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INSTITUTO LOGOS

TERAPIA E ESTUDO DA FAMÍLIA


(AFILIADO À ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TERAPIA DE FAMÍLIA)

SOFIA RIBEIRO COUTO

CÂNCER COMO SINTOMA DE FUSÃO FAMILIAR

RIO DE JANEIRO
2022
SOFIA RIBEIRO COUTO

(1) MANIFESTAÇÕES DE APEGOS DOS PAIS NÃO RESOLVIDOS,


(2) BAIXO NÍVEL DE DIFERENCIAÇÃO,
(3) FUSÃO FAMILIAR.

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Curso de Formação em Terapia Sistêmica
Individual, Casal e Familiar do Instituto Logos -
Terapia e Estudo da Família, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Terapeuta Familiar Sistêmica.

Orientador(a): Marizete Rodrigues


Coorientador(a): Elizaete Arona

RIO DE JANEIRO
2022
Dedico este trabalho àqueles a quem
pertenço, minha família, lugar de feridas e
cura constante, razão da minha incessante
busca pelo conhecimento e meu desejo de
estudar, de ler e, acima de tudo, ouvir!
Agradecimentos

Ao meu Pai do Céu, Pastor do meu coração, de quem sou filha amada.
À minha família, que me deu um nome, um lugar de pertencimento e uma missão.
À família objeto desse estudo, que me deu o privilégio de estudá-los com amor e
empatia.
Aos meus filhos amados, Mateus e Lorena, que acrescentam valor imensurável à
minha existência, e aos seus pais, Renato e Johdnelly, pelo amor que nos uniu.
À Alessandra Emmerick por caminhar ao meu lado e acreditar.
À Marizete Cardoso, a quem quero ser igual quando crescer.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou


A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar


Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,


E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

Fernando Pessoa
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo a discussão sobre como a baixa diferenciação
do eu no contexto sistêmico familiar reforça a fusão entre os membros em momentos
cruciais do ciclo vital familiar, podendo acarretar sintomas físicos crônicos, como o
câncer. Neste sentido, usou-se os conceitos de epigenética aplicados à teoria
Boweniana.

Palavras-chave: terapia familiar sistêmica. Fusão familiar. Bowen. Epigenética.


Câncer

Introdução: A terapia familiar sistêmica iniciou-se a partir dos estudos do


psiquiatra Murray Bowen sobre esquizofrenia e a influência da família no processo
sintomático, agravante ou amenizante da doença. Por estar ancorada nos processos
biológicos dos sistemas naturais, a teoria de Bowen integra e envolve toda a família
no processo elástico de diferenciação, sendo a sua falta chamada de fusão. O conceito
de ciclo vital familiar também é explorado sob o olhar da epigenética, que declara que
os desdobramentos emocionais de um indivíduo depende, influencia e é influenciado
pelos estágios de desenvolvimento psicossocial, e as modificações epigenéticas são
um mecanismo biológico de trauma transgeracional. O objetivo deste trabalho é
alinhar esses dois conceitos no estudo de um câncer não-hereditário.
Abstract
The present work aims to discuss how the low differentiation of the self in the family
systems context reinforces the fusion between members at crucial moments in the
family life cycle, which can lead to chronic physical symptoms, such as cancer. In this
sense, the concepts of epigenetics applied to the Bowenian theory were used.

Keywords: family system therapy. Family fusion. Bowen. Epigenetics. Cancer

Introduction: Family systems therapy began with the studies on schizophrenia by


the psychiatrist Murray Bowen, and the family’s influence on the symptomatic,
aggravating or mitigating the disease. As it is anchored in the biological processes of
natural systems, Bowen's theory integrates and involves the whole family in the
elastic process of differentiation, the lack of which is called togetherness. The concept
of the family life cycle is also explored from the point of view of epigenetics, which
states that an individual's emotional unfolding depends on, influences and is
influenced by the stages of psychosocial development, and epigenetic modifications
are a biological mechanism of transgenerational trauma. The objective of this work is
to align these two concepts in the study of a non-hereditary cancer.
Lista de Ilustrações

Gráfico 1 – Triangulações na família nuclear e de origem

Gráfico 2 – Genograma transgeracional


SUMÁRIO

1 Conceituação
01Error! Bookmark not defined.
2 A identidade familiar e a sintomatologia dentro da visão natural
dos sistemas familiares ................................................................ 03
3 Apresentação do Sintoma Físico ................................................... 07
4 Histórico Geral............................................................................. 09
4.1 A Paciente Identificada ................................................................. 09
4.2 A Mãe da Paciente Identificada ....................................................... 10
4.3 O Pai da Paciente Identificada ........................................................ 12
5 Histórico Geral Do Sintoma Físico Da Paciente Identificada ........ 14
6 Embasamento Teórico e Hipótese da Causa Emocional ................ 16
7 Tarefas Práticas Aplicadas ........................................................... 20
7.1 Genograma ............................................................................. 20
7.2 Escultura ................................................................................ 22
7.3 Cartas De Despedidas ............................................................. 25
8 Resultados ................................................................................... 26
Conclusão .................................................................................... 27
Bibliografia .................................................................................. 28
1. Conceituação

Quando uma tempestade vem chegando, os sinos de vento pendurados nos


batentes das janelas são os primeiros a tilintar frenéticos, a tocar sua balada
desesperada e sem descanso, sem nunca se perderem do estribo. Assim são algumas
pessoas, se debatendo e convulsionando em suas tormentas internas, sempre presas aos
laços muitas vezes estranguladores do seu sistema familiar.

Não importa o quão forte seja, se levanta poeira apenas, ou se arranca as raízes
mais profundas e destrói as estruturas emocionais, toda tempestade alardeia a angústia,
acalenta o medo e a cacofonia das dores é o que passa a guiar os passos daquele que está
engolfado pela dinâmica familiar.

Durante a tempestade é possível sentir com intensidade a força dos


desentendimentos, o peso de mágoas passadas, os sentimentos embotados pelo medo,
as memórias não lavadas pelo perdão. Toda tempestade tem a função única de
desconstruir velhas mentiras com a violência avassaladora da verdade.

As mudanças no ciclo vital familiar podem ser entendidas como tais


tempestades. São os momentos de transição de um estágio desenvolvimental para outro,
e quanto maior for a ansiedade nesta fase, maior também será a disfunção e o sintoma.
É o nível de diferenciação entre os indivíduos que define como a família reagirá
nesses momentos cruciais.

