe de Estado,
o~verdadeiro "cala a boca" nacioriã.l. ·· -~------·
Igreja Católica criando o MEB - Movimento de Educação de Base
(decreto 50370, de 21 de màrço de 1961). · -A grande confrontação, na ôiscuss[o da LDB, estabeleceu-se entre
A história é conhecida: a renúncia de Jânio, a tentativa de golpe os privatistas do ensino e os educadores que defendiam a escola pública,
dos ministros militares, a conciliaç[o do parlamentarismo "para evitar o gratuita e laica. Os privatistas combateram o Projeto Mariani, e fizeram
derramamento de sangue" e a posse de Jango. do Substitutivo Lacerda a sua bandeira. Nesta trincheira ficaram os
O governo parlamentarista também teve o seu programa de educa- católicos sob a liderança da AEC (Associação de Educação Católica),
ção (outubro de 1961 ). O programa do premier Tancredo Neves foi que deflagrou a Campanha de Defesa da Liberdade de Ensino em oposi-
identificado por Robert Dannemann como tendo os seguintes objetivos, ção à Campanha de Defesa da Escola Pública. A AEC mobilizou os colé-
a serem alcançados em cinco anos: a expansão e o aprimoramento da gios católicos, os Círculos Operários, a opinião pública conservadora e
rede escolar comum; a recuperação dos analfabetos e insuficientemente pressionou o Congresso Nacional. Esta militância católica começou a
alfabetizados para a Nação; a extensão dos benefícios da cultura a todos "rachar" na JEC (Juventude Estudantil Católica) e rue (Juventude.
os brasileiros; o incentivo à criação artística, intelectual e científica. Universitária Católica) face à posição do movimento estudantil em favor
Pretendia o governo, em termos de ensino primário, atingir os objetivos da escola pública. A Campanha de Defesa da Escola Pública retomou o
estabelecidos em Punta del Leste e, se possível, antecipai'-se a eles. Tru.s pensamento liberal norte-americano e europeu do fmal do século XIX
objetivos, fixados na Conferência da OEA (Organização dos Estados (ao qual se somaram os marxistas), mobilizou a opinião pública progres-
Americanos) realizada naquela cidade, eram: a eliminação do analfabe- sista, o movimento estudantil, e obteve o apoio operário (I e 11 Conven-
tismo, a escolarização mínima de seis anos para todas as crianças em ções Operárias em Defesa da Escola Pública, Sindicato dos Metalúrgicos,
idade escolar, etc. São Paulo, 1961).
Em 1962, quando a crise institucional se aprofundou, o parlamen- Nos anos 50-60, a defesa da escola pública, no contexto da dis-
tarismo, nos seus extertores, ainda assumiu duas medidas de ordem edu- cussão_d_a..LDB,-deu_contin uidade.. ao pens_amenlo..de- educado.res...cGmo
cacional: a Mobilização Nacional contra o Analfabetismo (decreto AJ!ísio Teixeira, Pascoal Leme e ou~ se converteu em estuário do
51470, de maio) e o Programa de Emergência para o Ensino Primário e rio cujos tributários' foram: a criação da Associação Brasileira de Educa·

12 13
ção (1924), a IV Conferência Nacional de Educação (1931), o ~~nifes­ a) O Plano Nacional de Educação (PNE), priundo do Conselho Federal
to dos Pioneiros da Educação Nova (1932), o I Congresso Braslleuo de de Educação; .
Escritores (1945), o IX Congresso Brasileiro de Educação (1945), a Uni· b) O Plano Trienal de Celso Furtado, que encampou o PNE;
versidade do Povo e os Comitês Democráticos, criados no então Distrito c) A Comissão de Cultura Popular, criada junto ao gabinete do ministro,
Federal pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro) quando de seu período com atribuição de implantar o Sistema Paulo Freire, em Brasília (ju-
de vida legal ( 1945-194 7). .. . . . nho);
. A LDB terminou sendo uma conclliaç_~Q_i\Q~~P.NJd.OS_MarianLe d) O Plano Nacional de Alfabetização-PNA (decreto 53465, de janeiro
Lacerc:Ia.'.i\Sslffi o ensmo~no -Brasil é direito tan~<J do poder público de 1964) que oficializou,· ãiUVe1 nã.cwiúu, o Sistema Paulo Freire; este,
quanto da.in1Clairva ~_vadi:(~I:i: 2Q). -Agratu1aade do ensino, conquista chegou a operacionalizar-se em Brasília, projeto -piloto nordeste (Sergi-
constitucional, fica sem explicitação. Abre-se a porta para o Estado fi· pe) e projeto-piloto sul (Baixada Fluminense, Rio).
nanciar a escola privada (art. 95). Do Projeto Mariani, permanece a pro·
posta de equiparação dos cursos de nível médio dentro de uma articula-
ção flexível. O PNA foi extinto em abril de 1964, 14 dias após o golpe de Esta-
Anísio Teixeira, no seu incurável otimismo, disse que a LDB é do (decreto 53886). ~
uma meia vitória ... mas uma vitória.
Finalmente, ~g_fala-do.-caráter''tardio" da LDB~ em
face das novas tendências da "internacionaliz'!_Ção do mercado", do
caráter de seletividade que ela consagra, d~ação vaz_iada .educa-
ção como dir_ill!)_e_dewJ:~ Qt;)JQQQS, omi:tindo !!..IPLre_alidade_sncial em ·
q~~~il!ºade~_~á p_rofundamente--arraigada". E nos diz que a LDB
-traduz no seu texto a estratégia típica da classe dominante que ao mesmo
tempo que institucionaliza a desigualdade social, ao nível da ideologia,
postula a sua inexistência; [assim,] o sistema educacional além de contri·
buir para reproduzir a estrutura de classes e as relações de trabalho, tam-
bém reproduz essa ideologia da igualdade.
A LDB consagrou a descentralização, reservando ao governo fede·
ral a fixação de metas e a ação supletiva, fmanceira e técnica.
Enquanto a União se debatia em sua crise institucional de parla·
mentarismo versus presidencialismo, os fatos importantes em educação
se deslocavam da área do governo federal para emergirem em âmbitos
regionais efou institucionais. A teoria do li Congresso Nacional de Edu-
cação de Adultos buscava a sua práxis nos movúnentos de cultura po-
pular.

No ocaso
A República presidencialista de Jango, iniciada em 1963 por força do
plebiscito, apesar do clima de conspiração, ainda teve tempo de propor
à nação: ·

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111 . Os Movimentos de Cultura/Educação
. Popular Movimento de .cultura popular
O MCP estruturou-se como uma sociedade civil, no âmbito da adminis-
tração do Prefeito Miguel Arraes, no Recife, Pernambuco, em maio de
1960, com sede no Sítio da Trindade, o antigo Arraial do Bom Jesus
das lutas holandesas.
De acordo com o art. 1Q de seus Estatutos, eram seus objetivos:
a) promover e incentivar, com a ajuda de particulares e poderes públicos, a
educação de crianças e adultos; b) atender ao objetivo fundamental da edu-
cação que é o de desenvolver plenamente todas ·as virtualidades do ser hu-
Quem não se lembra da universidade brasileira dos anos 50-60? A "tor- mano, através da educação integral de base comunitária, que assegure, tam-
re de marfim". A mansão dos eleitos onde pontificava o catedrátfco vi- bém, de acordo com a Constituição, o ensino religioso facultativo; c) pro-
talícío, voto soberano numa congregação formada quase exclusivamente porcionar a elevação do nível cultural do povo, preparando-o para a vida e
para o trabalho; d) colaborar para a melhoria do nível material do povo,
de catedráticos vitalícios. A jovem docência recrutada por cooptação
através da educação especializada; e) formar quadros destinados a interpre-
do catedrático para ser seu instrutor ou assistente. O vínculo da coopta- . tar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular.
ção criava os laços pessoais de fidelidade. A renovaçâ"o era barrada à
·porta dessa universidade, mesmo que o movimento estudantil protestas- O MCP organizou-se em três departamentos: o de Formação da
se em greve por participação de 1/3 nas decisões. Cultura (DFC), o de Documentaç1Io e Informaçâ"o (DDI) e o da Difusão
Quem fala para o próprio umbigo está condenado ao isolamento. da Cultura (DDC). Destes, o que parece ter tido um crescimento maior
Pior: a n1Io perceber o que se passa ao redor. Assim aconteceu com essa foi o Departamento da Formação da Cultura, integrado por dez divi-
universidade. Não percebeu a formação de um movimento popular cres- sões: Pesquisa (Diretor: Paulo Freire); Eruino (Anita Paes Barreto );Artes
cente e que, em algumas regiões, ameaçava ser hegemônico. Plásticas e Artesanato (Abelardo da Hora); Música, Dança e Canto
Vitorioso em algumas eleições locais e urbanas, o movimento po- (Mário Câncio); Cinema, Rádio, Televisão e Imprensa(.,.); T~atro (Luiz
. pular abriu espaço para o pensamento renovador em educação e absor- Mendonça); Cultura Brasileira ( ... ); Bem-Estar Coletivo (Geraldo Viei-
veu alguns intelectuais com experiência de l~tas polít~cas d~s. classes ra); Saúde (Arnaldo Marques); Esportes (Reinaldo Pes~oa).
subordinadas. Estes vão se transformar em mtelectualS orgarucos de O principal ideólogo do MCP foi Germano Coelho, um intelectual
uma política voltada para a cultura popular. bastante marcado pela influência do pensamento francês: Boimondeau,
Peup/e et Cu/ture, l.ebret, Dumazedier, Mounier, Freinet, Maritain, etc.
Onde o movimento popular venceu pelo voto (Recife e Natal) ou
Na 32~ Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciên-
em instituições que estavam atentas às mudanças sociais (Igrej~ Católica
cia - SBPC (1980), o professor Paulo Rosas, criador das Praças de Cul-
e União Nacional dos Estudantes - UNE), ocorreram oporturudades de
tura do MCP, relatou as realizações da organização até setembro de
práticas de cultura popular que conflitaram com a educaçã'o COr1Serva-
J 962:201 escolas, com 626 turmas; 19.646 alunos;rede de escolas radio-
dora, encastelada na cátedra universitária vitalícia.
fônicas; um centro de artes plásticas e artesanato; 4 52 professores e 174
Assim foi no Recife (Movimento de Cultura Popular- MCP), em monitores, ministrando o ensino correspondente a 19 grau, supletivo,
Natal (Campanha De Pé No Châ"o Também Se Aprende A ler); no educaçâ"o de base e educação artística; uma escola para motoristas-
âmbito da Igreja Católica (Movimento de Educaç1Io de Base - MEB); mecânicos; cinco praças de cultura (estas praças levavam ao povo local:
na UNE (Centro Popular de Cultura - CPC). Estes foram os movimen- biblioteca, teatro, cinema, tele-clube, música, orientação pedagógica, jo-
tos que emergiram em 1960-1961 e, pelo estudo de suas propostas e gos infantis, educação física); Centro de Cultura Dona Olegarinha;
práticas, é possível acompanhar um tempo de alvorada - curta alvo- círculos de cultura; galeria de arte; conjunto teatral, etc.
rada. A visão de mundo do MCP não era a da produção de bens cultu-

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rais para a_posterior doação ~~povo. P~Q_Ço@!_á!_~_,_~_participação do to, a hostilidade do poder público e a aus~ncia de dotaçõ~s orçamentárias
p<;:>VC?_~.Q__P.r.2~~s.u_<.ftil~b.Qnçã_g_![@!!"l!~~-fC?i fugd~e~IW.ra os-~ para fms de cultura popular.
nambucanos. Por isso, em 1963, o MCP recomendou uma estratégia que O movimentq popular gera o movimento de cultura popular. O movi-
privilegiasse atividades que se caracterizassem: mento popular, ao atingir determinada etapa de seu processo de desenvolvi-
mento, experimenta a necessidade de liquidar certos entraves de ordem cul-
a) pela oferta de assessoramento a esforços criadores de cultura desenvolvi- tural que se apresentam como barreiras características daquela etapa obsta-
dos pelos núcleos de cultura das próprias organizações populares; b) pela culizando a passagem para a etapa seguinte. A superação de tais dificul-
aplicação das várias modalidades de incentivos ao surgimento, ao floresci- dades se apresenta assim como condição para o prosseguimento dÓ pro-
mento e à multiplicação de tais fontes produtoras de cultura popular; cesso.
c) pela criação de mecanismos de estímulo e de coordenação capazes de
O movimento popular não gera um movimento cultural qualquer. Gera,
criar interdependências e ajudas mútuas entre as diversas organizações nos
precisamente, um movimento de cultura popular. Os interesses culturais do
seus diversos níveis de existência social, facilitando desse modo que as defi-
movimento popular têm, portanto, um caráter específico: exprimem a ne-
ciências de umas sejam completadas pelas potencialidades de outras e per-
cessidade de uma produção cultural,· a um só tempo, voltada para as massas
mitindo, em última análise, que as mais atrasadas encontrem condições fa-
e destinada a elevar o nível de consciência social das forças que integram,
voráveis para ascender ao nível das mais adiantadas.
· <;J_U_podem vir a integrar, o movimento popular. ·
É um erro grosseiro interpretar os tempos do populismo como to- A demanda por uma consciência popular adequada ao real e possuída
pelo projeto de transformá-lo é característica do movimento popular por-
,,, do mundo calçando 44 do mesmo modelo populista; No tecido do po-
que este se assenta nas três seguintes pressuposições:
pulismo emergiram algumas propostas marcadamente populares e de
a) só o povo pode resolver os problemas populáres;
pensamento coletivo construído em termos sérios. Não propostas pater-
· b) tais problemas se apresentam como uma totalidade de efeitos que não
nalistas e eleitoreiras. Basta uma reflexiro maior sobre esta última letra pode ser corrigida senão pela supressão de suas causas radicadas nas estru-
c, por exemplo. Seu alcance é o de um caminhar coletivo, solidário, de turas sociais vigentes;
todos, sem cultos a personalidades políticas. Sem caudilhismos. Demo- c) o instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política
crático. guiada por idéias que representam adequadamente a realidade objetiva.
-Mas, por que MCP?
O melhor é dar a palavra ao próprio MCP que abriu o seu Plano . Nas palavras do MCP percebe-se a forte congruência polític.a/
de Ação para 1963 com o seguinte diagnóstico: cultura popular. O segmento político, aqui identificado como um as-
Um movimento de cultura popular só surge quando o balan~lações censo democrático de proporções inéditas em Pernambuco, é conse-
de poder come~.-ª ser favorável
~~_,.~,.--~.-r "-,~- .•é.
aos setore_s popu)a.res dacoomunidade e de~-
··-··'-~--.~--····· -......... ...._,
qüência das vitórias eleitorais da Frente do Recife, competentemente
(favorável aos seus setores de elite. Esta nova situação caracteriza, de modo costuradas por Pelópidas Silveira, Miguel Arraes e outras lideranças po-
geneilc;;, o quadro à.túaf ctã vid·a brasileira. No caso particular de Pernambu- pulares. A Frente do Recife, congregando as forças progressistas e al-
co, primeiramente em Recife, logo depois em todo o Estado, aquele ascen- guns segmentos liberais e conservadores modernos, permitiu um progra-
so democrático assumiu proporções inéditas, daí resultando um elemento . ma de democratização do poder decisório em Pernambuco, a principal
qualitativamente novo na configuração do movimento de cultura popular.
"Casa-Grande" do Nordeste oligárquico. E, _y.a1!Íedida em que se criava
Em Recife, e a seguir em Pernambuco, as forças populares e democráticas
lograram se fazer representar nos postos-chave do governo e da administra- wn canal efetivo de comunicações-e-decisõés massajpoder político, foi
ção. A ocorrência dessa conquista, alcançada através do esforço organizado possível a prática de wna política de cultura popular/educação alterna-
das massas populares, criou novas condições que se traduzem na possibili- tiva à fechada unive:rnidade e, de um modo geral, à escola elitista, for-
dade do movimento de cultura popular ser financiado por recursos públicos mal, tradicional. Assim, a educação popular vai se concretizar num ins-·
e ser apoiado pelos poderes públicos. Tal fato é praticamente inexistente trumento em favor da transformaçiro social, pois o seu compromisso
no resto do país, onde, via de regra, os movimentos de cultura popular en- remete às forças políticas que se apóiam no movimento popular. Por
contram, como condições adversas a sua existência e ao seu funcionamen- isso diz o docwnento do MCP que "o movimento popular gera o mo-

18 19
vimento de cultura popular". Há um esforço de síntese, de caminhar É importante visualizar no SistemaPaulo Freire (evolução do Mé-
juntos, movimento popular/movimento de cultura popular. todo): a História, a Antropologia Cultural e a Metodologia. Em termos
Nos limites deste trabalho seria impossível relacionar todas as ex- de História, já antecipamos, no capítulo anterior, a sua visão, que é a da
periências e todos os instrumentos de trabalho criados pelo MCP, mas ocorrência de um ~rânsito do povo brasileiro, nos anos 60. Nesse proces-
também seria impossível deixar de mencionar a edição d~ umª cartilha so econômico, emergiria o fenômeno que Mannhein chama de "demo-
(Livro de leitura) prodl!Zida por Norma Porto Carr-e"trcreoelho-eJostna cratização fundamental", que implica umfCfesceme e--itreversível ati-
Maria Lopes Godoy com o objetivo de alfabetizar l!c:iultos, r~_peitando Vàçao ·no -povo-no-seu próprio proc-eS'so histórico, abrindo leques de par-
o seu unive.rso cultural e, também, que é no âmbitõdo MCP que vai ticip-ãÇ-ão-1nti:irctepeildentes de ordem econômico -social- político -cultu-
o_~orr~E~irtrll~i~ª gestaça:o do Sistema Paulo_F~e!Je_(janeiro de 1962). ral. ? povo deix!,_d~-~~!____9_Qj~!_()~ra ser~ujeito. Naturalmente, passava
por eStãpõstura uma forte influênCTiL<lê Álvaro Vieira Pinto, do desen-
O Sistema Paulo Freire volvimento nacionalista, do ISEB, do pensamento da época, enfun.
O Centro de Cultura Dona Olegarinha é, para a esquerda cristã, um dos Em termos 'de Antropologia Cultural, é o próprio Freire que afir-
"santuários" mais caros ("santuário" na concepça:o da Guerra do ma:
Vietnam). Ali nasceu o Método Paulo Freire, uina das armas mais utili- Pareceu-nos ( ... ) que o caminho seria levarmos ao analfabeto, através de re'-
zadas pelos "jovens católicos radicais" (Kadt) dos anos 60. duções, o conceito antropológico de cultura. A distinção entre os dois
O Centro Dona Olegarinha, do MCP, fundado no Poço da Panela mundos: o mundo da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em
(outro local histórico do Recife, onde, no século XIX, funcionou um sua e com a sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para
dos núcleos de luta pela Abolição), organizou-se em colaboraça:o com a as relações e comunicações dos homens. A cultura como acrescentamento
'I1,,"
~,,
paróquia de Casa Forte, que lhe cedeu uma casa para sua instalaça:o. que o homem faz ao mundo que ele não fez.
~I Na proposta de criação do Centro, encaminhada ao MCP, afirmou
A Metodologia do Sistema Paulo Freire implica o cumprimento
.,,,,
I
Paulo Freire:
.,,, das conhecidas etapas que devem ser executadas na seguinte ordem: le-
O Centro de Cultura é uma unidade educativa enfeixando um conjunto de vantamento do universo vocabular do grupo que se vai alfabetizar; sefe:-
motivos que agregam grupos, que os levam a atividades de objetivos seme-
ção neste uni verso dos vo~!Í_bulos geradores, sob um duplo critério: o da
lhantes. Estas atividades variadas, resposta a variações de núcleos diferentes
de motivação, se acham porém, entrelaçadas e sistematizadas, possibilitando rique~_ ~iêaeo·§lm:~lidade d<;>_~ggª~t:mto na realidade local,
assim um trabalho organicamente educativo. A televisão, a leitura, a cos· regional, naciõi1ã:l;Crlação de sifl:lãÇõeS existenciais típicas do grupo que
tura e o arranjo de casa, o recreio e a educação dos filhos são motivos gera- se vai alfabetizar; criação de fichas-roteiros, que auxiliam os coordena-
dores de atividades, a congregar grupos, a se alongarem em clubes, que dores de debates no trabalho; feitura de fichas com a decomposição das
compõem o "Centro de Cultura". Assim haverá tantos clubes no Centro famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores.
de Cultura quantos sejam os núcleos motivadores de atividades específi- No clima das Reformas de Base do Governo de Jango, o Sistema
cas. ( ... ) Os Clubes dentro do Centro são dimensões pr.óprias do Centro. Paulo Freire foi um verdadeiro achado. Através dele seria possível- era
Em janeiro de 1962 foi feita a primeira tentativa de alfabetização a previsão - acrescentar cinco milhões de eleitores ao corpo eleitoral
de adultos (quatro homens e urna mulher), empregando um método em 1965 (?) e assim desequilibrar o poder da oligarquia em favor do
eclético e com ajuda de meios visuais - urna proposta de Paulo Freire. movimento popular. De janeiro de 1962 (Dona Olegarinha) até fmal de
"Eirt dois meses, com aproximadamente trinta horas, um dos alunos 1963 e início de 1964, a proposta Pimlo Freire de alfabetização em 30
estava lendo trechos relativamente difíceis ( ... ). Em março formou-se horas saiu dos limites de uma quase anônima experiência com cmco
nova turma, para repetir a experiência, obtendo-se resultados semelhan· analfabetos para ser adotada nacional e oficialmente como proposta do
tes" - como informa, em dissertação para o Curso de Serviço Social de governo federal.
Pernambuco, Zaira Afy, coordenadora do Centro de Cultura Dona Ole- O seu grande teste ocorreu em Angicos, no interior do Rio Gran-
garinha até novembro de 1962. de do Norte, quando o presidente da República, acompanhado do

