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Historia do mundo grego antigo Francois Lefévre ‘Traducéo Rosemary Costhek Abilio Revisdo técnica _ Airton Pollini Canlkim as cop tinker, Uy. 4 nruinedla WM cnmicen (p 2 Ppp) ~ O rnumda VM ietinvicen (p. 12 Poe) 10: Guuwoa Midicar (2 pop) i (Conus. da Prbapeomunes ( p-40 PDF) 18- Mikacais da rscarty IV (p.55 PDF) b winfmartinsfontes SAO PAULO 2013 Capitulo 4 O MUNDO MINOICO Ao longo do século XX a.C. desenvolve-se em Creta o chamado sistema palacial, organiza- gio elaboradissima, centrada em vastas estruturas cujos vestigios espetaculares a arqueologia revelou. Cerca de cinco séculos mais tarde, a Grécia continental também adota esse tipo de organizacao, com diferencas importantes, embora a inspiracdo cretense seja evidente: o palacio de Cnossos — sucessivamente minoico e depois micénico quando Creta fica sob controle grego, no século XV, segundo parecer hoje majoritario — constitui o ponto de encontro simultanea- mente mais explicito ¢ mais complexo das duas culturas. Para o historiador, a grande novidade consiste aqui no aparecimento de documentos escritos, com sistemas de escrita préximos, ain- da que um tinico deles esteja decifrado hoje: ao passo que o “hieroglifico” eo linear A, creten- ses, continuam em grande parte incompreensiveis, o linear B permite que se conhega relativa- mente bem o mundo micénico. Por isso é preciso resistir & tentagéo de interpretar muitc ff mecanicamente 6 mundo minoico a partir das informagées coletadas em seu herdeiro grego. Assim sendo, dedicaremos a cada conjunto um capitulo especifico. Cronologia e evolugées A Creta do Bronze Antigo (Minoico Antigo, abreviado MA) jé apresenta um desenvolvi- mento notavel, principalmente em volta de Cnossos ¢ de Festos, cuja regiéo, a planicie de Massara, se cobre de grandes timulos coletivos, de forma circular ¢ encimados por uma espécie de abébada. Continua dificil reconstituir o proceso que levou ao nascimento da civilizacio palacial, em particular as parcelas respectivas da continuidade local e das influéncias externas, especialmente do Oriente Préximo (a chegada de novas populagées néo € cogitada aqui). Dis- ‘inguem-se em seguida dois grandes periodos. No primeiro, chamado “protopalacial” ou “pa- ‘eopalacial” (ca 2000-1700, ou seja, ao longo da fase ceramica do Minoico Médio ou MM), sio edificados os primeiros palicios (que, em Cnossos e Malia, sucedem edificios do Minoico Antigo); ele se encerra com a destruigio desses palicios, que em seguida sio reconstruidos, is weves com atraso (Festos). Comesa af 0 segundo perfodo, chamado “neopalacial” (aa 1700- “1450 na datagao usual, ou sea, iltima parte do MM e inicio da fase chamada Minoico Recente SL Pré-Histéria e [dade do Bronze Cnossos "4 Palecastro Arcanes Kato Symi 50 km Mapa 3. Creta na Idade do Bronze. ou MR), que na Grécia peninsular cortesponde a expansio do poderio micénico; ele também se encerra com destruigées, estas decisivas, exceto em Cnossos, que perdura até por volta de 1370 (a data mais comumente aceita), sob administragéo micénica (perfodo chamado “mo- nopalacial”, sendo que outros sitios, como o de Hégia Triad, conservam apenas um papel secund: dos egipcios (importagSes em Creta, onde ademais foram descobertas cérculas farabnicas, ¢ exportagdes cretenses no Egito); mas a cronologia do Minoico Recente poderia ser questio- io). A cronologia absoluta é notavelmente reforcada por concordancias com os da- nada por uma série de investigag6es em andamento (cf. abaixo). Por outro lado, correm soltas as discuss6es sobre muitos pontos, especialmente sobre as causas e a cronologia das duas ondas de destruigées. Asde 1700 aproximadamente — que nio tiveram 0 efeito catastrdfico das segundas, visto que a civilizagio minoica ressurge mais brilhante que antes ~ continuam a ser as mais misterio- sas: parece que se deve descartar a ideia de uma intervengao estrangeira, mas pensa-se em pro- blemas internos (revolta popular ou, mais provavelmente, guerra cretense) ¢ principalmente em terremotos (cf. particularmente em Festos). As destruicdes de ca 1450 eram explicadas antiga- mente pela violenta erupgao do vulcio Tera-SantoriniySabe-se hoje que esta aconteceu cerca de ~~duas geragées antes, mas ainda falta determinar sua data absoluta, A arqueologia situa-a no final do século XVI, a partir dos tipos de ceramica minoica encontrados na camada de destruicéo do sitio de Akrotiri, descoberto em 1967 por Spiridon Marinatos na ilha de Santorini (na qual hesitaremos em reconhecer a Adantida evocada pelo mito platénico). Isso conviria, quando muito, para destruices secundarias sofridas pelos palcios mais ou menos no mesmo momento, Sitesi tamrue O mundo minoico mas entao sc levantam os problemas ligados & fora ¢ & propagacao da onda sismica e do tsuna- mi. Entretanto, outros estudos tendem a recuar a catéstrofe para mais de um século antes (ca 1628), a partir dos dados seguintes: observa¢éo dos anéis de crescimento das érvores (den- drologia), coletas de amostras de gelo polar com marcas de uma intensa atividade vulcanica, datagoes por carbono 14 (sementes etc.). Se esse resultado se confirmasse, boa parte da fasagem cerimica ¢, com ela, a cronologia do Bronze Recente no Egeu teriam de ser proporcionalmente deslocadas, com inevitaveis repercuss6es nas civilizacoes mais proximas, especialmente na egip- cia, ¢ no perfodo micénico (capitulo seguinte). Seja como for, procura-se em outro lugar a causa das profundas turbuléncias que entao sacodem Creta: ainda que a hipétese dos sismos continue vidvel para alguns sitios, em geral as destruicées sao interpretadas como tendo origem bélica, e desta vez, poderiam ser imputadas aos gregos micénicos, cuja lingua é decifrada em seguida nas tabuinhas em linear B descobertas em grande ntimero em Cnossos. Mas, por sua ‘yez, a cronologia dessas tabuinhas e de seu contexto é ardentemente debatida... A préptia evolucao entre os perfodos proto- neopalaciais nem sempre é facil de avaliar,: principalmente porque até hoje pouco se sabe sobre os primeiros palécios: dos quatro grandes sitios mais estudados — Cnossos, Malia, Zacros ¢ Festos -, é principalmente Festos que indica ; que se tratava de conjuntos semelhantes aos novos palicios, a partir dos quais, portanto, recria- mos retrospectivamente a primeira fase. Creta estaria entio dividida em grandes provincias, & frente das quais estaria cada um dos pall s mencionados acima; nessa época a parte ocidental parece relativamente abandonada, Os hébitats secundérios multiplicam-se ¢ o territério tam- bém ¢ balizado pelos “santudrios” no alto dos montes € nas grutas, provavelmente frequentados no contexto da exploragao agricola e pastoril. © emprego dos selos e da escrita (depésitos de Festos) ¢ também a existéncia de grandes edificios diferentes do paldcio (bairro Mu em Malia) mostram que a administragio nio era totalmente centralizada. Diversos avangos técnicos (tor- no rapido de oleiro etc.) possibilitam a produgao de objetos mais refinados: bela ceramica po- licrtmica (conhecida como “de Camares”, nome de uma gruta situada na vertente sul do monte Ida), vasos de pedra, selos, ourivesaria e armas de aparato. As rclagoes com o exterior jd estio comprovadas, tanto pela descoberta, na Siria e no Egito, de objetos cretenses por sua vez influenciados pelos estlos daquelas regiées, como pelos textos: 0s arquivos do palicio de Mati, no Eufrates — destrufdo por Hamurdbi, rei da Babilonia, por volta de 1760 (cronologia média) ou 1690 (cronologia baixa) — — mencionam estanho “para os cretenses” e “para o intérprete do — ee ee Inia Ke chefe dos maercadotes « cretenses em Ugari” (porto do litoral sitio, ao sul da embocadura do ————————— Oronte). As trocas com as ilhas ¢ a peninsula balcanica 2 também esto atestadas, principalmen- 53 Pré-Histéria e Idade do Bronze alacial, frequentemente qualificado de apogeu, caracteriza-se por um novo crescimento demogrifico ¢ por mais prosperidade, visivel no luxo cada vez. maior dos palicios e na difusao da cultura material minoica. Dai em diante, esta se espalha largamente entre os vizinhos ¢ principalmente no Egito, onde, entre a segunda metade do século XVI ea primeira metade do século XV, floresce uma espécie de “moda minoizante”, como sugerem, entre ou- tros, os afrescos recentemente descobertos no sitio de Avaris, a leste do delta do Nilo, e uma plaqueta escolar egipcia para “formar nomes do pals keftiu’, isto é, cretense (Creta aparece com o nome de Kaphtor em Ugarit). Na propria Creta observa-se um aumento do ntimero de sitios: estabelecimento palacial em Caneia, preenchendo uma