A família humana segue as mesmas leis dinâmicas dos sistemas naturais, ou seja,
todos os elementos estão interconectados de modo a formar um todo organizado. Sendo
assim, não pode ser considerada como apenas a soma das partes que a compõem, já que
as interações entre seus elementos formam um todo coeso, com hierarquia de papéis e
funções determinadas por premissas e mitos que promovem modelos de repetição
reguladores da identidade singular desse sistema. Os movimentos realizados pelo
indivíduo nunca estão totalmente segregados do movimento familiar.

A prática clínica tem comprovado que a ansiedade gerada pelas mudanças no


ciclo vital familiar tem um importante papel no aparecimento de sintomas físicos e
psiquiátricos. A combinação de sintoma, sua severidade e duração dependerão da

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maleabilidade da família, e quanto mais severo é o sintoma, mais resistente à mudança
ela é. (Carter & McGoldrick, 1989).

A disfunção no sistema familiar aparece quando a comunicação entre os


componentes se torna redundante, a ponto de paralisá-los permanentemente em suas
triangulações. Para explicitar melhor, em TI (tecnologia da informação) quando
acontece uma falha que possa desabilitar o sistema primário, um sistema secundário
assume a responsabilidade, e a repetição de componentes críticos confere continuidade
ao funcionamento de um serviço, chamado de redundância. Da mesma forma, o objetivo
da redundância na família é garantir a não interrupção do seu funcionamento e evitar a
“perda de dados”, ou seja, a diluição do núcleo familiar.

Quando a comunicação é fluída, direta e não triangulada, a necessidade de


sistemas secundários desaparece. De acordo com Andolfi & Nichilo (1991) “nos
subsistemas familiares, os sintomas constituem as evidências do transtorno emocional,
físico ou social”.

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2. A Identidade Familiar e a Sintomatologia Dentro da Visão Natural dos
Sistemas Familiares
As pesquisas iniciais de Murray Bowen estavam focadas primariamente em como
uma doença acontece. Ele propôs que todos os problemas psicológicos, sociais,
comportamentais, físico-crônicos são um produto das forças emocionais que operam na
família (Kerr & Bowen, 1988; Nichols & Schwartz, 1998). Por estar ancorada nos
processos biológicos dos sistemas naturais, a teoria de Bowen integra e envolve toda a
família, e trata todo o funcionamento desta unidade emocional de forma
interdependente, de modo que todos os membros da família alimentam e são
retroalimentados pela reatividade emocional do outro. De forma simples, “cada pessoa
se torna prisioneiro emocional de como a outra pessoa funciona e nenhuma delas é
capaz de mudar seu próprio funcionamento para parar o processo” (Kerr & Bowen,
1988).
Como psiquiatra, Bowen estudou casos de esquizofrenia que deram início à sua
teoria de sistema de família. Suas pesquisas em pacientes com essa doença mostraram
que a natureza simbiótica do relacionamento mãe-filho tem origem num processo
biopsicológico profundo. Quanto mais intensa a relação simbiótica, mais o
funcionamento de uma pessoa é governado pelas emoções em seus relacionamentos. No
decorrer das gerações, dependendo do nível de intensidade dessa simbiose as partes
envolvidas nunca chegam efetivamente a desenvolver a autonomia um do outro (Kerr &
Bowen, 1988).

A essa simbiose, Bowen deu o nome de fusão familiar. O conceito fundamental


da teoria da “massa indiferenciada do eu familiar” se trata da identidade emocional
aglutinada que se dá em níveis progressivos de intensidade. Numa família, o pai, a mãe
e os filhos estão comprometidos uns com os outros em intensidades distintas. “O nível
de compromisso de cada membro da família depende do grau de compromisso básico na
massa do eu familiar” (Bowen, 1979). A relação simbiótica entre mãe e filho é um
fragmento de uma das relações mais intensas.

Veremos nesse estudo de caso que “em períodos de tensão, o processo pode
implicar toda a família nuclear, uma série de membros periféricos da família (...) Se a
tensão cresce, uma maior quantidade de pessoas se verá envolvida, já que os circuitos

3
emocionais se fixam em uma série de triângulos emocionais (...) Neste conceito é
importante o processo de projeção familiar, mediante o qual os problemas dos pais se
transmite aos filhos. As modalidades deste processo foram incorporadas a um terceiro
conceito que se refere a interdependência multigeracional dos campos emocionais
e a transmissão, feita pelos pais, de graus distintos de maturidade e imaturidade através
das gerações” (Bowen, 1979).

A ansiedade crônica causada por sistemas familiares homeostáticos engatilha


reações fisiológicas, psiquiátricas e comportamentais no intuito de manter a coesão e
equilíbrio (equifinalidade sistêmica) e o estresse dentro dos relacionamentos se
perpetua de acordo com a intensidade da fusão emocional ou o nível da diferenciação do
eu, retroalimentando a circularidade dos sintomas.

“Existem vários graus de fusão entre sistemas emocionais e intelectuais no ser


humano. Quanto maior a fusão, mais a vida é governada por forças emocionais
automáticas destrutivas, apesar da verbalização intelectual do contrário”. Quanto maior
a fusão entre a emoção e o intelecto, menor a diferenciação entre o indivíduo e as
pessoas ao seu redor, o que o torna mais vulnerável às doenças físicas, emocionais e
sociais, e menos capaz de controlar conscientemente sua própria vida. Mudança nos
sistemas emocionais interdependentes pode engatilhar o desenvolvimento de sintomas
clínicos, e o estresse crônico, geralmente associado aos aborrecimentos diários e
perenes, tem efeitos muito mais profundos na saúde se comparado com os momentos de
estresse agudo, que são aqueles desenvolvidos em momentos pontuais, ou seja,
evoluem rapidamente, mas não duram muito tempo.

Indivíduos com maior “diferenciação do eu” conseguem distinguir de maneira


racional as possíveis reações emocionais que a pluralidade do sistema força ou inibe.
Dessa forma, “é possível discriminar entre as emoções e o intelecto, e paulatinamente
ganhar mais controle consciente do funcionamento das emoções” (Bowen, 1978).

