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FORMAÇÃO JURÍDICA

2º ANO
FORMAÇÃO JURÍDICA
2º ANO
Organizadora
ÂNGELA KRETSCHMANN

Autores
Celso Augusto Nunes da Conceição
Dartagnan Ferrer dos Santos
Emerson de Lima Pinto
Fabiana Prietos Peres
Guilherme Damásio Goulart
Guilherme de Oliveira Feldens
Jaqueline Mielke Silva
Kelly Lissandra Bruch
Maria Lúcia Baptista Morais
Ney Wiedemann Neto
Roberta Magalhães Gubert
Renato Selayaram

Rio Grande do Sul – 2014 Florianópolis – 2014


Editora CONCEITO EDITORIAL

Presidente Revisores Conceição (CESUCA/RS)


Salézio Costa Ana Marson Daniel Achutti (UNILASALE/RS)
Celso Augusto Nunes da Elaine Harzheim Macedo (PUC/RS)
Editores Conceição Guilherme de Oliveira Feldens (CESUCA/RS)
Angela Kretschmann Valdnei Martins Ferreira Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UFSE/PA)
Evanisa Helena Maio Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS)
de Brum Conselho Editorial
Jaqueline Mielke Silva (IMED/RS)
Álvaro Oxley da Rocha (PUC/RS)
Assistente Editorial Kelly Lissandra Bruch (CESUCA/RS)
André Karam Trindade (IMED/RS)
Lourdes Fernandes Silva Leonel Pires Ohlweiler (TJRS / UNILASALLE/
Angela Kretschmann (CESUCA/RS)
RS)
Capa e Diagramação Antônio Maria Rodrigues de Freitas
Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira
Paulo H. Benczik Iserhard (TJRS / CESUCA)
(UNISINOS/RS)
Carla Eugênia Caldas Barros (UFSE)
Celso Augusto Nunes da

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898

F723

Formação Jurídica: 2° ano / Organizadora: Ângela Kretschmann - Florianópolis:


Conceito Editorial, 2014.
430p.

ISBN 978-85-7874-402-1

1. Curso de Direito 2. Prática Jurídica 3. Educação Jurídica 4. Teoria do Direito


I. Ângela Kretschmann (organizadora).

CDU – 340

Este exemplar foi produzido com o apoio da Faculdade Inedi, Cesuca, que detém os direitos
autorais da obra, sendo decisão do titular distribuir, gratuitamente ou não, exemplares da
obra, até esgotar a edição.
Venda Proibida.
© Copyright 2014 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Faculdade Inedi - CESUCA


Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha - RS.
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Conceito Editorial
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Comercial: Fone (48) 3240-1300 – comercial@conceitojur.com.br
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SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................... 7

1
UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM .......................................... 15
Prof. Celso Augusto Nunes da Conceição

2
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ............................................................................ 43
Angela Kretschmann
Ney Wiedemann Neto

3
ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA
MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO ............................................. 85
Guilherme de Oliveira Feldens

4
SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A
INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA .............................107
Guilherme de Oliveira Feldens

5
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
HUMANIZADO ..................................................................................................129
Guilherme Damasio Goulart

5
6
DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL ...........................................................................................153
Roberta Magalhães Gubert

7
TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES
TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA MODERNO
CONSTITUCIONAL ...........................................................................................179
Emerson de Lima Pinto

8
CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA ....................................................219
Maria Lúcia Baptista Morais

9
TUTELA DE URGÊNCIA ....................................................................................253
Jaqueline Mielke Silva

10
A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS ..................................321
Ney Wiedemann Neto
Kelly Lissandra Bruch
Fabiana Prietos Peres

11
UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO DO TRABALHO .......................................355
Dartagnan Ferrer dos Santos

12
ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS .....................................................391
Ângela Kretschmann
Renato Selayaram

6
PREFÁCIO

Este livro nasceu de um esforço conjunto dos professores do Cur-


so de Direito do Cesuca, com o irme propósito de ser tão somente uma
forma de aproximação entre Mestres e Aprendizes. Porém, quando um
livro, ou quando um texto resolve experimentar a vida por conta pró-
pria, acontece de produzir efeitos que não eram imaginados. Nesse sen-
tido, cabe aqui umas poucas palavras acerca dos motivos pelos quais o
livro, que nasceu de um projeto singelo, conseguiu transformar-se em
um instrumento de aproximação e diálogo entre os alunos, professores
e o aprendizado.
Ele representa uma continuidade do Formação Jurídica 1o. Ano,
mas ao mesmo tempo traduz-se em um amadurecimento em termos de
abordagens e um enriquecimento em relação à participação de novos
professores com seus textos vinculados às disciplinas que ministram.
Agora o livro não se concentra quase que totalmente sobre matérias pro-
pedêuticas, ele vai além, abraçando questões mais concretas, de discipli-
nas eminentemente práticas, que vêm sempre fundamentadas nas ques-
tões de fundamento para você, aluno do Curso de Direito do Cesuca.
Aqui já começamos a pensar na prática jurídica real, na percep-
ção de uma controvérsia, na deinição de um litígio e nas possibilidades
de uma conciliação. Agora enfrentamos de maneira ainda mais contun-
dente a importância da linguagem para o jurista e salientamos que sem
uma boa bagagem repleta de palavras não se vai muito longe, mas, mais
do que isso, ressaltamos que nada adianta uma bagagem repleta de pa-
lavras se não se sabe o que fazer com elas, sequer onde se deseja chegar.
Daí porque insistimos de modo incansável com as propostas da discipli-
na de Direito e Linguagem e, logo a seguir, de Argumentação Jurídica.
Este é um convite a cada aluno do Curso de Direito no sentido de
também realizar uma autoavaliação de sua própria caminhada, ques-
7
tionando e percebendo principalmente seus limites. Essa é uma tarefa
que é realizada de modo muito frágil pelas provas, pelas avaliações e
pelos trabalhos.
Conhecer os próprios limites profundamente, a im de investir
na apropriação de melhores condições, é uma resposta individual que
apenas a relexão pessoal pode trazer: a relexão que acontece de modo
silencioso, respeitoso e, por que não dizer, apaixonado pelo silêncio
aterrador do desconhecido.
Este livro, portanto, pretende auxiliar nessa caminhada pessoal,
de cada aluno e aluna, num sentido de encorajamento e de apoio que
é carinhosamente oferecido pelos professores do curso a seus alunos
para que sintam que essa caminhada, ainda que muito pessoal, pos-
sui apoiadores e mestres silenciosos que desejaram escrever os capí-
tulos estimulados pela própria coniança que depositam, não apenas
em cada aluno e aluna que se dedicará a essa leitura, mas no que cada
aluno e aluna representam para o futuro de nossa comunidade. Temos
a sincera coniança do papel fundamental que está destinado a nossos
alunos na sociedade.
Infelizmente ainda são raros os juristas militantes que se preocu-
pam com a deinição do direito. Essa constatação vem de Chaïm Perel-
man1, que ressaltou que a falta de interesse por essa questão parece resi-
dir em torno de um “consenso” sobre o que depende ou não do direito
e que o ensino acabaria fundamentado nessa “evidência”. Ora, o aluno
já sabe que o direito não se identiica com o direito positivo. Buscar o
direito nos textos legais é apenas uma parte da árdua tarefa do jurista,
que necessita desenvolver o hábito da ação prudencial e desenvolver a
virtude por excelência do jurista: a prudência, lembrando que nas pala-
vras de Aristóteles a virtude é um hábito que se adquire com a prática.
Quem, ainal de contas, desconhece o que é justo? Parece que to-
das as pessoas desenvolvem uma noção, ainda que singela, do que seria
justo em um determinado caso. Porém, é necessário perceber que exis-
tem muitas formas de se conceber a própria Justiça. Para alguns, ela
poderá estar vinculada a um bem comum a ser alcançado para o máxi-
mo número de pessoas. Para outros, a justiça poderá residir na máxima
liberdade de cada indivíduo de poder decidir seu próprio destino. E há

1 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Martins Fontes: São Paulo, 1996.

8
também os que entendem que a justiça estará calcada no desenvolvi-
mento de habilidades próprias, como a virtude.
Dependendo do caso, o Estado deverá intervir mais ou menos ou
não intervir em hipótese alguma. Cada um precisa perceber em si mes-
mo sua própria tendência na compreensão dos aspectos diversiicados
do que pode ser justo em uma situação concreta. Para a pergunta, por
exemplo, se a tortura pode ser aceita em determinadas circunstâncias,
argumentos prós e contras são trazidos com base em concepções distin-
tas de Justiça2.
Assim, existem muitas situações que não dependem simplesmen-
te da análise e aplicação fria da lei, mas também de uma concepção de
moralidade e de um critério de justiça que deve ser levado em conta.
Sandel traz inúmeros exemplos de dilemas morais que exempliicam
bem essa situação.3 Quando o aprendiz consegue identiicar isso nos
mais variados casos concretos, desenvolve uma habilidade que não pos-
suía antes ou que não sabia existir.
Mas isso não é fácil de se alcançar, é necessário muito estudo,
muita leitura e muita relexão. E como diz o sociólogo e ilósofo, Pedro
Demo, em um vídeo imperdível,4 o conhecimento adquire-se pelo cé-
rebro e não pelo ouvido, ou seja, precisamos pensar, reletir e criar, só
assim realmente se aprende alguma coisa: de aprendiz, é possível tornar-
se mestre. Aqui temos o desejo de que o aluno critique o conhecimen-
to, que tenha condições de produzi-lo e que não ique simplesmente
“escutando aula”, pois “Aula é defunto, não vale a pena enfeitar, melhor
enterrar”, como diz Pedro Demo. Temos o desejo de salas de aula, mas
repletas de estudantes, não de “alunos”, que só escutam, ou no máximo
“olham” o que está acontecendo, sem reletir. Estudantes são natural-

2 A respeito, o livro de SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
3 Como exemplo agudo: Armin Meiwes, em 2001, na Alemanha, queria que alguém o matasse e
que o comesse. Publicou um anúncio e o acordo foi fechado com Brandes, que consumou o plano e
foi condenado à prisão perpétua (este e inúmeros outros casos em SANDEL, Michael J. Justiça – O
que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013). Ainal, não é apenas
uma questão legal com a qual se deparam os juristas, há também a própria análise das condições do
contrato, da função social do contrato, além de outros valores e princípios que efetivamente foram
violados. É possível defender Brandes com base em algum dos critérios distintos? E qual o condena?
4 Vídeo do educador e ilósofo Pedro Demo: https://www.youtube.com/watch?v=t8Z0_d7Oc-Q ,
acesso em 14 de maio de 2014.

9
mente pesquisadores, e por isso a pesquisa está sendo tão fomentada
em nossa instituição.
Pretende-se que o aluno tenha realmente habilidade para des-
construir o argumento de autoridade e construir a autoridade do argu-
mento. Espera-se que este livro possa auxiliar, de alguma forma, ainda
que singela, nesse processo, onde a “aula tradicional” sofre gradativa-
mente uma transformação onde o estudante passa a ser o centro da pro-
dução do conhecimento, não o professor.
Por tudo isso, no Curso de Direito do Cesuca, muitas mudanças
foram realizadas pensando na melhoria do ensino e aprendizado jurí-
dico.5 Há uma permanente preocupação com os limites legais impostos
para mudanças estratégicas que possam permitir maior desenvolvi-
mento crítico sobre os fundamentos do Direito, em meio às necessárias
provas públicas a que os graduados serão submetidos, como a própria
prova da OAB.
Para conciliar as exigências teóricas e práticas, de modo interdis-
ciplinar e produtivo, os alunos possuem não apenas um cartório simula-
do, desde o terceiro semestre, mas, na sequência, um escritório modelo
que permite também a prática da conciliação. O aluno depara-se com
uma espécie de “residência jurídica”, enfrentando diretamente os pro-
blemas sociais de sua comunidade, buscando soluções para elas e acom-
panhando todo o processo, seja litigioso ou como conciliador.
É importante também a percepção da sua função no contexto de
um paradigma de Estado que sofreu uma radical alteração. O Estado
não é mais o centro das relações, o centro agora está voltado para o ser
humano, com novas exigências que trazem a mediação de conlitos e a
arbitragem como fundamentais para essa nova realidade. Reforçam a
quebra de paradigma que se apresenta agora como a nossa realidade a
ser vivida. E indicam de modo muito sutil mudanças pelas quais tam-
bém a proissão do jurista tende a passar.
Na atualidade, nesse contexto, o aluno precisa se emancipar de
todas as amarras e tornar-se cidadão autônomo, com competência para
emancipar aqueles que ainda restam sob qualquer tipo de opressão –

5 Mais a respeito na publicação de KRETSCHMANN, Angela; OHLWEILER, Leonel Pires.


O ensino jurídico entre condicionamento e criatividade: desaios para superação. IN Revista
Diálogos do Direito, v.4, n. 6, jul/ago 2014. Disponível em: http://ojs.cesuca.edu.br/index.php/
dialogosdodireito/article/view/636.

10
para isso é necessária uma educação emancipatória para que o aluno
possa ter o destino em suas próprias mãos.
Desde o princípio os depoimentos dos que primeiro passaram
pela experiência do nosso escritório modelo, o SAJUG, foi de uma es-
pécie de dor, mas uma dor positiva, pois o enfrentamento do desconhe-
cido traz logo a percepção da capacidade de aprender, de lidar com as
mais variadas nuances que a vida traz para o jurista e enxergar e experi-
mentar de modo muito íntimo as mazelas, tristezas e dores das pessoas
que buscam auxílio. E depois vem uma sensação que, dizem alguns, é
difícil de deinir, pois não se pode ter tanta alegria, nem tanta tristeza,
depois de experimentar resolver uma situação concreta de injustiça ou
de desacordo. O que surge é um amadurecimento necessário. O que se
forma é a consciência do cuidado, outro adjetivo que se pode bem utili-
zar para uma boa prática jurídica.
A presente obra vem justamente compor mais uma parte de um
projeto maior, que tentar conciliar tantos interesses que envolvem o alu-
no do Curso de Direito, mas sempre procurando a aproximação entre
aqueles que são os Mestres e seus Aprendizes, procurando dar condições
para que também, através do desenvolvimento de pesquisas, os Apren-
dizes façam o caminho de aproximação em direção aos Mestres. E os re-
sultados têm sido excelentes, pois estudantes pesquisadores têm trazido
resultados, com a aprovação de suas próprias produções, suas pesquisas,
seus artigos, suas apresentações orais em Mostras e Congressos, com ar-
tigos também aprovados para publicação em Revistas muito qualiicadas.
Não é demais lembrar que o livro tem origem no apoio a um pro-
jeto de pesquisa denominado “ABC do Direito”, e já no seu primeiro
número – o Ano I – veio com o propósito de tornar acessível, de modo
gratuito, material de estudo a alunos do Curso de Direito. Porém, dese-
jando fugir da mesmice dos “manuais” e do “todo” que se encontra a um
“clique” do aluno, a obra é muito mais do que um “material didático”.
Ela procura na realidade conversar com o Direito, trazendo para o lei-
tor para o diálogo – o leitor que é nosso estudante de Direito que pela
primeira vez conhece o mundo jurídico-acadêmico, e por isso os tex-
tos procuram estabelecer uma ponte entre o professor, a aula e o aluno.
É importante que se compreenda bem o signiicado dessa “ponte”. Isso
pode ser percebido através da leitura do livro Formação Jurídica, 1o.
Ano, publicado em 2013.
11
Nesse sentido, com este novo livro, Formação 2o. Ano, além de
representar uma ponte entre o aluno e o aprendizado, pretende-se que
sirva como instrumento adicional para o estudo acadêmico-jurídico.
Em uma palavra, o projeto se resume em um “convite”. Um convite para
que o aluno se sinta à vontade e, preferencialmente, com mais vontade
de icar e aprofundar seus conhecimentos no Direito. O projeto inicial
envolve assim uma coleção de volumes para introduzir alguns tópicos
fundamentais aos alunos. A base é um tópico especial do conteúdo pro-
gramático de cada disciplina, mas trabalhada de modo muito pessoal
pelo professor e dirigido a seus estudantes para ser objeto de relexão
com o grupo.
Assim como o próprio livro, cada texto pretende-se humilde, na
sua pretensão de exposição, mas ao mesmo tempo arrojado por buscar es-
tabelecer uma ponte real entre pessoas que estão buscando compreender
realmente o Direito, não simplesmente conhecê-lo, mas experimentá-lo.
Como já foi dito na publicação do primeiro ano, são vários os
objetivos da proposta, mas principalmente permitir que o aluno tenha
uma porta de entrada facilitadora, possibilitar que o estudante tenha
maior proximidade com o professor através do texto e criar condições,
através dos textos, de cativar os alunos para o estudo e aprofundamento
dos temas.
Além disso, através dos textos, o aprendiz possa conhecer o pro-
fessor e a professora de uma outra forma. Conhecer o modo como aquele
professor desenvolve um determinado tema, como ele pensa e expressa
sua concepção sobre uma determinada matéria e como ele compreende
e aprova, ou não, determinada doutrina. Aqui é o professor com cora-
gem de se mostrar abertamente na sua forma de pensar. Aqui é o convite
sincero para que seu aprendiz venha conhecer também esse lado de seu
professor. O lado do professor autor, que pensa, relete, escreve e publica
aquilo em que acredita.
Aqui o professor também dá o exemplo aos alunos. Convida-os
para caminharem juntos. Mostra sua forma não apenas de se expressar
sobre um determinado tema, mas de reletir sobre ele, e o aluno tem o
privilégio de receber esse exemplo para também se iniciar no exercício
da relexão, da crítica e da produção literária. E isso é realizado de modo
mais intenso através dos projetos de pesquisa. O grupo de pesquisa so-
bre ensino jurídico tem produzido muitos artigos e tem trazido maior
12
consciência do papel do professor e do aluno, da diferença entre escutar
aula e fazer, ou seja, produzir conhecimento.
Daí a importância dos ambientes de aprendizagem, tanto pre-
sencial quanto virtual, lembrando que as tecnologias de informação e
comunicação vieram para icar. E se constituem em um excelente ins-
trumento de criação que pode e deve ser bem aproveitado.
O projeto de pesquisa “Aluno Autor” tem essa inalidade de modo
especíico, e em breve apresentará resultados para nossa comunidade
acadêmica. Outros projetos, como os “Vulneráveis do Direito Privado”
trabalha em conjunto com o curso de Psicologia e com o SAJUG (Servi-
ço de Assistência Judiciária Gratuita) da faculdade.
Os projetos de pesquisa e grupos de pesquisa pretendem moti-
var os alunos. Eles causam um relexo imediato nas aulas do professor,
de modo que as aulas tornam-se ambientes cada vez mais propícios à
produção do conhecimento e não apenas a sua transmissão, que é algo
que já está desgastado e nem professor nem aluno aguentam mais essa
forma de ensino, mormente em aulas que possuem cerca de 3 horas
de duração – daí por que se fala em buscar o aprendizado no lugar de,
apenas, o ensino.
Por im, quero expressar meu profundo agradecimento a todos que
apoiaram este projeto, todos os professores que carinhosamente colabora-
ram com seus textos e também à Faculdade Inedi – Cesuca, que inanciou
todo o projeto que se transformou nessa segunda publicação, que é doada
gratuitamente aos alunos matriculados no Curso de Direito do Cesuca do
ano de 2014. A versão on-line da obra pode ser acessada livremente pelo
público em geral e está disponível no site do Curso de Direito.
A todos, o desejo de que este livro possa inspirar nossos professo-
res nno desenvolvimento de seus textos, de sua produção qualiicada, e
que esta possa inspirar nossos alunos e motivá-los a participar cada vez
mais dos projetos de pesquisa que a cada dia mais se multiplicam e se
fortalecem em nossa faculdade.

Cachoeirinha, novembro de 2014


Profa. Dra. Ângela Kretschmann

13
1

UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E


LINGUAGEM

Prof. Celso Augusto Nunes da Conceição1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO: por que mais uma disciplina


de linguística no direito? - 1.1. Conteúdo programático com
mudança de paradigma de ensino - 1.2. Filosoia na disciplina
Direito e Linguagem - 1.3. A volta dos conectivos ‘logo’ e ‘porque’
na argumentação válida e inválida - 1.3.1. Argumentação
válida: silogismo - 1.3.2. Argumentação inválida: soisma - 1.4.
Pragmática: os princípios cooperativos na comunicação - 1.5.
Revista Diálogos do Direito: contribuição para a disciplina através
dos artigos - 1.6. Contribuição linguístico-semiológica para
leitura de Warat - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO: por que mais uma disciplina de


linguística no direito?
Seria necessária mais uma disciplina da área da linguagem no
Direito? Por quê? Dessas duas indagações, a segunda parece gerar a in-

1 Professor das disciplinas de Português Jurídico e Direito e Linguagem no Complexo de Ensino


Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre e doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: celsoconceição@cesuca.edu.br .

15
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

ferência de que é preciso justiicar bem a primeira em função de que


o curso já estava contemplado com a disciplina de Português Jurídico.
Partindo da premissa de que o povo brasileiro carece de uma
formação adequada em sua língua materna e que o conhecimento de
linguagem não se restringe à consciência linguística para a compreen-
são leitora e a produção textual, com o fundamento da aplicação das
regras e suas nuances estruturais, a necessidade de uma disciplina que
envolvesse os processos comunicativos de outro nível era premente e
imperiosa. Por quê?
Premente porque o aluno do curso de Direito estava com limita-
ções quanto ao entendimento da aplicabilidade das relações do conhe-
cimento jurídico com os processos linguísticos nos níveis sintático-se-
mântico-pragmáticos, principalmente na relação lógica das ideias, bem
pontuados pelos professores das disciplinas ains. E imperioso porque
o “outro nível” ultrapassa a barreira da língua como código, estrutura e
questões semânticas para atingir a esfera da linguagem como capacida-
de para a comunicação.
Mesmo o fato de a disciplina de Português Jurídico estar cum-
prindo o seu papel nas abordagens gramático-coesivas e aspectos tex-
tuais, fundamenta-se basicamente em dar um tratamento inverso em
relação ao seu ensino. Ao invés do estudo gramatical isolado de con-
textos, como é a maioria do ensino de língua portuguesa no primeiro e
segundo graus, o foco é desviado para a compreensão de textos e como
os elementos linguísticos se articulam dentro dele, ou seja, a gramática é
extraída desses próprios textos. Com isso, a consciência linguística para
a compreensão de sua língua “amadurece” a cada leitura e escritura.
Acrescente-se a isso o fato de que o aluno conclui essa disciplina
com a certeza de que sua relação com a “gramática” da língua portugue-
sa, especiicamente o português brasileiro, não será a mesma de quando
entrou para cursá-la porque ele aprendeu a vivenciar o tratamento lin-
guístico como algo prático e objetivo.
Mas, claro, este é o primeiro passo, aquele que sedimenta e estru-
tura a superfície linguística para voos mais altos. Estamos falando do
próximo passo da linguagem: a Filosoia da Linguagem2.

2 AUROUX, na sua Introdução “O que é a Filosoia da linguagem?”, destaca o problema conceitual


referente à indeterminação do campo da ilosoia da linguagem: A ilosoia da linguagem não
corresponde a uma unidade conceitual muito clara, ainda que esta expressão possa entrar na

16
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

Por que a inclusão da Filosoia da Linguagem ao programa? Por-


que é a interface que dará à disciplina Direito e Linguagem o alicerce
argumentativo, com sua pluralidade de relações entre as diversas áreas
do conhecimento sociocientíico.
Até chegar à efetividade da disciplina no currículo do Direito,
muitas tratativas e estudos para estruturar o conteúdo ao propósito do
curso ocorreram, mas o aluno icou cético em relação a isso, pois enten-
dia que seria um “Português Jurídico 2”. Era natural pensar isso em fun-
ção de que o professor que ministraria a disciplina seria da área da Lin-
guística. Na sua primeira edição, I semestre de 2014, a dúvida começou
a se desfazer, uma vez que foram apresentados conteúdos que abran-
giam a tipologia textual enfatizando os gêneros narrativo, descritivo e
dissertativo; as máximas da comunicação; noções do convencionalismo
e naturalismo da linguagem; e a Lógica clássica com sua argumentação
voltada à validade e invalidade dos argumentos.
Hoje é notória a diferença entre uma disciplina e outra. Enquanto
uma é puramente linguística, a outra é mais linguístico-ilosóica (ou
ilosóico-linguística? Essa é para relexão!).
Além disso, é uma disciplina necessária para o entendimento da
que vem na sequência do semestre: Argumentação jurídica. As razões
serão explicitadas ao longo deste capítulo.

1.1. Conteúdo programático com mudança de


paradigma de ensino
O programa da disciplina tem na sua ementa as noções lógico-
-linguísticas para entender textos pelos níveis da compreensão e da in-
terpretação. Com uma tipologia textual3 voltada à narração, descrição e
argumentação, o aluno consegue enxergar a estrutura juntamente com

descrição de programas universitários ou dar lugar a títulos de obras”. O autor acrescenta que
por meio dela é possível designar várias coisas diferentes. Destacamos a mais importante para a
disciplina: “i) As relexões que se encontram sobre a natureza da linguagem antes do aparecimento
das tradições linguísticas positivas e autônomas (por exemplo, nos pré-socráticos, em Platão,
Aristóteles ou nos estoicos). Note-se que a tradição linguística ocidental tem suas raízes nos
ilósofos que começaram a distinguir as classes de palavras (nomes e verbos, onoma e rhêma
em Platão e Aristóteles) por necessidade de uma teoria da argumentação”.AUROUX, Sylvain. A
Filosoia da Linguagem. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1998. p.13.
3 FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 17. ed.
Rio de Janeiro: ED, 2007.

17
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

suas especiicidades linguísticas, que o fazem distinguir com clareza as


suas diferenças, aplicando o conhecimento adquirido na disciplina bá-
sica de português a partir do estudo da coesão e da coerência para a
produção textual.
Inclui-se a essa ementa a argumentação4 como recurso lógico-
-persuasivo. Nesse caso, a argumentação com suporte na lógica aristoté-
lica e na dos soistas provocam uma maior atenção e concentração para
entender os processos de causa e consequência com o uso dos conecti-
vos ‘logo’ e ‘porque’. Extraem-se daí vários equívocos de entendimento,
causando em alguns casos certa indignação por saber que a resposta
não é aquela que ele concluiu. Mas com a aplicação de exercícios em
dinâmicas de grupo o assunto toma outro rumo: o dos argumentos prós
e contras para uma boa resposta à tarefa.
Por último, a intencionalidade do Ato de Fala, conteúdo de uma
das teorias linguísticas: Pragmática. Esta com um diferencial porque
envolve os processos de comunicação em que princípios cooperativos
conversacionais devem ser obedecidos para que o diálogo entre os fa-
lantes se estabeleça. Aparentemente parece fácil, mas não é em função
de que as pessoas “sonegam” informações para poderem se comunicar,
ou seja, são pessoas que dizem algo querendo outro, e os outros, ouvin-
tes, entendem.. Quando chega esse momento, a maioria dos alunos já
estão esperando pelos desaios cognitivos, envolvendo-se na “viagem”
pelo raciocínio até atingir a meta: elaborar diálogos em que são violadas
máximas da comunicação para poder implicar algo; qual seja, fazer uso
dos diálogos pragmáticos.
E como trabalhar esse conteúdo todo visando ao resultado cogni-
tivo que satisfaça o aluno?
Assim como na disciplina de Português Jurídico, o método utili-
zado em sala de aula é praticamente o interativo, em que o aluno é con-
vidado o tempo todo a fazer as relações de uma informação com outro
assunto que aparentemente não teria sentido. Certamente esse tipo de
procedimento acadêmico causa algum desconforto cognitivo, uma vez
que a tradição de ensino é a aula expositiva, em que o professor “passa”
esse conhecimento de forma oral ou escrita, cobrando do aluno não o
raciocínio, mas sim a famosa “decoreba”. Essa alteração na maneira de

4 KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez Editora, 1984.

18
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

tratar o assunto exige de ambos, professor e aluno, uma atenção espe-


cial: sintonia o tempo todo, não se desviando para qualquer outro fato
que o motive a deixar a concentração.
Essa alteração paradigmática na forma de ensinar é a que resulta
em uma performance efetivamente compreensiva. Há problema nisso?
Sem dúvida que sim, porque o aluno está acostumado a sentar e aguar-
dar aquela tradicional aula expositiva. E como ele reage a essa mudança?
Alguns com certa indignação, chegando inclusive a chamar a atenção
do professor em relação ao encaminhamento da aula. Perguntas ou
airmações do tipo: “Vim aqui para receber conhecimento e não para
responder perguntas de algo que não conheço”, “ Não entendo qual a
relação nisso” ou até mesmo “Vá direto ao assunto!”. Certamente, há
outras que se referem ao mesmo processo de ensino.
É claro que a ação docente deve ser contínua para que o aluno se
acostume a esse tipo de aula. Tal dinâmica requer paciência de ambas
as partes, e que o aluno deve estar disposto e preparado para os desa-
ios deste nível: raciocinar a partir do que é tratado. O desconforto no
aprendizado vai desaparecendo à medida que o raciocínio começa a to-
mar forma e que as conclusões aparecem.
Na verdade, essa mudança de paradigma faz com que o aluno
aprenda a aprender. E gradativamente ele vai percebendo que exercita
o raciocínio a partir das perguntas e que isso o incita a buscar mais res-
postas e a questionar mais. Bem, isso já era feito na Grécia antiga, com
os grandes ilósofos que até hoje são lembrados: Sócrates, Platão e Aris-
tóteles. Mas um em especial: o primeiro, Sócrates, o mestre dos mestres,
sem exageros. E para ilustrar esse processo relexivo, a seção XX indica
uma leitura para compreender a relação pergunta/resposta como binô-
mio de causa e consequência na vida do indivíduo.

1.2. Filosoia na disciplina Direito e Linguagem


A necessidade da Filosoia, especiicamente a da Linguagem, i-
cará mais evidente nesta seção do capítulo. Há muito tempo foi criado
por mim o rótulo “SPA Filosóico”, sigla que representa, pela ordem,
Sócrates, Platão e Aristóteles5. Por que estão aqui? Logicamente6 pela

5 Esses três ilósofos nasceram e viveram na Grécia nos séculos V-IV a.C.
6 Nesse caso, o signiicado da palavra não se restringe à Lógica aristotélica, mas sim ao conhecimento

19
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

sua contribuição milenar para as questões que envolvem a linguagem,


principalmente porque foi com Sócrates as primeiras relexões sobre
a sua origem. Trata-se aí da referência em três níveis: Sócrates com a
sua metodologia baseada na maiêutica, que era um processo no qual
ele, por meio de perguntas, fazia o seu interlocutor responder algo que
não imaginava saber; Platão, seu discípulo, escreveu sobre seus questio-
namentos e raciocínios, estabelecendo um referencial no que tange às
ideias inatas, as noções de causa/consequência, condicionalidade, tem-
poralidade, entre outras; por último Aristóteles, que contrariando seu
mestre Platão, airmava que “nada existe no espírito humano que antes
não tenha passado pelos sentidos”.
Por que esses três são destacados neste capítulo? Porque serão re-
tomados por Locke7 no famoso debate da tábula rasa, posicionando-se
pelas ideias de Aristóteles, e o seu debatedor, Leibniz, retomando Platão.
Esse SPA torna-se aqui um background para entender o posicionamen-
to de Locke em relação ao Direito e à Linguagem.
Para instigar os alunos às questões ilosóicas, é indicada uma
pintura na parede que está no saguão do prédio do Cesuca. É uma re-
presentação da Escola de Atenas, obra pintada pelo italiano Rafael Sanzi
entre 1509 e 1510 na Stanza dela Segnatura, sob encomenda do Vati-
cano, e uma das mais famosas pinturas do Renascimento. O objetivo é
fazer com que pesquisem quem foi o pintor, quem são os dois que estão
no arco de entrada e onde está Sócrates.
Após essa provocação para a pesquisa, e todos com as necessárias
informações, a aula expositivo-interativa começa com perguntas como:
“Quem foram eles?”, “Quais são suas contribuições ilosóicas?”, entre
outras. Naturalmente que a pesquisa já os tinha estimulado, notando-
se claramente o envolvimento da turma. Naquele momento, o nível de
abstração começava a tomar conta do ambiente. Passavam de uma aula
com um conteúdo de certa forma conhecido para raciocínios de outra
natureza. Os cérebros começavam a fazer mais relações e as diiculdades
para materializarem as questões de nível abstrato se faziam presente. É
notório que as reações eram diversas: alguns brilhando os olhos como

dicionarizado de ‘bom senso’, ‘naturalmente, ‘obviamente’ e até mesmo ‘racionalmente’, HOUAISS


ELETRÔNICO. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009
7 Filósofo britânico do século XVII que teve (e tem) muita inluência na área jurídica,
principalmente na deinição de ‘contrato social’.

20
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

se estivessem saindo da Caverna de Platão8, e outros resistindo ao co-


nhecimento novo. Isso é normal em cada grupo, pois toda mudança,
historicamente, provoca mais ansiedade em uns do que em outros .
Claro que o registro de que temos de ir mais longe do que foi soli-
citado é uma das marcas da disciplina. Uma história sobre eles, inclusive
o porquê de Sócrates ter sido condenado e suas contribuições para o
processo discursivo do que “não se sabe o que já se sabe” é uma air-
mação que chama a atenção pelo aparente jogo de palavras. Esse pano
de fundo para estabelecer a ligação entre as duas áreas já está pronto
para discorrer sobre como Locke se posiciona em relação às duas áreas.
O melhor resultado dessas indagações linguístico-ilosóicas em sala de
aula foi um artigo apresentado na Mostra de Iniciação Cientíica do Ce-
suca9, com o título: Por que Locke é naturalista em relação ao Direito
e convencionalista quanto à linguagem?, escrito por dois professores e
por duas alunas da disciplina10 . Como se percebe, o ilósofo Locke é
uma das interfaces entre o Direito e a Linguagem. E para despertar mais
a curiosidade para a leitura, eis o resumo desse artigo:
O presente artigo faz uma provocação de nível conceitual em relação
à dicotomia naturalismo/convencionalismo em Locke: o primeiro está
para o Direito, e o segundo para a Linguagem. Por que Locke não segue
a mesma lógica? O objetivo geral é fundamentar o aluno dessa área para
o objetivo especíico, que é o de promover discussões acadêmicas dentro
das salas de aula a partir desse questionamento. Metodologicamente, há
o confronto de deinição dessa dicotomia para o melhor entendimento
da diferença dessas ciências. O resultado é a geração inferencial para
possíveis reavaliações conceituais do próprio Locke. (KRETSCHMANN
et al, 2013).

Já se falou em Sócrates e Platão, faltando Aristóteles para de-


monstrar a base do raciocínio clássico: o silogismo. Ele conseguiu de-
monstrar como a relação de causa e consequência se estabelece a partir
de premissas. Contudo, antes de abordar as ideias do ilósofo, é neces-
sário traçar um paralelo com o ensino da gramática tradicional no uso

8 É um nome metafórico para a parábola da caverna na obra “A República”, de Platão.


9 Cf. no site: http://ojs.cesuca.edu.br/index.php/mostrac/article/view/518.
10 Autores e coautores: Profa. Dra. Ângela Kretschmann; Prof. Dr. Celso Augusto Nunes da
Conceição; alunas Eliane Krupp e Vanessa Jamille Herber da disciplina Direito e Linguagem, I
sem 2014.

21
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

das conjunções coordenadas e subordinadas. Para o conectivo ‘logo’ não


há problema porque esse está listado como conjunção que introduz uma
consequência. Já o ‘porque’, que aparentemente estabelece uma simples
relação, complicará os indivíduos que dele se utilizam em suas cons-
truções argumentativas. Pelo lado sintático, pode esta conjunção esta-
belecer uma relação coordenada explicativa e subordinada causal. Mas
o problema maior não está somente na compreensão se é coordenada
ou subordinada, está em que acreditam introduzir uma ideia de conse-
quência. Não são todos, mas a maioria. Nada melhor do que partir para
a prática, para o uso nas situações reais de comunicação, traçando para-
lelos sintáticos, semânticos e lógicos. Esses conectivos serão lembrados
por esses aspectos quando da sua aplicabilidade na argumentação for-
mal. Os alunos entrarão em outro nível de compreensão lógica.

1.3. A volta dos conectivos ‘logo’ e ‘porque’ na


argumentação válida e inválida
Como a sintaxe é a área da linguística que trata somente da sen-
tença em sua forma estrutural e não semântica, com signiicado somen-
te das partes, as conjunções11 doravante serão tratadas com o nome de
‘conectivos’ porque sua função será mais importante para as relações
proposicionais.
Depois de serem apresentados para as relações coesivas sequen-
ciais no Português Jurídico, os alunos, agora com mais conhecimento
dos fundamentos linguísticos, deparam-se com as inferências provoca-
das pelas relações proposicionais em que os conectivos ‘logo’ e ‘porque’
estão presentes. O propósito desse estudo é entender o que o interlocu-
tor disse quando manifestou sua airmação. E como se faz isso?
Para responder questionamentos como esse, é preciso ilustrar
com frases que contenham o conectivo que introduz um argumento. Por
exemplo: “João é inteligente porque estuda”. Independentemente da ques-
tão semântica dos predicados, qual a generalização inferida logicamente?
“Quem estuda é inteligente” ou “Quem é inteligente estuda”? Inicialmen-
te parecia simples, mas, diante dessa duplicidade de resposta, a diicul-
dade começa a criar certo desconforto intelectual. Outro exemplo, agora
com o conectivo ‘logo’, é necessário para se estabelecer outro parâmetro

11 Utiliza-se a classiicação de conjunção para o nível morfológico e conectivo para o sintático.

22
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

de resposta, lembrando de uma airmação do século XVII, produzida


por Descartes depois de raciocinar sobre a verdade de sua existência:
“Penso, logo existo”. E vem a famigerada pergunta sobre a generalização
gerada por essa frase: “Quem pensa existe” ou “Quem existe pensa”?
Essa recuperação não garante que o produtor da proposição com-
plexa (duas proposições ligadas por conectivo12 ) tenha gerado um si-
logismo, ou até mesmo um soisma, inadvertida ou intencionalmente.
A resposta para ter seu caráter irrefutável necessariamente deve
passar pela Lógica aristotélica, também conhecida como clássica. E para
uma aplicação mais didática, os exemplos acima serão retomados nas
subseções posteriores.

1.3.1. Argumentação válida: silogismo


O termo ‘argumentação’ merece uma atenção especial, mas não
será nesta subseção porque a inalidade é estabelecer a relação do conec-
tivo ‘porque’ e o ‘logo’ na Lógica clássica, a de Aristóteles. Foi ele quem
formulou as regras da lógica formal, que se mantêm até os dias de hoje
sem qualquer reparo às suas propostas de apresentar a maneira de como
o ser humano raciocina.
Em Charboneau (1986, p. 19), é possível veriicar uma das deini-
ções da lógica aristotélica mais sucintas e precisas:
A lógica formal distingue os raciocínios verdadeiros dos raciocínios
falsos, independentemente do seu conteúdo. Não se preocupa com a
matéria sobre a qual se apoia o raciocínio, mas apenas com a forma.
Daí o nome formal. Para que um raciocínio seja válido em sua
forma é preciso que não se deixe contradizer por uma transformação
dissimulada das deinições de que se partiu. É, portanto, formalmente
proibido introduzir no curso do raciocínio uma nova deinição.

Mesmo com toda a clareza da deinição, é importante destacar a


diferença entre ‘forma’ e ‘conteúdo’, em que a primeira é a regra e a ou-
tra fazendo relação com o signiicado tanto das palavras quanto das sen-
tenças, ou seja, a lógica não se preocupa com a semântica dos termos,
somente com a sua estrutura. Dizendo de outra forma, a lógica não tem

12 Pela abordagem gramatical.

23
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

compromisso com a semântica. Se as proposições têm problema com seus


signiicados, a discussão será no nível da signiicação e não da forma.
Especiicamente quanto ao silogismo, trata-se de um argumento
composto de três proposições, em que as duas primeiras são premissas e
a última a conclusão, e esta é decorrente das outras duas. E um exemplo
clássico, precedido de uma breve deinição, é apresentado por Charbo-
neau (1986, p. 24):
O silogismo é um raciocínio que, a partir de duas proposições que são
aceitas como verdadeiras, chega de maneira necessária a uma terceira
proposição. Exemplo:
Todos os homens são mortais;
Ora, somos homens.
Logo, somos mortais.

Propositadamente fez-se uso do termo ‘argumento’ enquanto


que Charboneu (1986) utiliza ‘raciocínio’; e a outra diferença é o uso de
‘proposições’ e ‘premissas’. O argumento faz uso do raciocínio, e toda
premissa é uma proposição e não o inverso. Por último, a palavra ‘neces-
sária’ para a terceira proposição é em função de a regra ser a do Modus
Ponens: a airmação do termo antecedente (homens) da premissa maior
– PMa (Todos os homens são mortais) na premissa menor – PMe (so-
mos homens) conclui o termo consequente da premissa maior (mor-
tais). É importante esclarecer que em cada proposição há um sujeito
e um predicado, sendo o sujeito o termo antecedente e o predicado o
consequente.
Retomando os exemplos da subseção 2.4, ‘João é inteligente por-
que estuda’ e ‘Penso, logo existo’, os dois conectivos ‘porque’ e ‘logo’
estabelecem relação de causa e consequência; porém, a ordem propo-
sicional se inverte por razões lógicas entre elas. No exemplo ‘João é in-
teligente’ é estabelecida a relação de consequência e ‘estuda’ a relação de
causa. Essa proposição complexa13 constitui-se como um entimema14,
gerando a inferência de que a premissa maior está implícita. Como se
processa esse raciocínio? Percebe-se no silogismo que a conclusão é pre-

13 Pode-se dizer que se trata de uma sentença composta por duas proposições.
14 Argumento em que uma premissa está implícita ou, como dizem alguns, oculta.

24
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

cedida do conectivo ‘logo’. Estruturando essa proposição no formato da


Regra do Modus Ponens – RMP, tem-se
‘João estuda’ (PMe)
‘João é inteligente’ (Conclusão),

faltando aí a PMa. Aplicando a RMP, em que a airmação do ter-


mo antecedente conclui o seu consequente, ‘estuda’ é o termo antece-
dente na PMa e ‘inteligente’ é o seu consequente, logo a PMa é: ‘Todos
os que estudam são inteligentes’. Para icar mais ilustrativo, abaixo está
o argumento completo:
Quem15 estuda é inteligente. (PMa)
Ora, João estuda. (PMe)
Logo, João é inteligente. (Conclusão)

O mesmo processo causal no entimema ‘Penso, logo existo’ gera


a inferência da PMa: ‘Todos os que pensam existem’. Como foi tão fácil
raciocinar e concluir essa generalização? O conectivo ‘logo’ introduz a
conclusão, então ‘Penso’ é PMe. Remontando a regra, introduzindo o
sujeito desinencial ‘Eu’, tem-se:
Eu penso (PMe)
Eu existo (Conclusão).

Pela mesma RMP, o predicado ‘penso’ deriva da airmação do ter-


mo antecedente da PMa e o predicado ‘existo’ na conclusão deriva dessa
airmação, logo:
Quem pensa existe. (PMa)
Ora, eu penso. (PMe)
Logo, eu penso. (Conclusão)

Ressalta-se que enquanto os argumentos são válidos ou inváli-


dos, as proposições são verdadeiras ou falsas. Nesta subseção, tratamos
da validade do argumento baseado na lógica clássica, a aristotélica. Na
seguinte, o soisma fará uso da RMP para gerar as falácias.

15 Esse termo faz a mesma função do quantiicador lógico ‘Todos’.

25
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

1.3.2. Argumentação inválida: soisma


Existem vários argumentos invalidados pela lógica. Aqui faremos
uso somente de uma: a da RMP, em que uma sutil alteração no ato de
airmar provocará a sua invalidade. Com base no silogismo, a sutileza
está em que a airmação não será do termo antecedente da PMa, mas
sim do seu consequente.
Retomando novamente os exemplos da subseção 2.4, ‘João é in-
teligente porque estuda’ e ‘Penso, logo existo’ o processo será inverso.
Estruturando os dois entimemas na sua forma lógica, tem-se:
João estuda. (PMe)
João é inteligente. (Conclusão)

Eu penso (PMe)
Eu existo (Conclusão).

Nesses dois casos o processo falacioso da RMP acontece porque a


airmação não será mais do termo antecedente, mas sim do consequen-
te. Em 1), a falácia da RMP ica assim:
Quem é inteligente estuda (PMa)
João estuda. (PMe)
João é inteligente. (Conclusão)

Nesse caso, a airmação do termo consequente (estuda) conclui o


termo antecedente (inteligente). Nota-se que houve a inversão no ato de
airmar, parecendo que a conclusão é derivada de um raciocínio lógico.
Também em 2)
Quem existe pensa (PMa)
Eu penso (PMe)
Eu existo (Conclusão),

aconteceu o mesmo processo, gerando aí um argumento aparen-


temente válido. A pessoa que não conhece os fundamentos da Lógica
aceita argumentos ou raciocínios como esses, questionando somente o
conteúdo dos predicados em relação a eles mesmos, mas quanto à for-
ma, não consegue nem ‘enxergar’ a falácia.

26
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

Não são somente as inferências lógicas que são necessárias a um


bom argumento, há também as que resultam da comunicação nos atos
de fala. São diálogos em que a pessoa que fala não precisa explicitar o
que está querendo dizer porque o seu interlocutor entende a sua inten-
ção e responde o que o outro pretendeu. Trata-se aí de um outro nível
de comunicação inferencial: a Pragmática.

1.4. Pragmática: os princípios cooperativos na


comunicação
A linguagem em uso causa certa estranheza nos alunos pelo
simples fato de que eles não estão familiarizados com aulas interativas,
aquelas em que são questionados a responder e não são apresentados
ao assunto para poder responder às perguntas. E uma das áreas da Lin-
guística que mais aplica os conceitos dos processos de comunicação é a
Pragmática. Essa disciplina, inserida como conteúdo no Direito e Lin-
guagem, pretende gerar no aluno a curiosidade de como se comunicar
sem que o que é pretendido é dito na sua fala.
A provocação já começa quando o professor Celso pergunta:
“Você tem horas?”. Já familiarizados com o tipo de aula e sabedores dos
processos coesivos textuais com suas respectivas ambiguidades, o aluno
não responde de imediato, parecendo pensar qual a intenção da per-
gunta. Sua resposta é :“Tenho!”. Faço expressão de surpresa e pergunto:
“Por que você não me disse as horas?”, no que ele responde: “Porque
você perguntou se eu tinha e não qual é a hora.”, e eu faço um novo
questionamento: “Se vocês não me conhecessem, responderiam assim?”.
“Não!”, dizem eles. Peço para esquecerem que me conhecem, criando
assim um contexto normal de fala, e pergunto novamente: “Vocês tem
horas?”, e eles olham o relógio e respondem a hora. Surpreendentemen-
te, pergunto: “Por que você me disse a hora se eu não perguntei?”. Bem,
instaura-se aí uma aparente conversa de louco.
Na verdade, eu já estava aplicando os conceitos da Pragmática de
forma subliminar. A intencionalidade, objeto da disciplina, já estava sen-
do experienciada. Mas a provocação não parava por aí. Novas perguntas
como: “É possível alguém entender o que o outro disse sem que ele tenha
dito?”, “É possível uma pessoa pedir algo sem que esteja explicitado na
sua fala?” e “É possível identiicar a intencionalidade na fala do outro?”
27
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

os incitam a raciocinar bastante. A curiosidade do aluno aumenta a cada


questionamento dessa natureza. E para exempliicar, eu os faço pergun-
tar para mim: “Professor Celso, o que é realmente Pragmática?”, e eu res-
pondo: “Há um livro na Biblioteca que fala sobre isso”. A primeira reação
é a de que eu estava sendo mal educado. Pergunto novamente: “Respondi
à sua pergunta?” e alguns dizem que sim e outros dizem que não. Mais
discussões se instauram. Aproveito a oportunidade para provocar os ra-
ciocínios a im de que argumentem sobre cada resposta.
Criado o contexto comunicativo para que os conceitos fossem
assimilados pelo uso, começo a formatar o conteúdo pragmático soli-
citando que novamente acessem o material fornecido na aula anterior,
pressupondo a leitura feita por todos. Como é de costume, a maioria dos
alunos não lê, por ‘n’ razões, mas uma delas em especial: é cultural. Para-
doxalmente ao termo ‘cultural’, é porque o aluno já se acostumou a não
ler. Ele aguarda o professor começar a exposição do assunto. Ledo en-
gano, a aula é expositivo-interativa, com maior ênfase na interatividade.
São apresentadas as máximas da comunicação nas quais a sua
violação é a causa da geração de inferências do que se pretende, ou seja,
o fato de violar um princípio da comunicação é disparada a sua inten-
cionalidade, que é entendida pelo interlocutor. Segundo Costa (2008, p.
48), a trajetória de Grice16 (1975) começa em 1956:
Os primeiros textos importantes de Grice surgiram em 1956 e 1957.
“Meaning” (1957) tornou conhecida a sua teoria da comunicação através
dos conceitos de signiicação natural e não-natural (meaning-nn), tão
decisivos na origem dos trabalhos sobre Pragmática em especial no de
Searle. Foi, entretanto, com seu artigo “Logic and Conversation”, que
apareceu nas conferências realizadas pela Universidade de Harvard em
1967, em homenagem a William James, que Grice provocou um dos
maiores impactos teóricos na história das pesquisas sobre Pragmática.
Publicado em 1975, esse texto, de menos de vinte páginas, apresenta
um sistema conceitual extremamente eicaz para o tratamento das
complexas questões que envolvem o problema da signiicação na
linguagem natural.

O tratamento inferencial de Grice (1957) lança as bases para infe-


rência comunicativa. Diferentemente da implicação lógica, ele gera uma

16 Teórico que formalizou o cálculo conversacional para entender como ocorre a intencionalidade
do ato de fala.

28
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

nova terminologia chamada de implicatura, tanto convencional como


conversacional. A primeira está presa ao signiicado convencional das
palavras, e a outra não depende da signiicação usual, sendo determina-
da por certos princípios básicos do ato comunicativo. Costa (2007, p.?)
faz um breve comentário sobre ele:
Antes, contudo, de analisar o conceito de implicatura conversacional, é
preciso que se faça um breve comentário sobre a Teoria da Comunicação
de Grice. Para ele, quando dois indivíduos estão dialogando, existem
leis implícitas que governam o ato comunicativo. Isso signiica que,
mesmo inconscientemente, os interlocutores trabalham a mensagem
linguística de acordo com certas normas comuns que caracterizam um
sistema cooperativo entre eles, para que as informações possam ser
trocadas o mais univocamente possível. Grice chama, a esse conjunto
de regras, “princípio de cooperação”. Não é possível, nem imaginável,
segundo ele, que um ato comunicativo pudesse ser totalmente livre, a
ponto de o falante e o ouvinte perderem o controle do próprio jogo. Ao
contrário, as regras do ato comunicativo talvez tenham sido aprendidas
concomitantemente à aquisição da língua, de tal forma que um falante
competente do português também conhece os efeitos de sentido que
uma mensagem em português pode adquirir pela ação das regras do
jogo comunicacional a que está submetido. Não é por outra razão, aliás,
que se fala muito, ainda hoje, numa teoria de competência comunicativa.

E foi além, introduzindo um cálculo conversacional de natureza


cognitiva para dar conta da intencionalidade do ato de fala. Demons-
trou-o, a partir das máximas especíicas, o que ocorre no ato enunciativo.
A im de que se tenha noção de como esse diálogo acontece: um falante
A pede x querendo y a B. Este entende o que está implicado e responde
y. Levinson (2007, p. 19) apresenta esse cálculo na sua forma original:
F quis dizer (signiicado-nn) z ao enunciar E se e apenas se:
(i) F pretendia que E causasse algum efeito z no receptor O
(ii) F pretendia que (i) fosse conseguida simplesmente pelo fato de O
reconhecer esta intenção (i).

