In: Pietro Costa e Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica
Crise do Estado de Direito.
Publicado por Débora Silva há 5 anos 2.580 visualizações
AUTORIA E OBRA:
ZOLO, Danilo: “Teoria e Crítica do Estado de Direito”. In:
Pietro Costa e Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 1-95 (item 6: “Crise do Estado de Direito” – pp. 70-82).
INTRODUÇÃO:
Danilo Zolo é um importante jurista italiano, professor catedrático de
Filosofia do Direito e Filosofia do Direito Internacional na Universidade de Florença (Itália) e professor visitante do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas do CCJ/UFPB.
Na obra aqui apresentada, Danilo Zolo, inspirado em autores como
Norberto Bobbio, discorre sobre o chamado “Estado de Direito”. Mesmo sendo incerto definir precisamente o que é o Estado de Direito proposto pelo autor, é notório que a noção de Estado de Direito se relaciona intimamente com a doutrina dos direitos subjetivos e também com a contenção de poder arbitrário.[1]
Especificamente no capítulo aqui abordado, Zolo fala da crise do
Estado de Direito. Pra tanto, o autor discorre sobre a crise no funcionamento das estruturas garantistas dos Estados Ocidentais, bem como da crise de proporções globais que atinge a proteção dos Direitos Humanos. O autor discorre também sobre a influência das decisões arbitrárias dos sujeitos internacionais e dos processos de integração em escala regional e global para o atual estado de erosão da soberania dos Estados nacionais.
Zolo também fala sobre a inflação do direito e a consequente crise na
capacidade reguladora dos ordenamentos jurídicos que acabam por gerar um déficit de generalização abstrata no conteúdo das normas além de aumentar o poder dos juízes e interpretes da lei.
DESENVOLVIMENTO
1.0 A crise do Estado de Direito
Diante da atual realidade de progressiva complexificação social e dos
processos de globalização, os problemas que precisam ser enfrentados podem ser aglomerados sob o título de “crise do Estado de Direito”. Em nível nacional, pode-se pensar na crise dos sistemas “garantistas” dos Estados ocidentais, ao passo que em âmbito global a crise refere-se à proteção dos “direitos do homem”.[2]
Nesta perspectiva, a abrangência desse fenômeno decorre do caráter
tirânico ou totalitário de diversos regimes estatais, e também da arbitrariedade na tomada de decisões por sujeitos internacionais politicamente, militarmente ou economicamente influentes.
O autor separa as razões da crise do Estado de Direito em duas partes
diferentes: a dos fenômenos de complexificação social no âmbito das sociedades industriais avançadas; a dos métodos de integração em escala regional e em nível global. Na primeira parte, destaca-se a crise da capacidade de regular dos ordenamentos jurídicos do Estado, bem como a queda gradual da efetividade de proteção dos direitos subjetivos. Dentro da segunda parte, o ponto principal se refere à ruína da soberania dos Estados nacionais frente à preeminência de sujeitos e poderes transnacionais que se abstêm do fundamento da difusão e diferenciação dos poderes. [3] 1.1 A crise da capacidade de regulação da lei e a inflação do direito
Nas sociedades complexas do Ocidente, a “capacidade reguladora” do
ordenamento jurídico se encontra em profunda crise. Em outras palavras, pode-se dizer que a efetividade normativa das prescrições da lei está “em queda”. As causas desse impasse funcional foram examinadas pela sociologia do direito e adotou-se o termo “inflação do direito” para explicá-las.
O advento da globalização trouxe consigo a reafirmação da luta de
minorias historicamente excluídas e marginalizadas. Com isso, intensificou-se o processo de diferenciação de subsistemas sociais no intuito de melhor amparar e incluir as chamadas minorias. A reação do ordenamento jurídico diante desse fenômeno se dá através de uma crescente produção de normas, cujos conteúdos são cada vez mais específicos e particulares. O problema surge quando constatamos que o Direito não consegue absorver toda essa produção normativa de modo sincrônico, uma vez que sua capacidade de autoprogramação e autocorreção é limitada pela própria rigidez do Direito. Desse fato provém a crise inflacionária do Direito, que trás como consequências a depreciação, redundância e vulnerabilidade normativa, que geram uma impotência reguladora do ordenamento jurídico.