Em indivíduos altamente fusionados, qualquer mudança é vista como ameaça, e


seja ela real ou imaginária, as emoções sempre serão realocadas para o “modo de
sobrevivência” quando o indivíduo entender que o “perigo” é iminente. Steve Porges,
Diretor da Universidade de Illinois, descreveu a sequência de reações ao perigo baseado

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na evolução do sistema nervoso autônomo (responsável pelo controle da pressão
arterial, frequência cardíaca, temperatura corporal, peso, digestão, metabolismo,
equilíbrio hidroeletrolítico, sudorese, micção, evacuação, resposta sexual e outros
processos), e como a liberação repetitiva de hormônio cortisol (estresse) em estratégias
ineficazes de fuga promove o seu acúmulo no sistema nervoso central e são geralmente
experimentadas como náusea, exaustão e depressão (Hardson, 2013).

Para entender melhor como funciona o “modo de sobrevivência” que é


posteriormente engatilhado no processo de estresse crônico mencionado anteriormente,
imagine primeiramente uma situação de estresse agudo: caminhando por uma floresta,
você encontra um urso. O coração dispara, as pupilas dilatam, suas vias respiratórias se
abrem, e você está pronto para correr ou lutar. “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho
come”. Adrenalina e cortisol estão correndo soltos no seu corpo, conferindo pavor e
antecipação à situação. Cortisol aumenta a pressão sanguínea, inibe cognição,
desestabiliza o humor, atrapalha o sono, aumenta a sensação de alerta e de pavor,
estimula o acúmulo de gordura. Entre tantos outros efeitos, o cortisol também ativa o
sistema imunológico trazendo inflamação a qualquer área que esteja ferida com o
intuito de estabilizar a ferida e mantê-lo lutando pela vida. (Harris, 2018).

O que fazer, então, quando se vive com o “urso”? Quando o estresse agudo se
torna crônico pela convivência perene com o perigo? Quando o modo de sobrevivência é
ativado várias vezes ao dia? Quando o abuso físico e emocional é vivenciado
diariamente? O que acontece com o cérebro e com o corpo quando expostos a altas
doses de adversidades e enxurradas de hormônios em desequilíbrio? – veremos nesse
estudo de caso que a paciente identificada cresceu em um ambiente de estresse crônico.

“Em um estado de desequilíbrio, o sistema familiar atua automaticamente para


restabelecer o equilíbrio anterior ao todo, ainda que deva sacrificar alguém” (Bowen,
1987). De acordo com Bowen, na massa do eu familiar, os cônjuges empregam, acima de
tudo, três mecanismos para controlar a intensidade da fusão do eu:

1. Conflito conjugal;
2. Disfunção de um cônjuge;
3. Transmissão do problema a um ou mais filhos.

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Neste estudo de caso, apesar dos três mecanismos terem sido observados, focou-
se apenas no terceiro ponto, em como os problemas matrimoniais foram transferidos à
Paciente Identificada. “Neste caso, os sintomas significativos podem ficar embotados até
depois da adolescência, quando o filho cai em disfunção psicótica ou em uma grave
doença” (Bowen, 1987). Quando o grau de fusão é significativo, existe um intercâmbio
de forças entre a família nuclear e a família de origem, e em períodos de tensão, como os
observados nesse estudo de caso, a família nuclear se estabiliza mediante o contato com
a família de origem, no caso da PI, com a sua família de origem, e a mãe da PI, com a
família de origem dela.

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3. Apresentação do Sintoma Físico
Este estudo de caso analisa uma paciente com linfoma de Hodgkin. Para
entender esta doença é importante saber o que é câncer e como o sistema linfático
funciona – para ilustrar a hipótese levantada.

De acordo com o Instituto Nacional do Câncer dos EUA, “câncer é uma doença
em que algumas células crescem descontroladamente e se espalham para outras partes
do corpo”. Células cancerígenas diferem de células normais porque crescem sem que
tenham sido “ordenadas” a crescer, multiplicar ou morrer; elas invadem outras áreas do
corpo, já que perderam sua função principal e, entre outras coisas, se escondem do
sistema imunológico. Ao contrário das células normais, as cancerígenas não param de
crescer quando encontram outras células, ou seja, ultrapassam o limite de função e por
terem uma condição amorfa (acumulam múltiplas mudanças cromossômicas), se
locomovem pelo corpo, sendo capazes de aparecer em outras áreas (metástase).

Câncer é considerada uma doença genética no que tange às mudanças que as


células sofrem em seus genes e, consequentemente, que controlam a maneira como deve
funcionar. Essas mudanças podem acontecer por três principais motivos: (1) erros que
ocorrem quando as células se dividem; (2) deformidades no DNA em decorrência de
substâncias no ambiente, como tabaco ou raios ultravioletas; (3) herança genética dos
pais.

A linfa ou sistema linfático faz parte do sistema imunológico (sistema de


proteção) que abrange uma rede de vasos e gânglios linfáticos. Assim como as veias
carregam sangue, os vasos linfáticos carregam um líquido claro e aquoso cheio de
glóbulos brancos que ajuda o corpo a lutar contra infecções e outras doenças. Os vasos
linfáticos extraem o fluído linfático ao redor das células para enviá-los para o tórax. Lá,
o fluído se acumula em um grande vaso que drena para um vaso sanguíneo próximo do
coração. Os gânglios linfáticos são pequenas estruturas que trabalham como filtros para
substâncias estranhas, como células cancerígenas e infecções. Eles contêm glóbulos
brancos que ajudam a combater infecções, atacando e destruindo germes que são
carregados pelo fluído linfático. (American Cancer Society).

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O linfoma desta paciente se manifestou primeiramente nos linfonodos do
pescoço e posteriormente alojou-se no mediastino, o espaço existente entre os dois
pulmões que comporta estruturas como a traqueia, o coração, o esôfago, o timo e parte
dos sistemas nervoso e linfático. No momento da descoberta do câncer, este não era
operável.

A sintomatologia da PI é análoga à conceituação de câncer no que tange a (1)


perder a função principal de filha, (2) ultrapassar o limite da função assumindo um
papel parentalizado alimentado pela indiferenciação de seus pais, (3) comprometimento
da proteção do sistema (sistema imunológico). A dinâmica do sistema resulta em sua
necessidade de controlar a relação marital de seus pais e, consequentemente, como a
família dever funcionar.

A paciente identificada, assim como o sistema linfático, tomou para si a


responsabilidade de proteger o casamento dos pais, procurando intervir contra qualquer
“corpo estranho” que ameaçasse esse relacionamento frágil.

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4. Histórico Geral

Para este estudo de caso, foram entrevistadas a paciente, sua mãe e seu pai, e a tia
mais próxima, irmã da mãe. Todos os nomes foram alterados para preservar as
identidades.