E como são essas máximas no Princípio de Cooperação? São


apresentadas em forma de categorias, conforme
O Princípio da Cooperação - Máximas e Implicaturas
• Categoria da Quantidade

29
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

Relacionada à quantidade de informação que deve ser fornecida numa


mensagem. A ele correspondem duas máximas:
A. Faça com que sua mensagem seja tão informativa quanto necessária
para a conversação.
B. Não dê mais informações que o necessário.
• Categoria da Qualidade
Relacionada inicialmente à supermáxima, “Procure airmar coisas
verdadeiras” e, indiretamente, a duas máximas mais especíicas:
A. Não airme o que você acredita ser falso.
B. Não airme algo para o qual você não possa fornecer evidência
adequada.

Essas máximas precisam ser violadas para que a intencionalida-


de aconteça. Um dos exemplos foi quando o aluno perguntou: “Pro-
fessor Celso, o que é Pragmática?”, e eu respondi que havia um livro
na Biblioteca com a intenção de gerar a inferência do que era para que
ele começasse a pesquisar e aprender a buscar o conhecimento e não
a recebê-lo pronto. Outra situação é o respeito por uma máxima, em
que necessariamente deve ocorrer uma violação. O exemplo pode ser
parecido, trocando somente ‘Pragmática’ para ‘Engenharia nuclear’. Eu,
pelo fato de não saber o que signiica, indico onde buscar a resposta a tal
pergunta. Violei aí princípio da quantidade porque não respondi o que
ela esperava, mas foi para respeitar o da qualidade, em função de que eu
não sabia a sua deinição.
Muitos exemplos são criados nas dinâmicas de grupo. Essa apli-
cabilidade do conteúdo teórico de forma interativa gera um resultado
além do satisfatório: aprendizado com a linguagem em uso.

1.5. Revista Diálogos do Direito17: contribuição para a


disciplina através dos artigos
Uma forma simples e prazerosa de aplicar os conhecimentos des-
ta disciplina é buscar na leitura dos artigos dessa revista relações além
do que é estudado em sala de aula. Os objetos linguísticos e a área li-

17 A “Revista Diálogos do Direito” nasceu com a criação do Curso de Direito do Cesuca, a partir
do Projeto Jardim do Curso de Direito. O Jardim merece ser, na proposta dos ilósofos gregos do
epicurismo, um lugar muito privilegiado, e raro, de liberdade, ou, na proposta dos estoicos, uma
busca de serenidade. O diálogo parte, assim, de obras literárias, escolhidas pelos professores do Curso.

30
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

terária estabelecem um eixo de reciprocidade que leva o leitor a uma


compreensão de mundo, às vezes de forma lúdica e outras com ins
especíicos, para a vida acadêmica. Obviamente que se essa leitura for
obrigatória é somente porque o aluno necessita de “certa motivação”
para ter a oportunidade de ser apresentado a algo que lhe será, no míni-
mo, útil para a sua caminhada proissional e de vida.
É importante destacar que o binômio “Direito e Literatura” tem
um vínculo de interdependência que o faz necessário para uma melhor
compreensão, tanto dos fatos jurídicos como dos fenômenos sociais. A
cultura é depreendida de sua leitura como também a familiarização com
a linguagem é aplicada em seus textos. Com essa interface, pretende-se
fazer com que o aluno não se limite ao conteúdo de sua leitura, mas
principalmente busque pensar o Direito de outra forma.
E para despertar o interesse intelectual do aluno do Cesuca, cada
revista é disponibilizada em acesso aberto e livre, podendo ser lido a
qualquer momento. Ressalta-se que os textos com motivacão linguística
dialogam com os textos especíicos do Direito, que por sua vez dialogam
com os clássicos da literatura mundial.

1.6. Contribuição linguístico-semiológica para leitura


de Warat18
Um dos nomes mais proeminentes da área do Direito, Luiz Al-
berto Warat19, jurista argentino que veio para o Brasil no período da
ditadura, era preocupado com a signiicação das leis, assunto problemá-
tico desde a antiguidade. Buscou na Filosoia da Linguagem as teorias
linguísticas, semiológicas e semióticas, procurando embasar-se em seus
estudos, principalmente em Hermenêutica, e talvez por sua curiosidade
em áreas de conceitos movediços. Escreveu “O Direito e sua linguagem”,
em que nomes como Saussure (1975), Barthes (1964) e Peirce (2003) são
evocados ao longo de suas especulações teóricas. O primeiro é linguista,
o segundo é semiólogo, e o último semioticista.

18 WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1995.
19 As suas iniciais são LAW, que signiicam ‘lei’ na língua inglesa. Costumava brincar com isso
dizendo-se predestinado para atuar no Direito.

31
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

A leitura de seu livro demanda um esforço intelectual muito


grande, exigindo do leitor uma capacitação linguístico-semiológica
apurada, principalmente para poder entender determinadas airmações
que geram equívocos de compreensão. Isso acontece em função de o
assunto ser muito complexo e porque as deinições dependem de quem
as apresentou e dos contextos em que foram produzidas.
E por que esse livro está presente neste capítulo? Será o aluno
um leitor ideal para entender uma obra desse nível? Bem, o estudan-
te de Direito precisa ter consciência do que o circunda em relação ao
conhecimento jurídico e quais são os fundamentos necessários à com-
preensão de cada material jurídico a estudar. Como a signiicação é uma
representação mental do que é perceptível pelos sentidos, necessita de
uma “forma” para compreendê-la. Parece algo simples, mas exige uma
capacidade de abstração como a própria linguagem o é. Pensando nis-
so, a disciplina Direito e Linguagem acrescentará, no segundo semestre
de 2014, essa obra para ser lida e entendida a partir dos fundamentos
linguísticos. Certamente a compreensão leitora se fará presente e dará
ao aluno ferramentas didático-metodológicas para buscar outras obras
dessa natureza.
Para tornar mais didático o que acima é exposto, e também a pro-
posta em esclarecer linguisticamente o que demanda uma melhor expli-
cação, serão extraídos alguns excertos para o seu esclarecimento. Warat
(1995, p. 12) airma que
Na constituição dos diferentes sistemas sígnicos das linguagens
naturais, Saussure elege, como modelo analítico, a linguística (teoria
dos signos verbais). Percebe-se, então, que a linguística cumpre, na
proposta saussuriana, um duplo papel: por um lado, é proposta como
parte da semiologia, icando, assim, ligada a um domínio mais amplo
e melhor deinido no conjunto dos signos humanos; por outro lado,
é vista como um eixo em função do qual se constituem categorias
analíticas translinguísticas, que servem de princípio ordenador por
extensão à compreensão dos demais sistemas sígnicos. A linguística,
para Saussure, tem um papel privilegiado, pois apenas mediante suas
categorias analíticas torna-se possível a constituição da semiologia,

e deixa clara a complexidade do que realmente Saussure propõe.


A airmação de que a sua proposta cumpre esse duplo papel é uma infe-
rência dos que o estudam. Cumpre esclarecer que a obra de Saussure foi
32
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

escrita por três de seus alunos: Charles Bally, Albert Sechehaye e Albert
Riedlinger. Os dois primeiros a organizaram a partir de seus aponta-
mentos em sala de aula, e o último participou em caráter de colabora-
ção. Deram-lhe o nome de Curso de Linguística Geral, publicado em
1916, depois de sua morte. Será que, a exemplo do que Platão escreveu
sobre o que Sócrates falava, leva para a escrita o que realmente o autor
pretendia?
Uma das maiores celeumas é quanto ao suporte para a Teoria Ge-
ral dos Signos, se a Linguística ou a Semiologia. Ainda com relação à
citação anterior, Warat (1995, p.12) expressa sua percepção no excerto:
“Percebe-se, então, que a linguística cumpre, na proposta saussuriana,
um duplo papel: por um lado, é proposta como parte da semiologia”.
Possivelmente repete o que está inserido em uma retrospectiva que Ro-
land Barthes20 (1964, p. 7), faz ligando essas duas áreas:
A história da Semiologia é curta e, todavia, já bastante rica. Em sua
forma francesa, nasceu ela há cerca de uns quinze anos, quando se
retomou a postulação feita por Saussure no seu Curso de Linguística
Geral, a saber: que pode existir, que existirá uma ciência dos signos,
que tomaria emprestado da Linguística seus conceitos principais, mas
da qual a própria Linguística não passaria de um departamento.

Ocorre que o mesmo Barthes (1964, p. 13) entende que a inversão


à proposição saussuriana é uma questão de tempo:
É preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um
dia a proposição de Saussure: a Linguística não é uma parte, mesmo
privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma
parte da Linguística; mais precisamente, a parte eu se encarregaria das
grandes unidades signiicantes do discurso.

Acredito que um leitor da área do Direito, quando lê o livro de


Warat, depara-se com problemas epistemológicos da Filosoia da Lin-
guagem. É claro que ele pressupõe um leitor ideal, aquele que conhece
os fundamentos conceituais dessa área. Mas mesmo assim é necessário
que haja uma explicação mais didática e que a apresente com pelo me-
nos um exemplo para cada deinição.

20 BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 1964. Ele é um dos
semiólogos mais relevantes de sua época e é referido em vários momentos no livro de Warat (1995).

33
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

Fala-se muito em signo, verbal e não verbal, linguagem, língua,


fala, representação, conceito, signiicante, signiicado, concreto, abstra-
to, objeto etc. Como ler ou escrever essas palavras e as entender sem que
haja certo desconforto intelectual? Lendo os teóricos e suas respectivas
deinições sobre o mesmo objeto. Sim, deinições do mesmo objeto por-
que depende da “lente teórica”, juntamente com seus fundamentos, para
apresentar cada proposta.
Nesse sentido, alguns excertos das especulações de Warat (1995, p.
20-21) são apresentados para servirem como referências da diiculdade
de entendimento e posteriormente às elucidações a partir dos fundamen-
tos semânticos dos termos que causam os equívocos de compreensão:
1) Para distinguir o signo, como dado empírico, de sua manifestação,
como objeto da ciência, Saussure nos propõe as categorias de Fala
e Língua. Esta distinção fundamental do pensamento de Saussure
permite veriicar que, para ele, o objeto da linguística é a língua e não
as linguagens, vistas apenas como manifestações ontológicas do real;
2) O primado da língua sobre a fala é o que nos permitirá encontrar,
segundo Saussure, uma ciência dos signos em sentido estrito; 3) A fala é
reconhecida a partir de uma teoria construída para a sua compreensão.
A língua, neste nível, seria o objeto cientíico da linguística. Não
se constitui em uma síntese das diferentes linguagens naturais do
mundo, mas em seu signiicado como sistema. A fala, no ato de seu
conhecimento, existe no interior da língua. Ou seja, a realidade sígnica
é reconstruída na língua, que nasce por oposição à fala.

Retomando a seção 2.7 deste capítulo, em que cada artigo con-


tribui linguisticamente com os clássicos da literatura, especiicamente
na subseção 2.7.1 – 1984: uma visão linguística para entendimento da
NOVAFALA –, há um breve histórico das primeiras relexões sobre a
origem da linguagem. Lá, está Saussure aplicando sua teoria com bases
ilosóicas desde a Antiguidade – Sócrates, Platão e Aristóteles –, pas-
sando pelo famoso debate da “tábula rasa” no século XVII – Leibniz e
Locke. O conhecimento é cumulativo e sempre sujeito a novas aplica-
ções e convém fazer leituras do mesmo objeto com prismas diferentes.
Agora voltando aos excertos de Warat (1995), é possível entender
o que está escrito por ele? Signo, linguagem, língua, fala, signiicado,
objeto, nominalismo e naturalismo exigem signiicações precisas para
compreender o propósito da teoria.
34
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

Primeiramente, destaca-se a diferença de “signo verbal” e “não


verbal”. O “verbal” é da área da linguística, distinguindo-se do “não
verbal” por estar em outras categorias de signo (visual, tátil, auditivo,
olfativo e gustativo etc). Esse último pode ser da “semiologia” ou “se-
miótica”21. Segundo Santaella (1983, p. 9),
Antes de tudo, cumpre alertar para uma distinção necessária: o século
XX viu nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da
linguagem. Uma delas é a Linguística, ciência da linguagem verbal. A
outra é a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem.

Ressalta-se a distinção dada à linguagem22 por Saussure (1975, p.


16) como base introdutória para sua teoria: “A linguagem tem um lado
individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro”.
O primeiro refere-se à fala e o outro à língua, constituindo-se aí a pri-
meira dicotomia linguística. Para ele, a linguagem era igual à fala mais
a língua (linguagem = fala + língua), e como o seu objetivo era a língua
porque era social e convencionada pelo povo de uma dada comunidade,
foi possível sistematizá-la a partir do signo e sua estrutura – estrutura
tanto do signo quanto das sentenças. Dizendo de outra forma, para ele
a língua era composta de linguagem menos a fala (língua = linguagem –
fala), “produto matemático” na troca dos lados. No seu sistema, o estudo
foi dirigido para a estrutura, desconsiderando a fala por ser individual,
em que suas idiossincrasias não diicultariam o signo como a arbitrarie-

21 NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica : de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995
(Coleção E; 3); (p. 23), em seu texto Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce, esclarece essas duas
áreas. Como essa distinção não é o real objeto desta seção, uma breve nota de rodapé é o suiciente:
“O maior rival terminológico de semiótica tem sido semiologia. Para designar uma teoria geral
do s signos o termo já havia surgido alguns decênios antes que Locke, em 1690, postulasse uma
doutrina dos signos com o nome de ‘Semeiotiké’. Já em 1659, o ilósofo alemão Johannes Schulteus
falou de uma doutrina geral do signo e do signiicado, sob o título ‘Semeiologia Metaphysiké’. No
nosso século, o termo semiologia icou ligado à traição semiótica fundada no quadro da linguística
de Ferdinand de Saussure e continuada por semioticistas como Louis Hjelmslev ou Roland Barthes.
[...] Sob essas inluências, semiologia permaneceu durante muito tempo como o termo preferido
nos países românicos, enquanto autores anglófonos e alemães preferiram o termo semiótica.
Alguns semioticistas, porém, começaram a elaborar distinções conceituais entre semiologia e
semiótica: semiótica, designando uma ciência mais geral dos signos, incluindo os signos animais
e da natureza, enquanto semiologia passou a referir-se unicamente à teoria dos signos humanos,
culturais e, especiicamente, textuais.
22 Para melhor distinção, entenda-se linguagem como uma abstração ou capacidade inata do
indivíduo para a prática da fala, que posteriormente se constituiu em um sistema linguístico: a língua.

35
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

dade entre o “signiicante” e o “signiicado”, uma das quatro dicotomias


que formam o seu sistema linguístico com caráter cientíico.
A signiicação a partir da palavra tem nesse signo dicotômico sig-
niicante/signiicado23, um dos grandes problemas de inversão de signi-
icado. Imagine um círculo em que a metade de baixo é o signiicante
(a imagem acústica do som) e a parte de cima o signiicado (conceito,
ideia ou compreensão). Como se criou o problema? Em vez de somente
estar escrito ‘conceito’, ‘ideia’ ou ‘compreensão’, está desenhada a repre-
sentação que o signiicante gera no signiicado. Exemplo: o signiicante
casa, na demonstração imagética do signo linguístico, é uma imagem de
casa no lugar do signiicado. Acredito que os seus alunos representaram
a ideia de que o signiicante gerava essa imagem para facilitar o enten-
dimento, mas criou mais problema porque as pessoas que estudam esse
signo não entendem o signiicado de conceito, ideia ou compreensão
como algo abstrato.
Como esse processo é mental, Saussure (1975) acrescenta que
esse signo “é uma entidade psíquica de dupla face, em que um não existe
sem o outro e vice-versa” e complementa com uma frase que ica depo-
sitada no cérebro de todos os indivíduos que estudam Linguística:
Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os
indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical
que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos
cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa
em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (SAUSSURE,
1975, p. 21)

O arbitrário como propriedade do signo linguístico é justiicado


em função de que não há correspondência da palavra com as entidades
do mundo físico a que elas se referem. Na verdade, o que refere tem
correspondência no referido – objeto de estudo da Lógica –, mas no
caso a palavra representa um conjunto de propriedades que deinem o
objeto que as tem. Dito de outra forma, esse conjunto de propriedades
vão compor o conceito ou uma ideia do que o signiicante signiica.
Outra propriedade desse signo é a imutabilidade da relação entre
o Se/So porque é preciso que assim o sejam para que o sistema seja en-
tendido por toda a comunidade que fala aquela língua.

23 Abrevia-se como Se/So.

36
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

Para concluir a base de sua teoria, as duas dicotomias que faltam


são igualmente importantes porque têm relação com as demais: “sin-
cronia/diacronia” e relações “sintagmáticas/paradigmáticas”. A “sincro-
nia”24 é o estudo da língua em um dado período, exigindo dessa forma a
propriedade da imutabilidade do signo. Por outro lado, a “diacronia”25,
que estuda as mudanças da língua em períodos, tem como propriedade,
diferentemente da sincronia, a mutabilidade do signo porque tanto o
signiicante quanto o signiicado podem ser alterados. Diferentemente
da compreensão ilosóica da proposta dessa seção, a última dicotomia
ica somente no nível da estrutura da língua, em que as relações sintag-
máticas são elementos ou estrutura com mais de uma palavra, mas que
não constituem estrutura frasal de sujeito/predicado, exempliicando
com sintagmas adverbiais, preposicionais, adjetivos etc. Nas paradigmá-
ticas, são classes de palavras que se opõem mutuamente, constituindo,
juntamente com a sintagmática, o sistema de uma língua.
Esta seção desenvolveu-se em função da abordagem de Warat
(1995) concentrar, em seus fundamentos linguístico-ilosóicos, o foco
predominante na teoria de Saussure (1975), mas não se pode prescindir
de fazer alguma relação com a semiótica e semiologia também referi-
das por ele para suas relexões. Então, um breve apontamento de Peirce
(2003) em relação ao seu signo tricotômico, também conhecido como
triângulo semiótico, se faz valer.
A função desse triângulo nessa seção é para reforçar a ideia de que
o signo linguístico é totalmente psíquico. Tanto o signiicante quanto o
signiicado são mentais, apesar de muitos estudiosos entenderem ser o
signiicante a própria palavra e o que é mental é somente o signiicado.
Cabe, então, uma passagem de Peirce (2003, p. 52) para fundamentar a
relação triádica do signo26 , que faz relação com o linguístico:
247. De acordo com a segunda tricotomia, um Signo pode ser
denominado Ícone, Índice e Símbolo. Um ícone é um signo que se refere
ao Objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios,
caracteres que ele igualmente possui quer um tal Objeto realmente
exista ou não. [...] Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente

24 Do grego ‘syn’ (juntamente) + ‘cronos’ (tempo): no mesmo tempo.


25 Do grego ‘dia’ (através) + ‘chrónos’ (tempo): através do tempo.
26 São três tricotomias em sua teoria, mas somente a segunda é necessária para fazer a relação
com o linguístico.

37
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

individual ou uma lei, é Ícone de qualquer coisa, na medida em que for


semelhante a essa coisa e utilizado como um seu signo.

Faltando, para completar essa segunda tricotomia, o “Índice” e o


“Símbolo”, mas que dispensam deinições porque não têm correspon-
dência para o exemplo que será apresentado aqui.
A relação da tricotomia semiótica com a dicotomia linguística
deixará mais clara a noção do signo saussuriano como entidade psíqui-
ca. Usaremos o exemplo de ‘casa’ para o “signiicante” e o seu conceito
ou ideia para o “signiicado”. Vamos fazer um exercício de abstração do
triângulo e seus vértices. No vértice à esquerda, temos o som ‘c-a-s-a’;
no vértice à direita, um ícone de ‘casa’ (é uma imagem ou desenho de
casa), que é o objeto representado; no vértice de cima, o signo linguís-
tico representado pelo se/so (entidade psíquica); quando o interlocu-
tor produz isicamente o som ‘c-a-s-a’, esse ‘som’ vai para o cérebro do
ouvinte e, se tiver correspondência com o “signiicante”, o “signiicado”
será entendido. Vejamos outro exemplo: o interlocutor produziu o som
‘s-t-y-p-w’, que foi ouvido pelo outro; como não houve correspondência
linguística, a comunicação não aconteceu, inclusive sem uma represen-
tação icônica.
Esse foi um exercício linguístico-semiótico baseado em uma
palavra que não faz referência direta ao objeto porque representa uma
classe das coisas que têm as propriedades que compõem o objeto ‘casa’.
Poderíamos criar palavras que não têm correspondência com imagens,
como ‘calma’, ‘alegria’ e outras de mesma natureza. Bem, esse já é outro
estudo de linguagem em uso. Fica para as próximas edições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como o objetivo deste capítulo é apresentar a disciplina como ela
é e como pode ser implementada em sala de aula, deixo aqui a curiosi-
dade para aqueles que ainda não a cursaram, mas que estão lendo esta
edição, para conhecerem as disciplinas de seu curso e também os res-
pectivos professores. Aos que estão cursando, é o momento de ir expe-
rienciando todo o processo no mesmo semestre. E aos que já cursaram,
é uma leitura retrospectiva, reforçando o que já conhecem e com o de-
sejo de buscar mais a partir do que já aprenderam.

38
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

É importante retomar algumas passagens que são aplicadas no


dia a dia do aluno. Inegavelmente, há problemas de vários níveis: al-
guns partem do conhecimento novo e outros passam pela reorganização
mental em termos de aprendizado linguístico, mas a preocupação com o
desempenho nas provas continua de forma natural, talvez pela história
escolar desde o início de seu aprendizado. O foco é a nota que icará re-
gistrada no seu currículo universitário em detrimento do conhecimento
como a meta a ser atingida. Dizendo de outra forma, a causa de seu
estudo é a nota e o conhecimento a consequência.
Dentre todo o conteúdo trabalhado, um em especial promove
uma mudança no pensar o conhecimento como processo cognitivo: a
Lógica na relação de causa e consequência. Não para o conteúdo, mas
aplicá-la na vida. Não podemos pensar na prova como causa para con-
seguir uma boa nota, temos de pensar no conhecimento como causa e
deixar a nota como consequência natural do desempenho acadêmico. E
essa relação causal é estendida para o nosso dia a dia, para nossa vida.
Quanto à resistência ao entendimento a partir de novos questio-
namentos baseados mais nas perguntas do que nas respostas, a satis-
fação do aluno quando começa a entender, tanto o processo como a
própria aquisição do conhecimento, é visível e relaxante em termos de
missão cumprida; uma vez que ele não sai com a sensação de que apren-
deu, ele sai com a certeza de que sabe como buscar mais.
E, para inalizar, o meu primeiro aforismo: “Vocês não sabem o
que vocês já sabem!”, que se constitui, inicialmente, como uma ironia no
entendimento do aluno, é assimilado já no decorrer do semestre para
alguns e, no im, para outros. Essa máxima é a forma de garantir ao
aluno que ele não precisa fazer a “prova dos nove” a cada informação
adquirida: “Se já está depositado em seu cérebro, então deixa lá para
quando for solicitado o seu resgate”. O outro aforismo é “De nada vale a
informação se não a transformarmos em conhecimento”, que os levará
a entender que o conhecimento advém da relação do que é transmitido
pelo professor com o que já conhecemos, na verdade, é o resultado de
nosso raciocínio e conclusões. Entendam a proposta metodológica da
disciplina! Isso os fará pensar o conhecimento como saber e não como
algo estéril.

39
PROF. CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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UNICAMP, 1998.
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Metodologia. São Paulo: EPU, 1986.
COSTA, Jorge Campos. A relevância da pragmática na pragmática da
relevância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
DASCAL, M. (org.) (1978-1982). Fundamentos Metodológicos da
Linguística. São
Paulo: Unicamp.
DUCROT, Osvald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico
das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto:
leitura e redação. 17. ed. Rio de Janeiro, 2007.
GRICE, H. P. Logic and Conversation. In: Cole & Morgan (1975: 41-
58). (part of Grice - 1967). Tradução de Port. Geraldi, J, W. 1982: 81-
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Steinberg Jakobovits (1971: 53-9) and in Strawson (1971: 39-48).
HENRIQUES, Antonio. Prática da Linguagem Jurídica. 2 ed. São
Paulo: Editora Atlas AS, 1999.
HENRIQUES, Antonio & DAMIÃO, Regina Toledo. 8.ed. Curso de
Português Jurídico. São Paulo: Editora Atlas AS, 2000.
HOUAISS ELETRÔNICO. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.
KRETSCHMANN, Ângela et al. Por que Locke é naturalista em
relação ao Direito e convencionalista quanto à Linguagem? Anais da
Mostra Cientíica no Cesuca. Cachoeirinha: 2013, disponível em: http://
ojs.cesuca.edu.br/index.php/mostrac/article/view/518 .

40
1 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO E LINGUAGEM

KRETSCHMANN, Ângela (org). Formação Jurídica: primeiro ano.


Cachoeirinha: Verbo Jurídico, 2013.
KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez
Editora, 1984.
NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica : de Platão a Peirce. São
Paulo: Annablume, 1995 (Coleção E; 3).
PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PINKER, Steven. Tábula Rasa: A negação contemporânea da natureza
humana. Tradução de Laura Teixeira Motta. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2003.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. 7. ed. São Paulo:
Cultrix, 1975.
WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua linguagem. 2. ed. aum. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.

41
2

ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Angela Kretschmann1
- Ney Wiedemann Neto2

SUMÁRIO: 2.1. INTRODUÇÃO - 2.2. O que é Argumentação


Jurídica e por que ensiná-la - 2.3. Argumentação e crise do
direito - 2.4. Teóricos importantes da Argumentação Jurídica -
2.4.1. Chaïm Perelman - 2.4.2. heodor Viehweg - 2.4.3. Ronald
Dworkin - 2.4.4. Robert Alexy - 2.5. Argumentação e hermenêutica
discursiva: sugestão de exercícios - CONSIDERAÇÕES FINAIS
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

2.1. INTRODUÇÃO
O capítulo trata da argumentação jurídica em suas múltiplas fa-
cetas, enfatizando a sua atualidade e importância para o jurista. O es-
pírito crítico é elemento fundamental da prática jurídica, e assim como

1 Pós-doutorado em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha (2012), Doutora em


Direito pela UNISINOS (2006); Diretora de Pesquisa do CESUCA. Professora de Teoria Geral do
Direito, Argumentação Jurídica e Inovação e Propriedade Intelectual do CESUCA, e de Direito da
Propriedade Intelectual da UNISINOS. Advogada. E-mail: angelak@cesuca.edu.br
2 Mestre em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ). Professor
de Argumentação Jurídica da Faculdade Inedi do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/
RS - CESUCA. Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E-mail: neyneto@
cesuca.edu.br

43
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

não é inato, também não é adquirido com facilidade. Adquirir e desen-


volver a habilidade implica em ir além de um pensamento matemático.
É necessário raciocínio lógico, mas também dialético, permeado por
conhecimentos culturais gerais, que permitam o máximo possível o es-
tabelecimento de relações para a análise, formação e conclusão acerca
de uma determinada abordagem e a justiça de um. determinado caso.
A abordagem desenvolve-se levando em conta a história e a i-
losoia do direito, e contextualiza a argumentação na crise do dogma-
tismo jurídico do momento atual, em que a consciência da fragilidade
em torno de verdades absolutas se desvela, e na qual o convencimento
e a persuasão ganham espaço e merecem ser abordadas dentro de um
contexto teórico crítico e ético.
Da retórica antiga à nova retórica, e indo além dela, a abordagem
da argumentação jurídica é trazida pelas mãos de vários autores que se
dedicaram ao tema, pontuando-se aspectos da hermenêutica e da práti-
ca da argumentação jurídica que são úteis para a efetividade do discurso
e para a busca de convencimento sobre uma controvérsia, sem perder
de vista a busca da justiça do caso concreto inserido no contexto de
um Estado Democrático de Direito, que tem por base uma Constituição
compromissória e dirigente.

2.2. O que é Argumentação Jurídica e por que ensiná-la


Antes de reletirmos sobre o que é a argumentação jurídica, pro-
priamente dita, é importante analisarmos o que é argumentação, em
sentido amplo. A ideia de “argumentos” traz logo a impressão de “per-
suasão”, e essa relação não é gratuita. Efetivamente, antes mesmo de in-
gressar na argumentação, é necessário esclarecer o que é retórica, o que
também não é fácil, dado que a palavra assumiu muitos sentidos, sendo
o pejorativo o que mais se estabeleceu.
Nesse sentido, elogiar a retórica de alguém pode ser compreen-
dido como um insulto, quando poderia o emissor da mensagem estar
a elogiar uma capacidade comunicativa. A redescoberta da retórica só
começou após meados do século XX, com Charles Perelman e Lucie Ol-
brechts-Tyteca, e foi vista como o estudo da “arte de argumentar”, com
o objetivo de convencimento e persuasão (aqui neste texto privilegiare-
mos o aspecto do “convencimento”).

44
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

De qualquer modo, nem todo o argumentar é jurídico, ainda que


o argumentar, no sentido geral, faça parte da vida de todos. É importan-
te saber identiicar quando uma argumentação é simplesmente política,
religiosa ou ética. E essa argumentação jurídica leva em conta um tipo
de racionalidade em especial, uma razão jurídica que servirá de funda-
mento para uma decisão, ou seja, argumentos jurídicos que se encon-
tram nos contextos tipicamente jurídicos.
Por outro lado, os juristas lidam com contextos argumentativos
de diálogo; e os temas que são discutidos no campo do direito não são
exclusivamente jurídicos, pois englobam aspectos políticos, econômi-
cos, sociais, culturais, religiosos, biológicos etc. Assim, a argumentação
jurídica não se reduz à mera argumentação sobre o direito, e não se
desenvolve exclusivamente por juristas.
Se a retórica pode ser deinida como uma “arte de persuadir pelo
discurso”, nem todo discurso visa à persuasão, como o caso da poesia, da
comédia, do romance, informações técnicas (REBOUL. 2000, p. XIV).
Além disso, ressalta a importância de distinguir “persuadir” de “conven-
cer”, porém, ela é bastante sinuosa e complexa. Em um primeiro mo-
mento é importante destacar que a persuasão pode dar-se por ameaça,
ou por argumentos, e por isso a importância de mostrar que a persuasão
retórica tem relação com “levar a crer”, de modo que voluntariamente
alguém passa a acreditar em algo, foi convencido, e não levar a “fazer”
algo, que pode envolver outra condição, como a ameaça, a promessa ou
o uso de violência.
Historicamente, a retórica chegava a ser confundida com a argu-
mentação, e, nesse sentido, quando a retórica atingiu um sentido pejo-
rativo, levou com ela também a argumentação. Já com a recuperação da
retórica e o seu desenvolvimento como “nova retórica”, acabou também
legitimando o retorno da própria argumentação. Lentamente, os termos
foram sendo distinguidos; porém, a argumentação não deixa de ser um
esforço retórico, que pode repousar na boa retórica – ou não, daí a im-
portância de deinir os limites da “Argumentação Jurídica” da disciplina
de currículos no Ensino Jurídico.
Ora, sendo a retórica tão estreitamente vinculada à argumenta-
ção, por que não chamamos a disciplina “Argumentação Jurídica” de
“Retórica Jurídica”? Agora, parece plausível, mesmo diante do pouco
que já foi dito, que se pode, sem maiores diiculdades, nominar a dis-

45
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

ciplina de Retórica Jurídica, no lugar de Argumentação Jurídica. De


todo modo, devemos considerar que a Argumentação Jurídica, para ser
plausível, há de ligar-se a uma lógica, que não será a lógica formal. Vin-
cula-se à distinção entre raciocínio analítico e dialético, proposta por
Aristóteles, e irá vincular-se à aceitabilidade das premissas. Assim, há
uma lógica, há um raciocínio que deve ser levado em conta, e há uma
base para compreender e ser compreendido.
A lógica jurídica seria um ramo da retórica jurídica, e a argu-
mentação jurídica seria para a retórica em geral um verdadeiro para-
digma (ATIENZA, 2003, p. 75), pois ela envolve uma controvérsia e as
partes precisam chegar ao seu inal, com uma decisão. Enquanto isso,
nas demais ciências humanas, como na ilosoia, a argumentação não
leva a um acordo e cada um pode permanecer com seu argumento, sem
chegar a um ponto comum, ou que mesmo não sendo comum, deina
e acabe com a controvérsia. Por isso os ilósofos se interessaram muito
pela argumentação jurídica, pois ela precisou desenvolver-se a ponto de
solucionar as controvérsias.
Com isso, o uso da designação Argumentação Jurídica lança mão
de “argumentos” que poderão esclarecer os motivos, que poderão auxi-
liar no “desvelamento” do signiicado que se imprime com argumentos,
e, ainda, fazer crer ou convencer por meio de argumentos racionais por
que um nome é preferível ou mais adequado que outro. É possível, des-
de já, pensar que pode não existir uma resposta única e absoluta para
a pergunta, mas podem existir, dentro de um contexto próprio, várias
respostas razoáveis e uma resposta mais adequada.
O primeiro argumento que se traz para isso é de razão histórica.
Na realidade, a retórica tem seu nascimento na antiga Grécia, pelo me-
nos em termos de sistematização. E, entre os gregos, a retórica era con-
siderada fundamental, ainda mais dada à prática da democracia (embo-
ra poucos pudessem se considerar cidadãos). Ali a retórica assume um
caráter pragmático, de persuasão, e será principalmente com os soistas
que se tornará famosa; porém, junto com a fama dos soistas, de “retóri-
cos”, também a retórica assume um contorno pejorativo.
De fato, como destaca Reboul, para os soistas o discurso não pre-
tende ser verdadeiro e nem mesmo verossímil, eles só visavam à eicácia
do mesmo, não no sentido de convencer, mas no sentido de “vencer,
a deixar o interlocutor sem réplica”. Como destaca o autor (REBOUL,

46
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

2000, p. 10), a inalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro


(ou o razoável), mas dominar por meio da palavra, que está devotada
ao poder e não ao saber. A marca desse relativismo vinha do relativismo
dos soistas, como Górgias e Protágoras.
De Górgias partiu o famoso e muito criticado ensinamento: “Pri-
meiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que exista alguma
coisa, o homem não a pode apreender; em terceiro lugar, mesmo que
ela possa ser apreendida, não pode ser formulada nem explicada aos
outros”. É evidente que essa airmação provoca inúmeras contrarieda-
des e possibilita uma grande discussão, com uma profusão imensa de
argumentos contrários. O dito mais conhecido de Protágoras é muito
mais conhecido: “O homem é a medida de todas as coisas”. Com tais
fundamentações acerca do nada, tal relativismo permitiu o desenvolvi-
mento de uma retórica da eicácia dos argumentos, ou seja, não importa
a correção ou razoabilidade de um argumento, mas vencer uma disputa.
Justamente com Aristóteles, a retórica irá assumir outra postura
(mas não só com ele, pois Isócrates já tinha dado um rumo à retórica,
distinto da dos soistas), tendo por objeto o verossímil ou o provável (e
não o verdadeiro). Depois de um grande desenvolvimento, inclusive na
Alta Idade Média, a retórica vai sendo lentamente reduzida a uma arte
de produzir apenas “belos discursos”. O mais grave, porém, acontece
com a ascensão da ciência moderna, uma vez que ali toda a arte discur-
siva se perde, dado o cientiicismo moderno, que no direito irá gerar as
várias espécies de positivismos, entre eles o formalismo legal.
É possível compreender de onde provém o “senso comum teórico
dos juristas” desde as lições de Aristóteles. Em especial porque ele di-
vidia os argumentos em dois tipos ou duas estruturas: o exemplo (que
vai do particular ao geral, do fato à regra, uma indução), e o entimema,
que vai do geral ao particular, tratando-se de uma dedução, sendo que
as premissas do entimema se distinguem do silogismo demonstrativo,
uma vez que não são proposições evidentes, mas “geralmente” admiti-
das, e por isso, verossímeis (REBOUL, 2000, p. 154). E como explicita
Warat (1995, p. 89), “as premissas entinemáticas fundamentam-se não
somente nas opiniões populares, mas também mesclam um universo

47
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

especíico de crenças”, que ele vai denominar de “senso comum teórico


dos juristas”.3
A retórica foi abolida do ensino no im do século XIX, e o termo
foi riscado dos programas, mas como destaca Reboul (2000, p. XXII)
“como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra não se
suprimiu a coisa”. O que aconteceu foi que a retórica continuou, porém
desarticulada, apagada, deslocada da unidade que mantinha com a gra-
mática e a dialética. Enquanto gramática, a dialética e a retórica eram
partes de um todo, se esclerosaram quando se separaram (REBOUL,
2000, p. XXI).
É no século XX, apenas, que a retórica renascerá como uma teo-
ria da argumentação, em especial com Perelman, que fez mais, pois
mostrou que a própria lógica tem um caráter retórico. Ainal, a lógi-
ca é fundamental para convencer. É claro que também nos servimos
da lógica para convencer, mas não exclusivamente dela. Ou seja, ele fez
questão de esclarecer que a lógica formal não compete com a retórica,
pelo contrário.
Foi quando o raciocínio matemático atingiu seu ápice que os ar-
gumentos quase lógicos foram acusados de fracos (PERELMAN, 1993,
p. 73 e 96), mas recuperaram seu prestígio no decorrer do século XX,
ainda que, para convencer, precisassem do complemento dos argumen-
tos baseados na estrutura do real (que em geral apelam para ligações de
sucessão, como relações de causa e efeito, por exemplo, alegar as conse-
quências boas que de uma lei podem advir; e de coexistência, da pessoa
e dos seus atos).
Com isso, a teoria da argumentação passou a ser reconhecida
como Nova Retórica, e só não levou o nome de Dialética para não ser
confundida com a Dialética de Aristóteles, fortemente disseminada.
Mas trata-se, enim, de argumentação. A retomada ocorre porque a
Nova Retórica ou “teoria da argumentação” ressurge para voltar a, atra-
vés de argumentos, buscar convencer ou persuadir, quando tinha sido

3 WARAT observa que “em virtude de seus efeitos de enunciação, o entimema produz a persuasão
e não a demonstração. Assim, o questionamento principal constitui-se no fato de que o silogismo
retórico seduz o homem, o determina e controla, mas não serve, e inclusive perturba, a ordem das
demonstrações lógicas. O entimema é um silogismo truncado pela supressão, em sua enunciação,
de uma proposição retórica (não demonstrada), cuja realidade encontra-se guardada no espírito do
homem comum, que a vive como incontestável.” (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem.
2. versão, com colaboração de ROCHA, Leonel Severo. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1995. p.89).

48
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

reduzida a uma simples arte de bem falar. Com o ápice da modernidade


e cientiização, a única linguagem capaz de convencer era a da lógica,
que Perelman fez questão de diferenciar da argumentação ou da retóri-
ca, justamente porque a lógica leva a uma conclusão necessária, enquan-
to que a argumentação leva a uma conclusão verossímil.
Reboul (2010, p. XVIII) entende a retórica como “arte”, como te-
chné da tradição grega antiga, destacando que a argumentação é uma
das funções da retórica ou da arte de persuadir. O autor divide o dis-
curso persuasivo da retórica em argumentação e oratória. Ou seja, a
persuasão se utiliza dos meios racionais e afetivos, considerando os ar-
gumentos como meios racionais, que também se dividem em dois tipos:
os entinemas (argumentos que se integram no raciocínio silogístico) e
os que se fundamentam no exemplo. Os afetivos tem vínculo com o ca-
ráter do orador, as emoções do auditório, gestos etc. Esse aspecto afetivo
também é chamado de oratória. Porém, além da função persuasiva (que
envolve a argumentação e a oratória), a retórica também possui função
hermenêutica, heurística e pedagógica.4
Para Perelman (1996, p. 505) a formação “de jovens juristas exige
que o curso de lógica seja completado por um curso de retórica, que não
é arte de falar bem, num sentido empolado: é arte persuadir e de con-
vencer”, e isso pode manifestar-se por um discurso ou texto escrito, mas
ao im e ao cabo, trata-se de usar a argumentação. Nesse sentido, deine
(Perelman, 1996, p. 684) o papel da retórica como uma teoria da argu-
mentação, e esta envolve também a dialética dos antigos, de Sócrates,
Platão e Aristóteles, buscando “precaver-nos contra o uso abusivo das
noções confusas”, e entre essas noções confusas indica o “senso comum”,
que são as primeiras noções que todos os homens têm igualmente das
mesmas coisas, e a própria justiça. Quanto ao senso comum, cabe ao i-

4 Conforme Reboul, “a função hermenêutica na retórica considera que o orador nunca


está sozinho quando fala ou escreve para convencer, ele precisa saber com quem está falando,
compreender o discurso do outro, etc. A retórica tem a função de uma teoria que visa compreender.
Já na função heurística, no sentido de que a função da retórica também é a de descobrir, encontrar
alguma coisa, pois aquele que participa do discurso deve estar aberto, também, para as novas
descobertas que ocorrem durante a troca discursiva. Na função pedagógica ensina a compor um
plano, encadear argumentos de modo coerente, cuidar do estilo, construções apropriadas. Na sua
função pedagógica, a retórica tem relação inclusive com a cultura geral, que possibilita escrever
de modo vivaz, sem ser monótono, sem confundir tese com argumento, nem expor de forma
desconexa”. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. XXII.

49
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

lósofo assumi-lo, mas também “elaborar, precisar e deinir suas noções,


aclarar seus princípios e fornecer critérios que justiiquem uma escolha,
uma decisão” (PERELMAN, 1996, p. 240).
O estudo do direito não se situa no plano do puro subjetivismo,
como na concepção de Protágoras. Ele não leva a resultados que conte-
nham a mesma exatidão racional (COMPARATO, 2006, p. 505-506), das
leis naturais (vinculadas a uma “tradução simbólica da realidade, cuja es-
sência independe da vontade humana”) ou dos enunciados matemáticos
(que se relacionam com entes ideais ou abstratos). O estudo do direito
envolve valores, sentimentos, e se realizam por uma decisão de vontade,
o que não signiica por si só na impossibilidade de chegar a uma resposta
correta, mas as teorias da argumentação vão diferir nesse sentido.
Com uma Constituição Federal permeada de compromissos, o
argumentador possui diante de si um conjunto de direitos e garantias
incorporados no sistema como uma verdadeira terra fértil para defen-
der determinada posição, contra ou a favor do MST, do aborto de fetos
anencéfalos, sobre política de cotas ou idelidade partidária (ASENSI,
2010, p. 83).
As diiculdades contemporâneas expressas pela complexidade do
fenômeno jurídico e sua compreensão recebem um importante auxílio
a partir da argumentação jurídica, a im de se chegar a uma decisão ra-
zoável, considerando que em direito há pouco ou nenhum espaço para
“verdades evidentes” (essas, na maior parte das vezes resultam de impo-
sições arbitrárias, e, muitas vezes, violentas).

2.3. Argumentação e crise do direito


Não é fácil falar em argumentação jurídica em meio a uma crise
do direito que se alastra há décadas. É até mesmo paradoxal, porém, é
necessário contextualizar os propósitos do estudo da argumentação ju-
rídica no contexto do Curso de Direito, mesmo em meio a uma crise do
direito que teve sua nervatura exposta pelo desgaste da dogmática jurí-
dica. Agora o que se fala é da crise de tudo, do direito, do ensino, do Ju-
diciário, do Estado. E a argumentação jurídica, nesse plano, parece um
“non sense”, ou então, poderia representar o próprio relexo dessa crise.
A crise do direito, portanto, também passa pelo caminho das
práticas discursivas argumentativas, sendo fundamental que se procure

50
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

enfrentar o discurso dogmático no que ele tem de mais danoso e de


inluência nessa crise. É justamente o modo como se pretende, transpa-
rente, falando da lei como um “lugar comum” e indiscutível, de acesso
imediato e natural a todos, o que leva ao que se denomina de senso
comum teórico dos juristas, lembrando Warat, ou seja, as práticas hege-
mônicas que se perpetuaram ao longo das décadas e que se “legitima-
ram” como discurso, quando, na realidade, apenas perpetuam a crise.
Tudo isso porque, no discurso jurídico, ainda são poucos os que
reconhecem a linguagem como instituinte, como sujeito, e não como
instrumento banalizado do uso de argumentos. Daí porque se fala,
com razão, que a crise envolve a superação do paradigma da ilosoia
da consciência e da metafísica clássica, a im de trazer para o discurso
jurídico aquele horizonte de sentido que é dado pela compreensão, e na
qual a linguagem, conforme a viragem linguística de cunho ontológico-
-pragmático nos ensina, “El ser que puede ser comprendido es lenguaje”,
como expressa Gadamer, é a única coisa que pode ser compreendida
(GADAMER, 1996, p. 495 e 597).
Sendo o direito sempre a expressão de um poder, mais razão há
para que se insista em um argumento jurídico correto, que mantenha a
integridade do sistema, e não simplesmente mais um em meio a uma
pluralidade de argumentos, mas que se tenha em mente que com uma
Constituição Federal é possível a melhor resposta, ainda que não a úni-
ca. Há uma decisão que terá maior coerência normativa, explicitada
pelo argumento adequado. Se não se pode acreditar nisso, então sequer
há razões para lutar pela força, sensatez, coerência e justiça de um argu-
mento, entre tantos outros.
De fato, pode parecer um problema se o sistema admite “mui-
tas respostas”. Nesse caso, muitos argumentos. Isso não é de estranhar
e também pode ser visto como uma decorrência normal de um Estado
Democrático que se fundamenta em princípios. É necessário que não
se omita a integridade do direito e aí o respeito à Constituição Federal,
que não se pode pluralizar, trata-se de uma e bastante palpável Consti-
tuição Federal, que possui uma história própria, dentro de uma história
constitucional e de um histórico Estado que passou pelas mais diversas
crises de poder.
O paradigma formalista do direito, vinculado ao dogma da com-
pletude e da segurança jurídica, é herança da modernidade, da razão

51
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

iluminada. Pode parecer estranho ao estudante de direito de hoje pen-


sar que um dia se viveu uma ânsia por segurança jurídica, uma busca
desesperada por cientiicidade na “ciência jurídica” que pudesse trazer
respostas irmes e “irrefutáveis” devido às verdades claríssimas que a
metodologia jurídica “seria capaz” de revelar.
O aumento das críticas ao excesso de formalismo do sistema foi
se acumulando a partir do século XIX, ligando-se a movimentos meto-
dológicos que passaram a insistir numa orientação mais prática, como,
por exemplo, o movimento do Direito-livre, a Jurisprudência dos Inte-
resses, os sociologismos, e, mais especialmente ainda, a Jurisprudência
dos Valores. O que antes era descartado passou a ser central, passou a
fazer parte da problemática jurídica: passa a existir um compromisso do
direito com problemas práticos, valores, ins e interesses, deixando de
ser meramente forma (direito posto) para ser também conteúdo (direito
material)5.
Na realidade, como destaca Baptista da Silva (2009, p. 7), a con-
sequência óbvia da transferência do Direito para o campo das ciências
experimentais (em especial com Spinoza e Leibniz), com esse desejo de
cientiização e segurança foi a proscrição dos juízos de verossimilhança,
e outra consequência foi a eliminação da retórica forense; como diz o
autor, “sob o ingênuo argumento de que a função dos juízes não deveria
ir além da pura e exclusiva revelação do que dissera o legislador”. E este
era capaz de ser entendido por todos, de modo automático e indepen-
dentemente de qualquer auxílio ou esforço de interpretação.
Com a restrição do direito ao que estava “contido na letra da lei”,
os elementos argumentativos eram rechaçados, nada poderia questio-
nar o sentido e o alcance da lei. Isso reforçou a ideia da exclusividade do
direito e do dogmatismo. Nesse momento o direito não aceitava parti-
lhas, negando os saberes e conhecimentos de outros sistemas e estigma-
tizando explicações que não partissem dele próprio. Nessa perspectiva
o direito se desenvolveu em diferentes formas de positivismos: como o
legalista, o exegético e o cientíico. São as várias tendências positivistas

5 Cf. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica - problemas fundamentais. Coimbra Editora:


Coimbra, 1993, p. 29. Para deixar de ser apenas direito posto e discutir igualmente o “direito
pressuposto”, (nas palavras de GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto.
São Paulo: Malheiros, 1996, p.54), lembrando com Bobbio, que o “direito posto” ligado ao direito
“positivo” surge já em Grócio. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de ilosoia do
direito. Ícone: São Paulo, 1995. p. 21.

52
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

que se apresentam desde o século XIX,6 fundadas na dogmática jurídica,


ou na sociologia ou na psicologia.
Seja qual for o aspecto exclusivamente positivista da época, ao
juiz cabia “dizer o direito”. Agora já deve, entretanto, considerar a cons-
ciência da sociedade, como refere Perelman (1996, p. 527), pois seu pa-
pel é estabelecer a paz judiciária que só é estabelecida quando ele houver
convencido as partes, o público, seus colegas, seus superiores, de que
julgou de forma equitativa.
A respeito da insuiciência da lógica formal e do mero silogis-
mo jurídico para embasar a decisão do juiz, é valioso lembrar do ensi-
namento de Beneti (2003, p. 110-111): “muitas vezes a matéria não se
exaure no exame da legislação, assim como, no sistema anglo-america-
no, a interpretação não estanca na análise dos precedentes. (...) Se nisso
consistisse toda a nossa proissão, haveria nela muito pouco interesse
intelectual.”
Nesse sentido, o seguinte exemplo trazido por Perelman mostra
que não é possível restringir-se à lei e que é necessário deixar que a
própria linguagem diga algo (PERELMAN, 1996, p. 523-524): na Ale-
manha imperial de antes de 1914 havia uma lei que punia com pena de
prisão aqueles que, em primeiro de maio, desilassem em passeata atrás
de uma bandeira vermelha. E em um primeiro de maio a polícia pren-
deu algumas pessoas e coniscou a bandeira. No tribunal percebeu-se
que a bandeira era lilás.
Cumpre ao juiz decidir se, pela situação em si, poderia conside-
rar que aquele lilás “equiparava-se” ao vermelho. No mesmo sentido, o
exemplo mais simples de uma placa que proíba a entrada de veículos
num parque. O guarda terá que decidir se um carrinho de bebê é um
veículo, se uma criança com seu automóvel elétrico pode passar, e ainda
o caso de uma ambulância que vem auxiliar alguém que teve um ataque
cardíaco. Ainda, como ica se chamam um táxi para recolher uma crian-

6 “Tendências” aqui usando as palavras de Larenz, no sentido de que podem não ser ainda
positivismo jurídico, adiante in Metodologia da ciência do direito, apesar de ser criticado
duramente por Wieacker porque Larenz distinguiria pouco entre positivismo cientíico, ilosóico
e naturalista, cfe. História do direito privado moderno, ob. cit., p. 493. A verdade é que são de fato
tendências positivistas, ou seja, imbricadas de positivismo, seja cientíico, ilosóico ou naturalista,
como passamos a destacar WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Local:
editora, ano. p. 493.