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tões sob uma ótica municipal-estadual-nacional-internacional, objeti·
governador do Estado, presenciou a sua aula de encerramento, em 2 de vando o fortilecimento do movimento popular. Além da mobilização
abril de 1963 e aflnnou: política, os comitês listavam os problemas mais urgentes dos bairros e
Hoje, minhas senhoras e meus senhores, nestas classes, aprende .a população as reivindicações mais veementes da população. Após convenções de
pobre e analfabeta de Angicos as primeiras let:_as ( ... ), ~as, acuna de tudo, bairros os comitês promoveram a Convenção Municipal, e esta, ao con·
alunos e alunas, jovens e adultos, todos estarao capacitados para ler tam- solidar as listas das reivindicações das bases, encontrou a "escola para
bém a grande Cartilha da República: a Constituição de nossa Pátria) que todos" e a "erradicação do analfabetismo" como a prioridade número
lhes fez cidadãos e que tem o dever de lhes proporcionar este mínimo de um. Ali estava escrita, então, a platafonna do candidato e o programa
alfabetização. do futuro prefeito. Djalma· Maranhão foi vitorioso nas urnas com 66%
Quebrando o protocolo falou, então, um dos alunos alfabetiza- dos votos.
dos, o sr. Antonio Ferreira que, entre outras coisas, afirmou: A administração de Djalma Maranhão, que se iniciou em novem-
Naquele tempo a~terior veio o presidente Getúlio Vargas, matar a "fom~ da bro de 1960, começou repe.tindo a experiência educacional de sua ges-
barriga" - que é uma doença fácil de curar. Agora, na epoca atual, vew o tão anterior (1956-1959), instalando o que se chamava na época de
nosso presidente João Goulart matar a precis~o da cab~ça que o pe~soal to- "escolinhas", isto é, a utilização de salas disponíveis, adequadas ao fun-
do tem necessidade de aprendê. Temos mmta necessidade das colSas que cionamento de uma classe de aula. Os custos assumidos pela prefeitura
nós não sabia e que hoje estamos sabendo. Em outra hora nós era massa, e se restringiam ao pagamento de um pro-labore a um monitor, instala-
hoje já não somos massa, estamos sendo povo. ções de carteiras escolares, distribuição de material didático e merenda.
·li
Essa distinção entre massa e povo havia sido inco~porada ao dis- As demais despesas eram custeadas pela comunidade: igrejas de todos os
curso da esquerda cristã dos anos 60 como su~ marca regtstrada ... credos, sindicatos, cinemas, teatros, cooperativas, albergues noturnos,
clubes de futebol, de folclore, etc.
Apesar do grande esforço desenvolvido (em meados de 196;3 esta-
A Campanha De Pé No Chão Também Se Aprende A Ler vam em funcionamento. 271 "escolinhas"), era impossível dirigir a ação
Em ordem cronológica o segundo movimento- de cultura popular a educativa para os bolsões de analfabetismo e miséria que se localizavam
emergir foi a Campanha De Pé No Ch~o Tam_b~m Se Aprende Ler, de- 1- na periferia da cidade, pois a abertura dessas classes se fazia de fonna
aleatória, de acordo com as possibilidades da comunidade e não da von-
senvolvida diretamente pela Secretana Muruc1pal de Natal (Rio G~ande
do Norte) na administração do prefeito Djalma Maranhão: fevereuo de tade do poder público.
1961. . . Ein janeiro de 1961, o Secretário Municipal de Educação, Moacyr
Aqui também a congruência moVimento popularfeducação popu- de Góes, se reuniu com o Comitê Nacionalista do Bairro Q.as Rocas e
lar é indissolúvel. recolocou a questão: o povo e o prefeito querem erradicar o analfabe-
De Pé No Chão foi fruto dos compromissos eleitorais do candida- tismo; mas, como construir escolas se não há dinheiro? Após mais de
to Djalma Maranhão, quando concorreu à Prefeitura de Natal em 1960. duas horas de discussão com 40 ou 50 homens e mulheres, veio uma
Então, as forças progressistas, nacionalistas, de esquerda: e;;~ruturaram sugestão Ho grupo: - "Se não tem dinheiro para fazer uma escola de al-
a campanha de seu candidato em organizações suprapart1danas chama- venaria, faça uma escola de palha, ml!S faça a escola"!
das "Comitês Nacionalistas" ou "Comitês Populares" ou '"de Rua", face A partir daí, a discussão se direcionou em detalhar a sugestão, vo-
a uma conjuntura política confusa, dividida em 13 legendas partid~as. tar e aprovar a proposta, que foi, posteriormente, encampada pelo pre-
A exemplo da Frente do Recife, em Natal fonnou-se ~.arco p~lít~co feito. Em 23 de fevereiro de 1961, Djalma Maranhão, pessoalmente, re-
muito amplo: de conservadores modernos aos jovens cnstãoS radlCats e crutava os alunos para as aulas que se iniciavam no conjunto de classes
aos comunistas. . ~ cobertas de palha de coqueiro sobre chão de barro batido que veio a ser
Durante a campanha foram organizados 160 comltes, numa po- chamado de Acampamento Escolar das Rocas.
pulação de 160 mil habitantes. Nesses comitês eram discutidas as ques-

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Um acampamento escolar era integrado de vanos galpões de conflito i?eológico do governo da prefeit';!ra com o governo do Estado,
30m x 8 m. Cada um era dividido em quatro partes (classes) através de que amphava a sua rede escolar com fmanciamento norte-americano da
pranchas de madeira, utilizadas como quadro-de-giz e quadro-mural. Aliança para o Progresso.
Em 1961 construíram-se dois acampamentos, nos bairros de Rocas e
Carrasco. Em 1962, o número cresceu para nove: Quintas, Conceição, Em termos estatísticos, De Pé No Chão registrou os seguin-
Granja, Nova Descoberta, Aparecida e Igapó. Com os dois anteriores, tes dados quantitativos: .
cobriam-se os limites da cidade. O funcionamento se fazia em três
turnos. Discentes: 1961: 2.000 alunos em março e 8.000 alunos em
Resolvido o problema do espaço físico para o funcionamento das dezembro;
classes de alfabetização e primeiras séries primárias (pelo menos em ter- 1962: 15.000 alunos; .
mos de emergência), De Pé No Chão se desdobrou em uma série de pro- 1963: 1 7.000 alunos só em Na tal (nlfo há dados do
jetos que sinalizaram etapas, as quais, em síntese, foram as seguintes: interior).
a) Ensino Mútuo. Em face da reação de alguns adultos a comparecer à
escola para a alfabetização (ainda não surgira o Método Paulo Freire é Docentes qualificados: 1961: 243 monitores;
De Pé No Chão ainda não editara o seu Livro de leitura para adultos), 1962: 41 O monitores e 26 orientadores/
os secundaristas alfabetizavam esses adultos nas próprias residências supervisores.
destes, em pequenos grupos. 1963: 500 monitores e 32 orientadores/
b) Praças de Cultura. Urbanização de uma área em torno de um parque supervisores.
infantil, quadra de esportes e posto de empréstimo de livros (bibliote-
ca). Em 1962 funcionavam 10 destas "praças", experiência aprendida índices de aprovação: 1961: 60%
no MCP. 1962: 74%
.,'I c) Centro de Formação de Professores. Etapa preparatória à superação 1963: 85%
da fase de emergência. Funcionamento em três níveis: Cursos de Emer-
gência, treinando monitores para a campanha em três meses; Ginásio O custo-aluno ·médio anual de De Pé No Ozão era de menos de
Normal, em quatro anos; Colégio Pedagógico, em mais três anos com dois dólares.
Escola de Demonstração. Prédio construído em alvenaria e devidamente
instalado em moldes acadêmicos. Ao longo de seu processo, De Pé No Chão enfrentou três desafios
d) Campanha De Pé No Chão Também Se Aprende Uma Profissão. Em básicos,.aos quais respondeu coni soluções que estavam ao seu alcance
1963, funcionavam cerca de 10 cursos de iniciação profissional, como de .movunento pobre que se desdobrava, com ás próprias forças, no
extensão da primeira campanha: meio de uma sociedade terceiro-mundista, conseqüentemente, pobre:
e)Interiorização da Campanha. Convênios de assessoramento técnico- a) O espaço físico;
pedagógico com sete prefeituras do interior do Rio Grande do Norte em b) A qualificação de seu pessoal docente;
1963. Previsão para 1964:40 convênios. c) A criação de seu próprio material didático.
f) Aplicação do Método Paulo Freire. Funcionamento de cinco círculos
de cultura, com dez classes. A primeira resposta, como já foi visto, ocorreu com a solução do acam-
g) Escola Brasileira Constndda com Dinheiro Brasileiro. Primeira ajuda pamento, proposta pelo movimento popular.
financeira do governo federal (Ministro Paulo de Tarso ), que possibili- . A qualillcaçlfo docente foi uma questão mais difícil. Em Natal só
tou a construção de pequenas salas de aula de alvenaria, partindo de haVIa uma Escola Normal, fundada 50 anos atrás. A universidade estava
estruturas metálicas pré-fabricadas. Estas classes acrescentavam-se aos em processo de implantação. A solução foi a criação de cursos de emer-
acampamentos, que continuavam funcionando. O seu nome revela o gência para qualificar docentes leigos, através de formação intensiva. A

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f) Ruptura com a teoria e a prática da classe dominante de que ela é a
criatividade se manifestou no esquema de acompanhamento do desem- única depositária da cultura e doadora dê conteúdos e formas de edu-
penho profissional desses docentes: 20 monitores trabalhavam sob a cação; isto é, demonstrou a capacidade das classes subordinadas para
orientaçãofsupervisa'o de um docente diplomado por Escola Normal ou propor e executàr uma política e uma prática de educação.
Faculdade de Filosofia. Aliou-se, entã'o, o pensamento acadêriúco à
prática popular, isto é, somou-se a técnica dos docentes diplomados à
Na primeira parte dos anos 60, em função da crise sócio-político-
criatividade dos mqnitores, estes verdadeiros "doutores" em superar di- . econômica e da busca de soluções alternativas, houve uma geral expec-
ficuldades sociais pela própria vivência, sabendo "dar o pulo do gato" tatiya em relação ao novo. Assim, os movimentos de cultura popular
e "tirar leite de pedra" ... O conhecimento passou a ser construído co- foram permeados também por uma forte .influência de dois importan-
mo resultante de duas vertentes, a acadêmica e a popular, e cada nascen- tes acontecimentos de ordem internacional: a Revolução Cubana e o
te oferecia uma contribuição valiosa para o processo de educação. Concílio Vaticano II. No Brasil, no clima das Reformas de Base, os co-
A criação do material didático foi o terceiro grande desafio. No munistas trouxeram o PCB para uma semi-clandestinidade e os católi-
início, De Pé No Chão distribuía, acriticamente, as cartilhas tradicio- cos concluíram um caminho de lutas da JUC de contestaçã'o ao capita-
nais. Assim, crianças que não tinham em casa feijã'o nem arroz alfabe- lismo, criando a Ação Popular - AP, que optou pelo socialismo.
tizavam-se na escola com a silabaçã'o de "ovos de páscoa". Evidente- Em l 96 l, a nova diretoria da UNE foi eleita, integrando em
mente este conteúdo não tinha nada a ver com a proposta. Enta-o, no "frente única" cristãos e marxistas. De Pé No Chão criou um espaço
fmal de 1962 e início de 1963, De Pé No Chão pa~ou a produzir o seu para a prática dessa proposta: lado a lado, sem perda de suas identidades
próprio material didático, através da metodologia conhecida como "uni- ideológicas, comunistas e cristãos de esquerda, junto a liberais e conser-
dades de trabalho". vadores modernos, construíam uma política de cultq,ra popular, ex-
Semanalmente a orientadora;supervisora reunia-se com os seus pressão educacional do movimento popular no Rio Grande do Norte.
vinte monitores. Mas, essa reunião não seria mais apenas de revisão e Isto é visível no documento que De Pé No Chão apresentou ao
correção do trabalho docente dos monitores. Sua pauta ganhava ~ais I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular (Recife, 1963),
um item: coktar e discutir sugestões para os conteúdos que de_!~nam documento esse que deve ter sido o seu limite ideológico, permeado
~-ser ministrados: Quinzenalmente as orientadorastsuperVisoras reuniam- pelas influências da AP e do PCB e que terminava com a legenda de José
~e com a-dir-êÇa-o e a equipe técnica do Centro de Formação de Profes- Marti, o herói histórico do mais antigo processo de libertação de Cuba:
sores. Em um dia de trabalho, as sugestões dos monitores eram estuda- Há ( ... ) um entrelaçamento dialético entre cultura popular e libertação na-
das, compatibilizadas; definia-se urna direçã_o de aprend~a~em e es~ cional -socialismo e luta anti~imperialista. Por conseguinte, embora pareça
''matéria-prima" transformava-se nos conteu~os p.rop1.deut1cos ~efm~­ em princípio paradoxal, a cultura popular tem papel de instrumento de
dos em níveis de alfabetização, 1~. 29-, 3~ sénes prunánas, os qums,rru- revolução econômico-social, mas, em última instância, a afirmação e vitória
meografados, voltavam às salas de aula dos monitores. dessa revolução é que irá possibilitar o surgimento das mais autênticas cria-
Na esteira do tempo, De Pé No Chão deixou, possiveh:nente, al- ções populares, livres das alienações que se processam no plano político e
econômico. Fica claro, portanto, o mais profundo sentido dialético da
gumas heranças, em funçãÓ de seus processos de rupturas: revolução popular que não é um fim, porém um meio de conseguir a
a) Ruptura com o pensamento colonizador, na tentativa de pensar por libertação total do povo, fazendo-o construtor do seu destino. "NENHUM
si próprio; . POVO -g DONO DO SEU DESTINO SE ANTES NÃO -g DONO DE SUA
b) Ruptura do círculo pauperismo-analfabetismo-pauperismo; . CULTURA''.
c) Ruptura com o autoritarismo oligárquico no processo de dec1sões;
d) Ruptura com a hierarquia acadêrtlica, ao gerar seus próprios quadros Movimento de Educação de Base
docentes; . Em 21 de março de 1961, o governo federal (Jânio Quadros) institucio-
e) Ruptura com a "ditadura" do prédio escolar (não confundir escola nalizo.u os entendimentos com a Igreja Católica (decreto 50370), e
com prédio escolar); -----

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criou-se o MEB, em ordem cronológica a terceira organizaça'o de cultura No Brasil, há reconhecimento da situação por parte dos grupos cultural-
popular do período. O principal veículo utilizado pelo MEB foi o rádio, mente marginalizados. Não há, no entantó, plena consciência de todas as
fruto, de experiências acumuladas pela Igreja, principalmente no SAR implicações dessa marginalização, no plano da pessoa humana. Há, por ou-
(Serviço de Assistência Rural) no Rio Grande do Norte. tro lado, grupos de pessoas - operários sindicalizados, camponeses politi-
A área inicial de atuação do MEB foi a do subdesenvolvimento camente organizados, estudantes, militantes políticos -para os quais odes-
brasileiro - Norte, Nordeste e Centro-Oeste -, expandindo-se poste- nível se tomou consciente, obrigando-os a optar por uma ação transforma-
dera dos padrões culturais, políticos, econômicos e sociais que o determi-
riormente para outras regiões (decreto 52267 /63). nam. Dessa ação, resulta um conflito ideológico, já que os grupos dominan-
O MEB estruturou-se através de um conselho diretor nacional, co- tes (social, econômica, política e culturalmente) a ela opuseram seus inte-
missão executiva nacional, equipe estadual e equipes locais. O seu êxito resses.
maior foi registrado quando as equipes locais assumiram papéis mais de- Daí resulta que qualquer atitude frente à cultura popular é necessaria-
cisórios no processo e a intervença-o dos leigos no seio da hierarquia mente situada no conflito ideológico. Cultura popular no Brasil não é um
manifestou-se através de iniciativas mais adequadas às realidades onde fenômeno neutro, indiferente; ao contrário, nasce do conflito e nele desem-
atuavam. boca necessariamente.
Assim, o I Encontro de Coordenadores (dezembro, 1962) tomou
como base "a idéia de que a educação deveria ser considerada como co-
municação a serviço da transformação do mundo" e que o MEB seria Centro Popular de Cultura
um ·movimento "engajado com o povo neste trabalho de mudança so- O Arena era o porta-voz das massas populares num teatro de cento e cin-
cial, comprometido com este povo e nunca com qualquer tipo de estru- qüenta lugares.
tura social ou qualquer instituição que pretenda substituir o povo".
Para o MEB, a conscientização era intrínseca à própria educação, Esta irônica e sofrida constatação da realidade, diagnosticada por Odu-
pois ela ajudava alguém a tomar consciência do que é (consciência de valdo Viana Filho - o Vianinha - foi o ponto de partida para a cria- ·
si), do que são os outros (comunicação entre sujeitos) e do que é o ção do Centro Popular de Cultura, órgão cultural da UNE, com regi-
mundo (coisa intencionada), como informa José Pereira Peixoto. mento interno próprio e autonomia administrativa e fmanceira, crono-
A tendência católica radical produziu alguns documentos impor- logicamente o quarto grande movimento de cultura popular dos anos
tantes no período, dos quais destacaram-se o texto Algumas diretrizes 60.
de um ideal histórico cristão para o povo brasileiro (congresso comemo- Agora, o teatro não tinha apenas 150 lugares: a platéia era todo o
rativo dos dez anos da JUC) e o Documento Básico da Ação Popular. território nacional, ocupado pela UNE volante. O sonho de Vianinha
O MEB foi o único movimento de educação e de cultura popular ocupava um maior espaço:
que sobreviveu ao golpe de Estado de 1964, por força do convênio com
t preciso produzir conscientização em massa, em escala industrial. Só assim
a União que fixara as datas-base de 1961/65. Com o recuo da hierar-
é possível fazer frente ao poder econômico que produz alienação em massa.
quia da Igreja face às novas condições políticas, em 1966, o MEB "per-
deu ·as suas características de Movimento de Educação Popular e tor- Nos prirnei:ros momentos do CPC, ao lado de Vianinha, estavam
nou-se uma forma tardia de Educação Fundamental", como analisa Leon Hirzman e Carlos Estevam Martins, que foi o seu primeiro diretor,
Carlos Rodrigues Branda-o. A estatística de 1964 é indicativa da perda seguindo-se Carlos Diegues e Ferreira Gullar.
do impulso já registrado: em dezembro restam 4 .5 54 das 6 .218 escolas O referencial teórico do CPC está explicitado em dois textos bási-
radiofônicas atuantes em março do mesmo ano ... cos para a compreensa-o do período e da proposta: A questão da cultura
Que o MEB fale por ele mesmo num dos seus momentos mais popular, de Carlos Estevam, e A cultura posta em questão, de Ferreira
altos (1963), através do documento Cultura popular: riotas para estudo Gullar. O primeiro aflrma que é necessário distinguir a arte do povo da
elaborado pela sua Equipe Nacional, resgatado e publicado por Osmar arte popular e, ambas, da arte praticada pelo CPC a que ele chama de
Fávero: "arte popular revolucionária".

28 29
O CPC alcançou uma produç[o variada em teatro (montagem de Todos receberam recursos públicos, mas o modo e os objetivos de
cerca de vinte peças), cinema (um fl.lme e um documentário), música sua aplicação foram diferenciados. O MCP, ~11ja meta era assegurar edu-
(além de shows, a gravação de dois discos), literatura (vinte e seis títulos caça-o gratuita para todos, por ser uma sociedade civil, constituiu.-se nu-
editados na coleção Cadernos do Povo, além de outras publicações), ma rede paralela à do ensino público então existente. O MEB teve
cursos de extens[o, etc. O teatro de rua, de "caixotinho", foi o forte do (e tem) os seus objetivos confessionais e catequéticos, mesmo que às
CPC; mas o filme Cinco vezes favela e o disco O povo canta alcançaram, vezes não estejam explicitados. O CPC tentou organizar-se como empre-
também, grande repercusão. sa prestadora de serviços, mas teve de depender da União, pelo menos
A partir de setembro de 1963 (I Encontro Nacional de Alfabeti- para dois de seus projetos principais: a construça-o do teatro no prédio
zação e Cultura Popular), o CPC reviu a sua diretriz política e começou da UNE e a campanha de alfabetização (1963). O único movimento que·
a abrir maior espaço para trabalhos mais permanentes e sistemáticos aplicou recursos públicos dentro da rede de escolas públicas foi a Cam-
junto às classes subordinadas, a partir da alfabetização. panha De Pé No Chão Também Se Aprende A Ler. Por isso, em Natal, a
O projeto mais ambicioso do CPC terá sido, possivelmente, a defesa da escola pública na-o foi somente um discurso: a prática ocorreu
construção do seu próprio teatro no prédio da UNE, situado na Praia do na Secretaria Municipal de Educação com a irllplantação e implementa-
Flamengo, no Rio, que foi inaugurado no dia 30 de março de 1964. No ção de uma rede escolar que assegurou matrícula para todos numa polí-
dia seguinte, este teatro foi incendiado pelos lacerdistas, no clima de tica de ensino gratuito e laico. Por outro lado, o único movimento que
"caça às bruxas" gerado pelo golpe de Estado. penetrou eficie~temente na área rural foi o MEB.
Revisitando o Manifesto do CPC (março, 1962), no texto A ques- Finalmente, para completar a moldura histórica do período, regis-
tão da cultura popular encontra-se uma visão de mundo jovem e oti- tre-se o impulso de proliferação dos movimentos de cultura popular no
mista: Brasil: se em 1960-1961 surgiram as quatro organizações já referidas, no
Pela investigação, pela análise e o devassamente do mundo objetivo, nossa I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, realizado em
arte está em condições de transformar a consciência de nosso público e de setembro de 1963 no Recife, estiveram presentes 77 movimentos, dos
fazer nascer no espírito do povo uma evidência radicalmente nova: a com- quais 44 desenvolviam atividades de alfabetização de adultos.
preensão concreta do processo pelo qual a exterioridade se descoisifica, a O plenário de 158 delegados, 69 observadores e 22 convidados
natu'ralidade das coisas se dissolve e se transmuda. (. .. ) A arte popular re- promoveu o intercâmbio de experiências e estudou a viabilidade de se
volucionária aí encontra o seu eixo mestre: a transmissão do conceito de in~ criar uma coordenação nacional dessas organizações. O primeiro objeti-
versão da práxis, o conceito do movimento dialético segundo o qual o ho-
vo foi alcançado; o segundo, todavia, frustrou-se, apesar de uma segun-
mem aparece como o próprio autor· das condiçÕes históricas de sua existên-
cia. (... )Nenhuma arte poderia se propor finalidade mais alta que esta de se
da tentativa ter sido feita, quando da realização do Seminário Nacional
alinhar lado a lado com as forças que atuam no sentido da passagem do rei- de Cultura Popular Ganeiro de 1964, Rio).
no da necessidade para o reino da liberdade.

Completando a moldura
Os quatro movimentos pioneiros de educação e cultura popular dos
anos 60 e mais o Sistema Paulo Freire fazem parte de uma História na
qual o país buscava caminhos alternativos às propostas tradicionais e
conservadoras. Todos foram fl.lhos da crise sócio-~~ÇQQQ!!)lca
dos anos 50 -·6o e terminaram por ser peças d~égia política maior:
as-propostas 'dê Reformas de Base que sepultaram o parlamentarismo e
reintroduziram Jango no presidencialismo. Todos caminharam na mes-
ma direção.