4.1 A Paciente Identificada

A Paciente Identificada, que chamaremos de Christina, tem 36 anos, é casada,


tem uma filha.

Em entrevista conduzida com os pais de Christina, Bernardo e Luzia, ao contrário


do primeiro filho, ela foi um bebê planejado e muito esperado. Entretanto, a mãe
precisou passar por uma cesárea de emergência, pois a bolsa havia estourado, a
placenta, deslocado e ambas poderiam ter vindo a óbito caso a operação não tivesse sido
feita a tempo.

Christina nasceu em 1984, e diz que sua mãe ficou muito frustrada por saber que
seu marido foi primeiro ver a filha recém-nascida ao invés de ter ido vê-la no pós-parto
traumático, e se compadece da mãe dizendo: “foi sacanagem do meu pai ter ido me ver
primeiro ao invés da minha mãe. Mulher precisa de apoio. É muito foda dar à luz”.
Esta é a primeira fala que denuncia a triangulação com sua mãe.

A PI relata que seu pai sempre foi muito autoritário e sua mãe, sempre passiva e
submissa. Além disso, “ele era instável e a mesma regra nunca funcionava para dois dias
seguidos e havia sempre muita tensão”. Ele fumava escondido e isso era visto como
hipocrisia, como alguém sem moral, pois era bastante religioso e, de acordo com suas
próprias crenças, fumar não era permitido a um cristão.

Ela relata que a mãe a esqueceu um dia na escola e ela viu o pôr do sol sentada na
calçada.

Apesar de relatar que seu irmão era bastante protetor quando criança, com o
passar dos anos o relacionamento entre eles ficou muito competitivo. Christina sempre
achou que a mãe superprotegia e favorecia o irmão e não a ela, e que esperava mais

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proteção da mãe com relação ao pai e ao irmão, mas reconhece agora que a mãe era tão
vítima quanto ela, e ainda a enxerga desta forma, e por isso se fortaleceu para proteger a
si e a mãe (segunda fala denunciante de triangulação e fusionamento). Entretanto, Luzia
tem consciência de que o filho nasceu em circunstâncias completamente diferentes da
filha e que isso pode influenciar inconscientemente os laços que possui com o filho.

Situações de abuso sempre estiveram presentes na família, principalmente, as


verbais. A PI explicitou que, quando eram crianças, ela e o irmão estavam em estado de
alerta constante, principalmente no final do dia, próxima à hora do seu pai chegar. Eles
deveriam estar de banho tomado, alimentados e prontos para ir para a cama às 21h.

As disciplinas sempre eram violentas, e existia muita chantagem relacionada à


manutenção financeira da família. O pai usava seu poder aquisitivo para chantagear e
comprar obediência e favores.

A PI tentou sair de casa em 2005 quando os pais tentaram forçá-la a terminar seu
namoro com o atual marido, porque este não era cristão. Ela voltou para casa,
entretanto, e permaneceu com os pais até se casar. Comprou um apto no mesmo
condomínio que os pais e passou a concentrar em si várias responsabilidades
concernentes à vida deles, como planejamento de férias, pagamento de contas, compra
de automóveis, agendamento de compromissos médicos e legais.

Christina engravidou em 2018 e deu à luz em maio de 2019. Os primeiros


sintomas apareceram em outubro desse mesmo ano.

4.2 A Mãe da Paciente Identificada

Luzia é a filha mais nova de 6 filhos, temporã, nascida depois que sua mãe
passou por dois abortos, um espontâneo e outro causado por um acidente.

Ter sido amamentada no peito até os 5 anos de idade pode ser interpretado como
uma reivindicação velada da maternidade da sua mãe, que chamaremos de Maria, que,
ausente emocionalmente como mãe na vida de todos os demais filhos, colocava-se a si
mesma como “filha” do marido. Maria perdeu o pai aos 4 anos de idade e foi criada

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apenas pela mãe. Seu irmão mais velho tomou as rédeas como arrimo de família e foi
um homem muito duro, machista e abusivo com as irmãs e irmãos mais novos. Maria se
casou com José, que teve todas as irmãs abusadas sexualmente por um empregado de
seu pai que morava na casa da família. Há indícios de que José também tenha sido
abusado ou tenha presenciado o abuso.

A seu modo, Luzia foi a primeira entre seus irmãos a questionar hierarquia e
papéis dentro da família, apesar de ser muito introspectiva e não ter amizades.

Luzia e Bernardo casaram-se muito cedo, 17 e 22 respectivamente, em


decorrência da gravidez do primeiro filho. Ele foi o único namorado e apesar de vir de
uma família muito rígida, e ela ter um medo irracional do pai, ele não a obrigou a casar e
propôs a ajudar a criar a criança, mas esta preferiu casar para sair da casa dos pais, e
admite que se não tivesse engravidado, não teria casado. A hipótese levantada é que,
José compadeceu-se da situação da filha, pois viu o mesmo acontecer em sua família de
origem: sua irmã mais nova, também chamada Luzia, foi abusada sexualmente na
adolescência e engravidou.

Luzia conta que Bernardo foi um namorado muito romântico, mas um marido
muito exigente, crítico, manipulador, controlador e abusivo, em suas palavras. Luzia
sofreu agressão física e verbal no início do casamento, e seu pai foi até a casa deles com
uma arma de fogo para tirar satisfação. Prometeu matar o marido caso isso se repetisse.
Embora as agressões físicas fossem esporádicas e mantidas em segredo, os abusos
verbais seguiram e não era segredo para ninguém, porém, este assunto nunca era
conversado abertamente na sua família de origem e nunca procurou ajuda familiar para
resolver a situação.

Ela diz que a sua história é muito curta, sem grandes experiências, totalmente
voltada à família nuclear. Foi o filho que insistiu que ela fosse fazer faculdade. Cursou
psicologia, comenta que “não queria mais usar recursos dele”, referindo-se ao marido,
mas nunca efetivamente atuou. O casamento estava estabilizado nessa época.

Em 2019, quis se separar devido ao episódio de violência doméstica. Não estava


certa que queria continuar casada. Luzia comenta que o marido estava muito agressivo
devido à medicação que tomava. Nesse processo, foi fazer terapia e descobriu que não

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queria separação, “são 43 anos de casados em 2022. Minha a criação não ensinou que
em um relacionamento tudo é 50-50”.