lacuna na Creta ocidental, “vilas” de Higia Triada, Arcanes, Tilissos etc., que poderiam ser extensées locais da administragao central, em mios de oficiais de nivel mais alto — talvez os mesmos que um texto egipcio da época do faraé Tutmésis III (ca 1479-1424) chama de “os Grandes (chefes, principes?) do pais keftiu”. A interpretacao dessa fonte — que ¢ invocada igualmente para apoiar a hipdétese de que Creta entao tenha sido politicamente unificada ~ é controversa (cf. abaixo), mas o certo é que alguns centros antigos, como Festos e Malia, parecem declinar, ao passo que Cnossos parece exercer iia saris “las tit uma forma de primazia. A civilizagio minoica Convém lembrar jé de inicio que temos uma falta absoluta de textos explordveis. Desco- iia ae nhecemos até mesmo que lingua(s) os minoicos falavam (parentesco com os falares da Asia Menor mais provavelmente do que lingua semitica? © maximo que sabemos é que o “chefe dos mercadores cretenses em Ugarit” era acompanhado por um intérprete.) Em contrapartida, as escritas cretenses — invengées locais que aparentemente nada devem aos sistemas orientais ou egipcios desenvolvidos hamais de mil anos ~ serviram de modelo para o cipro-minoico, utili- zado em Chipre do século XIV ao século XI, ¢ para o linear B empregado pelos micénios para notar grego (dextroverso: da esquerda para a direita). Em Creta mesmo, cocxistem dois siste- mas: o “hieroglifico” e o linear A sildbico (1 caractere = 1 sflaba), as vezes usados num mesmo depésito de arquivos (bairro Mu de Malia) e talvez notando duas linguas diferentes; nesse caso, ; seria preciso admitira pratica do bilinguismo. O sistema “hieroglifico”, que na realidade pare > ce jé assemelhar-se a0 sildbico, é assim chamado porque alguns signos séo particularmente | imagéticos; dele foram clucidados apenas as notagSes numéricas ¢ alguns ideogramas explicitos ou passados para linear A ¢ B. © pequeno numero de textos atualmente conservados ¢ sua brevidade (principalmente em selos) parecem eliminar toda esperanga de uma decifracéo prd- 54 O mundo minoico . O linear A, por sua vez, € xima. Essa escrita desaparece durante a época dos segundos pala cexemplificado por cerca de 1.500 documentos: entre eles, alguns textos religiosos figuram em altares baixos chamados de “mesas de oferendas”, mas a imensa maioria consiste em pecas de arquivo bastante semelhantes ao que existe em linear B. A maioria dos silabogramas (cerca de 70, contra 87 em linear B) so comuns com este, mas, exceto por algumas palavras isoladas, seu valor fonético é claramente diferente e até agora nenhuma decodifica¢4o confidvel foi proposta. A difuséo aparentemente bastante ampla do linear A e 0 fato de ele nao desaparecer apds a chegada dos micénios poderiam indicar que seu uso nao era apandgio de uma classe de escribas ligados ao meio palacial. Como se pode ver, com a falta de textos compreensiveis civi- lizagao. minoica é um empreendimento arriscado. Por isso nos limitaremos aqui a0_qué pode ser deduzido dos dados arqueolégicos. ¢ ‘Temos de partir naturalmente do que os minoicos deixaram de mais espetacul: cios, que deram seu nome a toda uma civilizacao. Esses conjuntos passaram por muitas destrui- goes e remodelagées. Os detalhes das reconstrugées sdo infinitamente discutidos ¢ consideraveis s pald- diferengas de dimens6es poderiam sugerir uma hierarquia dos sftios, mas algumas caracteristi- cas principais se destacam. As construgées organizam-se em torno de um amplo pétio central retangular, de orientacao norte-sul: em Cnossos, Festos e Malia, uns 50 metros por uns bons 20 metros em média, ou seja, 1.000/1.250 m? (area claramente menor em outros lugares). A monumentalidade desses espagos vem de pérticos com colunas e de largos lances de escadas que conduzem a pavimentos dotados de posos de iluminagao. Distinguem-se os diferentes bairros por uma distribui¢ao convencional: o setor econémico, constituido de oficinas e de uma infinidade de lojas onde se amontoam pithoi (vasos pintados ou em relevo que podem ser mais altos que um homem ¢ armazenar até 10 hl); apartamentos oficiais e privados, em que se percebe a planta original do poljthyron, impropriamente chamado de “mégaro crerense” (baias separadas por pilares substituem algumas paredes). Ali os recintos s4o menores, mas podem estar ricamente decorados com afrescos mostrando temas de inspiracéo variada e de confeccéo original: animais exéticos, motivos marinhos, cenas de “tauromaquia”, prociss6es etc. Contiguas a esses faustosos conjuntos, cidades organizadas de acordo com um planejamen- to e com ruas cuidadosamente pavimentadas; nelas foram identificadas pracas ptiblicas ¢ casas de dignatérios (cf. em Malia, mas também nas aglomeragées secundarias de Giirnia e de Pale- castro). Uma particularidade digna de nota é aparentemente a auséncia de muralhas, 0 que contrasta com os sitios micénicos posteriores; mas esse ponto poderia ser objeto de uma revi- Sao. Vestigios tao impressionantes suscitam muitas perguntas sobre a organizacao politica, reli- giosa, social ¢ econémica. 55 Pré-Hist6ria e Idade do Bronze 'A.Pitio central. B. Pato oete 1. Entradas do palico, 2, Setor doméstico. 3. Loja. 4. "Teatro. 5. Corredor das procissées. 6. Varands, fy 7. Propileu interior. 8. Escadas. 9, Sala do woo. 10, Area culeal. 11, Salas com pilares. 12, Casas privadas Fig. 1. Cnossos, Planta geral do palicio (K, Papaioannou, Lart grec, Mazenod, 1993, fig. 822). Vamos lembrar em primeito lugar nossas incertezas quanto & organizagao politica da ilha como um todo. Desde os principados auténomos da época protopalacial até a provavel prima- via cnossiana da fase neopalacial, nossa ignorancia continua grande ¢ a arqueologia sempre ROBT eerie piescetcipeiira, pode reservar surpresas. Basta pensar na recente descoberta do complexo de Petra (Sitia), na | Creta oriental, e no achado de um novo paldcio relativamente préximo de Cnossos e de Malia, em Galatas Pediados: tanto um como 0 outro poderiam levar a um profundo reexame da que tio (por exemplo, sobre Galatas, cuja utilizago parece nao ter perdurado, levantou-se a hipé- rese de uma breve extensio cnossiana para o sudeste ou, ao contrério, a de uma dissidéncia | abortada das elites locais com relagio a Cnossos). Quanto 4 hierarquia dos poderes, na medida -la anacronicamente. Imaginou-se no topo um rei, derentor_ do possivel deve-se evitar conside de todas as prerrogativas: politicas, religiosas ¢ econdmicas. Mas faltam provas disso; afora a documentagao egipcia da primeira metade do século XV, que mencionamos anteriormente, so inyocados principalmente 0 modelo das monarquias orientais autocréticas ¢ a lembranga do so i O mundo minoico lendatio rei Minos, bem como uma hipotética “sala do trono” ¢ um afiesco de interpretagéo cOntrove sa no pakicio de Cnossos. Arthur Evans pensava inclusive numa espécie de “rei-sacer- dote’ alguns chegaram a considerar esses conjuntos como templos regidos por um poder reocratico. Supée-se também, a partir das “vilas” implantadas no territério ¢ das ricas moradas encontradas em algumas cidades, uma classe de aristocratas mais administradores do que guer- reiros, substituindo localmente o poder central. Quanto & participacao do restante da popula- io, poderia ser deduzida da existéncia de espacos livres, as vezes dotados de arquibancadas, como em Cnossos ¢ Festos. A cripta hipostla de Malia (periodo protopalacial) foi até mesmo ¢ interpretada como uma sala do conselho por Henri van Effenterre: segundo ele, essas comuni- dades prenunciam as futuras cidades gregas. Na mesma perspectiva, o estabelecimento de Tera poderia ser visto como um precursor das repiiblicas maritimas comerciantes. A julgar princi- palmente pela tipologia do habitat, a estratficacio da sociedade parece mais acentuada na época dos segundos palcios (aparecimento de uma classe intermedidria entre a “nobreza” ¢ 0 povo?). Mas, de modo geral, parece ter havido poucas tensbes socizs, Os espagos reservados de que acabamos de falar poderiam igualmente servir para manifes- tacbes religiosas. Alids, numerosos recintos nos palicios parecem adequados para ceriménias (aftescos, “bacias lustrais”, “mesas de oferendas” etc.). Distantes nas grutas ¢ no alto dos montes, santudtios dotados de arranjos arquiteténicos (altares) também sao identificados no territério, como em Kato Symi, que aparentemente continuard sem interrupgio a ser um lugar de culto até a época hist6rica. Muitos dos objetos descobertos podiam ter um valor cultual: vasos rituais (citons); comos de consagracéo: machados duplos; estatuetas masculinas (figuras em pé com 4 um gesto de