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ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

ça que quebrou uma perna? Ou seja, não basta a “clareza” da lei, pois
mesmo quando ela é muito clara, é necessário recorrer a outras técnicas.
Para o aluno de hoje, que está vivendo a época da efemeridade
e instantaneidade, pode realmente parecer estranho ler textos que dão
conta de uma época em que a legislação visava “pôr ordem no caos do
direito primitivo e de fornecer ao Estado um instrumento eicaz para
intervenção na vida social” – e assim vai surgir uma teorização sobre
a ordem jurídica, exigindo unidade a um conjunto de normas jurídi-
cas fragmentárias (BOBBIO, 1995, p.120 e 198). Tudo o que era frag-
mentado deveria ser organizado, cadastrado, controlado, sistematizado,
classiicado. Do contrário, normas soltas representariam um risco “per-
manente de incerteza e de arbítrio” – teoria que seria o “clímax” ou “vo-
cação máxima” do movimento juspositivista, encontrando sua máxima
expressão em Kelsen.
A questão atinente à justiça ou injustiça deixava de ter sentido, já
que o direito se identiicava com a ordem jurídica imposta pelo Estado.
Oportuna é a relexão de Azevedo (1979, p. 188) a esse respeito: “tam-
bém digno de nota é o despreparo dos juízes, imbuídos puramente do
positivismo e de seus ingredientes correlativos – o relativismo cético e
o método que lhe é peculiar”. Nesse caso, sempre que o resultado fosse
mau a culpa seria do procedimento lógico da aplicação da lei, e não
daquele que “a deve viviicar, humanizando-a ao adaptá-la ao caso con-
creto.”(AZEVEDO, 1979, p.188).
E no fundo, como refere Baptista da Silva, alguma coisa dessa
época insiste em se imiscuir entre as teorias contemporâneas, como é
o caso de “teorias que ainda sonham em assegurar, pela via do direito,
uma única resposta “correta” para os problemas práticos” (BAPTISTA
DA SILVA, 2009, p. 8). Como o direito não tem por objeto as “verdades
necessárias”, mas sim as “contingentes”, isso implica em aceitar juízos de
razoabilidade, de verossimilhança, e não em rechaçar tudo o que não se-
ria “cientíico” ou “provado” por experimentos, ao mesmo tempo em que
não signiica airmar que não existe possibilidade de encontrar uma so-
lução que se revele razoável e correta, que atenda às exigências da justiça
antes de atender às exigências da política. É nesse sentido que a lei (e sua
interpretação) deve ser vista: a serviço da justiça e não do poder político.
A lógica do dogmatismo revelou-se absolutamente formal, não
admitindo anomalias ou gradações. Assim, a lógica formal conferiu

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2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

pouca importância para o papel da argumentação jurídica. Ao tentar


encaixar fenômenos complexos em molduras rígidas, o direito descon-
sidera as peculiaridades e especiicidades do mundo real. Não considera
o contexto de produção da norma ou as relações de força que se estabe-
lecem no seu interior (ALEXY, 2011, p.250).
O fracasso político do positivismo abriu caminho para um con-
junto amplo e ainda inacabado de relexões acerca do direito, sua função
social e sua interpretação. O “pós-positivismo” é a designação provisó-
ria e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem algumas ideias
de justiça além da lei e de igualdade material mínima, advindas da teo-
ria crítica, ao lado da teoria dos direitos fundamentais e da redeini-
ção das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada
“nova hermenêutica”. Abre-se o espaço para a argumentação jurídica.
Como refere Monteiro (2006, p. 01): “O paradigma da razão prática
no Direito foi construído a partir das insatisfações geradas pela hege-
monia da racionalidade cartesiana.” Na sequência dessa hegemonia, o
neopositivismo levou a culpa pela eliminação do pensamento prático,
concentrando-se nas análises formais do fenômeno jurídico; e depois
teorias estruturais “delimitaram seu objeto de uma forma excessivamen-
te restritiva: a norma jurídica.” Para a autora, é a moderna Teoria da Ar-
gumentação Jurídica que reabilita a ilosoia prática e desloca a relexão
exclusiva sobre a norma para a argumentação.
No mundo contemporâneo, de efemeridade e instantaneidade,
todos os paradigmas são atacados e testados. A própria ideia de verdade
também tem sido problematizada. O argumento se apresenta como a
principal forma de interação social nas diversas situações em que os in-
divíduos se encontram, recebendo destaque o argumento mais persua-
sivo e não necessariamente o mais razoável e que leva em conta aspectos
de verossimilhança. Ainal, não se trabalha com o conceito de verdade,
mas de verossimilhança, e de qualquer modo, o argumento deve ser ra-
cionalmente organizado.
A substituição do critério de verdade pelo critério de razoabili-
dade permitiu a valorização do diálogo como recurso para determinar
qual argumento deve prevalecer. A esse respeito, vale mencionar a ob-
servação de Cunha (2010, p. 16-17), no sentido de que “não vivemos sob
o império de verdades absolutas, capazes de levar ao convencimento o
mais intransigente dos indivíduos”, ao contrário, a argumentação é “o

55
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

conjunto de recursos lógico-formais e de linguagem, pelos quais alguém


tenta convencer o outro de que certa tese é a melhor solução de um pro-
blema ou uma diiculdade”.
No contexto argumentativo, o embate de argumentos deinirá
qual prevalecerá no caso concreto. O argumento que prepondera é o
mais razoável, o que recebe maior adesão dos interlocutores, porque ra-
cionalmente, e após o embate com os demais argumentos, parece mere-
cer maior atenção e apoio. Para tanto, veja-se o caso (MOOTZ, 2011, p.
57), por exemplo, de um pai biológico de uma criança, nascida de uma
mulher que era casada com outro homem, que pode não ter qualquer
direito legal como pai, ainda que as provas cientíicas sobre a paternida-
de sejam conclusivas nesse sentido.
Na dicção de Asensi (2010, p. 08), a argumentação conduz a
transformação do direito, como bem ponderou em sua obra:
O campo do direito tradicionalmente se constituiu a partir de uma lógica
binária de “sim” e “não”, “certo” e “errado”, “lícito” e “ilícito” etc. Com
a inserção da argumentação jurídica, passou-se a pensar o campo do
direito em termos de gradações, níveis, camadas, redes etc. Com isso, a
argumentação tem permitido a transformação das concepções de direito
de forma gradual, sem necessariamente provocar um rompimento
com as concepções anteriores, já que se encontra guiada por uma
racionalidade. (...) A argumentação permite estabelecer parâmetros e
referenciais de como deve operar a transformação do direito no mundo
contemporâneo.

A interpretação é indispensável para a compreensão do direito.


Ela mantém o debate em forma de diálogo, cujos argumentos não pre-
cisam ser provados ou demonstrados, bastando que sejam aceitos para
que o aplicador possa encontrar a melhor solução para o caso. O ra-
ciocínio jurídico lida com valores que vão além da lógica formal. Eis
porque se deve buscar um acordo sobre o que é mais razoável para o
caso concreto. Por isso as discussões jurídicas envolvem valores que são
apresentados em técnicas de argumentação, num processo persuasivo.
O problema é cair no outro extremo, em um ativismo judicial.
Além disso, para ingressar no estudo da Argumentação Jurídica
é necessário enfrentar os desaios da interpretação, uma vez que é im-
pensável o direito sem a interpretação, já que ela constitui sua dimen-
são própria. O que se deve ter em mente é a necessidade de superação,

56
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

tanto do dogmatismo mórbido quanto do decisionismo, que é o outro


lado do impasse da crise do direito a que o país está submetido. Quer
dizer, no intuito de fugir de um paradigma sufocante, corre-se para o
outro extremo em apoio ao que se denominou “discricionariedade” ju-
dicial, a ponto de se chegar a aberrações interpretativas. Na verdade,
vale aqui o conselho de Morin (2005, p. 16), para quem está na hora de
os juristas aprenderem a “navegar em um oceano de incertezas diante de
um arquipélago de certeza”. E a argumentação jurídica, calcada em uma
historicidade e em uma compreensão de sentido, pode auxiliar nesse
aprendizado.
Os exemplos de Lênio Streck (2014, p. 422) são dignos de nota,
indicando que a ponderação vem servindo mais para legitimar decisões
pragmatistas do que para resolver com qualidade: “há decisões deferin-
do o direito ao aluno do curso de biologia a não dissecar animais (qual
o direito fundamental que estaria violado?), assim como decisões que,
por vezes deferem e por vezes indeferem remédios...”.
É chegado o momento em que se pretende a superação de velhas
metodologias de interpretação, com a superação da própria metodolo-
gia, a partir da compreensão de que interpretar é aplicar, e que o com-
preender vem antes da atribuição de sentido. É fundamental enfrentar
as Teorias da Argumentação para compreender se o contexto de todo o
esforço de superação hermenêutico encontra-se nelas presente, e de que
forma, sem que se possa simplesmente fazer um jogo de palavras em
que a “subsunção” é substituída pela “ponderação”, trocando apenas as
palavras para se manter confortável no grupo apático do senso comum.

2.4. Teóricos importantes da Argumentação Jurídica


Para argumentar é necessário, antes de tudo, inserir-se no con-
texto de um tema. Alguém argumenta porque pretende ou acredita em
algo. Assim, antes da argumentação vem a compreensão. Antes de argu-
mentar é necessário perguntar, ainda mais se a intenção é fazer crer em
uma determinada resposta. Ainal, o argumentar pressupõe o interesse
em defender alguma hipótese. Para tudo, a pergunta vem por primeiro,
presume-se a compreensão sobre o que se pretende convencer.
Por outro lado, percebe-se uma manipulação das consciências e
vontades no nosso dia a dia. Saber se comunicar bem sempre foi tam-

57
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

bém um sinônimo de boa educação e inteligência. A ilosoia é uma


espécie de preparação para a eloquência. Para se alcançar o domínio da
linguagem é necessário antes o domínio da história e das leis. É neces-
sário, antes de tudo, situar-se dentro da Teoria do Direito para que se
possa, com maior tranquilidade, movimentar-se em um determinado
campo teórico.
A ideia de que a solução jurídica não pode partir apenas da de-
dução lógica, mas de uma problematização global de argumentos, levou
alguns juristas a se familiarizarem com as regras e pressupostos da ar-
gumentação jurídica. Eles também irão invocar uma referência a juízos
de valor, a regras de argumentação, a argumentos jurídicos especíicos,
seja no quadro da interpretação da lei, da valoração dos precedentes ou
da dogmática.
Entre os teóricos contemporâneos, conhecidos também como
teóricos do pós-positivismo, estão Ronald Dworkin, Chaim Perelman,
heodor Viehweg e Robert Alexy, sustentando que o direito deve se de-
bruçar sobre os problemas e os casos empíricos particulares e não ex-
clusivamente sobre a regra jurídica, de modo subsuntivo, como antes se
enfatizava de diversas formas nos variados vieses de positivismo jurídi-
co. (ASENSI, 2010, p.11). Porém, como destaca Atienza (2003, p. 118),
enquanto a tópica de Vieweg e a nova retórica de Perelman fazem com
que tais autores se situem entre os que mostram que a concepção lógi-
co-dedutiva tem seus limites, e pretender reconstruir a argumentação
jurídica a partir dela é um equívoco – e por isso, devido a outras críticas,
analisadas a seguir, os dois não apresentariam uma teoria satisfatória de
argumentação jurídica.
Vieweg e Perelman seriam os precursores das atuais teorias, entre
as quais se destacam Dworkin e Robert Alexy. Dworkin teria uma teoria
ultrarracionalista do Direito, com sua tese da existência de uma única
resposta correta para cada caso; mas existem as teorias irracionalistas,
como a de Alf Ross, para quem as decisões jurídicas são essencialmente
arbitrárias, produto da vontade e não da razão (ATIENZA, 2003, p. 119).
Já as concepções como a de MacCormick e Alexy, ainda segundo
Atienza (2003, p. 160), não pretendem apenas elaborar uma teoria que
possa distinguir entre bons e maus argumentos (teoria normativa da ar-
gumentação jurídica), mas uma teoria que também penetre na estrutura
dos argumentos (teoria analítica) e incorpore elementos de tipo empíri-

58
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

co (teoria descritiva). De todo modo, o fato é que foi a insuiciência da


lógica formal e dedutiva que teria dado origem, a partir da década de
1950, às “teorias da argumentação jurídica” (ATIENZA, p. 211).
É importante lembrar que a solução dos problemas que envolvem
a aplicação do direito nem sempre poderá ser deduzida do relato da
norma, mas terá que ser construída indutivamente, tendo em conta fa-
tos, valores e escolhas (BARROSO, 2013, p. 365-373). Lembra, ainda, o
autor, que todos os participantes do processo apresentam argumentos e
a fundamentação é o requisito essencial da decisão judicial; e que as di-
ferentes teorias da argumentação jurídica têm por objetivo estruturar o
raciocínio jurídico, de modo que ele seja lógico e transparente, aumen-
tando a racionalidade do processo de aplicação do direito e permitindo
um maior controle da justiicação das decisões judiciais.
O que segue são abordagens ou resumos muito simpliicados das
concepções de alguns autores, que servem apenas para dar uma ideia
geral das teorias, no intuito de possibilitar o início de uma discussão em
sala de aula e a organização de pesquisas mais profundas, que devem
incluir, sobretudo, outros teóricos aqui não abordados.

2.4.1. Chaïm Perelman


Perelman teria publicado, em 1945, um estudo cético em relação
à possibilidade de se chegar a um conhecimento no âmbito da ética.
Porém, depois, vai buscar uma fundamentação, concluindo, em 1965,
que esses conhecimentos são possíveis ao examinar o conceito de Justiça
como objetivo de tais conhecimentos (LARENZ 1997, p. 205). Através
disso chega-se a uma deinição de justiça formal (BOBBIO, 1995, p. 32)
7
, segundo a qual os “seres da mesma categoria ontológica devem ser
tratados do mesmo modo”.
O argumentar pressupõe que há interesses diversos. De um audi-
tório, por exemplo, para o qual o que será dito depende de argumentos.
Aliás, Perelman & Olbrechts-Tyteka (2005, p. 23) já tinham advertido
que o cuidado com o auditório “transforma certos capítulos dos antigos

7 Daí a crítica de Norberto Bobbio referindo que Perelman apresenta uma deinição formal de
justiça, mas uma negação às concepções formalistas de ciência jurídica e interpretação judicial
. Daí porque fala (Bobbio) também de um contínuo retorno ligado ao conceito de forma, ao
formalismo jurídico, ligando à exigibilidade de se airmar a função estabilizadora do direito.
BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo jurídico. Fontamara: Barcelona, 2006. p.32-33.

59
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

tratados de retórica em verdadeiros estudos de psicologia”. Esse “audi-


tório” sobre o qual muito insistiu Perelman, pode ser também o próprio
sujeito em si (a deliberação consigo mesmo, como referiu PERELMAN
& OLBRECHTS-TYTEKA, 2005, p. 45), que visa convencer a si próprio,
e, aliás, considerando a psicanálise, visa evitar enganar a si próprio.
Segundo Larenz (1997, p. 207) para Perelman é inquestionável,
nesta altura, que os valores não são acessíveis ao conhecimento, mas
apenas à crença pessoal - e isso porque o valor não resulta de uma ne-
cessidade lógica e nem de uma universalidade conforme a experiência
- ele é arbitrário - e se todo valor é arbitrário não existe justiça absoluta,
perfeita, fundada na razão8.
Enim, sem descanso, Perelman pergunta como é que se funda-
mentam os valores e as normas e como é que se pode apreender concei-
tualmente a ideia de razão prática? É a partir da leitura de seu segundo
ensaio que se percebe que o princípio formal da justiça conduziria à
previsibilidade e à segurança, possibilitando o funcionamento coerente
e estável de uma ordem jurídica. Segundo Perelman, uma justiicação
lógica dos valores tem como ponto de partida a teoria da argumentação.
Tais argumentos seriam retirados de ações, crenças, valores, que são
aprovados num dado momento e que por isso deixam de ser discutidos.
Para Larenz (1997, p. 207-208), enim, o mérito de Perelman é o de ter
legitimado de novo a discussão do conceito de “justiça” com propósito
cientiicamente sério.
Perelman (1979, p. 137-139) ressalta, em estudo recente, que sua
conclusão em torno de uma justiça formal não o satisfez. Tal resposta
implicava em uma renúncia a qualquer ilosoia prática, e por isso não se
satisfez, pois como ele próprio diz: “Signiicava abandonar às emoções,
aos interesses e, no inal das contas, à violência, o controle de todos os
problemas relativos à ação humana, especialmente à ação coletiva, todos
aqueles relacionados tradicionalmente com a moral, o direito e a políti-
ca.” Para ir além das abordagens positivistas, recorreu à antiga dialética,
que, como arte da discussão, considerando o método apropriado à solu-

8 Cf. LARENZ “Se se transpuser isto na Jurisprudência, a conclusão só pode ser do teor de que
só existem resoluções “justas” enquanto elas se representarem como a aplicação não defeituosa das
normas do Direito positivo e dos valores que estão por detrás delas; não faz sentido questionar em
si a justiça destas normas e das valorações que lhe subjazem”. LARENZ, Karl. Metodologia da
ciência do direito. 3 ed. Traduzida da 6. ed. do original alemão por José Lamego. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1997. p. 205.

60
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

ção de problemas práticos, que concernem aos ins da ação, que envol-
vem valores, pois os raciocínios dialéticos e retóricos visam estabelecer
um acordo sobre os valores e sobre sua aplicação, quando são objetos de
controvérsia. Nesse sentido sobressai a noção de “acordo” desprezada
pelas ilosoias racionalistas e positivistas, para quem o que importava
era a “verdade” de uma proposição.
Assim, a retórica visa persuadir por meio do discurso, e para tan-
to Perelman considerará diversos tipos de auditório – nesse passo ino-
vando, pois Aristóteles analisara detidamente os diferentes tipos de au-
ditório, e pensando numa multidão reunida em praça pública salientou
que a tarefa da retórica é conquistar a adesão de um auditório não espe-
cializado e incapaz de seguir um raciocínio complicado (diversos pela
idade, fortuna) – ou seja, detém-se mais no auditório universal, sendo
que para este a razão utiliza argumentos convincentes que deveriam ser
aceitos por qualquer ser racional. Já a “nova retórica” considera que a
argumentação pode dirigir-se a auditórios diversos, não se limitando,
como fazia a retórica clássica, ao exame de técnicas do discurso público,
dirigindo-se a uma multidão não especializada. Mas se interessa tam-
bém pelo diálogo socrático, pela dialética, tal como concebida por Pla-
tão e por Aristóteles, como a arte de defender uma tese e de atacar a do
adversário numa controvérsia.
Perelman (1979, p. 159) ressalta que a noção, por exemplo, de
“lugar comum”, que faz parte de todas as teorias da argumentação e já
analisada por Aristóteles, tem um papel análogo ao dos axiomas em um
sistema formal – podem servir de ponto inicial justamente porque os
supomos comuns a todos os espíritos, ainda que o acordo sobre os “lu-
gares-comuns”, tanto quanto o acordo sobre fatos e valores, não garan-
te o acordo sobre sua aplicação concreta e conclusões. Eles constituem
uma escolha efetuada em meio a uma massa de dados igualmente dis-
poníveis.
O problema surge, adverte Perelman (1979, p. 159-170), quando a
adesão simultânea a vários valores ou regras redunda, em casos concre-
tos, em incompatibilidades. Tome-se, por exemplo, os valores da liber-
dade e da justiça, que podem inúmeras vezes conlitar. Para Perelman,
justamente daqui decorre a superioridade do pensamento jurídico sobre
o pensamento ilosóico, pois o direito é obrigado a considerar a solução
das diiculdades aplicadas ao caso concreto, e, por im, recomenda que

61
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

aqueles que se interessam pela ilosoia prática, que se inspirem na ma-


neira pela qual os juristas consideram tais problemas, ou seja, na busca
por soluções concretas, não se satisfazendo com princípios como im-
perativo categórico (agir de modo à própria ação tornar-se lei de uma
legislação universal), um princípio utilitarista (agir de modo a alcançar
a maior utilidade para um maior número), ou ainda um princípio de
responsabilidade civil (a ação danosa obriga o autor à reparação).
Por isso, Perelman (1993, p. 14) também se situa dentro da aná-
lise do paradigma hermenêutico, mostrando que a razão tem aptidão
para lidar com valores, desenvolvendo uma teoria da argumentação que
permite uma maior compreensão da razão. A busca por fundamentos
suicientes, relativos a um espírito ou sociedade é ilosoicamente essen-
cial para todos que, embora recusando o valor de critério absoluto, não
se contentem com um ceticismo negativo e estéril.
Foi assim, por exemplo, que para punir os crimes nazistas, diante
da própria reação universal, os estados aliados foram levados a instruir
o processo de Nuremberg interpretando o princípio nullum crimen sine
lege em sentido não positivista, mas dentro de um sistema de consciên-
cia de todos os homens civilizados: “A convicção de que era impossível
deixar impunes aqueles crimes horríveis, mas que escapavam a um sis-
tema de direito positivo, prevaleceu sobre a concepção positivista do
fundamento do direito” (PERELMAN, 1996, p. 394-395).
Nesse sentido, a importância da obra de Perelman está em ter “rea-
bilitado a razão prática”, ou seja, reintroduziu “um tipo de racionalidade
na discussão de questões concernentes à moral, ao direito, à política”
(ATIENZA, 2003, p. 77), dentro do contexto do terror advindo do pós-
guerra, pela necessidade de reabilitar princípios gerais do direito, ou seja,
conciliar a segurança jurídica e a equidade com a solução do caso que
não se resuma na aplicação fria da lei, mas que seja equitativa, razoável,
aceitável. À critica que Atienza lança a Perelman (2003, p. 78), de que “o
pecado capital de Perelman é a falta de clareza de praticamente todos os
conceitos centrais da sua concepção retórica”, pode-se contrapor dizendo
que, de todo modo, a própria concepção de “noção confusa” parece cons-
tituir um espaço de liberdade argumentativa na sua teoria.
Teria faltado a Perelman levar em conta, além do receptor univer-
sal, também a instituição, como interlocutor direto (WARAT, 1995, p.
93): “Em nossa sociedade, na maioria das vezes, o convencimento não é

62
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

gerado pela instituição que, ao voltar a enunciá-lo, o redeine, o adapta


e permite a possibilidade de convencimento”.
Em um sentido praticamente denunciante, Warat também des-
taca que há uma tendência dos indivíduos a se adequarem psicologica-
mente às relações de dominação, mais pelos efeitos ideológicos da culpa
jurídica do que pelo medo da sanção que pode ser imposta. E assim o
direito estaria cumprindo “funções do ‘superego” (WARAT, 1994, p. 26).

2.4.2. Theodor Viehweg


Enquanto uma perspectiva meramente teórica não basta para a
concreta realização do Direito, assim como não é suiciente uma pers-
pectiva apenas funcional, surge a necessidade de uma razão prática, o
que será abordado por hedor Viehweg, através de uma racionalidade
tópico-retórica, ou como icou conhecida, “jurisprudência problemática”,
por concentrar-se antes nos problemas ou tópicos e depois no sistema.
Viehweg (1984, p. 56) apresenta a seguinte questão: se o acento
for sobre o sistema, se for considerado que só existe um sistema em que
se poderia agrupar todos os problemas em solúveis e insolúveis, esses
poderiam ser desejados como simples problemas aparentes, pois uma
prova em contrário só seria possível a partir de outro sistema distinto.
Por outro lado, se a tônica concentrar-se no problema, é ele (problema)
que buscará um sistema que sirva de ajuda para encontrar a solução.9
Como a deinição de “tópico” é muito ampla, a associação que os
autores fazem em geral é muito pessoal (VIEHWEG, 1984, p. 54). Mas,
quando alguém pensa no problema inserindo-o dentro de um sistema,
há um benefício, no qual o problema atua como um guia. E o que é um
“problema”? Viehweg o deine como “toda questão que, aparentemente,
permite mais de uma resposta e que requer, necessariamente, um enten-
dimento preliminar, e de acordo com o qual se leva em conta o aspecto
que se deve levar a sério e pelo qual hay que buscar una única respuesta
como solución (...) ... al problema”. A proposta é que, por meio de uma for-
mulação adequada, se introduzam uma série de deduções, mais ou menos

9 Para VIEHWEG “El planteamiento de un problema opera una selección de sistema, y conduce
usualmente a una pluralidad de sistemas cuya concibilidad dentro de un sistema omnicomprensivo
no se demuestra”. VIEHWEG, heodor. Topica y jurisprudencia. Tradução de Luis Díez-Picazo
Ponce de León. Madrid: Taurus,1984. p. 56.

63
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

explícitas e mais ou menos extensas, através da qual se obtém uma contes-


tação – e se a esta série de deduções chamarmos de sistema, podemos dizer
com “una fórmula más breve, que, para encontrar una solución, el problema
se inordena dentro de un sistema” (VIEHWEG, 1984, p. 54).
E é assim que, com Viehweg, que vamos considerar a possibili-
dade de se buscar um processo que permita a solução de casos a partir
dos dados materiais deles próprios, ainda que sem apoio de uma norma
legal. Cabe, assim, abordar o problema a partir de inúmeros ângulos,
confrontando-se pontos de vista obtidos a partir da lei ou de natureza
extrajurídica, desde que possam apresentar alguma solução direcionada
à justiça e que tragam um consenso entre os intervenientes - é chama-
do de processo de “tratamento circular”, para o qual foi recomendada
a tópica. É um pensamento que se mantém nos limites traçados pelo
problema, insistindo e regressando no problema, sem ir ao sistema, pois
refere-se a uma “pluralidade de sistemas, sem demonstrar sua compati-
bilidade a partir de um sistema total”. Viehweg (1984, p. 61) vai referir
que existem outros tópicos além daqueles universalmente aplicáveis tra-
tados por Aristóteles, Cícero e outros seguidores.
Ainal, o procedimento relativo à tópica pode ser concebido em
algum sentido como ciência, ou seria algo distinto? Lembrando que
Aristóteles havia estabelecido a diferença entre tecné (hábito de criar
por relexão racional) e epistemé (hábito de demonstrar a partir das cau-
sas primárias e últimas) – demonstra que entre os juristas romanos não
houve nenhuma discussão de teoria da ciência nesse sentido (VIEH-
WEG, 1984, p. 87-88).
Por im, conclui Viehweg que, ainda que se quiséssemos aplicar
a distinção aristotélica entre ciência e técnica, teríamos que situar o ius
civile dentro da tecné. A jurisprudência não se distingue, segundo o au-
tor, por lo menos en su estructura fundamental, da sofística, retórica e da
aporética ilosóica, de modo que o método cientíico procede da ilo-
soia, ainda que não na ilosoia sistemática. Assim, ainda que a tópica
tenha “prestado grandes serviços à jurisprudência”, esta não pode ser
convertida em método, pois só pode ser considerado “método” aquilo
que é comprovável por meio de uma lógica rigorosa, ligando-se a um
sistema dedutivo. A jurisprudência reduz-se, então, a um “estilo” que
como qualquer estilo tem mucho de arbitrio amorfo y muy poco de com-

64
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

probabilidad rigurosa. O autêntico método, entretanto, só é encontrado


em um sistema dedutivo (VIEHWEG, 1984, p. 115, 121-122, 141).
Como destaca Gadamer (1996, p. 368), o direito resumir-se-ia
em uma natureza tópica, na qual a Ciência do Direito é vista como um
processo de discussão de problemas que constituiria uma forma segura
de “achamento” da solução devido ao apoio de uma teoria da praxe. A
jurisprudência problemática tem base, assim, na tópica, e a partir disso
reavivou a retórica e o repensar da própria lógica jurídica, propondo
soluções para integração de lacunas, especialmente insubordináveis à
integração exclusiva. 10
Pontua muito bem Karl Larenz (1997, p. 203-204) que a jurispru-
dência problemática pôde assim readquirir brilho, a partir do enfoque
centrado no direito como uma técnica de resolução de problemas. Por
outro lado, Viehweg coloca em dúvida a estrutura sistemática do direi-
to, especialmente enquanto sistema axiomático-dedutivo. O mérito de
Viehweg, entretanto, foi apresentar a busca das verdades jurídicas em
plano histórico, ao mesmo tempo em que clariicou as “tarefas práti-
co-morais e dos limites da construção conceitual e sistemática do direito”
(WIEACKER, p. 690).
É certo, diz Larenz (1997, p. 203-204), que mesmo quando se
argumenta de modo proximamente tópico, é obrigação da sentença
fundamentar a decisão dentro de um processo intelectual ordenado, de
modo que cada argumento tenha seu lugar dentro de uma inferência
silogística: “o apelo à tópica seria de reduzida valia, se não pudesse ofe-
recer mais que isso” 11.
Nesse aspecto é importante lembrarmos a crítica de Canaris
(1989, p. 251), no sentido de que a função dos tópicos, gerais ou espe-
ciais, é servir a uma discussão de problemas. Apesar de Viehweg aceitar
expressamente a ligação entre tópica e pensamento problemático, nos
termos postos por Aristóteles, é de salientar-se que em Aristóteles “a
tópica reconduz-se às chamadas conclusões ‘dialéticas’; e assim, como

10 Vieheweg iniciou una nueva relexión sobre la peculiaridad del conocimiento jurídico y se há
reivindicado para ello el antiguo concepto retórico de la tópica. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y
método: fundamentos de una hermenéutica ilosóica. Tradução de Ana Agud Aparicio y Rafael de
Agapito. 6. ed. Sígueme: Salamanca, 1996. p.368. v.II.
11 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed, Traduzida da 6. ed. do original
alemão por José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 203-204.

65
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

conclusões dialéticas, operam sobre premissas que não podem ser com-
provadas, apenas mostradas ou inteligidas, difere-se das conclusões
apodíticas, “que se podem obter a partir de postulados cuja veracidade
é demonstrável”.

2.4.3. Ronald Dworkin


Dworkin também vai acompanhar a viragem ontológica da her-
menêutica, referindo-se às questões da argumentação prática geral, par-
tindo de um “ponto de vista hermenêutico interno”, com a jurisprudên-
cia como mediação (sem diferenciar conhecimento e aceitação), como
refere Lamego (1990, p. 165).
Essa ideia de direito como uma espécie de regra pressupõe a ideia
de direito como instituição social (because only rules enacted or develo-
ped within such an institution can be laws). Para Dworkin, a controvérsia
situa-se para além das proposições e das regras – quando juízes e advo-
gados dizem que há contradição no Direito, eles não estão apelando às
regras, mas aos princípios: controversial propositions of law are therefore
an embarrassment to the positivist. Assim, surge a doutrina da “discricio-
nariedade”. O juiz teria dois poderes relevantes: além do poder de julgar
qual das proposições é verdadeira, também a discrição para decidir en-
tre uma e outra parte, se ele pensa que a política ou justiça assim exige,
apesar do fato de aquela parte não ter direito legal para vencer12.
Para fazer um ataque geral ao positivismo, Dworkin toma Hart
como exemplo e organiza sua estratégia em torno do fato de que, quan-
do advogados discutem sobre direitos e obrigações legais, em especial
nos chamados “hard cases”, eles costumam chamar a atenção para certos
standards que não funcionam como normas, mas operam como prin-
cípios. O positivismo seria um modelo de sistema de e para regras, e
força o esquecimento quanto a outros elementos, como princípios, que
na verdade não se confundem com as regras13.

12 DWORKIN, Ronald M. Is law a system of rules? In he philosophy of law – Oxford readings


in Philosophy. 1977, p. 6-7.
13 Dworkin não reduz os elementos que se diferenciam das normas, a princípios, mas chama
genericamente de “princípios” o que é princípio e o que é política, moral, etc. Política é aquele tipo
de “standard” que ixa uma meta a ser alcançada, geralmente algum incremento em economia,
política ou sociológica. Já o “princípio” é o elemento que deve ser observado porque se relaciona a
uma questão de justiça ou alguma outra dimensão da moralidade. Ibid., p. 42-43.

66
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

Assim, explica que a diferença entre princípios e regras é uma


diferença lógica. As regras são aplicáveis em todo ou qualquer caso. Os
princípios possuem outra dimensão que falta às regras, uma dimensão
de peso ou importância. De todo modo, se o princípio pode ter peso
maior do que as regras, conlito entre princípios poderão ser igualmente
frequentes. Tem sentido, então, perguntar acerca da importância de cer-
to princípio, enquanto que as regras não possuem esta dimensão. Dwor-
kin chama a atenção para o fato de que, uma vez que os sistemas passam
a identiicar os diferentes elementos e diferenciar princípios de regras,
professores os ensinam, livros os citam, e historiadores os celebram. En-
tretanto, eles aparecem mais enfaticamente na prática, com mais peso,
em especial, nos hard cases14.
Dworkin também deve ser lembrado por sua especial aborda-
gem ao signiicado de “discricionariedade”. Os positivistas, segundo
ele, usam o termo apenas em um sentido fraco, apenas para signiicar
que, por alguma razão, um dado elemento não pode ser aplicado me-
canicamente, mas requer um juízo. Às vezes, o sentido fraco liga-se à
discricionariedade delegada a um oicial, com autoridade para tomar
uma decisão que não poderá ser revertida por nenhum outro oicial
(por exemplo, escolher os cinco mais eicientes para fazer certa tarefa).
Mas a discretion também é usada em um sentido “forte”. Os positivistas
usam a discricionariedade apenas no sentido fraco mencionado – para
signiicar que os juízes, algumas vezes, exercem a discricionariedade na
aplicação de standards legais (como no caso em que Herbert Hart cha-
ma a atenção para o fato de que algumas regras do direito são vagas, “a
textura aberta”)15.
Dworkin propõe que se examine a doutrina da discricionariedade
no sentido forte. Um positivista poderá dizer que princípios não podem
ser obrigatórios – mas isso é um erro, não há nada que impeça tal obri-
gatoriedade. A questão é por que este tipo de obrigação é diferente da
obrigação que regras impõem e por que nos leva a dizer que princípios
e política não são partes do direito, mas apenas standards extralegais ou
supra-legais. Além disso, o positivista pode argumentar que princípios
não podem valer como direito por causa de sua autoridade, e mesmo
assim eles têm mais peso, ocorrendo uma controvérsia congênita. A ver-

14 Ibid.,p. 47-49.
15 Ibid.,p. 51-55.

67
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

dade é que, em geral, não podemos demonstrar a autoridade ou o peso


de um princípio particular, como podemos demonstrar a validade de
uma regra, localizando-a em um código. Entretanto, apelamos para a
prática e outros princípios nos quais a história judicial e as implicações
legislativas encontram-se ao lado de apelos práticos da comunidade16.
Os princípios, ao inal, são tratados como elementos obrigatórios,
controlando as decisões de direito e as obrigações. Se a discricionariedade
pudesse ser usada só no sentido fraco, do positivismo, por que haveria
tantos advogados abraçando-os? Há, de todo modo, uma tendência natu-
ral dos advogados ingleses de pensar que o direito é uma coleção ou siste-
ma de regras. Roscou Poud diagnosticou tal tendência, lembra Dworkin,
entendendo que ela devia-se pelo fato de que os ingleses usam a mesma
palavra para “direito” e regras, enquanto outras línguas usam duas, como
loi (lei) e droit (direito), ou Gesetz e Recht. Assim, para quem fala a língua
inglesa, a expressão law, certamente, sugere rule. Mas, para Dworkin, a
principal razão para associar direito com regras é mais profunda e reside
no fato de que a educação legal foi por longo tempo considerada relativa
àquelas regras que formam o direito estabelecido nos códigos17.
Tratando princípios como direito nós deveremos rejeitar a dou-
trina positivista segundo a qual o direito da comunidade é distinto de
outros elementos sociais. Esse é o primeiro dogma do positivismo. O
segundo dogma, sobre a doutrina da discricionariedade, também con-
cluímos que devemos rejeitar. E quanto ao terceiro dogma? Esta teoria
defende que uma obrigação legal existe quando - e somente se - uma
regra estabelecida impõe tal obrigação. Assim, em hard cases em que
tal regra não pode ser encontrada, não há obrigação legal, até que uma
nova regra seja encontrada – o juiz poderá aplicar a nova regra às partes,
mas é extralegal, não o dever decorrente de uma obrigação existente.

16 here is no litmus paper for testing the soudness of such case – it is a matter of judgement, and
reasonable men may disagree. Ibid., p. 56-57.
17 E esclarece: Se o advogado pensa no direito como um sistema de regras e reconhece que juízes
alteram velhas regras e introduzem novas, ele irá naturalmente para a teoria da discricionariedade
judicial no sentido forte. Há ainda outra consequência dessa inicial aceitação de que o direito é
um sistema de regras – quando positivistas recorrem a princípios e política eles os tratam como se
fossem critérios ou elementos do direito que deveriam ser regras e os leem como elementos que
estão tentando tornar-se regras, acabando por concluir que tais princípios não são regras válidas
(…wich is true, because they are not rules at all). E também concluem que se tratam de elementos
“extralegais” ou “supra-positivos” que cada juiz seleciona de acordo com a vontade própria – o que
é falso, salienta o autor. Ibid., p. 59-60).

68
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

Tratando os princípios como direito, chegamos à possibilidade de que


as obrigações legais possam ser impostas por princípios, tanto quanto
são impostas por regras18.
Castanheira Neves19 destaca que contra o model of rules de Hart,
que seria um “sistema limitado e lacunoso de normas positivas”, com
base numa positivo-sociológica rule of recognition, Dworkin propõe o
model of principles – ou seja, um sistema global de princípios (e direitos)
ético-jurídicos em que sempre se haveria de procurar o fundamento para
uma única solução válida (correta e justa), com exclusão assim da ‘discre-
tion’ integrativa admitida pelos positivistas do ‘model of rules’. Para Neves,
entretanto, este entendimento ainda não nos coloca perante a decisiva
característica da racionalidade jurídica, em especial porque o pensamen-
to jurídico não é apenas “compreensivo”, ele tem natureza, sobretudo, na
prática-decisória. A intenção de tal pensamento cumpre-se na doutrina
de um “justo decidir”, e não de um mero “correto compreender”.
Em resumo, Dworkin elaborou, inicialmente, uma forte crítica a
um dos maiores expoentes do positivismo, Herbert Hart, rejeitando a
imagem de um direito indeterminado ou incompleto e de um juiz que,
no exercício de um poder discricionário, fosse criador do direito. Para
ele, os confrontos normativos envolvendo princípios constitucionais
são denominados de “hard cases”, propondo para estes outra solução.
Sustenta que o direito não se restringe a um conjunto de regras, mas de
regras e princípios, e estes fundamentam as regras. Para Dworkin, em
especial nos “hard cases”, o intérprete não consegue trabalhar apenas
com regras, e deve valer-se da aplicação de princípios.
Para o autor, ainda, os princípios são antes critérios para aplica-
ção das regras. As regras têm a função de trazer segurança ao sistema,

18 Ibid., pp. 64-65.


19 Além disso, não se busca a coerente integração compreensiva, mas sim a justeza decisória, e
a compreensão dos fundamentos numa pressuposição hermenêutica, ainda que aliada à situação
hermenêutica, não basta para decidir, pois a mediação judicativa, com sua dimensão problemática
e de autonomia constitutiva interfere nos fundamentos e critérios da decisão concreta. E além disso,
a intencionalidade normativa da decisão jurídica opõe-se ao caráter da applicatio ou concretização
hermenêutica. Finalmente, trata-se não simplesmente de compreender ou integrar o caso no
sistema global de validade, mas de decidir o mérito normativo do problema prático-concreto na
perspectiva da validade dogmática objetivada, quer dizer, não é só uma pragmática reintegrante,
mas uma justeza decisória – e por estes caracteres praxístico, constitutivo, normativo e judicativo a
decisão não é um ato exclusivamente hermenêutico. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica
- problemas fundamentais. Coimbra Editora: Coimbra, 1993. p. 76-77.

69
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

enquanto os princípios tem a função de fundamentar a aplicação das


regras. Um sistema só de princípios poderia gerar arbitrariedades. Um
sistema só de regras poderia icar engessado e gerar injustiças.
Para enfrentar o conlito entre normas fundamentais recorre-se
às regras de ponderação dos princípios. As críticas levantam dúvidas
sobre a segurança jurídica que tal regra oferece. Naturalmente, um su-
porte valorativo só pode trazer controvérsias e oposições. O exercício
de ponderação é remetido ao “aplicador-intérprete”, que faz uma análise
fática do caso e dos princípios, oferecendo uma solução mais adequa-
da com o quadro social traçado por quem participa do litígio. Ou seja,
os princípios vão decorrer do próprio caso. E o aplicador não pode se
afastar de sua situação sociocultural, argumentando neutralidade ou
imparcialidade.
Assim, o “aplicador-intérprete” deverá valer-se das seguintes re-
gras de ponderação: Regra da adequação, a que considera adequado o
meio escolhido para o im almejado. O limite que se impõe ao exercício
de um direito deve possibilitar a efetivação do outro em conlito. Evita-
se a medida que não viabilize a concreção de um direito contraposto.
Regra da necessidade, que visa a que o detentor de direitos sofra a me-
nor desvantagem possível. Regra da proporcionalidade, que analisa a
relação custo-benefício da medida, que deve propiciar benefícios supe-
riores ao direito tutelado do que os ônus impostos ao direito restringido.
Ovídio Araújo Baptista da Silva elaborou uma crítica bastante
pertinente às teorias de Dworkin. Discordou principalmente da sua
concepção de direito como uma entidade capaz de ser teorizada sem
o concurso dos “fatos”, o que manteve Dworkin em um compromisso
com o iluminismo, que separou o “fato” do “direito”. Ovídio Baptista da
Silva também criticou a ideia de “hard cases”, como se os casos “fáceis”
não tivessem sua parcela de controvérsia (questões de fato não interes-
savam a Dworkin, e não envolviam “controvérsias”). Além disso, teceu
críticas à negação de Dworkin de que o juiz possa deter uma parcela de
discricionariedade, ainda que mínima; e, inalmente, criticou também a
alegação de que apenas o positivismo faz uso desse instrumento cogni-
tivo, produtor de arbitrariedade (SILVA, 2009, p. 20-21).20 Ora, na razão

20 Muitos autores multiplicaram tal concepção, detalhando tal entendimento, que na realidade,
efetivamente, mantém um pé no paradigma tradicional, e enquanto outro já busca uma mudança,
como pode ser percebido em Barroso, ao explicar que a interpretação jurídica lida com casos fáceis

70
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

de todas as suas críticas está o esforço em convencer seus leitores de que


o Direito é uma ciência compreensiva e não explicativa.
Sendo uma ciência compreensiva, natural que seja necessário dar
o devido valor à linguagem e à argumentação jurídica. Daí também por-
que, historicamente, a argumentação jurídica volta a ter seu lugar na
prática jurídica, uma vez que vão sendo superados os estreitos limites
do positivismo legalista, formal ou exegético, e inicia-se uma época em
que a hermenêutica assume papel preponderante na busca da justiça, na
busca da melhor resposta a um determinado caso concreto.

2.4.4. Robert Alexy


Como dissemos, a virada hermenêutica aconteceu principalmen-
te a partir da década de 1950, na Alemanha. A partir dela, a norma jurí-
dica estará vinculada a valores democráticos, e em especial, da dignida-
de humana. Robert Alexy também está entre os principais pensadores
da virada hermenêutica.
A teoria argumentativa de Robert Alexy liga-se ao estatuto “re-
lexivo-reconstrutivo” dos projetos de Apel e Habermas, entendendo
que as argumentações jurídicas, como um caso particular de discurso
prático geral, são mais explícitas nos seus pressupostos do que as assun-
ções hermenêuticas de Dworkin. Alexy, com sua teoria sobre a ideia de
uma “comunidade de comunicação” (da proposta habermasiana), isenta
de dominação, funcionaria como pressuposto normativo e padrão de
crítica dos discursos reais. Com isso, na mesma ideia de “comunida-
de de discurso” funda-se a noção normativa de democracia e a teoria
normativa da argumentação jurídica, e assim abarca-se simultaneamen-
te teorias da moral, do direito e da política, refazendo-se a unidade da
philosophia practica, dissolvida com a modernidade e a emergência do
paradigma da razão teorética (LAMEGO, 1990, p. 133 e 163).

e com casos difíceis. Os casos fáceis podem ser decididos com base na lógica formal, dedutiva,
aplicando-se a norma pertinente aos fatos, mediante subsunção. Nos casos difíceis, porém, a
solução precisa ser construída tendo em conta elementos que não estão integralmente contidos nos
enunciados normativos aplicáveis. Valorações morais e políticas precisarão integrar o itinerário
lógico da produção da decisão. O autor restringe esse ambiente como o típico da argumentação
jurídica. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 265-373.

71
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

Logo no início de sua obra Alexy (2011, p. 24) indica que em


quase todos os escritos de metodologia (e aí cita Larenz, Müller, Kriele,
Engisch e Esser) é destacado que a Ciência do Direito e a jurisprudência
não podem prescindir de valorações. Entretanto, seriam realizadas antes
constatações e poucas soluções para os problemas. Por isso o problema
central de sua obra consistiria em responder “onde e em que medida são
necessárias valorações”, como atuam essas valorações nos argumentos
qualiicados como “especiicamente jurídicos” e ainda como fundamen-
tar ou justiicar racionalmente tais valorações. E isso é importante para
o caráter cientíico da jurisprudência, além de indicar legitimidade na
regulação dos conlitos sociais.
Alexy não poupou críticas à teoria de Perelman. Atacou a obscu-
ridade do conceito de “auditório universal” e a renúncia aos instrumen-
tos analíticos modernos na análise da estrutura da argumentação. Mas
também destacou a importância da orientação da argumentação racio-
nal de acordo com a ideia de universalidade, ao mesmo tempo, ao esta-
do social e histórico das concepções e atitudes. Isso o permitiu concluir
que muitas vezes não se pode chegar a um único resultado como sendo
o correto, de modo deinitivo, obrigando o intérprete a “uma abertura à
crítica e à tolerância (ALEXY, 2011, p. 172-173).
Alexy (2011, p. 209-211) situa o discurso jurídico como um caso
especial do discurso prático geral. Distingue as discussões da Ciência do
Direito (dogmática) envolvendo as deliberações dos juízes, debates nos
tribunais, tratamento de questões jurídicas nos órgãos legislativos etc., de
questões entre advogados, entre estudantes e entre os meios de comuni-
cação; sendo que no discurso jurídico se coloca à pretensão de correção.
Ou seja, no discurso jurídico há discussão de questões práticas,
há uma pretensão de correção (como a pretensão à justiça, seria uma
pretensão de correção). Isso se faz dentro de certas condições, ou seja, o
discurso jurídico pode ser fundamentado racionalmente na moldura de
um ordenamento vigente (ATIENZA, 2003, p. 172): o discurso jurídico
alia às regras e formas do discurso prático geral, e pelas regras e práticas
do discurso jurídico, formas estas que dizem respeito à sujeição à lei, aos
precedentes judiciais e à dogmática.
Alexy (2011, p. 250) também vai referir que dogmática tem três
tarefas: a análise lógica dos conceitos jurídicos, a recondução dessa aná-
lise a um sistema, e a aplicação dos resultados desta análise na funda-

72
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

mentação das decisões jurídicas. A crítica a esse sistema é que os meios


de análise lógica e da dedução lógica não podem alcançar novos conteú-
dos normativos. Os discursos constituem um conjunto de ações interco-
nectadas, nos quais se comprovam a verdade ou correção das proposi-
ções. Daí porque discorre sobre a necessidade do discurso jurídico, em
virtude da natureza do discurso prático geral:
A necessidade do discurso jurídico surge da debilidade das regras e
formas do discurso prático geral, que deinem um procedimento de
decisão que em numerosos casos não leva a nenhum resultado e que, se
leva a um resultado, não garante nenhuma segurança deinitiva. Há três
razões para esta debilidade: (1) as regras do discurso não prescrevem
de que premissas normativas devem partir os participantes no discurso.
O ponto de partida do discurso é constituído pelas convicções entre
si. Visto que (2) nem todas as etapas da argumentação estão ixadas e
(3) algumas regras do discurso só podem ser cumpridas de maneira
aproximada, há sempre a possibilidade de que não se alcance nenhum
acordo. Evidentemente, as regras do discurso exigem alguns enunciados
normativos como discursivamente necessários (ALEXY. 2011, p. 279).

Alexy (2011, p. 30) faz questão de deixar claro que as ideias fun-
damentais de sua investigação pautam-se pelas discussões éticas da Fi-
losoia da Linguagem contemporânea e da Teoria da Argumentação,
que é uma atividade linguística que trata da correção dos enunciados
normativos, como “discurso prático” (2011, p. 251). Assim, Claudia To-
ledo, apresentando a edição brasileira, destaca que Alexy não se inte-
ressa pela questão da materialidade ou da semântica do discurso, mas
pela pergunta, sob o ponto de vista procedimental, “de como pode ser
o discurso prático e especiicamente o jurídico fundamentado racional-
mente, buscando-se a correção de seus enunciados regulativos”.21
As principais críticas à teoria de Alexy situam-se sobre sua teoria
do discurso em si, colocando em dúvida a utilidade prática da sua teo-
ria, e sobre a tese de que a argumentação jurídica seria apenas um caso
especial do discurso prático geral, como ele mesmo destaca no posfácio

21 Apenas adiante, com a posterior obra “Teoria dos direitos fundamentais” é que ele vai conferir
alguma materialidade ao discurso jurídico. TOLEDO, Claudia. Apresentação à edição brasileira da
obra de ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como
teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro:
Forense, 2011. p. 3.

73
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

de seu livro (ALEXY, 2003, p. 295). À acusação de concepção procedi-


mental de correção prática, Alexy argumenta que a racionalidade do
discurso se deine por meio da observação das regras do discurso, e se
elas permitem garantir a bondade dos argumentos. Se não existisse uma
relação necessária entre as regras do discurso e a bondade das razões,
o procedimento discursivo poderia revelar somente uma forma de in-
luenciar e manipular psiquicamente.
Às críticas elaboradas por Tugendaht são no sentido de que todo
fundamentar não é essencialmente comunicativo, pois há casos em que
um indivíduo desenvolve um monólogo consigo mesmo. Contra isso
Alexy (2011, p. 300) procura destacar que a teoria da argumentação,
como teoria da fundamentação de enunciados morais, não desempenha
nenhum papel; ela tem por função fazer referência nos enunciados ao
que está fundamentado, e por isso deve-se cuidar, pois não se tem por
objeto passar, na teoria do discurso, de uma teoria da argumentação
para uma teoria da decisão.
Conforme destaca Larenz (1997, p. 179-181) há diferença entre
metodologia e teoria da argumentação: naquela há um processo de pes-
quisa juscientíica, de um parecer ou fundamentação de um julgamento,
e não de um “argumento mais forte”. Assim, por exemplo, para Alexy, o
enunciado normativo que se airma só pode ser racionalmente funda-
mentado nos quadros da ordem jurídica vigente, e são os fundamentos
racionais que deverão decidir qual o peso a ser atribuído a cada caso e a
cada tipo de argumento particular.
Para Atienza (2003, p. 203), o objetivo fundamental da teoria da
argumentação de Alexy “não parece ser uma análise ou descrição das
decisões jurídicas, mas a justiicação de tais processos de justiicação”
e, enim, ele não manteve uma clareza na distinção entre descrição e
prescrição.
Alexy também vai diferenciar as regras de princípios, entendendo
que as regras normalmente exigem um cumprimento pleno, ou seja, ou
são cumpridas ou descumpridas, tendo como característica a subsun-
ção. Já os princípios, são as normas que ordenam a realização de algo
maior, são mandados de otimização, podendo ser cumpridos em diver-
sos graus, e por isso, dependentes da ponderação para sua aplicabilida-
de, ao contrário da subsunção das regras.

74
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

O modelo proposto por Alexy é um modelo em três níveis: das


regras, dos princípios e dos procedimentos; não sendo possível alcançar
sempre uma única resposta correta para cada caso, mas é o que, segundo
Atienza (2003, p. 182), o leva “a um maior grau de racionalidade prática
e é também o modelo de racionalidade incorporado no direito moder-
no, em particular, no de um Estado democrático e constitucional”.
Para Atienza, todas as teorias tratadas são insuicientes, basica-
mente porque têm um “interesse limitado para o teórico e o prático do
Direito, na medida em que são insuicientemente críticas com relação
ao Direito positivo” (ATIENZA, 2003, p. 212). Além disso, a construção
de uma teoria da argumentação jurídica deveria levar em conta a argu-
mentação sobre fatos, enquanto se mantém basicamente em questões de
âmbito normativo. Deveria existir uma aproximação maior com outras
teorias argumentativas – não jurídicas – pois assim existiria um maior
contato com a teoria moral ou a “teoria do direito”, e também com a
sociologia. Além disso, o autor vê que a teoria da argumentação deve
envolver também a produção do direito e não apenas a interpretação e
a aplicação do direito.
Por tudo isso, Alexy se situa no marco da ilosoia da linguagem,
propondo que a ponderação de princípios seja um mecanismo possível
para solução de casos difíceis. Para ele, o choque entre valores constitu-
cionais vai exigir do aplicador do direito uma postura hermenêutica que
supere os limites determinados pela ilosoia racionalista da moderni-
dade, em especial, pelo positivismo jurídico.
Enim, a argumentação jurídica é um instrumental importante
para a própria descoberta do Direito – que muitas vezes está velado ou
insiste em permanecer obscuro por conta também de técnicas argu-
mentativas.

