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Violenta geometria
Rosana Paulino & Renata Felinto
Publicado em: 17 de fevereiro de 2021
Os estúdios de fotografia no Brasil Imperial, na segunda metade do século 19, nos legaram
imagens que nos permitem conhecer os rostos de crianças, homens e mulheres que viviam sob
o jugo da escravidão. Os registros fotográficos de tipos humanos de ascendência africana feitos
nesse período vêm sendo alvo de investigação de um número expressivo de artistas e
pesquisadores, e uma das que se sobressaem dentre eles é a artista visual Rosana Paulino.
A iconografia desse período é fundamental para sabermos mais sobre a população preta
brasileira, ainda que alguns aspectos presentes nessas imagens sejam provenientes de cenários
elaborados nos estúdios fotográficos e não sejam de fato registros da vida cotidiana das pessoas
escravizadas. Tal informação não desabona o fascínio que as imagens exercem sobre nós e
sobre Paulino, que, a partir delas, concebe uma estética própria, revelando novas camadas de
significados e de interpretações acerca dessas pessoas. São camadas que se referem também às
relações que o Brasil imperial e republicano cultivou com essa gente e, por consequência, com
seus descendentes.
A fotografia registrou essas existências em seus mais diversos contextos, mas também as
violentou brutalmente. As pessoas pretas são apresentadas como corpos, e suas vontades, seus
sonhos e suas identidades são sequestrados para saciar a curiosidade pelo exótico. Essa
imaginação colonial satisfazia o gozo visual da nossa elite e se difundia por cartes de visite, uma
espécie de suvenir fotográfico, criado pelo fotógrafo francês André-Adolphe-Eugène Disdéri
(1819-1889), para ser trocado entre quem podia viajar e desejava mimosear seus afetos com
uma lembrança à brasileira.
Na mesma época, a fotografia também serviu à ciência como ferramenta de estudo da fauna, da
flora e do “gentio” brasileiros. Na perspectiva científica, a população não branca era
considerada parte da natureza a ser registrada, catalogada, pesquisada e analisada. Há um
tanto de fotografias antropométricas, que retratam homens e mulheres de forma padronizada,
de costas, de perfil e de frente. Elas servem como elemento de análise e de respaldo para
estudos comparativos genéticos e biológicos, a fim de se comprovar a supremacia dos tipos
brancos europeus. Atualmente, essas pseudociências já foram desmoralizadas, por seus
fundamentos eugenistas; contudo, as fotografias seguem sendo formidável fonte de pesquisa
sobre nós e nossos complexos de nação chafurdada em brutal violência.
Durante muito tempo, nas artes visuais, nos negamos a falar honestamente desse Brasil,
porque o abordar implica também explicitar a formação da nossa história a partir de suas
raízes, tanto no que se refere a nossa constituição como sociedade quanto ao que compete a
nossa produção artística.
A artista paulistana Rosana Paulino resgata essa iconografia em seus trabalhos, não para tratar
do passado, mas para denunciar a permanência dessas ideias hoje e atribuir a devida
importância às pessoas que habitavam aqueles corpos. Comprometida em analisar nossa
história por outro prisma, Paulino tem produzido obras sobre nós, pessoas do Brasil,
considerando os processos de invasão, usurpação, expropriação, genocídio, violência e
epistemicídio inscritos no nosso DNA coletivo.
Abordar nossa história por um viés que diverge de sua distorcida versão oficial costumava ser
designado como panfletarismo de mau gosto. No livro Arte para quê? (2003), a crítica e
historiadora Aracy A. Amaral fala sobre o preconceito com a arte que aborda o humano a partir
de preocupações que se voltem à história e à sociedade e às relações que tecemos nesta e a
partir desta. O livro é também uma resposta a certo consenso na crítica de arte brasileira de
meados do século 20, que dizia que a América Latina tinha uma vocação natural à arte
construtiva (o crítico Frederico de Morais discorre sobre os motivos que justificariam essa
crença, no excelente texto “A vocação construtiva da arte latino-americana”, de 1978).