adoracao, kotiros de marfim recentemente descoberto em Palecastro) ¢ femininas (a famosa “dcusa’ de seios nus esegurando uma serpente em cada mio); por fim, aquelas enig- iiticas pedras com depressbes semiesféricas cuja destinagéo € muito controversa. Os motivos decorativos de certos selos, as “tauromaquias” mostradas pelos afrescos ou ainda a cena de oferenda que figura no célebre sarcéfago de Hagia Triada (de época micénica, mas atestando seguramente influéncias locais anteriores) podem dar uma ideia do que eram as ceriménias. Contudo, seria preciso conhecer o pantedo minoico, assunto que da lugar as mais diversas re- constituigbes, conforme se tende para as referéncias orientais ou se extrapola a partir dos dados greco-micénicos. Assim, um vaso de esteatita em forma de colher, encontrado em Ciera, po- detia portar a insctigio Da-ma-te, ou seja, Demécer, se 0s silabogramas realmente tiverem ali o © valor fonético que tém em linear B, ¢ embora até hoje essa deusa néo tena aparecido na docu mentagdo micénica: deve-se vé-la como 0 avatar cretense de uma deusa-mie/deusa da fecund 97 teal Pré-Histéria e Idade do Bronze dade pan mediterranea, tardiamente adotada pelos gregos!? Os sacrificios humanos, como 0 Que os arquedlogos reconstituiram num sitio da regido de Arcanes, parecem excepcionais. Apa- rentemente os costumes funeritios se inserem na continuidade dos perfodos anteriores (inuma- Gio, sepulturas coletivas ¢ também individuais, deposigao de objetos vorivos ou cultuais perto dos tamulos); sio menos bem exemplificados na época neopalacial. O sistema de produgio, estocagem e troca é amplamente controlado pelo paldcio, que mantém uma contabilidade precisa das entradas e saidas de matérias-primas, de géneros ali- menticios ¢ de produtos artesanais. Estes sio muito elaborados ¢ colocam os especialistas cre- tenses num nivel altissimo que justifica as exportacdes abundantemente atestadas: vasos de pedra, de terracota ricamente decorada (motivo do polvo etc.) ou de metal; pequena gliptica; joias (cf. o pingente com abelhas, de Malia); estatudria, cuja importancia nos gostos ¢ nas pré- ticas dos cretenses vem sendo reavaliada apés descobertas recentes; afrescos extraordinariamen- te ctiativos, como os de Tera, que ainda hoje despertam admiracéo nos observadores. A producio agricola era favorecida pela riqueza do solo: segundo algumas estimativas, o de Malia supria facilmente as necessidades da populacdo ¢ os estoques constitufdos deviam possibilitar a exportagao do excedente. No perfodo seguinte, as tabuinhas em linear B mencionam também muitos rebanhos e provavelmente essa é uma realidade antiga. Ignora-se quase tudo sobre 0 ey mctenents apenas estatuto dos camponeses ¢ dos arteséos, principalmente seu grau de dependéncia com relagéo a0 palécio (alguns indicios sugerem que podia ser bastante forte). Resta considerar a “talassocracia” minoica, mencionada principalmente por Tucidides no século V (I, 4), numa época em que os cretenses ainda so conhecidos e temidos por suas ati- vidades de pirataria, A expansio minoica fora de Creta, jé na época protopalacial, nao deixa nenhuma divida: o principal objetivo era abastecer-se de metais; pot exemplo, de cobre, cuja proveniéncia, ¢ particularmente o papel desempenhado por Chipre antes dos séculos XV-XIV, cauisam inflamados debates, pois as andlises dos isétopos do chumbo contido em lingotes de cobre encontrados em Creta ou em objetos de bronze minoicos deram resultados contestados. As trocas com 0 Oriente ¢ com o Egito séo atestadas pela arqueologia e pelos textos, como aquele documento egipcio, jé citado, do reinado de Tutmésis III, que menciona “os Grandes (chefes, principes?) do pais de Keftiu (e) das ilhas centrais do Grande Verde”: esta tltima ex- pressio foi recentemente reinterpretada como designando o delta do Nilo, onde os minoicos tetiam se implantado, mais ou menos como os gregos em Naucratis, alguns séculos mais tarde 1. J Sakellarakis, JP. Olivier, Un vase en plerse avee inscription ev linéaire A du sanctuaire de sommet minoen de Cythére’, bulletin de correspondance hellenique, 118, 1994, pp. 343-51 58 O mundo minoico (infia, cap. 8); alids, hit cretenses representados nas pinturas que adornam os ttimulos de altos dignatétios egipcios. Além disso, os motivos maritimos ou exéticos sio abundantes nos selos (navies) ¢ nos aftescos (“batalha naval” ¢ paisagens “niléticas” de Tera). Documentos em linear A foram descobertos em todo o perimetro egeu (até Samotracia) ¢ objets cretenses foram en- contrados até no Ocidente (Sicilia). Estabelecimentos permanentes existem sobretudo em C f tera, Mileto ¢ Rodes, compardveis a entrepostos ou colonias; seu estatuto exato, que pode te variado de uma época para outra, é discutido, pois a natureza das relagées com Tera € particu: larmente controversa. Observa-se uma influéncia indireta em Melos (Filacopi), provavelmente mais acentuada em Ceos (“templo das estdtuas” inspiradas na arte cretense, em Hagia Irini), ¢ o sistema ponderal minoico ¢ manifestamente adotado nas Ciclades. Por fim, 0 mito do Mino- tauro, sejam quais forem as intengées politicas atenienses que o embasam (promogio do herdi nacional, Teseu), deve portar em sia marca de uma expansio ¢ mesmo de uma dominacéo cretense até no continente. Portanto, a presenga minoica nos mares nao pode ser questionada; mas convém lembrar que neles os cretenses tinham concortentes (insulares, orientais, egipcios, com os quais se supés a existéncia de uma convengio no século XV), ¢ néo se deve analisar 0 caso com base no império maritimo atcniense do século V. As estruturas desse comércio de Jongo curso continuam desconhecidas (monopélio régio, autonomia dos dirigentes locais, clas- se de mercadores semi-independentes?). Como se observou, a cultura minoica néo se extingue com a chegada dos micénios. Incon- testével em termos de administragio palacial, o impacto real do acontecimento sobre os pontos mais remotos do tertitério e sobre as mentalidades é mais dificil de ser determinado, tendo em conta as inércias caracteristicas de todo ¢ qualquer meio insular. A propria natureza do poder micénico em Creta e sua extens4o, tanto cronolégica como geogrfica, ainda sio discutidas. E preciso lembrar também que o linear A, ainda que fosse para uso néo administrativo, nio de- sapareceu apés a chegada dos novos senhores: mais além das “idades obscuras” (infta, cap. 6), 0s que serdo chamados de eteocretenses (“cretenses das origens", diferenciados das populacées que chegam & ilha posteriormente) até mesmo serio vistos como tendo conservado a lembran- cae algumas tradigoes dos tempos remotos em que a civilizagio de seus ancestrais se expandia por todo o Mediterraneo oriental. 59 nterior 8. Escadas. 9. Sala do trono, 10, Area cultual. 11. Salas com pilares, 12. Casas privadas. 1. Cnossos. Planta eral do paldcio (K. Papaioannou, Lart grec, Mazenod, 1993?, fig. 822). |. B. Patio este. 1. Entradas do palicio. 2. Setor doméstico. 3. Lojas. 4. “Teatro”. 5. Corredor das procissées. 6. Varanda, 5 i 3 ¢ Capitulo 5 sore Seal O MUNDO MICENICO Os novos senhores do Egeu sao gregos. O sitio de Micenas, escavado nos anos 1870 por H queza dos objetos descobertos; deu seu nome a essa civilizacéo, cujas fases na Grécia peninsular sio conhecidas pelo nome convencional de Helddico, mas cuja cronologia absoluta permanece inrich Schliemann, ainda ¢ 0 mais impressionante, por seus vestigios e pela estonteante ri- reese ene parcialmente pendente das incertezas expostas no capitulo anterior. Além dos dados arqucolé- gicos, aqui o historiador é auxiliado pelos textos em linear B, em ntimero de mais ou menos 5 mil mas frequentemente muito curtos, em vasos, em nédulos (bolotas de argila que acompa- nhavam as transag6es, portando um selo e algumas indicacées muito sucintas) ¢ principalmen- te em tabuinhas de argila provenientes, em sua grande maioria, de Cnossos ¢ de Pilos. Essas tabuinhas eram rascunhos de documentos contdbeis consignando inventérios de lojas e modi- ficéveis em fungao do estado dos estoques. Foram cozidas acidentalmente, por incéndios que destrufram os paldcios, ¢ justamente por isso se fixaram como estavam ¢ conservaram-se. Sua decodificagéo por Michael Ventris e John Chadwick, em 1952, constitui uma das descobertas mais importantes para 0 conhecimento do mundo grego antigo. Infelizmente, muitas vezes tais documentos sao problematicos, principalmente em caso de grafias ambiguas, ¢ langam apenas uma luz parcial sobre esse universo. Entretanto, ele nao cessa de impressionar as imaginacées, ainda mais porque seu fim, no qual vem interferir a espinhosa questo da “guerra de Troia” celebrada pela epopeia homérica, ainda é um dos maiores mistérios da Antiguidade. 