Atualmente diz que “hoje a prioridade é a família nuclear” e que a terapia está
trabalhando o resgate da sua identidade.

Logo após a remissão do câncer da filha, decidiu mudar-se com o marido para
longe da filha, e admite que isso foi um movimento de diferenciação, “comecei a fazer
terapia para diminuir a fusão”.

Outra hipótese levantada sobre o mito familiar é o reforço da orfandade. Maria


foi órfã de fato, Luzia foi órfã emocional já que Maria foi parentalizada pelo marido.
Christina repete o padrão de sua mãe e potencializa o mito da orfandade quando dispõe
da própria vida pelo casamento dos pais, correndo também o risco de deixar sua filha
órfã em decorrência do câncer.

4.3 O Pai da Paciente Identificada

Bernardo iniciou a entrevista com “minha infância não foi saudável. Meu pai era
alcoólatra, violento e minha mãe respondia meu pai”. Comenta que os episódios de
agressão à mãe a deixava desmaiada e desfigurada, e que o pai reviveu a própria infância
nos filhos, pois também teve um avô muito violento.

É o segundo filho de seis, dois homens e quatro mulheres. Os pais foram casados
35 anos e diz que seu pai aguentou o casamento por causa dos filhos. Depois desses
anos, se separou da mãe e casou-se com uma sobrinha. Comenta que o pai sempre teve
amantes “era chique ter amante naquela época. Meu avô teve, meu pai teve. Era pura
expressão de masculinidade”, mas diz nunca ter tido.

Em suas próprias palavras, “a vingança contra meu pai era ser o melhor aluno”,
que dizia que ser bom aluno não era mais que obrigação. Filho de eletricista, Bernardo
cursou engenharia elétrica.

Bernardo sempre foi o filho com quem a mãe e todos os demais irmãos podiam
contar (indício de triangulação com a família de origem). Converteu-se ao cristianismo e

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diz que a religião tinha o papel de superego, de podar certos comportamentos. “Procurei
não repetir com os filhos e com a minha mulher os mesmos erros do meu pai e do meu
avô”, e entende que tem resquícios da repetição.

Reconhece que o relacionamento com Luzia era de pai e filha, e que demorou
para amadurecer para marido-mulher. “Fui um pai autoritário”, diz, e que entende que a
religião exercia um reforço do autoritarismo do sacerdócio e da manipulação do
dinheiro. Percebe-se aqui a repetição de história em que Bernardo está em um papel
parentalizado com Luzia, assim como José havia parentalizado Maria.

O aparecimento do câncer na filha coincide com a transição da vida corporativa


para aposentadoria. Admite que foi um processo muito desgastante e preocupante com
o risco iminente de óbito. “Minha neta tinha acabado de nascer, era um elemento novo,
eu tinha muito medo de perder minha filha e da minha neta perder a mãe. Foi muito
ruim ter toda essa sensação de perda, de risco de vida, de ir ao hospital e ver todas
aquelas pessoas, de todas as idades”.

Bernardo diz que o câncer teve o papel de unir, de ensinar a trabalhar juntos.
“minha neta foi um elemento aglutinador, fazendo com que o casamento ficasse mais
unido, de ficar mais junto em todas as demandas, nessa equipe de dois”.

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5. Histórico Geral do Sintoma Físico da Paciente Identificada

Os primeiros sintomas do Linfoma, identificados primeiramente como alergia


pois sentia muita coceira por todo o corpo, apareceram em outubro de 2019.

Essas coceiras coincidem com alguns meses depois da sua mãe ter sofrido
agressão física e verbal de seu marido. Christina chegou a ir com a Luzia a uma
delegacia para prestar queixa, mas devido à quantidade de pessoas à espera, não
conseguiram. No dia seguinte, Luzia voltou sozinha à delegacia e preencheu o boletim
de ocorrência. Essa situação alarmante fez com que Luzia começasse a questionar se
ainda queria continuar o casamento de 40 anos.

Nesta mesma época, Christina escreveu uma carta para o pai dizendo que o
estava “matando”, “enterrando vivo” e que não queria a filha perto de alguém como ele.
“Rompi totalmente com meu pai”, disse.

Dois anos anteriores ao diagnóstico do câncer, seu irmão mais velho, recém
divorciado, voltou para a casa dos pais e ali ficou em um processo de depressão não
diagnosticado clinicamente. Perdeu o emprego e dependia dos pais. A PI queixa-se de
que o irmão se tornou miniatura do pai, abusando da mãe nos afazeres domésticos, sem
ajudar em nada. Foi a mãe que deu um basta à situação, dando um prazo para que o
filho saísse de casa e “desse rumo à vida”. Ele achou um emprego numa cidade do
interior, mudou-se, e com a pandemia em 2020, limitou-se à distância imposta pela
situação e pela irmã, que, ao descobrir o câncer não quis convívio com ele, sob o
pretexto da baixa imunidade e risco de Covid. Os dois irmãos nunca tiveram bom
convívio depois que entraram na adolescência. Sempre houve disputa entre os dois por
atenção, brinquedos, dinheiro. A PI relata que sempre se sentiu preterida em relação ao
irmão mais velho.

No meio do processo de tratamento, a mãe da paciente pediu para que uma de


suas irmãs pudesse vir ajudá-la no dia a dia com a netinha, marido e cuidados com a
filha. Esta presenciou a seguinte fala em um momento de estresse da PI. “Agora é a
minha vez! Agora é a minha vez!” numa menção aos cuidados e atenção que ela requeria
da mãe.

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O câncer foi um elemento aglutinador de toda a família materna que, muito
religiosa, fizeram um “relógio de oração” durante os períodos mais estressantes do
tratamento e, também, uniu ainda mais “as quatro tias”, que passaram a reunir-se
diariamente para orar e prover conforto à mãe da paciente. A família paterna
aparentemente tentou algo do tipo, mas não vingou.

Após dois anos de tratamento, o linfoma regrediu até sumir e atualmente a


paciente encontra-se em remissão, fazendo apenas acompanhamentos periódicos.

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6. Embasamento Teórico e Hipótese da Causa Emocional

De acordo com Pegg Pappy (Minuchin & Fishman, 1981), três conceitos básicos
devem ser entendidos:

(1) A família é um sistema autorregulador;


(2) O sintoma é um mecanismo de autorregulação;
(3) A resistência sistêmica à mudança é resultado dos dois conceitos anteriores.