30 31
IV. 1964- Os Acordos MEC-USAID: cional e o véu do segredo começou a ser dis~ipado.
Em Direção aos 11 Anos de Chumbo" 1964 é o oposto de 1958, mas, a bem da verdade, diga-se que a in-
terferência norte-americana nas coisas da educaça-o nacional, camuflada
de "assistência técnica", já vinha de longe e não era um fenômeno ex-
clusivamente brasileiro. Esses interesses se manifestaram desde a Guerra
Fria e cresceram no final dos governos Dutra e JK. Todavia, foi no go-
verno Castelo Branco que a desnacionalização do campo educacional
tomou formas nunca vistas.
A tomada do poder no Brasil em 1964 n[o foi um simples golpe latino- Os Acordos MEC-USAID cobriraJ!!__todo o espectro da educaçlto.
americano nem mais um pronunciamiento, e sim uma articulação políti-
, A
n~cion_al' isto é' o ensino primár!o;médlo e superior~ a'ârticulaÇão' entre
ca de profundas raízes internas e externas, vinculada a interesses econo- os diversos níveis, o tr·~inamento de professores e a produça-o e veicula-
micos sólidos e com respaldos sociais expressivos. Não foi coisa de ama- ção de livr()S _didáticós. A -proposta da USAID não de1xava brechà. Só
dores. Tanto é assim que, passados os primeiros momentos de perplexi- mesrifo a reaça-o estudantil, o amadurecimento do professorado e a de-
dade, o novo Estado emergiu do figurino do IPES com objetivos progra- núncia de políticos nacionalistas com acesso à opinião pública evitaram
mados, metas estabelecidas e, naturalmente, com os homens que se a total demissão brasileira no processo decisório da educação nacional.
apossaram do poder. .· Melhor do que falar é demonstrar. Daí a transcrição da lista das
· Como resultado da força, o Estado que se reorganizava optou pela ementas dos acordos MEC-USAID e suas respectivas datas, compilada
coerção (no sentido usado por Gramsci) como caminho para difundir a por Otaíza de Oliveira Romanelli: a) 26 de junho de 1964: Acordo
sua concepç1fo dé mundo. A chamada ''limpeza de área" - na lingua- MEC-USAID para Aperfeiçoamento do Ensino Primário; b) 31 de mar-
gem dos IPMs (Inquérito Policial Militar)- foi dirigida contra os setores ço de 1965: Acordo MEC-Contap (Conselho de Cooperação Técnica da
mais progressistas que, no governo anterior, tentaram alcançar a hege- Aliança para o Progresso)-USAID para melhoria do ensino médio; c) 29
monia em sintonia com as classes popularesfsubordinadas, no bojo das de dezembro de 1965: Acordo MEC-USAID para dar continuidade e su-
campanhas das Reformas de Base. plementar com recursos e pessoal o primeiro acordo para o ensino pri-
Os intelectuais comprometidos com a revolução, com o reformis- mário; d) 5 de maio de 1966: Acordo do Ministério da Agricultura-
mo 6u mesmo com o liberalismo já não serviam, não eram confiáveis. Contap-USAID, para treinamento de técnicos rurais; e) 24 de junho de
' No campo da educação houve um corte profundo, pois, aos olhos 1966: Acordo MEC-Contap-USAID, de assessoria para a expans[o e
do novo sistema, a educação com só poderia ser "subversão". aperfeiçoamento do quadro de professores de ensino médio e proposta
Como fazer:õêõirtrole do sistema educaciol'Iâf,ãtrãvés de técnicas de reformulação das faculdades de Filosofia do Brasil; f) 30 de junho de
que facilitassem a divulgaçél'o da nova ideologia condizente com ·OS inte- 1966: Acordo MEC-USAID, de assessoria para a modernização da adrni-
resses do capitalismo? . nistraça-o universitária; g) 30 de dezembro de 1966: Acordo MEC-INEP-
Novos mecanismos foram desencadeados: a repressão se abateu Contap-USAID, sob a forma de termo aditivo dos acordos para aperfei-
sobre os intelectuais comprometidos com as reformas, e o Estado foi çoamento do ensino primário; nesse acordo aparece, pela primeira vez,
buscar meios de criar novos quadros. Não precisou procurar muito. À entre os objetivos, o de "elaborar planos específicos para melhor entro-
ma-o estava a sua fonte de poder: a Aliança para o Progresso. A~~-~· samento da educaça-o primária com a secundária e a superior"; h) 30 de
agência confiável, desincumbiu-se da missão. -- - dezembro de 1966: Acordo MEC-Sudene-Contap-USAID, para criação
Assumiu esta, assim, ~.efa...Q!,!~~!~~na_ção da~~cJ.lJ~Ç~O nac.io- do Centro de Treinamento Educacional de Pernambuco; i) 6 de janeiro
n~l, sigilosamente, nas gestões de três ministros de Eélucaç[o (Suphcy de 1967: Acordo MEC-SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Li-
-ae Lacerda, Raymundo Moniz de Araga-o e Tarso Dutra) até que, amea- vros)-USAID, de cooperação para publicações técnicas científicas e
çado de processo de crime de responsabilidade pelo deputado Márcio educacionais (por esse acordo, seriam colocados, no praz~ de três anos,
Moreira Alves, o sr. Tarso Dutra prestou informações ao Congresso Na- a contar de 1967, 51 milhões de livros nas escolas; ao MEC e ao SNEL

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caberiam apenas responsabilidades de execução, mas aos técnicos da
USAID todo o controle, desde os detalhes técnicos de fabricação do li-
vro até os detalhes de maior importância como: elaboração, ilustração,
editoração e distribuição de livros, além da orientação das editoras bra-
sileiras no processo de compra de direitos autorais de editores não-brasi-
leiros, vale dizer, norte-americanos); j) Acordo MEC-USAID de refor-
mulação do primeiro acordo de assessoria à modernização das universi-
dades, então substituído por assessoria do planejamento do ensino su-
perior, vigente até 30 de junho de 1969; k) 27 de novembro de 1967:
Acordo MEC-Contap-USAID de cooperação para a continuidade do pri- RODA-VIVA
meiro acordo relativo à orientação vocacional e treinamento de técnicos
rurais; 1) 17 de janeiro de 1968: Acordo MEC-USAIDpara dar continui-
Luiz Antônio Cunha
dade e complementar o primeiro acordo para desenvolvimento do ensino
médio.
Os acordos MEC-USAID encerraram essa fase dos movimentos de
ed.ucação e cultura popular, dos quais outras formas surgiram no fmal
dos anos 60 e seguem vigorosas até hoje, como por exemplo as CEBs
(Comunidades Eclesiais de Base).
Aqueles movimentos tiveram os seus equívocos e debilidades,
próprios de uma época de fortes tendências culturalistas e de otimismo
pedagógico, além das limitações do nacionalismo que privilegiava a luta
antiimperialista em detrimento da discussão sobre a luta de classes no
âmbito da sociedade. Mesmo assim tiveram a capacidade de se transfor-
mar, impulsionados por uma prática junto às classes subordinadas.
Assim,a crítica feita por José Willington Germano a um desses
movimentos, parece falar a todos eles quando afirma:
De um movimento que, de início, pretendia, simplesmente oferecer educa-
ção para todos, De Pé No Chtro Também Se Aprender A Ler avança
conceptualmente e passa a encarar a educação e a cultura como instrumen·
tos de libertação. Não se tratãvi, pois, de um projeto que tivesse em vista in-
-tegrar os marginalizados à sociedade, fornecendo aos indivíduos escolariza-
dos a possibilidade de ascensão social. Tratava-se, isto sim, de transformar
essa mesma sociedade, e a educação e a cultura exerceriam um papel pre-
ponderante nesse processo.
Os movimentos de educação e cultura popular foram destruídos e
os seus educadores e aliados cassados, presos e exilados. Para eles, como
para as lideranças dos trabalhadores, começa o caminho em direção aos
"anos de chumbo", expressão que é título do belo fllme de Margarethe
Von Trotta. Terminam os tempos da "Voz Ativa" e começa a girar a
''Roda-Viva".

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Secretaria de Ed ucaça-o do Município de Natal, ordenou o abandono
I. "Educação" pela Repressão dos acampamentos e a incineraça-o dos acerv~s das bibliotecas.
Interventores foram nomeados para a Universidade de Brasílja,
cada um deles dando sua contribuição pessoal para a descaracterizaçã-o
daquele empreendimento arrojado; a Cruzada ABC, com sede em Reci-
fe, dirigida por missionários norte-americanos e funcionando com gene-
rosas verbas do governo de seu país, procurava substituir o PNA e o
MEB na educação das massas para incorporá-las ao desenvolvimento do .
capitalismo moderno.
No dia seguinte ao da posse do primeiro Presidente da República civil Na direça'o do sistema educacional, os defensores do ensino públi-
depois de 20 anos de generais-presidentes, a imprensa trouxe um balan- co e gratuito foram sendo substituídos pela aliança dos que lutavam pe-
ço sintético da ditadura: 17 atos institucionais, 130 at~s. complementa- la hegemonia da escola particular subsidiada pelo Estado, com os milita-
res (todos contra a Constituiç~o, mesmo a da Junta Militar): 1.1 de~re­ res ~mpenhados na repress[o às atividades por eles julgadas subversivas.
tos secretos e 2.260 decretos-leis. Para não atrapalh,ar essa funa legtfe- Tomando mais uma vez o caso exemplar de Anísio Teixeira, além de ter
rante do regime militar, o Congresso NaCional, mesmo mutilado por su- sido demitido da reitoria da Universidade de Brasília, já em abril de
cessivas cassações de mandatos de parlament~r;s? foi ~osto em recesso 1964 na'o teve seu mandato renovado no Conselho Federal de Educa-
forçado por três vezes. Foram banidos do terntono nacwnal, por razões ça'o, de onde saiu, em princípios de 1968, com o silêncio cúmplice de
políticas, 80 brasileiros. Cerca de 400 pesso~s fora.m mortas ou se e~­ seus colegas. Durmeval Trigueiro, outro ativo combatente pelo ensino
contram desaparecidas, devido à onda repressiva m~Is forte de no~a his- público e gratuito, foi também retirado daquele conselho, além de ser
tória. Uma dezena de milhar de brasileiros deixaram seu país em VIrtude compulsoriamente aposentado do cargo de professor na Universid<l;de
de ameaças e perseguições de caráter político-ideológico. . Federal do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os conselheiros que concor-
A repress~o-foLa __primeira medida tomada pelo governo J.mp~sto davam com as novas orientações da política educacional tirlham seus
pelo golpe de J2~-.:_R~press~o a tu~o e a todos considerados suspeitos mandatos sucessivamente renovados. Quebrava-se, assim, a resistência,
depr]tic·as-ou mesiT}_O j_~~l~s_s.\lbversiva~. A I?era a~usa.ção_d~, que u~a remanescente no CFE, à colocaça'o dos recursos governamentais a servi~
pessoa, um-programa educativo ou um Livro tiVesse ms~uaçao comurus- ço dos interesses de agências interpacionais e à submissão da política
ta" era suficiente para demissão, suspensão ou apreensao. . . . educacional brasileira aos seus ditames.
Assim, reitores foram demitidos, programas educacwnais e siste- Professores e estudantes universitários foram expulsos das insti-
mas educativos foram atingidos. Alguns casos dramáticos exemplifica- tuições onde lecionavam ou estudavam. A denúncia de professores às
rão isso. Anísio Teixeira, que ocupava a reitoria da Universidade de comissões de investigação passou a ser um instrumento a mais de políti-
Brasl1ia, foi sumariamente demitido, logo nos primeiros dias do golpe. ca universitária. A Universidade de Sa'o Paulo, das mais antigas, a maior
O Programa Nacional de Alfabetização, que utilizava o Método ~ulo e a mais conceituada das universidades brasileiras, foi palco dessa tene-
Freire, que o dirigia, foi liquidado, até mesmo em te:~os financeuos. brosa prática. O reitor Luís Antônio da Gama e Silva, ministro da Justi-
Milhares de projetores de diafilmes, importados da Polorua (o loc~ de fa- ça e da Educaça'o nos primeiros dias do governo golpista, aproveitou o
bricação trazia a marca do "comunismo") foram vendidos a partlcul~res período de caça às bruxas para demitir professores que lhe faziam opo-
a preço de liquidaça'o. O Movimento de Educação de.Base,.desenvolYldo siç[o e consolidar seu poder na universidade. Mais tarde, como ministro
pela Igreja Católica, principalmente. no Nordest.e, fo1 co~tldo por todo.s da Justiça do general-presidente Costa e Silva, o professor Gama e Silva
os lados, tendo seu material educativo apreendido, morutores persegm- notabilizou-se por trazer sempre à ma'o o rascunho de um elenco de me-
dos e verbas cortadas. Os integrantes da equipe dirigente da Campanha <!.i.cias_ cL~_.ei1Ql1recimento c:Ia _f~P.~_es_~~o política, o que acabou vingando
De Pé No Chão Também Se Aprende A Ler foram presos por seis meses, em 13 de dezembro de J268t com a edfÇãõ~dô Ato Institucionql nQ 5.
<L.~ •• ·-· •• -· - - - -- • ---·· -- ~-"'~--~

no míRimo. Um oficial da Marinha de Guerra assumiu o "comando" da


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Até mesmo a competiçlfo propriamente acadêmica passou a ter a Se o infrator fosse professor ou funçionário, seria demitido (ou
mediaçlfo da repressão política. Em 1964, Florestan Fernandes, o gran- dispensado), e proibido de ser nomeado (ou admitido ou contratado)
de sociólogo da USP, preparava-se para disputar uma cátedra de sociolo- por qualquer outro estabelecimento de ensino pelo prazo de cinco
gia naquela universidade. Para isso, tinha uma brilhante tese sobre a in- anos. Se fosse estudante, seria desligado do curso, e proibido de se ma·
tegraçlfo do negro na sociedade de classes, que veio a receber, posterior- tricular em qualquer outro estabelecimento de ensino por três anos.
mente, importante prêmio internacional. Seu oponente, ao contrário, A apuração das acusações de infraç[o deveria ser feita por pro·
era uma pessoa cuja bibliografia a história da universidade brasileira não cesso sumá~io, tudo correndo muito rápido, tendo o acusado apenas 48
registra. Tinha, entretanto, o cacife de ser amigo do governador golpista horas para apresentar sua defesa. O processo seria conduzido por fun-.
Adhemar de Barros. Pois bem, por interferência do governador, Flores- cionário do estabelecimento de ensino, por iniciativa do dirigente do
tan Fernandes foi preso às vésperas do concurso, o que deixava sem estabelecimento, da Divislfo de Segurança e Informaç[o do MEC ou "de
competidor o obscuro pretendente. Mas, como nos primeiros tempos do· qualquer outra autoridade ou pessoa". O mais incrível é que, embora o
período de governo autoritário ainda havia algumas áreas de liberdade, a dirigente do estabelecimento fosse reconhecido agente da repressão, era,
opinião pública reivindicou a imediata libertação de Florestan Fernan- ao mesmo tempo, visado por ela. A simples remessa de auto de prisão
des. Solto a tempo, frustrou-se a conspiraçlfo policial-acadêmica, e Flo- em flagrante ou a mera comunicação do recebimento da denúncia cri-
restan Fernandes copquistou a merecida cátedra. minal, feita por "autoridade competente", obrigava.o diretor de colégio
Pouco tempo; porém, nela permaneceu, pois a onda repressiva ou faculdade e reitor de universidade a instaurar o processo sumário. Se
acionada pelo Ato Institucional nQ 5 aposentou-o, retirando da USP e nlfo fizesse isso, e não proferisse decisão em 48 horas depois de recebido
do meio universitário brasileiro um dos mau férteis de seus cientistas o processo, o dirigente ficaria sujeito às penalidades ·do próprio decreto·
sociais. Beneficiaram-se, com isso, as universidades estrangeiras, que pas- lei, perdendo o cargo, sendo expulso do estabelecimento e proibido de
saram a disputar o privilégio de ter Florestan Fernandes como professor lecionar, como um professor "subversivo" comum.
visitante. Houve universidades que incluíram a maior parte dos dispositivos
Mas nrro foi apenas a alta administração do sistema educacional, desse decreto-lei em seus estatutos, não podendo, é Claro, impedir que
os membros dos conselhos universitários e os grandes nomes da ciência outras contratassem os professores ou matriculassem os estudantes ex-
que foram atingidos pela sanha repressiva. Funcionários do MEC, das pulsos. A Universidade de Brasuia, por exemplo, lançou mão desse ex-
secretarias estaduais e municipais de educaçrro, e simples professores pediente repetidas vezes. Em julho de 197 6, o reitor capitão-de-mar-e-
também foram demitidos ou, se mantidos em seus cargos, ameaçados guerra José Carlos de Azevedo expulsou sete estudantes e suspendeu 12
constantemente, na tentativa de se obter, pelo medo, seu consentimen- por 18 meses; em julho de 1977, expulsou 30 e suspendeu 34 por perío·
to ao novo regime. dos diversos, sem invocar o decreto-lei 4 77, pois o regimento da univer-
O famigerado decreto-lei 4 77, de fevereiro de 1969, representou sidade era bastante para a aplicaçlfo dessas pesadas penas.
a expressa-o mais acabada das ameaças da repressão política e ideológica Impossível é avaliar, com certeza, a eficácia dessa norma repressi-
à universidade brasileira. va sobre os professores, mesmo sabendo-se que poucos foram expulsos
Essa norma repressiva dizia que cometeria ''infração disciplinar" o com base nela ou na versão assimilada pelos estatutos de universidades
professor, o aluno ou o funcionário de estabelecimento de ensino públi- e de faculdades. Seu "bom comportamento", a aceitação amarga da au-
co ou privado que se enquadrasse em diversos casos, entre os quais os tocensura, foi a face escondida do tenebroso sucesso desse ato arbitrârio.
seguintes: aliciar ou incitar à deflagraçrro de movimento que tenha por Foi só em 1979, após muitos anos de lutas contra o decreto-lei
finalidade a paralisação de atividade escolar ou participar nesse movimen- 4 77 e as outras medidas repressivas do governo autoritário, que um
to; praticar atos destinados à organizaç[o de movimentos subversivos, projeto de lei tratando da representação estudantil foi aprovado pelo
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados ou deles participar; con· Congresso Nacional. Entre outras providências, revogava o decreto-lei
duzir ou realizar, confeccionar, imprimir, ter em depósito, distribuir 4 77, no que dizia respeito, também, aos professores e funcionários.
material subversivo de qualquer natureza. Com isso, abriu-se espaço para a mudança dos estatutos e regimentos

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das universidades e faculdades naquilo em que procuravam se valer do só possível num ambiente
. . de liberdades democráticas
. . A hist'ona
· mos-
draconiano decreto-lei. trou que esse~ ~es1stentes tinham razão, e, progressivamente, os desespe-
Mesmo antes de baixado o Ato Institucional nQ 5 e seu descen- rados e os. apatlcos voltam a reunir-se a eles nas lutas pela democratiza-
dente direto, o decreto-lei 4 77, todos os professores ou candidatos ao ça'o do ensmo em nosso país.
magistério eram considerados suspeitos de subversão, até que mostras-
sem o contrário.
Tinham de. provar que sobre eles não recaía culpa de subversão.
As universidades passaram a exigir dos candidatos ao magistério, mesmo
à precária categoria de colaborador, a apresentação do "atestado de
ideologia'', erni tido pelas delegacias de ordem política e social das secre-
tarias estaduais de ~egurança pública.
As universida~es enxertaram nas suas estruturas as assessorias de
segurança e informação, ligadas à divisão correspondente do Ministério
da Educaç[o e às agências locais do Serviço Nacional de Informaçlro.
Com base nos pareceres dessas assessorias, professores tinham negados
pedidos de bolsa de estudos e licenças para comparecer a congressos téc-
nicos, professores visitantes eram vetados, e outras arbitrariedades do
gênero foram abundantemente cometidas.
Ainda não foi feito o balanço quantitativo dessa onda repressiva,
de modo a Se saber quantos professores e quantos estudantes tiveram
seu trabalho ou seus estudos prejudicados pela perseguição política.
Em geral, a imprensa dava mais destaque aos efeitos do decreto-lei 4 77
nas universidades públicas, pois seus atos eram divulgados em boletim,
quando não no próprio Diário Oficial. No entanto, universidades e fa·
culdades particulares lançavam ma'o desse instrumento repressivo para
demitir professores que reclamavam de salários atrasados ou da pressão
para aprovar certos estudantes e também para expulsar estudantes, co-
mo os de um curso de medicina que rejeitavam o "ensino" de anato·
mia por um professor que se resumia a ler o conhecido e antigo (anti·
quado?) compêndio de anatomia humana de Testut e Latarjet.
No entanto, é possível fazer uma segura avaliação qualitativa: Q,e·
_ ,~espero e aplrti~ foram os dois componentes do efeito da repressão naS
escolas. é nas universidades. o desespero de uns levou ao abandono do
magistério e do estudo e até mesmo aos equívocos da luta armada. A
apatia ~outros resultou no desleixo para com o ensino, no cinismo do-
cente-, tendo_Ç,Q.ino contrapartüiÂ, o desinteresse para com o estudo, ex-
presso pela atitú'd:e-estudàrrtil de repetir o que o professor espera, mes-
mo o absurdo e o injusto, desde que a promoção estivesse assegurada.
Entre o desespero e a apatia, caminhavam com dificuldade profes-
sores e estudantes que buscavam resguardar a dignidade de sua situação,

40
I I. Educação: Grande Negócio Na revisão, além de deslocar para mais adiante as metas originais
-como a de matricular 100% da população'de 7 a 11 anos de idade em
escolas primárias -, o CFE aumentou os recursos a serem transferidos
para o setor privado. A versão de 1962 daquele plano previa que 3% dos
recursos do Fundo Nacional do Ensino Primário fossem destinados a bol-
sas de estudo em escolas particulares; a revisão de 1965 aumentou essa
proporção para 5%. Da mesma forma, o Fundo Nacional do Ensino Mé-
dio, de 14,5% para 20%, e o Fundo Nacional do Ensino Superior, de
zero para 5%. .
Vitorioso o golpe de 1964, subiram ao poder os defensores do privatis- O aumento das transferências de verbas públicas para as escolas
mo na educaç1fo, aqueles que defendiam a desmontagem ou, pelo me- privadas no ensino médio estava "adoçado" com a incl~são na mesma
nos, a desaceleraça-o do crescimento da rede pública de ensino. Em com- rubrica: mas se~ definir quantitativos, da "educação de exc~pcionais".
pensação, as verbas públicas destinadas ao ensino deveriam ser transfe- No ensmo supenor, esse disfarce também existia: a mesma rubrica jun-
ridas às escolas particula,res que, ent1fo, se encarregariam da escolariza- ta~a as. bolsas de estudo, as residências de estudantes e as subvenções às
ç1fo das crianças e dos jovens. Só onde a iniciativa particular não tivesse umvers1dades e estabelecimentos isolados partiCulares. ·
interesse em abrir escolas é que a escola pública seria bem-vinda. Estava declarada a posição do CFE e do governo golpista de apoio
· Foi sintomática a participação de um dos mais ardilosos conspira- à tremenda expansão do ensino superior particii.rãr-;·-ãalriêsmo tempo
dores e mais duros oponentes do presidente Jo1fo Goulart, o governador em que se continfià o_Sê.tor--públicó. -
do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, na elaboraç1fo de um projeto A história do salário-educação é um exemplo dramático de como
de lei de diretrizes e bases da educação nacional que nem mesmo procu- uma boa idéia pode ser distorcida pela corrupção institucionalizada pela
rava dissimular os interesses dos que usavam a escola como meio de acu- ditadura.
mulação de capital e;ou de influência ideológica.
O governo golpista, e privatista em matéria de educaç:ro, n:ro pre- Salário-educaça-o foi o nome que teve, no Brasil a forma de con-
cisou mudar a lei. Foi só aplicá-la em proveito das escolas particulares. tribuiç:ro das empresas para com a escolarização de se'us empregados e
A ocupaça:o dos ppstos-chave do Ministério da Educaç:ro pelos os filhos destes, prática, aliás, utilizada em muitos países. Em 1955, 23
privatístas foi facilitada pelo trabalho de sapa da propaganda ideológica d?s ~5 países participantes da Conferência Internacional de Instruça:o
da trama golpista, que teve sucesso em veicular a associação da imagem Púbhca, em Genebra, adotavam formas de participaç<fo das empresas no
dos defensores da prioridade do ensino público (verbas públicas para o fmanciamento do ensino proporcional ao montante dos investimentos
das empresas ou dos salários pagos por elas aos seus empregados.
ensino público e gratuito) com a imagem, que os militares abominavam,
de um regime "socialista", no qual o Estado teria o controle de toda a Em termos legais, essa idéia vingou, no Brasil, pela primeira vez,
vida social. Para os militares desinformados, alvo principal da propagan- na ~onstituiçã'o de 19 34, que obrigava as empresas industriais e agr íco-
da direitista, os que defendiam a destinação dos recursos públicos para las situadas fora dos "centros escolares" a proporcionarem ensino pri-
a rede pública de ensino eram as mesmas pessoas que defendiam a desa- mário gratuito, desde que, tendo mais de 50 empregados, houvesse den-
propriaç1fo das terras, o estreitamento das relações comerciais, cultu- tre eles e seus filhos, pelo menos dez analfabetos. O golpe de 1937 ou-
rais e políticas com a União Soviética, com a China Popular e com Cu- torgou outra Constituição, com outras prioridades, e aqueie dispositivo
ba, o "materialismo ateu" contra as "tradições críst:rs" de nosso povo, e foi esquecido.
outros "pecados" parecidos. A Constituição de 1946 retomou a idéia, estipulando que as em-
O Plano Nacional de Educação elaborado pelo Conselho Federal presas industriais, comerciais e agrícolas onde trabalhassem mais de 100
de Educaça-o, em 1962, foi revisto em 1965, pelo mesmo conselho, já pessoas ficavam obrigadas a manter ensino primário gratuito para seus
reorientado em função do peso dos privatistas no governo golpista. empregados e os filhos destes.