4 t E £ E é b z F E = k p FF t t é | b : Os primérdios da civilizagdo micénica Tudo indica que 0s ancestrais dos micénios chegaram & Grécia no final do Bronze Antigo, num movimento cuja natureza ¢ amplitude ainda nao foram precisadas (supra, cap. 3). Em todo caso, a arqueologia sugere que durante seus primeiros séculos o continente meso-heladico (ou seja, durante a fase do Helddico Médio = ca 2000-1550) esté um tanto atrasado com rela- ¢40 ao restante do Egeu: produz uma cerimica bastante mondtona, com pintura fosca ou monocrdmica (cinza, preta, vermelha ou amarela), alisada, chamada de miniana (do nome do legendério rei Minias, em Orcémeno da Beécia); 0 hébitat é disperso e pontilhade de timulos 60 O mundo micénico modestos em fossa ou em cista (0 morto é inumado na posigéo fetal, em cavidades pouco pro- \ delimitadas por placas de pedra), 4s veres agrupados cm um twmulus* bastante ru’ f fund. mentat, @ que parece denotar uma fraca diferenciagao social. Os estabelecimentos insular + apresentam um estagio de desenvolvimento superior, como 0 sitio fortificado de Hagia Iria’, em Ceos, no qual é utilizado, como em Creta, um sistema de “marcas de oleiro” para identificar ¢ controlar a produgao, ou o de Colona, em Egina, que apresenta as mesmas caracterfsticas ¢ parece constituir um importante centro tanto de produgo como de transito dos objetos ciclé- dicos para a peninsula, Tudo muda depois de 1700, justamente quando os palacios cretenses sio reconstrufdos mais luxuosamente do que antes, mas sem que a relacdo entre as duas evolu- des possa ser evidenciada. Isso porque em Micenas ¢ feita uma estrutura funerdria notdvel, 0 cfrculo B, escavado nos anos 1950, cujos tumulos em fossa restituiram muitos vasos em ouro € em prata, contas de ambar ¢ uma primeira mascara funeraria de electro. Datado de 1650-1550 aproximadamente, ele anuncia o cfrculo A; este é assim chamado porque fora descoberto pelo proprio Schliemann, porém é um pouco mais recente (por volta de 1600-1500). Um dos ilti- mos timulos desse novo conjunto, o timulo IV, onde estavam enterrados trés homens ¢ duas mulheres, restituiu um mobilidrio funerdrio excepcional, que ¢ impossivel detalhar aqui: além de trés exemplares das famosas mascaras de ouro, algumas das quais fizeram pensar em retratos, dezenas de vasos em metais preciosos e de armas em bronze de confecgao excepcional (punhais com lamina incrustada de ouro, de prata e de nigelo). Suibita e inesperada, essa riqueza excitou a imaginagéo dos modernos: instala¢io de uma dinastia cretense em Micenas, razia de micénios em Creta, mercendrios enriquecidos por guerras no Egito na época dos hicsos (populacées es- trangeiras que ocupam Avaris por volta de 1720 e fornecem os faraés da 15%. dinastia durante pouco mais de um século a partir de ca 1630) sao hipdteses hoje abandonadas em proveito da nogio de continuidade local. Apesar da escassez de dados e da modéstia dos s{tios do periodo anterior, realmente parece que a Grécia do inicio do segundo milénio conheceu uma expansio demogréfica devida ao desenvolvimento das culturas e da criacdo de animais (as ossadas dos circulos dos timulos sao de individuos de altura superior & média). Essa prosperidade, com| nada com a expanséo das trocas com 0 mundo ciclédico e principalmente minoico, bastati para explicar a emergéncia de uma aristocracia guerreira; em todo caso, & nesse sentido que podem ser interpretados 0 arranjo dos tdmulos ¢ tanto a natureza como a decoragio dos obje- tos descobertos, em que sio abundantes as cenas de caca e de combate. Pequeno monte geralmente construido com terra e pedras. (N. da T) 61 Pré-Historia e Idade do Bronze Na mesma ordem de ideias, os monumentais timulos em ctipula (ou “em tolo” [holes] ceamo grego que designa um edificio em forma de rotunda), com sua falsa ab6bada recoberta die terra, que se desenvolvem simultaneamente com os timulos em fossa ¢ dos quais Micenas restituird mais tarde os exemplos mais conhecidos, poderiam ser apenas a evolugéo pettificada dos tumuli antigos. Ultimo tipo de sepulturas, os ttimulos de camaras cavados na rocha apre- sentam varias analogias com os tumulos em tolo (cf. corredor de acesso, ou drémes) ¢, como cles, podem combinar o uso de fossas e de cistas conhecido mais antigamente; alguns restitu- ram um material também muito rico, Por sua vez, os hébitats escavados até agora séo modestos, uma discrepancia que pode sugerir que aquelas pessoas reservavam o melhor para seus mortos: a maioria das casas aparentemente deriva do tipo retangular alongado no qual se insere uma fileira de cOmodos, chamado “mégaro” (mégaron) e conhecido desde o Neolitico. Também aqui a continuidade compete com as influéncias externas. Em todos 0s casos, ainda estamos longe dos paldcios cretenses e mesmo dos estabelecimentos insulares ou da Troia anatélica, varias vezes reconstruidos, ampliados ¢, no caso destes tiltimos, fortificados. Entretanto as Ciclades praticamente nao restitufram “timulos régio: | | \ t 5 e, se é legitimo extrapolar de tais sepulturas a | existéncia de um poder de tipo dindstico, essas comunidades poderiam apresentar uma organi- zagio diferente, na qual alguns estudiosos viram prefiguragées da cidade-Estado, & semelhanga | do que se supée sobre Tera (capitulo anterior). Tanto nesse caso como no do continente, & | aconselhavel muita prudéncia, pois a exploragdo dos dados funerdtios fica sujeita a confirma- | ao, como os melhores especialistas j4 enfatizaram: apenas os c{rculos e os maiores théloi de Micenas, utilizados por virias geracées ¢ cujo cunho ostentatério é indiscutivel, sio provavel- mente sepulturas preparadas para personagens de sangue real ¢ suas familias. Portanto, em sua primeira fase o mundo micénico apresenta uma riqueza que implica tro- cas com horizontes variados: nérdicos (Ambar), ocidentais, mas principalmente orientais ¢ cre- tenses (metais ¢ artesanato), ainda que esporidicas e provavelmente frequentemente indiretas Observam-se caracteristicas bélicas, bem como uma plaustvel divisio em principados, ciando a formidével expansio vista no periodo seguinte, prenun- que é mais bem conhecido gragas a seus paldcios-fortalezas ¢ a seus arquivos. apogeu do mundo micénico nuou a manter sua atividade em Creta, escapando das destruicées softidas pelos outros sitios ~ deseruigées imputdveis& instalagio de um poder micénico na ilha. Além de algumas evolu- Vimos no capitulo anterior que depois de 1450 (2) Cnossos foi o tinico palicio que conti- 62 f O mundo micénico privicas funerdtias (cf. abaixo), esse poder é detectavel com pre- goes na cultura material ¢ na oem Cnossos mesmo, através das cerca de 3 mil tabuinhas em linear B que o paldcio restituit: a partir desse perfodo ¢ até 1370 aproximadamente (€ provavel que nem todos os textos de Cnossos sejam contemporneos); nessa data, ele por sua ver é destruido ¢ periclita, de acordo com a cronologia mais correntemente aceita (alguns baixam a chegada dos micénios para 1370 ¢ mesmo mais tarde, € desaparecimento do sistema palacial, ainda que j4 em de- clinio, para a segunda metade do século XIII). E inegavel que os micénios tomaram emprestado dos cretenses seu sistema de escrita ¢ adaptaram-no para sua lingua, mas ainda se discute sobre a daca desse empréstimo, que alguns julgam mais antigo (século XVII), ¢ sobre suas modalida- des (contatos em Creta, no continente ou nas ilhas, em implantagées mistas?). Além disso, deve-se destacar que, no estado atual de nossos conhecimentos, os primeiros arquivos em grego aparecem em Creta muito antes que a peninsula ateste isso, visto que as tabuinhas continentais mais antigas datam do século XIII. Mais ainda, o primeiro palécio administrado por micénios é um palacio cretense: por esses diversos paradoxos se mede a divida que os primeiros gregos contrafram para com Creta ~ divida cuja lembranga seus sucessores das épocas histéricas con- servardo, Na ilha e particularmente em Cnossos, as tradigées locais perpetuam-se: produgao de vasos de pedra, de marfins esculpidos ¢ de selos gravados, arte dos afrescos (cf. o “Procissio” e o “Parisiense”). Mas a renovagao da cerdmica (cf. o “estilo do paldcio” e a crescente “miceniza- 40” do restante da produgao) ¢ objetos como o sarcéfago de Hagia Triada provavelmente portam a marca dos novos senhores do lugar. Os antigos sancudrios continuam a ser frequen- tados, mas as sepulturas ¢ os costumes funerdtios adotam formas continentais (“tamulos de guerreiros”). A destruigio do palécio de Cnossos é atribufda & intervengao de um outro prin- cipado micénico continental, ou antes a uma revolta dos centros cretenses secunddrios. Com a antiga sede do poder passando para segundo plano, sitios como Hagia Triada e principal- mente Canela (Cidénia) parecem desempenhar daf em diante os papéis principais. E sobretu do em Caneia que séo produzidos os “jarros em estribo”, assim chamados em razio da forma de suas algas, ¢ que provavelmente contém éleo de oliva, exportado para os principados con- Uinentais (alguns portam inscrigées em linear B que denotam uma liga¢ao com a economia *égia), Na costa sul, 0 sitio portudrio de Comos desenvolve uma atividade intensa, depois declina ¢ por volta de 1250 é abandonado. Considera-se que a Grécia se tomnou uma “provin- cia” do mundo micénico. No continente, é na primeira metade do século XIV que se edificam os conjuntos palaciais, apés uma fase em que surgiu um habitat ainda modesto mas apesar disso mais centralizado. Excatraso ndo deita de surpreender: acaso & concebivel que os micénios pudessem incorporar- 63 Pré-Histdria e Idade do Bronze a. porta dos lebes -b.celero ~ c.circulo A ~d. “centro cultual” ~e. setor sudoeste ~ Ff, palécio ~g, oficinas ~h, casa das colunas ~i. extensio nordeste — j. descida para a cisterna subterranea ~ k. porta norte. Fig, 2. A acrdpole de Micenas (R. Treuil er al., Les Civilisations égéennes, PUR, 1989, fig. 51). -se na administragéo minoica se jé no tivessem uma experiéncia no assunto? Ao contrdrio, terdo eles aprendido tudo la, antes de importarem os métodos em sua patria? Esses problemas, ligados aos debates sobre a idade das tabuinhas de Cnossos ¢ & histéria da chamada Creta “mo- nopalacial”, cujo fim curiosamente coincide com a edificagio dos grandes sitios peninsulares, até agora continuam insolitveis. Trés palacios continentais foram amplamente escavados: Tirin- to, que conheceu uma fase mais antiga, Pilos ¢ obviamente Micenas. Mideia, na Argélida, est em fase de desobstrugéo. Um palécio situava-se em Tebas, mas est apenas parcialmente esca- vado, assim como os outros niveis antigos recobertos pela cidade moderna; entretanto, escava- oes de emergéncia recentemente trouxeram ao conhecimento dos micendlogos um novo lote de tabuinhas ricas em ensinamentos, principalmente no ambito religioso. A vizinha Orcéme- no, por sua ver, ainda é um caso duvidoso. Seguramente a Acrépole de Atenas abrigou um espago fortificado, talvex. um palicio, tardiamente. Na Fécida foi edificado um refiigio mura- do, Crisa, como Eutrésis na Beécia; quanto a Gla, vasto complexo fortificado situado no lago Copais em processo de drenagem, seu estatuto continua incerto. Também incerta é a fungéo 64 f i ieee O mundo micénico dos “edificios intermedidrios”, de dimensées respeitéveis, como o de Ziguries em Corfntia (residéncias de lazer dos donos do poder, moradias de senhores locais etc.?). Como se vé por essa enumeragio, 0 mapa politico da Grécia micénica ¢ hoje muito meridional, para nao dizer essencialmente peloponésio, embora timulos ¢ outros vestigios tenham sido descobertos mais a0 norte, como em Dimini e em Volos (antiga Iolcos?) na Tessélia — sitios que podem reservar surpresas ~ ou a oeste (Acarnania, Epiro, Cefalénia). Portanto, mais ainda do que na Creta minoica, a questao das relacdes enure principados micénicos ¢ problemética. E quase certo que descobertas futuras atenuario os desequilibrios ¢ preencherdo as lacunas (na Lacénia, por exemplo, apesar dos vestigios do Menelaion ¢ do tolo de Vafio, entre outros, ¢ mesmo enquan- to tabuinhas tebanas recentemente publicadas oferecem varias ocorréncias do étnico lacedemé- nio). Entretanto, a excepcional densidade de grandes sitios na Argélida continuard a causar dificuldade: 0 debate deve estabelecer-se em termos de independéncia, de rivalidade ou de complementaridade? Como o Agamémnon homérico, teré um rei de Micenas conseguido “vas- salizat” seus vizinhos? Seja como for, a idade de ouro parece datar do Helédico Recente (HR) TI B1, abrangendo o fim do século XIV ¢ a primeira metade do século XIII; ¢ nessa ¢poca que acidade baixa de Micenas assume sua maior extensdo e que sao edificados os théloi mais impo- nentes (“tesouro de Atreu” ¢ “tesouro de Clitemnestra”). A civilizagéo micénica A civilizagao micénica pareceu padronizada e estereotipada, a tal ponto que se chegou a pensar na existéncia de uma verdadeira koind, mais ou menos como o que seré a comunidaci cultural helenistica (inffa, cap. 23); mas hoje esse ponto de vista tende a ser nuangado, Os paldcios tém um aspecto muito diferente de seus antecessores cretenses e mencionou-se que as formas continentais antigas (habitat tipo mégaro, casas com corredores) também devern ter exercido influéncia (supra, cap. 3). A caracteristica mais marcante é que os sitios apresentam © aspecto de acrépoles poderosamente fortificadas, com excecao de Pilos, que entretanto nio desprovido de muralhas, como sondagens recentes mostraram. Assim, em Micenas, 30.000 m? so cercados por um cinturio de 900 m cujos muros ciclépicos (grandes blocos poligonais as- sentados sem argila) podem chegar a 8 m de espessura e possuem portas as vezes monumentais: © relevo com ledes inserido no triingulo de descarga da porta principal é merecidamente céle- bre (primeira metade do século XIII). Imponentes abbadas falsas ¢ requintes diversos (cami- nho entre dois muros, portas secretas) também sio conhecidos, A funcéo desses espacos cercados & proteger o centro do poder, que administra ¢ armazena as produgées; outros, ainda 65 Pré-Historia e Idade do Bronze mais vastos (10 ha em Crisa, o dobro em Gla), aparentemente podiam abrigar a populasao de Luma regio mais a totalidade ou parte dos rebanhos. O urbanismo parece muito menos plane- jado do que em Creta. Mas, como em Creta, existiam, em escala regional, verdadeiras redes de estradas, com pontes; por exemplo, na Argélida, O centro do paldcio é 0 mégaro tripartite, de Ujolos crus mas dotado de patamates ¢ umbrais de pedra muito bem-feitos, com aspecto e di- mensoes praticamente idénticos nos trés grandes sitios escavados: retingulo de aproximada- mente 20 m x 10 m, com um portal de duas colunas entre duas pilastras dando acesso a um vestibulo que se abre para o cémodo principal. Este é coberto de afrescos cuja técnica & de inspiragdo minoica; possui uma lateira central entre quatro colunas e um “trono” lateral (hipo- tético em Micenas, cujo mégaro é o menos bem conservado). Patios internos, propileus (entra- das monumentais), pavimentos superiores e pocos de iluminagao foram atestados, assim como numerosos anexos que serviam de salas de arquivos (cémodos 7 e 8 de Pilos, onde foram en- contradas 80% das 1.200 tabuinhas restitufdas pelo sitio), armazéns, oficinas, espacos com destinagéo administrativa ou militar etc. Alguns desses anexos podem estar relativamente des- centrados, como as chamadas Casas do Mercador de Azeite, dos Escudos, das Esfinges, na ci- dade baixa de Micenas. Também foram identificados lugares de culto (cf. abaixo). O mobilidrio, que pode ser ricamente decorado (marfim, principalmente), é conhecido através dos textos, € Pilos restituiu uma bela banheira desprovida de orificio de escoamento (outros exemplos me- nos bem conservados em outros lugares). {As tabuinhas estéo repletas de indicagées sobre a administragao, mas frequentemente é di- ficil destringar os detalhes no meio de todos aqueles titulos, alguns dos quais sobrevivem na Grécia arcaica, quase sempre sofrendo considerdveis evolugées de sentido. No topo da hierar- quia figura um rei, cujo titulo, wa-na-ka, reaparece no grego homérico dnax. Nio se conhece com seguranga nenhum nome préprio de wa-na-ka. Esse personagem provavelmente tem atri- buigées religiosas e possui terras (0 rémenos): até mesmo foi identificado um setor especifica- mente régio dentro da economia palacial. A seu lado, 0 ra-wa-ke-ta, dotado de um sémenos mais modesto, poderia ser um chefe militar ou exercer principalmente fungées sacerdorais. Em Pilos, 0 reino esté dividido em duas “provincias”, por sua vez constituidas de varios distritos: cada um € governado por um ho-re-te, que seria uma espécie de governador, assistido por um o-ko-re-te. Kinda nesse reino, ¢-ge-ta fazem a ligagso entre 0 palicio e corpos de guarda costei- ra; eles sim sio designados por seu nome pessoal, mas também por seu patronimico, 0 que sugere que se trataria de membros de uma nobreza de espada hereditria, companheiros do rei da-mo-ko-ro é talvez. um governador de provincia, 0 termo da-mo podendo designar especial- mente as comunidades rurais, com uma conotacao politica (cf. démos