2.5. Argumentação e hermenêutica discursiva: sugestão


de exercícios
É importante lembrar que as diferentes “hermenêuticas” se de-
senvolveram no decorrer do tempo. A hermenêutica tradicional vincu-
la-se ao racionalismo ilosóico, envolve a lógica das proposições nor-
mativas, compreendidas por meio de silogismo jurídico. Tem vínculo
com o racionalismo cartesiano e foi reavivada pelo positivismo cien-

75
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

tíico. A partir da hermenêutica tradicional, a justiicação das decisões


limita-se a uma análise exclusivamente interna, ou seja, a coerência da
argumentação e a fundamentação são encontradas exclusivamente den-
tro de premissas jurídicas normativas.
Com a evolução da teoria do direito, em especial após os horrores
da Segunda Guerra Mundial, o silogismo frio e abstrato teve que dar
lugar a um argumentar que respondesse efetivamente as questões que
envolviam valores e princípios constitucionais, um desaio que a silogís-
tica formal não poderia dar conta.
A mudança, como vimos, tem relação com a maneira como o
próprio conceito de “verdade” é abordado. Se antes o saber racional era
construído com critérios objetivos, e a verdade era vista como repro-
dução da realidade, com o tempo foi possível perceber que a própria
ciência não era tão neutra quanto pensavam os próprios cientistas, o
que levou ao descrédito a própria possibilidade de criação de um direito
“neutro”. 22 A possibilidade da superação de um direito formal ocorreu
a partir do giro linguístico, pois a verdade e a dimensão do real passam
a ser conhecidos a partir da linguagem, e não a partir de uma lógica
silogística.
A hermenêutica discursiva surge em meados do século XX, e
buscará apoio em uma justiicação externa, pois os juristas passam a
se preocupar em adotar em casos concretos princípios constitucionais;
passam a buscar soluções teóricas para os casos em que existem premis-
sas conlitantes, procurando assim desenvolver a possibilidade de justi-
icativas racionais para a escolha de um deles. A norma jurídica passará
a ter vínculo com valores democráticos e, em especial, com a dignidade
humana.
Os exemplos de conlitos são muitos, mas podemos indicar aqui,
dado os limites deste capítulo, o princípio da proteção ao autor e o prin-
cípio de acesso à informação ou à cultura. Outros princípios que costu-
mam aparecer com frequência em “colisão” são o princípio da liberdade
de expressão e o princípio da privacidade. Uma sugestão de exercício é a
pesquisa sobre casos em que há a necessidade de aplicação de um prin-
cípio constitucional em detrimento de outro, explicitando-se as razões

22 Ver a respeito em KRETSCHMANN, Ângela. História crítica do sistema jurídico: da


prudência antiga à ciência moderna. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

76
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

de sua aplicação e indicando se a fundamentação e a justiicação podem


ter alguma relação com alguma teoria da argumentação aqui expostas.
Nesse caso, como visto em Alexy, a ponderação de princípios é
um mecanismo possível para a solução de casos difíceis, e o choque en-
tre valores constitucionais exige do aplicador do direito uma postura
hermenêutica superadora da ilosoia racionalista. No desenvolvimento
de sua teoria, o autor determina que é necessário considerar as con-
dições fáticas e jurídicas sobre as quais um princípio pode preceder o
outro, não existindo prevalência absoluta de um princípio sobre outro.
Sugere, também, cuidado com a necessidade, a adequação e, caso nem
uma, nem outra, possibilite o balanceamento dos interesses em conlito,
sugere a análise da proporcionalidade em sentido estrito, a análise do
custo-benefício da medida (se a medida traz mais benefícios do que tra-
ria a limitação ao direito restringido).
Daí a importância de que se procure analisar o que pode signi-
icar o “princípio da proporcionalidade”, fundamental para a resolução
de casos atuais, que acorrem ao Supremo Tribunal Federal. É possível
observar que esse princípio tem sido utilizado sem nenhuma explica-
ção ou justiicação, sendo apenas um argumento vazio quando não são
explicitadas as condições de sua adequação e a sua necessidade no caso
concreto. Sugere-se, aqui, um trabalho de equipes que possam trazer
exemplos de casos para constatação ou refutação dessa situação, que
tem relação direta com a possibilidade ou não de uso ou abuso da dis-
cricionariedade – e daí as acusações de ativismo judicial, e de judicia-
lização da própria política. É importante que os exemplos venham de
casos concretos, efetivos, vinculados à realidade social brasileira, como
forma de aproximar o debate e a própria dogmática jurídica dos fenô-
menos sociais.
A partir dessa análise, é possível encontrar uma série de princí-
pios, qual seja, torna-se uma atividade interessante constatar esse “rol”
de princípios em decisões, buscando compreender ao que eles se vin-
culam. Isso poderá trazer uma visão do que vem ocorrendo na juris-
prudência, no que diz respeito a uma verdadeira profusão e criação de
novos princípios. Será que o texto constitucional permite isso? Alguma
teoria da argumentação incentiva a criação de novos princípios? As res-
postas e a discussão em torno delas trará uma visão maior do problema.

77
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

Outra sugestão de aprofundamento do tema situa-se na pesquisa


do outros teóricos da argumentação jurídica que aqui não foram abor-
dados, como Toulmin e Mackornic, por exemplo, e na própria capaci-
dade das diversas teorias da argumentação, de efetivamente superar o
paradigma da consciência. Até que ponto elas efetivamente superam a
virada linguística e recepcionam – ou não – o giro ontológico-linguís-
tico.23 Ou seja, será que as teorias percebem a importância e essência
do signiicado da linguagem, no sentido de preocuparem-se com o que
efetivamente é dito quando dizem alguma coisa, respeitando o que a
coisa mesma da linguagem signiica – e diz?
Será que um argumento, por exemplo, não está apenas repro-
duzindo algum valor, sem explicá-lo, e com isso reforçando a posição
confortável do que é chamado “senso comum teórico dos juristas”, que
atribui sentido aos textos, e mantém o poder com os que tradicional-
mente são os mais poderosos? Com isso entende-se que o leitor estará
mais bem preparado para a disciplina de Hermenêutica Jurídica, que
enfrentará adiante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na Grécia antiga, a argumentação fazia parte da vida de todo
cidadão (daqueles poucos que participavam ativamente da política da
cidade), e como a exposição pública e a reivindicação eram absoluta-
mente naturais, como parte da vida de cada um na cidade, era muito
natural que a retórica se desenvolvesse livremente e que existisse uma
preocupação rigorosa com o modo como alguém pode convencer um
auditório, ou persuadir. Essa importância não diminuiu nos dias de
hoje, pois todos os dias estamos às voltas - senão já em questões jurídi-
cas -, em qualquer outra atividade em sociedade que exige, para maior
alcance dos objetivos, uma luência na linguagem, na comunicação, e
nas técnicas não apenas para convencer, mas para se fazer ou tornar-se
compreensível.
Na atualidade, considerando a era informacional ou a era digi-
tal, pode-se constatar de modo ainda mais claro que toda a experiência

23 A respeito, ver STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do Direito.11.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2014. p. 78.
Ver, a respeito de uma “lista interminável” de princípios, e sua abordagem, que o autor chama de
“álibis teóricos”.Ibid., p.172,173,175.

78
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

humana depende da linguagem e da comunicação. Esse fato, unido à


virada linguística do século XX, redime a retórica e a argumentação e
recoloca sua importância de modo ainda mais acentuado. Ora, a lin-
guagem é fenômeno típico da natureza humana, e a palavra “logos” era
traduzida, na antiguidade, tanto por “saber” quanto por “discurso”, tal o
vínculo entre o saber e o discurso, e o discurso e o ser humano.
A importância da argumentação, para o direito, reside no fato de
que diante de uma causa não se tem acesso a uma verdade absoluta, ape-
nas a fatos, dados, pretensões. É necessário, pois, admitir o verossímil, e
através de argumentos procurar encontrar e reconhecer o sentido diante
de um texto legal que produza uma norma de múltiplos signiicados.
Os intérpretes são históricos. Irão ler o texto e dialogar com ele a partir
de seus limites e fragilidades linguísticas – sendo ordinário reconhecer
que a norma a ser aplicada ao caso estará longe de ser a “palavra da lei”.
É necessário diferenciar enunciado de enunciação e esta não pode
ser pensada a partir da maneira como os sujeitos falantes intervêm no
ato comunicacional (WARAT, 1995, p. 82 e 84). Se apenas os sujeitos da
fala forem privilegiados no ato comunicacional, icarão de fora as refe-
rências ao quadro institucional, político e ideológico que produzem a
enunciação. E os discursos só podem ser compreendidos dentro de uma
teoria crítica da sociedade, pois as palavras carregam em si determina-
das signiicações de acordo com o período histórico e o contexto social
do qual emanam.
Nesse sentido, a análise retórica, como aponta Warat (1995, p.
86), contribui para a redeinição dos objetos da linguística e da semiolo-
gia, mostrando a impossibilidade de estudar plenamente o fenômeno da
signiicação fora dos discursos, justamente porque tenta teorizar sobre
convenções reguladas pela lógica do razoável – e não por uma lógica
formal em sentido estrito.
As teorias jurídicas constataram que os princípios da lógica for-
mal eram insuicientes para a explicação do que se dá quando advoga-
dos, juristas e juízes voltam-se para a tarefa de criar, interpretar, aplicar
e integrar o direito.
A lógica formal não soluciona o problema jurídico. Ao enfatizar
o raciocínio silogístico, a lógica formal atém-se à construção das pre-
missas e à correção da conclusão obtida. Se o direito tivesse essa lingua-
gem demonstrativa e não houvesse dúvidas a respeito de suas múltiplas

79
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

possibilidades, a hermenêutica não seria necessária. Um programa de


computador poderia emitir as sentenças, sempre objetivas e sempre as
mesmas em casos idênticos.
A hermenêutica jurídica é essencial no direito, porque o orde-
namento jurídico, por si só, não realiza a justiça. Do contrário, com-
putadores poderiam recolher os dados dos casos concretos e aplicar as
leis pertinentes. Porém, a natureza e a realidade humana não podem
ser tratadas como números ou fórmulas. A hermenêutica jurídica é que
aproxima o direito da justiça. Adiante os alunos do Curso de Direito po-
derão cursar a disciplina especíica de Hermenêutica Jurídica, no qual
aprofundarão seus conhecimentos.
O componente axiológico é elemento indissociável e fundamen-
tal da adequação do fato à norma pelo julgador. Os aspectos ideológi-
cos, psicológicos, culturais, entre outros, na sua bagagem, inluenciam
os seus raciocínios e as ponderações pelas quais o aplicador elege a me-
lhor solução para o caso concreto.
As doutrinas éticas fundamentais se desenvolveram em diferen-
tes épocas e em sociedades, como resposta aos problemas sociais. Há
uma vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana. Cada
doutrina, por estar sempre em processo de mudança, tem relação com
outra. Deve-se, entretanto, atentar para a história das ideias, para os
conteúdos fundamentais e para a ética na argumentação, uma vez que a
falácia é também muitas vezes percebida e destruída por quem for deba-
ter em grandes decisões políticas, controvérsias ilosóicas ou judiciais.
O estudo da argumentação jurídica nos auxilia a dizer aquilo que
realmente queremos dizer. Também aperfeiçoa o ser humano em sua
condição comunicativa. Com isso, eleva o espírito do sujeito a partir de
um novo domínio, o domínio da palavra e do modo de transmiti-la. É
necessário, antes de tudo, situar-se dentro da Teoria do Direito para que
se possa, com maior tranquilidade, movimentar-se em um determinado
campo teórico. A análise da hermenêutica tradicional e da hermenêu-
tica discursiva nos auxilia nisso. A compreensão de autores polêmicos
e clássicos nos ajuda para que o intérprete construa seu marco teórico
com base em uma das teorias.
Essa percepção e o adequado uso da linguagem jurídica, por
meio dos recursos da argumentação, são fundamentais a todos que de-
pendem de uma comunicação não apenas eicaz, no intuito de vencer

80
2 • ARGUMENTAçãO JURÍDICA

um debate a qualquer custo, mas em especial, compreensível, que busca


organizar os argumentos de modo a colocar a descoberto qual seria a
melhor solução ou resposta para uma determinada situação jurídica.
Magistrados, advogados e promotores somente podem sustentar
suas posições e fazer as suas escolhas a partir dessa racionalidade per-
meada de valores, e a argumentação jurídica é que nos permite fazermos
as escolhas mais adequadas em cada caso. O problema maior, que não se
pode descuidar em qualquer análise dos termos de uma argumentação,
situa-se no fato de que, em termos de argumentação jurídica, ou seja,
em termos de contencioso jurídico, o que motiva os discursos e conduta
das partes em geral não é a justiça de um julgamento, mas a busca por
um resultado que lhes seja vantajoso.
Eis mais um motivo para que se conheçam bem as teorias, e para
que se possa evitar o desvio de um caminho argumentativo que efetiva-
mente busque uma solução justa, ou mais justa para determinado caso
concreto. De todo modo, mesmo que os participantes do discurso este-
jam mais interessados nas vantagens do que em um juízo correto e justo,
é fato que buscam e têm necessidade de construção de argumentos em
condições de compreensão e ideais, apresentando-se com um mínimo
de razoabilidade.
Nesse sentido, e para superar o paradigma da consciência, tanto
quanto para não cair no decisionismo judicial, o estudo da Argumenta-
ção Jurídica deve atentar para o estágio de democracia do país, em que
a Constituição deve ser respeitada, assim como as regras que ela impõe
para sua alteração. Isso é a condição para a consolidação do que se pre-
tende ser um Estado Democrático de Direito. É o mínimo diante da
superação da hermenêutica clássica pela hermenêutica ilosóica. Todo
o resto são “ismos” que enfraquecem a democracia. Daí a importância
do estudo das Teorias da Argumentação Jurídica com o olhar atento
a tudo isso. Do contrário as técnicas serão outros “ismos” destinados
a enfraquecer o constitucionalismo garantista e comprometido com a
democracia, que deve ser antes reforçado.

81
ANGELA KRETSCHMANN - NEy WIEDEMANN NETO

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84
3

ECONOMIA APLICADA AO DIREITO:


UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR
DO DIREITO ECONÔMICO

Guilherme de Oliveira Feldens1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 3.1. A análise Econômica do


Direito - 3.2. Uma análise multidisciplinar do Direito Econômico:
o pensamento de Amartya Sen, John Rawls e Robert Nozick
- 3.2.1. A justiça distributiva em John Rawls - 3.2.2. Estado
e Propriedade em Robert Nozick - 3.2.3. Desenvolvimento e
Liberdade em Amartya Sen - CONSIDERAÇÕES FINAIS -
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO
A questão em torno da necessidade de estudar a relação entre
Direito e Economia surgiu como consequência imediata da separação
plena entre a economia e as questões morais ocorrida no século XIX.
A supremacia da doutrina utilitarista no campo das análises sociais fez
com que a economia se voltasse para os cálculos de maximização da

1 Doutor em Filosoia, Mestre em Filosoia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professor
das disciplinas de Economia Aplicada ao Direito, Ciência Política e Sociologia Jurídica, do Cesuca
- Faculdade Inedi. E-mail: guilhermefeldens@cesuca.edu.br

85
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

utilidade e se tornasse um campo do conhecimento distante da Ética


e do Direito. Porém, basta um rápido estudo na tradição clássica para
perceber que autores como Aristóteles apresentavam um caráter con-
trário a essa perspectiva moderna. Preocupado com a riqueza, o ilósofo
grego relaciona diretamente a economia com a ética e a política, abrindo
perspectivas críticas interessantes de serem discutidas em sala de aula.
A diferença entre essas perspectivas históricas permite levantar a
necessidade de discutir a vinculação inerente entre o estudo das relações
econômicas e o estudo da Ética e do Direito, bem como analisar corren-
tes de pensamento que colocam a economia em primeiro plano quando
da aplicação do Direito. O estudo dessas questões possibilita, principal-
mente para àqueles que estão dando os primeiros passos nesse campo,
compreendam a necessidade de entender corretamente a relação entre
Direito e Economia para que não haja a sobreposição de uma área sobre
a outra, nem o total afastamento entre elas.

3.1. A análise Econômica do Direito


O Direito econômico pode ser deinido como o estudo do conjun-
to de normas que permitem ao Estado exercer todo o tipo de inluência
no comportamento dos agentes econômicos em um determinado país
ou conjunto de países (AGUILLAR, 2012, p. 1). Esse conceito é capaz
de deixar clara a importância da relação entre o Direito Econômico e o
Direito Constitucional. Apesar de o Direito Econômico não se limitar
ao estudo da Ordem Econômica Constitucional, pode-se airmar com
segurança que os principais aspectos a serem analisados nesse campo
estão presentes na carta constitucional.
A importância do estudo dos preceitos constitucionais nesse cam-
po é justiicada em dois eixos. Em primeiro lugar, serve para evidenciar
a profunda mudança na concepção intervencionista do Estado presen-
te nas Constituições anteriores, estabelecendo um regime mais liberal.
Nesse sentido, a atual constituição deiniu como fundamentos da ordem
econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa (artigo
170 da Constituição Federal de 1988), bem como as inalidades de as-
segurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça e
garantir condições mínimas de subsistência. Por conseguinte, a Consti-
tuição assume a posição de que a economia não é nenhum valor último,

86
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

mas apenas um valor de serviço, capaz de atingir resultados melhores


quando associada a ins morais e humanitários (SEN, 1999, p. 25).
Por outro lado, impõe a necessidade de se evitar que as questões
relativas à Ordem Econômica e ao Direito Econômico sejam invadidas
por correntes de pensamento que priorizam os aspectos econômicos
aos aspectos jurídicos quando da aplicação do Direito. Tais correntes,
com forte apelo utilitarista, defendem que o Direito siga apenas os cri-
térios utilitaristas de conveniência social, pouco importando a justiça e
os valores da comunidade política. A corrente de pensamento conheci-
da como Law and Economics, por exemplo, defende a maximização da
riqueza social agregada como valor a ser perseguido pelo Direito2. Essa
visão reduz a jurisdição a uma regulação de mercado, na qual a decisão
jurídica passa a se tornar uma questão de estratégia econômica. O Direi-
to perde seu caráter autônomo, icando sujeito à vontade dos detentores
do poder econômico.
Os termos constitucionais apresentam uma proposta contrária
a correntes pós-positivistas que acabaram enfraquecendo completa-
mente o Direito ao ampliar a atuação dos tribunais por meio do uso
de conceitos econômicos3. Os princípios da Ordem Econômica institu-
cionalizados na Constituição, expressando os valores fundamentais da
comunidade econômica, servem como critérios de legitimidade para a
atividade dos tribunais4. Desse modo, a Constituição visa garantir efei-
tos sociais positivos, deinindo que o crescimento econômico analisado

2 Na visão dessa teoria, Posner airma que “os juízes tem um duplo papel: interpretar as
negociações de grupos de interesses incorporadas à legislação e oferecer o serviço público básico
da solução legítima de litígios. Eles desempenham esse último papel não apenas ao decidirem casos
de acordo com normas preexistentes, mas também ao elaborarem essas normas [...] O Direito que
eles criam revela, de acordo com a teoria econômica que estou expondo, uma coerência material
extraordinária. É como se os juízes quisessem adotar as regras, os procedimentos e os resultados de
casos que contribuíssem para aumentar a riqueza da sociedade”. POSNER, Richard A. Problemas
de ilosoia do direito. São Paulo: Martin Fontes, 2007. p. 477.
3 Isso ica claro na airmação de Lorenzetti, “o diálogo e o intercâmbio entre as ciências é fecundo.
É pena que o Direito pretenda a autorreferência ante um mundo tão complexo. Muitos autores
advertem para a intenção de ignorar leis de outras ciências, como se o Direito pudesse funcionar de
modo autônomo. Trata-se de uma pretensão vã: escapa do nosso poder ordenar que a maré do mar
se detenha, tampouco podemos derrogar as leis cientíicas”. LORENZETTI, 2009. p. 205.
4 Entre alguns princípios constitucionais da ordem econômica, pode-se citar: o Princípio da
soberania nacional, da função social da propriedade privada, da Livre concorrência e defesa do
consumidor e da defesa no meio ambiente. Além disso, há alguns “princípios ins”, como a busca
pela existência digna para todos, a redução de desigualdades regionais e a busca do pleno emprego.

87
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

isoladamente não garante êxito econômico, nem implica automatica-


mente uma adequada distribuição de riquezas. Sem tais diretrizes ju-
rídicas, com a prevalência dos objetivos econômicos, o mercado não é
capaz de garantir as melhores consequências sociais.

3.2. Uma análise multidisciplinar do Direito Econômico:


o pensamento de Amartya Sen, John Rawls e Robert
Nozick
Conforme exposto anteriormente, a Constituição Federal nega
a Supremacia do valor econômico em si mesmo. Não repudia valo-
res considerados fundamentais para o desenvolvimento humano. Não
abraça preceitos econômicos, na linha de Bernard Mandeville, segundo
os quais o egoísmo é ético e a pessoa humana, tendo seus direitos e ca-
pacidades negados, é considerada apenas pela possibilidade de comprar
(consumidor) e vender (produtor). Essa posição constitucional pode
ser estudada de forma comparativa com o pensamento de autores con-
temporâneos que procuram focar suas discussões jurídicas, ilosóicas
e econômicas diretamente nas consequências que o desenvolvimento
econômico pode gerar na vida das pessoas.
Amartya Sen (2009, p. 259), por exemplo, aponta essa perspectiva
na modiicação dos avaliadores econômicos utilizados pelos analistas
sociais e econômicos. Enquanto que os critérios econômicos de progres-
so se concentravam, até pouco tempo atrás, unicamente em estatísticas
ligadas a objetos inanimados de conveniência, hoje já se percebe um
reconhecimento crescente favorável à utilização direta de indicadores
voltados às questões de qualidade de vida (SEN, 2009, p. 260). E essa in-
clusão de questões ligadas à valorização humana nos indicativos econô-
micos é um processo ligado diretamente ao pensamento de autores que
contribuíram para a retomada de ideais morais no campo econômico.

3.2.1. A justiça distributiva em John Rawls


John Rawls pode ser considerado o marco de retomada das preo-
cupações voltadas aos problemas da distribuição de bens e riquezas. Sua
teoria da justiça como equidade, construída com base em um complexo
pensamento que envolve preceitos ilosóicos, políticos, econômicos e
jurídicos, tem como conteúdo básico dois princípios de justiça, esco-

88
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

lhidos de maneira unânime, que devem servir de regra para todos os


acordos ulteriores, especiicando as formas da cooperação social, além
de ixar os direitos e os deveres de base e determinar a repartição das
vantagens sociais.
Para Rawls, a estrutura básica da sociedade é constituída por suas
principais instituições políticas, econômicas e sociais. A importância de
escolher princípios de justiça para regulá-las reside no fato de que são
elas que deinem o modo pelo qual serão distribuídos direitos, deveres
e vantagens entre os cidadãos. Assim, para que tal regramento funcione
justamente é necessário que cada cidadão conheça as instituições bá-
sicas de sua sociedade, para que saiba o que elas exigem e, principal-
mente, o que pode exigir delas; e tenha certeza de que os outros cida-
dãos também têm esse conhecimento para respeitar o acordo atingido
na posição original. Os princípios, dessa forma, assumem o papel da
justiça, fornecendo uma atribuição de direitos e deveres fundamentais
e determinando a divisão de vantagens da cooperação social (RAWLS,
1999, p. 54).
Os princípios de justiça são, primeiro, o princípio da liberdade
igual para todos e, segundo, o (a) princípio da igualdade de oportuni-
dades e (b) princípio da diferença. Esses princípios têm como bases a
prioridade absoluta da liberdade e a maximização das expectativas dos
menos favorecidos. Em sua primeira formulação soam da seguinte ma-
neira (RAWLS, 2008, p. 60):
Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais
abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com
um sistema semelhante de liberdade para as outras. Segundo Princípio:
as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo
que sejam ao mesmo tempo – (a) consideradas como vantajosas para
todos dentro dos limites do razoável; (b) vinculas a posições e cargos
acessíveis a todos.

Posteriormente, Rawls (1996, p. 6) chegou à formulação deiniti-


va dos dois princípios, que é a seguinte:
1. Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado
de liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema
semelhante de liberdade para todos;

89
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

2. As desigualdades sociais e econômicas têm de satisfazer duas


condições: (a) primeira, relacionar-se com postos e posições abertos para
todos em condições de plena equidade e de igualdade de oportunidades;
e (b) segunda, redundar no maior benefício dos membros menos
privilegiados da sociedade (princípio de diferença.

Assim, uma sociedade justa, para Rawls, é aquela a cuja estrutura


básica se aplicam os princípios de justiça, pois a aplicação deles formaria
um liberalismo igualitário, garantindo as liberdades civis e políticas e
limitando as desigualdades. Por essas deinições percebe-se que o autor
enxerga na sociedade dois problemas fundamentais, um tendo relação
às liberdades básicas iguais dos indivíduos e o outro com relação às de-
sigualdades econômicas e sociais. Para cada um deles formula um prin-
cípio de justiça. Assim, conjugando a igualdade com a liberdade, Rawls
procura resguardar conceitos éticos esquecidos pelas teorias modernas5,
protegendo as liberdades básicas fundamentais e propondo uma teoria
que garanta melhorias sociais para todos, pois em seu pensamento man-
tém-se sempre presente a ideia de distribuição justa.
Segundo Rawls, a concepção de justiça baseada nesses princípios
têm a vantagem de assegurar os direitos básicos dos cidadãos e de pro-
tegê-los contra as piores eventualidades, evitando que tenham de con-
cordar com uma perda de liberdade por um período indeterminado de
tempo para que outros gozem de certos benefícios (RAWLSs, 1999, p.
176). Para alguns autores (NAGEL, 2000, p. 69; FREEMAN, 2000, p.
15), os dois princípios de justiça de Rawls podem ser vistos como uma
tentativa de “integração da crítica socialista na teoria liberal”: o primei-
ro princípio, assegurando as liberdades liberais básicas; enquanto que o
segundo princípio de justiça, devido ao fato de justiicar as desigualda-
des apenas no caso de benefícios aos cidadãos menos favorecidos e de
defender uma igualdade equitativa de oportunidades, faz com que a so-
ciedade adote esquemas sociais compensatórios, a im de evitar grandes
desigualdades, dando uma nova perspectiva à teoria liberal.

5 Para Nedel “talvez seja esta a sua contribuição mais importante para a ilosoia moral e política da
atualidade, direcionada principalmente às sociedades industriais avançadas. É notável seu esforço
para conciliar ambas as dimensões: a da liberdade, conceito forte do pensamento político de Locke,
e a da igualdade democrática, palavra chave da concepção de Rousseau, que encontram eco e
síntese na ilosoia prática de Kant. Por esta razão, Rawls invoca reiteradamente a autoridade dos
três mencionados ilósofos”. NEDEL, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de
integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 158.

90
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

Quanto ao primeiro princípio, opondo-se ao utilitarismo, Rawls


airma a prioridade da liberdade, colocando-a como valor fundamen-
tal, pois da maneira como são colocados os princípios de justiça, sua
teoria faz com que a liberdade de maneira nenhuma seja sacriicada,
porquanto os princípios obedecem a uma rigorosa ordem hierárquica,
fazendo com que o primeiro tenha prioridade sobre o segundo, evitan-
do a negociação da liberdade em troca de bem-estar econômico (RA-
WLS, 1999, p. 43). A defesa da liberdade aparece como a base de toda
a justiça, sendo de prioridade absoluta para os participantes do acordo
original, que a colocam no primeiro princípio, representando um verda-
deiro imperativo categórico da ilosoia política rawlsiana e signiicando
a prioridade total de objetos não-econômicos frente a objetos econô-
micos6. Isso signiica que as violações das liberdades iguais, protegidas
pelo primeiro princípio, não podem ser justiicadas nem compensadas
por maiores vantagens sociais, sendo unicamente permitida a limitação
de alguma liberdade quando há a necessidade de proteger as demais. O
primeiro princípio de justiça signiica também a aplicação igualitária a
todos das regras que deinem as liberdades básicas, permitindo “a mais
abrangente liberdade compatível com uma igual liberdade para todos”
(RAWLS, 1999, p. 63).
Quanto ao segundo princípio, Rawls tentou formular uma teo-
ria que, mesmo mantendo-se dentro da tradição liberal, fosse além das
propostas e políticas de igualdade da época. É o princípio que airma
que as desigualdades econômicas e sociais serão justas se resultarem em
benefício aos membros menos favorecidos da sociedade7. Nesse princí-

6 Segundo Hofe “como ainda veremos, direitos e liberdades, por exemplo, à integridade de corpo
e vida ou à liberdade de religião não são construídos em comum, mas são sobretudo protegidos e
recusados reciprocamente. Eles não são os resultados da cooperação social, mas reconhecimento
recíproco. Além disso não são escassos, ao menos não no sentido de bens econômicos. Enquanto
na renda, num bem básico do segundo princípio de justiça, aquilo que um recebe disso o outro é
privado, o direito ao corpo e à vida tira dos outros o direito de me matar ou ferir [...]. No que se
refere a seus dois princípios de justiça, Rawls defende uma prevalência ética do primeiro princípio
(direitos e liberdades) sobre o segundo princípio (chances, rendimento e bem-estar). Com isto,
reconhece ele a (absoluta) prioridade dos objetos não-econômicos frente aos econômicos, com o
que ele mais uma vez relativiza, nas condições de aplicabilidade, a cooperação condicionada por
uma escassez de bens”. HOFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma ilosoia crítica
do direito e do estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p.264.
7 Segundo Rawls, “nessa primeira abordagem, o segundo princípio se aplica à distribuição de
renda e riqueza e ao escopo das organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de
responsabilidade. Apesar de a distribuição de riqueza e renda não precisar ser igual, ela deve ser

91
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

pio, Rawls procura encontrar um meio-termo no qual as desigualdades


socioeconômicas sejam permitidas, desde que haja um compromisso
dos mais favorecidos em relação aos menos favorecidos, ou seja, que as
melhores condições dos primeiros ocasione também a melhoria da si-
tuação dos que enfrentam maiores desvantagens sociais, evitando a de-
sigualdade generalizada, bem como a divisão estritamente igualitária8.
Tal princípio tem o im de proporcionar verdadeira igualdade de
oportunidades, fazendo com que mais atenção seja dada àqueles com
menos capacidades ou em situação social menos favorável, distancian-
do-se do utilitarismo e da igualdade estritamente liberal; essa última
baseada na igualdade formal de oportunidades e na ideia de mérito.
Assim, quando conjugado o princípio da igualdade equitativa de opor-
tunidades com o princípio da diferença, atingir-se-á aquilo que o autor
denomina de igualdade democrática. Rawls ( 1999, p. 75) observa:
Chega-se à igualdade democrática por meio da combinação do princípio
da igualdade equitativa de oportunidades com o princípio da diferença.
Este último elimina a indeterminação do princípio da eiciência elegendo
uma posição particular a partir da qual as desigualdades econômicas e
sociais da estrutura básica devem ser julgadas. Supondo-se a estrutura
de instituições exigidas pela liberdade igual e pela igualdade equitativa
de oportunidades, as maiores expectativas daqueles em melhor situação
são justas se, e somente se, funcionam como parte de um esquema que
melhore as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade.
A ideia intuitiva é de que a ordem social não deve estabelecer e assegurar
as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores condições
a não ser que, fazendo isso, traga também vantagens para os menos
afortunados.

vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser
acessíveis a todos. Aplicamos o segundo princípio mantendo as posições abertas, e depois, dentro
desse limite, organizando as desigualdades econômicas e sociais de modo que todos se beneiciem”.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 65. Id. A heory of
Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999. p. 61
8 Para Rawls “os menos favorecidos são deinidos, grosso modo, como a sobreposição (overlap)
entre aqueles que são os menos favorecidos por cada um dos três modos de contingências. Assim,
esse grupo inclui pessoas cujas origens de família e classe são mais desvantajosas que outras, cujos
dotes naturais lhes permitiram ser menos sucedidos e cuja sina e sorte têm sido relativamente
menos favoráveis, tudo isso dentro de um alcance normal e com as medidas relevantes embasadas
nos bens primários sociais”. Id. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.p.112.

92
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

Esse princípio não estipula igualdade estrita, homogênea, uma


vez que a desigualdade de que trata é, por um lado, necessária e ine-
vitável. O ilósofo norte-americano opõe-se ao igualitarismo, que não
permite à sociedade satisfazer certos requisitos essenciais de organiza-
ção, nem tirar vantagem de considerações de eiciência. Assim, defende
uma igualdade na diferença, contrapondo-se também às interpretações
da igualdade como “sistema de liberdades naturais” e a “igualdade li-
beral de oportunidades”, as quais, segundo ele, seriam moralmente ar-
bitrárias. No entender de Rawls, certas desigualdades são úteis, já que
concedem incentivos a determinadas pessoas para que realizem certas
atividades importantes para a organização social. Essas desigualdades
se justiicam, ao melhorar a posição do grupo em pior situação, quando
sem elas tal grupo permaneceria em estado ainda pior. Assim, talentos
naturais superiores podem ser incentivados, desde que o investimento
feito com eles reverta em vantagens para os desprivilegiados (NEDEL,
2000, p. 67).
O ilósofo americano pretende demonstrar, com isso, que a situa-
ção das pessoas deve depender única e exclusivamente das suas liberda-
des de escolha e não das circunstâncias sociais ou naturais nas quais se
encontram. Rawls é contra o “sistema de liberdade natural”, é mais pró-
ximo da visão de Nozick, por este considerar que uma sociedade justa
será aquela que combinar uma economia competitiva de mercado com
uma igualdade formal de oportunidades. As únicas instituições necessá-
rias, além das de mercado, são aquelas que objetivam garantir a todos os
mesmos direitos legais de acesso às posições sociais privilegiadas. Essa
concepção seria, então, conforme o exposto, amplamente inluenciada
pelas circunstâncias naturais e sociais, sendo arbitrária de um ponto de
vista moral.9

9 Segundo Rawls “no sistema de liberdade natural, a distribuição inicial é regulada pela organização
implícita na concepção de carreiras abertas a talentos. Essa organização pressupõe uma base de
liberdade igual (especiicada pelo primeiro princípio) e uma economia de mercado livre. Ela exige
uma igualdade formal de oportunidades, no sentido de que todos têm pelo menos os mesmos
direitos legais de acesso a todas as posições sociais privilegiadas. Mas como não há esforço algum
para preservar uma igualdade, ou similaridade, de condições sociais, a não ser na medida em que
isso seja necessário para preservar as instituições básicas indispensáveis, a distribuição inicial
de ativos para cada período de tempo é fortemente inluenciada pelas contingências naturais e
sociais.[...]. O que chamarei de interpretação liberal tenta corrigir isso acrescentando à exigência
de carreiras abertas a talentos a condição adicional de uma eqüitativa igualdade. A idéia aqui é
que as posições não devem estar abertas apenas de um modo formal, mas que todos devem ter
uma oportunidade eqüitativa de atingi-las. À primeira vista, não ica claro o que isto signiica, mas

93
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

O princípio liberal de igualdade de oportunidades, diferentemen-


te do citado acima, busca estabelecer as condições para uma meritocra-
cia equitativa, assegurando um ponto de partida igual para aqueles que
têm capacidade igual. Assim, as instituições devem tentar neutralizar as
contingências que inluenciam as perspectivas das pessoas (VITA, 2000,
p. 101). Entretanto, essa concepção também é arbitrária moralmente,
pois não garante plena condição de igualdade, permitindo as diferenças
de habilidades e talentos, restringindo apenas os fatores sociais. Rawls,
por meio da igualdade democrática, procura justamente dar um passo
a mais em relação à concepção liberal de igualdade de oportunidades.
Segundo ele, para atingir-se um estado de cooperação voluntária de to-
dos, é necessária uma concepção de justiça que impeça que circunstân-
cias de caráter natural e social sejam usadas sem qualquer regulação na
obtenção de vantagens econômicas (RAWLS, 1999, p. 15). Em todos os
setores da sociedade deve haver iguais perspectivas de realização para
todos os que são dotados de talentos naturais semelhantes, indepen-
dentemente de seu lugar inicial no sistema social. As expectativas dos
cidadãos com as mesmas habilidades não devem ser afetadas por sua
classe social (RAWLS,, 1999, p. 73).
Assim sendo, segundo Rawls, a distribuição de talentos naturais
não oferece um fundamento aceitável para a distribuição de quinhões
distributivos e deve ser vista como arbitrária de um ponto de vista mo-
ral. Porém, o princípio da diferença não supõe a eliminação das contin-
gências naturais e sociais, mas dentro do possível, tenta neutralizar seus
efeitos por meio das instituições. Deste modo se manifesta o ilósofo
(RAWLS, 2008, p. 100):
Desigualdades imerecidas exigem reparação; e como desigualdades de
nascimento e de dotes naturais são imerecidas, elas devem ser de alguma
forma compensadas. Assim, o princípio determina que a im de tratar
as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína igualdade de
oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos
dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A
ideia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade.

podemos dizer que aqueles com habilidades e talentos semelhantes devem ter chances semelhantes
na vida”. Id. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 76-77.; Id. A heory of
Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999. p. 73.,

94
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

De acordo com Rawls, ninguém deve se beneiciar de forma


exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é justo impedir tais be-
nefícios se eles trazem vantagens para aqueles com menos condições.
Quanto a esse aspecto, portanto, vem complementar o princípio da di-
ferença (segunda parte do segundo princípio) na busca da igualdade de-
mocrática. O princípio destina-se a presidir a distribuição dos recursos
econômicos na sociedade, induzindo a cooperação voluntária de todos
e justiicando a desigualdade apenas quando for mais vantajosa para os
que estão em piores condições; maximizando, assim, as expectativas dos
menos favorecidos.10
O princípio da diferença preside a distribuição dos bens sociais
primários, tais como poder, status, riqueza, vantagens sociais, deveres,
encargos, induzindo a cooperação voluntária de todos. Pela estratégia
maximin, procura-se maximizar o mínimo11. Essa concepção nos leva a
escolher, entre uma gama de situações possíveis, aquela em que os me-
nos favorecidos, que têm menos bens sociais primários, tenham maio-
res benefícios na distribuição (VITA, 2000, p. 121). Dessa forma, para
Rawls não se deinirá o grau de justiça social pelos mais aquinhoados,
mas pela justa distribuição de vantagens e benefícios por meio de insti-
tuições justas.

10 Rawls explica que “o segundo princípio insiste que cada pessoa se beneicie das desigualdades
permissíveis na estrutura básica. Isso signiica que cada homem representativo deinido por essa
estrutura, quando a observa como um empreendimento em curso, deve achar razoável preferir as
suas perspectivas com desigualdade às suas perspectivas sem ela. Não se permite que diferenças
de renda ou em posições de autoridade e responsabilidade sejam justiicadas pela alegação de que
as desvantagens de uns em uma posição são compensadas pelas maiores vantagens de outros em
posições diferentes. Muito menos ainda podem infrações à liberdade ser contrabalançadas desse
modo. Entretanto, é óbvio que há ininitas maneiras de todos poderem ter vantagens quando a
organização inicial de igualdade é tomada como um ponto de referência”.Id.A heory of Justice.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999. p. 64.; Id. Uma teoria da justiça. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. 69.
11 Segundo Rawls “a regra maximin determina que classiiquemos as alternativas em vista de seu
pior resultado possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado seja superior aos piores
resultados das outras. Com certeza, as pessoas na posição original não supõem que a sua posição
inicial na sociedade é decidida por um oponente malévolo. Como observo abaixo, elas não devem
raciocinar baseando-se em falsas premissas. O véu de ignorância não viola essa ideia, uma vez
que uma ausência de informação não é uma informação equivocada. Mas o fato de que os dois
princípios da justiça seriam escolhidos se as partes fossem forçadas a se proteger contra uma
tal contingência explica o sentido em que essa concepção é a solução maximin”. Id. Uma teoria
da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 165.; Id. A heory of Justice. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1999. p. 153.

95
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

Segundo a teoria rawlsiana, é preferível uma estrutura institu-


cional que garanta um quinhão maior de bens primários para alguns,
garantindo-se vantagens aos menos favorecidos, a uma estruturação na
qual uma igualdade estrita é assegurada à custa da redução das expecta-
tivas de todos (RAWLS, 1999, p. 75). Além do mais, o reconhecimento
da regra do maximin garante o maior respeito entre os cidadãos, pois os
menos privilegiados sabem que estão entre outros cidadãos que só acei-
tam uma estrutura institucional com base em princípios de justiça que
garantem que as vantagens dos mais favorecidos só são aceitas, quando
permitem a elevação da sua situação. Há, portanto, um senso comum,
uma concepção de reciprocidade que evidencia que todos se beneiciam
pela aplicação de tal princípio, pois, ao ser aceita a regra, os mais pri-
vilegiados mostram respeito por aqueles que estão em piores situações,
aumentando também a autoestima desses e, consequentemente, aumen-
tando a eiciência da cooperação social (RAWLS, 1999, p. 179).

3.2.2. Estado e Propriedade em Robert Nozick


Robert Nozick apresenta um contraponto bastante interessante
de ser feito às discussões levantadas pela teoria distributiva de Rawls.
Em uma perspectiva contrária ao apresentado até aqui, Nozick defende
princípios libertários que airmam direitos inalienáveis e abrangentes
dos cidadãos capazes de originar apenas um Estado mínimo, limitado
a iscalizar o cumprimento dos contratos e proteger as pessoas contra
o roubo e as fraudes (NOZICK, 1991, p. 25). Um Estado com poderes
mais abrangentes do que isso viola os direitos dos indivíduos de não
serem forçados a fazer o que não querem (SANDEL, 2012, p. 81).
Assim, Nozick, um dos maiores críticos e interlocutores de Rawls,
consagra toda a primeira parte do seu livro Anarquia, estado e utopia à
análise do estado de natureza de Locke para demonstrar como se for-
maria um Estado mínimo, somente encarregado de garantir segurança
e justiça por meio de um processo, de uma “mão invisível”, indicando
existir um modo em que a forma mínima do Estado pode surgir sem
coação.12 A segunda parte da obra é uma crítica à ideia de Estado defen-

12 Segundo Nozick “a im de compreender exatamente o que são esses remédios do governo civil,
temos que fazer mais do que repetir a lista de Locke de inconveniências do estado de natureza.
Temos que levar em conta também que arranjos podem ser feitos no estado de natureza para lidar
com esses inconvenientes – evitá-los, torná-los menos prováveis ou menos graves nas ocasiões em

96
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

dida por Rawls, já que Nozick elimina qualquer campo de atuação para
uma questão distributiva ao defender ao máximo o alcance do princípio
da igual liberdade.
Nozick legitima amplamente o direito de propriedade de cada um
sobre o seu corpo e os direitos de propriedade sobre objetos externos.
É justa qualquer repartição de bens primários resultantes de transações
voluntárias efetuadas pelos indivíduos dentro dos limites dos seus di-
reitos. O Estado não tem legitimidade para interferir nessas transações.
Dessa forma, opõe-se a qualquer intervenção do Estado no funciona-
mento do mercado. O imposto, para Nozick, é o mais puro roubo e, por
ser perpetrado pelo Estado, aumenta ainda mais seu caráter arbitrário
(PARIJS, 1997, p. 100). Pode-se interpretar, a partir dessa perspectiva,
que se alguém ganhou legitimamente o que tem, a distribuição que daí
resulta é justa, independentemente de ser desigual; e que estabelecer
qualquer padrão de distribuição é uma interferência arbitrária nas op-
ções das pessoas. Assim, os princípios de justiça rawlsianos, ao deini-
rem um padrão em relação a como tudo deve ser dividido, não levariam
em conta que as pessoas têm totais direitos sobre as propriedades a que
estão ligadas, não cabendo ao Estado intervir para assegurar a igualdade
de oportunidades ou para melhorar a situação dos menos favorecidos. A
única questão a ser observada é se a distribuição resultada foi produto
de transações voluntárias13.
Para Nozick, não há nada de errado na desigualdade econômica
(SANDEL, 2012, p. 82). Seria uma clara violação da liberdade humana,
impor qualquer forma de tributação de rendimentos, visando a uma re-
distribuição de riquezas, pois isso seria o mesmo que legitimar o traba-
lho forçado e a escravidão. Essa postura explica os vários defeitos que

que ocorrem. Só depois de todos os recursos do estado de natureza terem sido postos em uso, isto
é, todos os arranjos e acordos voluntários que pessoas podem fazer ou negociar, agindo dentro de
seus direitos, e só depois de serem estimados os efeitos dos mesmos, estaremos em condição de
veriicar que gravidade têm os inconvenientes que sobram, para serem remediados pelo Estado, e
avaliar se o remédio é pior do que a doença”. NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1991. p. 26,
13 “O argumento geral ilustrado pelo exemplo Wilt Chamberlain, e o dos empresários em uma
sociedade socialista, é que nenhum princípio de estado inal ou distributivo padronizado de justiça
pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas. Qualquer
padrão preferido seria transformado pelo princípio em outro não favorecido, ou por pessoas que
resolvessem agir de maneiras diferentes, como por exemplo pessoas trocando bens e serviços com
outras pessoas ou dando a estas pessoas coisas a que elas tinham direito de acordo com o padrão
distributivo preferido” Ibid.,183 .

97
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

o princípio da diferença rawlsiano tem, segundo Nozick, já que o cerne


moral da reivindicação libertária é a ideia de que a pessoa é a única pro-
prietária de si mesma (NOZICK, 1991, p. 220).
Dessa forma, uma política distributiva de riqueza, nos moldes da-
quela proposta por Rawls, apresentaria diversos problemas, pois (1°) não
resiste a testes em microssituações, em que colide com direitos, sendo
portanto injusto; (2°) cria dois conlitos de interesses, sendo um entre os
que ocupam o topo da sociedade e os que estão embaixo, e outro entre
os que se encontram no meio e os que icam no fundo, pois, se os últi-
mos desaparecessem, os do meio teriam sua situação melhorada; (3°)
pode implicar redistribuição de partes corporais, de órgãos, ou mesmo o
encerramento da vida de pessoas; (4°) contém termos na base dos quais
os menos bem colocados cooperariam com os demais, sem deixar claro,
entretanto, se estes também fariam voluntariamente o mesmo14. Além do
mais, apesar de os indivíduos não serem merecedores dos seus talentos
naturais, seja isso arbitrário do ponto de vista moral ou não, eles são seus
legítimos proprietários e têm direito aos frutos que derivarem deles, sem
poder sofrer nenhuma “violência” por parte do Estado. 15
Segundo Rawls (2003, p. 72), as críticas de Nozick são inconsis-
tentes, pois o princípio de diferença, ao se aplicar às instituições tidas
como sistemas públicos de normas, torna suas exigências previsíveis a
todos os cidadãos, respeitando expectativas legítimas e as titularidades
adquiridas por eles16. Assim, não se impõe graves restrições e interfe-

14 De acordo com Nozick “o princípio da diferença contém termos na base dos quais os menos
bem dotados cooperariam de boa vontade. Mas será um acordo justo, na base do qual os menos
bem dotados poderiam esperar a cooperação voluntária dos demais? No tocante à existência de
ganhos com a cooperação social, a situação é simétrica. Os mais bem dotados ganham ao cooperar
com os menos dotados e estes ganham cooperando com os primeiros. Ainda assim o princípio de
diferença não é neutro entre os mais e os menos bem dotados”. Ibid.,p. 211.
15 Nozick defende que “os talentos e as habilidades da pessoa são um bem para a comunidade
livre. Outros nela se beneiciam com sua presença e icam em melhor situação porque vivem nela
e não em outra ou em parte alguma. (De outra maneira não resolveriam ter negócios com ela.) A
vida, no decorrer do tempo, não é um jogo de soma constante, no qual se maior capacidade ou
esforço levam alguns a ganhar mais, isso signiique que outros têm que perder. Nas sociedades
livres os talentos da pessoa beneiciam terceiros e não apenas ela”.Ibid p. 245.
16 Segundo Nedel “não é plausível a crítica de Nozick segundo a qual o princípio da diferença
não é aplicável a microcasos, pois não sendo correta a distinção entre os planos macro e micro,
para a validade de princípios, sequer teria sentido falar em micro e macroeconomia, por exemplo.
Também não procederia a alegação de que o princípio não contempla a seguinte classe menos bem
colocada, na hipótese de desaparecer a que estiver em pior situação, já que não é possível extrair
do discurso de Rawls tal restrição. Igualmente é descabível a censura de o princípio não garantir

98
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

rências na vida dos indivíduos, já que os efeitos dessas normas são sem-
pre previstos por eles em suas decisões: entendem que, ao participar da
cooperação social, sua riqueza estará sujeita aos termos das instituições
sociais (RAWLS, 2003, p. 73).

3.2.3. Desenvolvimento e Liberdade em Amartya Sen


Amartya Sen, por meio de uma abordagem ética que se afasta das
teorias econômicas modernas, apresenta uma concepção de desenvolvi-
mento que não se restringe apenas ao seu aspecto econômico, conferin-
do uma atenção especial a elementos como liberdade, autonomia e ca-
pacidade. Essa concepção não se restringe apenas à riqueza econômica
das pessoas, já que os fatores econômicos são importantes não apenas
isoladamente, mas também “pelo papel que podem desempenhar ao dar
às pessoas a oportunidade de enfrentar o mundo com coragem e liber-
dade” (SEN, 2000, p. 82).
Para o autor, não se pode falar em desenvolvimento sem conside-
rar as liberdades substantivas como elementos constitutivos essenciais
para haver a capacidade dos agentes em escolher oportunidades reais
para promover seus objetivos17. Sen (2011, p. 261) airma expressamente
que faz toda a diferença se olharmos apenas para os meios de vida, em
vez de considerarmos diretamente as vidas que as pessoas conseguem
levar. Nesse contexto, a expansão das liberdades humanas passa a ter

a cooperação de todos, além de criar conlitos, pois isso poderia acontecer independentemente
desse caso, como, aliás, ocorre com todas as tentativas de realizar a justiça no mundo. Por im, não
é plausível que a aplicação do princípio da diferença acarrete a redistribuição coativa de órgãos
e até o encerramento de vidas humanas, pois se trata de coisas juridicamente indisponíveis, em
que não incide o princípio”.NEDEL, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de
integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 176.
17 Amartya Sen airma que “a liberdade tem muitos aspectos. Ser livre para viver de maneira que
se gostaria pode ser signiicativamente ajudado pela escolha dos outros, e seria um erro pensar
em realizações somente em termos da escolha ativa por nós mesmos. A habilidade da pessoa de
conseguir vários funcionamentos valiosos pode ser amplamente destacado pela ação pública e
política, e essas expansões de capabilidades são importantes para a liberdade por essa razão. [...]
Há um sentido real no qual a liberdade de viver como se gostaria é realçado pela política pública
que transforma os meios epidemiológicos e sociais. Mas o fato de que a liberdade tenha essa
característica não despreza a relevância da escolha ativa pela própria pessoa como um componente
importante de viver livremente. É por causa da presença deste elemento (ao invés da ausência de
outros), que o ato de escolher entre os elementos de uma capabilidade estabeleceu uma relevância
clara na qualidade de vida e bem-estar de uma pessoa”. SEN, Amartya. Igualdad de qué? In:
MCMURRIN, Sterling M. (Org.). Libertad, igualdad y derecho: las conferencias Tanner sobre
ilosofía moral. Barcelona: Ariel, 1988,1993. p. 44.