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Várias tentativas foram feitas para regulamentar esse dispositivo temente, que, ainda assim, pagassem à es,cola uma certa quantia, a tí-
. constitucional, o que só veio a acontecer com a lei 4.440, de outubro tulo de "complementaçíio".
de 1964. Segundo dados do próprio Ministério da Educação, esse agencia-
Essa lei determinava que, se uma dada empresa oferecesse ensino mento empresa-escola foi responsável pelo desvio de cerca de 40% dos
primário gratuito aos seus empregados a aos filhos destes, estaria de recursos devidos por conta do salário-educaçíio. Em 1983, no Estado do
acordo com a Constituiç<to. Mas, considerando que a maioria esmaga- Rio de Janeiro- os dados s.ro ainda do ministério- a estimativa é de que
dora das empresas mto teria condições ou mesmo interesse em montar foram concedidas 150 mil "bolsas-fantasma", representando um roubo
uma escola para esse propósito, a lei estabelecia que as empresas trans- de cerca de 4 bilhões de cruzeiros, feito por 210 escolas.
ferissem recursos financeiros para o Estado que, então, ofereceria o en- A corrida para repartir os despojos do salário-educação fez com
sino a que elas estavam obrigadas. Primeiramente, deveriam contribuir que algumas prefeituras resolvessem privatizar sua rede de escolas. Já
com 1,4% da folha de pagamento, alíquota aumentada, posteriormente, que n[o viam como moralizar a situação (recursos públicos para escolas
para 2,5% (fundindo-se as cobranças estaduais e federais). Pelo fato de públicas), resolveram loc]:UJ_letar-se, como as escolas particulares e as
ser uma contribuiç[o devida pelas empresas, calculada com base nos agenciadoras de bolsas ãe estudo.- -
salários pagos por elas, a denominaç[o passou a ser a de salário-educa- Essas prefeituras instituíram fundações de direito privado e para
ç<to. elas (pasmem, leitores!) transferiam os prédios das escolas municipais,
Estaria tudo muito bem se não houvesse a previsão da "escapada" os professores e os funcionários: era a privatização total do ensino. Das
pela via privatizante, já na lei 4.440, de j964. Esta previa que ficariam direções dessas fundações participavam o prefeito e o secretário de edu-
isentas do salário-educaçlfo as empresas (com mais de 100 empregados, caça-o, é claro, mas, isso que é o mais importante, participavam também
,,i é claro) que instituíssem mediante convênio "sistema de bolsas de estu- os grandes industriais e comerciantes, justamente os proprietários e ge-
do" com escolas par~iculares. No texto da lei, havia a ressalva de que o rentes das empresas devedoras do salário-educação. Esses prósperos se-
convênio com o "sistema de bolsas" deveria ser julgado satisfatório por nhores transferiam, então, o dinheiro devido por suas empresas para as
ato da administraç[o estadual do ensino, aprovado pelo respectivo Con- fundações educacionais que eles próprios dirigiam!
selho Estadual de Educaçlfo. Foi a forma mais ousada de submeter o ensino público ao contro-
Ora, ocorre que foi justamente nessa época que as secretarias e os le do capital privado: não havia sequer a intermediação da administra-
conselhos estaduais de educação passaram a ser ostensivamente ocupa- ção pública.
dos pelos donos de colégios particulares e seus prepostos, que tinham Os abusos cometidos pelo capital privado às custas do salário-edu-
todo o interesse em aprovar convênios que beneficiavam, antes de tudo, cação foram de tal monta, que mesmo a gestão privatista do governo
as empresas de· ensino de sua propriedade ou às quais prestavam seus Figueiredo viu-se obrigada a alterar o sistema. Dois decretos, um de
"serviços". 1982, outro de 1983 (este baixado por pressão dos governos estaduais
A armaç<to era a seguinte: considerando que as empresas prefe- eleitos pelo povo), proibiram a captação de recursos do salário-educação
riam recolher o salário-educação do que abrir suas próprias escolas, por essas fundações instituídas pelo poder público, mesmo as de direito
organizaram-se firmas de agenciamento entre as empresas e as e~colas privado; o brigaram as escolas a manterem escrituração dos recursos re-
particulares. Uma dada empresa recebia a visita de um agente que a cebidos; impediram a cobrança aos alunos de contribuição complemen-
convencia a deixar de recolher a quantia devida do salário-educação, tar; encarregaram as secretaiias estaduais de educação de distribuírem
transferindo parte dessa quantia a uma escola, a título de bolsa de estu- bolsas de estudo, com recursos do salário-educação, só para os estu-
do, em troca de um recibo, emitido pela escola, com o valor total do dantes que não encontrassem vagas na rede pública.
salário-educação. A diferença ia para o "caixa 2" da empresa ou para o Com isso, só conserva a possibilidade de isenção da contribuição
bolso de um de seus dirigentes. Já a escola, "arranjava" uma lista de do salário-educação a empresa que mantiver escola de 19 grau para seus
alunos ''beneficiados" por essas bolsas. Em muitos casos, os bolsistas já empregados e os filhos destes ou, então, que se preste a indenizar a es-
tinham sido contemplados com outras bolsas e deles se pedia, freqüen- colarização em estabelecimento privado desses beneficiários.

44 45
Mas o salário-educação não é a única fonte de bolsas de estudo rias, mantidas vivas às custas das insuficiências artificiais do setor pú-
que serve para manter, artificialmente, o segmento mais atrasado do blico. •
setor privado. No Município do Rio de Janeiro, por exemplo, há, ain- ~m bom exemplo disso é o Estado do Rio de Janeiro, que disputa
da, dois outros tipos de bolsas de estudo destinadas a estudantes de 1Q há mUito, com o de Minas Gerais, a primazia em termos do controle pri·
grau. vatista sobre o ensino público.
O Município do Rio de Janeiro é herdeiro da mais ampla rede es-
As bolsas de "obrigatoriedade escolar" são dadas a crianças de colar pública do país, resultado do privilégio de ter sido capital no Im-
sete a 14 anos de idade que não conseguem vaga em escola pública nas pério e na República, até 1960.
proximidades de sua residência. Essas bolsas são distribuídas na perife-
Apesar disso, a despeito do grande crescimento da população, a
ria do município, justamente onde reside a população mais miserável
rede pública de 19 grau "encolheu" de 1975 a 1980, diminuindo o efe-
e onde a rede pública é diminuta. Em seu lugar, proliferam escolas pri-
tivo discente em 98 mil alunos, urna perda relativa de 14%. Enquanto
vadas que subsistem às custas das bolsas de estudo, conferidas, tradicio-
isso - ou melhor, por causa disso - a rede particular cresceu 26%, o
nalmente, por intermediação político-partidária.
que, mesmo assim, não foi suficiente para universalizar o ensino de 19
As bolsas de "compensação" resultam da transformação em bol- grau. Situação ainda mais grave ocorreu nos municípios que formam a
sas do imposto sobre serviços e do imposto predial e territorial urbano região metropolitana do Grande Rio, onde estão os tristemente afama-
devidos pelas escolas. Estas comunicam à secretaria de educação o nú- dos municípios da baixada fluminense: Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis
mero de bolsas de "compensação" que oferecerão, em lugar de pagar e São João. de Meriti. O conju11to da região metropolitana decresceu
o ISS e o IPTU, e a secretaria indica os alunos que serão beneficiados, menos, em termos de número de alunos (2,5%) do que o município da
conforme critério de carência econômica. Até 1983, as escolas podiam capital, embora o crescimento da população tenha feito as exigências
converter todo o imposto devido em bolsas de estudo. Desde 1984, só de escolarização mais graves naquela do que neste. Persiste, assim, na
podem fazer isso com metade do imposto a pagar. região metropolitana, uma taxa de analfabetismo muito elevada para
Esse sistema de multiplicidade de bolsas tem permitido que, du .. sua situação geral: 20% do milhão e meio de jovens de sete a 14 anos,
rante anos e anos, muitas escolas somassem as bolsas municipais, rece- dos quais 50 mil nunca tiveram, por tempo algum, escolarização regular.
bidas da prefeitura, com as bolsas federais, do salário-educação. Num De todo modo, esses dados, referentes à situação média do cres-
levantamento realizado em 1983, pela Secretaria de Educação do Mu- cimento ou decréscimo numa dada área sócio-geográfica, dissolvem rea-
nicípio do Rio de Janeiro, cerca de 50% das escolas apresentavam casos lidades ainda mais terríveis do que a que os números permitem ver. É o
de duplicidade de bolsas. E somavam, também, as contribuições mais caso, por exemplo, da desativação do segundo segmento do ensino de
ou menos espontâneas recebidas dos alunos a título de complementa- 19 grau ( Síl a 8? série), transferindo-se os alunos para escola particular
ção. situada nas proximidades, com suas anuidades pagas pelo poder públi-
Quando denunciamos esse verdadeiro assalto aos recursos gover- c? mediante bolsas de estudo, evitando-se, com tal providência, a falên-
namentais, estamos preocupados com uma questão muito concreta: a Cia do negócio do ensino que enriquece um "benemérito da educação",
distribuição dos recursos disponíveis para a expansão e a melhoria da em troca de apoio político. ·
qualidade da rede pública de ensino. É tenebrosa a solidariedade exis- Escândalo como esse, que não é privilégio, aliás, do Rio de Ja-
tente entre os privatistas na direção dos sistemas de ensino -empenha- neiro, só é ultrapassado no Estado de Minas Gerais, onde os grupos pri-
dos na contenção da .escola pública, de modo a abrir espaço para a es- vados, dos m<m fortes e organizados do país, conseguiram do governa-
cola particular - e esse sistema de transferência de recursos públicos dor France!ino Pereira um decreto condicionando a extensão das quatro
para o setor privado de ensino, sob a forma de bolsas de estudo. Ore- prirneirãs séries de escola pública de 19 grau à concordância do repre-
sultado é a feição antidemocrátíca do sistema educacional, onde, ao sentante das entidades mantcnedoras. Cercaram, assim, o ensino de
lado de uma rede pública menor do que deveria e poderia ser, de qua- 29 grau corno urna reserva de caça para o capital, colocando um freio,
lidade insatisfatória, subsiste um setor de escolas particulares parasitá- com amparo legaJ. ao crescimento da escola pública.

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Quando a crise econômica levou milhares e milhares de crianças Mas foi no ensino superior que a ac~mulação de capital no cam·
e jovens a se transferirem da escola particular para a escola pública de po do ensino se fez de forma mais intensa e escandalosa.
19 e 29 graus, encontrou-a com poucas vagas; "encolhida", como no Que grande ou média cidade brasileira não conhece o caso de um
Rio de Janeiro; submetida legalmente, em sua expansão, como em Mi- colégio particular de 19 ou 29 graus que começou abrigando um cl]rso
nas Gerais; ou estagnada, como em todo o país. superior nos horários e salas disponíveis e viu esse curso crescer e se
O ensino profissional não escapou da voragem do capital em mul- multiplicar até virar uma grande faculdade, com vários cursos? Ou mes-
tiplicar-se com o álibi de promover a educação. mo uma universidade? Fato semelhante ocorreu com cursinhos pré-ves-
Por iniciativa do general-ministro da Educação Ney Braga, o Con- tibulares, que, movidos pelos lucros que tiveram, cresceram "para ci-
gresso Nacional aprovou, em 1975, uma lei (n9 6.297) que concedia ma", instalando faculdades, e "para baixo", abrindo cursos regulares de
incentivos fiscais às empresas que tivessem projetos de formação profis- 19 e 29 graus. Existem "organizações educacionais", nascidas de cursi-
sional. Para fins do imposto de renda, as empresas poderiam deduzir nhos pré-vestibulares, que já anunciam a ''integração vertical" de sua
o dobro das despesas com projetos que objetivassem "a preparaçãó mercadoria: do pré-escolar à faculdade. Chegarão à pós-graduação?
imediata para o trabalho de indivíduos, menores ou maiores, através da Na Cidade do Rio de Janeiro encontramos mais de um caso exem-
aprendizagem metódica da qualificação profissional e do aperfeiçoa- plar da acumulação de capital no campo do ensino. O Colégio Piedade,
mento e especialização técnica em todos os níveis". Mesmo que o abati- situado às margens da via férrea de um distante subúrbio, abrigou uma
mento ficasse limitado a 10% do lucro tributado, passou a valer a pena faculdade de filosofia e, com os lucros acumulados e o manto protetor
para as empresas, principalmente as de grande porte, justamente as do regime autoritário, foi ampliando e diversificando os cursos superio-
que usam técnicas do tipo capital-intensivo, comprar formação profis- res oferecidos, incorporando os imóveis vizinhos, construindo grandes
sional, nem que fosse exclusivamente para efeito de aumentar seu lucro prédios, e chegando hoje a ser uma das maiores universidades do país -
líquido. Para responder à nova procura por comprovantes de gastos, a Universidade Gama Filho.
surgiram empresas de treinamento profissional ligadas aos grandes . O aumento da procura de ensino superior nos anos 60, ao tempo
grupos econômicos e também as que se dedicavam à mera corretagem em que o governo federal freava o crescimento das universidades públi-
de cursos ou, apenas, de recibos. cas (e gratuitas), fez com que aumentasse enormemente a demanda pelo
Assim, mais do que a qualificação profissional, o objetivo desse ensino particular (pago). O governo recebia muito bem esse crescimento
incentivo fiscal é aumentar os lucros das empresas, não só pela retenção das escolas particulares, pois isso facilitava sua desobrigação para com a
de recursos, como também pela possibilidade que abre para o aumento manutenção do ensino público e gratuito.
do capital de giro ejou para especulação fmanceira com recursos que, de O Conselho Federal de Educação dava sua contribuição a esse
outra forma, seriam pagos como imposto sobre a renda. "esforço" da iniciativa privada facilitando a concessão de autorização
para funcionamento e credenciamento das faculdades particulares que
Não queremos dizer que as empresas não tenham usado pelo me-
se multiplicavam a cada dia. Com isso, as matrículas no ensino superior
nos parte dos recursos comprovados como despesa de efetiva formação
público que, em 1964, representavam cerca de 75% do total em 1984
profissional. Mas o que acontece é que, quando o treinamento existe de
só conseguiram abranger 25%, já que o crescimento das vagas' foi resul-
.fato, tem contemplado, principalmente, as pessoas que ocupam cargos
tado da multiplicação das faculdades particulares. ·
de comando: gerentes, administradores, supervisores. A maior parte dos
Mas, a crise do "milagre econômico brasileiro", que se aprofunda-
trabalhadores, os que estão diretamente ligados à prpdução, deixa de
va ~esde 1974, ameaçava todo esse sucesso. Por não pOderem pagar as
se beneficiar de projetos de melhoria de sua qualificação profissional.
anmdades, ou por terem de trabalhar para ajudar suas fami1ias a enfren·
Em suma, esses incentivos fiscais resultam em um pagamento (pe- tara crise, muitos estudantes abandonavam os cursos das faculdades pri·
lo não recebimento do imposto devido) de toda a sociedade para as em· vadas, assim como, pelas mesmas razões, diminuía o número de vestibu-
presas, principalmente as grandes, reforçam a sua estrutura de poder e landos. Os empresários do setor armaram, então, um plano bem urdido
permitem que elas obtenhàm ganhos financeiros imediatos. para salvar seus empreendimentos.

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Em primeiro lugar, voltaram à carga sobre a quest<to do pagamen- O parecer foi pelo fim da ajuda externa, alegando que o cresci-
to do ensino superior público a "preços de mercado" onde esse paga- mento econômico (era justamente a época dó fundo "milagre econômi-
mento ainda não atingia esses níveis. Retomaram antigos argumentos co", só que o consultor ainda não sabia ... ) geraria os recursos necessá-
sobre a justiça dos ricos pagarem a educaç<to dos pobres como arma e rios para fazer frente às grandes necessidades educacionais do Brasil.
disfarce para seu verdadeiro objetivo: a eliminação das vantagens com- Mas essa agência, insuspeita de intenções subversivas, dava outra
parativas do setor público em relação ao setor privado, principalmente a razão para cessarem os acordos: a política educacional do governo bra-
gratuidade. Não fosse a grande resistência de estudantes e professores, sileiro não estaria orientada para a democratização das oportunidades
eles teriam conseguido esse intento. educacionais, conforme os acordos internacionais que o governo brasi-
Em segundo lugar, não bastassem os subsídios governamentais leiro tinha assinado, ainda durante a presidência de João Goulart.
ao setor privado, que permitiram a algumas instituições construírem O governo brasileiro estaria, para o consultor norte-americano, au-
verdadeiros câmpus universitários, os empresários do ensino inventaram mentando a seletividade da escola, pois usava os recursos externos jus-
outro mecanismo para sustentar a lucratividade de seus empreendimen- tamente para diminuir os gastos públicos com educação. Além do mais,
tos: o crédito educativo. Parte do dinheiro que os bancos deveriam re- agravando a seletividade, estaria havendo uma drenagem de recursos
colher ao Banco Central passou a ser emprestada aos estudantes para públicos para instituições particulares: 1% do total de recursos aloca-
estes pagarem, com juros e correçílo monetária, depois de formados, dos no 1Çl grau, 40% do total de gastos com o 2Çl grau e 39% com o su-
com um ano de carência. Previam-se duas formas de bolsas, uma para perior estariam sendo transferidos para estabelecimentos particulares.
pagar a faculdade (a mais alta) e outra (muito reduzida) para a própria Só mesmo um consultor norte-americano poderia ter acesso a es-
manutenção do estudante. Todo o sistema era subsidiado em 90% com sas informações, já que o governo autoritário, pela aliança dos militares
recursos do Ministério da Educação. O setor privado passou a ganhar com os privatistas, lançou mão de vários artifícios destinados a camuflar
duplamente: os bancos, por verem render um dinheiro que não pode-
riam antes emprestar; os donos de faculdade, por ter diminuído o
o
esses dados, dos quais é claro efeito: a visível acumulação de capital
pelos grupos que fizeram da educação um grande negócio na acumula-
número de desistentes, isto é, por manterem sua receita. E os estudan- ção privada de capital e/ou no exercício de influência ideológica.
tes? Bem, a crise econômica, com a conseqüente elevação do desempre-
A desobrigação do Estado para com a manutenção do ensino pú-
go, impedia que pagassem as dívidas contraídas, que subiam com juros
blico e gratuito foi a contrapartida perversa do subsídio ao setor pri-
e correção monetária. O resultado foi que, no início de 1983, dos 250
vado.
mil concluintes de cursos superiores contemplados com o crédito edu-
cativo, 200 mil eram inadimplentes, isto é, tinham deixado de pagar as Essa desativação refletiu-se na mudança dos próprios dispositivos
prestações ou nem tinham pago qualquer parcela. constitucionais que determinavam os gastos governamentais com o en-
Culpa do desemprego? Em parte. Da desonestidade de alguns·? sino.
Talvez. Mas, certamente, todo esse problema não poderá ter solução A Constituição de J 946 determinava que a União deveria reservar
se o empenho da política educacional não for o abandono da políti- para os gastos com o ensino pelo menos 10% da receita de impostos, o
ca privatista. mesmo devendo fazer os Estados e municípios com 20%. Esses quanti-
Aliás, essa política dos grupos mais conservadores do país não es- tativos, no entanto, não chegaram a ser efetivamente alcançados.
capou da crítica de um dos mais fiéis aliados do regime autoritário, des- A vitória da conspiração golpista, em 1964, acionou toda uma sé-
de os tempos da conspiração anti-Goulart: a USAID. rie de providências, no governo federal, destinadas a provar que não
Em 1976, a USAID se preparava para diminuir muito ou até mes- · havia falta de verbas para educação. O problema é que se gastava mal ...
mo para deixar de financiar projetos educacionais no Brasil. Para justi- Da Constituição de 1967, que o regime autoritário f~z o Congres-
ficar a· mudança, pediu ao General Accounting Office (Escritório de so aprovar, foi retirada a vinculação automática de verbas para o ensino,
Contadoria Geral) do governo norte-americano um parecer sobre as no plano da União: podia-se gastar 10%, como 15%, como 5%. Assim, a
necessidades do Brasil em matéria de ajuda externa para a educação. participação do MEC no orçamento da União, que oscilou entre 8,5% e

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10,6 %, no período 1960-1 96 5, desabou para a metade desses níveis nos Com isso, muito se regozijaram os arautos do privatismo, que
anos 70, chegando a 4,3% em J 975. aproveitaram esse fato para apoiar suas' pretensões de aumento dos
O descaso do Estado para com a educação, acentuado pela dita- subsídios para seus empreendimentos.
dura, fez com que o Brasil se convertesse num dos países que relativa- Assim se fecha esse círculo viciado e vicioso de mútuo reforço en-
mente menos aplicam nesse setor. tre forças solidárias: a desobrigação do Estado para com a manutenção
do ensino público e gratuito e o subsídio governamental aos empreen-
Para se ter uma idéia, em 1974 - ano limite do tão badalado "mi-
dimentos privados que buscam, no campo de ensino, a acumulação de
lagre econômico brasileiro" -, o Brasil tinha o 9? lugar do mundo em
capital e/ou a influência ideológica.
termos de produto nacional bruto (PNB). No entanto, em termos de
Esse subsídio nem sempre é direto, na forma de recursos qúe
despesas públicas com educação, em cifras absolutas, estava mais atrás,
saem dos cofres públicos para os das empresas de ensino. Ele aparece
em 13?lugar.
até de forma indireta, através dos abatimentos permitidos pelo im·
O PNB, nesses anos todos, cresceu mais rapidamente do que as posto de renda.
despesas públicas com educação. Em 1976, por exemplo, o PNB cresceu E há pelo menos uma instituição que, movida por esses incentivos
1 1,6% enquanto a despesa pública com educação aumentou de apenas fiscais e pelo ardor cívico-religioso, pretende ocupar o vácuo deixado
1,3%. pelo Estado em sua desobrigação para com a manutenção do ensino
Voltando a 1974, ano para o qual temos dados gerais, as despesas público e gratuito. Não é uma sociedade civil, de caráter propriamente
públicas com educação representavam, no Brasil, apef).as 2,8%, o que político, religioso ou cultural. É um banco! O Banco Brasileiro de
deixava o país, em termos relativos, em 779 lugar no mundo. Con- Descontos - Bradesco.
cluindo: este é um dos países em que, relativamente ao PNB, o Estado Em J 984, a Fundação Bradesco gastou 20 bilhões de cruzeiros
menos gasta em educação. na manutenção de 23 escolas, situadas em 1 1 Estados, que recebiam 26
Os municípios continuavam obrigados a gastar 20%. Em 1971, a mil alunos. Esses recursos provieram de doações das empresas do grupo
lei 5.692 ampliou a obrigação, fazendo incidir aquela proporção tam- capitaneado pelo banco. Como várias dessas escolas ministram o apren-
bém sobre o Fundo de Participação dos Municípios. No entanto, a cen- dizado da agricultura e da pecuária, as empresas desse grupo econômico
tralização promovida pelo regime autoritário fazia com que uma parce- beneficiam-se, por mais essa via, dos incentivos fiscais concedidos pela
la ínfima da receita de impostos ficasse nos municípios e nos Estados. lei 6.297/75: a dedução, do imposto de renda devido, do dobro dos gas-
Era o governo federal -justamente a instância político-administrativa tos realizados com o "custeio do ensino de 1 <? grau para fins de apren-
isenta de gastos pré-fixados corp o ensino - que recebia a maior parte dizagem profissional".
do bolo tributário. Em 1985, a Fundação Braéiesco prepara-se para gastar 107 bilhões
A desobrigação do Estado para com a educação teve no ensino su- de cruzeiros em projetos educacionais, metade do que o Estado do Rio
perior diretamente mantido pelo Ministério da Educação seu efeito mais de Janeiro gastou em educação no ano de 1984. O número de escolas
danoso. As verbas destinadas às universidades foram drasticamente cor- sobe para 29 e o número de alunos para 33 mil.
tadas, a ponto de muitas delas terem de paralisar importantes atividades São escolas de 19 grau situadas nas mais diversas regiões: em ca-
de ensino; de pesquisa e de prestação de serviços. Para cada Cr$ 100,00 pitais de Estado e no pantanal matogrossense. Nelas se oferece o ensino
que as universidades federais receberam em J980, a elas foi destinado, que o governo nega ao povo brasileiro e cobra-se a adesão a um autori-
em J984, apenas Cr$ 37 ,80. No mesmo sentido descendente foi a re- tário código de. condu ta que os funcionários do grupo Bradesco tão
muneração dos professores: de janeiro de J979 a abril de J984 houve bem conhecem. Eles, como os estudantes, são obrigados a assinar uma
uma perda salarial de J 03%, o que levou muitos professores a procura- declaração de princípios que sintetizam os valores que todo patrão gos-
rem outros empregos. como complemento ou substituto da pesquisa e taria que os empregados respeitassem: amor ao trabalho, disciplina, res-
do ensino. Em ambos os casos, o resultado foi a deterioração da quali- peito à hierarquia. Não bastasse essa explicitação acintosa dos valores
dade da universidade pública. que unem a educação moral e cívica à educação física na política educa·

52 53
cional da ditadura, as escolas da Fundação Bradesco exigem dos alunos III. A Exclusão pela Base
adesão a uma moral ultra-conservadora, pedindo-lhes que prometam
não fumar, não beber, não praticar nenhum ato "contra a moral e os
bons costumes".