Por causa do sintoma ser utilizado para regular a parte disfuncional do sintoma,
uma vez que seja eliminado, aquela parte disfuncional do sistema será deixado
desregulado.

A Paciente Identificada, após engravidar e dar à luz ao primeiro filho, durante o


processo de tornar-se mãe e formar seu próprio núcleo familiar, retrocede na sua
caminhada rumo à diferenciação para voltar à posição parentalizada e insider com sua
mãe. A leitura feita é que essa atitude inconsciente foi uma tentativa de controlar o
casamento dos pais após sua mãe passar por um momento grave de abuso verbal e físico
pelo pai, envolvendo a polícia pela primeira vez em quase 40 anos de casados. A
lealdade da PI à sua família de origem se revela ao dispor da própria vida para salvar o
casamento dos pais.

“Uma pessoa emocionalmente encurralada em um triângulo, por estar em um


estado de prisão, provavelmente sofrerá alguma perda de função. Estar preso em um
triângulo aumenta a reatividade emocional ao ponto desta reatividade restringir seu
comportamento, e esta não poder sequer imaginar outras opções” (Guerin, Fogarty, Fay
& Kautto, 1996). Triângulos promovem o aparecimento de sintomas em um indivíduo.

De acordo com Carter & McGoldrik (1989), em casos de doenças em que o


paciente corre risco de vida, o membro portador da doença teme que sua vida terminará
antes do plano que fez para si mesmo, ou teme que estará sozinho no momento da
morte. A família, por sua vez, teme se tornar sobreviventes solitários no futuro. Para
ambas as partes, existe um recorrente antecipação à separação definitiva e luto que
permeia todas as fases de adaptação, e a família muitas vezes é pega entre a vontade de
estreitar os laços e liberar emocionalmente a pessoa doente. “Os problemas são mais

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susceptíveis a aparecer quando há uma interrupção ou perturbação no ciclo de vida
familiar, seja por uma morte prematura, uma doença crônica, um divórcio, ou uma
migração que force a separar os familiares ou até porque a família não está em
condições de acolher uma criança ou tolerar a entrada de uma nova pessoa agregada,
como um cunhado, ou neto.”

No artigo científico “Differentiation of Self, Perceived Stress and Symptom


Severity among patients with fibromyalgia syndrome” (Murray, Daniels and Murray,
2006), as pesquisas conduzidas com 201 pessoas portadoras de fibromialgia indicaram
que os sintomas mais severos estavam significantemente relacionados a (1) maiores
níveis de estresse, (2) níveis mais baixos de diferenciação do eu, e (3) elevados níveis de
corte emocional – estes três pontos foram identificados na história da paciente.

A baixa diferenciação da PI se apresenta na dificuldade de separar os sentimentos


da massa familiar com os seus próprios. Mostra-se muito dependente dos sentimentos
que os outros experimentam a respeito dela e toma pra si as dores de outrem como se
fossem sua. Um exemplo disso, foi seu posicionamento a respeito do seu tio mais novo,
fruto da relação extraconjugal que seu avô manteve por anos. Este era um fato velado,
não discutido às claras, e quando uma de suas primas questionou porque ele não fazia
parte do grupo da família que a PI administrava, esta manifestou que “esse é um assunto
que eu não perdoo o vô”. Quando as tias, irmãs do rapaz, foram questionadas a respeito
disso, todas se esquivaram da responsabilidade de inclusão, alegando que a PI estava
numa situação muito fragilizada e não poderia ter suas emoções abaladas (a situação
continua a mesma mesmo depois do câncer ter sido remido). Quando famílias mantêm
segredos, suas relações tornam-se inseguras e desonestas.

Bowen ainda explica que pessoas com baixa diferenciação empregam tanta
energia para manter o sistema de relações ao seu redor (amar e ser amada), ou para
reagir frente à sensação de ter fracassado em sua maneira de receber amor, ou para
tentar melhorar, que não resta nenhuma energia para empregar em nenhuma outra
pessoa.

Concernente à sua vida profissional, aponta sempre as injustiças com relação a


salário, carga horária, quantidade de trabalho e, de acordo com Bowen “seu uso do

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termo ‘eu’ se limita a de um narcisista: exigem de mim; quero meus direitos (...) As
decisões mais importantes da vida são tomadas baseando-se unicamente no que
‘sentem’ ser justo”.

Em 2019, houve uma mudança drástica na sintomatologia da tensão. Apesar dos


abusos verbais e físicos terem acontecido de forma perene nos mais de 40 anos de
casados, a mãe da PI nunca teve coragem de ir à delegacia prestar queixa contra o
marido. Essa decisão radical e inesperada aconteceu um ano depois da paciente
identificada ter dado à luz pela primeira vez – é sabido que mudanças significativas na
massa do eu familiar acompanham o nascimento dos filhos, e o primeiro filho muda
completamente a dinâmica da relação a dois. Neste caso, além de ter causado um
rearranjo na família nuclear, o fato da PI morar no mesmo complexo de condomínio dos
pais fez com que também houvesse um rearranjo da família de origem.

Na observação da triangulação de Luzia e seus pais, José está insider com a


amante, Maria insider com Luzia, ambas em posição de filhas, a primeira vitimizada
pela condição de órfã e a outra, de filha temporã após dois abortos.

Na observação da triangulação de Bernardo, este aparece insider com a mãe, e o


pai oustider (inside com a amante).

Gráfico 1 – Triangulações na família nuclear e de origem

Observou-se que a díade Bernardo-Luzia nunca chegou a se formar e se


fortalecer como marido e mulher. Ambos, ainda insiders com suas famílias de origem,

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engravidaram e se casaram ainda muito jovens. Luzia admite que casou para sair da
casa dos pais.

“Triângulos bloqueiam a evolução funcional de um relacionamento com o passar


do tempo. Eles mantêm os relacionamentos congelados nas mesmas pendengas e
questões e não permitem que os relacionamentos cresçam e mudem assim como as
circunstâncias mudam e assim como o ciclo de vida progride” (Guerin, Fogarty, Fay &
Kautto, 1996).

Thomas Fogart explana que “sempre que existe uma tensão da díade, as emoções
começam a operar de forma a trazer um terceiro para estabilizar a tensão”. Bowen
postula que “a força motora em triângulos é o apego ansioso levado ao extremo”, e
chama esse apego de fusão, uma simbiose sem limites, em que a transmissão da
ansiedade é tão tensa que ambas as pessoas se convencem de que não podem sobreviver
sem a outra.