99
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

uma relação essencial com a ideia de desenvolvimento, de modo a ser


meio e im das atividades desenvolvimentistas. Essa ideia vai além da
mera análise de variáveis relativas ao acumulo de riqueza e distribuição
de renda, pois há uma relação direta com a melhoria na qualidade de
vida das pessoas18.
É por essa razão que Sen (2007, p. 22) crítica os conceitos de igual-
dade que trabalham a partir de variáveis isoladas. Partir, por exemplo,
da ideia de “renda” para deinir critérios de igualdade seria uma simpli-
icação temerária, pois se trata apenas de uma comparação supericial
relacionada a apenas uma situação especíica. Dessa maneira, qualquer
análise econômica aplicada ao Direito terá de, necessariamente, enfren-
tar uma ideia mais complexa de igualdade, capaz de levar em conta as-
pectos da diversidade humana, sem se concentrar apenas em critérios
rígidos. Cabe ao Estado possibilitar uma igualdade de capacidades por
meio do reforço das liberdades individuais qualitativas (como o acesso à
saúde e à educação), possibilitando uma verdadeira igualdade de opor-
tunidades que vai além da métrica econômica. Isso é fundamental, já
que o conjunto de bens possuídos diz muito pouco sobre o tipo de vida
que cada pessoa pode levar (SEN, 2000, p. 101). Em outras palavras, a
renda real pode ser um indicador extremamente insatisfatório em rela-
ção ao bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.
Nesse sentido, a abordagem da capacidade se concentra na vida
humana e não em rendas ou mercadorias que uma pessoa pode possuir
(SEN, 2011, p. 267). Afasta-se, portanto, dos critérios da análise econô-
mica que consideram tais fatores como principal indicador de sucesso
humano. Amartya Sen crítica o princípio da diferença de Rawls, fazen-
do duas objeções interligadas aos bens primários. A primeira delas é
de que a métrica dos bens primários é demasiado inlexível ao ignorar
variações interindividuais que fazem com que seja mais difícil para al-

18 Segundo Sen “a natureza das vidas que as pessoas podem levar tem sido objeto de atenção
dos analistas sociais ao longo da história. Mesmo que os mais utilizados critérios econômicos
do progresso, reletidos em uma massa de estatísticas disponíveis, tendam a se concentrar
especiicamente no melhoramento de objetos inanimados de convivência (por exemplo, no
produto nacional bruto, PNB, e o produto interno bruto, PIB, que têm sido o foco de uma miríade
de estudos econômicos do progresso), essa concentração poderia ser justiicada – tanto quanto
isso fosse possível – em última instância apenas através do que esses objetos produzem nas vidas
humanas que eles podem direta ou indiretamente inluenciar. Há um reconhecimento crescente
favorável à utilização direta de indicadores da qualidade de vida, do bem-estar e das liberdades que
as vidas humanas podem trazer consigo”. Ibid., p. 259.

100
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

guns converter bens primários em capacidades básicas (SEN, 1988, p.


152). As necessidades dos membros da sociedade são muito diferentes e
fazem com que os princípios de justiça, ao apresentar um índice de bens
primários, sejam muito inlexíveis para produzir uma justiça equitativa.
Assim, garantir um quinhão equitativo de bens primários para
todos não signiica que esses todos estarão igualmente capacitados em
colocá-los a serviço de seus ins. Portanto, a preocupação igualitária de
Rawls ica localizada em um espaço avaliativo errado, pois, para Sen,
não é correto se preocupar com a exata divisão bens, mas com o que
as pessoas são capazes de fazer com esses bens (GARGAELLA, 2008,
p. 74). Portanto, o esquema rawlsiano dos bens primários daria pouca
importância à diversidade humana. Segundo Sen, somente se as pes-
soas fossem fundamentalmente iguais, tal índice poderia ser um bom
método para julgar as vantagens de cada um. Mas como a realidade não
conirma o proposto pelo esquema, ele acaba por não levar em conta di-
ferenças muito reais, conduzindo a uma moralidade parcialmente cega.
Rawls apresentou uma réplica à crítica de Sen relativa à inlexibi-
lidade dos bens primários, alegando que quinhões equitativos de bens
primários são suicientes para que pessoas cujas constituições física e
mental estão dentro de um leque de variação normal possam desenvol-
ver as duas capacidades morais de membros cooperativos da sociedade.
A exposição dos bens primários não abstrai, mas leva em considera-
ção as capacidades básicas, particularmente as capacidades dos cida-
dãos como pessoas livres e iguais em virtude de suas duas faculdades
morais (RAWLS, 2003, p. 239). Assim, a perspectiva rawlsiana também
levaria em conta capacidades e necessidades individuais, porém, as de
tipo padrão de cidadãos que cumpram sua parte em um esquema de
cooperação social bem-ordenado19. A função dos bens primários ica

19 Conforme Vita “a alternativa consistiria em emendar a métrica rawlsiana de forma que ela
acomodasse mais diretamente os dois contra-exemplos de Sen. Isto pode ser feito de modo a não
trair o espírito da proposta de Rawls, se recordarmos que o mais importante insight moral que
está por trás da distribuição equitativa de bens primários é a ideia de capacitar as pessoas para
serem membros cooperativos de um arranjo social bem-ordenado ao longo da vida. Se este é o
propósito ao comparar quinhões distributivos com base em bens primários, podemos dizer que
ninguém deveria cair abaixo de um nível mínimo de “capacidade de funcionar” necessário para que
uma pessoa possa ser, como quer Rawls, um “membro plenamente cooperativo da sociedade”. O
enfoque normativo de Sen parece especialmente apropriado para especiicar esse patamar mínimo.
Isso pode ser feito por referência a um pequeno número de functionings básicas – acesso à nutrição
adequada, nível de escolarização, longevidade – que constituem um “complexo de capacidade”

101
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

situada, portanto, dentro da estrutura da justiça como equidade, pois o


índice desses bens é formulado levando-se em conta a necessidade de
os cidadãos se manterem livres e iguais e em plena cooperação com a
sociedade.
Porém, o importante é destacar que o pensamento dos autores
pode contribuir de maneira fundamental na relação entre Direito e Eco-
nomia. Sen, por exemplo, destaca em todos os seus argumentos a neces-
sidade de se analisar o desenvolvimento com um processo de expansão
das liberdades substantivas das pessoas, incentivando a criação, por
parte do Direito, de mecanismos que reduzam a privação da capacidade
das pessoas20. Sua análise ética econômica se relaciona diretamente com
valores jurídicos positivados na Constituição, como, por exemplo, os
direitos humanos, o respeito às minorias e a redução das desigualdades.
O crescimento econômico, portanto, deve estar intimamente ligado ao
desenvolvimento humano.
Essas ideias do autor podem ser encontradas disseminadas no tex-
to da Constituição Federal de 1988, principalmente no capítulo referente
à Ordem Econômica, pois essa ideia de desenvolvimento humano per-
passa todo o texto constitucional, desde o preâmbulo, passando pelos di-
reitos e garantias fundamentais individuais e pelos direitos sociais, che-
gando até a Ordem Econômica e a Ordem Social. Esse quadro reforça a
necessidade de um estudo multidisciplinar da ideia de desenvolvimento
prevista na Constituição, pois ela não se restringe apenas aos elementos
econômicos, atinge também questões fundamentais como a liberdade, os
direitos humanos, a defesa do meio ambiente21. A defesa de tal perspecti-

claramente identiicável e comparável.” VITA, Álvaro de. Justiça distributiva: a crítica de Sen a
Rawls. Dados. São Paulo, v. 43, n. 3, p. 471-496, mar. 1999, p.490.
20 Conforme destaca Sen “o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de
privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social
sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados
repressivos. A despeito do aumento sem precedentes da opulência global, o mundo atual nega
liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo a maioria”. SEN,op.
cit.,p.18.
21 Amartya Sen reforça a ideia de desenvolvimento sustentável presente na Constituição, airmando
que “é difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do
uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação
pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer - ao invés de
empobrecer – a vida humana. [...] A privação de liberdade econômica pode gerar a privação de
liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma,
gerar a privação de liberdade econômica”. Ibid., p.22.

102
3 • ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO

va passa, inclusive. pela própria questão fundamental relativa à interven-


ção do Estado na economia, já que a indução positiva, por exemplo, pode
incentivar comportamentos benéicos ao bem-estar geral.
As ideias propostas por Amartya Sen reforçam a necessidade de
se interpretar os valores constitucionais como um todo, impedindo uma
análise da Constituição “em tiras”, já que a preocupação com a qualida-
de de vida das pessoas perpassa todos os valores constitucionais. Nesse
sentido, por exemplo, o princípio constitucional econômico da defesa
do meio ambiente (previsto no artigo 170 da Constituição Federal) deve
ser analisado conjuntamente com todas as garantias presentes na carta
constitucional e com as normativas presentes no artigo 225 da Consti-
tuição Federal. Assim, a questão do desenvolvimento sustentável deve
ser interpretada colocando no primeiro plano a preocupação com o im-
pacto que o meio ambiente provoca sobre as vidas humanas (SEN, 2011,
p. 282). Não se trata apenas de uma questão de preservação passiva, mas
também de uma busca ativa capaz de promover agentes econômicos
comprometidos com atividades benéicas para o meio ambiente (SEN,
2011, p. 283)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia central desse texto foi promover a defesa de um estudo
multidisciplinar capaz de realmente conjugar uma relação essencial en-
tre Economia, Direito e Ética. Ao contrário de diversas correntes que, ao
invés de propor tal estudo, acabam na verdade retirando a autonomia do
Direito, sujeitando-o a interesses econômicos, a perspectiva apresenta-
da visa traçar alguns pensamentos considerados essenciais para a real
construção de um quadro que venha a reforçar os preceitos constitucio-
nais relativos à Ordem Econômica.
A abordagem teórica proposta por meio das ideias de alguns au-
tores que reforçam a necessidade de relacionar preceitos morais, eco-
nômicos e jurídicos, servem como io condutor para que o Direito não
sofra uma inluência deformante dos interesses e das necessidades par-
ticulares. Além disso, ela contribui para a necessidade de se buscar uma
sociedade justa, sem que seja rigorosamente igualitária, mas que, por
outro lado, também não deixe as desigualdades ao jogo livre do merca-
do. Apesar das críticas que se possam ser levantadas, não se pode deixar
de louvar, ainda mais quando levado em conta o imenso número de
103
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

excluídos gerados pelas sociedades atuais, a forte preocupação de tais


pensadores em fundamentar uma teoria que defenda a priorização da
expectativa dos menos privilegiados na distribuição dos bens primários
de natureza social e econômica (SEN e RAWLS) e que se preocupe ir-
memente com a liberdade humana (NOZICK).
A relação dessas questões com os princípios constitucionais da
Ordem Econômica é evidente, já que o critério de justiça não é esti-
pulado em relação aos mais privilegiados, proibindo que determinados
segmentos da população estejam condenados a uma vida indigna em
nome de algum objetivo social. Assim, uma organização social que não
se posiciona diante de desigualdades econômicas e sociais produzidas
entre seus indivíduos é injusta. Isso possibilita tanto ao desenvolvimen-
to de programas políticos quanto à utilização de mecanismos jurídicos,
capazes de proporcionar maior bem-estar social, melhorando as con-
dições de vida daqueles que se encontram em pior situação, legitiman-
do, assim, a compensação das discriminações naturais e econômicas na
busca pela formação de uma sociedade mais justa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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105
4

SOCIOLOGIA JURÍDICA:
CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A
INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E
SOCIOLOGIA

Guilherme de Oliveira Feldens1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 4.1. Ainal, Sociologia do Direito ou


Sociologia no Direito? - 4.2. Direito, Solidariedade e coesão social
em Émile Durkheim - 4.3. O Estudo do “Direito Vivo” de Eugene
Ehrlich - 4.4. Ideologia, Direito e violência - CONSIDERAÇÕES
FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO
A importância da disciplina de sociologia jurídica na formação
de um estudante e pesquisador do Direito está reletida na própria ex-
plicação do seu objeto de estudo. Ainal, é possível a existência de uma
sociedade sem Direito? Como é possível compreender o Direito: Como
um fato social ou como um fator condicionante da realidade social?

1 Doutor e Mestre em Filosoia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Professor da disciplina de Sociologia jurídica no curso de Direito da Faculdade INEDI - CESUCA.
E-mail: gulhermefeldens@cesuca.edu.br

107
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

Cabe justamente à sociologia jurídica responder tais questões por meio


da análise da relação necessária e inevitável entre norma jurídica e reali-
dade social, pois a mesma sociedade que cria o Direito, deixa-se regular
em seus aspectos políticos, econômicos e sociais por ele.
O século XIX, então, dá origem a análises profundas e sistemá-
ticas relativas ao Direito materializadas nas obras de grandes sociólo-
gos europeus. Assim, autores como Emile Durkheim, Augusto Comte
e Max Weber voltam seus estudos para o Direito e para as suas con-
sequências diretas no controle social e no desenvolvimento moral dos
cidadãos. Esse é o marco inicial para o surgimento de diversas linhas
de pensamento que vão discutir e questionar a posição do Estado como
único ente capaz de criar leis, bem como defender a existência de mais
de um “ordenamento jurídico” em determinada sociedade. Tal perspec-
tiva avança em muitos sentidos, a ponto de alguns autores negarem a
própria existência do Direito como ciência autônoma, airmando que
ele apenas persegue ins práticos totalmente dependentes de determina-
do contexto social.
O objetivo central do presente texto, portanto, é analisar a pers-
pectiva teórica de alguns sociólogos para reforçar a importância da
sociologia jurídica nos debates referentes às questões Constitucionais,
Processuais e Criminais. Desse modo, será possível destacar a necessi-
dade de se compreender a problemática relação entre norma jurídica e
realidade social por meio das mudanças sociais e do papel do Direito
diante do surgimento de novas tutelas emergentes do desenvolvimento
cientiico, tecnológico e social.

4.1. Ainal, Sociologia do Direito ou Sociologia no Direito?


A sociologia jurídica tem como objeto de estudo o fenômeno ju-
rídico2. Trata-se de uma disciplina que, por meio de uma análise empí-
rica, investiga a relação entre o fenômeno jurídico e a realidade social
(SABADEL, 2010, p. 52). Dentro dessa proposta, a investigação sobre o
Direito em termos sociológicos pode ocorrer através da inluência da
sociologia em geral sobre seu campo de estudo (Sociologia no Direito),

2 “Sociologia Jurídica ou Sociologia do Direito é a disciplina cientíica que investiga, através


de métodos e técnicas de pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada na observação controlada
dos fatos), o fenômeno social jurídico em correlação com a realidade social”. SOUTO, Cláudio,
SOUTO, Solange. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE, 1997. p. 36.

108
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

bem como a partir da formatação desse conhecimento dentro do campo


jurídico, o que se convencionou chamar Sociologia do Direito. (CAR-
NIO e GONZAGA, 2011, p. 132).
A abordagem relativa à Sociologia no Direito parte de uma pers-
pectiva interna em relação ao sistema jurídico (SABADELL 2010, p.
54). Nesse sentido, seus autores defendem que a sociologia jurídica deve
interferir diretamente na elaboração e aplicação do direito3. Essa ideia
traz como consequência grandes polêmicas, principalmente, quanto aos
aspectos referentes à aplicação do direito, já que, por exemplo, contesta
os principais pontos construídos pelo positivismo jurídico de uma lado4
e por outro nega a existência do Direito como uma ciência autônoma,
pois sempre persistirá a necessidade de se utilizar métodos próprios das
ciências sociais.
Por outro lado, a Sociologia do Direito opta por adotar uma pers-
pectiva externa, deinindo-a como um ramo da Sociologia. Portanto,
aqui o Direito tem garantido a sua posição de autonomia em relação
às outras ciências humanas e sociais (CARNIO e GONZAGA, 2011,
p. 133). Cabe ao sociólogo observar de uma perspectiva exterior, limi-
tando a sua atenção ao estudo às questões referentes à norma jurídica.
Em outras palavras, a sociologia jurídica não pode ter uma participação
ativa dentro do direito (SABADELL, 2010, p. 61). Ela pode estudar e
criticar o direito, mas não pode se tornar parte dele, pois da mesma
forma que ocorre com áreas como a ilosoia, a linguagem, a história e
a psicologia, ela não interessa nas questões relativas ao estudo da teoria
geral do Direito5.

3 Conforme Sabadell “não há uma ciência jurídica autônoma porque o direito, ademais dos
métodos tradicionais, também emprega ou deve empregar métodos próprios das ciências sociais.
Trata-se de uma ruptura com o conceito kelseniano de que o direito ‘é a norma e as relações entre as
normas’. Isto porque se aceita que os conceitos elaborados pela sociologia jurídica integrem a ciência
jurídica. Como veremos, coloca-se em dúvida a suposta neutralidade do jurista”. SABADELL, Ana
Maria. Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 54.
4 Como airma Sabadell “por meio dessa linha de pensamento, entende-se que o magistrado
sempre faz um juízo de valor e nunca aplica a lei de modo ‘puro’: nas suas decisões projeta valores
pessoais, exprimindo a sua visão do mundo [...] Assim, se não existe a neutralidade e se o direito
é uma forma de política, então por que a sociologia não deveria tentar persuadir o juiz a aplicar
um direito mais justo, em sintonia com a realidade e as necessidades sociais? Por que a sociologia
jurídica não poderia contribuir na humanização da sociedade? [...] Desta forma, a sociologia
jurídica quer compartilhar o poder de ‘inluência’ que a dogmática do direito detém sobre o sistema
jurídico”. Ibid.,p.60.
5 Conforme Rocha, essa linha de pensamento “é adequada a uma visão positivista da sociedade

109
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

A separação total entre as duas abordagens, porém, não pode ser


defendida plenamente, já que ambas envolvem aspectos bastante comple-
xos, sendo impossível, inclusive, perceber uma unidade rígida entre os
pensadores adeptos da mesma corrente. Atualmente, há tentativas de uni-
icação entre essas perspectivas, insistindo-se no fato de que a sociologia
jurídica tem necessariamente esses dois aspectos, o interno e o externo,
cabendo ao sociólogo realizar uma análise externa daquilo que é consi-
derado como Direito pela dogmática jurídica (SABADELL, 2010, p. 62).
Para ins de conclusão, pode-se airmar, de acordo com Carnio e
Gonzaga (2011, p. 133) que
A sociologia jurídica pode estudar e criticar o Direito, mas não pode
ser integrante desta ciência, na realidade, sua tarefa consiste em ser
um observador neutro do sistema jurídico. A par destas considerações
entendemos que a deinição sobre a sociologia do Direito e a sociologia
no Direito possui uma preocupação didática [...] Diante disso,
didaticamente, a sociologia no Direito seria a utilização de conceitos,
elementos, métodos da sociologia no Direito [...] já a sociologia do
Direito seria o material produzido a partir do próprio Direito a partir
de seu aproveitamento dos conceitos sociológicos.

Porém, deve-se discutir a relativa importância dessa divisão para


ins práticos, cabendo apenas conirmar a impossibilidade de se pensar
o Direito afastado de qualquer análise social6. Não se pode assemelhar
o Direito com os códigos, sem qualquer relação com as possíveis pers-

que agrada aos da velha guarda, educados num tempo em que a lei aparecia para os indivíduos
como algo superior, distante e detentora de um poder de Estado que tem como função primordial
‘criar a sociedade brasileira’ (e a própria identidade nacional). Em nome destes objetivos, em
situações recentes da história brasileira, a lei e o Direito foram utilizados de forma autoritária
para salvaguardar legalidade do Estado fundante da brasilidade. Juristas e doutrinadores
formados em épocas assim tendem a manter, em muitos casos, esta postura, que vê no Direito
um sacrossanto sistema imutável, único, cuja prioridade é garantir a ordem e progresso da
sociedade”. ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia jurídica: fundamentos e fronteiras.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.p.13.
6 Segundo Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 120), “ao Direito Moderno foi atribuída a
tarefa de assegurar a ordem exigida pelo capitalismo, cujo desenvolvimento ocorrera num clima
de caos social que era, em parte, obra sua. O Direito Moderno passou, assim, a constituir um
racionalizador de segunda ordem da vida social, um substituto da cientiização da sociedade, o
ersatz que mais se aproximava – pelo menos no momento – da plena cientiização da sociedade
que só poderia ser fruto da própria ciência moderna. Para desempenhar esta função, o direito
moderno teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna e
tornar-se ele próprio cientíico”.

110
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

pectivas sociais e ilosóicas necessárias para compreender a verdadei-


ra função do sistema jurídico. Não se pode mais admitir a redução do
Direito a meros conceitos positivados, no qual a correção decorre do
acerto de uma operação lógica.
A principal função do Estado não pode ser apenas o forneci-
mento de um padrão objetivo de conlitos em forma de lei, no qual se
cristalizaria a justiça. Não cabe mais defender como ideal primordial a
plena segurança jurídica por meio da previsibilidade na identiicação
do Direito, que acaba por icar reduzido à imposição do poder domi-
nante na sociedade7. Portanto, o ponto mais importante em relação a
essas perspectivas de se trabalhar a sociologia jurídica é questionar o
caminho do positivismo jurídico, responsável pela criação de um sis-
tema jurídico burocrático, no qual somente o Estado tem poder para
promulgar as leis, não permitindo a introdução de valores estranhos ao
sistema jurídico8.

4.2. Direito, Solidariedade e coesão social em Émile


Durkheim
Durkheim pode ser considerado precursor imediato da sociolo-
gia jurídica. Suas principais obras fundamentaram a necessidade de se
entender o Direito como um fenômeno social. É nas relações sociais que
o Direito surge e se desenvolve. Durkheim impôs a necessidade de o so-
ciólogo estudar a sociedade de forma objetiva, já que ela além de ser um
organismo com vida própria, dependente dos fatos sociais, uma vez que
a compreensão adequada dos comportamentos individuais só pode ser

7 Ao criticar esse quadro, Guerra Filho airma que “a ciência do Direito surge condicionada pela
entronização da ideia de norma, a qual favorece um padrão universal de aparência do jurídico, com
uma ciência jurídica legalista, portanto, sendo a lei a norma por excelência e as demais só se tornam
também positivas quando ela admite”. GUERRA FILHO, Willis Santiago. A ilosoia do direito
aplicada ao processo civil e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001.p.100.
8 Conforme Santos “o aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e o do
positivismo jurídico no Direito e na dogmática jurídica podem se considerar, em ambos os casos,
construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvolvimento capitalista,
bem como imunizar a racionalidade contra a contaminação de qualquer irracionalidade não
capitalista, quer ela fosse Deus, a religião, a tradição, a metafísica, ou a ética, ou ainda as utopias ou
os ideais emancipatórios”. SANTOS, op.cit., p.141.

111
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

extraída dessa análise. Ele entende o fato social como as imposições nor-
mativas, de qualquer espécie, impostas aos indivíduos pela sociedade9.
Por meio desse conceito de fato social, já é possível extrair alguns
posicionamentos essenciais em sua teoria. Em primeiro lugar, Dur-
kheim determina a sociedade como a origem de todas as normas e, em
segundo lugar, considera as normas sociais realidades objetivas de fun-
damental importância para a pesquisa de um sociólogo (SABADELLl,
2010, p. 45). O Direito, portanto, recebe uma atenção especial do autor,
já que, por meio de suas regras impõe às pessoas obrigações coercitivas
capazes de garantir a coesão social10.
O primeiro ponto importante da obra de Durkheim é a divisão do
trabalho social. Para o autor, a sociedade só existe a partir do momento
em que o grupo humano divide as tarefas necessárias à sobrevivência de
todos (ROCHA, 2009, p. 71). Assim, na necessidade de produzir bens
fundamentais para a sua sobrevivência, os homens abandonam um es-
tado de barbárie (“horda”), entrando na sociedade organizada (DUR-
KHEIM, 1999, p. 18). Ao dividir as funções consideradas fundamentais
ao grupo, os homens solidiicam os laços de solidariedade entre eles,
fortalecendo as instituições sociais.
Segundo Durkheim (1999, p. 20)
Somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho sob um novo
aspecto. Neste caso, de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar
são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua
verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento
de solidariedade. Como quer que esse resultado seja obtido, é ela que
suscita essas sociedades de amigos, e ela as marca com seu cunho.

9 “Para Durkheim, fato social é uma categoria sociológica capaz de dar objetividade ao
comportamento humano em grupo. Só seria válido para a sociologia estudar esses comportamentos
se os mesmos fossem fatos sociais. Classiicando os comportamentos humanos como fatos
sociais, a Sociologia podia compreendê-los de forma objetiva, desvendando que a natureza de
comportamentos humanos, muitas vezes explicados como comportamentos individuais, têm, na
verdade, e na maioria das vezes, origens e explicações enraizadas no convívio social, isto é, no
grupo”. ROCHA, op.cit.,p. 66.
10 De acordo com Tomazi “para Durkheim, é a sociedade, como coletividade, que organiza,
condiciona e controla as ações individuais. O indivíduo aprende a seguir normas e regras de ação
que lhe são exteriores – ou seja, que não foram criadas por ele – e são coercitivas – limitam sua
ação e prescrevem punições para quem não obedecer aos limites sociais. As instituições socializam
os indivíduos, fazem com que eles assimilem as regras e normas necessárias à vida em comum”.
TOMAZI, Nélson Dacio. Iniciação à sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.264.

112
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

A importância do Direito também está vinculada diretamente a


questão da solidariedade. Segundo Durkheim, as sociedades apresen-
tam uma estrutura de relações e de vínculos recíprocos que o autor de-
nomina de solidariedade (SABADELL, 2010, p. 49). Esse conceito deixa
claro que o autor tem uma visão de sociedade no sentido contrário de
Sociedade natural, proposta de diferentes formas, por Aristóteles, To-
más de Aquino e Karl Marx, e no sentido contrário também da socie-
dade jurídica, proposta por Hobbes, Locke e Rousseau, na qual a so-
ciedade nasce pelo contrato social, em que estabelece regras objetivas e
comuns a partir do Estado de Natureza. Para Durkheim, é a divisão do
trabalho que cria a sociedade regrada a partir do caos da horda (RO-
CHA, 2009, p. 21).
A solidariedade exige a existência de formas de controle volta-
das aos indivíduos que não respeitam as regras em vigor, ameaçando a
coesão social, já que toda sociedade estabelece um padrão de compor-
tamento, baseado no conjunto de crenças e sentimentos comuns aos ci-
dadãos de uma sociedade, que corresponde à sua “consciência coletiva”
(DURKHEIM, 1999, p. 36). A consciência coletiva não tem por substra-
to um único órgão e é independente das condições particulares em que
os indivíduos se encontram (Durkheim, 1999, p. 50). Cabe ao Direito,
então, fortalecer a consciência coletiva e garantir a estabilidade social.
Dessa forma, pode-se dizer que, para Durkheim, o Direito é um espelho
da solidariedade e do tipo de estrutura social existente. A única carac-
terística essencial ao fenômeno jurídico é de todo o preceito do Direito
ser deinido como uma regra de conduta sancionadora (DURKHEIM,
1999, p. 36). Porém, essas sanções mudam segundo a gravidade atri-
buída a seus preceitos, à posição que ocupam na consciência pública
e ao papel que desempenham na sociedade. Convém, então, classiicar
as regras jurídicas de acordo com as diferentes sanções ligadas a elas11.

11 Durkheim considera essa a forma adequada de classiicar o Direito. Segundo o autor, a


classiicação empírica do Direito, que o deine como Público ou Privado, é insuiciente para ins de
uma análise mais aprofundada sobre o fenômeno jurídico: ”a ciência não pode se contentar com
essas classiicações empíricas e aproximadas. A mais difundida é a que separa o direito em Direito
Público e Direito Privado. Ao primeiro, caberia regular as relações entre o indivíduo e o Estado;
ao segundo, as dos indivíduos entre si. Mas quando se procura analisar os termos de perto, a linha
de demarcação, que parecia tão nítida a primeira vista, , se apaga [...] Sabe-se quão controvertida
é essa questão; não é cientíico fazer uma classiicação fundamental basear-se numa noção tão
obscura e mal-analisada”. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.36.

113
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

Nesse sentido, o autor distingue dois tipos de solidariedade so-


cial. A primeira é característica das sociedades antigas e pode ser cha-
mada de solidariedade mecânica ou por similitudes. Essa forma de soli-
dariedade se caracteriza por um forte viés coercitivo, impondo aos seus
membros normas extremamente rígidas (DURKHEIM, 1999, p. 40).
Também se caracteriza pela prevalência da perspectiva pública sobre a
perspectiva privada, havendo pouco espaço para as liberdades indivi-
duais (DURKHEIM,, 1999, p. 108). Esse tipo de solidariedade apresenta
como consequência uma forte semelhança entre os membros de uma
sociedade, com uniformidade de comportamento e rígida punição para
aqueles que desobedecem à autoridade social. O Direito que representa
tal forma de sociedade tem um forte caráter repressivo, conigurando
uma justiça meramente distributiva que tem no exemplo ao infrator seu
principal norte de eicácia (DURKHEIM,, 1999, p. 109).
A segunda forma de solidariedade descrita por Durkheim é a
solidariedade orgânica, característica de sociedades bem mais comple-
xas, fundamentadas em uma ampla divisão do trabalho (DURKHEIM,
1999, p. 127). Essa forma de solidariedade é criada por meio de redes
de relacionamento entre indivíduos e grupos, nas quais a coerção não
exerce mais a função fundamental da solidariedade mecânica, já que
os próprios cidadãos policiam seu comportamento (SABADELL, 2010,
p. 55). Essa solidariedade pressupõe mais garantias aos valores indivi-
duais, pressupondo comportamentos diferenciados entre seus membros
(DURKHEIM, 1999, p. 129). Aqui, o Direito não será caracterizado por
uma caráter repressivo, pois será marcado por um traço restitutivo, no
qual a reintegração daquele que desobedece as normas sociais à divisão
do trabalho é muito mais importante do que a simples punição como
exemplo12.

12 Conforme Sabadell, “o tipo de direito que corresponde à solidariedade mecânica é o direito


penal, que se faz acompanhar de sanções repressivas (punição do desvio). O indivíduo está
vinculado aos valores de uma sociedade homogênea, que impõe um comportamento uniforme. O
direito que exprime a solidariedade orgânica compreende o direito civil, comercial, administrativo
e constitucional, fazendo-se acompanhar de sanções restitutivas (reparação de danos). Este tipo
de sanções garante a diferenciação da sociedade em funções especializadas, onde é necessária
a cooperação. O descumprimento de obrigações contratuais cria uma responsabilidade de tipo
patrimonial (e não penal) [...] Segundo Durkheim, este desenvolvimento conduz à realização dos
ideais da igualdade, de liberdade e de fraternidade no campo do direito, sendo que os indivíduos são
considerados como titulares de direitos e não como coisas submetidas a um sistema de obrigações
e de sanções”. SABADELL, Ana Maria. Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2010.p.56.

114
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

Durkheim apresenta diferenças fundamentais entre essas duas


formas de solidariedade. Enquanto que a solidariedade mecânica im-
plica que os indivíduos se assemelhem, só sendo possível na medida em
que a personalidade individual seja absorvida na personalidade coleti-
va; a solidariedade orgânica (produzida pela divisão do trabalho) supõe
que os indivíduos diiram entre si e que cada um tenha uma esfera de
atuação própria (DURKHEIM,, 1999, p. 108). Dessa forma, é necessário
que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência
individual, para que nela se estabeleça funções especiais que ela não
pode regulamentar, e quanto mais ampla for essa “parte descoberta”,
maior será a coesão social, como resultado dessa solidariedade produzi-
da pela divisão do trabalho (DURKHEIM,1999, p. 109).
Nota-se que Durkheim deine, fundamentalmente, dois tipos de
sanção:
Umas consistem essencialmente numa dor, ou pelo menos, numa
diminuição inligida ao agente; elas têm por objeto atingi-lo em sua
fortuna, ou em sua honra, ou em sua vida, ou em sua liberdade [...]
Diz-se que são repressivas. É verdade que as que se prendem às regras
puramente morais têm o mesmo caráter, só que são distribuídas de
uma maneira difusa por todo o mundo indistintamente [...] Quanto ao
outro tipo, ele não implica necessariamente um sofrimento do agente,
mas consiste apenas na reparação das coisas, no restabelecimento das
relações perturbadas sob sua forma normal [...] Portanto, devemos
dividir em duas grandes espécies as regras jurídicas, conforme tenham
sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas.

Ao deinir o Direito como fato social, caracterizado como as im-


posições de comportamento que as normas exercem sobre o compor-
tamento individual, Durkheim deu uma atenção especial ao estudo da
anomia13. Ao estudar as causas do suicídio, Durkheim deiniu a grande
inluência que a coesão social exercia sobre as causas desse ato, pois
concluiu que a ausência de regras que vinculem os membros da socie-
dade era um fator importante para a motivação de tal ato. Isso ocorre

13 Segundo Sabadell “no inal do século XIX era corriqueira a ideia de que os suicídios tinham
correspondência (ou seja, relação causal) com as doenças psíquicas, com a situação geográica,
o clima, a raça ou a etnia. Por outro lado, Durkheim partia da hipótese que o suicídio estava
relacionado com fatores sociais. E tentou tratá-lo segundo a sua principal regra metodológica;
estabelecer relações de causalidade entre fatos sociais e causas sociais”. Ibid., p.58.

115
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

devido a desorientação que as perturbações da ordem coletiva causam


aos indivíduos, criando um desequilíbrio entre os desejos e as possibi-
lidades de satisfação (DURKHEIM, 2000, p. 311). Assim, o autor deine
anomia como estado de desregramento. Evidencia uma situação na qual
a sociedade não desempenha a função de limitar os desejos e as ativida-
des dos indivíduos. Como consequência imediata, ocorre o enfraqueci-
mento da solidariedade social.
Seguindo a mesma linha de Durkheim, Merton também analisou
a questão da ausência de normas como elemento limitador dos desejos
dos indivíduos. Na visão de Merton, a organização social deine todo
um contexto, no qual as metas culturais, que expressam os valores que
regulam a vida dos indivíduos em sociedade, se desenvolvem (MER-
TON, 1970, p. 208). Incluídos nesse contexto estão os meios institucio-
nalizados que cada sociedade estabelece previamente como legítimos
para atingir tais metas.
Porém, conforme Merton, a sociedade se estrutura de forma a
não permitir que os meios socialmente admitidos estejam ao alcance
de todos os indivíduos, resultando em um desajuste entre os ins e os
meios. Esse desajuste resulta na anomia: “manifestação de um compor-
tamento no qual as regras do jogo social são abandonadas ou contor-
nadas” (MERTON, 1970, p. 212). Percebe-se, portanto, uma situação
de anomia generalizada, quando a sociedade acentua a importância de
determinadas metas, sem oferecer à maioria dos seus membros a possi-
bilidade de atingi-las através de meios institucionalizados14.
As análises de Merton e Durkheim possibilitam um grande ques-
tionamento relativo à função do Direito nas sociedades modernas, já
que diversos fatores como a delinquência por motivos econômicos e
os crimes de motivação política podem ser bem explicados através da
teoria da anomia desses autores. Tal análise também permite deinir a
postura do Estado diante desse estado de desregramento.

14 Segundo Merton “deve icar claro que a discussão anterior não é ainada a um plano moralístico.
Quaisquer que sejam os sentimentos do leitor referentes à conveniência moral de coordenar as
fases dos alvos e dos meios da estrutura social, é claro que a imperfeita coordenação das duas
conduz à anomia. Se uma das funções mais gerais da estrutura social é a de fornecer uma base para
a previsibilidade e a regularidade do comportamento social, essa função torna-se crescentemente
limitada em eiciência, à medida que esses elementos da estrutura social se tornam dissociados. No
ponto extremo, a previsibilidade é diminuída e sobrevêm o que se pode chamar corretamente de
anomia ou caos cultural”. MERTON, Robert King. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre
Jou, 1970.p.211.

116
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

4.3. O Estudo do “Direito Vivo” de Eugene Ehrlich


Eugen Ehrlich (1862-1923), jurista austríaco, em sua obra Funda-
mentos da Sociologia do Direito (1912), defende a singular tese de que o
centro de gravidade do desenvolvimento do direito não está na legisla-
ção, não está na ciência jurídica, nem na jurisprudência dos tribunais,
mas na própria sociedade. Para o autor, se fosse possível fazer essa “sim-
pliicação”, a tarefa de conhecimento do Direito consistiria somente na
reunião de todas as leis e na averiguação de seu conteúdo por meio da
interpretação da doutrina e da jurisprudência (EHRLICH, 2002, p. 109).
Porém, a realidade é muito mais complexa do que o conteúdo que
é posto pelo Direito Positivo (EHRLICH, 2002, p. 110). É impossível
esgotar todas as variantes das relações jurídicas em um sistema fechado,
pois a realidade social é muito mais rica que os conteúdos descritos em
um Código. Conforme descreve o autor (EHRLICH, 2002, p. 110):
Querer encerrar todo o Direito de um tempo ou de um povo nos
parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma
correnteza numa lagoa. O que vai para ela não é mais uma correnteza
viva, mas águas mortas, e muita água não entra nela de jeito algum.
Leve-se em consideração, além disso, que cada um destes códigos
estará superado necessariamente pelo direito vivo, no momento em
que estiver pronto e cada dia ainda mais antiquado; então, tem-se
que compreender em todo caso quão incalculável e, portanto, ainda
completamente virgem é o campo de trabalho que se abre aqui para o
moderno pesquisador do Direito

O Direito que analisa diretamente as relações sociais, que não se


limita ao que somente é válido diante dos tribunais e das autoridades, é
denominado de “Direito vivo”15. Dessa forma, o seu conteúdo não está
limitado às proposições jurídicas do positivismo jurídico, mas sim na
observação direta da vida, do comércio, da conduta dos costumes de to-
dos os grupos sociais (EHRLICH, 2002, p. 112). O jurista deve aprender

15 Conforme Carnio e Gonzaga, é possível, a partir do pensamento de Eugene Ehrlich, visualizar


três formas de Direito. A primeira é o ‘Direito Estatal’, que necessita de um aparato coativo (leis,
decretos etc.) e que surge e depende exclusivamente do Estado. A segunda forma é o “Direito dos
Juízes”, baseado nas decisões de casos concretos, que guarda relação direta com o Direito Estatal.
Por im, a terceira forma é o ‘Direito Vivo’, que consiste a base da sociedade humana”. CARNIO,
Henrique Garbellini; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Curso de Sociologia jurídica. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.122.

117
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

o conteúdo do Direito mediante sua própria observação dos produtos


espontâneos da sociedade, já que não há a construção de conhecimento
por meio dos códigos e dos autos processuais. O Direito vivo não está
atrelado a dogmas ou normas estatais preestabelecidas, pois é produto
da vida concreta das pessoas e dos grupos sociais16.
Para o autor, a sociologia do Direito deve começar pela pesquisa
do Direito Vivo, dirigindo-se primeiramente ao concreto e não ao abs-
trato (EHRLICH, 2002, p. 113). Assim, o autor trava sua discussão com o
racionalismo jurídico disseminado no continente Europeu, que deiniu
a atividade jurisdicional como mera aplicação dos preceitos jurídicos
existentes nos códigos. Suas ideias contrariam o status de ciência que o
Direito passou a ter em determinado momento histórico, tendo como
objeto de análise um modelo com o rigor lógico da dedução, contendo
normas e padrões reconhecidos pelos critérios da razão. Nesse contexto,
O Direito exerce uma função mínima, pois sua tarefa principal é apenas
organizar as relações pacíicas desenvolvidas em cada grupo social17.
A redução do Direito ao puro conceitualismo e a necessidade
de comprometimento com a neutralidade da atividade jurisdicional é
fortemente negada pelo sociólogo, já que um Direito abstrato e formal,
separado dos mundos dos fatos, seria desprovido de qualquer conteú-
do importante para um jurista. O estudo do Direito Vivo pode servir,
portanto, para criticar não só a forma de aplicação do Direito, como
também o ensino jurídico enraizado na tradição positivista, responsável

16 Segundo Ehrlich “o direito vivo tem que ser procurado nos pactos patrimoniais, nos contratos
de compra e venda, arrendamento, em contratos de crédito para construção, de hipoteca, nos
testamentos, em estatutos de associações e de sociedades comerciais, a não nos parágrafos de um
código. Todos esses contratos têm, além do individual, somente válido para o negócio isolado,
seu conteúdo típico sempre repetitivo. Este conteúdo típico do documento é fundamentalmente o
mais importante nele”. EHRLICH, Eugene. Estudo do direito vivo. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO,
Joaquim (Orgs.). Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São
Paulo: Pioneira homson Learning, 2002.
17 Essa concepção é nitidamente contrária ao modelo coercitivo proposto pelos positivistas. Isso
ica evidente na seguinte passagem de Hart:“devem existir sempre que exista um sistema jurídico
, algumas pessoas ou corpo de pessoas que emitam ordens gerais baseadas em ameaças, que são
geralmente obedecidas, e deve acreditar-se em geral que estas ameaças provavelmente serão levadas
a cabo, em caso de desobediência. Se, na esteira de Austin, chamarmos a tal pessoa ou corpo de
pessoas, supremos e independentes, o soberano, as leis de qualquer país serão as ordens gerais
baseadas em ameaças que são emitidas, quer pelo soberano, quer por subordinados em obediência
a este”. HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. p.31.

118
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

por afastar as discussões acadêmicas dos fatos concretos, como se os


mesmos fossem dispensáveis na formação do jurista18.
Por im, é importante salientar que o Direito Vivo não tem a fun-
ção apenas de determinar um padrão para a produção de normas e de
decisões judiciais. Ele tem seu próprio valor de conhecimento, consti-
tuindo a base da ordem jurídica da sociedade humana. Dessa manei-
ra, para conhecê-la, precisamos estudar todas as expressões jurídicas
existentes na sociedade, estando ou não tais expressões descritas nos
códigos e nas sentenças judiciais (EHRLICH, 2002, p. 114). Um conhe-
cimento limitado apenas às normas jurídicas será, necessariamente, de-
feituoso e insuiciente.
O pensamento de Eugene Ehrlich serviu de base forte para as
críticas ao “monismo jurídico”, responsável pela defesa da ideia de que
o Estado é a única fonte legítima de produção normativa, descartan-
do toda e qualquer possibilidade de reconhecimento de outras fontes
de produção jurídica19. Além das ideias de Eugene Ehrlich, a sociologia
jurídica apresenta outros autores que defendem a pluralidade de orde-
namentos jurídicos na sociedade. Nesse sentido, o direito não se limita
apenas as questões relativas ao monopólio da sanção do Estado. Segun-

18 Segundo Souto “o maior mérito da sociologia do Direito de Ehrlich consistia no seu cunho
antiiccionista, ou seja, no combate que representa inúmeras icções que infrutiicavam e em parte
ainda infrutiicam no campo dos estudos jurídicos. Para ele, uma das icções é a relativa à ciência
do Direito dos juristas, que é ante de tudo uma doutrina técnica e não efetivamente de um estudo
jurídico compromissado com sua realidade, visando apenas ins práticos”. SOUTO, Cláudio,
SOUTO, Solange. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE, 1997.p.90.
19 De acordo com Sabadell “a formação do “monismo” jurídico está associada ao declínio
do Feudalismo, pois a doutrina monista pretende justiicar a validade de um Estado de Direito
centralizado nas mãos de um Poder Absoluto. O direito, neste caso, passa a ser produto da vontade
exclusiva do monarca soberano. O segundo ciclo inicia-se com a Revolução Francesa e termina
com as principais codiicações do século XIX, a exemplo das Constituições dos Estados Modernos
e do Código Napoleônico. O terceiro, biparte-se. Abrange os anos 20 e 30 numa primeira etapa;
numa segunda etapa, abrange os anos 50 e 60. Nestas etapas, o que se buscava era uma legalidade
dogmática com rígidas pretensões de cientiicidade. Mas o que contribuiu para a construção
técnico-formal de uma Ciência do Direito deste ciclo? a) A expansão do intervencionismo
estatal na esfera da produção e do trabalho; b) A passagem de um capitalismo industrial para
um capitalismo monopolista “organizado” c) A implementação de políticas sociais no contexto de
práticas keynesianas distributivas d) O Estatismo jurídico ocidental da Escola de Viena, encabeçada
pela construção da teoria pura do direito, o que levou a Hans Kelsen descartar o dualismo Estado-
Direito, fundindo-os, de tal modo que o Direito é o Estado, e o Estado é o Direito Positivo.
Finalmente, o quarto ciclo, abrange os anos 60 e 70, período do surgimento de novas necessidades
de reordenação e de globalização do capital monopolista, da crise iscal e da ingovernabilidade do
Estado do Bem-Estar e de seu enfraquecimento”.SABADELL, op. cit.,p.70.

119
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

do essa corrente, o direito é considerado como manifestação de eicácia


de um sistema de regras e sanções, que podem ser observadas na prática
social e na consciência dos indivíduos (SABADELL, 2010, p. 71). Esses
“outros” ordenamentos jurídicos surgem em grupos sociais, exercendo,
inclusive, um controle psicológico e exterior mais acentuado que aquele
positivado pelo Estado.
Na sociedade pós-moderna, as discussões envolvendo o plura-
lismo jurídico ganharam mais força reforçando a ideia de que o mono-
pólio jurídico do Estado foi completamente superado. Como exemplo,
podemos citar a perspectiva da interlegalidade, existência de vários or-
denamentos jurídicos que se relacionam diretamente, apresentada por
Boaventura de Sousa Santos. Outro exemplo importante são as corren-
tes de pensamento que analisam as sociedades multiculturais. Essa li-
nha de pensamento aponta que as concepções jurídicas que defendem
o Estado como única fonte do direito pecam por entender mal a relação
entre indivíduos e sociedade (QUINTANA, 1996, p. 136). No pensa-
mento monista, por exemplo, não se compreende que os valores morais
derivam da própria sociedade na qual os cidadãos estão inseridos, não
sendo possível desvincular a identidade pessoal da identidade social. Há
uma pretensão irreal de uniformizar e excluir as diferenças, sem levar
em conta que a formação dos conceitos essenciais para o Direito passa
necessariamente pela relação com os outros.
Assim, cada pessoa deve ser vista inserida em suas origens, tra-
dições e em outros valores do grupo a que pertencem, não devendo tais
diferenças ser exterminadas por um procedimento de uniformização
(MACINTYRE, 1991, p. 367). Cada grupo deve ter direito de escolher
suas próprias metas e seus próprios valores. A defesa de um ordenamen-
to jurídico totalizante e neutro que impede a construção de identidades
e costumes jurídicos locais agregados a valores sociais.20 Defende-se
como alternativa uma proposta multicultural capaz de demonstrar a

20 Para Taylor “existe uma forma de política de igual respeito, guardada religiosamente num
liberalismo de direitos, que é hostil à diferença, porque (a) insiste na aplicação, sem qualquer
exceção, uniforme das regras que deinem esses direitos, e porque (b) desconia dos objetivos
coletivos. É evidente que isto não signiica que este modelo procure abolir as diferenças culturais.
Airmá-lo seria uma acusação absurda. Mas digo que é hostil à diferença, porque não pode ajustar-
se àquilo a que os membros das sociedades distintas aspiram realmente: a sobrevivência”. TAYLOR,
Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget,
1998. p81.

120
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

diversidade de valores e formas institucionais existentes na sociedade


como um todo. Devido ao fato de nossa sociedade ser cada vez mais
heterogênea, cabe ao Estado enfrentar essa realidade, porém sem optar
pela via da uniformização, mas sim por optar por atuar de acordo com
as diferenças (TAYLOR, 1998, p. 85).
Nessa perspectiva, o Direito estatal perde sua unidade (SABA-
DELL, 2010, p. 72). Em sua vertente empírica, por exemplo, o plura-
lismo jurídico, proposto por autores como George Gurvitch, insiste na
desvinculação completa das análises sociológicas do Direito, voltando
toda a sua atenção para o estudo de um Direito Informal surgido no
âmbito social21. A sociologia deve sempre manter o interesse em relação
a aspectos normativos surgidos na realidade social.

4.4. Ideologia, Direito e violência


A sociologia jurídica, como mostrada até agora, permite um
forte apelo crítico a diversos aspectos comuns do mundo jurídico. É
impossível, nesse sentido, não citar o desenvolvimento teórico de Karl
Marx (1818-1883), cuja obra principal o Capital, aborda de forma mul-
tidisciplinar aspectos sociológicos, ilosóicos, econômicos, biológicos
e antropológicos. A importância e inluência do pensamento marxista
não pode ser medida. Mais do que uma teoria elaborada por um grupo
restrito de intelectuais, com ins unicamente acadêmicos, o marxismo
se tornou um fenômeno de massa, relacionando-se diretamente com
acontecimentos políticos históricos que inluenciaram a geopolítica
mundial (SABADELL, 2010, p. 43).
Para a compreensão adequada da forma como Karl Marx visualiza
o Direito é fundamental compreender o modelo de organização política
e econômica descrita em O capital, bem como conceitos fundamentais
como seu materialismo histórico dialético. Segundo Marx, a organiza-
ção social tem como base a Estrutura composta pelas forças produtivas

21 Conforme Sabadell “a tese do pluralismo jurídico encontra uma objeção de tipo lógico: ou
devemos admitir que o direito informal é reconhecido pelo Estado, ou devemos dizer que este
reconhecimento não existe. No primeiro caso, trata-se simplesmente de uma delegação do Poder
Legislativo a instâncias e instituições sociais [...] Aqui não temos um ordenamento jurídico
diferente do estatal: trata-se de uma delegação do poder do Estado, que está submetida ao
controlede legalidade [...] No segundo caso, o direito informal consiste em um conjunto de regras
que, do ponto de vista do Estado, constitui um “não direito”. SABADELL, op.cit.,p.81.

121
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

e pelas relações de produção de bens necessárias para a sobrevivência


(Marx, 2008, p. 79). E são essas relações que solidiicam todas as formas
de organizações sociais, como a Moral e os comportamentos sociais e
evoluem (materialismo histórico) para ins de sobrevivência. Nesse con-
texto, o homem é o principal agente, já que o trabalho como elemento
de sobrevivência material e intelectual, conigura a dialética material
que move a história (ROCHA, 2009, p. 156).
Porém, segundo Marx, a produção se dá de forma desigual, fruto
da divisão social do trabalho (MARX, 2008, p. 121). A exploração do
trabalho é sempre necessária e o torna mercadoria, garantindo a apro-
priação material e o domínio de uma classe dominante. Na sequência
do movimento dialético, tem-se a ideologia da classe dominante, mate-
rializada no papel da cultura em transformar os valores individuais da
classe dominante em valores gerais a toda sociedade (ROCHA, 2009,
p. 162). Nesse sentido, o Estado e o Direito, como elementos da supe-
restrutura, são vistos por Marx não como um elemento social que visa
obter o bem comum da sociedade e proteger interesses e valores uni-
versais, mas como relexo da realidade estrutural e da luta de classes
(MARX, 2008, p. 234).
Marx (1983, p. 301) deixa isso bem claro na seguinte passagem:
Na produção social da sua vida os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto
destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade,
a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política
e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.
O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida
social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que
determina o seu ser, mas pelo contrário, o seu ser é que determina a sua
consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as
forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de
produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com
as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali.

O Estado tem a função primordial de amenizar a luta de classes,


lutando pela permanência da situação vigente. Ele é a expressão dos in-
teresses da classe dominante, não conigurando em nenhum ato de von-

122
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

tade (contrato social), nem em uma entidade de caráter divino22. Como


parte principal da superestrutura, o Estado tende a preservar e a forta-
lecer o sistema econômico que o criou (MARX, 2008, p. 435). O direito,
portanto, não pode ser analisado e interpretado sem essa incondicional
relação com as questões políticas, sociais e econômicas, fugindo da con-
cepção abstrata de Direito imposta pelo positivismo jurídico. Os segui-
dores de Marx atribuem grande importância à relação da infraestrutura
com a superestrutura, já que ao se ter bem claro uma noção justa dessa
relação recíproca, é possível descobrir as leis objetivas do desenvolvi-
mento social.
Conforme airma Engels (1980, p.191),
O Estado não é de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de
fora para dentro; [...] é antes um produto da sociedade quando esta chega
a um determinado grau de desenvolvimento; é a conissão de que essa
sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria
e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue
conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses
econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade
numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente
por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo
dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas
posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.