A muito custo, têm havido algumas vitórias parciais contra esse círculo
viciado/vicioso de mútuo reforço entre a desobrigação do Estado para
com a manutenção do ensino gratuito e o apoio governamental aos em-
preendimentos privados. . Quando os resultados do Censo Demográfico de J 970 foram divulgados,
As lutas pela democratização do ensino, especialmente pelo ensi- ainda no governo Médici, os dados foram mais eloqüentes do q\le a frase
no público e gratuito, atingiram o Congresso Nacional, renovado pelas · de efeito do general de plantão: "a economia vai bem, mas o povo vai
eleições de J982. Na nova correlação de forças que se formou, foi pos- mal". Ele não disse qual economia estava indo bem. Não era a economia
sível a aprovação, na Câmara dos Deputados como no Senado, do pro- popular, certamente; nem a dos pequenos empresários, afogados pela
jeto de reforma constitucional do senador João Calmon que estabele- competição das grandes empresas monopolistas e pelos juros escorchan-
... ceu a vinculação automática de verbas para o ensino. tes impostos pelos banqueiros .
I
I)'
~'
· Assim, desde dezembro de J 983, a Constituição determina que o Como poderia uma parte da economia ir bem, enquanto a outra
,,,:·j
governo federal deve gastar pelo menos J 3% e os Estados e municípios ia mal? Para os arautos da política econômica da ditadura, o que havia
't pelo menos 25% da receita resultante de impostos na manutenção e eram diferenças no ritmo da melhoria geral. Para os críticos, no entan-
:..)'
I,:
desenvolvimento do ensino. Foi uma vitória das forças políticas que to, uns estavam se beneficiando da miséria dos outros. E lá estavam os
lutam pela democratização do ensino em nosso país. Mesmo sendo uma dados do Censo para demonstrar a justeza da crítica .
vitória parcial (pois não se especifica que esses recursos devem ser desti- Mas, os argumentadores do regime autoritário não se fizeram de
nados ao ensino público e gratuito), a tecnoburocracia tudo fez para eli- rogados. Foram buscar "explicações" fora do campo econômico para
minar essa conquista. Primeiramente, adiou a vigência da emenda cons- justificar a exploração das massas. O que os religiosos faziam antes (e al-
titucional, dizendo não ser ela autoaplicâvel, pois precisava, para ter guns ainda teimam em fazer), procurando na maldição divina ou no pe-
efeito prático, de uma lei ordinária que a regulamentasse. Depois, o cado a explicação da miséria, os economistas de plantão foram buscar
presidente-general Figueiredo enviou ao Congresso um projeto de regu· no campo da educação, com o mesmo fim anestésico.
lamentação que visava minimizar o efeito da emenda: de um lado, reti- Se a renda está mal distribuída, se os dados mostram que, no pe-
rava impostos que estariam sujeitos à aplicação dos 13%, diminuindo, ríodo J 960-J 970, os ricos estavam cada vez mais ricos e os pobres cada
assim, o montante de recursos em questão; de outro lado, considerava vez mais pobres, não é porque aqueles são os capitalistas e seus funcio-
como manutenção e desenvolvimento do ensino coisas que nada tinham nários mais próximos e estes os trabalhadores explorados até a exaus-
a ver com o espírito da emenda, desde escolas militares até treinamento tão. A renda estaria mal distribuída porque uns tinham mais acesso à
de funcionários dos bancos oficiais e formação de diplomatas. Ou seja: escola do que outros. Repare bem a inversão das coisas, leitor: não se-
regulamentar para nada ou pouco mudar. riam as diferenças de renda que explicariam as diferenças de escolarida-
Vemos, assim, o quanto tem sido difícil a luta pela democratiza- de. Para os defensores da política econômica da ditadura (da submissão
ção do ensino em nosso país: como a solidariedade entre o capital (espe- ao imperialismo ao arrocho salarial), as diferenças de escolaridade é que
cialmente o interessado na "mercadoria" educação) e a burocracia civil- determinavam as diferenças de rendimentos entre as pessoas. E não foi
militar pôde encontrar meios e modos de diluir as vitórias ainda que fácil desmascarar essa argumentação falsa. No período da maior repres-
parciais do povo brasileiro na direção do ensino público e gratuito de são policial de nossa história, a ditadura usou e abusou dos meios de
boa qualidade. comunicação de massa, principalmente da televisão, para infundir nas

54 55
massas essa crença no papel milagroso da educação. 6,5 milhões de pessoas dessa faixa etária fora da escola, em J 980, elas
Para o governo e seus argumentadores, então, a distribuição da já eram 7,5 milhões. Ou seja, os exclu1dos da escola aumentaram de um
renda mais igualitária viria, automaticamente, como resultado da mais milh1to de 1970 a 1980!
ampla distribuição de oportunidades educacionais para todos. O resultado dessa incompetência, ou melhor, dessa política educa-
Para buscar credibilidade para sua política "distributivista", os cional lesiva aos interesses mais fundamentais do povo brasileiro conti·
governos autoritários organizaram o Movimento Brasileiro de Alfabeti- nua a ser uma eficiente máquina produtora de analfabetos. Aos 14 anos
zação - Mobral, que, em uma década, deveria reduzir a proporção de de idade, os jovens br;1sileirosjá deveriam ter oito anos de escolaridade,
analfabetos para menos de 1 0%. Montou toda uma rede de ensino suple- se formos acreditar nas metas proclamadas pelos pedagogos do regime.
tivo usando o rádio -o Projeto Minerva -e a televisão, veículo que ex· No entanto, a proporção de iletrados permanece ainda muito alta. Em
piorou até mesmo o gênero da novela com intuito educativo. Sucessivas 1970, 24,3% ·dos jovens de 14 anos não sabiam ler e escrever. Dez anos
operações (categoria do vocabulário profissional militar) foram lançadas depois, mesmo com todas as "operações escola", os planos setoriais de
com o objetivo de ampliar e melhorar a escola de 1 9 grau. Em 1971, a educaçã'o e os generosos su bsídi os às escolas particulares, havia 19% de
Lei de Diretrizes e Bases do ensino de 19 e 29 graus Oei 5.692/71) aca- iletrados com essa idade. É incrível que, na zona urbana, onde é muito
bou com o exame de admissão ao ginásio, fundiu os diversos ramos do mais fácil construir escolas e recrutar professores, a proporção de anal-
ginásio num só e o ligou, sem soluça-o de continuidade, ao primário. fabetos de 14 anos de idade tenha continuado a mesma: 9,8%. Foi na
Assim, a escolaridade obrigatória dos jovens de sete a 14 anos deíxava zona rural que a expansão da rede escolar pública mostrou algum resul-
de ficar restrita ao ensino primário. Dobrava o tempo de escolaridade tado, embora imensamente distante das necessidades mais básicas. A
obrigatória: de quatro para oito anos. O Brasil deixava assim de ter uma proporção de analfabetos de 14 anos baixou de 41,9% para 36,8% na-
das mais baixas exigências de escolaridade obrigatória, para ter uma das quele decênio.
mais altas do mundo. Era o tempo do "Brasil Grande"; "ame-o ou Este panorama desolador é bastante para denunciar o fracasso da
deixe-o"; os incomodados que se mudassem - sena'o, a polícia cuida· política educacional da ditadura, fracasso ainda maior se levarmos em
ria deles ... conta que, durante todos esses anos, os generais e coronéis do Ministé-
E a realidade, como andava? rio da Educação tiveram meios excepcionais postos à sua disposição pa-
A taxa de escolaridade das crianças de sete a 1O anos, faixa etária ra remover antigos entraves que persistiam impossibilitando o atendi-
que correspondia ao antigo curso primário, baixou de 1970 a 1980: de mento das demandas populares por educação escolar. Uma dessas per.:
66,3% para 65,5%. Isto quer dizer que, em 1980, mais de um terço das sistências é a taxa de evasão e repetência na J ~ série do ensino de 1 9
crianças que deveriam estar cursando a escola primária estavam, na reali· grau, da ordem de 40% como médi.a nacional. Ao invés de enfrentá-la
dade, fora da escola. E veja o leitor que esse dado foi colhido quase 1 O pela diminuição do número de alunos por sala; do aumento do número
anos depois que os pedagogos da ditadura, orgulhosamente, estenderam de horas de aula por dia e do número de dias de aula por ano; da qualifi-
o tempo da escolaridade obrigatória de quatro para oito anos. Depois de caç<to dos professores; da melhoria do material didático e de sua distri-
todo esse tempo, o Estado continuava sem condições de oferecer sequer buição gratuita; da adaptação dos métodos didático-pedagógicos às ca-
os quatro anos de escolaridade obrigatória. Se formos ver o que aconte- racterísticas sócio-culturais das crianças, os pedagogos da ditadura lan-
ceu nas cidades, vamos constatar que a taxa de escolarizaçã'o das crian- çaram ma-o do expediente paternalista, antidemocrático e antipedagógi-
ças dessa faixa etária também caiu naquele período: de 82, 7%, para co da promoção automática. Mesmo que os estudantes não tivessem
79 ,9%. Fenômeno semelhante ocorreu na zona rural, onde se verificou aprendido coisa alguma, eram promovidos para a série seguinte. Com
uma queda de 48,5% para 42,2%. - isso' a expansão da rede escolar' das oportunidades f!Sicas de escolariza-
Esses dados eloqüentes mostram que as condições de escolariza· ção, não corresponde, na prática, a um aumento das oportunidades pe-
ção pioraram justamente na base escolar: na escola primária, englobada dagógicas de escolarizaçã'o.
agora num fantasioso ensino de 1 9 grau, obrigatório em suas oito séries Não tenha dúvida, leitor, desse paradoxo perverso: mesmo tendo
para as crianças e adolescentes, de sete a 14 anos. Se, em 1970, havia aumentado a presença do povo brasileiro na escola, o resultado da es-

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colarização tem sido absolutamente insuficiente e insatisfatório. nhada ou precedida por significativas melhorias do padrão de vida das
De fato, o número de anos de escolaridade da população aumen- classes populares; ou, então, 2) de campaÍlhas maciças de educação po-
tou entre 1970 e 1980. Naquele ano, os dados do Censo mostravam que pular ?urante ou logo após uma revolução, como na União Soviética,
a escolaridade mediana da população de dez anos e mais era de apenas na Cluna, em Cuba, no Vietnam e, mais recentemente, na Nicarágua.
1,5 ano. Isso quer dizer qÚe metade da população maior de dez anos Nenhuma dessas condições estavam presentes no Brasil dos anos 70. O
não tinha nenhuma escolaridade, um ano de escola ou um ano e meio. ensino _Público. e gra t_uito se expandia lentamente e, para complicar ain-
Ou seja, quase nada. A outra metade tinha escolaridade maior do que d.a maiS as c01sas, tinha sua qualidade deteriorada. As condições de
um ano e meio. Na zona rural, metade da população não tinha escola- vtda da ~opulação pioravam a cada dia. Restava a solução das campa-
ridade alguma, ao passo que, na zona urbana, melhor provida de esco- nh~s mac~ça~ de educação popular. Mas o Mobral não podia fazer issb,
las, essa medida de tendência central alcançava 3 ,O anos. Nas cidades, po1s o objetivo do governo autoritá~o, anti-revolucionário· e anti-refor-
então, a metade da população de dez anos e mais tinha escolaridade in- mista, era criar, pela via ''doce" da alfabetização, uma base política de
ferior à do antigo curso primário. Em 1980, a escolaridade mediana no~os eleitores (alfabetizados, portanto) para a sustentação política do
continuou no valor zero na zona rural. Na zona urbana subiu de 3,0 regime.
anos para 3,7 anos e, no conjunto, de 1,5 para 2,4. De fato, houve . ~inheiro para o Mobral não faltou, pois a Loteria Esportiva e os
aumento da escolaridade da população, mas um aumento insignificante mcentlvos fisca1s foram boas fontes de receita. Recursos humanos tam-
para o período de toda uma década e para a gravidade do problema. bém, pois milhares e milhares de pessoas ofereceram-se como voluntá-
· Posto o problema de outro ângulo, quando se vê o número de rios para alfabetizar os adultos, mesmo sem remuneração. Apoio ins-
analfabetos de 14 anos de idade reduzir-se tão pouco, só 5% ao longo de titucional, o Mobral também o teve abundante, em todo o país em to-
toda uma década em que a educação foi alardeada como a panacéia para dos os horários. · '
todos os males do povo brasileiro, só podemos entender aquele parado- Qual o resultado de todo esse aparato?
xo como produto de uma política bem arquitetada para desviar as aten- . O primeiro. s~al d~ fra~asso retumbante do Mobral foi dado pelo
ções. E a educação escolar tem se prestado admiravelmente a esse tipo resultado das ele1çoes legiSlativas de 1974. Abandonando a opção equi-
de manipulação. A insuficiência do salário, comprimido pelo arrocho, vocada do ''voto nulo", as oposições ao regime militar apresentaram
podemos senti-la ao fim de cada mês, até mesmo antes, em nosso pró- P.latafonnas e candidatos que conseguiram amplo apoio popular. O Mo-
prio bolso e no reconheci,mento dos problemas semelhantes dos cole- VImento Democrático Brasileiro (MDB) derrotou o outro movimento
gas de trabalho. No entanto, o fracasso da escola fica diluído pelas ~ de alfabetização (Mobral), que pretendia formar eleitores para o par~
diferenças individuais e pelos anos de escolarizaça-o. tido do governo autoritário, a Aliança Renovadora Nacional. Mesmo
Pois bem, até aqui falamos da escola regular de J 9 grau. Qual tendo alardeado a alfabetização de 6,3 milhões de pessoas de J 5 a 35
teria sido, entretanto, o desempenho do Mobral, grande esperança polí- anos de idade, em apenas quatro anos de funcionamento os militares
tica educacional do "milagre brasileiro"? viram que o Mobral, se estava preparando eleitores, era para o MDB.
O Movimento Brasileiro de Alfabetização foi criado em 1967, mas Além do mais, alguns pesquisadores daquela instituição educativa co-
só revisto mesmo em J 970. Sua inspiração provinha das numerosas cam- m~ç.aram a mostrar resultados de seus levantamentos que endossavam as
panhas e cruzadas que se promoveram para livrar o país da "sujeira" c n tlcas dos educadores oposicionistas: na realidade o Mobral estava
do analfabetismo, como se a falta do conhecimento da leitura e da es- alfabetizando muito pouca gente, os dados estatísticos escondiam as
crita fosse a causa dos males do nosso povo: a pobreza, a doença e até elevadíssimas taxas de evasão e os métodos pedagógicos eram inade-
mesmo a opressão política ... o entusiasmo por mais esse movimento quados aos analfabetos visados.
de alfabetização vinha, também, dos pedagogos da ditadura e dos ecO.: As contas do Censo de 1980 não deram outra ...
nomistas e militares travestidos em educadores que ignoravam que o _ Se a taxa de a~alfabetismo de J 970 era de 33,6% para a popula-
analfabetismo só foi superado, historicamente, por dois caminhos: l) çao de 15 anos e maiS, dez anos depois tinha baixado para 25 4% ou
pela expansão das oportunidades de ensino público e gratuito, acampa_- seja, uma diferença de apenas 8,2%. Para uma barulhenta cruz;da ~lfa-

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betizadora, que esperava uma ''taxa residual" de analfabetos em J 980 riferia dos grandes centros urbanos, como já foi dito e explicado. Dos
inferior a 10%, era o fracasso proclamado aos quatro ventos. Ventos 22,7 milhões de al.un~s do 1.9 grau, a grandé maioria (16,1 milhões)
que sopravam ainda mais forte quando se via que o número absoluto de esta nas quatro pruneuas sénes, correspondentes ao antigo curso pri-
analfabetos de J 5 anos e mais aumentou, naquele período, de 540 mil mário, sendo que 4,5 milhões dessas crianças estudam em precárias es-
pessoas, que foram somar-se aos 18,2 milhões de iletrados que havia colas unidocentes, aquelas onde um só professor ensina, no mesmo lu-
em J970. gar, ao mesmo tempo, para os alunos de todas as séries. Depois de oito
Não acredite o leitor nas falsas idéias de que taxas tão elevadas de anos de dete~inada, por lei, a duplicação da escolaridade obrigatória,
iletrados são características irremovíveis dos países latino-americanos e apenas 6,6 milhões de alunos freqüentam o segundo segmento do ensi-
subdesenvolvidos. Países como o Haiti, a Guatemala, Honduras, El Sal- no de 19 grau (5~ à 8~ série, correspondente ao antigo ginásio). Isso
vador, Bolívia e República Dominicana .têm taxas de analfabetos supe- mostra o quanto essa política foi mais uma proclamação vazia e enga-
riores à do Brasil. Por outro lado, o México, o Equador, a Venezuela, nosa dos pedagogos da ditadura.
a Colômbia, o Panamá e o Paraguai têm menos analfabetos, em termos Se o segundo segmento de ensino de J <? grau já representa um
relativos ao tamanho da população. E há países tão latino-americanos e profundo corte na promoção dos alunos, quando comparado com o pri-
subdesenvolvidos como o nosso que, sem nada parecido com o Mobral, meiro segmento, o ensino de 2<? grau expressa um corte ainda maior
somente com a organização de uma escola eficiente, conseguiram redu-
.
pois tem apenas 2,8 milhões de estudantes, a metade dos quais freqüen-
'
zir o número de analfabetos a níveis bem baixos: o Chile (8%), a Argen- ta escolas particulares. Note o leitor que o 2<? grau e o pré-escolar apre-
tina (6%) e o Uruguai (S%). sentam a mesma divisão meio a meio das matrículas entre o setor públi-
Mas não é nada fácil acabar com uma estrutura tão grande como a co e o setor privado. Internamente, o ensino de 2<? grau é altamente
do Mobral, com suas diretorias e assessorias, suas coordenações esta- seletivo. Da l? para a 2? série, há uma perda (exclusão) de 30% dos
duais e sua presença em praticamente todos os municípios do país. As- estudantes; da 2? para a 3?, de 25%. Os concluintes são, portanto, uma
sim, ao invés de ser extinta, a instituição passou a procurar outras for- parcela bastante reduzida dos que conseguiram ingressar no 2<? grau. É
mas de "mostrar serviço": ação cultural junto às populações rurais e das esta parcela reduzida que, lado a lado com as centenas de milhares de
periferias urbanas, bem como a educação pré-escolar. No primeiro caso, diplomados - a qualquer custo e a qualquer preço - dos cursos suple-
buscava submeter ao controle do Estado a crescente organização popu- tivos particulares, vai se canclidatar aos exames vestibulares.
lar via associações de moradores e de outro tipo; no segundo/caso, subs- No ensino superior encontravam-se, em J 980, cerca de J ,5 milhão
tituir a própria escola regular e as creches. Para quem começ~m com tão de estudantes, 75% deles freqüentando faculdades particulares. Nestas
fortes ares de onipotência, trata-se de uma espera melancólica do fun faculdades, em geral de baixíssimo nível de ensino e altas anuidades
inevitável! ~ estudam(?) os alunos que já padeceram as piores conclições de ensino;~
Vamos agora apresentar ao leitor um panorama do que se conven- nelas encontram os professores menos qualificados, estudam nos piores
cionou chamar de "pirâmide escolar" brasileira, embora não utilizemos prédios, às vezes no turno da noite, não têm acesso a bibliotecas
. , labo-
essa figura geométrica. Os dados apresentados abaixo mostrarão, de ra~órios e outros recursos indispensáveis a um ensino de boa qualidade,
modo eloqüente, a discriminação, pela base, das oportunidades do aces- alem de terem de trabalhar para manter-se e à sua fam11ia.
so à escola para o povo brasileiro. Mas, se o ensino superior apresenta, no Brasil, um padrão alta-
Tínhamos, em J 980, 28,3 milhões de estudantes matriculados em mente discriminatório, o ensino de 1<? e de 2<? graus já procedeu, antes
cursos regulares, a maioria dos quais (22, 7 milhões) no ensino de J <? dele, a uma perversa exclusão de milhões de crianças e jovens que fica-
grau. O ensino pré-escolar, apesar da grande quantidade dê crianças de ram privados da educação sistemática. É a exclusão pela base do sistema
zero a seis anos, recebia apenas J ,3 milhão delas, metade das quais escolar.
freqüentava estabelecimentos particulares. No 1<? grau, a presença do
setor .público é mais forte: apenas J 5% dos alunos freqüentam escolas
particulares, embora a falta de escolas públicas seja muito grande na pe-

60 61
IV. A Profissionalização Fracassada da elite ou para a escolarização a qualquer preço das crianças e jovens
que não foram atendidos pela escola pública, n'em mesmo se preocupa-
ram em vestir a máscara da "orientação para o trabalho" no ensino de
1<? grau. Fizeram de conta (ou assumiram mesmo) que todos os alunos
tinham capacidade para o "aprofundamento nos estudos gerais" e esta-
vam interessados nisso.
Mas, será que o GOT tinha razão de ser na sociedade brasileira?
Nossa resposta é um enfático não.
Não tinha razão de ser, antes de qualquer outra coisa, pela filoso"
A política educacional da ditadura teve no "ensino profissionalizante" fla difusionista que permeava os planos de sua implantação. Como a
uma das suas "realizações" mais ambiciosas. .política da ditadura fazia em diversos outros setores, imaginava-se que
Tratou de multiplicar os ginásios orientados para o trabalho a instalação desses "ginásios modernos" nas capitais dos Estados e nas
(GOT) e tornar o 2? ciclo do ensino de 2? grau (o antigo colegial) cidades mais importantes do interior iria fazer com que a modernidade
compulsoriamente profissional. se difundisse desses centros educacionais para a periferia arcaica, aca-
Vamos começar pelos ginásios orientados para o trabalho e ver o bando por fazer com que todo o sistema de ensino se modernizasse.
que eles tinham a ver com o trabalho. Ora, essa política de modernização vai de encontro à lei de ferro do de-
Nas duas primeiras séries do antigo ginásio predominavam as dis- senvolvimento capitalista que força as pessoas mais qualificadas e os re-
ciplinas de caráter geral, ao lado de disciplinas vocacionais, destinadas cursos materiais mais abundantes a convergirem para as regiões e as ci-
a sondar aptidões: artes industriais ou técnicas agrícolas, conforme a dades mais prósperas, justamente o contrário do que os pólos difusores
economia da região onde o ginásio se localizasse. Nas duas últimas sé- pretendiam fazer. E o pior é que essa política difusionista tão "vendi-
ries, aumentava a carga horária destinada às disciplinas vocacionais. Os da" pelos "cientistas sociais" norte-americanos nos anos 50 e 60, e
alunos poderiam escolher entre dedicar-se às artes industriais, às técni- oficializada pela ditadura, tem encontrado partidários em prefeitos,
cas agrícolas, às técnicas comerciais, à educação para o lar ou, ainda, ao governadores e parlamentares eleitos pel~ povo. Apressados que estão
aprofundamento dos estudos gerais. Essas disciplinas vocacionais teriam em «mostrar serviço", visando as eleiçõe(vindouras, optam por instalar
o objetivo de continuar a sondagem vocacional, de modo mais profun- algumas grandes e bem equipadas escolf ao invés de melhorar o con-
do, de forma a fundamentar a escolha de cursos profissionais ou gerais, junto da rede pública, embora menos espetacularmente. Com isso, aca-
no 2<? grau, caso os alunos prosseguissem os estudos; caso contrário, a bam continuando a política educacional da ditadura, elitista, ao bene-
iniciação profissional, facilitando o rápido treinamento numa ocupação ficiar alguns poucos, em detrimento do maior número.
específica, já em serviço. O GOT não tinha razão de ser, também, no seu modo de sondar
Pois bem, cerca de 600 ginásios desse tipo foram construídos no aptidões e de iniciar para o trabalho. Para comentar isso, .vamos consi-
Brasil, para o que muito contribuíram os assessores norte-americanos e derar o caso das artes industriais e da educação para o lar.
os dólares da USAID. E foram assimilados pela reforma do ensino de As artes industriais ensinadas no GOT não eram industriais. Eram,
19 e 29 graus de J 971 (lei 5 .692) como se tivessem sido feitos sob me- isto sim, artesanais: trabalho com madeira, metal, cerâmica e outros
dida para o segundo segmento do 19 grau. · materiais, com os alunos utilizando ferramentas simples para cortar,
Hoje, a maioria desses GOT, já sem esse nome, está com as salas- dobrar, encaixar, unir, polir, e coisas assim, para produzir ·pequenas
ambiente usadas para outras finalidades, os equipamentos deteriorados peças. Ora, a tendência do processo de trabalho, no Brasil como em to-
ou trancados a sete chaves, "postos a salvo" dos alunos. A própria idéia do o mundo, é no sentido da destruição do artesanato pela indústria
da sondagem de aptidões e de iniciação para o trabalho-já se .dissolveu mecanizada e até mesmo automatizada, onde não há lugar para o arte-
no ensino aguado que a política educacional da ditadura conseguiu fa- são. O operário é inserido numa linha de produção onde opera máqui-
zer nas escolas públicas. As escolas particulares, voltadas para o ensino nas e equipamentos feitos sob medida, rião tendo, como o artesão, ca-