A essa proliferação de atos legislativos, soma-se a extensão, falta de
clareza e fragmentariedade das disposições normativas que, cada vez mais, se aproximam de medidas administrativas. Com isso, a legislação estatal caminha no sentido de perder os requisitos de generalidade, abstração e universalidade esperados de conteúdos normativos.
É importante destacar que o fenômeno da proliferação das fontes
normativas não é exclusivo das fontes normativas internas, ao contrário, ele vai além das fronteiras territoriais e atinge também as fontes supranacionais[4]. Em decorrência, surgem outros problemas, a saber: a dificuldade de se detectar os “fundamentos gerais” do ordenamento jurídico que deverá ser adotado pelos órgãos jurisdicionais, bem como a própria variedade de tais órgãos, incumbidos de interpretar normas nacionais, internacionais e comunitárias.
Desse modo, a crise da capacidade reguladora do Direito legislativo
ameaça a certeza do Direito e o princípio da legalidade. Além disso, a hipertrofia normativa expande demasiadamente o poder do judiciário que adquire, além de suas competências, poder normativo. Soma-se a isso o fato de a multiplicidade de fontes normativas provocarem também incertezas e confusões generalizadas, pois tanto os cidadãos quanto os membros das Cortes de justiça desconhecem a validade das leis e o seu alcance normativo.
1.2 A efetividade decrescente da proteção dos direitos
Aqui, o autor baseado na teoria de Thomas Marshall sobre a cidadania
na Europa[5], fala sobre a relação existente entre a aquisição de direitos civis, políticos e sociais, a evolução das instituições políticas e o desenvolvimento da economia de mercado. Baseado nessa relação, Zolo disserta sobre o que ele chama de “lei de efetividade decrescente” das garantias dos direitos sociais na Europa Ocidental. Dessa “lei” podemos entender o seguinte: na transição do reconhecimento dos direitos civis aos direitos políticos e, finalmente, aos direitos sociais, a garantia dos direitos tornou-se cada vez mais seletiva, juridicamente imperfeita e politicamente reversível. Segundo o autor, isso pode ser explicado pela controversa relação existente, especialmente após a Revolução Industrial, entre o reconhecimento dos direitos e as instâncias de um sistema político-jurídico ligado à economia de mercado.[6] Como exemplo dessa relação controversa, o autor cita a Carta dos direitos fundamentais da União Européia de dezembro de 2000 que, apesar de amplia o catálogo com a inclusão de novas categorias de direitos, não promove uma efetividade de seu gozo por parte dos cidadãos.
Em relação aos direitos políticos, Zolo destaca a visão do politólogo
Giovanni Sartori, que afirma que atualmente os direitos políticos estão sendo inutilizados pelo enorme poder dos meios de comunicação em massa, que dominam tanto o cenário político quanto o econômico.
Sobre os direitos sociais, a “lei da efetividade negativa” é ainda mais
evidente se pensarmos que tais direitos se encontram ainda mais expostos às contingências do mercado, dado que sua efetivação depende de serviços públicos que, por sua vez, demandam uma quantia demasiadamente alta de recursos. Sendo assim, é natural que os direitos sociais apresentem caráter aleatório no contexto de uma economia de mercado. Outro problema concernente aos direitos sociais, é o fato de que atualmente na Europa os direitos subjetivos perderam, em grande parte, os caracteres de universalidade e acionabilidade jurídica, tendendo a se tornarem meros serviços assistenciais.
Diante dessa realidade, Zolo destaca autores como Pierre Bourdieu e
Loic Wacquant, que afirmam que os procedimentos da globalização privam os Estados nacionais de boa parte de suas funções. Estes, por sua vez, acabam sendo incumbidos somente da função de garantia da ordem política interna. Nesse contexto, o “Estado social” europeu, acabaria substituindo até o próprio caráter assistencial por uma dominante função de repressiva, tornando-se, assim, uma espécie de “Estado penal”.