O Direito para Marx ganha um forte apelo coercitivo, pois dá re-


gramento as relações sociais da Estrutura23. É considerado um instru-

22 Segundo Marx “o Estado é a forma na qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus
interesses comuns, na qual se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se disso que
todas as instituições comuns têm como mediador o Estado e adquirem, através dele, uma forma
política [...] essa ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, conduz necessariamente, no
desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa possa ter
um título jurídico em relação a alguma coisa sem realmente ter a coisa [...]”.MARX, Karl, ENGELS,
F. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1993. p.100.
23 Conforme Sabadell “Marx observou que o direito desenvolvido na sociedade capitalista
estabelece normas universais e uniformes para sujeitos desiguais, perpetuando assim as diferenças
sociais, baseadas na exploração do trabalho das classes populares pelos detentores de capital.
Na visão marxista, o direito não é um fenômeno autônomo, nem exprime ideais abstratos
(igualdade, liberdade, justiça, ordem, segurança). O direito corresponde às relações econômicas
que predorninam na sociedade. A sociedade encontra-se dividida em classes, desenvolveu-se um
processo de dominação e de repressão das classes inferiores por parte das classes privilegiadas,
que detêm o poder. O direito relete esta realidade social, sendo que sua coniguração corresponde
às relações que se dão entre as classes sociais. Por exemplo, as normas relativas ao direito dc

123
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

mento ideológico e político de dominação usado pela classe dominante


sobre a sociedade (MARX, 2008, p. 554). Em outras palavras, o Direito
constitui um meio de reprodução do sistema econômico Capitalista,
fundado na exploração da força de trabalho pelos detentores dos meios
de produção (SABADELL, 2010, p. 71). Independentemente da forma
assumida pelo direito, seja a lei, a jurisprudência, os costumes ou as
práticas contratuais, a essência dele será sempre a mesma, nunca expres-
sando a livre vontade de toda a sociedade (ROCHA, 2009, p. 169). Não
há como pensar nas relações jurídicas afastadas das condições materiais
de existência.
Percebe-se que Marx ignora a imparcialidade da justiça e a neu-
tralidade dos julgadores, já que o Direito está inserido dentro da supe-
restrutura social, reletindo necessariamente os valores e os objetivos da
classe dominante (ROCHA, 2009, p. 125). Nesse sentido, o pensamento
de Marx é uma poderosa arma teórica contra o positivismo jurídico,
pois além de criticar os principais aspectos inerentes a essa teoria, colo-
ca a necessidade de inserir o homem no centro das discussões jurídicas,
humanizando as relações jurídicas.
O pensamento de Marx serviu como inspiração para que auto-
res como Michel Foucault desse uma nova roupagem para tais preo-
cupações. Assim, Foucault destaca o desenvolvimento das técnicas de
dominação até se atingir um estado, no qual a signiicação política da
vida humana acaba por servir de io condutor à biopolítica, colocando a
população como objeto de análise das instituições sociais e de técnicas
disciplinadoras.
Deste modo, airma Foucault (1999, p. 131) que
O momento em que se percebeu ser, segundo a economia do poder ,
mais eicaz e mais rentável vigiar que punir . Este momento corresponde
à formação, ao mesmo tempo rápida e lenta, no século XVIII e no im
do século XIX, de um novo tipo de exercício do poder [...] Mas quando
penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir,
no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus
corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atividades, seus discursos,
sua aprendizagem, sua vida cotidiana

propriedade protegem, de um modo geral, os interesses das classes sociais mais abastada”
SABADELL, op. cit., p.71.

124
4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

Os estudos de Foucault remetem a uma perspectiva na qual a dis-


seminação do poder e a repressão não ocorrem de forma centralizada,
única e exclusivamente na igura do Estado e do Direito; mas, ao con-
trário, vão além dos próprios contornos e sanções do ordenamento ju-
rídico (ROCHA, 2009, p. 188). Walter Benjamin também, em seu texto
Crítica da violência: crítica do poder (Zur Kritik der Gewalt), apresenta
argumentos consistentes para aprofundar a forma jurídica marxista,
dando a exata compreensão da diferenciação postulada entre a justiça e
o poder. Assim, ele questiona o ideal de se fazer justiça por meio de um
ordenamento legal24. Para o autor, qualquer ordem legal está embasada
em um ato originário de violência (BENJAMIM, 1986, p. 165). Do mes-
mo modo, desponta o problema da legitimação da autoridade que a lei
supõe. Esse problema propõe a discussão sobre a legitimidade do uso da
violência ao serviço do Estado, ou de ins considerados suicientemente
justos para legitimar, como por exemplo, determinados objetivos legais.
E esses estudos revisam e reforçam a importância do pensamento de
Marx para os dias atuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância da sociologia jurídica na formação de um acadê-
mico do curso de Direito está reletida em diversos aspectos salientados
no desenvolvimento do presente texto. O estudo aprofundado de autores
como Émile Durkheim, Karl Marx, Boaventura de Sousa Santos, Eugene
Ehrlich e Michel Foucault se relete diretamente em diversas outras áreas
do Direito, criando a base necessária para a correta compreensão de di-
versos institutos jurídicos, ao mesmo tempo em que possibilita o exercí-
cio de uma perspectiva crítica ao tratamento de determinadas matérias.
Assim, como ignorar o conceito de Direito e a tentativa de co-
locar o homem no centro da relação jurídica proposta por Karl Marx?

24 De acordo com Benjamin “talvez se deva levar em consideração a surpreendente possibilidade


de que o interesse do Direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela
intenção de garantir os ins jurídicos, mas de garantir o próprio Direito. Possibilidade de que o
poder, quando não está nas mãos do respectivo Direito, o ameaça, não pelos ins que possa almejar,
mas pela sua própria existência fora da alçada do Direito [...] Nesse caso, portanto, o poder – que
o Direito atual procura retirar do indivíduo em todas as áreas de atuação – se manifesta realmente
como ameaça e, mesmo sendo subjugado, ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o
Direito”. BENJAMIN, Walter. Crítica da violência – Crítica do Poder. In: Documentos de cultura,
Documentos de barbáries: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986. p.162.

125
GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

Em uma época em que, cada vez mais, a sociedade amarra o indivíduo


em processos burocráticos; na qual nos deparamos, comumente, com
dados sociais sobre as classes mais atingidas pela violência urbana e dis-
cutimos palavras como “inclusão” e “acesso à justiça”? Nesse sentido, ga-
nham força os argumentos marxistas em torno do Estado e do Direito.
Como ignorar também a contribuição de Boaventura de Sousa Santos,
Eugene Ehrlich para discutir de maneira apropriada as questões relati-
vas a aplicação do Direito, de legitimidade do ordenamento jurídico e
efetividade material da atividade jurisdicional. Sem contar, toda a com-
plexidade do pensamento de Durkheim, até hoje, amplamente discutido
nas questões referentes à criminologia.
Como se vê, o tratamento adequado dado ao estudo da sociologia
jurídica pode servir de base para a multidisciplinaridade entre várias
áreas das ciências humanas e sociais, enriquecendo os debates jurídicos
de forma bastante rigorosa e ampla. Sem perder de vista a “missão” de
relacionar diretamente o ‘mundo jurídico” com a realidade social apre-
sentada além dos muros da Faculdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4 • SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAçÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAçãO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA

GUERRA FILHO, Willis Santiago. A ilosoia do direito aplicada ao


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GUILHERME DE OLIVEIRA FELDENS

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reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
TOMAZI, Nélson Dacio. Iniciação à sociologia. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

128
5

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR


UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
HUMANIZADO

Guilherme Damasio Goulart1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 5.1. Visão clássica das obrigações


- 5.2. Direito das Obrigações, modernidade e boa-fé - 5.3.
Os deveres anexos nas obrigações - 5.4. Por um direito das
obrigações moderno: a consideração da dignidade da pessoa
humana - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO2
É evidente que é tarefa difícil tratar, em apenas um capítulo de
livro, todas as questões envolvendo o direito das obrigações. Trata-se de

1 Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado. Consultor e professor das disciplinas de Direito das
Obrigações e Direito das Coisas no CESUCA e em cursos de pós-graduação nas áreas do Direito
da Tecnologia da Informação. E-mail: guilhermegoulart@cesuca.edu.br
2 Como este artigo dirige-se a estudantes de direito, sobretudo, em início da faculdade, cabe
uma breve explicação sobre as notas de rodapé. A nota de rodapé é uma das formas de realizar a
citação de um texto utilizado pelo autor, aprimorar ou aprofundar algum assunto ou de dar outra
informação importante. O aluno deve observar que, por diversas vezes, são utilizadas as expressões
ibidem e idem. A primeira expressão sempre será acompanhada do nome do autor (primeiro seu

129
GUILHERME DAMASIO GOULART

uma disciplina com fortes raízes históricas, com institutos antigos até
hoje utilizados, mas que, modernamente, tem passado por intensa reno-
vação. É possível dizer, como se verá mais adiante, que o fenômeno de
constitucionalização do direito civil (e privado)3 e a forte consideração
da dignidade da pessoa humana4 nas relações privadas injeta no direito
das obrigações uma série de questões que devem ser observadas.
De qualquer maneira, o objetivo deste texto é trazer uma visão
panorâmica sobre alguns dos conceitos básicos do direito das obriga-
ções que são vistos, comumente, na respectiva disciplina. Todavia, mes-
mo diante do exíguo espaço, tenta-se ir além: o objetivo secundário é
trazer algumas discussões atuais que são tratadas no âmbito do direito
das obrigações. Além do mais, busca-se dar uma visão mais humana
à disciplina, sobretudo, considerando a proteção também das pessoas
envolvidas na relação e não apenas do patrimônio.
É bastante comum que o professor de uma disciplina acredite - e
defenda - a importância da sua disciplina sobre outras. Mesmo sob pena
de incorrer nesse erro, defende-se aqui a suma importância do direito
das obrigações, principalmente, no atual momento da sociedade. Or-
lando Gomes chega a airmar que “o Direito das Obrigações constitui
a base, não somente do Direito Civil, senão de todo o direito”5 e que o
conceito de obrigação “constitui a armadura e o substrato do Direito e,
ainda, de modo geral, de todas as ciências sociais”6. Por mais exagerada
que tal ideia pareça, é inegável a força e a importância da disciplina.
Basta observar - em um singelo exemplo - a cadeia de relações obriga-
cionais que foram necessárias para que o leitor desta obra, que agora
tem o livro em mãos, pudesse realizar sua leitura. Para tanto, foi neces-

sobrenome em letras maiúsculas seguido de vírgula e dos outros nomes) e indica que o autor do
texto está se referindo a mesma obra daquela autor já citada anteriormente. Assim se houve uma
citação indicando o nome do autor e o nome do livro, outra citação que traga o mesmo nome
seguido da expressão ibidem indica que se está a tratando da mesma obra. Já a expressão idem
indica o mesmo nome anterior. Geralmente é utilizada logo depois abaixo de uma citação seguida
de ibidem.
3 Que vem sendo desenvolvida, com excelência, no estado do Rio de Janeiro. Conta com a
contribuição de juristas como Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes, Luiz Edson
Fachin e Anderson Schreiber.
4 Assim inscrita no art. 1º inc. III, constituindo um dos princípios fundamentais da Constituição.
5 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: RT, 1980.
p. 1.
6 Idem. Ibidem.,p.1.

130
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

sário que: izesse a matrícula em uma faculdade de direito; que diversos


autores escrevessem os capítulos do livro; que a instituição organizadora
do livro reunisse os textos e os enviasse para uma editora; que a editora
realizasse a impressão dos livros, que após enviasse os livros por meio de
um transportador especializado etc. Todos esses exemplos constituem
relações obrigacionais, entre sujeitos distintos e que orbitam, apenas, na
publicação e na leitura de um livro.
Atualmente, também há diversas formas de denominar o mundo
em que vivemos. Fala-se muito em sociedade do consumo, sociedade da
informação ou até mesmo sociedade do risco. É inegável que tais visões
de sociedade estão alicerçadas, fundadas em relações obrigacionais. Há
nas relações obrigacionais a igura de um credor (aquele que faz jus à
prestação) e de um devedor (aquele que tem a obrigação de realizar a
prestação). Portanto, a “sociedade do consumo”, por exemplo, tem em
sua base a ideia de obrigação: consumidores adquirem produtos ou ser-
viços de fornecedores.
Mas o que se entende por obrigação? No que é possível pensar
quando alguém diz que é “obrigado” a fazer a algo? O conceito de obri-
gação é bastante amplo e pode abranger vários signiicados. Em um
sentido amplo, a “obrigação”7 envolve qualquer vínculo relacionado às
áreas morais, religiosas, familiares e, inclusive, jurídicas. Comumente as
pessoas sentem-se obrigadas, por exemplo, em função de um vínculo
moral, a fazerem certas coisas8. Este último caso, refere-se a uma obri-
gação moral9. Contudo, são as obrigações jurídicas que interessam ao
presente estudo.
De qualquer forma, em todo tipo de obrigação (nas jurídicas in-
clusive) é possível encontrar elementos essenciais. Tais elementos, na
visão de Clóvis Bevilaqua são “a limitação, o encadeamento da liberdade
psíquica, refreando a expansão da personalidade e, concomitantemente,
um estímulo que vem determinar a vasão, por um determinado sulco, das

7 Palavra que vem do verbo latino obligare (ob + ligare), composto de ligare, que signiica ligar,
atar ou amarrar, cf. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Obrigações. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2013. p. 3.
8 Como um exemplo da vida cotidiana pode ser o ato de cumprimentar os vizinhos. Não há uma
norma jurídica que obrigue as pessoas a serem educadas com seus vizinhos. Quem o faz, sem
dúvida, assim age em função de uma inclinação moral.
9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 9.ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 17.

131
GUILHERME DAMASIO GOULART

energias assim refreadas”10. As pessoas obrigam-se a fazer (ou deixar de


fazer) algo em função de um motivo. No tocante às obrigações jurídicas,
este motivo está relacionado com a ordem jurídica.
Dito isto, passa-se a destacar alguns dos elementos fundamentais
das obrigações em uma visão clássica.

5.1. Visão clássica das obrigações


Segundo Maria Helena Diniz o direito das obrigações pode ser
deinido como
[...] um complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem
patrimonial, que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito
de outro. Visa, portanto, regular aqueles vínculos jurídicos em que ao
poder de exigir uma prestação, conferido a alguém, corresponde um
dever de prestar, imposto a outrem11.

Este é um conceito amplo e trata do direito das obrigações como


um todo. Todavia, é possível especiicar um pouco mais o assunto por
meio do conceito de “obrigação” em si. O Código Civil não traz o con-
ceito de obrigação, icando este a cargo da doutrina. São vários os con-
ceitos, todos muito próximos, que como se verá, têm em comum alguns
elementos básicos.
Um dos conceitos clássicos, retirado das institutas do imperador
Justiniano (também conhecida como corpus iuris civilis) é: “A obrigação
é um vínculo de direito, constituído com base no nosso direito civil, que
nos força rigorosamente a pagar alguma coisa”12. Trata-se de um concei-
to um tanto quanto limitado, pois se restringe ao pagamento-prestação,
não abrangendo a ideia de obrigações de não-fazer. Outra deinição,
também clássica, e até hoje citada em vários cursos, é a de Clóvis Be-

10 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977.
p. 11.
11 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 29. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014. p. 19.
12 Cf. Livro Terceiro, Título XIII de JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Institutas: Manual
para uso dos estudantes de Direito de Constantinopla, copilado por ordem do Imperador Justiniano
em 533 d.C. São Paulo: Edipro, 2001, p. 154. As institutas do imperador Justiniano são uma
compilação feita por ele, quando imperador do império romano do oriente, no século VI d.C. Diz-
se que as institutas compõem “o melhor fruto do direito romano”, cf. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY,
Rosa Maria de Andrade (coord). Manual de direito civil: obrigações. São Paulo: RT, 2013. p. 28.

132
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

vilaqua em seu livro “Direito das Obrigações”, com a primeira edição


publicada em 1898. Diz o ilustre civilista que obrigação é
[...] a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não
fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito
de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente
relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós
essa ação ou omissão13.

Já Roberto Senise Lisboa airma que obrigação jurídica


[...] é um vínculo de direito de natureza transitória que necessariamente
compele alguém a solver aquilo a que se comprometeu, garantindo o
devedor que pagará a prestação economicamente apreciável, seja por
meio do seu próprio patrimônio ou de outrem14.

Neste último conceito destaca-se o elemento da “transitoriedade”,


que também é encontrado na deinição de Bevilaqua. A obrigação será
sempre transitória. E o que signiica isto? Signiica que ela nasce para
morrer, para ser cumprida em algum momento. Ao contrário dos direi-
tos reais, que possuem a característica marcante da perpetuidade (como
a propriedade, por exemplo), o mesmo não ocorre com as obrigações
que, “por mais longas que sejam […] um dia elas se extinguirão”15.
Vistos tais conceitos, é importante referenciar a diferença entre
dever e obrigação. O dever jurídico é o gênero ao qual pertence à obri-
gação16. De maneira geral, é visto com “um comando imposto, pelo di-
reito objetivo, a todas as pessoas para observarem certa conduta sob
pena de receberam uma sanção pelo não cumprimento do compor-
tamento.”17. Assim, a lei impõe diversos deveres genéricos às pessoas,

13 BEVILAQUA, op. cit.,p. 14.


14 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil: Obrigações e responsabilidade civil. 3. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 61.
15 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos.
São Paulo: Atlas, 2002, p. 26.
16 RIZZARDO, op.cit., p. 5.
17 DINIZ, op.cit.,p. 41. Conceito bastante semelhante é trazido por Orlando Gomes: “Dever
jurídico[..] é a necessidade que corre a todo indivíduo de observar as ordens ou comandos do
ordenamento jurídico, sob pena de incorrer numa sanção, como o dever universal de não perturbar
o exercício do direito do proprietário.” GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. São Paulo: Forense,
2008. p. 11. O dever também é visto como “dever jurídico genérico” em oposição ao “dever jurídico
especíico”, sendo estes últimos as obrigações, cf. CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de

133
GUILHERME DAMASIO GOULART

relacionados, por exemplo, aos direitos reais, de família, da personali-


dade etc.18. Já a obrigação é um conceito mais limitado e especializado:
de cunho patrimonial (também chamada de “direitos de crédito” ou de
“direitos pessoais”19), envolve um vínculo, entre duas partes, que enseja
uma prestação especíica realizada por alguém (devedor) em favor de
outro (credor).
Entre os conceitos citados é possível destacar certos elementos
chamados de essenciais. Uma obrigação é composta por um elemento
subjetivo, ou seja, pessoal. É necessário que exista um credor (que é o
polo ativo) e um devedor (que é o polo passivo) que devem ser deter-
minados ou determináveis. O credor recebe a prestação do devedor. E,
ao contrário da antiguidade, quando o devedor podia responder com
o seu corpo caso não cumprisse com uma obrigação, sendo até mesmo
escravizado, atualmente, o devedor responde pelas suas dívidas com o
seu patrimônio20. Dessa forma, o credor tem como garantia o patrimô-
nio do devedor caso este não cumpra com o combinado. Encontra-se
aí um dos elementos fundamentais da obrigação que é esse poder21 que
o credor tem – inclusive utilizando-se do judiciário – de exigir que o
devedor cumpra o ajustado.
De igual forma toda obrigação possui um elemento material ou
objetivo que se traduz no objeto da obrigação. Tal objeto consubstan-
cia-se em três condutas que Orlando Gomes chama de “objeto da pres-
tação”: dar, fazer ou não fazer22. Como se vê, trata-se de uma ação ou
omissão que deve ser cumprida pelo devedor da obrigação. Desde que
seja lícita, possível, determinada ou determinável23, as partes têm direito
de ixarem os objetos que bem entenderem. Esta é, por sinal, uma das
diferenças entre o direito das obrigações e os direitos reais: enquanto no
primeiro há uma grande liberdade de estipulação do objeto, os direitos

Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos – Institutos Fundamentais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014. p. 50.
18 Idem. Ibidem, p. 41.
19 Expressão que não deve ser confundida com direitos da personalidade.
20 Cf. o art. 391 do CC e o art. 591 do CPC.
21 DINIZ, op. cit., p. 45.
22 GOMES, op.cit., p. 43.
23 Cf. o art. 104, inc. II do CC.

134
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

reais são numerus clausus, ou seja, suas modalidades são apenas aquelas
previstas no art. 1225 do CC.
Costuma-se dizer também que todas as obrigações devem ser
economicamente apreciáveis24. Isso signiica que em um contrato, por
exemplo, o objeto envolvido ou a prestação precisam ter algum valor
econômico. Todavia, podem existir situações em que o objeto possua
valor apenas para as partes envolvidas25. De qualquer forma, a estipu-
lação de um critério pecuniário é necessária para, no caso do descum-
primento do acordado, seja possível estabelecer alguma “punição pela
inexecução”26.
Outro elemento comum a todas as obrigações é o vínculo. Em-
bora exista mais de uma teoria que o explique, em apertada síntese, o
vínculo é constituído por dois elementos: o debitum e a obligatio ou dé-
bito e responsabilidade27. O débito é a obrigação da prestação em si, que
é cumprida pelo devedor; a responsabilidade é a sujeição do patrimô-
nio do devedor que nasce no caso de inadimplemento28. Encontra-se aí
a possibilidade da coercibilidade, no caso do não cumprimento, pelo
devedor. Quase sempre o débito e a responsabilidade estão juntos. To-
davia, nada impede que se tenha uma obrigação sem responsabilidade
ou uma responsabilidade sem obrigação29. A primeira situação envolve
as chamadas obrigações naturais. Elas não podem se exigidas judicial-
mente, mas se pagas, também é possível, de acordo com o art. 814 do
CC, recobrar suas quantias30. Outro exemplo das obrigações naturais é a
dívida prescrita que não é mais exigível, mas se porventura for paga pelo
devedor, este não pode tentar restituí-la31. A obrigação natural só nasce
para o direito quando ela é paga fazendo nascer, para o credor, o direito

24 BEVILAQUA, op.cit., p. 13.


25 É comum que fãs de artistas famosos adquiram em leilões pedaços de cabelos dos artistas por
vultosas quantias.
26 BEVILAQUA, op.cit., p.13.
27 De acordo com os alemães débito signiica shuld e responsabilidade hatung. Cf.
CARNACCHIONI, op.cit., p. 50.
28 Idem. Ibidem, p. 59.
29 GONÇALVES, op.cit., p. 52.
30 Clóvis do Couto e Silva indica como exemplos das obrigações naturais: as de jogo e aposta, as
de honra e as de crédito com pretensão prescrita. Cf. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como
processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006.p.86.
31 RIZZARDO, op.cit.p. 63.

135
GUILHERME DAMASIO GOULART

de retê-la32. Ainda na primeira situação, outro caso bastante curioso,


em relação às obrigações naturais, são aquelas relacionadas às relações
afetivas entre pais e ilhos. Os tribunais têm entendido que não haveria
como, por exemplo, obrigar um pai a passar as férias com um ilho; eis
que, dar carinho e amor ao ilho seria uma obrigação (de fazer) natural
e, portanto, não executável33.
Já o segundo caso (responsabilidade sem obrigação) trata-se da
situação da iança em que alguém se obriga a pagar uma dívida contraí-
da por outro devedor em caso do inadimplemento deste, conforme o
art. 818 do CC.
As obrigações, sem exceção, também possuem alguma causa, que
não se confunde com seu objeto. Tais causas são tratadas pela doutrina
como as “fontes das obrigações”. Classicamente, as fontes ou causas das
obrigações eram tidas como o contrato, o quase-contrato, o delito e o
quase-delito34.
À ideia de separação entre contrato e delito reconhece-se uma
função de cada uma das fontes. O contrato possui uma função dinâmi-
ca, baseada na vontade de realizar a circulação de riquezas e regular os
interesses das partes; já o delito possui função estática e é visto como
um “instrumento de proteção do patrimônio jurídico do indivíduo em
relação a perturbações exteriores, capazes de lesar sua esfera pessoal ou

32 Idem. Ibidem, p. 63.


33 Embora o Tribunal utilize o termo “obrigação”, levando em conta a diferença entre dever e
obrigação trazida acima, parece que o termo adequado aqui seria realmente “dever”.
Não se ignora o fato desta questão ser bastante polêmica e há situações em que ilhos abandonados
conseguem indenizações pelo chamado abandono afetivo.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 7ª Câmara Cível. Apelação n. 70059360388.
L.R.F x M.S.C. Relator: Desª. Liselena Schiino Robles Ribeiro. Porto Alegre, 07 de Maio de 2014.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. PEDIDO DA GENITORA
PARA QUE O FILHO PASSE AS FÉRIAS COM O PAI. DESCABIMENTO. 1. A regulamentação
de visitas materializa o direito do ilho de conviver com o genitor não guardião, e também o deste
em dirigir e participar da educação do ilho, sendo o espaço próprio para o desenvolvimento de
vínculos afetivos. 2. O acordo de visita ao ilho, assegurou o direito do pai de exercer a visitação
de forma livre. Porém, se o pai mostra desinteresse em conviver com o ilho, dar-lhe carinho e
amor, não pode o Poder Judiciário obrigá-lo a cumprir com essa obrigação natural [grifo nosso],
sob pena de prejudicar o próprio ilho, pois a visitação forçada terminaria por estabelecer uma
convivência de má qualidade e até traumática, pois não é possível forçar alguém a ser bom, gentil
e afetuoso. A visitação do pai ao ilho deve ser um momento agradável e recíproco, tendo natureza
personalíssima, sendo juridicamente impossível a sua determinação como pretende a autora.
RECURSO DESPROVIDO.
34 Cf. Livro Terceiro, Título XIII, §2º de JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Ibidem, p. 155.

136
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

econômica”35. Assim, modernamente, no último caso, tem-se como fon-


te das obrigações o ato ilícito. Nasce a “obrigação de indenizar” quando
alguém comete um ato ilícito, conforme o art. 927 do CC36. E, aí, vê-se a
beleza da disciplina do direito das obrigações que permite, ao estudar as
obrigações de indenizar, integrar toda a disciplina da responsabilidade
civil tão importante em uma sociedade do risco.
A lei também é vista como fonte imediata ou primária de obriga-
ções. Qualquer que seja o ato, submete-se ele à vontade da lei37. Por mais
que as partes tenham a liberdade, baseadas no princípio da autonomia
da vontade, para estipular, criar e deinir o conteúdo dos seus pactos,
mesmo assim, devem submeter-se à lei38. A lei estipula os efeitos dos
atos sendo um deles, entre muitos, a possibilidade das pessoas criarem
seus pactos obrigacionais.
De qualquer forma, a doutrina atual aponta o contrato, a declara-
ção de vontade e o ato ilícito como fontes de obrigação39. É bem verdade
que, entre os autores e, principalmente nos livros, textos ou manuais de
direito civil, não há um consenso sobre quais são exatamente as fontes.
Assim, é possível encontrar na doutrina aqueles que airmam, ao im,
que as fontes das obrigações resumem-se apenas ao ordenamento jurí-
dico vigente40. Diz-se, por isso, que a complexidade das relações é gran-
de e podem existir situações especíicas que não iquem estabelecidas
pelas fontes citadas na doutrina.
A disciplina de direito das obrigações estuda ainda os vários ti-
pos de obrigações, em relação à natureza do objeto, à sua liquidez e ao
modo de execução. Há, ainda, as obrigações com seus elementos aci-
dentais, como as obrigações condicionais, modais e a termo. Estuda-se,
igualmente, as obrigações divisíveis e indivisíveis, solidárias e quanto ao
seu conteúdo (as obrigações de meio, resultado e garantia). Também, ao

35 MIRAGEM, Bruno. Abuso do Direito: Ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas


jurídicas no Direito Privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 210.
36 Art. 927 do CC: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, ica obrigado
a repará-lo.
37 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 70.
38 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 25.
39 Idem. Ibidem, p. 71.
40 RIZZARDO, Arnaldo. Ibidem, p. 17.

137
GUILHERME DAMASIO GOULART

longo da disciplina, vê-se os efeitos das obrigações, sobretudo as ques-


tões relacionadas ao adimplemento e ao inadimplemento e, também,
em relação à sua transmissão.
Contudo, há aspectos mais profundos sobre como o direito tra-
tou, ao longo da história, a disciplina das obrigações. Em boa parte do
período histórico, o direito das obrigações foi regido pela prevalência
máxima do chamado “pacta sunt servanda”. Esse princípio estabelece
que as partes possuem a liberdade para estabelecerem livremente os
pactos, desde que, evidentemente, não contrariem a lei, os bons cos-
tumes e a ordem pública de maneira geral41. Tendo isso em conta, os
negócios eram muito mais pautados pela sua literalidade42: o que estava
escrito nos contratos era o que deveria ser seguido sem muitas possibili-
dades de veriicação de injustiças ou situações que prejudicassem muito
a posição do devedor.
Carregado de um individualismo exacerbado e de uma ética valo-
rizadora da propriedade acima de qualquer coisa, com a evolução da so-
ciedade, foi-se notando que o Direito - baseado em tais premissas - não
estava conseguindo acompanhar as necessidades humanas. O direito das
obrigações do século XIX valorizava muito mais a propriedade e, apesar
de promover inegáveis avanços, passou a criar, em certos momentos, de-
sigualdades e a favorecer exageradamente a parte mais forte43.
Passou-se a questionar, então, entre outras coisas, se o cumpri-
mento absoluto do “pacta sund servanda” seria compatível com um
regime de proteção da pessoa44.Além do mais, com os processos de in-
dustrialização, começou-se a observar um crescente processo de pro-
moção de desigualdades. Grandes grupos comerciais passaram a impor
às pessoas uma série de condições prejudiciais que, ao longo dos anos,

41 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p. 539.


42 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. O direito das obrigações na contemporaneidade.
In: MELGARÉ, Plínio (Org). O direito das obrigações na contemporaneidade: Estudos em
homenagem ao Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p.
11-18, 2014. p. 12.
43 GOMES, Orlando. Ibidem, p. 2.
44 Se no período marcado pelo liberalismo a força obrigatória dos pactos devia-se apenas à
vontade livre das partes, com o estado social é necessário mais. Não basta a vontade livre mas
é necessário também que o pacto esteja em conformidade com a ordem constitucional e outros
princípios como boa-fé, função social do contrato e da propriedade, dignidade da pessoa humana,
etc. CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p. 543-544.

138
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

importaram no aumento do “clamor geral por justiça”45. O Estado passa,


então, a interferir e limitar a autonomia da vontade46 colocando alguns
limites na liberdade de contratar. Um dos exemplos importantes nesse
campo é o próprio Código de Defesa do Consumidor, que impõe uma
série de limites à liberdade de contratar dos fornecedores de serviços.
Mais recentemente, da mesma forma, aparece o Marco Civil da Internet,
impondo às empresas que atuam na Internet uma série de deveres no
sentido de garantir direitos aos internautas. De certa forma, tais iniciati-
vas tentam sustentar a manutenção do equilíbrio47, principalmente, por
evitar abusos e práticas que prejudiquem as partes unidas pelo vínculo
obrigacional48.
É importante ressaltar que não se elimina a autonomia da vonta-
de, ao contrário, ela é limitada, atenuada ou até mesmo reduzida frente
a interesses mais caros, sobretudo, no que diz respeito à dignidade da
pessoa humana49 em homenagem à própria função social do contrato.
Todavia, ainda persiste uma autonomia não mais elevada às raias de um
direito absoluto, mas sim, ponderada pela valorização da pessoa.

5.2. Direito das Obrigações, modernidade e boa-fé


Após essa breve exposição acerca da visão clássica das obrigações
e sobre alguns de seus elementos é possível questionar como a moder-
nidade afeta tais relações. Será que as mudanças sociais ocorridas nos
últimos 20 ou 30 anos permitem que se estude o direito das obrigações
baseando-se nas mesmas premissas clássicas?

45 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Os princípios reguladores da autonomia privada: autonomia da


vontade e boa-fé. Revista Direito e Democracia da Ulbra. v. 1, n. 1, p. 95-112, 1º sem. 2000. p. 100.
46 A igura da autonomia da vontade é tratada quase sempre nas disciplinas de teoria geral dos
contratos. No Código Civil encontra-se localizada nos arts. 421 e 425 já, portanto, na parte que
trata das disposições gerais sobre os contratos em geral. Todavia, esta divisão tópica e didática (das
disciplinas) muitas vezes precisa ser ultrapassada. Ambas as disciplinas, direito das obrigações e
teoria geral dos contratos, são muito próximas e, por vezes, é necessário fazer uma integração e
ligação dos assuntos tratados em ambas.
47 BRANCO, op.cit, p. 101.
48 A teoria geral dos contratos aborda, com mais profundidade tais questões ao tratar, por
exemplo, dos chamados contratos de adesão.
49 É o que diz o enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Art.
421: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio
da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes
interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.”

139
GUILHERME DAMASIO GOULART

O direito como um todo é, evidentemente, afetado pelas modii-


cações sociais. As mudanças históricas vão, ao longo do tempo, crian-
do novas relações e estabelecendo novas normas de conduta. Todas as
áreas, ramos ou disciplinas sofreram modiicações, sobretudo, após o
segundo pós-guerra. O uso intenso da tecnologia, por exemplo, cria
novas formas de contato, o que inlui sobremaneira nas relações obri-
gacionais.
Igualmente, o direito das obrigações é afetado por modalidades
negociais, como os contratos de adesão e os contratos de massa. Em
função de uma crescente desigualdade entre os contratantes foi possível
ver o nascimento do Código de Defesa do Consumidor e de orientação
jurisprudencial pacíica no sentido de se reestabelecer a igualdade entre
os contratantes.
A massiicação das relações de crédito envolvendo, inclusive, o
direito do consumidor dão força e impulso a um direito das obrigações
renovado e alinhado com princípios e regras constitucionais, sobretudo,
a proteção da dignidade da pessoa humana. Não é mais o patrimônio
o centro do ordenamento jurídico, mas sim a pessoa humana. Não se
pode sustentar uma dogmática que permita a promoção da injustiça50.
Realiza-se, portanto, uma despatrimonialização e uma repersonalização
do direito civil tendo em conta “uma visão constitucionalizada do direi-
to privado”51. Um dos objetivos da República, é importante frisar, é jus-
tamente a construção de uma sociedade justa e solidária, com a redução
das desigualdades, conforme previsão do art. 3º, I e II da CF.
A tecnologia também inluencia muito os direitos das obrigações.
A própria ideia de despersonalização das relações virtuais existente nas
relações de consumo via Internet é um exemplo do “apagamento” da
igura do devedor. Não se sabe, exatamente, quem é o devedor e, com
isso, dilui-se um dos componentes principais do direito: a coniança. A
proteção da coniança é – e sempre foi – um dos elementos mais im-
portantes para o direito. É possível dizer que há um interesse em toda

50 FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto


do Direito Brasileiro – IDBB, Local? Ano 1, n. 1, p. 185-243, 2012, p. 212. No mesmo sentido
ver AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p. 12: “...não era mais aceitável o extremo
patrimonialismo da velha ordem, mais preocupada com os bens do que com as pessoas; a liberdade
meramente formal e a igualdade apenas jurídica consagravam situações de extrema injustiça...”
51 FACCHINI NETO, op.cit., p. 233.

140
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

a sociedade que a coniança seja protegida e que a palavra dada seja


cumprida52.
O novo Código Civil, ao contrário do de 1916, traz em si, em
várias passagens, uma ideia de “socialidade”53. Esta ideia é apoiada, es-
pecialmente, por dois princípios: a boa-fé objetiva e a inalidade ou im
social do contrato54.
Tradicionalmente, e ainda hoje isso é perceptível, as partes na
obrigação eram colocadas em posições antagônicas. Todavia, na lição de
Clóvis do Couto e Silva, a obrigação deve ser vista como um vínculo de
cooperação; trata-se de uma totalidade orgânica55. O termo “obrigação
como processo” também abrange a ideia de dinamicidade da obrigação
que comporta várias fases que se desenvolvem para uma inalidade56.
Na perspectiva de um direito civil moderno, o princípio da boa-
fé objetiva perpassa praticamente qualquer relação de direito privado.
No âmbito do direito das obrigações, com a chamada “uniicação das
obrigações civis e comerciais”, entende-se que há a aplicação da cláusula
de boa-fé tanto nas obrigações civis quanto nas comerciais57. Com isso,
tanto os contratos entre particulares quanto os contratos entre empre-
sas precisam observar a boa-fé objetiva. De igual forma, o Código de
Defesa do Consumidor prevê, nos arts. 4º, III e 51, IV, a boa-fé como
cláusula geral.
Mesmo antes do Código Civil de 2002, que prevê a observância
da boa-fé objetiva no seu art. 422, alguns doutrinadores já a enxergavam
no ordenamento brasileiro. Entre os mais importantes cita-se Clóvis do
Couto e Silva58, Judith Martins-Costa59 e Orlando Gomes60. De forma
geral, tais autores desenvolveram a ideia, com base no direito compa-

52 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). Manual de direito civil:
obrigações. São Paulo: RT, 2013. p.26.
53 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p. 15.
54 Idem. Ibidem, p. 15.
55 SILVA, Clóvis do Couto e. Ibidem, p. 19.
56 Idem. Ibidem, p. 21.
57 Cf. CAROTA, José Carlos. A uniicação das obrigações civis e comerciais como um dos
fundamentos do direito civil contemporâneo. Revista Forense, v. 415, p. 445-454, jan.-jun./2012.
58 SILVA, op.cit.,p.19
59 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999.
60 GOMES, Orlando. Ibidem.

141
GUILHERME DAMASIO GOULART

rado, partindo da cláusula de boa-fé (treu und glauben)61 inscrita no


código civil alemão (BGB), o que constitui um “elemento fundamental
para uma compreensão absolutamente nova da relação obrigacional”62.
Não se admite que as partes, em uma relação obrigacional, ajam
no sentido de se prejudicarem. Sabe-se que a boa-fé objetiva é um dos
exemplos de cláusulas gerais que permitem
[...] o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorati-
vos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, má-
ximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das nor-
mativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas,
viabilizando a sua sistematização no ordenamento jurídico63.
É possível dizer que tais cláusulas também permitem uma liga-
ção intra-sistemática que consideram as próprias normas do código e
também intersistemática, ou seja, entre o código civil e a constituição64.
Este tipo de cláusula aberta ou geral – como a boa-fé - promove
a abertura de toda a ordem jurídica, permitindo avançar contra a visão
antiga de um modelo fechado do ordenamento, pretensamente sem la-
cunas, e que reproduzia a ideia das regras positivadas serem suicientes
em si. Sem adentrar no terreno da hermenêutica (e o cuidado que se
deve ter com a arbitrariedade e discricionariedade na interpretação de
cláusulas gerais65) é certo que se reconhece a socialidade como um pa-

61 Cf. § 242 do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) ou Código Civil Alemão.


62 SILVA, Clóvis do Couto. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português. In: FRADERA,
Vera Maria Jacob (org). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 34. Embora seja quase sempre citado o §242 do BGB,
este autor indica que ele é reforçado também pelo § 157 do mesmo diploma legal.
63 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999. p. 274.
64 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil
Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 99.
65 Ver o capítulo “Argumentação Jurídica” desta obra, escrito pela Profa. Ângela Kretschmann e
pelo Prof. Ney Wiedmann Neto. Ver, também, as críticas de STRECK, Lênio. Verdade e Consenso:
Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: Da possibilidade à necessidade de respostas
corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 374-375: “quando se diz que a
Constituição e as leis são constituídas de plurivocidades sígnicas (textos “abertos”, palavras vagas e
ambíguas, etc), tal airmativa não pode dar azo a que se diga que sempre há várias interpretações
e, portanto, que o direito permite múltiplas respostas, circunstância que, paradoxalmente, apenas
denuncia […] as posturas positivistas que estão por trás de tais airmativas; por isso que também
são incompatíveis com a hermenêutica as teses que as teses sustentam que o advento dos princípios
e das cláusulas gerais possibilitam uma (maior) ‘abertura’ (liberdade) interpretativa em favor dos
juízes, circunstância que recoloca, no paradigma neoconstitucionalista, a principal característica do
positivismo: a discricionariedade”.

142
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

radigma importante no Direito Civil moderno. De maneira geral, todo


o direito privado acaba por passar por uma abertura sistemática no sen-
tido de realizar “uma aproximação com o Direito Público, e a irradia-
ção dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição às relações
entre particulares”66. Se, por exemplo, a proteção da intimidade, vida
privada, honra e imagem é tida como um direito fundamental, não ape-
nas o poder público deve respeitá-lo, mas, também, os particulares em
suas relações.
A boa-fé objetiva tem, por im, diversas funções e momentos
para sua observância. Ela têm espaço na fase pré-contratual, no curso
da prestação e também após. Além do mais, dentre suas funções, é pos-
sível encontrar no mínimo três: interpretativa, de acordo com o art. 113
do CC; controle dos limites do exercício de um direito, conforme o art.
187 do CC; e função de integração do negócio jurídico, pela análise do
art. 421 do CC67.
A função interpretativa da boa-fé age na limitação da autonomia
da vontade por meio da imposição de certos deveres que podem não
estar presentes nas manifestações de vontade68.O intérprete deve, na sua
atividade, sempre retornar à ideia de boa-fé como regra mestra: inter-
preta-se sempre conforme a boa-fé69. Trata-se, também, de “conferir jus-
ta medida à vontade que se interpreta”70.
Já a função de integração envolve colocar, no negócio jurídico,
eventuais elementos que não estejam diretamente relacionados com a
declaração. É por meio dessa possibilidade que entram em jogo os cha-
mados deveres anexos, que serão vistos logo a seguir.
Agir de boa-fé, por óbvio, signiica não agir de má-fé. Essa regra
indica que as partes devem agir, entre outras coisas, com lealdade umas
com as outras em uma relação obrigacional. E o que signiica agir com
lealdade? Quais atos que indicam que alguém é leal com o outro? Ba-
sicamente, ser leal é pautar a relação pela proteção da coniança (que é
a base de qualquer relação humana71), pela indicação de informações

66 MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p. 39.


67 VENOSA, Sílvio de Salvo. Ibidem, p. 380.
68 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Ibidem, p. 61.
69 Idem. Ibidem, p. 61.
70 SILVA, Clóvis do Couto e. Ibidem, p. 35.
71 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p. 37.

143
GUILHERME DAMASIO GOULART

úteis sobre a situação e pela consideração da verdade. Agir pautado pela


boa-fé indica que a parte não pode enganar a outra ou omitir informa-
ções verdadeiras e necessárias para o negócio. Muitas vezes, as partes
omitem informações cruciais sobre o negócio, que se fossem conhecidas
fariam com que a outra parte não contratasse. Um médico, por exemplo,
tem o dever de prestar todas as informações em uma cirurgia estética,
envolvendo possíveis riscos, eventuais problemas relacionados, sobre os
resultados, bem como outros cuidados pós-operatórios. Segundo juris-
prudência do TJ-RS, em tais casos, a informação dada pelo médico deve
ser “exaustiva e minuciosa”72.
A consideração da boa-fé, nas relações obrigacionais, faz nascer
também alguns deveres especíicos, que serão vistos agora.

5.3. Os deveres anexos nas obrigações


O grande jurista Clóvis do Couto da Silva airma que, nas obri-
gações, é possível separar os deveres em duas classes: os deveres princi-
pais, relacionados com o cumprimento da obrigação em si, e os deveres
anexos, também chamados de secundários ou instrumentais73.
A própria ideia de abuso de direito, contida no 187 do CC74, é um
dos balizadores da atuação das partes na obrigação. Aquele que exerce
seu direito de forma anormal, violando, por exemplo, os limites sociais
de um direito, mesmo em uma relação obrigacional, pode cometer o
abuso de direito que faz nascer a obrigação de indenizar. Assim, a ideia

72 Cf. pode ser visto no acórdão relatado pelo professor do Cesuca e também Desembargador
Ney Wiedemann Neto: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 6ª Câmara
Cível. Apelação n. 70058106741. T.S.P x T.V. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. Porto Alegre,
29 de Maio de 2014. Apelação cível. Responsabilidade civil. Ação de indenização por danos
morais e estéticos. Erro médico. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Erro medido
caracterizado. Dever de indenizar conigurado. Descumprimento do dever de informação. O
proissional da medicina tem o dever de informar o paciente sobre os detalhes do procedimento,
os riscos e implicações, bem como as suas garantias, além dos cuidados necessários para alcançar o
resultado almejado. Manutenção da verba indenizatória ixada em sentença quanto ao dano moral.
O valor da indenização pelo dano moral deve ser ixado, considerando a necessidade de punir o
ofensor e evitar que repita seu comportamento, devendo se levar em conta o caráter punitivo da
medida, a condição social e econômica do lesado e a repercussão do dano. Juros de mora. Alteração
do termo inicial. Apelo do réu não provido e apelo da autora parcialmente provido.
73 SILVA, op.cit.,p. 18-19.
74 Art. 187 do CC: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu im econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.

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5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

de abuso de direito pode servir para permitir a “eicácia indireta dos


direitos fundamentais às relações privadas”75. Justamente, uma das for-
mas de limitar o abuso de direito é pela consideração da boa-fé objetiva
nas relações. Com isso, há quem diga que a referida norma “é a cláusula
geral mais importante do sistema jurídico, pois permite o afastamento
até mesmo do direito que a lei atribui às pessoas, a im de resguardar
os princípios éticos”76. O mesmo autor airma, em outro espaço, que se
trataria de norma “quase perfeita” do ordenamento que ilumina todo o
direito das obrigações77.
Assim, a importância do estudo dos chamados “deveres anexos” é
que eles também necessitam ser respeitados, mesmo que o contrato não
contenha previsão especíica a seu respeito78. De fato, nem seria neces-
sário que os contratos estabelecessem o dever das partes de se compor-
tarem de acordo com a boa-fé. Não se concebe que as partes, em uma
relação obrigacional, possam agir de má-fé pois o próprio CC em seu
art. 422 estabelece que “Os contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de pro-
bidade e boa-fé.”
Além do mais, tais deveres, quando violados, se causarem danos à
outra parte, podem fazer nascer o dever de indenizar, sendo considera-
dos, também, nas fontes (ou causas) das obrigações. Assim, a aplicação
e consideração dos deveres anexos – estes baseados e provenientes na
observância da boa-fé objetiva79 - têm espaço em situações em que a
fonte da obrigação é o contrato ou o ilícito. A violação da boa-fé serve,
portanto, como um guia para o cumprimento das obrigações, orientan-
do as partes.

75 MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p. 209.


76 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Ibidem, p. 16.
77 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: As Obrigações e os contratos.
Revista CEJ, Brasília, V. 3 n. 9 set./dez. 1999. Disponível em: <http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.
php/revcej/article/view/236/398>. Acesso em: 20 Ago. 2014.
78 MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p. 212: “[...] a boa-fé ao servir de fonte para a existẽncia de deveres
laterais ou anexos, igualmente estende a proteção jurídica da relação obrigacional para além dos
termos expressamente pactuados[...]”
79 Id. Ibidem, p. 211. Diz o autor que “Em matéria obrigacional, a boa-fé ocupá um lugar de
destaque independente da espécie de relação jurídica que se estabeleça, seja negocial, decorrente de
ato ilícito ou enriquecimento sem causa”.

145
GUILHERME DAMASIO GOULART

Os referidos deveres anexos possuem diversas funções. Como


deveres de conduta, de proteção ou de tutela podem ser vistos como de-
veres de: cuidado, previdência, segurança, aviso, esclarecimento, infor-
mação80, prestar contas, colaboração e cooperação81. Também podem
abranger a ideia de omissão como, por exemplo, guardar segredo sobre
as informações de um contrato que possam prejudicar a outra parte,
se reveladas. Assim, em qualquer relação obrigacional, ambas as partes
precisam observar estes deveres anexos que devem ser cumpridos junto
com o dever principal.
É importante destacar, também, acerca do momento de consi-
deração dos deveres anexos. Entende-se que, mesmo antes de irmada
uma obrigação, se uma das partes começa a se comportar no sentido
de despertar uma “situação de coniança” na outra parte, tal ato já se-
ria suiciente para a constituição de um negócio jurídico82. Portanto, a
coniança despertada merece tutela nas relações obrigacionais. Assim,
uma parte que rompe sem justiicativa tratativas sérias e já adiantadas,
principalmente depois da outra parte ter realizados investimentos para
realizar o referido negócio, pode ser obrigada a indenizar em função
do rompimento de tratativas83. A boa-fé pode não ser forte o bastante

80 Como se viu anteriormente no julgado envolvendo o dever de informar do médico. Embora ele
seja um princípio consagrado e positivado no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, inc. IV)
como um direito básico do consumidor, ele também se aplica [o dever] também em outros tipos de
relação, não apenas nas de consumo. Duas grandes empresas, ao irmarem um pacto, não podem
omitir, uma da outra, detalhes ou informações que possam prejudicá-las.
81 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999. p. 438.
82 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa-fé no direito Civil. Coimbra:
Almedina, 1984.p. 561.
83 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 10ª Câmara Cível. Apelação n.
70045843901. M. C. F. D. S X G.C.M e E.N.D.S.C. Relator: Des. Túlio de Oliveira Martins.
Porto Alegre, 16 de Fevereiro de 2012. RESPONSABILIDADE CIVIL. OBRA LITERÁRIA.
ROMPIMENTO DO CONTRATO AINDA NA FASE DS TRATATIVAS. BOA-FÉ OBJETIVA.
DANO MORAL CONFIGURADO. DANO MATERIAL INEXISTENTE. I - Os contratantes
devem agir com transparência, lealdade e probidade, inclusive na fase pré-contratual, respeitando
a boa-fé objetiva que rege as relações contratuais. Hipótese na qual a inclusão de pessoa como
coautora de obra literária, de forma arbitrária, não transparente e quando já avançadas as tratativas
para a confecção do livro, não se coaduna com a conduta esperada nas relações jurídicas, dando
causa ao rompimento do pacto e ao dever de indenizar, forte no art. 187 e 927, ambos do Código
Civil. II - O rompimento da negociação, após três meses de tratativas, inclusive com captação de
recursos junto aos patrocinadores, realização de todas as etapas preliminares, tais como aprovação
do protótipo, preparo da divulgação, etc. acarreta dano moral indenizável. As adversidades sofridas
pela autora, a alição e o desequilíbrio em seu bem-estar, fugiram à normalidade e se constituíram
em agressão à sua dignidade. [...].

146
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

para constituir um contrato mas, mesmo assim, protege a coniança que,


quando desrespeitada, pode fazer nascer a obrigação de indenizar em
função do dano causado84.
Tais deveres também permanecem mesmo após inalizado um
contrato. Uma parte que se nega a devolver uma coisa em seu poder em
função de um contrato já extinto enquadra-se nesta situação85.
Por tudo isso, passa-se a veriicação do que vem a ser um direito
das obrigações moderno.

5.4. Por um direito das obrigações moderno: a


consideração da dignidade da pessoa humana
Viu-se que, entre os elementos clássicos da obrigação, está a ideia
de vínculo entre duas partes. Sob o inluxo da consideração da digni-
dade da pessoa humana nas relações privadas e também da ideia da
obrigação como processo, não é possível ver a relação entre credor e de-
vedor como uma relação antagônica. As partes, em uma obrigação, não
são inimigos que brigam para ver quem conseguirá ter mais vantagem
em relação à outra. O credor não pode estabelecer cláusulas abusivas e
também o devedor não pode furtar-se a cumprir suas obrigações. Tudo
isto em nome, também, do princípio da boa-fé objetiva que orienta a
cooperação entre as partes86.
Viu-se também as ideias de “obrigação como processo” e da con-
sideração dos deveres anexos em todas as fases da obrigação. Dito isso,
é possível reavaliar o vínculo para abranger não apenas a ideia de pres-
tação de alguém em favor do outro, mas de uma prestação qualiica-
da pelo vínculo de colaboração e de cooperação.87. É possível dizer, até
mesmo, que existe um “dever geral de colaboração que domina todo o
direito das obrigações”88que gera, por sua vez, também, um “dever geral
de correção”89.