A dificuldade em encarar nossa história, inclusive nas artes visuais, está assentada nos traumas
coloniais decorrentes da gana de expansão dos domínios territoriais e econômicos da Europa,
como diz a artista, escritora e psicóloga Grada Kilomba, em Memórias da plantação (2019).
Por um longo tempo, a sociedade brasileira escolheu fingir uma amnésia dissociativa. Nunca
tratamos esse trauma colonial.
A suposta vocação da América Latina à geometria da arte construtiva pode ser compreendida
como uma espécie de sublimação – um mecanismo de defesa que redireciona pensamentos
prejudiciais, nocivos ou incômodos e os transforma em ideias socialmente aceitáveis. Podemos
substituir “pensamentos” por “assuntos”, e identificamos “prejudiciais, nocivos ou incômodos”
como a própria herança material e imaterial dos povos não brancos, africanos e originários,
cofundadores das histórias e das culturas do Brasil. A pluralidade, tão celebrada durante o
modernismo como selo de autenticidade brasileira, é o que será sublimado culturalmente.
Nas artes visuais, o processo criativo é o mediador de possíveis formas de salvação. Por isso, a
nossa pretensa tradição geométrica é a nossa sublimação coletiva. Se não conseguimos tratar o
trauma colonial e fingimos esquecê-lo, convertemos o “esquecimento” em vocação, em
salvação, o que nos livraria da mácula do colonialismo e de conviver com os efeitos da ausência
de um projeto realmente democrático de nação, comprometido em todos os níveis com nossa
multiplicidade populacional.
As composições geométricas a partir das formas “puras” propõem uma arte asséptica, que nos
exime do compromisso de lidar com o trauma e a dor no campo das artes visuais. Artistas
precisavam incorporar rapidamente os pressupostos da arte geométrica, demonstrando
destreza no domínio de conceitos matemáticos que se alinhavam ao fazer artístico. Essa era
uma espécie de prova de nossa capacidade de acompanhar as transformações conceituais e
estéticas da história das artes visuais produzidas na Europa, reforçando a sensação de eterno
atraso dos artistas daqui.
Raramente a nossa produção artística tratou com seriedade esse trauma colonial e suas
consequências. Adotar as correntes artísticas europeias como referência, inclusive subjugando
a importância dos fundamentos geométricos das artes produzidas pelas populações africanas e
autóctones das Américas, foi a sublimação do trauma colonial na prática. Suprimimos as
circularidades e triangularidades das compreensões de si e do mundo das populações
originárias e africanas na linha reta da história da arte europeia. Suprimimos a ponto de torná-
las invisíveis. No entanto, não é por não serem visíveis que o trauma e a dor deixam de existir.
Latejam e sangram constantemente.
Paulino conduz sua investigação artística a partir do binômio fotografia e sociedade (ou
relações sociais) desde o princípio de sua carreira. Parede da memória (1994-2015), que a
artista iniciou durante a graduação, traz imagens fotográficas de crianças, homens e mulheres
impressas sobre patuás e coloridas com aquarela. A obra foi apresentada ainda em 1994 na
exposição Fotografia contaminada, no Centro Cultural São Paulo, a convite do historiador da
arte Tadeu Chiarelli. Em 1997, Paulino exibiu Bastidores, série de imagens de mulheres negras
atravessadas por linha de costura preta, no tradicional Panorama da Arte Brasileira promovido
pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).
Nessas duas obras, emblemáticas de seus mais de 25 anos de carreira, a fotografia já aparecia
como marca da investigação poética da artista. As obras também tratam do debate racial, a
partir do emprego de fotografias de seu círculo familiar – debate que só agora é abordado com
a devida seriedade no campo das artes visuais.