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pacidade de fabricar todo o produto. Não se trata de fabricar fogões a dura, com as bênçãos do imperialismo enviadas pelos acordos MEC-
lenha, mas computadores. Ao capital interessa que os trabalhadores ~AID. ·
não tenham de dominar todo um conjunto complexo de operações, de
conhecimento de matérias-primas, de processo, de estética, etc., justa-
mente para que possa intercambiá-los, dispor deles em abundância; para A profissionalização no ensino de 2? grau, embora situada no mesmo
que possa comprar uma força de trabalho cada vez mais barata, em quadro ideológico, teve razões diferentes para sua generalização como
suma. foi feito pela mesma lei 5.692, de l 971. '
Que aptidões o GOT pretendia sondar? Aptidões para o trabalho
A idéia de a~abar com os cursos clássico e científico, que só pre-
cada vez mais desqualificado, alienado? Que utilidade tinha iniciar os
paravam para vestibulares, tornando todo o colégio (o 2? ciclo do anti-
alunos em trabalhos artesanais se eles iriam inserir-se em linhas de pro-
go 2? grau) profissionalizante, nasceu da preocupação de conter a pro-
dução que dispensavam qualificações artesanais? cura de vagas nos cursos superiores.
Além do mais, não tem sentido a prática de atividades artesanais
para sondar as aptidões dos alunos para cursos técnicos a nível de 2? A procura de cursos superiores vinha crescendo no Brasil desde
grau. Os técnicos industriais projetam, desenham, administram, con- os anos 40, impulsionada pela inviabilização dos pequenos negócios ao
trolam custos e qualidade, supervisionam grupos de pessoas. Devem ter alcance das camadas médias, correlativamente ao crescimento das buro-
informação, e, às vezes, até mesmo conhecimento do que os operários cracias do setor público e do setor privado. A redefinição do papel da
fazem: Em nenhum caso, sua formação implica o domínio das tais artes mulher no tr~b~o, valo~z~ndo-se cada vez mais sua atividade produti-
industriais, que não passam de técnicas artesanais. Pensar que sim foi va extra-domesttca, constltum outro fator que impulsionava o aumento
um grande equívoco de pessoas que desconheciam a produção, dela só da procura de vagas nas escolas superiores.
tendo as visões fantasmagóricas de antídoto contra o "comunismo" e o Essa demanda se dirigia às instituições públicas, por serem gratui-
pecado. Esse equívoco não teria importância se essas pessoas não tives- tas (ou quas~ ) •. j~ que os jovens das camadas médias procuravam cami-
sem o poder que tiveram, de transformar suas fantasias em diretrizes e nhos para mmlffitzar os custos de seus projetos de ascensão social. Mas
bases do ensin·o de J? grau! o governo instalado pelo golpe de Estado não se dispunha a servir aos
A educação para o lar reunia outro conjunto de estereótipos acer- projetos ,d.as cama~as médias. Embora lhes atirasse algumas migalhas,
ca da produção. Só que, agora, tratava-se da produção doméstica, de en- suas pohtt~as dest~navam-s~ a facilitar o processo de acumulação do
sinar as meninas - às vezes os meninos, só que não se levava isso a sério g:~nde capl~~· e nao os proJetos do candidato a médico, a professor de
- a preparar alimentos e roupas, a conservar a casa, a fazer orçamentos f:s1~a, a pstcologo, a e~o~omista, a contabilista, e a outras ocupações
domésticos, tudo dentro do mais cândido quadro conservador "daquilo hp~cas das c.~~das medias. Impunha-se, pois, pela própria lógica do
que se chama lar". Com muita razão, mães de alunas resistiam a esse ti- reg1n1e au tontano, conter essa demanda de ensino superior. Os dirigen-
po de educação para suas filhas, pois não as queriam qualificadas em tes do Estado temiam que, se o número de formados aumentasse muito
"fomo e fogão" para serem empregadas domésticas. Afinal, os sacrifí- estes r:_ão en~ontrari:un empregos compatíveis com suas expectativas d~
cios que faziam era para que a escola ensinasse o que elas não sabiam, ascensao soctal: tenamos advogados-balconistas, economistas-motoris-
para que suas filhas não tivessem de permanecer na semi-servidão que o · tas, médicos-vendedores, professores-datilógrafos e outras "irracionali-
trabalho doméstico, no Brasil, implica. dades" tão comuns nos tempos atuais. O que aqueles conservadores
Que "aptidão para o lar" o GOT esperava ensinar? Que ensino homens do poder temiam é que esses "desajustados profissionais" se
técnico a nível de 2? grau poderia ser recomendado a uma aluna que transformassem em agressivos contestadores do regime. Não eram ca-
quisesse prosseguir seus estudos? Seria algüm curso "espera-marido"? pazes de perceber que o povo brasileiro tinha muitas e variadas razões
Ou esse seria em grau superior? mais fortes do que essa, para lutar pelo f1m da ditadura. . . '
Todo esse equívoco pedagógico, misturado aos estereótipos con- Por outro lado, sabiam não ser politicamente conveniente para o
servadores, assumiu ares de modernidade na política nacional da dita- regime elevar ainda mais a visível barreira dos exames vestibulares, pois

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o número de "excedentes" crescia a cada ano, assim como suas reivin- cos não por causa da falta de técnicos, mas porque faltavam empregos
dicações de aumento do número de vagas nas univ~rsidades públicas. para engenheiros, e estes venciam aqueles nâ competição. E não era por
As escolas técnicas industriais eram o festeJado modelo do novo outra razão que grande parte dos que concluíam os cursos técnicos in-
ensino de 2? grau profissionalizante. Elas não eram muitas, no Brasil, dustriais acabavam indo para uma escola de engenharia em busca de um
no fim dos anos 60. Apenas algumas dezenas, mas gozavam de alto con- diploma (nem sempre de uma qualificação) que os habilitasse a disputar
ceito, muitos dos seus ex-alunos conseguiam bons empregos ou faziam em melhores condições os cargos que lhes eram destinados como técni-
bons cursos superiores. Só que o que dav~ certo _com pou~as escolas, cos. Iriam ver, também, que o pequeno número de enfermeiros nos hos-
com alguns milhares de alunos, e no setor md~stnal, ~ao .tl~a de dar pitais, em comparação com o número de médicos, não decorria da falta
certo com todas as escolas de 2C? grau, com ma1s de dms milhoes de alu- de escolas de enfermagem. Havia vagas sobrando. Os médicos definiam a·
nos em todos os setores da economia. Muitos administradores educa- divisao do trabalho na instituição hospitalar e impunham todo um mo-
cio~ais sabiam disso, mesmo dentro do próprio Ministério da Educação. 'do de tratamento que desincentivava a procura dos cursos de enferma-
Foram calados pelas ameaças dos coronéis que controlavam o MEC e gem. E por aí afora.
seus ardorosos aliados civis. Eles iriam ver, também, que o sistema educacional brasileiro não
Contrariando, então, as pessoas que conheciam o mundo da pro- seria capaz de implantar, mesmo gradualmente, uma transformação des-
dução (fora dos quartéis e dos gabinetes do Con~elho Fe~eral de ~du­ se tipo, por absoluta falta de recrusos humanos e materiais. Ademais,
cação), o governo enviou ao Congresso um proJeto dele~ (que veio a veriam não ser possível para as escolas oferecerem habilitações profis-
resultar na lei 5.692/71), tornando universal e compul~onam~nte,pro­ sionais conforme as mudanças da economia na região onde se localiza-
fissional o ensino de 2? grau. Acabavam os cursos clássico e Cientifico. vam. Como definir o perímetro do mercado de trabalho influenciado
Acabava, também, a especificidade das famosas escolas técnicas indus- por uma dada escola? O bairro? A cidade? O estado? O país inteiro?
triais e das escolas normais, pois seus cursos seriam, como o de todas as Como saber onde os jovens V<To trabalhar depois de quatro anos, quando
demais escolas de 2? grau, profissionalizantes, isto é, conferiam aos es- se formarem, ainda mais num país como o nosso, onde 40% da popula-
tudantes uma hooilitação profissional como técnico ou auxiliar técnico. ção são migrantes? Como quantificar a procura por técnicos de uma dada
Com isso, os planejadores educacionais d~ ditad~ra imagin~var_n especialidade numa economia essencialmente anárquica, como a capita-
resolver dois problemas, ao mesmo tempo. Haven~ u:na 1mens~ carenc1a lista, e cronicamente em crise, como a brasileira? Além do mais
. ' a divi-
de técnicos e auxiliares técnicos de todas as especialidades, CUJOS cargos são técnica do trabalho não se faz pelos critérios tão "certinhos" e sim-
estariam sendo ocupados por p~ssoas sem forn:ação apropriada, sim.ples plificados de níveis de escolaridade. Nada disso ocorria ao pensamento
"práticos", e por pessoas escolarizadas demais, como os engenhe~os, dos otimistas coronéis do Ministério da Educação e de seus letrados
que estariam então subutilizadas. Esses ca~gos não er~ preenc~dos conselheiros ...
por pessoas de formação adequada.- o~ técmcos e ?s auxiliare~ técmcos_ Sancionada a lei pelo general-presidehte Em11io Médici, com a
_ porque não havia cursos profissiOnais em quantidade suficiente. Por assinatura de seu ministro da Educação, o coronel Jarbas Passarinho,
is~o, os egressos do 29 grau, dos cursos de caráter geral, o clá~sico e o passou-se à sua implantaça-o, alardeada como a tábua de salvação da
científico, eram "obrigados" a se candidatarem a ~ursos supenores, e~ educação nacional: agora, sim, a profissionalização dava aos pedagogos
busca de uma formação profissional. Daí o congestiOnamento dos vesti· da ''revolução" a resposta para a pergunta sobre a articulação entre a
bulares. Com a profissionalização universal e compulsória, os estuda~tes escola e o desenvolvimento!
já sairiam do 2? grau com um~ ha?i~i:aç~o profi~sio~al e proc~ra~~ As escolas particulares, ciosas dos interesses imediatos de sua
logo um emprego, o que não sena dificll, já que o 'milagre econoiDico clientela, inventaram a profissionalização do faz-de-conta: já que seus
prometia empregos e salários crescentes. . alunos estavam interessados mesmo era no curso superior, fantasiavam
Só que não era nada disso o q~e aco~tec1a. , . de "curso técnico de análises clínicas" o currículo das turmas orienta-
Se os planejadores educacionais da ditadura sa1ssem dos seus gab~­ das para o vestibular· de medicina; ''tradutor-intérprete", para os de
netes, iriam ver que os engenheiros estavam ocupando o lugar dos técm- letras; ''mecânica", para os de engenharia, e outras "soluções" dessa

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ordem. No caso de um caro colégio religioso, que atendia à elite econô- de brasileira,. era .encarada como uma perd~ de tempo. Aos administra-
mica de sua cidade, o curso ''técnico" era de mecânica de automóveis, ?ores e_ducaci~ncus também não, pois se viam diante da tarefa imensa e
pois os futuros universitários já tinham como certo ganhar um carro do Imposs1vel de Implantar um projeto inviável, mesmo se houvesse dinhei-
pai se fossem vitoriosos nos exames vestibulares! Muitas escolas parti· r? sobra~do, o que não era o caso. Aos técnicos em educaÇão, menos
culares nem se preocupavam com o disfarce, tamanha era a certeza de am?a, pots eles rec.?m~ndava:n, já em 1969, nos encontros que antece-
que tal farsa impediria os fiscais das secretarias de educação de agirem d~na~ a V Confer:ncia ~actonal de Educação (cassada, aliás, pelo Mi-
contra elas, ainda mais quando a rede pública enfrentava problemas msténo da Educaçao ), a enfase .na educação geral no ~nsino de 2'? grau,
bem maiores na adaptação dos currículos. a~é mesmo para qu~ se c~nsegutsse pr~pi~iar adequada formação profis-.
Mas, para o CFE, parece que bastáva um parecer seu para mudar o SIO~al, cada vez mais realizada nos propnos locais de trabalho. Aos vir-
mundo do trabalho. O parecer 45/72 relacionou 130 habilitações para tu~Is empregadores de técnicos de nível médio, a profissionalização
técnicos e auxiliares técnicos. Em certos casos, previam-se várias ocupa· umversal e compulsória também não interessava.
ções "típicas" de um mesmo setor. Para a indústria de tecidos, por . É ~at? conhecido que as pequenas empresas empregam uma quan-
exemplo, previam-se oito habilitações: técnico têxtil, técnico em fiação, tidade dimmuta de técnicos de nível médio formados em escola- 0
técnico em tecelagem, técnico em malharia, técnico em acabamento que não quer dizer que não tenham funcionários desempenhando ftm-
têxtil, desenhista de padronagem, auxiliar de laboratório têxtil em fi. ções que poderiam s~r. desempenhadas por aqueles. A esperança dos
bras e tecidos, auxiliar de laboratório têxtil em química. Novas habilita- pron:~t?res dessa pohttca é que as grandes empresas, os principais be-
ções, com seus currículos mínimos específicos, foram sendo acrescen- neficianos e agentes do "milagre econômico", fossem abrir as portas de
tadas à lista original. Em agosto de 1974, o número de habilitações do seus departamentos de pessoal para os técnicos que iriam sair das forna-
ensino de 29 grau já chegava a 158, algumas delas aprovadas apenas das das escolas de 29 grau convertidas à pedagogia profissionalizante.
para certas unidades da federação. Mas, só. mesmo os coronéis do Ministério da Educação, seus letra-
Os estragos na rede pública foram enormes. do.s co?selhetr~s e o~ apressados co~vertidos a essa pedagogia novida-
A

As escolas normais foram desativadas, sendo o curso de formação deua e que n~o ~bt~ da tendencia das grandes empresas, principal-
de professores primários (da 1íl à 4íl série, na nova e prolixa lingua- mente ~s multmacioncus .e as estatais, de empregarem o menor número
gem) transformado em apenas mais uma habilitação do elenco oferecido possível de técnicos industriais formados em escola. Justamente os téc-
pelas escolas, para onde iam •OS alunos que, por suas notas, não conse- nicos industriais, modelo celebrado da nova política educacional.
guiam vagas nas turmas de habilitações mais atraentes. Isso, mais o cur- . As resistências que se desenvolveram contra a política de profis-
rículo aguado da habilitação, teve danosas conseqüências para a quali- siOnalização compulsória ganharam força quando a crise do "milagre ·
dade do ensino. As escolas técnicas industriais sofreram violêncià seme- econômico" eclodiu em fins de 1973, forçando-a a mudar sua forma de
lhante. Os certificados de seus cursos valiam, agora, o mesmo que os atu~~ã?. Previa-se como inevitável uma política econômica que viria
conferidos pelos cursos improvisados das outras. Nlfo foram poucas as a dmdtr profundamente (e dividiu, de fato) as classes dominantes bem
escolas técnicas transformadas em "centros interescolares", onde os como a própria base militar da ditadura. Isso levou o governo a se ~rien­
alunos das demais eram "apresentados" a máquinas, instrumentos, equi- tar para a "distensão" e para a ''abertura", na tentativa de incorporar
pamentos, num rodízio que não era suficiente para o ensino profissio- n~vos se~ent?s sociais à sua base social. Sabemos que as oposições
nal, nem dava espaço para a continuaçlfo do ensino que elas desenvol- ~ao quenam aJUdar a segurar o andor da ditadura, mas, jsto sim, que-
viam há muito tempo. O mercado de trabalho para o técnico industrial na~ derr~tá-la. O. governo procurava cooptar alguns contesta dores,
piorou, com isso, ao invés de melhorar. retirar motivos de contestações, de modo a diminuir a força dos oposi-
A quem interessava a política de profissionalização universal e tores do regime.
compulsória no ensino de 2<? grau? Para ~so, impunha-se a modificação de políticas setoriais que ge-
Aos empresários do ensino certamente não, pois elevava seus cus- ravam tensoes, entre elas a tão criticada profissionalização universal e
tos. Aos estudantes também não, pois, nas condições sociais da socieda- compulsória no ensino de 29 grau.

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O general-ministro da Educação Ney Braga deu a ordem de "meia próprios erros. As resistências continuaram, assim como a pressão do
volta, volver", por mensagem ao Conselho Federal de Educação, na qual movimento de professores, dos empresários do ensino, dos estudantes
incorporava algumas críticas dos setores mais brandos do próprio Minis- e dos técnicos em educação.
tério da Educação. O CFE, antes um bastião poderoso na defesa do Depois de estudos promovidos pelo Ministério da Educação, em
ensino profissionalizante, executou a ordem do ministro e deu meia vol- associação com universidades, o governo enviou ao· Congresso um
ta: numa ardilosa ''reinterpretação" da lei 5.692/71, um parecer do con- curto mas incisivo projeto de lei, logo aprovado, alterando profunda-
selho manteve o "ideal" do ensino profissionalizante, mas redefiniu seu mente a lei 5.692/71. Em 1982, já não era politicamente possível ao
conteúdo, permitindo aumentar a carga das disciplinas de caráter geral. CFE mudar uma lei por um mero parecer. Era preciso outra lei.
Só mesmo numa ditadura, um parecer de conselho, formado de pessoas Pela lei 7.044/82, a qualificação para o trabalho, antes visada pela·
nomeadas pelo Presidente da República, pode alterar, por mera "rein- lei 5.692/71, foi substituída pela preparação para o trabalho, um termo
terpretação", uma lei votada pelo Congresso Nacional. Nesse caso espe- .impreciso que mantém, na letra, a imagem do ensino profissionalizante,
cífico, a arbitrariedade até que permitiu recuperar um pouco os danos mas permite qualquer coisa. A lei da reforma da reforma retirou, de uma
sofridos pelo ensino de 29 grau. Mas, quantos males não terão resulta- vez por todas, a obrigatoriedade da habilitação profissional no 29 grau,
do de arbitrariedades como essa? Vai levar tempo levantá-las todas e mesmo a tal habilitação básica. Agora, o ensino de 29 grau poderá ense-
computar seus efeitos. jar habilitação profJSsional.
Além da formação de técnicos e auxiliares técnicos, o ensino pro- Retirada, gradativamente, a profissionalização universal e compul-
fissiorralizan te de 29 grau passava a visar, para a maior parte dos alunos, sória, o que foi posto em seu lugar? Nada. A preparação para o trabalho
principalmente a educação geral, com alguma:: tinturas de informação pode se resumir em atividades que difundam uma visão abstrata do tra-
tecnológica, correspondentes a alguns setores da produção. Além da balho numa sociedade abstrata, com resultados pedagógicos muito
multidão de habilitações específicas já aprovadas, haveria uma ''habilita- ruins, ainda mais quando se leva em conta que a maior parte dos alunos
ção básica" em agropecuária, cinco para a indústria e quatro para o co- de 20 grau já trabalha, ou seja, já conhece, ainda que de forma difu-
mércio e os serviços. sa e confusa, o trabalho real numa sociedade especz'fica, com tudo o que
Na nova concepção da profissionalização salvadora, a divisão, tem de formativo, de criativo, mas, também, de exploração e de aliena-
antes bem definida, entre a parte geral e a parte especial do currículo, ção.
ficou borrada pelo reconhecimento de que há disciplinas da parte de Voltamos ao ponto de partida piores do que estávamos. As esco-
educação geral que podem ser consideradas instrumentais para uma ha- las públicas de 29 grau foram desorganizadas, seus currículos transfor-
bilitação profissional, constituindo parte da formação especial. No caso maram-se num amontoado de disciplinas, onde se misturam as concep-
da habilitação básica em agropecuária, por exemplo, a parte de forma- ções positivistas do CFE com os· penduricalhos dos interesses do mo-
ç:ro especial do currículo compreendia J .050 horas, assegurando a pre- mento, como a educação moral e cívica. As escolas técnicas industriais
dominância da formação especial sobre a educação geral. No entanto, sofreram, especialmente, com todo esse desacerto, pois, por consegui-
apenas 600 dessas 1.050 horas (27% da carga horária do currículo ple- rem manter um ensino de alta qualidade, viram-se procuradas por levas
no) compreendiam disciplinas que poderiam ser consideradas propria- de estudantes que pouco ou nenhum interesse tinham por seus cursos
mente profissionalizantes (agricultura, zootecnia, economia e adminis- profissionais. Desorganizado o ensino público de caráter geral nas esco-
tração agrícola). As demais 450 horas da carga de formação especial las públicas de 29 grau, e deteriorada sua qualidade, esses estudantes
deveriam ser preenchidas por disciplinas denominadas instrumentais viam nas escolas técnicas industriais a única maneira de terem acesso a
(desenho básico, química, biologia, física e programas de orientação um ensino gratuito que lhes propiciava uma adequada preparação para
profissional) que não são outra coisa senão educação geral, somada à os exames vestibulares aos cursos superiores.
que o núcleo comum do currículo já previa. Fracassada, então, a política de profJSsionalização universal e
Mas a meia profissionalização não agradou a ninguém, a não ser compulsória no ensino de 2? grau, a função contenedora que a ditadura
aos membros do CFE, ansiosos por uma retirada sem reconhecer seus dela esperava não chegou a ser desempenhada. Assim, as esperanças de

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conter os candidatos ao ensino superior teve de ser providenciada neste
grau mesmo, pela elevação das barreiras dos exames vestibulares. Ao
V. A Educação Moral, Cívica e Física .
mesmo tempo, procurou-se incentivar os cursos superiores de curta du-
raç·1fo, em especial os da área tecnológica (na área do magistério o
fenômeno foi outro), mas apartando os cursos e os estudantes das uni-
versidades, confinando-os nas escolas técnicas federais, então rebatiza-
das de centros federais de educação tecnológica. Numa operação bem
típica da ditadura - a mudança de rótulos -os concluintes desses cur-
sos deixaram de re'ceber o título de "engenheiros de operação", fonte
de tantas aspirações frustradas, para serem chamados de ''tecnólogos", Os regimes ditatoriais sempre procuraram substituir as instituições livres
categoria que procura marcar a separaç:ro dos técnicos de nível médio da sociedade para, na escola, imporem ao povo a educação moral e cívi-
e dos engenheiros (propriamente ditos). ca que servisse para consolidar o seu poder.
No Brasil, não foi diferente. A derrubada do Estado Novo, em
1945, e a nova Constituição, promulgada em 1946, aboliram a educação
moral e cívica em nome dos princípios liberais que reservaram às famí-
lias, às organizações religiosas, às entidades culturais, aos sindicatos e aos
partidos políticos a competência para tal educação.
Mas o golpe de 1964 encontrou vivas as idéias autoritárias do Es-
tado Novo e sobreviventes muitos de seus partidários, formando, é cla-
ro, nas ftleiras da conspiração antidemocrática.
Os setores mais brandos do movimento golpista, os que mistura-
vam a ânsia de soluções autoritárias com algumas pitadas de liberalismo,
não eram partidários da reintrodução da disciplina educação moral e
cívica -nos currículos escolares. Os setores mais extremados, principal-
mente os militares, achavam que as instituições sociais não eram capazes
de educar o povo segundo padrões morais e cívicos e, pior ainda, na sua
omissão, abriam as portas para a entrada de ''ideologias exóticas", prin-
cipalmente o tão temido comunismo. Para evitar isso, só mesmo a edu-
caçã'o moral e cívica nas escolas, com professor, programa, chamada,
prova e nota!
Neste sentido, o homem forte do governo Castelo Branco, o mi-
nistro da guerra, general Costa e Silva, tentou várias vezes que o Conse-
lho Federal de Educação determinasse a inclusão dessa disciplina nos
currículos escolares. Sem sucesso. A resistência oposta por Anísio
Teixeira e Durmeval Trigueiro conseguiu impedir que os conselheiros
partidários do golpe prestassem mais esse serviço à "revolução reden-
tora". Em março de 1966, apesar da resistência, um decreto de Castelo
Branco determinou que o Ministério da Educação estimulasse, em todo
o país, a educação cívica. Esse decreto resultou de uma exposição de
motivos do ministro da guerra apresentados ao marechal-presidente,