84 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Ibidem, p. 107.


85 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 158
86 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p. 17.
87 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p. 50.
88 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Ibidem, p. 134.
89 Idem. Ibidem, p. 135

147
GUILHERME DAMASIO GOULART

Antes mesmo do novo Código Civil e da Constituição de 1988,


alguns juristas, como o célebre Orlando Gomes, já airmavam que
atualmente (e ele escreveu isto em 1967) o direito das obrigações deve
compreender o equilíbrio social, de impedir a exploração do fraco pelo
forte etc.90.
A ideia de que todo o direito civil é perpassado pela ideia de boa-
fé objetiva e de que a própria liberdade contratual é balizada pela função
social do contrato, altera alguns dos elementos clássicos da obrigação.
Amplia-se, por exemplo, a ideia de que a obrigação apenas gera efeitos
entre credor e devedor. Com a função social do contrato deve-se ter
em mente que nenhuma obrigação, ao ser cumprida, pode causar danos
a terceiros ou a uma coletividade. De igual forma, os sujeitos não são
mais vistos, como nas codiicações antigas, como meros sujeitos abstra-
tos. Modernamente, são vistos e entendidos dentro de sua concretude e
tendo em conta suas limitações, desequilíbrios e vulnerabilidades91. Tal
consideração permite proteger certos sujeitos em uma clara demonstra-
ção da eticidade92 e socialidade do código: limita-se a liberdade contra-
tual em prol da construção de relações sociais mais justas93.
Não se admite a ideia de que um credor possa, ao exigir seu crédi-
to, arruinar a vida de seu devedor. Não é necessário nem mesmo aden-
trar nas raias do direito do consumidor para explicar tal questão. Há
uma igura comentada na jurisprudência e na doutrina conhecida como
“teoria do mínimo existencial”. Por meio desta teoria é possível defen-
der a relativização de certos acordos para, assim, manter a dignidade
humana por meio da estipulação de um mínimo necessário para alguém
sobreviver. Este mínimo existencial funda-se não apenas nas questões
materiais (valores mínimos necessários para que alguém consiga sobre-
viver, incluído aí o bem de família) mas também em questões espiri-

90 GOMES, Orlando. Ibidem, p. 1.


91 FACCHINI NETO, Eugênio. Ibidem, p. 205-206. Neste caso, o autor cita os exemplos de
consumidor, locatário, empregado, arrendatário. Pode-se incluir a própria igura do Internauta,
agora também protegido pelo Marco Civil da Internet. Cada um desses sujeitos passa a contar
também com leis especíicas para protegê-lo, criando verdadeiros microssistemas legais. Retira-se,
a partir daí, o foco sobre o Código Civil.
92 O paragidma da eticidade é vinculado ao princípio da boa-fé objetiva conforme SILVA, Clóvis
do Couto e. A obrigação como..., p. 23.
93 Idem. Ibidem, p. 206.

148
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

tuais (proteção da honra)94. Entre os muitos casos no qual tal teoria é


aplicada, cita-se a limitação em 30% do salário do devedor nos casos de
descontos em folha de empréstimos95. Destaque-se que não se quer, com
tal teoria, evidentemente, fazer com que os devedores não arquem com
suas dívidas. O que se pretende é não permitir que os credores destruam
a vida dos devedores apenas para a obtenção de seus créditos.
Outro motivador de uma visão moderna do direito das obri-
gações é a igura da constitucionalização do direito civil ou também
publicização do direito privado, que coloca em xeque, até mesmo, a
própria dicotomia entre essas duas áreas. Na verdade ambas as áreas
possuem pontos de convergência96, como, por exemplo, a própria ideia
de uma função social do contrato97 e proteção de direitos fundamen-
tais também nas relações entre particulares98. Mesmo em uma relação
obrigacional, a atuação das partes envolvidas – sobretudo no que diz
respeito à autonomia da vontade – ica limitada pelas regras e princí-
pios constitucionais. É possível encontrar em um exemplo do Código
de Defesa do Consumidor uma concretização dessa ideia. O art. 42
deste diploma legal dispõe que “Na cobrança de débitos, o consumi-
dor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”. Tal regra é uma clara
manifestação da consideração da dignidade humana e também da pro-
teção da honra das pessoas nas relações obrigacionais. Não se pode um
credor, para satisfazer seu crédito, passar a humilhar ou perseguir os
devedores, expondo-os ao ridículo.

94 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p. 35.


95 Por todos ver: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 17ª Câmara Cível.
Apelação n. 70059718312. J.M.O.A x B. Relator: Des.ª Liége Puricelli Pires. Porto Alegre, 31 de Julho
de 2014: APELAÇÕES CIVEÍS. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. limitação dos descontos
realizados em conta-corrente. possibilidade. dignidade da pessoa humana. mínimo existencial.
DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. I. O posicionamento majoritário desta Câmara é no
sentido de que são permitidos os descontos em conta-corrente/folha de pagamento, desde que
observado o limite de 30% dos vencimentos brutos. Se o valor descontado pela instituição bancária
na conta-corrente do demandante incidir sobre seu salário/aposentadoria, deverá o lançamentos
da prestação referente ao mútuo pactuado ser realizado com a mencionada limitação de 30%, sob
pena de ofensa ao mínimo existencialdecorrente do fundamento constitucional da dignidade
da pessoa humana. [grifo nosso] [...] APELO DO AUTOR DESPROVIDO. APELO DO RÉU
PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME.
96 FACCHINI NETO, Eugênio. Ibidem, p. 202.
97 Idem. Ibidem, p. 203.
98 Idem. Ibidem, p. 220.

149
GUILHERME DAMASIO GOULART

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção deste texto é despertar uma curiosidade no aluno, no
sentido dele conhecer um pouco mais sobre a visão moderna do direito
das obrigações, pois nem sempre tais questões serão encontradas nos
livros conhecidos como “manuais e cursos de direito civil”.
É assim, por meio do estudo de um direito das obrigações mo-
derno que se consegue vislumbrar um cenário de valorização da pessoa
humana. A disciplina também tem importante função na caminhada do
aluno, de introdução e apresentação de uma série de aspectos que serão
primordiais em praticamente todas as outras disciplinas do direito civil.
Avaliam-se as relações, em geral, com base nessa consideração ética e
social dos vínculos. O aluno deve, portanto, sustentar e aprimorar sua
visão crítica para, além da consideração dos elementos clássicos do di-
reito das obrigações, vislumbrar uma visão ética e socializada do fenô-
meno jurídico em geral.
Tentou-se aqui, também, indicar um caminho muito importante
não apenas para o direito das obrigações, mas para todo o direito pri-
vado. Trata-se do fenômeno da constitucionalização do direito privado,
que permite a inserção de diversos princípios de forma horizontal en-
tre os particulares. Além de considerar a dignidade da pessoa humana,
como princípio orientador do ordenamento jurídico, é necessário aten-
tar também para o que a própria constituição institui99 como objetivos
fundamentais da república; qual seja, ter a construção de uma sociedade
justa, livre e solidária. Por trás das obrigações, dos pactos e contratos há
pessoas, e tal questão sempre deve ser lembrada.
Por im, é necessário que o aluno esteja vigilante às relações obri-
gacionais baseadas em negócios realizados via internet. Cumpre ao estu-
dante da disciplina observar a importância que a internet possui para a
realização de novos negócios, o que constitui uma nova forma de contra-
tar e consumir. Trata-se do comércio eletrônico que vem, pouco a pouco,
sendo regulado em nosso sistema jurídico. Essas relações são bastante
ricas e podem ser estudadas no âmbito do direito das obrigações, da teo-
ria geral dos contratos e da responsabilidade civil. Entende-se que, no
comércio eletrônico, há a aplicabilidade do Código de Defesa do Consu-
midor que, agora, deve também dialogar com o Marco Civil da Internet.

99 Art. 3º da CF.

150
5 • DIREITO DAS OBRIGAçÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAçÕES HUMANIZADO

Além do mais, o Brasil possui um decreto especíico100 sobre o comércio


eletrônico, que regula, entre outras situações, a questão da informação
e do atendimento em tais meios. Assim, a crescente utilização de tais
meios para a realização de negócios deve atrair a atenção do estudante do
direito das obrigações, que por sua vez deverá considerar tudo o que aqui
se disse sobre a proteção da pessoa nas relações privadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: As
Obrigações e os contratos. Revista CEJ, Brasília, v. 3 n. 9 set./dez. 1999.
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152
6

DIREITO CONSTITUCIONAL II:


UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL

Roberta Magalhães Gubert1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 6.1. A formação do


constitucionalismo moderno e contemporâneo e as dimensões
de direitos fundamentais - 6.1.1. O Estado Absolutista - 6.1.2. O
Estado Liberal e os direitos fundamentais de 1ª dimensão - 6.1.3.
O Estado Social e os direitos fundamentais de segunda dimensão -
6.1.4. O Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais
de terceira dimensão - 6.2. Em busca de um conceito de
Jurisdição Constitucional - 6.3. Controle de Constitucionalidade
- 6.3.1. O modelo de controle difuso da constitucionalidade -
6.3.2. O modelo de controle concentrado da constitucionalidade
- 6.3.3. O sistema de controle da constitucionalidade vigente na
Constituição de 1988 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

1 Mestre em Direito pela UNISINOS. Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Advogada.


Professora do CESUCA/UNISINOS. E-mail: robertagubert@cesuca.edu.br

153
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

INTRODUÇÃO
O século XX foi cenário de signiicativas mudanças no campo
do direito constitucional. Embora o século XVIII tenha sido o grande
palco para o surgimento e a airmação do constitucionalismo moderno
e para a promulgação das primeiras Constituições, foi no acontecer das
duas grandes guerras mundiais que o constitucionalismo e o estudo do
direito constitucional deram seu segundo e grande passo rumo ao de-
senvolvimento de um novo paradigma, mais preocupado com a efetivi-
dade das normas constitucionais e a garantia dos direitos fundamentais.

6.1. A formação do constitucionalismo moderno


e contemporâneo e as dimensões de direitos
fundamentais
Inicialmente é importante fazer um breve esclarecimento sobre as
diferenças e semelhanças entre as noções, muitas vezes confundidas, de
“direitos fundamentais” e “direitos humanos”. A questão não é meramen-
te terminológica. Conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet, a relevância
desta diferenciação compreende, também, consequências de ordem prá-
tica, em especial aquelas relacionadas à interpretação e à aplicação das
normas decorrentes de ambos os direitos (fundamentais e humanos)2.
Na seara da delimitação de termos, há que se justiicar a prefe-
rência pelo termo “direitos fundamentais” – que melhor se enquadra
na experiência atual do Estado Democrático de Direito – face a tantos
outros empregados pela doutrina e encontrados em textos legais3. Nesse
sentido, é importante lembrar que nem mesmo a atual Constituição bra-
sileira de 1988 é precisa, pois utiliza-se de diferentes termos para referir
o mesmo conjunto de direitos (direitos e garantias individuais, direitos
e liberdades constitucionais etc.).
A conceituação dos direitos fundamentais depende do reconhe-
cimento de suas características, quais sejam, sua indissociável vincula-
ção à Constituição e seu atributo de fundamentalidade4. Nesse sentido,

2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eicácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 33.
3 Ibid., p. 31-32.
4 Ibid., p. 37.

154
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

a noção de direitos fundamentais está obrigatoriamente ligada à ideia


de positivação de direitos em uma ordem constitucional, do que decor-
re seu necessário vínculo com a Constituição. Como bem airma J. J.
Gomes Canotilho, “os direitos fundamentais serão estudados enquanto
direitos jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional”5.
Ingo Wolfgang Sarlet explica que a fundamentalidade formal dos
direitos fundamentais encontra-se ligada à ordem constitucional posi-
tiva e decorre dos seguintes aspectos: (a) por integrarem o texto escrito
da Constituição, estão no ápice do ordenamento jurídico; (b) por serem
normas constitucionais, estão submetidos aos limites formais e mate-
riais de reforma da constituição (cláusulas pétreas); e (c) são normas
que necessariamente vinculam as entidades públicas e privadas. Já a
fundamentalidade material decorre do caráter substantivo dos “direi-
tos fundamentais, que integram o sentido da Constituição” e, portanto,
possibilitam que outros direitos sejam reconhecidos6.
Nesse contexto, podemos concluir que a diferença terminológica
entre “direitos humanos” e “direitos fundamentais” não signiica uma
diferença quanto ao conteúdo dos direitos protegidos, por exemplo, di-
reito à vida, à liberdade de expressão e de crença e à igualdade são todos,
ao mesmo tempo, direitos humanos e fundamentais. A diferença reside
na ordem jurídica de reconhecimento e proteção. Enquanto os direitos
humanos são assegurados pela ordem jurídica internacional – reconhe-
cidos principalmente em tratados internacionais irmados entre países
–, os direitos fundamentais são fruto das constituições de cada país.
Por im, é importante lembrar que a base das Constituições que
instituíram os primeiros Estados modernos encontrava-se fundada em
dois pilares: a limitação do poder estatal, por meio da garantia dos di-
reitos individuais (direitos fundamentais de primeira geração), e o prin-
cípio da separação de poderes7. Nesse sentido, pode-se airmar que os
direitos fundamentais integram a essência do que é – constitui – o Esta-
do constitucional.

5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.


Coimbra: Almedina, 2003. p. 377.
6 SARLET, op.cit., p. 82-83.
7 É fundamental referir o título da obra de Nicola Matteucci, “Organização do poder e liberdade” –
que relete perfeitamente quais foram as bases para o surgimento do constitucionalismo. SARLET,
op.cit., p. 63-64.

155
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

6.1.1. O Estado Absolutista


A primeira noção de Estado moderno – presente especialmente
entre os séculos XV e XVIII – surge após o Medievo e corresponde à
concepção de Estado Absolutista8. Neste, todo o poder político concen-
trava-se na pessoa do Rei, de quem emanava toda a autoridade pública,
fundamentando-se na ideia de que o poder do Monarca era de origem
divina, o que lhe permitia todo o controle sobre seus súditos. Essa forma
de Estado caracterizava-se por dois elementos essenciais à sua própria
manutenção: a soberania e o território. É em razão do absolutismo que
se coniguram as condições necessárias para o surgimento do constitu-
cionalismo, decorrentes da exigência de controle do poder do Rei.

6.1.2. O Estado Liberal e os direitos fundamentais de 1ª


dimensão
Em razão das movimentações sociais, econômicas e políticas do
inal do século XVIII – em especial, a eclosão da Independência norte-
-americana (1776), da Revolução Francesa (1789) e do desenvolvimen-
to das ideias contratualistas e iluministas –, os Estados passaram a se
organizar em constituições formais. Esse movimento icou conhecido
como constitucionalismo, e os primeiros Estados a promulgarem suas
Constituições escritas foram os Estados Unidos, em 1787, e a França,
em 1791. O Estado organizado e limitado pela existência de uma consti-
tuição passa a receber a denominação de Estado de Direito9.
José Afonso da Silva destaca que as características básicas desse
Estado de Direito são a “submissão ao império da lei” (noção de supre-
macia da lei da qual decorreu o princípio da legalidade), a “separação
dos poderes” Legislativo, Executivo e Judiciário e o “reconhecimento e
a garantia dos direitos fundamentais individuais” (que possibilita o sur-
gimento da ideia de um direito subjetivo público – de direitos do indi-
víduo contra o próprio Estado, também denominados na terminologia
norte americana de “direitos de resistência”)10.

8 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 44-45.
9 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
p. 44. v.1.
10 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros,

156
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

Os primeiros estados constitucionais possuíam uma conigura-


ção inicial rígida e estática, privilegiando a ideia de contrato social. Para
os autores contratualistas do referido período – Montesquieu, Locke e
Rousseau, dentre outros – o grande desaio a ser superado é a Monar-
quia Absolutista e a personalização do poder na própria pessoa do rei11.
Assim, a lei funciona como grande limitadora da atuação do poder es-
tatal e é percebida como razão objetiva, protetora da “vontade geral”.
Esse primeiro modelo de Estado de Direito tem como base as
ideias liberais burguesas (na qual o Estado deve intervir de forma mí-
nima na economia e na organização da sociedade e da família) e está
assentado nas noções de liberdade (contratual e econômica) e limita-
ção do poder. Tal limitação do poder político do próprio Estado se deu
tanto de forma interna, com a separação dos poderes, quanto externa,
com a sua função mínima de intervenção na sociedade12. Esses textos
constitucionais tinham como objetivo estruturar juridicamente o poder
político, determinando a forma e o sistema de governo, bem como pre-
ver a separação de poderes e, principalmente, estabelecer os direitos e as
garantias individuais, limitando o poder político do Estado em razão de
uma atuação negativa (de abstenção).
Nesse primeiro modelo de Estado, os direitos fundamentais as-
segurados seriam aqueles denominados de “primeira dimensão” e sig-
niicaram direitos de liberdade individual, requisitando a abstenção,
ou seja, a não-intervenção estatal (por isso, chamados de “negativos”).
Como já assinalado anteriormente, eram direitos que limitavam o poder
do Estado. Pode-se incluir neste rol os direitos à vida, à propriedade pri-
vada, à liberdade de crença, de expressão, de imprensa, a inviolabilidade
da casa, entre outros.

2004. p. 112-113.
11 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre a o juízo de constitucionalidade de políticas
públicas. In: Revista de Informação Legislativa. a. 35. n. 138. abr./jun. Brasília: 1998. p. 39-48.
p. 40.
12 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003,
p. 47.v.1.

157
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

6.1.3. O Estado Social e os direitos fundamentais de


segunda dimensão
O marco histórico que com maior facilidade pode ser relaciona-
do à transformação do Estado Liberal em Estado Social é a 1ª Revolu-
ção Industrial. No entanto, apesar da identiicação de um determinado
evento como fato delagrador dessa passagem, muitos outros aconteci-
mentos e contingências também devem ser arrolados como fatores que
contribuíram para esse processo.
O surgimento de uma nova classe social (o proletariado); o de-
senvolvimento tecnológico; a necessidade do consumo de bens; o aces-
so à informação; a exploração no mercado de trabalho; a desigualdade
social gerada pela política de abstenção do Estado; são apenas alguns
exemplos da insuiciência do modelo de atuação estatal minimalista.
Dessa forma, foi preciso superar o modelo do liberalismo clássico (ca-
racterizado por uma abstenção por parte do Estado e pela preponderân-
cia de valores individualistas na sociedade), para que o Estado passasse
a intervir na economia, amenizando as desigualdades sociais. O sistema
capitalista, a im de se manter, precisou se reestruturar, e o inanciamen-
to dos direitos sociais, de certo modo, apresentou-se como concessão
necessária para a manutenção do próprio sistema capitalista13.
O Estado passa, então, a oferecer uma prestação positiva (de ação)
no cenário econômico, um exemplo disso é a regulação das relações de
trabalho e o auxílio aos desamparados14. Esse processo intensiica-se no
início do século XX, possibilitando o surgimento do Estado de bem-es-
tar social (Welfare State). Em termos de positivação dessas novas ideias
nos textos constitucionais, pode-se veriicar a introdução do conceito de
justiça social e igualdade material nos textos constitucionais do México,
em 1917, e da Alemanha (Weimar), em 1919. Entretanto, tais legisla-
ções não foram colocadas em prática, em razão da proximidade com o
conturbado período entre as duas grandes guerras mundiais, excetuado
o New Deal americano15, cujo início ocorre após a crise econômica cau-

13 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 22.
14 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do
Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 60.
15 Ibid., p. 62.

158
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

sada pelo crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, a chamada Grande


Depressão.
Essa nova formatação estatal – fruto das instabilidades econômi-
cas e sociais geradas pela Revolução Industrial e pela atuação estatal ne-
gativa nas relações econômicas – impede o Estado de se abster, pois lhe
é imposta a necessária outorga de direitos relacionados à previdência, à
saúde, à assistência, à educação, ao trabalho, caracterizando-se todos,
em comum, como uma prestação positiva, ou seja, para assegurar tais
direitos o Estado deve agir (ao invés de se abster).
Nesse sentido, os direitos de segunda dimensão signiicam “liber-
dade por intermédio do Estado”. São denominados de direitos positivos,
pois a preocupação não é mais a de evitar a intervenção do Estado, mas,
pelo contrário, são direitos que outorgam aos indivíduos prestações por
parte do Estado, a quem cabe propiciar “direito de participar do bem-
-estar social”16.
Somente após a Segunda Guerra Mundial e em razão do com-
plexo contexto social que se formou no entre guerras, é que o Estado
assume posturas claramente regulamentadoras e, principalmente, pro-
movedoras, isto é, signiicativas de um verdadeiro direito do cidadão, e
não de mero assistencialismo.
Uma das modiicações mais signiicativas na transformação do
Estado Liberal em Estado Social se dá em relação à compreensão das
noções de igualdade e liberdade. Um dos objetivos primordiais do Esta-
do Social é a busca por uma efetiva igualdade, uma igualdade material,
que se dará “através da lei”, e não mais, “perante a lei” (meramente jurí-
dica). Assim, a busca pela igualdade material visa garantir a igualdade
de oportunidades, e isso implica em liberdade17.

6.1.4. O Estado Democrático de Direito e os direitos


fundamentais de terceira dimensão
A última das transformações do modelo de Estado constitucional
ocorreu na segunda metade do século XX, em decorrência das profun-

16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eicácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003 p. 52.
17 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo, Max
Limonad, 2003. p. 51-52.

159
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

das marcas deixadas pela segunda Guerra Mundial. A partir das déca-
das de 40 e 50, os países da Europa, especialmente Alemanha, Itália,
posteriormente Espanha e Portugal, entre outros, iniciaram um novo
ciclo constitucional de transição das ditaduras e totalitarismos em dire-
ção à democracia, com a promulgação de novas Constituições.
No Brasil, foi a Constituição de 1988 que inaugurou o que con-
temporaneamente se entende por Estado Democrático de Direito, mar-
cando também, de forma drástica, a transição brasileira de um regime
ditatorial (iniciado em 1964) rumo à democracia. A atual Constituição
brasileira, denominada em sua promulgação em 05 de outubro de 1988,
como “carta cidadã”, caracteriza-se por seus aspectos sociais, dirigente e
compromissário18.
O Estado Democrático de Direito caracteriza-se como um regi-
me político que visa conjugar a noção de Estado de Direito e a noção de
democracia, signiicando assim uma ruptura com os sistemas anteriores
e, ao mesmo tempo, uma conciliação destes. Esse caráter de ruptura en-
contra-se em seu conteúdo de transformação da realidade, pois o direi-
to assume papel de destaque, enquanto instrumento de transformação
social. Ocorre uma valorização do aspecto jurídico, e o Judiciário, em
razão do caráter compromissário da Constituição, torna-se uma esfera
com maior poder de decisão, visto que a ele cabe garantir, por meio da
jurisdição constitucional, o cumprimento da Constituição e de seu con-
teúdo substantivo19.
Outra característica marcante do Estado Democrático de Direi-
to é a preocupação “não apenas com a existência” de um texto consti-
tucional e um rol de direitos fundamentais, mas especialmente com a
“problemática da efetivação desses direitos” em um patamar até então
antes desconhecido pelos Estados Liberal e Social. Nesse sentido, pode-
se airmar que a efetivação dos direitos fundamentais é, em realidade,
característica fundamental do próprio Estado Democrático de Direito.
É por isso que o Estado Democrático de Direito representa um
rompimento de paradigma em relação às fases anteriores do Estado,
uma vez que apresenta um conteúdo de verdadeira transformação so-
cial que, possibilitado pelas normas constitucionais, é um “plus norma-

18 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2004. p. 15.
19 Ibid., p. 15-22.

160
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

tivo”, eis que as normas constitucionais possuem uma real determinação


de agir20.
Vinculada a essa nova perspectiva de Estado, desenvolve-se uma
terceira dimensão de direitos fundamentais, também conhecidos como
direitos de fraternidade ou de solidariedade21. Esta terceira dimensão
possui um traço bastante distinto dos demais: são direitos desprendidos
da noção de homem-indivíduo, sendo seus titulares as coletividades, os
grupos humanos (família, povo etc.), por isso dizer que sua titularidade
é difusa. São exemplos desses direitos aqueles relacionados ao meio-
-ambiente, à preservação do patrimônio histórico, à comunicação, entre
outros – direitos coletivos que têm recebido maior atenção e positivação
no âmbito dos tratados internacionais, do que dentro dos ordenamentos
internos dos Estados. Talvez possa se explicar essa questão em razão da
titularidade desses direitos, que pode ser indeinida ou indeterminável,
diicultando, assim, o desenvolvimento de suas formas de proteção22.
A diferenciação das dimensões de direitos fundamentais não sig-
niica uma sucessão de etapas ou espécies de direitos, pelo contrário,
é uma classiicação com grande inalidade pedagógica, uma vez que a
própria preferência pelo termo “dimensão”, quer apontar para a possi-
bilidade de sobreposições, ou seja, o surgimento de uma nova dimen-
são não signiica o esquecimento da anterior, mas sim o aporte de mais
uma dimensão protetiva sobre outra existente. Dessa forma, podemos
concluir que o texto da Constituição Federal de 1988, que instala um
Estado Democrático de Direito no Brasil, possui as três dimensões de
direitos fundamentais – liberdades individuais, direitos sociais e direitos
fraternos.

6.2. Em busca de um conceito de Jurisdição


Constitucional
A obra A Força Normativa da Constituição, de Konrad Hesse, é
considerada por muitos, na seara do direito constitucional, a mais im-
portante do século XX; ela representa um marco “divisor de águas” para

20 Ibid., p. 103.
21 SARLET, Ingo Wolfgan,. A eicácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 53.
22 SARLET, op.cit., p. 53-55.

161
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

as transformações do constitucionalismo contemporâneo. Buscando


romper com o conceito sociológico de Constituição defendido por Fer-
dinand Lassalle, no século XIX, para o qual a essência da Constituição
residiria nos interesses políticos dos “fatores reais de poder” (exército,
bancos, indústrias etc.), enquanto a Constituição em seu sentido jurídi-
co não passa de uma “folha de papel”, Hesse introduz a ideia de que as
normas constitucionais possuem, por si só, força jurídica para regular
o Estado e a sociedade (forças políticas e sociais), ou seja, as normas da
Constituição são normas jurídicas e, portanto, dotadas de imperativida-
de. A partir de Hesse é possível airmar: a Constituição obriga.
Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet
A Constituição, ainda segundo Hesse, é dotada de uma pretensão
de eicácia, ou seja, de que a situação por ela regulada pretende ser
concretizada na realidade, pretenso de eicácia que, por sua vez, não
pode estar dissociada das condições históricas de sua realização,
contemplando aqui as contemplando aqui as condições naturais,
técnicas, econômicas e sociais, pois somente dessa forma a Constituição
e sua pretensão de eicácia lograrão imprimir ordem à realidade política
e social23.

A força normativa da Constituição, ou seja, sua pretensão (ju-


rídica) de ser efetiva e eicaz irá depender, portanto, de mecanismos
jurídicos capazes de transformar em realidade o conteúdo previsto na
Constituição. Hesse defende que deve existir uma “vontade de Consti-
tuição”, compartilhada por todos aqueles que participam da vida consti-
tucional. Para tanto, fatores externos e internos deverão contribuir para
esse acontecer das normas constitucionais. Os fatores externos seriam
aqueles relacionados aos atores e aos interesses da vida política, social,
econômica e cultural do país, enquanto os internos seriam os mecanis-
mos e instrumentos propriamente jurídicos, instituídos pela Constitui-
ção, para assegurar seu próprio cumprimento – tais como controle de
constitucionalidade e ações constitucionais24.
Esse processo de ressigniicação das Constituições (que já exis-
tiam desde o século XVIII), passa agora a assegurar não apenas uma

23 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de


Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 184-185.
24 Ibid., p. 184-185.

162
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

garantia formal de sua existência, mas sim uma aplicação substancial de


seu conteúdo (efetividade e eicácia), cria um processo de “constitucio-
nalização” ou “publicização” do Direito, ou seja, a Constituição (direito
público) torna-se o “referencial de validade” para todos os campos do
direito (civil, penal, trabalho etc.). É na Constituição que reside o fun-
damento para todo o direito; e diante dessa nova relevância atribuída
às normas constitucionais, sua efetividade (transformação em realidade
concreta) também se torna o grande objetivo a ser perseguido e alcan-
çado. É nesse cenário que se desenvolve a noção de Jurisdição Constitu-
cional que buscamos construir no presente texto.
A Jurisdição Constitucional, portanto, vai se desenvolver, no con-
texto do século XX, a partir da estrutura do próprio Estado Democrá-
tico de Direito em formação (rever o item 1.4) e do impulso da ideia de
força normativa da Constituição. A característica marcante da Jurisdi-
ção Constitucional é uma atuação e presença mais evidente do Poder
Judiciário nas questões econômicas, sociais e políticas do país, especial-
mente nas que envolvem a eicácia dos direitos fundamentais.
Mas nem sempre foi assim. Cumpre lembrar que no Estado Li-
beral havia a preponderância do poder Legislativo, que se ocupava da
produção legislativa dos direitos e garantias individuais (direitos nega-
tivos); enquanto no Estado Social, o protagonista foi o poder Executivo,
em virtude da necessidade de elaboração e administração das políticas
públicas e intervenção econômica.
Esse processo de expansão da Jurisdição Constitucional é autoe-
vidente e pode ser explicado no sentido que se todo fundamento de
validade do direito reside na Constituição e esta é uma norma jurídica
dotada de imperatividade, então todo o conteúdo constitucional tem o
dever de ser cumprido, logo toda a jurisdição prestada é uma Jurisdição
Constitucional e todos que vivem a comunidade constitucional (tanto
Poderes e instituições estatais, como sociedade) estão a ela vinculados.
Nesse contexto, a importância da justiça constitucional se mos-
tra clara e indiscutível, visto que a ela caberá o exercício deste papel
de transformação social. Para Lenio Luiz Streck, a Jurisdição Consti-
tucional é fundamento de validade do próprio Estado Democrático de
Direito25; e, para Vital Moreira,

25 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2004. p. 102.

163
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

[...] a existência de uma jurisdição constitucional, sobretudo se coniada


a um tribunal especíico, parece ter-se tornado nos tempos de hoje
um requisito de legitimação e de credibilidade política dos regimes
constitucionais democráticos26.

Nesse modelo, o Poder Judiciário torna-se foco de tensão; as inér-


cias e omissões dos poderes Executivo e Legislativo serão supridas pela
justiça constitucional por meio dos mecanismos jurídicos previstos na
própria Constituição, os quais, por sua vez, caracterizam o próprio Es-
tado Democrático de Direito.
Assim, a efetividade das normas constitucionais, especialmente
quanto aos direitos fundamentais, será viabilizada pelos mecanismos de
controle de constitucionalidade e ações constitucionais que a própria
Constituição prevê, ou seja, o comprometimento com a força das nor-
mas constitucionais faz com que os novos textos constitucionais elabo-
rados no século XX não tragam apenas um longo rol de direitos, mas
também apresentem instrumentos jurídicos capazes de obrigar o cum-
primento desses direitos.

6.3. Controle de Constitucionalidade


A noção de controle de constitucionalidade não é tão recente
quanto à de Jurisdição Constitucional. Entretanto, com a airmação da
segunda, esse mecanismo de proteção da Constituição (controle) ga-
nhou um novo patamar de importância e se expandiu em abrangência
e complexidade.
Controlar a constitucionalidade das leis signiica relacionar leis
de um mesmo ordenamento a im de veriicar se as mesmas estão em
conformidade formal e material (conteúdo) entre si. E, em caso de con-
tradição, extirpar do ordenamento jurídico aquela norma inferior que
esteja em desacordo com a norma mais relevante, a Constituição, garan-
tindo, assim, a normalidade e a harmonia do sistema jurídico.
O estudo do controle da constitucionalidade inicia com a com-
preensão da ideia de supremacia da Constituição, ou ainda, da Consti-
tuição como lei fundamental. Desta forma, ensina J. J. Gomes Canotilho,

26 MOREIRA apud STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2004. p. 103.

164
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

O estado de direito é um estado constitucional. Pressupõe a existência de


uma constituição que sirva – valendo e vigorando – de ordem jurídico-
normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos. A
constituição confere à ordem estadual e aos actos dos poderes públicos
medida e forma. Precisamente por isso, a lei constitucional não é apenas
– como sugeria a teoria tradicional do estado – uma simples lei incluída
no sistema ou no complexo normativo-estadual. Trata-se de uma
verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia
– supremacia da constituição – e é nesta supremacia normativa da lei
constitucional que o “primado do direito” do estado de direito encontra
uma primeira e decisiva expressão27.

Nesse mesmo sentido, Jorge Miranda airma que os grandes pres-


supostos do controle de constitucionalidade das leis são, em primeiro
lugar, a existência de uma Constituição em sentido formal, e, em segun-
do lugar, a consciência da necessidade de garantia dos seus princípios e
regras com a vontade de instituir meios adequados28. Ou seja, a adoção
de um sistema de controle da constitucionalidade por determinado or-
denamento jurídico depende da existência de certos pressupostos, dois
na realidade: o primeiro, é a noção de “supremacia constitucional”. Só
faz sentido proteger a Constituição se esta for a norma mais importante
do ordenamento. Estivesse em mesmo nível de hierarquia e importância
das demais normas que compõe o ordenamento jurídico, qualquer delas
poderia ser modiicada ou excluída, indistintamente.
Partindo desta última airmativa, identiica-se o segundo pres-
suposto para um controle de constitucionalidade: “a rigidez constitu-
cional”. De acordo com Luis Roberto Barroso, para que a norma cons-
titucional tenha condições de igurar como parâmetro ou referencial de
outras normas, ou seja, como “paradigma de validade”, precisará de um
processo de elaboração diferente e mais complexo que os demais atos
normativos29. Assim, uma vez que a rigidez constitucional permite a
distinção entre poder constituinte e poder constituído, possibilita, tam-

27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.


Coimbra: Almedina, 2003. p. 245.
28 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
p. 522,v.1
29 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 2.

165
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

bém, a veriicação formal e material do procedimento e conteúdo da lei


frente à Constituição.
Desta forma, pode-se concluir que para existir um controle de
constitucionalidade devem estar presentes ambos os pressupostos alu-
didos, a supremacia e a rigidez da Constituição, ou conforme, “não há
meio termo entre estas duas opções. Ou a Constituição é uma lei funda-
mental, superior e não mutável pelos meios ordinários, ou ela é coloca-
da no mesmo nível dos atos legislativos ordinários, e, com estes pode ser
alterada ao gosto do poder legislativo30.
A inconstitucionalidade das leis pode ser de duas espécies – for-
mal ou material. A inconstitucionalidade formal seria um vício decor-
rente do processo de elaboração da lei, que viola o procedimento cons-
titucionalmente estabelecido para a criação das espécies legislativas.
O processo legislativo brasileiro está disciplinado entre os artigos 59 a
69, da Constituição de 1988. Um eventual desrespeito a alguma des-
sas regras, tais como iniciativa ou quórum, implicarão na inconstitu-
cionalidade formal (procedimental) da lei. Já a “inconstitucionalidade
material” está relacionada com um vício de substância, ou seja, as dis-
posições da lei questionada – a forma como regulamentam determinada
matéria – violam o conteúdo constitucional de alguma forma ou im-
plicam em desvio ou excesso de poder legislativo31. Há, portanto, uma
incompatibilidade substancial entre a lei e a Constituição.
Por im, antes de adentrarmos no estudo das espécies de controle
de constitucionalidade, cumpre elucidar as peculiaridades da experiên-
cia francesa – que em outras searas é de especial inluência ao cons-
titucionalismo mundial e também brasileiro, especialmente na Cons-
tituição monárquica de 1824 –, quanto à inexistência de um modelo
jurisdicional de controle da constitucionalidade. Para a compreensão
desse fenômeno, deve-se ter em conta diversas razões. A forma de con-
trole da constitucionalidade francesa sofreu grande inluência das ideias
contratualistas de Rousseau (na qual impera a vontade geral), bem como
da doutrina da separação de poderes desenvolvida por Montesquieu
(em que prepondera o Legislativo e, de certa forma, diminui o papel do

30 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito


comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999 p. 48.
31 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1040.

166
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

Judiciário, ao airmar que o juiz como mera bouche de la loi). Aliado a


estes fatores, deve-se, ainda, levar em consideração a experiência revo-
lucionária e o repúdio à aristocracia – da qual provinha a maioria, senão
a totalidade, dos juízes – por isso dizer-se que a Revolução Francesa foi
uma revolução antijudiciária32.

6.3.1. O modelo de controle difuso da constitucionalidade


O marco histórico que inaugura o sistema de controle de cons-
titucionalidade é o caso Marbury versus Madison, que foi julgado pela
Supreme Court dos Estados Unidos em 1803. Os principais argumentos
utilizados na fundamentação deste processo – “supremacia da consti-
tuição” e “judicial review” – não foram teses inéditas, fato que em nada
reduz a importância do caso. Um antecedente histórico muito relevante
para a formação da ideia de um controle jurisdicional dos atos estatais
reside na tradição inglesa dos séculos XVI e XVII, na qual Sir Edward
Coke já defendia a possibilidade de controle sobre os atos do Parlamen-
to, no sentido de que estes não poderiam interferir na formação e apli-
cação da common law, sendo esta uma atividade exclusiva dos juízes.
O paradigmático caso Marbury v. Madison teve início com o writ
of mandamus, interposto, em 1801, por William Marbury, quando ale-
gou que havia sido impedido de assumir a função pública de juiz de paz,
por ato do então Secretário de Estado James Madison, durante o manda-
to do novo Presidente da República homas Jeferson (partido republi-
cano), como represália ao fato de que o cargo havia sido designado por
lei aprovada ainda no inal da presidência de John Adams, membro do
partido federalista e opositor político da atual administração. A decisão
inal do caso, que chega ao conhecimento da Suprema Corte norte-ame-
ricana pela via recursal, foi proferida pelo Justice John Marshall33.
O voto decisivo foi estruturado em duas partes. A primeira de-
dicada à demonstração do direito de Marbury, e a segunda declarando
que, reconhecido este direito, deveria haver, então, uma solução jurídica
para assegurá-lo. A fundamentação construída por Marshall é no senti-

32 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2004. p. 342-352.
33 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 3-5.

167
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

do de que inexistindo óbice legal ou vício no ato de nomeação de Mar-


bury, o decreto de Madison careceria de legitimidade e amparo consti-
tucional, razão pela qual deveria ser cassado. Ocorre que a Constituição
dos Estados Unidos não conferia à Suprema Corte ou a qualquer outro
órgão jurisdicional a competência para agir nesse sentido34. E esse é o
ponto de maior inovação.
Marshall airma que diante de um conlito de normas, cabe ao
Poder Judiciário, dentre os três poderes, a função de interpretar a apli-
car as leis e, portanto, também excluí-las quando em contradição com
a norma maior. Ou seja, mesmo não existindo previsão expressa dessa
função para o Judiciário ou qualquer dos outros poderes, o controle de
constitucionalidade das leis, por ele denominado de judicial review, se-
ria uma função implícita decorrente da função precípua do Poder Judi-
ciário, de interpretar e aplicar as leis.
Tal fundamentação foi inspirada, em grande parte, na obra “O
Federalista”, de Alexander Hamilton e outros, datada de 1787, em que já
se falava na questão do denominado judicial review35. Mauro Cappelletti
qualiica a fundamentação deste controle como coerente e de extrema
simplicidade, e, destaca um trecho da obra do próprio Hamilton:
A função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a im de aplicá-las
aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento [...] uma
das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual,
quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o
juiz deve aplicar a prevalente”36.

Com o reconhecimento do judicial review, dá-se início ao sistema


americano de controle da constitucionalidade – que também pode ser
denominado controle difuso ou concreto da constitucionalidade. Ape-
sar de sua raiz norte-americana, este sistema foi copiado por muitos paí-
ses, inclusive o Brasil, que incluiu esse sistema de controle, pela primeira
vez, em sua Carta Constitucional de 1891.

34 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:


Saraiva, 2004. p. 5.
35 A expressão judicial review pode ser traduzida para o português de forma mais coloquial como
“revisão judicial”, mas em termos jurídicos, a tradução mais precisa é “controle difuso”.
36 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito
comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 75.

168
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

A inserção do modelo de controle difuso no Brasil se deu nos


mesmos moldes da experiência norte-americana, ou seja, a adoção des-
sa função por parte dos juízes não está expressamente autorizada pelo
texto constitucional, mas decorre da importação, por Rui Barbosa, do
modelo de Estado norte-americano – com a adoção da república, do fe-
deralismo, do presidencialismo e de uma suprema corte – na elaboração
da carta constitucional de 1891 e que se mantém até os dias atuais em
concordância tácita com as demais Constituições desde então vigentes.
A principal característica do modelo difuso é que o controle da
constitucionalidade é competência comum a todos os órgãos que com-
põe o Poder Judiciário, ou seja, todos os juízes, na prestação de sua ju-
risdição, terão o poder/dever de afastar a aplicação das leis tidas por in-
constitucionais diante do julgamento de um caso concreto. Desta forma,
podemos concluir que o sistema de controle difuso é aquele no qual o
julgador – juiz singular ou órgão colegiado – é chamado a decidir acerca
da constitucionalidade das leis em sede de um processo singular – um
caso concreto – e em razão do efeito da lei questionada sobre a decisão
daquele caso – podendo decidir se irá aplicar a lei ou afastá-la, caso a
julgue inconstitucional.
Outras classiicações doutrinárias também podem ser ilustradas
a partir do modelo norte-americano. Entretanto, cumpre deixar claro
que o modelo misto de controle da constitucionalidade, adotado es-
pecialmente pelo Brasil, não permite pensar essas diferentes espécies
de controle de forma estanque, ou seja, é possível a ocorrência de igu-
ras mistas ou sui generis de controle da constitucionalidade, como, por
exemplo, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), que é ação típica do controle concentrado da constitucionali-
dade, julgada exclusivamente pelo STF, iscalizando uma lei ou ato nor-
mativo de forma concreta. Feita esta importante ressalva, ainda são cri-
térios relacionados ao modelo do judicial review: (a) Quanto à forma ou
modo de controle da constitucionalidade, a realização porvia incidental
– uma vez que a questão da inconstitucionalidade de uma lei só pode
ser invocada no curso de um caso concreto, sendo o pronunciamento
acerca da constitucionalidade parte integrante do raciocínio lógico a ser
desenvolvido para solução do caso concreto; (b) Quanto à iscalização
da matéria, a adoção de um controle concreto – uma vez que a discussão
de eventual inconstitucionalidade não será debatida em tese, pelo con-

169
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

trário, deve levar em conta os fatos concretos do processo em julgamen-


to, ou seja, o juiz deve afastar a aplicação da lei quando vislumbrar que
sua aplicação pode gerar uma situação de inconstitucionalidade entre as
partes envolvidas na ação; (c) por im, considerando que no modelo do
judicial review a realização do controle se dará no curso de ações judi-
ciais, a eventual decisão pela inconstitucionalidade da lei terá, em regra
geral, eicácia inter partes, isto é, seus efeitos alcançaram exclusivamente
as partes envolvidas na ação.

6.3.2. O modelo de controle concentrado da


constitucionalidade
Um antecedente histórico que se seguiu mais de cem anos após o
leading case norte-americano, mas que se destaca fundamentalmente e
no mesmo plano de importância, foi a criação da Corte Constitucional
austríaca promovida pela promulgação da Constituição da Áustria em
1° de outubro de 1920. Fruto de um projeto elaborado por Hans Kel-
sen, que na época adotava uma concepção formalista de Constituição,
considerada como norma jurídica que ocupa o vértice do ordenamen-
to jurídico composto exclusivamente de normas jurídicas e organizado
de forma hierárquica e escalonada, a função desta Corte Constitucio-
nal seria analisar, com exclusividade, a compatibilidade das leis com as
normas constitucionais. Desse órgão, criado com inalidade especíica,
origina-se a outra principal matriz do sistema de controle da constitu-
cionalidade, o modelo concentrado37.
Este “Tribunal Constitucional” guardava grande originalidade,
destacando-se dentre suas principais características, a concentração da
competência, que se torna exclusiva da Corte para decidir acerca das
inconstitucionalidades, as quais, por sua vez, dependiam de um “pedi-
do especial”, ou seja, de uma ação especíica intentada por um número
limitado de legitimados, todos integrantes das instituições estatais – que
signiica dizer que as leis seriam analisadas sem qualquer vínculo com
os casos concretos, e, portanto, de forma abstrata38.

37 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de


Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 733.
38 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito
comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 104.

170
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

Este sistema de controle da constitucionalidade denomina-se


concentrado porque a competência para julgar deinitivamente a consti-
tucionalidade de uma lei é reservada a um único órgão judicial, excluin-
do a possibilidade de qualquer outro órgão vir a fazê-lo39. Este modelo
austríaco de controle concentrado da constitucionalidade, em diametral
oposição ao controle difuso, no qual a função recai sobre todos os juízes,
inluenciou muitos países da Europa ocidental; razão pela qual, hoje,
a maioria dos estados constitucionais europeus possuem uma Corte
Constitucional.
Nessa forma de controle, as questões de inconstitucionalidade são
debatidas em um processo autônomo, independentemente da existência
de um caso concreto. O debate e o julgamento sobre a constitucionali-
dade da lei é conhecido originariamente pela Corte Constitucional, que
analisa em tese a conformidade da lei e os princípios constitucionais.
Assim, o controle concentrado pode ser exemplo de outras espécies de
controle, tais como os seguintes critérios: (a) Quanto à forma ou modo
de controle da constitucionalidade, este se dá por via principal ou ação
direta – pois a questão da inconstitucionalidade será debatida fora de
qualquer caso concreto, tendo por objetivo a discussão acerca da vali-
dade da lei em si (em razão da Constituição, obviamente)40; (b) Quanto
à iscalização da matéria, adota-se um controle abstrato ou em tese – ou
seja, não é um controle que depende do litígio entre partes reais, é um
processo que objetiva acima de tudo a defesa da Constituição e do prin-
cípio da constitucionalidade, através da eliminação de atos normativos
contrários à Constituição41, e dirige-se ao comportamento dos órgãos
públicos ou às normas em si, pelo que representam no ordenamento ju-
rídico, independentemente de sua incidência em um caso concreto; (c)
Por im, considerando que neste modelo concentrado a discussão da ma-
téria será em tese e que o processo não envolve partes diretamente inte-
ressadas em um litígio que disputa certo bem da vida, a eventual decisão
pela inconstitucionalidade da lei terá, em regra geral, eicácia erga omnes
(contra todos) e efeito vinculante, ou seja, a decisão da Corte Constitu-

39 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.


Coimbra: Almedina, 2003. p. 898-899.
40 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 49.
41 CANOTILHO, op.cit., p. 900-901.

171
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

cional terá eicácia geral, alcançando a todos os destinatários da lei e será


de aplicação vinculante aos órgãos do Poder Judiciário. Por isso a Corte
Constitucional pode ser comparada a um “legislador negativo”42.
No Brasil, o modelo de controle concentrado foi introduzido às
avessas, pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, durante a vigência
do regime militar, possibilitando o controle abstrato de constitucionali-
dade de atos normativos federais e estaduais, por meio da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI), sem, entretanto, a concomitante cria-
ção de um verdadeiro Tribunal Constitucional, icando o julgamento da
ação, como persiste até os dias de hoje, a cabo do Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), criado em 1891 nos moldes do modelo americano de uma
suprema corte. Daí dizer-se que o Brasil possui um sistema misto de
controle da constitucionalidade, congregando o modelo difuso, desde
1891, e o concentrado, desde 1965.

6.3.3. O sistema de controle da constitucionalidade


vigente na Constituição de 1988
A nova ordem constitucional brasileira, instituída pela Cons-
tituição Federal de 1988, consagrou o sistema misto de controle da
constitucionalidade, também denominado híbrido ou eclético43. Nesse
sentido, “manteve, em linhas gerais, a arquitetônica da iscalização da
constitucionalidade incada na Constituição de 1967/69”44. No entanto,
importantes modiicações também foram introduzidas, demonstrando,
inclusive, a tendência de transformação do Supremo Tribunal Federal
em Corte Constitucional e uma certa preferência pelo controle concen-
trado e abstrato ao invés do difuso e concreto.
O controle difuso é exercido no ordenamento brasileiro por to-
dos os órgãos que compõem o Judiciário, ou seja, por todos os juízes,
independentemente da especialização da justiça (estadual, federal, do
trabalho, eleitoral ou militar) ou do grau (instâncias ordinárias e ex-

42 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de


Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 734.
43 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 60.
44 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A iscalização abstrata da constitucionalidade no direito
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 90.

172
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

traordinárias) em que atuam; todos os juízes são, portanto, dotados des-


se poder/dever.
Mas esta competência será exercida com algumas diferenças.
Quando realizado pelo juiz singular, o controle de constitucionalidade
será exercido caso a caso, uma vez que incidental, ou seja, somente a
análise da aplicação aos fatos concretos de cada caso podem demonstrar
ao juiz a ocorrência de uma inconstitucionalidade incidente no proces-
so. Nesses casos, a decisão do juiz deverá ser no sentido de “afastar a
aplicação da lei no caso concreto”, sob pena de ocorrência de uma in-
constitucionalidade incidental. Tal decisão terá um caráter prejudicial
ao mérito da questão, uma vez que modiicará o fundamento aplicá-
vel e, portanto, o próprio resultado. Não se trata propriamente de uma
declaração de inconstitucionalidade, pois os efeitos da mesma somente
alcançam as partes envolvidas na ação. Como regra geral, os efeitos da
decisão de controle de constitucionalidade pelo juiz singular são inter
partes e ex tunc.
Já no controle difuso exercido por órgãos fracionários – órgãos
que julgam de forma colegiada, tais como câmaras e turmas de tribunais
– a Constituição impõe a regra da “reserva de plenário”, determinando
no artigo 97 que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus mem-
bros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais
declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Pú-
blico”. Isso signiica que, diferente dos juízes singulares, as câmaras e
turmas de tribunais deverão submeter a discussão de eventual inconsti-
tucionalidade a seu órgão pleno ou especial, e somente poderão declarar
a inconstitucionalidade de lei se obtiverem o voto da maioria absoluta
de seus membros, dispensadas novas votações em casos idênticos. Esse
é o denominado “incidente de inconstitucionalidade”, regulamentado
pelos artigos 480 a 482, do Código de Processo Civil, e tem por inali-
dade garantir maior uniformidade e coerência às decisões de inconsti-
tucionalidade proferidas pelos tribunais brasileiros, responsáveis pela
formação da jurisprudência. Tal regra, entretanto, vem sendo sistema-
ticamente descumprida, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal
editou a Súmula Vinculante de número 10, segundo a qual
[...] viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de
órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a

173
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta


sua incidência, no todo ou em parte.

Por im, também o Supremo Tribunal Federal, na condição de ór-


gão colegiado que integra o Poder Judiciário, poderá realizar o controle
difuso, podendo este ocorrer no julgamento de recursos extraordiná-
rio, habeas corpus, mandados de segurança, ou qualquer outras ações
e recursos que não aqueles próprios do controle concentrado (ADI,
ADC, ADO e ADPF). Entretanto, ao STF é permitida a possibilidade
de expandir os tradicionais efeitos inter partes da decisão de inconstitu-
cionalidade em sede de controle difuso. Nesse caso, desejando atribuir
eicácia erga omnes à sua decisão, poderá o Supremo Tribunal Federal,
nos termos do artigo 52, X, da Constituição, requerer ao Senado Fe-
deral que suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão deinitiva por ele proferida. Alguns consti-
tucionalistas, capitaneados pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, vem
defendendo a perda de signiicado deste dispositivo, uma vez que a am-
pliação do controle abstrato de normas e a ampliação dos poderes pró-
prios de uma Corte Constitucional adquiridos pelo STF estão levando
esta dependência de suspensão da lei por parte do Senado Federal a um
verdadeiro processo de obsolescência. Esse fenômeno tem sido denomi-
nado de “objetivação do controle difuso”45.
Em paralelo a esse controle concreto e incidental realizado pelo
Poder Judiciário como um todo, o controle concentrado e abstrato de
normas é realizado com exclusividade pelo Supremo Tribunal Fede-
ral, por meio da propositura de ações previstas constitucionalmente na
competência originária do tribunal (artigos 102, I, “a” e §1º, e 103, §2º,
da Constituição Federal), ou seja, para provocar o controle abstrato de
normas por parte do STF deve-se obrigatoriamente fazê-lo pela interpo-
sição dessas ações: Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI); Ação
Declaratória de Constitucionalidade (ADC); Ação Direita de Inconsti-
tucionalidade por Omissão (ADO), regulamentadas pela Lei n. 9868/99;
e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), re-
gulamentada pela Lei n. 9882/99.