no grego posterior); ne- 66 | | 4 fi 5 a E k ' O mundo micénico Jas, uma parte da autoridade talvez esteja nas mos dos te-re-ta, cujo nome supée o exercicio de tum cargo ¢ que foram vistos como uma espécie de barées, por sua vex detentores de terras chamadas de ki-ti-me-na, por oposigio as Ae-ke-me-na comunitarias (0 estatuto das terras é uma das questoes mais dificeis). Convém mencionar também o ga-si-re-u, que nao esté direta- mente ligado nem & administracao palacial nem as comunidades rurais; poderia tratar-se de um dignatario local associado a conselhos de ancidos. O termo persiste nos poemas homéricos ¢ acabard assumindo nas cidades o sentido de “rei” (basiletis); portanto, constitui um dos marcos mais importantes para rastrear as mutagées da organizacao politica desde a época micénica até a época arcaica. Por fim, os epigrafistas chegam a duvidar da existéncia de uma classe de escri- bas, pois a relacéo entre a infinidade de maos identificadas ¢ 0 ntimero total de tabuinhas conservadas (uma centena para os 3 mil documentos de Cnossos) leva a pensar nao em escribas profissionais e sim em administradores letrados (em Pilos, entretanto, um mesmo individuo inscreveu em cerca de 250 tabuinhas ¢ &s vezes é considerado um arquivista de nivel superior). No ponto mais baixo da escala estéo os escravos (do-e-ro, feminino do-e-ra, dottlos no grego posterior); mas seguramente existiam estatutos intermedidtios. Também a religido é objeto de 4rduas controvérsias. O pantedo conhecido através das ta- buinhas é essencialmente grego, embora até hoje faltem Hefesto, Aftodite (2), Apolo ~ que entretanto talvez esteja presente com outro nome ~ e Deméter, que constitui um caso particu lar (cf, 0 capitulo anterior). © termo po-ti-ni-ja (a Soberana) & problemético: ora epiclese {cognome] divina, ora divindade auténoma, ela mesma polimorfa. Num sitio como Pilos ob- servam-se continuidades marcantes (Poseidon é seu grande deus, como nos poemas homéricos) ¢ rupturas evidentes (a deusa Ma-na-sa & desconhecida depois). Sio mencionados “escravos sagrados”, cujo estatuto real é incerto, e diversas corporag6es que trabalham para os santudtios, assim como terras sagradas e rendas devidas por esses mesmos santuérios ao palécio, que em troca contribui para o servigo divino com pagamentos. Uma tabuinha de Pilos pertencente & sétie dos chamados “documentos cadastrais” menciona um litigio entre uma sacerdotisa de nome Erita e um da-mo a respeito de um lote de terra: a interessada reivindica 0 regime parti- cular de “posse privilegiada’, enquanto a comunidade lhe contesta esse direito, alegando, ao contrério, que ela tem apenas a posse ordindria de parcelas comunais!, Recentes andlises osteo- logicas de ossadas de animais sacrificados revelaram que o ritual era bastante semelhante ao da época histérica. Os préprios vestigios dos santudrios dio margem a apreciagdes muito diferen- 1-CEC. J. Ruijgh, ia R. Tul, P. Dascque, J.-Cl, Poursar, G. Touchais, Les Civilizations égéennes du Néolithique et de 'Age du ‘Bronze, 1989, pp. 416-417; P Carlier, Homére, 1999, pp. 381-382. = . * s 67 Pré-Histéria e Idade do Bronze tes por parte dos especialistas. Uns reiteram a dificuldade para identificd-los, por comparagao com as numerosas mengées epigrificas, ao passo que outros enfatizam que a época micénica ¢ a época da diferenciagao dos espagos religiosos, tais como o centro cultual de Micenas, no qual se reconhece um templo com seus idolos votivos, e que talvez fosse o cendrio de um culto ofi- cial distinto dos cultos populares celebrados em espacos abertos. Como foi dito, as praticas | funerarias observam uma grande diversidade, embora a cremacio, difundida no Bronze Recen- te a partir da Anatélia, continue minoritdria, e embora os ttimulos em tolo e principalmente em cimara tendam a suplantar as sepulturas em fossa ¢ em cista, que no entanto nao desapare- cerao totalmente, voltando mesmo a ficar em voga no final do perfodo. As economias micénicas, numa propor¢ao importante, s4o controladas pelo paldcio, que recolhe e redistribui boa parte da produgao. Entretanto, tudo 0 que néo era consignado nas tabuinhas e em outros documentos nos escapa. A fiscalidade as vezes observa uma base propor- cional. Ela visa principalmente os animais de criagao (10 mil ovinos, 1.825 cabras, 540 porcos € 8 bois nas séties Cc ¢ Cn de Pilos), os cereais ¢ outros géneros alimenticios (vinho, oleagino- sos), bem como o linho ea la. O controle da produgio abrange, entre outros itens, a metalurgia (400 ferreiros recenseados.na série Jn de Pilos), a ceramica (muito padronizada), os téxteis (cf, | as centenas de obreiras palaciais na série Lc de Cnossos e nas séries Aa ¢ Ab de Pilos, onde elas recebem uma ragao mensal de trigo e de figos ¢ séo designadas por termos étnicos estrangeiros, /* tais como “milesianas” ou “lemnianas”, o que provavelmente indica uma origem servil). As | armas recebem atengio especial: espadas, das quais os especialistas conseguiram estabelecer ‘ uma tipologia complexa; capacetes com dentes de javalij armaduras, como a pesada couraga | encontrada num timulo de ckmara de Dendra, perto de Mideia, na Argélida:caros, cujas modalidades de uso sio muito discutidas, devido a seu alto custo ¢ ao relevo inapropriado da +’ E Grécia. Também é conhecida a abundante produgao de selos ¢ a de estatuetas estilizadas, cul- tuais ou votivas, em phi (com os bragos cruzados), em psi (com os bragos levantados) e outras (cf. as descobertas do centro culcual de Micenas ¢ as de Filacopi). Como o mundo micénico aparentemente conheceu a autossuficiéncia alimentar, tudo isso contribuia para escoar exce- dentes trocados pelos produtos indispensaveis de que a Grécia tem falta, principalmente metais id (exceto o chumbo ¢ a prata, provenientes do Laurion, na Atica). A cetimica é para nés o melhor marcador da expansio micénica no Mediterrineo. Ora, ela foi encontrada da Sardenha até 0 Bufrates ¢ da Trécia até 0 Nilo. Entretanto, neste caso como | no dos minoicos, nao se deve pensar na constituicéo de um império: a presenga de vasos néo implica forgosamente um contato direto ¢ menos ainda uma instalago permanente. Admite-se em geral que os gregos exploraram os antigos circuitos minoicos, apropriando-se de seus entre- 68 i O mundo micénico postos ou coldnias entre a segunda metade do século XV ¢ a primeira metade do século XIV, por exemplo em Rodes ou em Mileto, Esta ultima regiéo, como outras no sudoeste da Asia Menor, acolhe manifestamente populagées micénicas ligadas a um reino de Abhiyawa (muito provavelmente a forma hitita do grego Akhaiof, isto é, os aqueus, nome homérico dos micé- nios), que os arquivos hititas dos séculos XIV e XIII as vezes mencionam como uma fonte de conflito (os recentes trabalhos dos arquedlogos alemaes que escavaram em Mileto sugerem, entre outras coisas, que os hititas, que chamam Mileto ¢ sua regido de Millawanda, assumiram seu controle na segunda metade do século XIII). Alguns situam 0 centro desse reino de Abhiyawa em torno do litoral da Asia Menor (por exemplo, em Rodes mesmo); outros veem-no mais como um grande principado aqueu continental, como Micenas ou Tebas. Do mesmo modo, as trocas com 0 Egito séo intensas, a ponto de se ter levantado a possibilidade de relacées diploma- ticas. No Mediterraneo ocidental, que podia fornecer os metais ¢ o Ambar norte-europeus, ma- terial micénico foi descoberto em Ischia (ilhota situada ao norte da bafa de Napoles), na Sicilia ena Sardenha, no golfo de Tarento e até no vale do Pé. Mas é sobretudo o Oriente que parece ter abastecido os palicios, tendo como base avancada Chipre, que por sua vez exportava cobre ¢ que desempenha um papel de intermediéria, entre influéncias orientais tradicionais e penetra- ¢éo micénica sobretudo a partir do século XIII (principalmente o sitio de Enkomi, perto de Salamina). Os restos de naufrégios descobertos na costa sul da Anatélia, perto do cabo Ulu Burun (naufrégio hoje datado com precisio dos tiltimos anos do século XIV, por dendrocrono- logia) ¢ do cabo Gelidénia (naufrégio ocorrido cerca de um século depois), atestam a densidade ¢acomplexidade das trocas nessa zona: enquanto a “nacionalidade” dos navios continua hipo- tética (sirio-palestina ou cipriota?), sua carga principal consiste em lingotes de cobre, mas nela figuram também estanho, vidro, objetos de bronze ¢ de pedra, marfim, vasos sirios, cipriotas ¢ micénicos, e foram identificados até mesmos restos de especiarias e fibras de ld tingida. Osim do mundo mictnico Essa questo constitui um dos maiores enigmas da Antiguidade. Considerado durante mui- to tempo como