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onde podemos ver argumentos muito parecidos com os do positivista vica deveria, obrigatoriamente, integrar os currículos escolares de todos
Teixeira Mendes em seu livreto A incorporação do proletariado na so- os graus e modalidades do sistema de ensino' do país.
ciedade moderna, escrito em 1889. Dizia o general-ministro Costa e Essa disciplina, "apoiando-se nas tradições nacionais", teria por fi-
Silva: "A fam11ia moderna facilita, de certo modo, a implantação e a nalidade:
evolução da Guerra Revolucionária, de vez que, perturbada pela evolu- a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito
ção econômica e social e por solicitações de toda ordem, ela não mais religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com res-
assegura, de modo completo, a sua função educadora. Freqüentemente ponsabilidade, sob a inspiração de Deus;
dissociada, particularmente em razão do trabalho da mulher fora do lar b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éti-
e da conjuntura econômica que a aflige, seus membros se vêem obriga- cos da nacionalidade; ·
dos a operar fora do quadro familiar típico, cada qual atraído por um c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade
pólo exterior." humana;
O papel da nova disciplina seria preencher o ''vácuo ideológico" d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições, e os grandes
deixado na mente dos jovens, para que n[o fosse preenchido pelas vultos de sua história;
e), o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família
"insinuações materialistas e esquerdistas". e a com unidade;
A educação moral e cívica seria a maneira da escola suprir essa f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da
deficiência da educação familiar. Mas, ao contrário do que propunham organização sócio-político-econômica do País;
os positivistas fundadores da República, ela não deveria ser mais uma g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas, com fun-
disciplina dos currículos escolares. Ela deveria ser uma prática educati- damento na moral, no patriotismo e na ação construtiva visando ao bem
va visando "formar nos educandos e no povo em geral o sentimento de comum;
apreço à Pátria, de respeito às instituições, de fortalecimento da: famí- h) o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na
lia, de obediência à Lei, de fidelidade ao trabalho e de integração na comunidade.
comunidade, de tal forma que todos se tornem, em clima de liberdade
e responsabilidade, de cooperação e solidariedade humanas, cidadãos As oito finalidades da disciplina incorporavam e ampliavam as da
sinceros, cçnvictos e fiéis no cumprimento de seus deveres", Deixada prática educativa pensada três anos antes. Seria ministrada do curso
a critério dos professores· e diretores de escola, quase nada foi feito primár~o ao superior, inclusive na pós-graduação. No ensino superior,
nesse sentido, por causa do bom senso que os levava a resistir a essas ela sena mascarada de Estudos de Problemas Brasileiros. Os programas
idéias abstratas ou contrárias ao sentimento da maioria do povo, vítima ·dessa disciplina (mascar.ada ou descarada) seriam elaborados pelo Conse-
de uma exploração econômica e de uma repressão política sem paralelo lho Federal de Educação, com a colaboração da Cornis.são Nacional de
na história. Moral e Civismo, composta de seis pessoas nomeadas pelo Presidente da
Mas, no início de 1969, aqueles conselheiros democratas já não República, "dentre pessoas dedicadas à causa". O ministro da Educação
eram membros do Conselho Federal de Educação. Anísio Teixeira tinha passava a poder conferir a Cruz (a simbologia é altamente significativa)
concluído seu mandato e não fora reconduzido. Durmeval Trigueiro foi do Mérito da Educação Moral e Cívica às pessoas que se destacassem na
aposentado compulsoriamente do serviço público e perdeu o cargo no "dedicação à causa". A Comissão Nacional de Moral e Civismo reunia
. '
Conselho Federal de EducaÇão. Estava derrubada a barreira contra a entre seus membros, zelosos generais, que se articulavam com a Censura
disciplinarização da educação moral e cívica. Federal, e civis militantes de direita. A primeira composição da comis-
Baixado o AI-5 em dezembro de 1968 e deposto o vice-presidente são foi a seguinte; general Moacyr de Araújo Lopes, presidente; almiran-
Pedro Aleixo, em setembro do ano seguinte a Junta Militar que ocupou te Ary dos Santos Rangel; padre ~rancisco Leme Lopes; e os professo-
a Presidência da República deixou um decreto-lei (nÇl 869) resultante res Elyvaldo Chagas de Oliveira, Alvaro Moutinho Neiva Hélio de Al-
~ '
cantara Avelar, Guido Ivan de Carvalho e Humberto Grande. Este últi-
de um grupo de trabalho da Associação dos Diplomados da Escola
Superior de Guerra, determinando que a disciplina educação moral e cí- mo, veterano da ditadura varguista, escreveu o livro A pedagogia do Es-

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tado Novo e, na nova ditadura, A educação dvica e o trabalho, além de cantado, em tupi-guarani, por professores e alunos do Curso de Educa-
Educação dvica das mulheres, uma consolidaçi!o do que havia de mais ção Moral e Cívica realizado pela Sociedad'e Educativa e Literária Bra-
conservador nos estereótipos machistas (na versão fascista), celebrando sileira, no Rio de Janeiro, em julho de l 970.
o papel da mulher como silenciosa, modesta, oculta, mas indispensável Esse caráter dissimulador e anestesiador das contradições que dila-
auxiliar do grande homem. ceravam nosso país atravessa todo o parecer. Aqui está um exemplo
As finalidades da educação moral e cívica representavam uma só- disso:
lida fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da :f preciso a!mnar-se claramente que a pessoa humana está acima do Estado,
doutrina da segurança nacional, conforme era concebida pela Escola e que este não teve outra razão de ser nem outra finalidade senão.a de pôr-
Superior de Guerra. Não foi por acaso que a Comissão Especial do Con- se a serviço da Pessoa, do Homem, de sua explicitação, de sua realização, de·
selho Federal de Educação encarregada de dar as diretrizes para os pro- sua fidelidade. A educação moral e cívica no Brasil, portanto, inspirada
gramas dessa disciplina teve como relator o arcebispo de Aracaju, Lucia- nas grandes linhas da Constituição Na<:ional, terá como objetivo a forma-
no José Cabral Duarte (parecer nÇ> 94/7 l ). ção de cidadãos conscientes, solidários, responsáveis e livres, chamados a
participar no imenso esforço de desenvolvimento integral que nossa Pá-
Membro do Conselho Federal de Educação, o arcebispo Luciano
tria empreende, atualmente, para construção de uma sociedade democrá·
jâ era o mais destacado intelectual da corrente integrista da Igreja Cató- tica, que realiza seu próprio progresso, mediante o crescimento humano,
lica, que tem resiStido às mudanças produzidas pelo Concílio Vaticano moral, econômico e cultural das pessoas que a compõem.
II e seus desdobramentos teológicos e pastorais. Como parte do acordo
entre o setor reacionário da hierarquia da Igreja Católica e· a ditadura, o Que pessoa humana estava acima do Estado? Não era, certamen-
arcebispo Luciano assumiu a presidência do Movimento de Educação te, o camponês, oprimido pelo latifundiário através dos jagunços e da
de Base, demitindo toda a equipe técnica, na m.esma época do parecer tropa da Polícia Militar; nem o operário da empresa multinacional, sub-
moral e cívico. Em seguida, atrelou o MEB ao Departamento de Ensi- metido pelo.arrocho salarial; nem o funcionário público, com seus ven-
no Supletivo do Ministério da Educação, transformando o mais impor- cimentos cortados a cada mês pela inflação impiedosa; nem o público
tante sistema de educação de base jamais organizado no Brasil em mera em geral, acossado pela opressiva propaganda oficial do "Brasil: ame-o
linha auxiliar do Mobral, justamente quando este des·pontava como a ou deixe~o"! Seria o próprio arcebispo Luciano a pessoa humana que
grande solução para conquistar apoio-das massas à ditadura. estava acuna do Estado? Ou o general-presidente Eml1io Médici? Ou os
Apesar do parecer do arcebispo-conselheiro proclamar que a edu- grandes latifundiários? Ou os executivos das multinacionais? Ou os
cação moral e cívica devesse ser aconfessional, isto é, não vinculada a banqueiros? No momento mais tenebroso da ditadura (J 971 ), com mi-
nenhuma religião e a nenhuma igreja, a incorporação das doutrinas tra- lhares de brasileiros encarcerados por motivos políticos, ou, apenas, de
dicionais do catolicismo e de seus quadros não era sequer disfarçada crença, com a tortura sendo a regra de tratamento dos presos políticos,
nos textos e diretrizes da Comissão Nacional de Moral e Civismo, nem como dizer que a "pessoa humana estava acima do Estado"? Algumas
nos livros didáticos que ela aprovava para uso nas escolas. O parecer delas sem dúvida estavam. Mas a maioria do povo brasileiro estava era
proclamava que a religião é que era a base da moral a ser ensinada. Para embaixo do Estado, submetida a uma cruel ditadura que a educação
escapar desse paradoxo, o arcebispo Luciano lançava mão do conceito moral e cívica procurava san tiflcar, com o auxílio da religião católica
de "religião natural", isto é, aquela que leva ao conhecimento de Deus tradicional.
pela luz da razão. Assim, ficavam afastadas todas as religiões afro-brasi- Como as grandes linhas da Constituição Nacional poderiam ins-
leiras, apesar de efetivamente praticadas por dezenas de milhões de pes- pirar a formação de cidadãos conscientes, solidários, responsáveis e li-
soas, relegadas, pelos moralistas e civilistas, à condição de resíduos de vres? A Constituição em vigor fora profundamente marcada por uma
ignorância ou de curiosidades folclóricas. O mesmo acontecia com as emenda que a Junta Militar impôs ao Congresso, mutilado pela onda de
crenças indígenas, apesar do cínico culto dos índios como os primeiros cassações de mandatos que se seguiu ao AI-5. Educar moral e civica-
brasileiros. Enquanto eles estavam sendo mortos pelos grileiros e pelos mente homens livres era coisa que só se poderia fazer pelo fim da dita-
policiais a serviço dos latifundiários, o Hino Nacional Brasileiro era dura militar, pelas liberdades democráticas, pela anistia, pela revoga-

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Ção dos atos autoritários e suas conseqüências, pela convocação de Nos cursos superiores, o conteúdo da disciplina educação moral e
eleições livres e da futura Assembléia Nacional Constituinte. cívica, travestida em Estudos de Problemas Brasileiros, deveria con-
Ao contrário disso, o parecer do arcebispo Luciano dizia que os templar, explícita e detalhadamente, as políticas da ditadura para resol-·
cidadãos brasileiros eram chamados a participar do "imenso esforço de ver os "problemas soc.iais, políticos e econômicos": política habitacio-
desenvolvimento integral que nossa Pátria empreende". nal, política de transportes, política de comunicações, política monetá-
Que desenvolvimento?, perguntamos. O dos projetos faraônicos ria, política previdenciária, política externa, política educacional, polí-
que levaram à geração de uma das maiores dívidas externas do mundo? tica de ciência e tecnologia, etc. Para culminar, o papel das Forças Ar-
Ao aumento dos índices de mortalidade infantil devido à deterioração ·madas no "processo sócio-econômico" do Brasil, a. "guerra revolucioná-
das condições de vida? À substituição das plantações destinadas ao mer- ria", a dou trina da "segurança nacional", a Escola Superior de Guerra.'
cado interno (ao consumo popular) por produtos para exportação, que O parecer relatado pelo arcebispo Luciano, com todos seus pro-
nosso povo não come? À deterioração da qualidade da escola pública? gramas, foi aprovado pela Comissão Especial de Moral e Civismo do
À difusão de uma imagem triunfalista do Brasil, um verdadeiro escárnio Conselho Federal de Educação: Raymundo Moniz de Aragão, que, en-
diante da miséria do nosso povo? À celebração da censura como o direi- quanto ministro da educação do general-presidente Castelo Branco pro-
to do Estado-Pai definir o que pode e o que não pode ser lido e ouvido moveu o decreto-lei 228, contendo a atuação das entidades estudantis
pelo povo-criança? Será em tudo isso que consiste o crescimento huma- e assinou os convênios MEC-USAID; Esther de Figueiredo Ferraz, de·
no, moral, econômico das pessoas que compõem a sociedade brasileira, fensora do pagamento do ensino superior nas universidades públicas e
de que fala o parecer do arcebispo Luciano? ministra da educação do general-presidente João Figueiredo; Therezinha
Além das diretrizes gerais para a educação moral e cívica (e sua Saraiva, importante quadro da política educacional autoritária, tendo
Versão mascarada Estudo de Problemas Brasileiros), o parecer apresenta presidido o famigerado Mobral; José de Vasconcelos, padre salesiano co-
programas detalhados dessa disciplina para o curso primário, o curso responsável pela política de profissionalização universal e compulsória
médio e o curso superior. no ensino de 2<? grau; Tarcísio Padilha, dirigente da Associação Brasi-
No curso primário, o conteúdo do ensino deveria estar centrado leira de Filósofos Católicos, destacado propagandista do tradicionalismo
na "comunidade", esta categoria mitológica pela qual a direita celebra a religioso, defensor da introdução do ensino de fllosofia no ensino de 2<?
Coesão social e condena os diferentes e os desviantes - mito do qual a grau, como uma forma de absorver o conteúdo da educacão moral e
esquerda tem sido, também, prisioneira. . cívica, quando esta disciplina passou a ser ameaçada pelas lutas em prol
No curso médio (ginásio e colégio) o conteúdo da disciplina já era da democratização do ensino.
mais explicitamente ideológico: o trabalho como um direito do homem
e um dever social (pelo qual cada um dá a contribuição de que é capaz Em suma, o ensino da moral e do civismo teria por lema Deus,
Pátria e Faml1ia, como a doutrina do integralismo, o fascismo brasileiro
para fazer funcionar o conjunto da sociedade, sendo a exploração ape-
nas um caso lamentável e excepcional); as principais características do explícito dos anos 30. Por isso não foi surpreendente que o coronel-
sistema de governo brasileiro (apresentado como democrático, posto a ministro da Educação Jarbas Passarinho homologasse, em 1973, opa·
recer da Comissão Nacional de Moral e Civismo, favorável ao Compêndio
Salvo dos "comunistas" pela "revolução redentora"); a defesa das insti-
tuições, da propriedade privada e das tradições cristãs" (com a rejeição de instrução moral e dvica, de autoria de Plínio Salgado. Também não
foi surpreendente que, antes mesmo do decreto-lei da Junta Militar so-
das idéias exóticas que os agentes da subverção internacional estariam
bre essa matéria, o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, tivesse determi-
tentando inocular em nosso "povo simples e ingênuo", para dividi-lo
nado o ensino da moral e do civismo em todas as escolas primárias da
por lutas fratricidas); a responsabilidade do cidadão para com a seguran·
capital paulista, já no ano letivo de 1969.
ça nacional (isto é, para com a segurança do Estado, aceitando o gover-
no dos militares, que deteriam o monopólio do patriotismo e da clari- Na prática, a disciplina educação moral e cívica foi lugar de em-
Vidência das aspirações do povo brasileiro e dos "objetivos nacionais prego preferencial para padres, freiras e militares, estes nos cursos supe-
Permanentes"). riores.

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. Acontecia de tudo, em nome da moral e do civismo. Desde a es- . VI. A Universig~de:_
perada propaganda acintosa da ditadura, até o cometimento de violên- Modernizada, Amordaçada e Privatizada
cias psicológicas contra as crianças, como em um caso, noticiado pela
imprensa, de um menino de l l anos que saiu chorando da aula de moral
e cívica. A pergunta da prova era- "pode um ateu ser um bom pai?" A
resposta considerada correta pela professora era não, mas o menino não
se conformava, pois, filho de ateus, insistia em responder que tinha um
bom pai.
Alguns professores conseguiam, às custas de artimanhas, con-
tornar os programas oficiais e desenvolver, com os alunos, atividades O gol?e. ~íl~tar foi fatal para a Universidade de Bras11ia, a mais impor-
produtivas de resistência à ideologia oficial, desenvolvendo uma atitude tante Imciatlva governamental no campo do ensino superior.
crítica. Infelizmente, seu número foi pequeno, não só por causa das per- Em abril de l 964, começou o segundo ano letivo da mais jovem
seguições que lhes eram movidas, como também pelo grande número de e mais moderna de nossas universidades, que reunia professores dos
candidatos dispostos a veicular todo aquele conteúdo de "amoral e ci- mais competentes em seus campos de conhecimento, assim como estu-
nismo", como a sadia resistência dos alunos batizou a nova disciplina. dantes de todo o país, selecionados por meio de exames vestibulares es-
Convergente com essa orientação conservadora da educação moral peciais. Além do mais, ela desenvolvia uma arrojada experiência de utili-
e cívica·, a ditadura enfatizou também a educação [l'sica. As duas disci- zar, como instrutores dos cursos de graduação , os alunos'
dos cursos de
plinas já formavam um par coerentemente conservador no Estado Novo e pós-graduação, oportunidade privilegiada para se observar seu desem-
assim foram retomadas após o golpe de l 964. penho, para o caso de candidatura a professor da universidade, após a
A idéia-força da ênfase na educação física era a seguinte: o estu- obtenção dos graus de mestre ou de doutor.
dante, cansado e enquadrado nas regras de um esporte, não teria disposi- As novidades da Universidade de Brasl1ía de caráter estritamente
ção para entrar na política. Esta idéia era, aliás, adaptada de outra que organizacional e pedagógico, fizeram com que' sobre ela recaíssem as
os militares desenvolveram para os recrutas e os alunos das escolas mi- iras dos reitores das universidades arcaicas, que se sentiam ameaçados
litares. no conforto de seu poder pelos ventos de renovação que sopravam no
A técnica de controle. que os militares estabeleceram fez com que ensino superior. Além dos reitores, não eram poucos os catedráticos que
fossem abrindo caminho nas organizações voltadas para a educação fí. difamavam a nova universidade como "antro de marxistas". Também
sica e os desportos, na burocracia do Ministério da Educaçã'o - a que eles se sentiam ameaçados pela sua estrutura, na qual os privilégios do
essa área está afeta - e fora dela. Em todos esses órgã'os havia a presen- regime da cátedra vitalícia não eram reconhecidos: na Universidade de
ça maciça de militares em cargos de direção. Brasília, obrigada pela lei a ter cátedras, estas foram redefinidas, deixan-
Sob os generais Geisel e Ney Braga, as bolsas de estudo deveriam do de ser um cargo para ser um grau universitário.
ser concedidas, de preferência, aos alunos de qualquer nível que se sa- Não queremos dizer que tudo na Universidade de Brasília funcio-
grassem campeões desportistas. Com isso, visava-se uma seleção às aves- nava da melhor maneira. Havia várias questões criticáveis como o reco-
sas: ao invés do desempenho intelectual e profissional, o desempenho nhecimento, pelo estatuto e regimento, de que o ensino' superior seria
desportivo. E houve universidades, como a Gama Filho no Rio de Janei- pago pelos estudantes, com gratuidade apenas para os "carentes"· o
ro, que levaram esse espírito às últimas conseqüências, com rendosos modelo de isolan:e.nto da Faculdade de Educação resultante da fr~g­
frutos para ó patrimônio de sua entidade mantenedora. mentaçã'o .da tradiciOnal Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que
Buscava-se com essa política desportista produzir a "coesão na- tantos efeitos nefastos tem produzido Brasil afora; a intrincada rede de
cional e social" que a ditadura não havia conseguido com o Mobral nem óig~?s colegiados e .de coordenações, propiciando a diluição das respon-
com a propaganda via televisã'o. sabilidades e o surgimento, em contrapartida, de dirigentes autoritários;
e ainda outras. Nada disso, entretanto, diminui a importância da Univer-

80 81
sidade de Bras11ia pelo seu pioneirismo, pelo arrojo de suas concepções das· universidades de nosso país. Ela podia mais facilmente evitar os
e pela demonstração de empenho em reunir, no seu corpo docente, o vícios das outras e tirar partido d~ inovaçôes.
que havia de melhor nos diversos campos do conhecimento, como Mau- Por isso, a modernização inovadora, representada pela Universida-
rício Rocha e Silva, na Biologia; Victor Nunes Leal, Waldir Pires e An· de de Brasl1ia nos dois primeiros anos de sua existência, cedeu lugar,
tonio Luiz Machado Neto, no Direito; Anísio Teixeira, na Pedagogia; por força do golpe, à modernização conservadora, movida pela legisla-
Oscar Niemeyer, na Arquitetura; Cláudio Santoro, na Música; e outros. ção autoritária, quase toda feita à base de decretos-leis, principalmente
A jovem universidade nem bem estava totalmente implantada os de n9 53/66 e 252/67.
quando o golpe ceifou cabeças de sua direção e dos seus corpos discen- Esses elementos de política educacional procuraram fazer com
te e docente. Mais do que isso, alterou seu plano original, extinguindo que todas as universidades federais adaptassem sua estrutura ao figuri-
unidades in te iras e alterando as remanescentes, como, por exemplo, a no da Universidade de Brasília, utilizando, para tanto, um importante
fusão dos departamentos de História e de Geografia, numa prefiguração motivo: o princípio da ''não duplicação de meios para fins idênticos ou
do que viria a acontecer com o currículo do ensino de 19 grau (os "es- equivalentes". De fato, quando as faculdades isoladas foram justapostas
tudos sociais") e com as licenciaturas ''polivalentes". para formar as universidades, elas mantiveram a estrutura anterior. Com
No entanto, a sobrevivência da estrutura inovadora da Universida- isso, havia onerosas e injustificáveis duplicações. Por exemplo, a facul-
de de Brasl1ia foi garantida pela reforma da Universidade Federal de dade de direito, a faculdade de filosofia, ciências e letras, a faculdade de
Minas Gerais, que, ent:ro, se desenvolvia pela liderança do Reitor Aluí- economia, e a escola de engenharia, de uma universidade típica, manti-.
sio Pimenta. Deposto pelo general Carlos Guedes em abril de 1964, mas nham, cada qual, sua(s) cátedra(s) de economia, com seus catedráticos,
reposto na reitoria por força de uma movimentação social em defesa assistentes, auxiliares de ensino, suas bibliotecas, suas assinaturas de re-
da autonomia universitária, os setores mais obscurantistas da ditadura vistas estrangeiras. Quando se pensa no custo da duplicação dos labora·
tiveram de esperar a existência do Ato Institucional n9 5 para aposen- tórios de física e de química, pela mesma razão, não se pode deixar de
tar compulsoriamente Aluísio Pimenta do magistério dessa universida- reconhecer a procedência daquele princípio, apesar de todos os estragos
de federal, à qual retomou como professor emérito em 1979. que sua aplicação desregrada trouxe para as universidades.
Depois da Universidade Federal de Minas Gerais, a Universidade A organização de departamentos foi a maneira encontrada para
Estadual de Campinas preservou a estrutura da UnB, por iniciativa de juntar no mesmo '1ugar" da uriiversidade todos os professores, pesqui-
Zeferino Vaz, paradoxalmente um dos reitores-interventores da Univer- sadores, laboratórios e outros recursos de um mesmo campo do conhe-
sidade de Brasl1ia. Outras também o fizeram, o que mostra a resistên- cimento. Por exemplo, todos os físicos num '1ugar", todos os sociólo-
cia contra a ditadura vitoriosa na própria sobrevivência -e até na mul- gos em outro. Nero para que eles ficassem isolados uns dos outros, mas
tiplicação - da estrutura daquela que foi, até hoje, a mais importante para que, a partir de seu "canto", cada uma das grandes especialidades
realização da intelectualidade brasileira no campo do ensino superior. prestasse serviço a toda a universidade. Ainda para dar um exemplo, o
Como toda ditadura, a que resultou do golpe militar de 1964 departamento de matemática aplicada (ou de estatística, se fosse oca-
tinha especial preferência pelas soluções padronizadas: como se a estru- so) oferecia aulas de estatística para os estudantes de engenharia, de ·
turação da universidade seguisse a lógica de um exercício de ordem uni- física, de química, de medicin,a, de agronomia, de serviço social, de pe-
da. Assim, ao invés de aproveitar a inspiração maior da Universidade de dagogia, de veterinária, de ciências sociais, de psicologia e de todos os
Brasília - a busca por uma universidade da estrutura, que melhor lhe outros cursos que tivessem essa matéria em seus currículos. Até aí tudo
convinha -, os burocratas do regime autoritário pro.curaram generalizar. bem. O problema foi que esse princípio de estruturação da universida-
e tornar compulsórias algumas das soluções que ela havia encontrado. de foi utilizado da mesma forma como um empresário usa a chamada
Aí, o sinal mudou, pois o que era bom para a Universidade de Brasília, "organização científica do trabalho" para aumentar seus lucros, man-
não era necessariamente bom para as outras. Essa universidade não tendo (ou mesmo baixando) os salários dos trabalhadores. Para aumen-
tinha de carregar o peso morto, de arrastar o lastro representado pela tar o "rendimento" dos ''recursos humanos" da universidade, juntaram·
herança das faculdades isoladas que se juntaram para formar a maioria se na mesma sala, com o. mesmo e único professor, todos os estudantes