Nesse sentido, ao resgatar nossa história sublimada – aquela sobre a qual, por complexo de
inferioridade, não se podia falar –, Paulino pode ser considerada uma “embreante”, tal qual
define a filósofa Anne Cauquelin. A arte contemporânea, para Cauquelin, tem como
fundamento a comunicação, e as rupturas ocorridas na produção, exibição, comercialização e
compreensão da arte ocidental no século 20 deveram-se a atuações determinantes das figuras
que ela denomina “embreantes”. São elas que, ao desafiarem o sistema da arte, modificam
substancialmente a sua estrutura, que assim incorpora novas realidades, discussões, estéticas e
condutas.
Paulino é uma embreante que enuncia a retomada da discussão sobre a história brasileira
“suleada” pelo não dito sobre a pendência racial; que faz um acompanhamento clínico dessa
questão nas artes visuais a partir de uma crítica incorruptível à história e, especialmente, à
narrativa histórica sobre pessoas africanas e sua descendência no Brasil. Não dá para, em
poucos caracteres, mencionar mais de uma centena de artistas de nosso país, especialmente
pretas e pretos, que hoje se ocupa dessa temática e das que lhes são afins, com maior
desenvoltura e liberdade do que há três décadas. Paulino é chave nessa abertura, parafraseando
o poeta e rapper Rincon Sapiência (“os preto é chave/ Abram os portões”).
Paulino é chave para experimentar curas possíveis desse trauma colonial, desde o uso de
fotografias de seu acervo familiar até a apropriação de imagens de cunho histórico-científico
que objetificam pessoas da população preta em suvenires ou estudos experimentais. Na obra
Ama de leite (2007-2009), temos um dos primeiros empregos de fotografias históricas – a
imagem do fotógrafo Jorge Henrique Papf, de 1899, em que uma criança aparece montada
sobre as costas de uma mulher postada de quatro. Vejam bem: a imagem foi feita 11 anos
depois da assinatura da Lei Áurea.
O interesse pela imagem fotográfica soma-se ao fascínio que a artista expressa pela biologia,
área que cogitou como profissão. Esse deslumbramento é visível em grande parte de sua obra,
como nas muitas séries de desenhos em que seu conhecimento de anatomia humana e animal
se materializa em seres híbridos. Por exemplo, os ciclos de vida e as metamorfoses dos insetos
se inscrevem como metáforas para as nossas próprias transformações pessoais, na série
Carapaça de proteção (2004), em que as mulheres representadas aparecem por vezes
protegidas por invólucros translúcidos.
As filhas de Eva (2014), ¿História natural? (2016), Paraíso tropical (2017), Geometria à
brasileira (2018) e Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical (2018) são trabalhos em
que a presença de fotografias de tipos humanos se mantém, sobrepostas a ilustrações da fauna
e da flora brasileiras realizadas por naturalistas. Esse conjunto de obras assinala
definitivamente a profundidade e a abrangência do elemento fotográfico na prática artística,
poética e discursiva de Paulino.
Em Paraíso tropical, as mulheres escravizadas fotografadas não possuem rosto; suas faces,
índices de identidade, são subtraídas. Essas mulheres aparecem sobre ilustrações de crânios,
que se referem à frenologia e a estudos antropométricos, práticas pseudocientíficas que
ambicionavam determinar aptidões mentais e comportamentais inerentes a cada “raça”
humana. As composições dialogam criticamente com o Brasil do século 19, país que, aos olhos
da Europa, era um estranho paraíso nos trópicos a ser decifrado a partir de exaustivas
especulações mirabolantes sobre suas gentes, sua vegetação, seus animais e sua natureza –
vistos como possíveis obstáculos para a efetivação da civilização que se sonhava estabelecer.
Geometria à brasileira foi produzida nos EUA, em um estágio que Paulino fez na Universidade
Colgate, em 2018. Geometria à brasileira chega ao paraíso tropical dá continuidade a essa
pesquisa, já no Brasil. Salvo as questões técnicas – nos EUA era possível contar com papéis de
grandes dimensões, indisponíveis por aqui, o que faz o trabalho adquirir escala menor –, as
duas séries se complementam e expandem as questões anteriormente colocadas.