sibito ¢ geral, 0 fim do mundo micénico é hoje entendido diferente e diversa- mente pelos arquedlogos, que também neste caso se vee a bracos com uma cronologia movedica, O palicio de Pilos ¢ destruido na segunda metade do século XIII (por volta de 1250, se- gundo alguns, mais por volta da virada do século segundo recentes estudos ceramolégicos). Acteditava-se que em seguida tivesse ficado mais ou menos abandonado, mas uma cerimica 69 Pré-Hist6ria e Idade do Bronze posterior foi identificada nele (HR III C, a partir de ca 1200). Além disso, algumas tabuinhas ares ¢ requisigdes de metais relacio- anteriores & destruigdo poderiam notificar preparativos nadas com um estado de urgéncia, mas mesmo essa interpretagao foi contestada: mais banal- mente, as providéncias tomadas podem igualmente ser da alcada da administrag4o normal em caso de conjuntura econémica dificil. Portanto, a exploracao dos dados fornecidos por esse si- tio, que atualmente estio em processo de reviséo, é no minimo delicada. Por volta de 1250, destruigées atingem também Migenas e talvez Tebas, e é nessa época que o cinturao de Micenas é notavelmente reforgado, englobando o cfrculo A e protegendo o acesso a uma cisterna; a mesma preocupacio com a gua é vistvel em Tirinto, onde a muralha passa a cercar a cidade baixa, e em Atenas, onde a Acrépole é transformada em cidadela. Um muro de fortificagao no istmo de Corinto e o cinturao de Gla também datariam dessa fase: embora estes dois tiltimos dados estejam particularmente sujeitos a confirmagéo, em conjunto as modificages entéo executadas revelam um clima de inseguranga. No final do século XIII, Tebas ¢ Gla sao destru(- das, assim como Tirinto ¢ Micenas, que entretanto sio reconstruidas e, no caso de Tirinto, numa 4rea que talvez nunca tivesse sido atingida antes (cidade baixa). As Ciclades nao séo poupadas (cf. o sitio, tecentemente fortificado de Koukounaries, em Paros) e em Creta, princi- palmente na oriental, multiplicam-se os sitios-reftigios em lugares altos, como o de Karphi. Os arquedlogos atribuem as destruig6es a manifestagées violentas e principalmente a terre- motos (especialmente na Argélida, em Micenas, Tirinto e Mideia); o incéndio nao é uma prova decisiva nem num sentido nem no outro. Em todo caso, esses incndios conservaram as derradeiras tabuinhas em linear B, por enquanto nenhuma delas posterior a ca 1200. Esse é provavelmente o melhor indicio de que entéo o sistema palacial estd periclitando, pelo menos na forma ¢ no esplendor anteriores. Mesmo assim a producio cerdmica continua, frequente- mente de qualidade muito inferior (‘estilo do celeiro” ema Micenas), as vezes com originalidade: o célebre “vaso dos guerreiros", que mostra uma espécie de desfile de soldados, data de 1150 aproximadamente. A forte homogeneidade cultural dos séculos anteriores atenua-se em Provei- to de um regionalismo novo. No iiltimo quarto do século XII, destruigées finais atingem mortalmente a cidadela de Micenas, e Tirinto é praticamente abandonada. O numero de sitios ocupados diminui muito: de 90% na Bedcia a 50% na Atica, menos atingida, principalmente na costa leste (cf. a necrépole de Perati) ~ fendmeno que alguns relacionaram com o surgimen- to do mito local da autoctonia, mais tarde alimentado pelos arenienses, A fase final do Helddi- co (HR III C) leva os ceramélogos até 0 segundo quarto do século XI; 0 iiltimo estégio, as vezes chamado de “submicénico”, é muito debatido pelos especialistas (ca 1070-1010 na Atica, regidio que passard a constituir a principal referencia). 70 E E é I i | i O mundo micénico Como se pode ver, o desaparecimento dos palicios seguiu um proceso mais evolutivo do que se imaginara inicialmente — em todo caso, lento ¢ diversificado de um sitio para outro. Além disso, muitas caracterfsticas da civilizagio micénica sobrevivem-lhe durante bastante tempo, tanto que agora nio se fala mais de derrocada ¢ sim de decomposicao: é 0 fim de um sistema antes de ser o fim de um mundo (James Hooker e Henri van Effenterre). Naturalmen- te a introdugio dessa “longa duragio” nfo deixa de influir nas explicagbes possiveis. Estas sio de trés tipos: movimentos de populagao, causas naturais, conflitos internos. A primeira categoria privilegia a hipétese da invasio dérica, combinando a tradico mito- légica (0 retorno dos herdclidas, descendentes de Héracles, outrora expulso do Peloponeso por Euristeu) e os dados dialetais (0 dialeto dérico ¢ dominante no Peloponeso na ¢poca histérica). Tem o defeito de nao encontrar quase nenhum apoio arqueoldgico: embora aparecam enr*o uma cerimica dita “barbara”, fibulas ¢ armas de um tipo novo (espada “Naue II”, ralvez : ¢ proveniéncia norte-ocidental) que faz mais uso do ferro e contudo a cremacio passe a ser mais frequente, esses elementos intrusivos séo esparsos demais para escorar a ideia de uma instalacao maciga dando sequéncia a uma invasao stibita ¢ brutal que 0 quadro das destruig6es jf desmen- tia, Retomando a expressio célebre do arquedlogo inglés Anthony Snodgrass, seria uma “inva- so sem invasores”; a isso se replicou que de qualquer forma a vinda dos recém-chegados é pouco detectavel pelos arquedlogos, caso se tratasse de seminémades que praticamente nao deixaram marcas e que podem ter adotado a cultura material de seus adversarios derrotados, ainda mais depressa porque eles mesmos teriam sido conduzidos por ex-emigrados (os hericli- das). Uma série de hipéteses conexas estabelece relago com os problemas que entio afetam a ‘Anatélia (fim do império hitita, incomparavelmente mais poderoso, no primeiro quarto do século XII), Chipre (desaparecimento do reino de Alashiya, conhecido pela correspondéacia diplomatica oriental), o Levante (destruigao de Ugarit) e o Egito, onde os faraés, como Me- renptah (ca 1212-1202) e Ramsés III (ea 1185-1153), repelem os “povos do mar” ou “povos do Norte”. Os filisteus entéo estabelecidos na Palestina produzem uma cerimica de inspiragao micénica, mas ndo se sabe que papel os préprios micénios (os Ehkwesh dos arquivos egipcios?) desempenharam nesses acontecimentos. Embora todas essas peripécias apresentem sintomas conjuntos de estado de urgéncia, as ligagdes entre elas ainda nao foram demonstradas. Também é nesse contexto que se pensou em colocar a “guerra de Troia” homérica, diversa- mente situada pelos antigos num leque de varios séculos a partir de 1334 (1184 pela cronologia de Eratéstenes). O nivel Vila da cidade situada em Hissarlik, descruido por um incéndio apa- tentemente de origem bélica e hoje datado de meados de 1220, fornece um bom candidato para ser identificado com a Troia (flion) da epopeia. Mas para muitos esse contexto nao condiz, Pré-Historia e Idade do Bronze dadas as supostas capacidades de uma aristocracia micénica entao em sérios apuros, a menos que se imagine um empreendimento itrefletido ou desesperado, até mesmo um éxodo armado macigo, 0 que nao corresponde a tradicao épica. Entretanto, o detalhamento da cronologia é incerto ¢ outros retorquiram que uma poténcia em dificuldade podia precisamente lancar-se nesse tipo de empreendimento para tentar recuperar-se: chegou-se a propor que se visse nisso uma espécie de contraofensiva aqueia destinada a compensar a perda de Mileto/Millawanda (cf. acima), tirando proveito do enfraquecimento do império hitita, que também exercia sua influéncia sobre a regido de Wilusa, nome equivalente ao grego [lios/flion. Alids, néo esté ex- clufdo que a epopeia que conhecemos se assente numa base de inspiragéo anterior, talvez par- cialmente oriental, misturando varios conflitos e correspondendo a niveis arqueolégicos mais antigos, dos séculos XIV e XIII, em que sao detectadas outras destruig6es, principalmente um provivel terremoto por volta de 1300 (iltimas fases de'Troia VI). Seja como for, a historicidade do acontecimento espera por uma prova e sua interpretaco esté prejudicada por excessivas incer- tezas cronoldgicas e outras controvérsias arqueoldégicas. Entretanto é forcoso reconhecer que o(s) autor(es) dos poemas tinha(m) nogées bastante exatas sobre a importancia da cidade de Troia e sobre a capacidade do rei de Micenas, na época de seu esplendor, para conduzir uma expedi¢a0 asidtica, talvez mesmo unindo os gregos, ainda que por um periodo e um objetivo limitados. Entre os fatores naturais, nao se pensa mais em invocar a erupcao do vulcao de Tera (capt tulo anterior), mas outros foram alegados: perturbagées climéticas prejudicando a producéo agricola e desestabilizando a economia, enquanto as trocas, por sua vez, teriam sido afetadas pelos distirbios que agitavam 0 Mediterraneo oriental, privando as