1.3. A erosão da soberania do Estado nacional
A notória decadência da soberania dos Estados nacionais mostra-se
irreversível. A globalização colocou em crise o sistema westfaliano de soberania dos Estados, que agora não possuem mais condições para enfrentar problemas de escalas globais. Para o sociólogo moderno Zygmunt Bauman, a economia, no contexto da globalização, possui um papel de importância ímpar e atribui ao Estado um novo sentido, que agora se submete ao fator econômico. Isso se dá, pois a economia acaba, segundo Bauman, sendo responsável por romper definitivamente com as barreiras de proteção dos Estados que, devido a isso, vem sofrendo um processo de definhamento com forte tendência à extinção do Estado Nacional. [7]
Diante disso, ao lado dos Estados nacionais, surgem novos e potentes
sujeitos da esfera internacional: corporações multinacionais, uniões regionais, alianças político-militares, entre outros. Do mesmo modo, ao lado dos tratados e das convenções internacionais, emergem novas fontes do direito internacional, também chamadas de fontes transnacionais, como as transnational Law firms[8] e as cortes arbitrais. Concomitantemente, o poder dos juízes e a função judiciária até mesmo em nível internacional tendem a se expandir, comprometendo a soberania jurisdicional dos Estados nacionais, como se pode ver pelos tribunais internacionais de Haia e Arusha.
Diante dessa realidade, surge um sistema de relações internacionais
amplamente dependentes dos grandes centros de poder econômico e financeiro. Assim, as transformações do direito internacional são seguidas por uma grave crise da legalidade internacional e das funções tradicionalmente desempenhadas pelas instituições internacionais. Em meio a essa situação de caos internacional e erosão da soberania dos Estados nacionais, as grandes potências ocidentais acreditam ser necessária uma superação dos princípios de respeito à integridade nacional e de independência política dos Estados nacionais. Alegando “razões humanitárias”, elas reivindicam o direito de intervenção militar contra os regimes políticos que violarem profundamente os direitos humanos. Contrariamente a essa ideologia, Schmitt em sua Obra “Der Begriff des Politischen” de 1927, se opunha a qualquer tentativa de uma grande potência de apresentar qualquer intervenção militar contra outro país como sendo em nome da humanidade. Segundo ele, se um Estado combate um adversário em nome da humanidade, a guerra que conduz não pode ser em nome da humanidade, o que aquele faz é simplesmente se apropriar de um conceito universal para poder se justificar e identificar o pólo negativo com o inimigo.[9]
Destarte, nota-se que os princípios da difusão e diferenciação do poder
estão defasados também por fatores externos, e a teoria dos direitos subjetivos se vê obrigada se internacionalizar e a confrontar-se com problemas que ultrapassam o âmbito do Estado nacional.
Como tentativa de solucionar esse impasse, alguns autores defendem
ser necessária a adoção de medidas que atribua supremacia apenas às forças dos mercados internacionais, sendo totalmente infundada qualquer tentativa tanto de retomada da soberania dos Estados nacionais, quanto de regulamentação do desenvolvimento global através de projetos de unificação política e jurídica do mundo. Para outros autores, com o objetivo de se alcançar um possível “constitucionalismo global”, o melhor seria, ao contrário, a adoção de uma jurisprudência penal internacional operando através de um código penal universal e amparada por uma polícia internacional. Nesta perspectiva, o Tribunal Penal Internacional de 1998 é tido como um modelo de evolução futura em busca de um “globalismo jurídico” que possibilite, em âmbito internacional, a garantia dos direitos subjetivos e da abominação do poder arbitrário.[10]
Sobre esse assunto, o sociólogo brasileiro Agemir Bavaresco escreveu:
(...) a teoria da soberania externa exige, primeiramente, a
auto-afirmação identitária soberana do Estado internamente, enquanto portador de uma existência em si para si plena de conteúdo, o qual é dado pela constituição; somente depois, é que o Estado pode afirmar-se externamente, pelo processo de reconhecimento. Ora, esta relação interestatal não elimina a soberania interna, pelo contrário é o palco do reconhecimento entre os Estados, não obstante os conflitos que esta relação implica, e os diferentes modos de encontrar a solução dos mesmos. (BRAVARESCO, 2001, pp.31)
CONCLUSÃO
Diante do que foi apresentado, inúmeros questionamentos podem ser
levantados acerca da real necessidade do restabelecimento da soberania dos Estados nacionais frente aos novos atores transnacionais que surgem no contexto da globalização. O texto permite ainda, uma reflexão sobre a nocividade resultante das forças dos mercados globais e dos grandes centros de poder econômico e financeiro, que muitas vezes submetem os ordenamentos estatais aos seus poderes de decisão. Indagações também podem ser levantadas sobre a questão de como garantir a proteção dos direitos civis, políticos e principalmente sociais que atualmente vivem um momento de decrescente efetividade.