A questão central aqui não é mais “como eliminar o sintoma?”, mas “o que
acontecerá se esse sintoma for eliminado?”. O argumento terapêutico, então, foi
reorientado a partir do “problema” (quem tem o sintoma, o que o causou e como se
livrar dele) para como a família sobreviverá sem o sintoma? Como a família manterá o
bom relacionamento desenvolvido a partir do diagnóstico de câncer se ele não existir?
Como os pais permanecerão em paz e o casamento deles subsistirá se a PI for remida
completamente? Como todos serão afetados na ausência de uma terceira entidade grave
o suficiente para que as demandas emocionais sejam tratadas?

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7. Tarefas Práticas Aplicadas

Como estratégias de intervenção, foram escolhidas as técnicas do genograma,


escultura e cartas. Todas foram aplicadas online.

Durante as conversas que deram embasamento para a construção do genograma,


observou-se um comprometimento de todas as partes em proverem o máximo de
detalhes possíveis, e, durante as conversas, todos os envolvidos foram percebendo a
padronização das repetições multigeracionais.

Na técnica das esculturas, entretanto, houve maior resistência de todas as partes


quando perguntado para montar a família no momento de maior estresse – que
provavelmente engatilhou o processo cancerígeno. Sendo assim, pediu-se apenas para
que montassem como feito na constelação familiar, o que permitiu constatar as
triangulações hipotéticas.

7.1 Genograma

O genograma da PI contém muito mais informações da mãe, e sobe até a terceira


geração, o que ajudou a detectar padrões interessantes de repetição e expôs o “mito da
orfandade multigeracional” explicitada anteriormente.

Para descobrir quem era o mito da família da PI, foram entrevistados primos, tios
e tias, perguntando-se “quem eram as pessoas OK e as pessoas Não-OK”. A avó materna,
Dona Maria, apareceu como OK em quase todas as respostas, assim como todas as
demais mulheres abaixo dela, com exceção de 2 primas da PI. Quando questionadas as
razões que as fazem aceitáveis, foram listadas qualidades que as enaltecem como vítimas
resilientes de um sistema que as deixou órfãs, e como todas elas não sucumbiram.

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Gráfico 2 – Genograma transgeracional

A partir disso, criou-se a hipótese do Mito da Orfandade. Dona Maria, que


ficou órfã de pai aos 4 anos, toma seu marido, Sr. José, como figura paterna. A posição
infantilizada de dona Maria não permite que ela seja mãe emocional de seus filhos, e a
sua inacessibilidade emocional, a sua vitimização e a vida dupla de José mitificam a
figura da mulher que criou seus filhos sozinha, que suportou a humilhação de ser traída
e ainda teve que acolher o filho bastardo de José depois que a mãe deste rapaz faleceu.
Maria possuía uma personalidade doce e resignada, evitava conflito e fugia do
confronto.

Luzia nasce temporã depois de dois abortos de Maria, o que a coloca numa
posição ainda mais fragilizada e superprotegida, criando um vínculo fusionado com sua
mãe.

Na adolescência, Luzia engravida de Bernardo que também ocupa papel


parentalizado e, assim, a PI e seu irmão também se tornam órfãos emocionais.

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Ao contrário de José, Bernardo não tem vida dupla no que tange relacionamento
extraconjugal, entretanto, por estar emaranhado com sua mãe e sua família de origem,
não se apresenta disponível para ser marido de Luzia e pai de Christina e seu irmão.

Christina nasce num momento de complicação gestacional, o que provavelmente


engatilha processos inconscientes em Luzia sobre a sua própria história. O
fusionamento entre as duas é inevitável, mesmo com a indisponibilidade emocional
parental da mãe.

Uma das hipóteses levantadas aqui é que toda a hostilidade da PI com relação ao
seu irmão é na verdade um grito de reivindicação da maternidade de Luzia. O irmão
exerce função marginal ao problema efetivo.

O casamento de Luzia e Bernardo reproduz a família de origem de Luzia e, ainda


que infeliz, é a única unidade familiar que “funcionou”. Todos os irmãos de Luzia
tiveram suas famílias desfeitas seja por divórcio, viuvez ou menopausa precoce. Luzia
leva em si a incumbência de fazer o casamento dar certo.

A PI desenvolve câncer quando a sua unidade familiar de origem é efetivamente


ameaçada, a ponto de inconscientemente colocar a própria filha em risco de também
ficar órfã. O medo da morte iminente, mais uma vez, fusiona a filha com a mãe. Quatro
gerações fusionadas pela morte.

A apresentação do genograma e das repetições de padrões das figuras femininas


da família permitiu que ambas, Luzia e Christina, pudessem perceber a lealdade
transmitida geracionalmente, e deu a oportunidade de escolha racional por outros
modelos mais sadios de relacionamento.

7.2 Escultura

Bernardo, Luzia e Christina foram atendidos separadamente para que fossem


entendidas primeiro as dinâmicas de cada um com suas famílias de origem e como elas
afetaram a dinâmica da família nuclear e como isso contribuiu para o aparecimento do
sintoma. Como dito anteriormente, os três tiveram dificuldade de montar a família no

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momento em que se entende como o gatilho do câncer. Dessa forma, cada um conversou
separadamente sobre seu olhar com sua família de origem, como veremos a seguir.

A escultura de Christina denunciou mais claramente as hipóteses de triangulação


levantadas. Primeiramente, ela colocou todos, inclusive bonecos que representassem a
família materna e paterna em um círculo, todos de mãos dadas:

“Eu faria um círculo, todo mundo de mão dada. Serve?”

“Serve. Quem está à sua direita?”

“Minha mãe.”

“Lado esquerdo?”

“Meu pai.”

“Pra quem você está olhando?”

“Mãe com mãe, pai com pai, e as duas de mãos dadas entre si.”

“Você está olhando para quem?”

“Posso olhar para mim?”

“Não. Não é o seu olhar interior para si que neste momento estamos
trabalhando.”

“Ou a ideia é olhar o outro? Eu olharia se meus peitos não estão escapando do
decote?”

“Para quem sua mãe está olhando?”

“Se é pra olhar pra outra pessoa seria minha mãe. E ela olharia para mim.”

“E seu pai?”

“Ixi, meu pai olharia o celular, mas não tem nenhum aí. Ele olharia minha mãe.”