classes dirigentes de sua fonce preferencial de fornecimento de metais. Também aqui faltam provas. Mais ilustrados pelos dados arqueolbgicos, os terremotos podem ter abalado a prépria organizaséo politica ¢ social: embora alguns renham duvidado que se possam imputar a um ou alguns sismos os da- nos ocortidos por volta de 1200 nos centros de poder de regi6es tao distances como a Argélida, a Messénia € a Bedcia, essa explicagio, compativel com as marcas de incéndio observadas, volta a ganhar prestigio atualmente (possiveis réplicas ou série bastante continua de grandes abalos sismicos em diferentes lugares). Quanto aos conflitos internos, poderiam ser de dois tipos: opondo entre si os principados, que teriam se esgotado nessas guerras, ou opondo as aristocracias dominantes a seus stiditos. Na segunda hipétese, deve-se entender por “stiditos” dérios jé instalados na peninsula e primei- ro submetidos ao poder vigente? Uma parte dos argumentos, de natureza dialetal (existéncia de um “mictnico especial”, protodrico, que teria sido falado pelas classes inferiores), & rejeitada pela maioria dos linguistas, embora a questéo da diferenciagdo dialetal nas tabuinhas ¢ a ques- 72 O mundo micénico ta0 da posigio do proprio micénico na histéria da lingua grega continuem em discussao (cf. capitulo seguinte), Também se poderia imaginar uma “fronda” de senhores locais contra o poder central, que teria imposto uma superexploragao das terras que se tornou insuportével, enquanto ele préprio era frégil bastante para ser primeiro desestabilizado ¢ depois derrubado. Nesse esquema, os dérios — inferiores j4 presentes ou provavelmente guerreiros chegados ha pouco ¢ em pequenos bandos (também aqui 0 conceito “infiltragdo” esté em voga hoje) — te- riam sido utilizados ¢, por fim, teriam se imposto a seus empregadores atropelados pelos acon- tecimentos ¢ pelo niimero cada vez maior de imigrantes? Essa hipdtese teria a vantagem de dar novamente algum crédito & tradicio literéria e de harmonizar-se com os dados arqueoldgicos que, por um lado, pdem em evidéncia certa continuidade cultural durante mais ou menos um século apés a ruptura que o fim dos palacios constitui ¢, por outro lado, sugerem que os sitios nao palaciais foram proporcionalmente menos atingidos pelas destruicées. Todas essas explicagées rivalizam em engenhosidade ¢ sofisticagao. Vamos confiar que nao demorard muito para que a arqueologia ofereca novas pistas, ¢ manter provisoriamente que hoje um roteiro tinico esté abandonado em proveito da ideia de que fatores diversos podem ter se combinado, & semelhanca das destruig6es jé constatadas, geograficamente dispersas ¢ espa- hadas no tempo. Excessivamente rigido ¢ excessivamente centralizado, o sistema palacial teré sido incapaz de adaptar-se ¢ de fazer frente a turbuléncias de origens diversas mas ocorrendo em cadeia e, pelo menos em parte, com ligagbes de causa ¢ efeito. Por volta de 1700, confron- tada com dificuldades aparentemente bastante semelhantes, a Creta minoica conseguira teer- guer-se vigorosamente entre as fases proto- ¢ neopalaciais (capitulo anterior). Na Grécia, serd preciso esperar séculos para tornar a ver uma civilizagéo téo brilhante. 73 SEGUNDA PARTE Epoca arcaica Capitulo 10 GUERRAS MEDICAS Com as reformas de Clistenes, Atenas atinge o grau de maturidade politica que caracteriza a idade classica. Entretanto, a periodizagéo tradicional faz a época classica comegar com o sé- culo V e as guerras médicas. Estas marcam 0 advento de uma arma antiga, mas que ganhou diversos aperfeicoamentos: a marinha; ¢ reforcam a democracia ateniense, que entio se torna suficientemente forte para assumir a lideranga de um império. Nessa evolugao, decisiva para todo o mundo grego no século V e mesmo muito depois, outro ateniense excepcional se distin- gue: Temistocles, personagem tio ambiguo quanto fascinante, Na falta naturalmente prejudi- cial de fontes persas, é principalmente através de Herédoto que conhecemos esses episédios célebres, mas cujo avesso nem sempre ¢ facil desenredarmos com preciso de detalhes, Mas ja hé muito tempo se vem observando que sua obra Histérias, que privilegia o papel desempenha- do por Atenas, apresenta 0s acontecimentos das duas décadas 499-479 seguindo uma continui- dade légica — se nao uma coeréncia — que em parte poderia ser iluséria (cf. a importincia dada a0 mecanismo da vinganga). Devemos juntar-lhe outra obra-prima, Os persas, de Esquilo, que combateu pessoalmente em Maratona e Salamina. Por fim, temos Diodoro da Sicilia (livros X ¢ XI), Plutarco (Vidas de Aristides e de Temistocles) ¢ outros documentos, como o célebre ¢ muito controverso “decreto de Temistocles”, descoberto em ‘Trezena! ¢ hoje majoritariamente considerado um apécrifo do século IV. Causas A denominagao “guerras médicas” dada a esse conflito entre gregos ¢ persas provém do nome dos medas, que dominavam os persas na época dos primeiros contatos entre esses povos as populacées helénicas, antes de serem subjugados e associados a eles por Ciro o Grande, em 550 aproximadamente. Mas os gregos continuaram a utilizar essa denominagao, embora nado correspondesse mais & realidade politica do Oriente. Sob 0 impulso de Ciro (559-530), de Cambises (530-522) e, depois, de Dario I, 0 império aqueménida (nome do cla familiar de _cPLP Baum, Impcrinisme ef democratic Athens, VoL 1B Brun, impérialiome et democratic a thins. Inseripions de 'épeque clasique, 2005, n®2., 2 OOS Inscriptions de llepogve ¢ lassigue, tothe RR Epoca cléssica Ciro) estendeu-se por imensos territérios que iam do Indo ao Egeu e ao Egiro. As causas do conflito com os gregos devem ser buscadas na Jonia, regio onde o helenismo teve um desen- volvimento particularmente brilhante no século VI. Nela hd cidades poderosas, coms Samos, onde se destacou 0 tirano Policrates, morto pelo sdtrapa de Sardes?, outras muito présperas, como Mileto, & qual se atribuem varias dezenas de coldnias ¢ que também conhece a tirania (cf. capitulo anterior). Entre essas cidades, 12 estéo agrupadas na liga jonica, que celebra 0 culto de Poseidon Helicénio no santudrio conjunto do Panidnion, no cabo Micale - organizagfo essen- cialmente religiosa, que dificilmente podia ter a eficiéncia politica que alguns, como Bias de Priena ou Tales de Mileto, gostariam de atribuir-lhe. A produgao literéria e filosdfica da Jonia € notavel (Mimnermo e Xenéfanes de Célofon, Tales, Anaximandro ¢ Hecateu de Mileto, Heréclito de Efeso), assim como a escultura ¢ a arquitetura (grandes templos de Hera em Sa- mos ¢ de Artemis em Efeso), em que brilham os artistas polivalentes Roicos ¢ Teodoro, intro- dutores na Grécia da técnica de cera perdida. Na segunda metade do século, a regiéo, que antes estava sob influéncia Ifdia (reinado de Creso: cf. supra, cap. 7), caiu sob dominio dos persas: estes controlam-lhe os assuntos piiblicos por intermédio de tiranos que compartilham ampla- mente seus interesses e impdem um tributo aparentemente bastante tolerdvel. Portanto, é dificil explicar a revolta que agita a regio na virada do século. Herédoto atri- bui-aa Aristdgoras, tirano interino de Mileto na auséncia do titular, seu primo e sogro Histieu, retido por Dario em Susa. Conspirando com o sétrapa de Sardes, Artafernes, Aristdgoras o teria arrastado para uma operagio que, segundo prometia, seria ficil ¢ lucrativa. Seu projeto consis- tia em apoderar-se da ilha de Naxos, onde acabava de eclodir um movimento popular contra aristocratas aos quais Aristigoras estava ligado — primeira etapa antes da conquista de outras Ciclades ¢ da Eubeia. Mas, devido & resisténcia dos néxios, o empreendimento teria andado mal. Incapaz de cumprir suas promessas, Aristégoras viu-se empurrado para a revolta, incenti- vado pelo proprio Histieu. Essa fuga para a frente forcou-o a proclamar a isonomia em Mileto em outras cidades: com sua ajuda ou seguindo seus conselhos, elas se livraram de seus tiranos ¢ elegeram estrategos (500-499). A trajetéria dese ambicioso um tanto trapalhio esconde na verdade o qué? Se os especialistas nao acreditam mais numa crise econédmica (declinio do co- métcio jénico ditecionado para as coldnias pénticas, devido a dominagao do rei Dario I sobre uma parte da Citia ¢ sobre os Estreitos em 513/2), a escapatdria politica escolhida por Aristd- goras revela provavelmente um sentimento antitiranico ~ ¢ portanto antipersa ~ bastante forte no demo de Mileto € no restante da Jonia, plausivelmente receptivos as inovagées atenienses ¢ 2, Segundo Herédoro (III, 89), Dario havia dividido o império persa em 20 satrapias. 444

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