Nessa perspectiva, é válido considerarmos as redes de governo dos
Estados, que estão atingindo singular importância no contexto da globalização. Segundo Anne Marie Slaughter, as redes de governo são fundamentais na medida em que podem representar uma alternativa na busca de consenso entre as nações para a resolução de conflitos que se apresentam em escalas globais.
Para os questionamentos levantados ao longo do texto, se torna
indispensável pensarmos na Teoria do Transconstitucionalismo criada e desenvolvida pelo Teórico do Direito, Marcelo Neves. Segundo Neves, o Transconstitucinalismo se aplica a casos onde um problema constitucional ultrapassa a esfera nacional e atinge mais de um ordenamento jurídico, sendo assim, uma só ordem não consegue resolvê-lo sozinho. Para a resolução desse impasse os ordenamentos jurídicos envolvidos devem estar dispostos a um diálogo internacional para a resolução do conflito. Desse impasse surgirá um aprendizado recíproco onde ambas as partes ponderarão suas decisões para chegarem a uma decisão que atenda as duas ordens envolvidas, sem que haja prejuízo ou perda da soberania por nenhuma parte envolvida.
BETEMPS, Leonardo. ‘As consequências da globalização’.
Disponível em < http://www.administradores.com.br/artigos/marketing/resenha- globalizacao-as-consequencias-humanas/20.... Data de acesso: 16/04/2014
[1] “Neste sentido, o Estado de Direito é uma versão do Estado
moderno europeu, na qual, com base em específicos pressupostos filosófico-políticos, atribui-se ao ordenamento jurídico a função de tutelar os direitos fundamentais, contrastando a tendência do poder político de dilatar-se, de operar de modo arbitrário e prevaricar. (ZOLO, 2006, p.30) [2] ZOLO, “Teoria e Crítica do Estado de Direito”. In: Pietro Costa e Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.70
[3]ZOLO, “Teoria e Crítica do Estado de Direito”. In: Pietro Costa e
Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.71-72
[4] Especialmente nos países europeus envolvidos no processo de
integração política.
[5] Segundo Zolo, Marshall afirma que os direitos civis revelaram-se
fundamentais à economia de mercado; os direitos políticos, embora nascidos do conflito de classes do século XIX, favoreceram a inserção das classes trabalhadoras nas instituições elitistas do “Estado liberal”; e os direitos sociais, paradoxalmente, são de sinal oposto em relação à lógica aquisitiva de mercado, ou seja, enquanto o mercado produz desigualdades, os direitos sociais tendem à igualdade. Apesar disso, Marshall acreditava que as instituições britânicas, baseadas no princípio do rule of Law, conseguiram estabilizar a lógica do livre comércio com a proteção dos direitos sociais. (Zolo, 2006, p.75)
[6] ZOLO, “Teoria e Crítica do Estado de Direito”. In: Pietro Costa e
Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 76
[7] BAUMAN, Globalização: As conseqüências humanas. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999 pp.61, apud BETEMPS. L, 2007, pp.2
[8] Grandes estudos forenses sobre as novas formas de lex mercatoria.
(Zolo, 2006, p.80).
[9] SCHMITT, 1927 pp. 138, apud ZOLO, 2005, p.11
[10] Zolo, “Teoria e Crítica do Estado de Direito”. In: Pietro Costa e Danilo Zolo (orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 82.
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