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da mesma disciplina, por mais diferença que houvesse entre seus obje- til, promovida, logo em novembro de J 964, pela chamada lei Suplicy,
tivos, dificuldades e, o pior de tudo, em turmas grandes e heterogêneas. nome do primeiro titular do Ministério da'Educação no governo do ma-
Imagine o leitor como ficava bem mais "barato" colocar na mesma sala, rechal-presidente Castelo Branco (lei 4.464/64).
com um só professor, todos os alunos de uma universidade para apren- .A '_'l~i Suplic..('. obrigava os estudantes a votarem para a eleição
derem, digamos, estati:stica descritiva: os de engenharia, os de matemá- dos diretonos academtcos, mas, em contrapartida, limitava o campo de
tica e os de física juntos com 6s de psicologia, de serviço social e de atu~ção do movimento estudantil, tornando as entidades presas fáceis
pedagogia. Seria uma grande turma, ou melhor, uma turma grande, que da mtervenção das direções das faculdades e das reitorias das universi-
diluiria os custos do professor. Mas o resultado pedagógico sena o pior dades. Não sendo essa lei suficiente, foi baixado o decreto-lei 228/67,
, possível. Se o professor mantivesse o curso no nível de uns, os outros arrochan?o_ ainda ~ais as amarras das entidades estudantis e ameaçando
não poderiam acompanhar; se refizesse o programa em função destes, com puruç~es. o~ diretores e reitores que não as contivessem no campo
aqueles ficariam desestimulados. E não adiantava buscar um "ponto · d.e suas atnbUiçoes abso~u.tamente apolíticas, isto é, toda atividade polí-
médio". Pois bem, isso foi feito em todas as universidades que levaram tica que reforçasse a pohtiCa da ditadura.
a sério a orientação economicista da política educacional da ditadura,
particularmente no "ciclo básico". Esta figura de ficção educacional
procurava deslocar para dentro da própria universidade a escolha das
A cópia apressada e a generalização opressora da estrutura da Universi-
carreiras dos estudantes, criando uma espécie de ''vestibular interno", dade de Brasília para todas as universidades federais fizeram com que
prolongando as angústias do vestibular propriamente dito e acirrando as abortassem experiências muito promissoras de organização de faculda-
disputas entres os estudantes. Tudo isso em nome da recuperação das des de fllosofia, ciências e letras. A FFCL da Universidade de São Paulo
deficiências do ensino de 29 grau e da pretensão de evitar a especiali- foi a matriz de todas elas, a que melhor funcionava e que mais êxito te-
zação precoce ... ve na difícil tarefa. de articular, numa mesma unidade, os campos bási-
Para viabilizar a transição dos estudantes pelas disciplinas dos di- cos do saber. A legislação da ditadura não proibia a existência da FFCL
versos departamentos da universidade, em busca da integralização dos mas não p~rmiti~ que. ela continuasse a abrigar a seção de pedagogia:
seus também diversos currículos, os planejadores educacionais do re- que oferecm as disciplinas para os licenciados: deveda haver uma unida-
gime (lUtoritário importaram da universidade norte-americana outro re-
gime - o regime de créditos. A idéia era que os estudantes fóssem cole-
de própria para a "educação". Esse oportunismo au tonornista que os
pedagogos da ditadura conseguiram impor a todas as universidades fede-
cionando os créditos correspondentes às diversas disciplinas, lançando- rais criou um. ~recedente para a (auto)segregação das demais seções, ca-
os em seus históricos escolares, como se fossem depósitos em uma conta ?a ~ma ambi~IOnando constituir uma unidade própria, faculdade ou
bancária, até que tivessem o número exigido de créditos para se forma- mstltu to, e asslffi terem seus diretores como membros natos dos come-
rem. Aliás, nas universidades particulares, ao invés de depósitos em con- lhos universitários e as suas congregações exclusivas. A ditadura, com
tas bancárias, seria melhor dizer débitos. As instituições particulares de
essa ~br~cha, provocou o rompimento da barragem do provincianismo
ensino superior encontram no regime de créditos um excelente meio de
academico, que resistia à integração das faculdades na universidade nas-
cobrar dos alunos conforme a "consumação" do curso: os que fazem
cente.
mais créditos (cursam mais disciplinas ou disciplinas que valem mais
créditos) pagam mais: o preço do curso já é cobrado pela universidade O enquadramento da:s unidad~s na estrutura departamental aca-
em função do número de créditos. O nome certo deveria ser regime de bou por jogar mais água no moinho da reação à integração universitá-
débitos ... ria: cada "setor" do conhecimento, cada cátedra ou resíduo de cáte-
Onde o regime de créditos (ou de débitos) foi efetivamente im· dra lutava para constituir um departamento, apartando-se dos demais.
plantado, as turmas se desorganizaram, inviabilizando a antiga solidarie· Com isso, a estrutura departamental que, na Universidad'e de Bras11ia
dade entre os estudantes, força viva do movimento estudantil. Essa dis- seria um meio de impulsionar a integração universitária, acabou por s~
solução das turmas se somou à regulamentação do movimento estudan· transformar no seu contrário: um freio à integração universitária.

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Mas, a ânsia unifonnizadora da política educacional autoritária tipo acadêmico (apenas ficando a salarial ~ a de participação no poder
não parou aí. Em julho de 1968, .em meio ao crescimento dos protes-- dos órgãos colegiados, quando muito), abriu caminho para o triunfo
tos de amplos setores sociais contra a ditadura (estudantes, profissio· do individualismo docente, que dificulta ao máximo a formação dos
nais liberais, operários), o governo organizou um grupo de trabalho grupos de trabalho, mas induz a emergência dos meros grupos de inte-
para elaborar um anteprojeto de reforma universitária. Era a oportuni- resses. Esse padrão de individualismo docente, se não foi premeditado,
dade para estender a todo o ensino superior o que já havia sido imposto não deixou de ser aproveitado pela ditadura e seus prepostos, dentro da
às instituições federais. O anteprojeto de lei foi rapidamente enviado universidade, para impedir o ingresso ou para dispensar os professores
ao Congresso, onde o controle exercido pelo Executivo. conseguiu evi· considerados ameaçadores à ordem estabelecida. Mais uma vez vemos
tar a aprovação de numerosas emendas que procuravam aperfeiçoar as como a incorporação de uma· bandeira progressista pela política educa-
orientações dos planejadores educacionais da ditadura. cional da ditadura inverteu a posição, fazendo-a reacionária.
(, A chamada Lei da Refonna Universitária, n<;> 5.540/68, determina- Com o padrão universitário do ensino superior deu-se coisa um
va que todas as instituições de ensino superior se adaptassem a? m~de­ pouco diferente.
lo criticado acima J. á ensaiado no sistema federal. Mesmo as uruverslda· Há muito tempo que olhamos com inveja para riossos vizinhos
des' estaduais como ' a Universidade de São Paulo, de longa tradição, hispano-americanos que têm a universidade como padrão para o ensino
'
como as faculdades particulares que, então, se multiplicavam, tiveram superior, com faculdades isoladas só em casos excepcionais -e isso dês-
de se enquadrar aos novos dispositivos. de o século XVI. No Brasil, ao contrário, as universidades já nasceram
Não queremos dizer que todas as detenninações da Lei da Refor· tarde (a primeira que vingou foi em l 920) e são elas a exceção. Aqui,
ma Universitária derivavam diretamente da política educacional da di- as instituições de ensino superior surgiram fragmentadas, uma para cada
tadura. Procuravam incorporar algumas demandas de professores e profissão (ou grupo de profissões assemelhadas). Só lá por volta de
estudantes que, havia décadas, lutavam pelo aperfeiçoamento do ensi- l 960 é que começou a vingar um movimento pela agregação das facul-
no superior no Brasil. Duas das bandeiras incorporadas eram quase d~ em universidades. A "federalização" das faculdades foi o cami-
pontos de honra de suas lutas: a extinça-o da cátedra vitalícia e a univer- nho para i$so. O governo encampava as faculdades de uma cidade, fos-
sidade como padrão de organização do ensino superior. . sem estaduais ou particulares, e as juntava numa universidade. A maio-
Ao invés de propiciar a existência de diversos padrões de orgaru- ria das universidades federais autárquicas nasceu assim. Se esse processo
zação da carreira docente, a lei 5.549__ ~.!_~l?~t!_~Ill:e_rlte extinguiu o regime tivesse seguimento, talvez tivéssemos, hoje, a universidade como a regra,
de cátedra. De fato, a maioria-dos catedráticos talvez fosse,-é1trl968, não a exceção, em tennos de organização do ensino superior. Se fôsse-
professores improvisados, estéreis como pesquisadores, hábeis em esco- mos acreditar nas intenções explícitas dos planejadores educacionais
lher como assistentes os candidatos mais dóceis do que questionado- da ditadura, também deveríamos esperar isso, pms a própria lei da re-
res, mais medíocres do que inteligentes. No entanto, houve instituições forma universitária de l 968 dizia que o modo de organização preferen-
e áreas acadêmicas nas quais o regime de cátedra não impediu -ao con- cial do ensino superior seria a universidade.
trário, propiciou - o desen_vol_vimen~_o de padrões elevados de ensino, Por que aconteceu justamente o contrário?
de pesquisa e de prestaçí!o_d_e..s.erviço~l Foi o caso das faculdades de me- Antes mesmo que a lei da reforma universitária fosse rascunhada,
dicina, para falar numa área acadêmica. Foi o caso, também, da Univer· já tinha começado o crescimento do setor privado no ensino superior,·
sidade de São Paulo, para falar numa instituição específica, que teve que corria ansioso ao encontro da demanda não atendida pelas insufi-
em seus quadros professores ·catedráticos da maior competência. A "es· cientes universidades públicas. Como os empresários do ensino estavam
cola" de sociologia que se desenvolveu na USP, gérmen da fértil produ- fortemente implantados no Conselho Federal de Educação, aquela
ção brasileira e latino-americana, não foi barrada nem distorcida pelo orientação da lei virou letra morta. Os mesmos conselheiros que ajuda-
ram a redigi-la ou a aprovaram não tiveram escrúpulos em criar todo o
regime de cátedras.
Em contrapartida, o funcionamento do corpo docente em depar- tipo de facilidades para que as escolas particulares proliferassem como
tamentos, mas de um modo tal que não houvesse uma hierarquia do moscás, sem instalações adequadas, sem laboratórios e bibliotecas, com

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professores-fantasmas. Assim, a idéia de se fazer da universidade aregra são insuficientes para aquelas. Ainda mais) retomam a tese da cobrança
do ensino superior, como na maioria dos países do mundo, foi atropela- do ensino nas universidades públicas, a "preços de mercado", de modo
da pela própria política educacional implícita da ditadura. a eliminar a "concorrente", fosse a universidade pública uma empresa
O resultado de tudo isso foi que o ensino superior brasileiro é, como eles próprios definem seus empreendimentos. Justamente no
hoje, dos mais heterogêneos que existem. momento em que os estudantes são compelidos a abandonar os cursos
Temos instituições que podem se equiparar, em certos campos pagos das escolas particulares, as universidades públicas têm seus recur-
de conhecimento, apesar de tudo, às melhores do mundo, e outras que sos cortados, ficando assim impedidas de atender aos milhares de pe·
não passam de meras máquinas de venda de diplomas a longo prazo. didos de transferências que lhes são encaminhados pelos estudante.s
Infelizmente, estas são muito mais numerosas do que aquelas. atingidos pelas conseqüências danosas da crise que ·se abate sobre a so-
Temos universidades - cerca de 70 - e oito centenas de estabe- ciedade brasileira.
lecimentos isolados, nos quais a especialização esconde, na maior parte Mas, os problemas da universidade pública não se resumem à ca-
dos casos, a mais restrita concepção da ciência, da técnica e da cultura. rência de recursos. Vítima da ação repressiva do regime, teve alterado o
A progressiva redução dos recursos alocados às universidades tradicional mecanismo de escolha dos dirigentes, sendo obrigada a apre-
públicas, nos últimos dez anos, fez com que elas diminuíssem o desen- sentar listas de candidatos a reitor e a diretor de unidade, já não trígli·
volvimento da pesquisa científica, tecnológica e artística, atividade pe- ces, mas sêxtuplas, reduzindo, na mesma proporção, o grau de autono-
la qual são responsáveis em praticamente 90% de tudo o que se faz no mia de seus colegiados. Estes, por sua vez, contêm um número exagera-
país. Os recursos que as universidades públicas têm para a pesquisa, de do de membros natos ou escolhidos por categorias restritas, resultando,
seus próprios orçamentos, são irrisórios, sendo elas obrigadas a recorrer tudo isso, numa reprodução, interna à universidade, das práticas autori·
às agências governamentais de fomento, como o CNPq, a CAPES e a tárias que vigoravam no governo.
Finep. Estas agências, por sua vez, tiveram seus recursos reduzidos: ~m A Universidade de Bras11ia inaugurou a fundação como regime ju-
J 984 dispuseram.de apenas 20% do montante que lhes foi destinado em rídico da universidade federal, forte apelo para as estaduais que se cria-
] 975. ram depois dela. Desde então, o ensino superior público debate-se na
Nem mesmo a sustentação do potencial de pesquisa, como tam- busca de um padrão organizativo que evite os dois tipos extremos exis-
bém, do ensino, tem podido ser feita nas universidades públicas. Premi- tentes. De um lado, a autarquia, o tipo mais antigo, amarrado por uma
dos por uma política salarial malthusiana, os professores vêem-se obri- rede de peias burocráticas que premiam o conformismo e a incompe-
gados a deixar a universidade ou a estender a jornada de trabalho com tência, ao mesmo tempo em que castigam as inovações e desar4culam
outros empregos: os laboratórios param por falta de peças de reposição a pesquisa. De outro lado, a fundação, na qual a tão celebrada flexibili-
e recursos para manutenção; as bibliotecas se desatualizam pela míngua dade tem servido para facilitar o empreguismo de parentelas inteiras e
de verbas e pela elevação do preço das moedas estrangeiras que penali· a especulação no mercado fmanceiro, em proveito dos grupos dirigentes
zam especialmente a importação de livros e revistas. Por outro lado, a da universidade.
divulgação dos trabalhos fica prejudicada pela drástica redução de re- Igualmente inaceitável é a adaptação da rigidez da autarquia com
cursos pertinentes. a "í1exibilidade" da fundação: quase todas as universidades autárquicas
/ No grave momento em que vivemos, em meio a uma crise econô- organizaram fundações de direito privado para intermediar a captação
. mico-social que castiga nosso povo, grandes contingentes de estudantes de recursos para a pesquisa, para a administração de restaurantes uni-
estão abandonando os estabelecimentos particulares por não poderem versitários e outras funções que fazem parte do dia-a-dia da institui-
pagar as crescentes mensalidades cobradas por um ensino que nem sem- ção. Mas o preço pago por esse ganho imediato de "flexibilidade" é
pre corresponde aos seus anseios e necessidades objetivas. Neste mo- alto: o reforço, pelo isolamento, do setor não transferido para as funda-
mento, os interesses privatistas empenham-se numa bem orquestrada ções.
campanha de descrédito contra a universidade pública, de modo a car· De todo modo, o grande impedimento para que a fundação possa
~a seus próprios estabelecimentos de ensino os recursos que já vir a ser o regime jurídico ideal para a universidade brasileira é a depen-

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dência dos recursos externos para a sua manutenção: do governo, das
empresas particulares e das anuidades pagas pelos estudantes.
Fundação sem fundo, como as instituídas pela ditadura, estarão
fadadas ao fracasso acadêmico e administrativo, só lhes restando, para
sobreviver, subordinar o ensino, a pesquisa e a prestação de serviços à
busca do sucesso empresarial.

PARA REVERTER O GOLPE

Luiz Antônio Cunha


Moacyr de Góes

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Numerosas e variadas propostas de reformulação do sistema educacional aspirações dos que há tanto tempo lutam pela democratização da edu-
do país têm sido feitas por entidades do magistério, por sindicatos, por cação em nosso país.
associações científicas e por partidos políticos. A análise de todas elas é 4- A nova Constituição deverá· manter o encargo das empresas
tarefa que não cabe neste livro. com o ensino de 19 grau, só que, ao invés de incidência sobre a folha de
Vamos focalizar aqui as propostas - mais do que isso, as bandei- pagamento (o salário-educação), impõe-se encontrar uma fónnula que
ras - que têm sintetizado as mudanças de maior alcance no campo da faça essa contribuição incidir sobre o resultado econômico das unidades
educação: as mudanças que abrirão caminho para outras. de. produção. Com isso, será eliminado um dos elementos não-salariais
de aumento do custo da força de trabalho, razão pela qual niuitas em-
1 -A gratuidade do ensino público em todos os níveis é um obje- presas preferem adotar técnicas poupadoras de mão-de-obra, diminuin-
tivo fundamental a ser atingido, pois já existem escolas públicas de 29 do, por essa via, o número de empregos. Os recursos derivados da mu-
grau cobrando mensalidades dos seus alunos; sem falar no pagamento dança conceitual do salário-educação deverão ser geridos exclusivamen-
dos cursos das universidades federais e estaduais, às vezes até tão caros te pelo poder público, evitando-se que as empresas ou quaisquer outras
quanto· as faculdades particulares. Entendemos que a Constituição que entidades possam utilizá-los, sob qualquer pretexto. .
há de vir deverá incluir em seu texto um artigo como o da Constituição 5 -A nova Constituição deverá prever, como a de 1934 e a de
do Estado de São Paulo, de 194 7: "o ensino será gratuito nos estabele- 1946, que o Congresso Nacional aprove uma Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional que substitua a que foi aprovada em 1961 e
cirpentc;>s oficiais."
sucessivamente retalhada pelas leis, decretos-leis, decretos e até mesmo
2 -A dotação automática de recursos para o ensino, como deter-
mina a emenda constitucional n9 24 (emenda João Calmon} deve ser pareceres de conselho e portarias de ministro baixadas durante o regi-
mantida· na nova Constituição, nos mesmos termos: 13% da receita de me autoritário. A nova LDB resultará de um amplo e profundo debate
impostos, da União, e 25%, dos Estados e dos municípios; é quanto se nacional envolvendo os principais interessados nas diretrizes e bases
deve reservar para o ensino, independentemente de outros recursos or- da educação: o povo brasileiro.
çamentários e extra-orçamentários. A regulamentação desse dispositivo 6 -A nova LDB deverá rever as atribuições e a! composição do
constitucional· deve fazer com que essa fonte de receita provenha de Conselho Federal e dos Conselhos Estaduais de Educação, de modo a
todos os impostos, bem como sua destinação 'Seja mesmo o ensino. De- se evitar que continuem a desempenhar funções executivas e cartoriais
vemos estar atentos para que a formação de militares, de diplomatas e que não lhes cabem e a evitar, ainda, que continuem a ser trincheiras
de outros funcionários de burocracias fechadas não seja financiada com fortificadas dos grupos privatistas. A composição desses conselhos deve-
esses recursos. O que se quer é que essa dotação automática vá, de fato, rá ser feita com pessoas efetivamente comprometidas com o ensino
para o ensino pré-escolar, para o ensino de 19 grau, para o ensino de público, entre as quais representantes das entidades do magistério e, no
29 grau (aberto a todos, excluindo os colégios militares e as escolas de caso do ~onselho Federal de Educação, dos estudantes universitários.
cadetes) e para o ensino superior (também aberto a todos, sem contar as 7- A nova LDB deverá dar especial atenção ao atendimento es-
academias militares e as escolas internas às burocracias, sejam elas quais colar e para-escolar das crianças de zero a seis anos, sem que, entretan-
to, fique comprometida a prioridade efetiva da política educacional de
forem).
3 -Os recursos públicos destinados ao ensino devem ser aplica- universalização do ensino de 19 grau pela expansão da escola pública e
dos nas escolas e universidades públicas. Não podemos concordar com o gratuita de boa qualidade.
subsídio governamental a instituições particulares de ensino, por mais 8 - A nova LDB deverá buscar a construção de uma escola uni-
particulares que sejam, quando falta tanto para que o Brasil tenha um tária de caráter nacional, como garantia do acesso de todos os brasilei-
sistema público de ensino suficiente em tamanho e de boa qualidade, ros. a uma formação básica comum, independente do nível da riqueza
capaz de atender à procura existente e à do futuro, certamente maior r~g10nal, estadual, local e familiar. Não sendo uma escola única, pois
do que a de hoje. A nova Constituição deverá conter dispositivo reser- diversa no seu modo de ser e na adaptação às peculiaridades locais e
vando ao ensino público os recursos públicos, respondendo, assim, às nos métodos pedagógicos utilizados, a escola unitária visará combater

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as tremendas desigualdades educacionais existentes em nosso país e Sobre os Autores
promover a democratização do saber e da cultura, sem cair na tentação
fácil e antidemocrática de fragmentar a escola brasileira, confinando-a
aos horizontes de cada município, de cada distrito, de cada bairro, de
cada sotaque.
9 -A nova LDB deverá determinar a descentralização adminis-
trativa dos sistemas educacionais, pois o caráter unitário da escola só
adquire pleno sentido a nível local, onde o núcleo comum do currículo
articula-se com o contexto específico de cada escola.
1O -Essa descentralização administrativa e a plena construção LUIZ ANTONIO éUNHA é mineiro de nascimento (J 943), paulista de
da escola unitária dependerá. de uma reforma tributária que contemple educação e carioca de adoção. Lecionou na PUC (Pontifícia Universida-
os municípios e os Estados com uma participação muito maior do que de Católica) e na FGV (Fundação Getúlio Vargas), ambas do Rio de Ja-
têm tido, de modo que possam assumir iniciativas e responsabilidades neiro, e também na Unicamp (Universidade de Campinas). Atualmente
que lhes são inerentes, como a manutenção e a ampliação do ensino pú- é professor de Sociologia da Educação na UFF (Universidade Federai
blico e gratuito de boa qualidade. Fluminense).
1 1 -A nova LDB deverá estabelecer caminhos para a democrati- Além de colaborar para revistas especializadas, é autor de vários
zação da gestão do ensino público, tanto a nível de estabelecimento de livros, dentre eles: Educação e desenvolvimento social no Brasil (Rio,
ensino quanto a nível de sistema, evitando a utilização das instituições Francisco Alves, 13~ ed., 1985); A universidade temporã (Rio, Civiliza-
educacionais para a perpetuação de grupos ou partidos políticos. ção Brasileira, J 980); A universidade crüica (Rio, F. Alves, 2~ ed.
12 - Condiça'o necessária, embora não suficiente, da expansão e 1985). '
melhoria da qualidade do ensino público, em todos os níveis, é a valo-
rização do magistério que atua nos três graus de ensino. Além da ina-
diável recuperação das perdas salariais impostas pela ditadura, deve ser MOACYR DE GÓES nasceu em Natal (RN) em 1930. Foi secretário
estabelecido que a remuneração do magistério brasileiro não poderá de educ,ação do Município de Natal (1960-1964) quando se implantou
ser menor do que J 10% do valor do salário mínimo. Os professores·do o movimento de educação popular Campanha De Pé No Chão Também
ensino público como, aliás, todos os funcionários públicos, devem ter Se Apr_ende A Ler (analisada por ele neste livro). ·
reconhecido o direito à greve e às outras conquistas trabalhistas do povo E professor fundador da cadeira de História da América Latina no
brasileiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Universidade Federal
do Rio de Janeiro). Foi, durante 18 anos, coordenador e professor do
Estas são as medidas de grande alcance que,propiciarão reverter Colégio São Vicente de Paulo, no Rio de Janeiro.
o golpe aplicado na educação durante os 20 anos de regime autoritário. É autor de De Pé No Chão Também Se Aprende A Ler: uma esco-
Elas abrirão caminho para outras e permitirão a efetividade de uma série la democrática (Rio, Civilização Brasileira, 1980) e Educação para uma
de medidas de política educacional específicas a cada grau e tipo de ensi- sociedade justa (S. Paulo, Loyola, 1981 ).
no, muitas delas já delineadas pelas entidades e pessoas que lutam pela
democratização da educação no Brasil.

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