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Foi pedido para que Luzia posiciona-se seus bonecos. Num primeiro momento,
todos estão alinhados horizontalmente, sem qualquer hierarquia:

“Posicione os bonecos do jeito que quiser.”

“Pai, mãe do lado esquerdo do pai e do lado da mãe, eu. Todos olhando as
montanhas.”

“Sua mãe está olhando para quem?”

“Todos o olhando para as montanhas.”

“Enfileirados horizontalmente?”

“Isso. Os bonecos estão de mãos dadas.”

“Se for para escolher um para olhar, quem você olharia, sua mãe ou seu pai?”

“Eu olho para meu pai, ele olha para mim.”

“E sua mãe olha para onde ou quem?”

“A mãe olha nós dois.”

Através do histórico familiar, entende-se o olhar de admiração de Luzia para o pai


e o olhar de cuidado dele para ela. Como já mencionado, desde a infância percebe-se
movimentos sutis na contramão do sistema, até o momento em que ela engravida na
adolescência e decide casar para sair da casa dos pais, e nesse movimento derradeiro,
abre mão da sua liberdade individual para voltar às garras do sistema e perpetuar o
mito. O olhar da mãe para os dois é um olhar de reprovação.

Com Bernardo, a escultura mostra exatamente a hipótese de triangulação


levantada. Ele está olhando para a mãe e a mãe para ele, e o pai está olhando para fora,
confirmando que Bernardo está insider com a mãe. Ao contrário de Luzia, que sempre
foi vista como vítima, desamparada e fraca, Bernardo sempre foi a fortaleza da família,
em quem todos podiam contar, como já mencionado no histórico dele.

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7.3 Cartas de Despedidas

A PI foi instruída a escrever cartas de despedidas à garotinha que se sentiu


vulnerável no ventre da mãe e prestes à morte, e a todos os que morreram para que ela
pudesse viver.

Também foi instruída a escrever cartas de agradecimentos aos pais pela vida que
recebeu deles, e libertando-os da nota promissória do que não foi possível ser dado; e
em outro momento, uma segunda carta a eles devolvendo a responsabilidade do
casamento dar certo.

A PI também escreveu uma carta para a mãe devolvendo para ela a


responsabilidade de se defender.

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8. RESULTADOS

Após cada sessão e cada tarefa aplicada, percebeu-se uma evolução significativa,
principalmente da mãe da PI, Luzia, no sentido de diminuir a fusão e promover
distanciamento sadio.

Em maio de 2022, a PI conseguiu diminuir o distanciamento forçado com a


parentela, e convidar a todos para o aniversário de três anos da sua filha. Esse
movimento permitiu um relaxamento na tensão e o medo da morte causado pelo câncer.

Christina voltou a trabalhar de forma remota, mas reconhece seus limites e tem
trabalhado apenas de acordo com as suas possibilidades físicas.

Seus pais mudaram-se para a Zona Norte de São Paulo e ela mudou-se com a
família para outra cidade, no interior.

Neste momento (junho, 2022), o câncer apareceu em dois outros lugares. E a


única pessoa com compatibilidade para doação de medula é seu irmão. A cirurgia está
agendada para outubro deste ano, 2022.

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Conclusão

O conteúdo, intensidade, profundidade e a dinâmica do curso me auxiliaram a


entender mais profundamente a teoria e aplicação da sistêmica.

Tem sido muito enriquecedor perceber que a singularidade do indivíduo só é


completo na pluralidade do seu sistema familiar e não há como desvencilhá-lo ou
enxergá-lo como uma entidade separada ou imune às influências.

De todas as teorias que já estudei ou já tive contato, de longe a Terapia Familiar


Sistêmica é a que mais faz sentido – e o curso do Instituto Logos é o mais abrangente,
didático, profundo e agregante de todos que já participei.

A construção deste estudo de caso com um assunto tão delicado só foi possível
por causa da abrangência do conteúdo.

27
Bibliografia
Working with Relationship Triangles (Guerin, Fogarty, Fay & Kautto, 1996)

Family Therapy Techniques (Minuchin & Fishman, 1981)

Rituals in families and family therapy (Imber-Black, Roberts & Whiting, 1988)

Genograms in Family Assessment (McGoldrick, 2008 edition)

You can go home again (McGoldrick, 1995)

The Changing in Family Life cycle (Carter & McGoldrick, 1989 edition)

Family Evaluation (Kerr & Bowen, 1988)

Family Therapy in clinincal practice (Bowen, 2004 edition)

Family healing: tales of hope and renewal from family therapy (Minuchin & Nichols,
1993)

Paradox and Counter Paradox (Palazzoli, Boscolo, Cecchin & Prata, 1975)

The Polyvagal Theory (Steve W. Porges, 2011)

The deepest well (Nadine Burke Harris, 2018)

Toward a theory of schizophrenia (Bateson, Jackson, Haley & Weakland, 1956)

Uma abordagem de sistemas familiares ao Paciente com câncer (Rait, 1989)

De la familia al individuo (Andolfi & Nichilo, 2010 edicion)

Efforts to differentiate a self in response to a cancer diagnosis (Kerr, 2004)

5 ways working with a clinician trained in Bowen family systems theory can help you
reduce or relieve symptoms (Lorna Hecht, 2013)

Differentiation of Self, perceived stress and symptoms severity among patients with
fibromyalgia syndrome (Murray, Daniels & Murray, 2006)

Family system theory, physical health and illness (The Murray Bowen Archives Project)

What is Hodgkin Lymphoma? (American Cancer Society)

28
A wider lens: Bowen Theory and a natural system view of symptoms (Harrison, 2013)

Lymph nodes and cancer (American Cancer Society)

What is cancer? (National cancer institute)

Affective Reactivity to daily stressors and long-term risk of reporting a chronic physical
health condition (Piazza, Charles, Sliwinski, Mogle & Almeida, 2012)

Differentiation of self: a scoping review of Bowen Family Systems Theory’s core


construct (Calatrava, Martins, Schweer-Collins, Ceballos & Rodríguez-Gonzáles, 2022)

The effort to drive the other person crazy – an element in the aetiology and
psychotherapy of schizophrenia (Searles, 1959)

29
“Lamento se existem imprecisões nas minhas informações, mas, como em todas
as histórias familiares, estamos sempre incompletos e, muitas vezes, para lidar com
informações imprecisas e devemos fazer o melhor que pudermos com aquilo que
temos.” (McGoldric, 1995)

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