Na primeira, fauna e flora estão nas mesmas dimensões das demais figuras humanas,
enquanto, na segunda, as plantas-orquídeas adquirem maior proporção e ficam centralizadas,
ao fundo dos demais elementos da composição. A família extensa das orquídeas, que tanto
encantou naturalistas europeus por sua variedade, é identificada por seus nomes científicos:
Epidendrum ammophilum, Cattleya elongata, Oncidium, entre outras. A categoria taxonômica
de família se aproxima aqui do conceito social de família de populações da África Ocidental, de
onde foi sequestrada a maior parte das pessoas escravizadas no Brasil. As duas grandes
famílias, a de plantas brasileiras e a de pessoas africanas, servem como metáfora de resistência
e sobrevivência: resistência, pois não se rendem ao processo de colonização, que inclui
domesticar a vegetação para urbanizar as cidades (as plantas, por exemplo, estão nascendo nas
frestas do concreto, “é a natureza que não cede”, observou Rosana Paulino); sobrevivência,
porque, a despeito do trauma colonial, não nos dobramos ao projeto excludente e genocida de
civilização que tenta nos extinguir.
E a geometria, em ambas as séries, se faz presente pelos retângulos e quadrados nas cores
verde-bandeira, azul-cobalto, amarelo-ouro, vermelho vivo, marrom cor de pele e laranja solar.
Essas adjetivações das cores não estão na escala Pantone, e sim na Brasilis (podemos inclusive
cambiar o vermelho vivo por vermelho sangue, muito presente na nossa aquarela).
Assim como a arte geométrica brasileira do século passado sobrepôs-se a outras linguagens,
cegando-nos a diferentes produções, temáticas e estéticas, nas duas séries de Paulino, a
geometria também cega: os quadrados e retângulos cobrem os olhos das pessoas pretas e
indígenas representadas nas obras. A geometria é justamente o elemento compositivo que
impossibilita que as pessoas enxerguem – e recebam de volta nosso olhar, reconhecendo-as
como sujeitos. A geometria as exclui e as força a ver o mundo, a si, aos seus e às suas por uma
perspectiva histórica unilateral, a partir de um modo único de ser, estar e existir.
A palavra “geometria” vem do grego e significa, grosso modo, “medida da terra”. Talvez a
geometria esteja mesmo no nosso devir, mas a partir do orgânico: da terra, da natureza e de
seus espirais, fractais, hexágonos perfeitamente calculados; da ressignificação do que foi
sublimado. A geometria está presente nos saberes das populações que, apesar de
laboriosamente examinadas, foram consideradas ineptas ao projeto de Brasil, porque a mesma
régua, o compasso e o transferidor não atendem aos projetos de existência de todos os povos.
Como apontou Paulino no fim de nossa conversa, são as populações ribeirinhas, indígenas,
quilombolas e periféricas que podem reinventar o curso do projeto civilizatório, para que ele
seja nosso projeto, com todo mundo. Que essa geometria à brasileira seja nosso devir. ///
Rosana Paulino (São Paulo, 1967) é doutora em artes visuais pela ECA-USP e especialista em
gravura pelo London Print Studio. Suas obras integram o acervo do MAM-SP, Univesidade do
Novo México (EUA) e Museu Afro-Brasil (SP). Exposições recentes incluem: Rosana Paulino –
A costura da memória, na Pinacoteca de São Paulo, e Histórias afro-atlânticas, no Masp e
Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em 2018.
Renata Felinto (São Paulo, 1978) é doutora e mestre em artes visuais pelo Instituto de Artes
da Unesp e especialista em curadoria pelo MAC USP. Artista visual e professora adjunta da
URCA-CE, participou da exposição Histórias afro-atlânticas (2018), no Instituto Tomie
Ohtake/Masp, entre outras.
Assinantes da revista recebem nessa edição a obra Natureza Brazileira, um pôster feito por
Rosana Paulino especialmente para a ZUM. Clique aqui para assinar.