45 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1109-1115.

174
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

Uma característica comum a todas essas ações e que é traço mar-


cante do modelo concentrado de controle idealizado por Hans Kelsen é
sua legitimidade ativa limitada. Desta forma, a Constituição impõe um
rol razoavelmente limitado e escasso de entidades autorizadas a propo-
situra da ação (Art. 103, I - o Presidente da República; II - a Mesa do
Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de
Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-
Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso
Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional).
A jurisprudência do próprio STF vem diferenciando essas entida-
des quanto à amplitude de sua atuação no controle abstrato de normas,
classiicando como “legitimados ativos universais” aqueles órgãos e ins-
tituições cuja guarda da Constituição integra seu papel institucional e
que, portanto, tem ampla legitimidade para questionar quaisquer espé-
cies de leis ou atos normativos, sendo eles o Presidente da República,
a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Pro-
curador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB e os partidos
políticos com representação no Congresso Nacional). Já os” legitimados
ativos especiais”, que seriam a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câ-
mara Legislativa do Distrito Federal, os Governadores de Estado ou do
Distrito Federal e confederação sindical ou entidade de classe de âmbi-
to nacional, dependeriam da demonstração de “pertinência temática”,
ou seja, da comprovação de que existe um vínculo temático entre a lei
questionada e a esfera jurídica de atuação dessas entidades, requisito
indispensável à prova do interesse de agir, verdadeiro pressuposto de
admissibilidade da ação.
Por im, outra diferença marcante entre os modelos jurisdicionais
de controle da constitucionalidade reside nos efeitos da decisão, sendo
peculiaridade do controle abstrato de normas, o fato de que a decisão
de inconstitucionalidade adotada pelo STF terá, por si só, a força de ex-
tinguir do ordenamento jurídico a norma impugnada. Tais julgamentos
deverão ocorrer sempre no pleno do tribunal, formado pela totalidade
dos ministros que o compõe, necessitando da presença de no mínimo
de 8 e do voto em um sentido ou outro de no mínimo 6 ministros, con-

175
ROBERTA MAGALHãES GUBERT

forme artigos 22 e 23, da Lei n. 9869/99. Outra particularidade é que as


decisões em sede de controle abstrato são irrecorríveis e irrescindíveis,
excetuadas apenas pelos embargos de declaração. Como regra geral, as
decisões serão dotadas de efeitos temporais ex tunc e produzirão eicá-
cia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal (artigo 102, §2º, da Constituição).
Quanto aos efeitos temporais, existe ainda a possibilidade de mo-
dulação dos mesmos. Determina o artigo 27, da Lei n. 9869/99, bem
como o artigo 11, da Lei n. 9882/99, que ao declarar a inconstitucionali-
dade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurí-
dica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Fe-
deral, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos
daquela declaração ou decidir que ela só tenha eicácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser ixado. Essa
amplitude de ação deixa transparecer o caráter político (mas não parti-
dário) da atuação do tribunal, uma vez que a declaração de inconstitu-
cionalidade de uma lei deve levar em consideração não apenas aspectos
estritamente jurídicos, mas também os efeitos sociais e econômicos que
podem advir da declaração de inconstitucionalidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no
direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004.
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176
6 • DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUçãO À JURISDIçãO CONSTITUCIONAL

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177
7

TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO


CONSTITUCIONAL: OLHARES
TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O
ATUAL PARADIGMA MODERNO
CONSTITUCIONAL

Emerson de Lima Pinto1

SUMÁRIO: 7.1. Constituição: as origens dos limites sociais


e a raiz da esperança - 7.2. Lassale: a Constituição política no
Estado nacional do século XIX - 7.3. Kelsen: o monismo estatal
na produção do Direito - 7.4. Schmitt: Estado e pensamento
autoritário - 7.5. Hesse: A Constituição estatal/estatista e seu
desejável não retrocesso - 7.6. Heller: A gênese da Constituição
como Ciência da cultura - 7.7. Canotilho: considerações sobre
Constituição, pluralismo e democracia - REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

1 Advogado. Especialista em Ciências Penais - PUC/RS. Especialista em História da Filosoia -


UNISINOS. Mestre em Direito Público - UNISINOS. Doutorando em Filosoia pela UNISINOS.
Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo na UNISINOS e CESUCA.
Pesquisador do CESUCA. E-mail: emersonpinto@cesuca.edu.br

179
EMERSON DE LIMA PINTO

7.1. Constituição: as origens dos limites sociais e a raiz


da esperança
O Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as
quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eicácia possí-
vel, propiciando o desenvo
lvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portan-
to, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a
vontade da Constituição que indubitavelmente constitui a maior garan-
tia de sua força normativa. Essa orientação torna imperiosa a assunção
de uma visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais
perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões funda-
mentais para a vida do Estado.
No mesmo sentido, se deve analisar a noção de Constituição que
hoje é empregada e a carga valorativa e cultural que é representada pela
sua concepção ligada intimamente ao Estado. Percebe-se, por sua vez,
que a organização do poder político refere-se substancialmente ao Es-
tado, e não à sociedade. Precisa-se (re)colocar o Estado no plano cons-
titucional naquilo que deveria ser seu local, integrando a sociedade,
fazendo parte da mesma e não em uma pretensa posição superior ou
conlitiva a este.
A Constituição tem sido apresentada em nossa tradição moderna
como sendo fundamentalmente a organização fundamental do Estado.
Assim, dá-se prioridade a uma visão estatista da Constituição; o que de
acordo com Loewenstein2, com sua admissão da mutação constitucio-

2 “Desde un punto de vista puramente teorico - y com ello entramos en el tema propriaente
dicho - una constitucion ideal seria aquel orden normativo conformador del processo politico
segun el cual todos los desarrollos futuros de la comunidad, tanto del orden politico como social,
economico y cultural, pudiesen ser previstos de tal manera que no fuese necesario un cambio de
normas conformadoras. Cada Constitucion integra , por asi decirlo, tan solo el statu quo existente
en el momento de su nacimiento, y n puode prever el futuro en el mejor de los casos cuando este
intelegentemente redactada , puede intentar tener en cuenta desde el principio , necesidades futuras
por de apartados y valvulas cuidadosamente colocados, aunque una formulacion demasiado elastica
podria perjudicar la seguridad juridica. Asi, pues, hay que resignarse com el carater de compromiso
inherente a cualquier constitucion. Cada constitucion es un organismo vivo, siempreen movimiento
como la vida misma , y esta sometido a la dinamica de la realidad que jamas identica consigo
misma, y esta sometida constantemente al panta rhei heraclitiano de todo lo viviente.(...) Estas
invitables acomodaciones del derecho constitucional a la realidad m constitucional son tenidas en
cuenta solo de dos maneras, a las cuales la teoria general del Estado há dado la denominacion de
reforma constitucional y mutacion constitucional. (...) En la mutacion constitucional , por outra

180
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

nal, faz com que a sociedade e os indivíduos participem do processo


de transformação da Constituição, por meio de seus costumes, que em
muitos momentos tencionam a norma e acabam impondo sua modii-
cação de forma direta ou não. Kelsen3 e Schimitt4, entre outros clássicos,
priorizavam a visão estatal da constituição em detrimento de outras.
Desta forma, deve-se rememorar a contribuição de Hermann
Heller5, a qual trazia um conceito mais amplo de Constituição, que não
aquele que se airmou em seus oponentes legendários de então, como
Loewenstein e Schmitt. A noção de cultura e a importância da socie-
dade para a Constituição já estavam presentes no momento de deba-
te sobre a Constituição de Weimer. Entretanto, uma visão estatista da
Constituição, ao nosso sentir, apresentou-se de forma hegemônica, per-
manecendo até os dias atuais.
Sobre o estatismo de Loewenstein6, a questão do poder é apresen-
tada de forma a ser necessariamente contida pelo texto constitucional, e

lado, se produce una transformacion en la coniguracion del poder politico, e la estrutura social
o del equilibrio de intereses, sin quede actualizada dicha transformacion permanece intacto. Este
tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitucion escrita
y son mucho mas frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad
es de tal orden que texto constitucional en vigor sera dominado y cubierto por dichas mutaciones
sufriendo un considerable alejamiento de la realidad, o puesto fuera de vigor”. LOEWENSTEIN,
Karl. Teoria de la Constitucion. 2. ed., Barcelona: Editorial Ariel 1983. p. 164-5. La mutacion
constitucional.
3 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. KELSEN, Hans. Teoria Pura do
Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
4 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. Madrid: Alianza Editorial, 1992. p. 58-60. MACEDO
JR., Ronaldo Porto. Carl Schimitt e a fundamentação do Direito. São Paulo: Max Limonad, 2001.
5 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, 1968. p. 295-300.
6 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2 ed., Barcelona: Editorial Ariel, 1983. p. 149-
150 Sobre el telos de la constitucion(...) Cada sociedad estatal, cualquiera que sea su estrutura social,
posee ciertas convicciones comummente compartidas y ciertas formas de conducta reconocidas que
constituyen , en el sentido aristotelico de politeia, su Constitucion.(...) En un sentido ontologico,
se debera considerar como el telos de toda constitucion la creacion de instituciones para limitar
y controlar el poder politico. En este sentido, cada constitucion presenta una doble signiicacion
ideologica liberar a los destinatorios del poder del control social absoluto de sus dominadores, y
asignarles una legitima participacion en el proceso del ´poder. Para alcanzar este proposito se tuvo
que someter el ejercicio del poder politico a determinadas reglas y procedimientos que debian
ser respetados por los detentadores del poder. Desde un punto de vista historico, por tanto, el
constitucionalismo, y en general el constitucionalismo moderno, es un producto de la ideologia
liberal. En la maderna sociedad de masas, el único medio praticable para hacer participar a los
destinatarios del poder en el proceso politico es la tecnica de representacion, que en un principio
fue meramente simbolica y mas tarde real. (grifo nosso)

181
EMERSON DE LIMA PINTO

tal disposição pode ter origem na concepção negativa que o poder traz
para a relexão do autor, uma vez que identiicava uma espécie de cará-
ter demoníaco do poder. Contudo, a junção da contribuição dos autores
já citados com Heller, Loewenstein, Schmitt - pensamento vigente em
Weimer - com autores contemporâneos como Haberle, Bonavides, entre
outros, dará um incrível potencial relexivo acerca do futuro da Consti-
tuição na construção de uma “harmonia social”.
A necessidade de incorporação da sociedade como protagonista,
e ao mesmo tempo depositária desse novo processo de (re)legitimação
constitucional, passa pelo desenvolvimento da Constituição como cul-
tura que amplie a visão do público. Necessita-se (re)incorporar Heller7 e
Häberle na teoria constitucional contemporânea, como forma de opor-
tunizar a sociedade moderna de elementos vitais que propiciem uma
constante transformação nos valores sociais que devem tornar-se cons-
titucionais. Neste percurso surgiram, nas décadas iniciais do século XX,
conturbações sociais que geraram pensadores constituídos em notáveis
referências para o direito, para a ilosoia e para a política. Antes de pro-
ceder à análise de alguns dos principais expoentes do constitucionalis-
mo, insta destacar a relexão de um político italiano que gravara lições
na alma de todos aqueles que pretendem a construção de uma socieda-
de justa e solidária, e que veem na Constituição um instrumento capaz
de auxiliar em sua concretização.
A importância com que Gramsci8 dota a compreensão da cultura,
objeto de estudo essencial à construção de uma sociedade democrática,

7 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. 1.ed. São Paulo: Editora Mestre JOU 1968. p. 56-58;
174-75.
8 GRAMSCI., Antônio. Concepção Dialética da História. 8.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989. p. 100-2; 108: “A ilosoia da práxis e a cultura moderna. A ilosoia da práxis foi
um momento da cultura moderna; ela determinou e fecundou, em uma certa medida algumas
correntes. O estudo deste fato , muito importante e signiicativo, foi esquecido ou mesmo
ignorado pelos chamados ortodoxos, pela seguinte razão : a combinação ilosoia mais importante
ocorreu entre a ilosoia da práxis e diversas tendências idealistas, o que chamados ortodoxos -
ligados essencialmente á corrente particular da cultura do ultimo quartel do século passado
(positivismo, cientiicismo) - pareceu um contra-senso, se não mesmo uma astucia de charlatães
( no ensaio de Plekhanov sobre os problemas fundamentais, todavia existe uma referencia a este
fato, mas apenas supericialmente, sem nenhuma tentativa de explicitação crítica. Por isso, ao
que parece, é necessariamente revalorizar a colocação do problema de Labriola. (...) Ocorreu o
seguinte : a ilosoia da práxis sofreu realmente uma dupla revisão, isto é, foi submetida a uma
dupla combinação ilosóica.(...) É possível observar em geral, que as correntes que tentaram a
combinações da ilosoia da práxis como tendências idealistas são constituídas, em sua imensa
maioria por intelectuais “puros”; passo que a ortodoxia era formada por personalidades intelectuais

182
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

livre, solidária e pluralista fora saudada por diversos autores, sendo im-
perioso grifar sua importância para a descoberta do próprio objeto de
relexão crítica. Gramsci9 tem presença fundamental, na medida em que
é interessante aprofundar o debate político sobre o Estado e a importân-
cia da cultura, essencial no processo de substancialização da Constitui-
ção. A vitalidade do pensamento do revolucionário autor italiano pode
ser constatada na matriz teórica de grande parte dos cientistas políticos
contemporâneos, que propugnam a cultura como forma de resistência à
barbárie decorrente do atual estágio do capitalismo na sociedade.
Assim, apesar de o Estado burguês-liberal nascer da sociedade
revolucionária, passa a ser algo diverso dela. Há, de certa forma, uma

mais estreitamente dedicadas a atividade prática e, portanto, mais ligadas (por laços mais ou menos
extrínsecos) às grandes massas populares (o que, de resto, não impediu a maioria deles de cometer
equívocos de grande importância histórico-política). (...) Esta distinção tem grande importância.
Os intelectuais “puros”, como elaboradores das mais amplas ideologias das classes dominantes ,
como lideres de grupos de intelectuais de seus países, não podiam deixar de utilizar pelo menos
alguns dos elementos da ilosoia da práxis, a im de fortalecer suas concepções e atenuar o
decrépito ilosoismo especulativo com o realismo historicista da nova teoria im de fornecer novas
armas ao arsenal do grupo social ao qual estavam ligados. Por outro lado, a tendência ortodoxa
se encontrava em luta com a ideologia mais difundida nas massas populares, o transcentalismo
religioso, e acreditava poder supera-lo através tão somente do mais cru e banal materialismo , que,
também ele, era uma estratiicação não indiferente do senso comum mantida viva - mais do que
então se acredita - pela própria religião, a qual, no povo, manifesta-se através de sua expressão
trivial e baixa, supersticiosa e fetichista, na qual a matéria tem uma função que não é das menores.
(...) Politicamente, a concepção materialista é vizinha ao povo, ao senso comum; ela é estreitamente
ligada a muitas crenças e preconceitos, a quase todas as superstições populares (bruxarias, espíritos,
etc.). Isto pode ser observado no catolicismo popular e, notadamente, na ortodoxia bizantina. (...)
Na historia dos desenvolvimentos culturais, deve-se levar em conta notadamente a organização da
cultura e do pessoal através do qual tal organização toma forma concreta. (grifo nosso)
9 GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do Livro.
s/d p.109-110.”deve-se levar em consideração a tendência em desenvolvimento, segundo a qual
cada atividade prática tende a criar para si uma escola especializada própria, do mesmo modo
como cada atividade intelectual tende tende a criar círculos próprios da cultura, que assumem
a função de instituições pré-escolares especializadas em organizar as condições nas quais seja
possível manter-se a par dos progressos que ocorrem no ramo cientíico próprio. (...) Pode-se
observar, também, que órgãos deliberativos tendem cada vez mais a diferenciar sua atividade em
dois aspectos orgânicos: o deliberativo, que lhes é essencial, e o técnico-cultural, onde as questões
sobre as quais é preciso tomar resoluções são inicialmente examinadas por especialistas e analisadas
cientiicamente. Essa atividade já criou todo um corpo burocrático de nova estrutura, pois - além
dos escritórios especializados de pessoas competentes, que preparam o material técnico para os
corpos deliberativos- cria-se um segundo corpo de funcionários mais ou menos “voluntários” e
desinteressados, escolhidos de vez em quando na indústria, nos bancos, nas inanças. Esse é um
dos mecanismos através dos quais a burocracia de carreira terminou por controlar os regimes
democráticos e os parlamentos; atualmente o mecanismo vai se ampliando organicamente e
absorve em seu currículo grandes especialistas da atividade prática privada, que controla assim os
regimes e as burocracias. (grifo nosso)

183
EMERSON DE LIMA PINTO

contraposição entre ambos. Somente com a “agonia do Estado”10, ter-


se-ia uma efetiva fusão entre sociedade civil e o Estado. Para Gramsci a
sociedade civil e a sociedade política situam-se no âmbito de uma tota-
lidade orgânica por ele denominada de “superestrutura”, devendo-se ter
o cuidado com a formação da burocracia11, que tem sido uma constante
nos juristas preocupados com a Teoria do Estado e a Constituição como
um fenômeno mais amplo que o Estado.
Resta claro, portanto, quando Gramsci airma que a atividade
política “é efetivamente o primeiro momento ou primeiro grau, o mo-
mento em que a superestrutura está ainda na fase imediata de mera air-
mação voluntária, indistinta e elementar”12. Após, quando analisa o que
chama de relação de forças, tema ligado à relação entre a estrutura e a
superestrutura (natureza e espírito), alega que esta se dá em três mo-
mentos. No primeiro, identiica a relação das forças sociais vinculadas
à estrutura, “objetiva, independente dos homens, que pode ser medida
com os sistemas das ciências exatas ou físicas”.
O momento seguinte é a relação das forças políticas; a avaliação
do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcan-
çado pelos vários grupos sociais. Por sua vez, este momento pode ser
analisado e diferenciado em vários graus que correspondem aos diver-
sos momentos da consciência política coletiva, da forma como se ma-
nifestam na história até agora. O primeiro e mais elementar é o econô-
mico-corporativo; um segundo momento é aquele em que se adquire

10 ESTERUELAS, Cruz Martínez. La agonía del Estado : Um nuevo orden mundial? Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, 2000. p. 53.4.
11 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o moderno Príncipe. 7.ed. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira. p.81-4. “Sobre a burocracia. 1) O fato de que no desenvolvimento histórico
das formas políticas e econômicas que viesse formando o tipo de funcionário de “carreira”
tecnicamente preparado para o trabalho burocrático (civil ou militar), tem um signiicado
primordial na ciência política e na história das formas estatais(...) o problema dos funcionários
coincide com o problema dos intelectuais. Mas, se é verdade que cada nova formas social teve
necessidade de um novo tipo de funcionário, também é verdade que os novos grupos de dirigentes
jamais puderam prescindir, pelo menos durante certo tempo, da tradição e dos interesses
constituídos, isto é, das formações de funcionários já existentes e pré-constituídas quando do
seu advento ( especialmente nas esferas eclesiástica e militar). A unidade do trabalho manual e
intelectual e uma ligação mais estreita entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo (pela qual os
funcionários eleitos, além de controller, se intercom pelos negócios do Estado) podem ser motivos
inspiradores tanto para uma orientação nova na solução do problema dos intelectuais, como para
o problema dos funcionários. (grifo nosso).
12 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 8.ed., Rio de Janeiro:
Civilização brasileira. 1991. p.12.

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7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros


do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Neste
momento, já se coloca a questão do Estado, mas apenas visando alcan-
çar uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes. Um
terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os
próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e futu-
ro, superam o círculo corporativo do grupo meramente econômico, e
podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados.
Esta é a fase mais abertamente política que assinala a passagem nítida
da estrutura para a esfera das superestruturas complexas da sociedade
capitalista central monopolista.
Ainda sobre a importância de Gramsci para a relexão acerca do
Estado e os limites do marxismo ortodoxo, Brandão13 assevera que o
Estado não é somente sociedade política, mas também sociedade civil,
pois ele garantirá ao proletariado o papel hegemônico na conquista do
consenso; e a sociedade civil estará situada entre a legislação do Estado
e sua estrutura econômica. E, deste modo, para o pensador italiano é a
sociedade política que exerce uma hegemonia protegida pela coerção.

7.2. Lassale: a Constituição política no Estado nacional


do século XIX
Em relação ao pensamento de Lassale veriica-se que para o autor
as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões
políticas. A Constituição de um país expressa as relações de poder nele
dominantes. Seu pensamento sociológico implica uma redução subs-
tancial das funções que a Constituição possui. Sua capacidade de regu-
lar e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição
real. Do contrário, torna-se inevitável o conlito cujo desfecho há de se
veriicar contra a Constituição escrita, sendo que esse pedaço de papel
terá de sucumbir diante dos fatores reais de poderes dominantes.

13 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ação Civil Pública. Florianópolis: Livraria e Editora Obra
Jurídica, 1996. p. 278. Nicos Poulantzas, dando-se conta de que as massas populares, através de
lutas decorrentes das contradições internas inerentes ao Estado capitalista, são determinantes
na transformação deste mesmo Estado, ixando, inclusive, conquistas, como as instituições
da democracia representativa. Esta circunstância, diz, foi ocultada pela idéia de ditadura do
proletariado, que, salienta, foi, no pensamento de Marx, “uma noção estratégica em estado prático,
funcionando ademais como painel indicador”.

185
EMERSON DE LIMA PINTO

O referido autor-sindicalista insistia na proposta das “cooperati-


vas”14 e na sua intransigente defesa do sufrágio universal, igual e direto
para os operários, como forma de se conquistar o Estado para imple-
mentar reformas sociais, bem como sobre o conceito de Constituição.
Lassale15 demonstrou seu ceticismo em relação ao instrumento durante
o século XIX, o que nos dias atuais demonstra-se bastante razoável, ten-
do em vista como forças hegemônicas se relacionam com a Constituição
no que se refere à sua função democrática e limitadora dos poderes es-
tatais, e em alguns casos corporativos ou sociais.
O socialista utópico Lassale16 mantinha estreita relação com os
movimentos operários de então e seguidamente em seus discursos pro-
feria junto aos operários opiniões sobre a conjuntura histórica que im-

14 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen


& Juris , 2000 p. IX à XIII : “seu pressuposto jurídico, evidente confronto com o pensamento
jusnaturalista e positivista, é de que as constituições (burguesas?) não promanam de idéias ou
princípios que se sobrepõe ao próprio homem, mas dos sistemas que os homens criam para,
entre si, se dominarem, ou para se apropriarem da riqueza socialmente produzida (...) airma
taxativamente que as instituições jurídicas são “os fatores reais de poder” transcritos em “folha
de papel”. As suas opiniões permitem concluir que ele acredita que o direito dominante (a Ordem
Jurídica) não tem qualquer autonomia; seria um mero instrumento escrito com o objetivo de
coagir condutas através da ameaça de punições (...) explicita com límpida clareza os fundamentos
sociológicos das constituições: os fatores reais do poder. Para ele, constituem – se em fatores reais
do poder o conjunto de forças que atuam politicamente, com base na lei ( na Constituição), para
conservar as instituições jurídicas vigentes(...) não mostra muito otimismo com as possibilidades
e potencialidades do povo desorganizado: os servidores do povo são retóricos, os dos governantes
são práticos, utilitários e oportunistas (...) se a Constituição escrita não corresponde aos fatores
reais de poder, a Constituição real, tanto por um lado – o rei, a aristocracia, a grande burguesia - ,
quanto por outro – a consciência nacional – está ameaçada. Ele consegue identiicar os indicadores
da crise, mas se perde na indicação de alternativas jurídicas e até mesmo políticas. (grifo nosso)
15 Ibid., p. 06-07: “ O conceito da Constituição – como demonstrarei logo – é a fonte primitiva
da qual nascem a arte e a sabedoria constitucionais. Repito, pois, minha pergunta: Que é uma
Constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?
Não pode, porém, decretar – se uma única lei que seja, nova, sem alterar a situação legislativa
vigente no momento da sua aprovação. Se a nova lei não motivasse modiicações no aparelhamento
legal vigente, seria absolutamente supérlua e não teria motivos para ser a mesma aprovada (...)
A esta pergunta responderão: Constituição não é uma lei como as outras, é uma lei fundamental
da nação.
16 LASSALE, Ferdinand. Manifesto Obrero y otros Escritos Políticos. Classicos Políticos. Centro
de Estudos Constitucionales Madrid, 1989. p. 277-8. En diciembre de 1848, como todos ustedes
saben , el Rey outorgo una Constituiciõn. Y quiero mostrarme de lo mas generoso muy bien, que
lo hiciera. Pero, eso si, dicha Constituicion no podia alcanzar una validez deinitiva hasta tanto no
hubiera sido aceptada y apropada por la representacion popula legitimamente elegida. El proprio
Rey lo compreendio asi, y por eso convoco en 1849, en Berlin, una Camara de Revision. Sin
embargo, antes de que las sesiones hubieran lhegado a su inal regular, fue disuelta dicha Camara,
otorgando la ley electoral e las tres clases.

186
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

punha processos de (des)Constituição que estava em curso, a partir de


interesses hegemônicos. Contudo, qual deveria ser a função a ser de-
sempenhada pela Constituição, a im de garantir concretamente a esta-
bilidade, o desenvolvimento social e institucional? Alguns pressupostos
são para Lassale17 indispensáveis sob pena de uma (des)legitimação da
lei fundamental; para isso, será necessário: (1º) que a lei fundamental
seja uma lei básica mais do que as outras comuns, como indica seu pró-
prio nome “fundamental”; (2º) que constitua o verdadeiro fundamento
das outras leis, isto é, se a lei fundamental realmente pretende ser mere-
cedora desse nome, deverá informar e engendrar as outras leis comuns
originárias da mesma lei fundamental, assim, deverá atuar e irradiar-se
através das leis comuns do país; (3º) entenda-se que as coisas têm um
fundamento e existem porque necessariamente devem existir.
Por im, em Lassale18, se pode observar os elementos essenciais
que devem compor ou fundar a Constituição, de modo a propiciar que

17 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen & Juris
, 2000, p. 09-10; 26-8: “ A realidade era esta: o povo estava sempre por baixo e devia continuar assim
(...) assim, pois, todos os países possuem ou possuíram sempre e em todos os momentos da sua
história uma Constituição real e verdadeira. A diferença nos tempos modernos – e isto não deve
icar esquecido, pois tem muitíssima importância – não são as constituições reais e efetivas, mas
sim as constituições escritas nas folhas de papel (...) De fato, na maioria dos Estados modernos,
vemos aparecer, num determinado momento da sua história, uma Constituição escrita, cuja
missão é a estabelecer documentalmente, numa folha de papel, todas as instituições e princípios
do governo vigente (...)Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de que nos elementos
reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma transformação. Se não se tivesse
operado transformações nesse conjunto de fatores da sociedade em questão, se esses fatores do
poder continuassem sendo os mesmos, não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse
uma Constituição para si. Acolheria tranqüilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os
elementos dispersos num único documento, numa única Carta Constitucional (...) Quando num
país arrebenta e triunfa a revolução, o direito privado continua valendo, mas as leis do direito
público se desmoronam e se torna preciso fazer outras novas ”.
18 Ibid.,LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 2000. Editora Lumen &Juris. 5.ed.,
p.12; 17-22: “ em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder
que regem uma nação (...) Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição?
Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos conceitos guardam
entre si. (...) Juntam – se esses fatores reais do poder os escrevemos em uma folha de papel e ele
adquire expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples
fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra
eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é punido (...) instrumento do poder político do rei, o
Exército, está organizado, pode reunir – se a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma
disciplina única e pode ser utilizado em qualquer momento que dele se necessite (...) Entretanto, o
poder que se apoia na Nação, meus senhores, embora seja, como de fato o é, ininitamente maior,
não está organizado. A vontade do povo, e sobre tudo seu grau de acometimento, não é sempre
fácil de pulsar, mesmo por aqueles que dele fazem parte. Perante a iminência do início de uma

187
EMERSON DE LIMA PINTO

a mesma se torne a base legal e tenha existência jurídica, de acordo com


os interesses da sociedade presente em determinado Estado Nacional. O
autor prussiano inaugura uma crítica sistematizada à clássica noção de
poder constituinte19, e a faz levando em consideração a hegemonização
de classes sociais dominantes, sem adotar a noção de luta de classes de
seu contemporâneo Marx. Para Lassale20 a Constituição e a teoria do
poder constituinte, têm por gênese os fenômenos ligados à questão do
poder, levando em consideração os fenômenos presentes na realidade
social, política e econômica.

7.3. Kelsen: o monismo estatal na produção do Direito


Kelsen tornou-se um dos maiores pensadores do direito do sé-
culo XX, deixando uma vasta obra, na qual se destaca principalmente:
“Teoria Pura do Direito”, em que o autor se funda na possibilidade de
encontrar na realidade um aspecto que seja puramente jurídico, e como
tal, suscetível de ser objeto da ciência jurídica. Trata-se, portanto, de
considerar o Direito tal como o jurista deve vê-lo, na perspectiva pró-
pria da ciência jurídica, sem interferência de nenhuma outra ciência,
como a ciência política, a ética e a psicologia.

ação, nenhum deles é capaz de contar a soma dos que irão tentar defendê – la. Ademais, a Nação
carece desses instrumentos do poder organizado, desses fundamentos tão importantes de uma
Constituição comoacima demonstramos, isto é, dos canhões”
19 FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte. Rio de
Janeiro: Lumen Juris,1988. p. 61-2.
20 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Editora Lumen & Juris , 2000, p. 33;
37-9; 40 ”Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura?(...)Quando essa
constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que
regem o país (...) Para eles fazer uma constituição escrita era o de menos; não havia pressa; uma
constituição escrita pode ser feita, num caso de urgência, em vinte e quatro horas; mas, fazendo – a
desta maneira, nada se consegue, se for prematura (...) De nada servirá o que se escrever numa
folha de papel, se não justiica pelos fatos reais e efetivos do poder (...) Estou certo de que sem
serdes profetas respondereis prontamente: essa Constituição está nas últimas; podemos considerá
–la morta, sem existência; mais uns anos e terá deixado de existir (...) Os motivos são muito
simples.(...) Quando uma constituição escrita responde aos fatores reais do poder que regem um
país, não podemos ouvir esse grito de angústia. Ninguém seria capaz de fazê–lo, ninguém poderia
se aproximar à Constituição sem respeitá–la; com uma Constituição destas ninguém brinca se não
quer passar mal (...) Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a
verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que
naquele país vigem e as constituições exprimam ielmente os fatores do poder que imperam na
realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar(grifo nosso)

188
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

O autor chega à conclusão de que a realidade reveste-se de um as-


pecto puramente jurídico quando uma norma empresta signiicado ju-
rídico a essa realidade, de modo que esta possa ser interpretada de acor-
do com aquela. O Direito é a norma, e esta é a única capaz de emprestar
um signiicado que possa ser qualiicado de jurídico aos atos humanos.
Essa norma é um “dever-ser” a respeito de uma conduta humana, em
contraposição ao ser da mesma conduta. Em outras palavras, a norma
prescreve que uma determinada conduta deve ser de um determinado
modo. Essa distinção entre ser e “dever-ser” é um dos pontos centrais
da teoria pura de Kelsen21. A partir dela é que se faz outra distinção
importante, qual seja: entre a validade e a eicácia, se chega enim ao
fundamento de validade das normas jurídicas.
Partindo desse ponto de vista, Kelsen chega à conclusão de que
o Direito é uma ordem da conduta humana, um sistema de normas22.
Como ordem normativa, o direito procura dar lugar a um determinado
comportamento humano, associando à ausência desse comportamento
a um ato de força socialmente organizado. Aí se tem a diferença, para
Kelsen, entre o Direito e os outros sistemas de normas - a reação à vio-
lação do dever ser por meio de um ato de força que seja socialmente
organizado, de uma maneira centralizada, como nos Estados modernos,
ou descentralizada, como sucedia nas ordens jurídicas primitivas.
O fator determinante da teoria de Kelsen é o processo de for-
mação do direito internacional. Este é elaborado principalmente pela
reunião de vontades de dois ou mais Estados, enquanto o direito nacio-
nal depende da vontade de um único Estado. O Direito Internacional23
prescreve condutas tanto a Estados quanto a indivíduos (mediata ou
imediatamente quanto a estes); assim, não se distinguindo do direito
interno de cada país em função dos seus destinatários, como sustenta a
teoria clássica do direito das gentes, mas pela forma de sua elaboração.
As consequências advindas dessa posição levam o autor a considerar
que o direito internacional “acha-se ainda no começo de uma evolução

21 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA


NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no
Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003. p. 91.
22 FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte.Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1988. p. 45-6.
23 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Martins Fontes: São Paulo, 2002. p.
467-9.

189
EMERSON DE LIMA PINTO

que o direito estadual já percorreu há muito”, pois não há uma centra-


lização da criação e da aplicação do Direito na ordem jurídica interna-
cional. Trata-se de uma ordem jurídica primitiva, cujo último estágio de
evolução tende para a formação de um Estado mundial, nos moldes dos
Estados nacionais contemporâneos.
O “monismo jurídico”24 é a opinião mais difundida entre os estu-
diosos do direito internacional, considerando este e o direito nacional
como dois sistemas de normas diferentes, independentes um do outro.
Chama-se a essa posição de dualista, em contraposição àquela que vê a
unidade entre as duas ordens jurídicas, o denominado monismo.

7.4. Schmitt: Estado e pensamento autoritário


O jurista Schmitt25 é considerado um dos maiores teóricos no que
tange à Teoria da Constituição e o Direito Constitucional. Schmitt for-

24 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 129; 301-306. Em
sua teoria pura, é pressuposto epistemológico a unidade cognoscitiva de todo o direito. O direito
internacional tem caráter jurídico, ou seja, é direito. Decorre necessariamente dessa conclusão que
direito internacional e direito interno só podem formar um todo, uma unidade. Não é possível, em
boa lógica, que existam dois sistemas de normas diferentes igualmente válidos como querem os
dualistas, diz Kelsen. Se existe uma norma que prescreve “A deve ser”, válida, não pode haver outra,
igualmente válida, prescrevendo “A não deve ser”. São proposições mutuamente incompatíveis,
pois o princípio de identidade vale tanto para a esfera normativa quanto para a realidade empírica.
Surge imediatamente um problema, quanto ao conlito entre os dois sistemas. Tomemos por
exemplo uma lei do Estado que está em desconformidade com um tratado de direito internacional:
Kelsen airma que a norma desconforme não signiica que haja um conlito, mas um ilícito, ou
seja, um pressuposto ao qual o direito liga consequências especíicas - não há, pois, entre o ilícito
e o direito qualquer contradição no plano lógico. Nenhum obstáculo, portanto, a uma posição que
admita a unidade entre o direito internacional e o direito Interno na teoria pura do direito. Do
ponto de vista de uma construção monista do direito, é possível analisar os dois sistemas de normas
que a integram de dois modos diferentes. Ou se tem uma relação de coordenação, ou a relação é de
subordinação. Para que seja de coordenação, é necessário supor que os dois ordenamentos estejam
em um mesmo nível, e que haja um outro ordenamento, superior aos dois, de onde provenha a
norma fundamental destes. (....) a relação é de subordinação, uma vez que não existe esse terceiro
ordenamento superior tanto ao direito internacional quanto ao direito nacional. Por conseguinte,
o fundamento de validade de um sistema inferior deriva de outro, superior. A questão é saber se
tal ordenamento superior é o direito internacional ou o direito nacional. Kelsen teve duas posições
sobre o assunto. Em princípio, sustenta não ser possível para a ciência jurídica deinir qual das duas
construções é a mais apropriada, pois a diferença entre elas diz respeito somente “ao fundamento
de validade do Direito Internacional, não ao seu conteúdo”. Depois admite a primazia do direito
internacional, fundado em argumentos jurídicos. Nos seus últimos trabalhos, volta à posição
inicial. (...) O que coloca a primazia na ordem jurídica internacional teria uma postura objetivista.
Não obstante isso, seriam igualmente válidas do ponto de vista da ciência do direito, à qual não
cabe formular um juízo.
25 AGUILAR, Hector Orestes. Carl Schmitt, Teólogo de la Política. Fundo de Cultura Económica:

190
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

mulou na sua obra “Teoria de Constituição” a sua teoria decisionista do


Estado e do Direito, analisando a questão do “poder constituinte”26. Sch-
mitt deixa claro o que ele considera objeto central de proteção na Cons-
tituição de Weimar: às instituições mais tradicionais e conservadoras do
sistema jurídico político alemão que entendiam a Constituição como
resultado de uma decisão política soberana. A Constituição assegurava-
se, em sentido absoluto, podendo possuir signiicados distintos, uma
vez que o texto fundamental em sentido absoluto é a realização efetiva
da unidade política existente, sendo que o Estado, em razão de sua con-
cepção estatal/estatista, não conigurava uma Constituição que regulava
a forma e o funcionamento da vontade estatal, embora o Estado seja a
própria Constituição (absorvendo na Constituição como organização
do poder político estatal).
Sua relexão surge em um período de intensa agitação social e
política no velho continente. Uma “crise extraordinária”27 atinge o capi-
talismo e o Estado liberal burguês e na esteira da Revolução Bolchevista
na Rússia. Seu pensamento surge como oposição ao normativismo for-
malista de Kelsen. Schmitt28 tem inspiração no pensamento de Hobbes,
pois justiicava a necessidade de estabilidade pela unidade entre Estado,
partido e povo, condenando o pluralismo político-social.
Sobre algumas ideias de Schmitt, Miranda29 ressalta:

Mexico, 2004. p. 07-08.


26 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política
no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003. p. 93-94. A constituição só é válida,
para Carl Schmitt, quando proveniente de um poder constituinte e estabelecida por sua vontade. A
norma vale porque está positivamente ordenada em virtude de uma vontade existente. A unidade
e a ordenação de uma constituição residem na existência da unidade política de um povo, ou seja,
do Estado. Se a constituição for considerada apenas em seu sentido formal, como constituição
escrita, ela está sendo igualada a uma série de leis constitucionais escritas. Com isso, o conceito
de constituição é relativizado, perdendo o seu signiicado objetivo. Para Schmitt, um conceito
de constituição só é possível se este for distinto da noção de lei constitucional. Este conceito é a
constituição em sentido positivo, surgida mediante ato de poder constituinte, que, por um único
momento de decisão, contém a totalidade de unidade política
27 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Editora Malheiros,
2001. p. 37-8.
28 SCHIMITT, Carl. Teoria de La Constitución. México: Editora Nacional, 1981. p. 81-2; 84-5.
29 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
p. 343-4.

191
EMERSON DE LIMA PINTO

Schmitt distingue quatro conceitos básicos de Constituição: um conceito


absoluto (a constituição como um todo unitário) e um conceito relativo
(a Constituição como uma pluralidade deles particulares), um conceito
positivo (a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo e a
forma da unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim
chamada em sentido distinto e por causa de certo conteúdo). (...) Uma
Constituição é valida enquanto emana de um poder constituinte e se
estabelece por sua vontade signiicando vontade uma magnitude do Ser
como origem de um (Dever ser). Assim, é a vontade do Povo alemão que
funda a sua unidade política e jurídica. (...) A Constituição (em sentido
positivo) surge mediante um acto do poder constituinte. Este acto não
contém, como tal, quaisquer normas, mas sim, e precisamente por ser um
único momento de decisão, a totalidade da unidade política considerada
na sua particular forma de existência; e ele constitui a forma e o modo
da unidade política, cuja existência é anterior. A Constituição é uma
decisão consciente que a unidade política, através do titular do poder
constituinte; adopta por si própria e se dá a si própria. (grifo nosso).

No entanto, para Schmitt30, a Constituição pressupõe a neutrali-


dade da política interna do Estado: I) a neutralidade como atitude ini-
bidora da decisão política e como signiicado que favorece a tomada de
decisões. Para Schmitt, a decisão política é o elemento fundamental do
ordenamento jurídico; a norma jurídica é o fruto da decisão da comu-
nidade política, e esta decisão não esta subordinada à norma alguma. O
autor prioriza o político sobre o jurídico, e assim concebe o Estado e o
Direito como resultados da “decisão política” adotada pela comunida-
de política, a partir do poder constituinte ilimitado e incondicionado,
entendido como questionável frente à tutela dos Direitos Humanos, a
partir de um neoconstitucionalismo garantidor e pluralista, resgatando
Heller no sentido de que a vontade do poder constituinte não pode estar
dissociada. Nesse sentido, as ideias do autor vêm ao encontro da lição
de Farias31:
[...] de uma normação, sem a qual a massa humana não tem uma
vontade capaz de decisão nem um poder capaz de ação, e muito menos
autoridade [...] é soberano o poder que cria o direito.

30 SCHMITT, Carl. El concepto de lo político.Madrid: Alianza Editorial, 2002. p.124-130.


31 FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1988. p. 57-8

192
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

O centro da relexão de Schmitt é a noção de “decisão”32. O con-


ceito de decisão confunde-se com o de político; surge como oposição ao
normativismo formalista de Kelsen.
Considerada em suas consequências, a concepção da força de-
terminante das relações fáticas signiica o seguinte: a condição de ei-
cácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência da realidade e da
norma constitui apenas um limite hipotético extremo. Entre a norma
fundamentalmente estática e racional e a realidade luida e irracional,
existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para
essa concepção do Direito Constitucional, está conigurada permanen-
temente uma situação de conlito, qual seja: a Constituição jurídica no
que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de
índole técnica, sucumbe quotidianamente em face da Constituição real.
A ideia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não
signiica outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica.
Essa negação do direito constitucional importa na negação do
seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o direi-
to constitucional é “ciência normativa”33; diferencia-se, assim, da socio-
logia e da ciência política enquanto ciências da realidade. Se as normas
constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente
mutáveis, não há como deixar de reconhecer a ciência jurídica na au-
sência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e
comentar os fatos criados pela “política realista e pragmática”. Assim, o
direito constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa,
cumprindo-lhe tão-somente a miserável função – indigna de qualquer
ciência – de justiicar as relações de poder dominante. Se a ciência da
Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como
decisiva, tem-se a sua (des)caracterização como ciência normativa, ope-
rando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais
como diferençá-la da sociologia ou da ciência política.

32 SCHIMITT, Carl. Teoria de La Constitución. México: Editora Nacional, 1981. p. 25-6: “Lo que
existe como magnitud politica, es, juridicamente considerado, digno de existir.(...) Toda unidad
politica existente tiene su valor y su razón de existencia, no en la justicia o conveniencia de normas,
sino en su existencia misma”.
33 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 163-5.

193
EMERSON DE LIMA PINTO

7.5. Hesse: A Constituição estatal/estatista e seu


desejável não retrocesso
Hesse34 considera a Constituição como ordem jurídica funda-
mental, material e aberta de uma comunidade, pois a norma constitu-
cional não tem existência autônoma em face da realidade, e está rela-
cionada à sua historicidade, como bem (re)lembra Bercovici35, vejamos:
Para Konrad Hesse, a juridicidade da constituição é essencial para a teoria
material da constituição. A constituição real a constituição normativa
estão em constante contato, em relação de coordenação. Condicionam-se,
mas não dependem, pura e simplesmente, uma de outra. A constituição
jurídica, embora não de modo absoluto, tem signiicado próprio.
Polemizando com Ferdinand Lassalle, Hesse airma que a constituição
não é apenas uma folha de papel: não está desvinculada da realidade
histórica concreta, mas, também, não é simplesmente condicionada pôr
ela. Em face da constituição real, a constituição jurídica possui signiicado
próprio. O pensamento constitucional tradicional, segundo Hesse, está
marcado pelo isolamento entre norma e realidade, entre ser e dever ser,
dando-se ênfase em uma ou outra direção. Assim, chega-se a uma norma
despida de elementos de realidade ou a uma realidade sem elementos
normativos. Na sua concepção, a norma constitucional não tem existência
autônoma em face da realidade. Sua essência reside na vigência e na
pretensão de eicácia - a situação regulada pretende ser concretizada na
realidade, - que não podem ser separadas das condições históricas. É
graças a essa pretensão de eicácia que a constituição vai procurar ordenar
e conformar a realidade. A constituição adquire força normativa à medida
que logra realizar essa pretensão de eicácia.” (grifo nosso).

Trata-se de uma das teorias mais representativas e inluentes da


moderna publicística germânica. Para Hesse, a Constituição determina
os princípios segundo os quais deve-se buscar formar a unidade política
e prosseguir com a atividade estatal; regulando o processo de solução
de conlitos dentro da comunidade, na qual a ordem e a organização do
processo de formação da “unidade política e da ordem jurídica como

34 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.


Tradução de Sergio Fabris: Porto Alegre, 1998. p.53-5.
35 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no
Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003. p. 108-109.

194
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

tarefa”36 da atuação estatal cria os fundamentos e normatividade dos


princípios da ordem jurídica global.
Sobre a normatividade que decorre da Constituição aberta, Hes-
se37 leciona que:
A Constituição não conigura, portanto, apenas expressão de um ser,
mas também de um dever ser; ela signiica mais do que o simples relexo
das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e
políticas. Graças à pretensão de eicácia, a Constituição procura imprimir
ordem e conformação à realidade de política e social. Determinada
pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a
ela, não se pode deinir como fundamental nem a pura normatividade,
nem a simples eicácia das condições sócio – políticas e econômicas.
A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição
podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser deinitivamente
separadas ou confundidas (...) Elas condicionam – se mutuamente,
mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra. Ainda que
não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem signiicado próprio.
Sua pretensão de eicácia apresenta – se como elemento autônomo no
campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição
adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão
de eicácia. (...) Em outros termos, somente a Constituição que se
vincule a uma situação histórica concreta e sua condicionantes, dotada
de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode,
efetivamente, desenvolver–se. Se não quiser permanecer “eternamente
estéril”, a Constituição – entendida aqui como “Constituição jurídica”
– não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica. (...)
Em outras palavras, a força vital e a eicácia da Constituição assentam –
se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes
do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação
objetiva. A Constituição converte – se, assim, na ordem geral objetiva
do complexo de relações da vida (grifo nosso).

Tornou-se evidente a impossibilidade de uma (re)distribuição es-


pontânea da renda nas sociedades complexas como resultado do desen-
volvimento econômico. Até mesmo porque o crescimento econômico

36 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.


Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. p. 29; 31.
37 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris.
1991.p.15-6;18:.

195
EMERSON DE LIMA PINTO

era induzido pelo “Estado Social”38, que de conceito heurístico (trans)


formara-se em igura ontologicamente constitucional. A concepção de
uma justiça que poderia levar ao incremento da riqueza social como
um todo, mas não à adjudicação individual de parcelas dessa riqueza
a indivíduos concretos. A ausência de participação dos órgãos gover-
namentais (re)distribuidores fez com que se deteriorasse a “teoria da
justiça social”. Nesse sentido, as perplexidades trazidas pela (des)estru-
turação do Estado de bem-estar social e os impasses da teoria da justiça
social levaram alguns teóricos a defender ideias pessimistas, refratárias
à meditação sobre a justiça. A função da Constituição é racionalizar,
estabilizar, garantir, possibilitar, construir e limitar um processo político
livre, assim como o de assegurar a liberdade individual e o desenvolvi-
mento coletivo.
Em Hesse39, uma tentativa de resposta deve ter como ponto de
partida o condicionamento recíproco existente entre a Constituição ju-
rídica e a realidade política social. Devem ser considerados, nesse con-
texto, os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídi-
ca. Finalmente, deve-se investigar os pressupostos de eicácia e a “força
normativa da Constituição”40. Ainda, consoante aduz o autor acerca da

38 HESSE op.cit., p.157-8.


39 HESSE, op.cit.,p.13-5. “O signiicado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente
pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu
inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve
em conta apenas um ou outro aspecto, não se aigura em condições de fornecer resposta adequada
à questão. O pensamento constitucional do passado recente está marcado pelo isolamento entre
norma e realidade, como se constata tanto no positivismo jurídico de Escola de Paul Laband e
Georg Jellinek, quanto no “positivismo sociológico” de Carl Schmitt. Os efeitos dessa concepção
ainda não foram superados. A radical separação, no plano constitucional, entre realidade e norma,
entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação.(...) Eventual
ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de
qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo.
A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside
na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa
pretensão de eicácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua
realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras
próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais,
técnicas, econômicas, e sociais. A pretensão de eicácia da norma jurídica somente será realizada
se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que
se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame
axiológico que inluenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das
proposições normativas. (grifo nosso).
40 Ibid.,p. 19-22: “Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão – somente, na adaptação

196
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

Constituição aberta, Miranda41 esclarece o caráter dinâmico que o texto


deve expressar, então vejamos:
Para Konrad Hesse, a Constituição é a ordem jurídica fundamental e
aberta da comunidade. A sua função consiste em prosseguir a unidade
do Estado e da ordem jurídica (não uma unidade preexistente, mas
de actuação); a sua qualidade em constituir, estabilizar racionalizar
e limitar o podere, assim, em assegurar a liberdade individual. (...) A
Constituição tem de estar aberta ao tempo, o que não signiica nem
dissolução, nem a diminuição de força normativa. Ela não se reduz a
deixar em aberto. Estabelece também o que não deve icar em aberto
– os fundamentos da ordem da comunidade, a estrutura do Estado e
os processos de decisão das questões deixadas em aberto.”(grifo nosso).

Ademais, sobre o tema da força normativa da Constituição Hes-


se42 traz à tona:
A força que constitui a essência e a eicácia da Constituição reside na
natureza das coisas, impulsionado – a, conduzindo – a e transformando
– se, assim, em força ativa. Como demonstrado, daí decorrem os
seus limites. (...) Tal como acentuado, constitui requisito essencial
da força normativa da Constituição que ela leve em conta não só os
elementos sociais, políticos, e econômicos dominantes, mas também
que, principalmente, incorpore o estado espiritual de seu tempo.

inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter – se, ela mesma, em força
ativa, que se assenta na natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si
só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma – se em força ativa se essas
tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo
a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos
juízos de conveniência, se puder identiicar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo,
pode – se airmar que a Constituição converter – se – á em força ativa se izerem – se presentes,
na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem
constitucional -, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição.(...) Baseia – se
na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrável, que proteja o
Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa
ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de
estar em constante processo de legitimação).(...) A interpretação adequada é aquela que consegue
concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições
reais dominantes numa determinada situação. (...) Se o sentido de uma proposição normativa não
pode mais ser realizado, a revisão constitucional aigura – se inevitável.
41 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
p. 346.
42 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris.
1991. p.19-22.

197
EMERSON DE LIMA PINTO

Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e


defesa da consciência geral.(...) Aigura – se, igualmente, indispensável
que a Constituição mostre – se em condições de adaptar – se a uma
eventual mudança dessas condicionantes. Abstraídas as disposições
de índole técnico – organizatória, ela deve limitar – se, se possível,
ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo
conteúdo especíico, ainda que apresente características novas em
virtude das céleres mudanças na realidade sócio – política, mostre – se
em condições de ser desenvolvido.(...) A Constituição não deve assentar
– se numa estrutura unilateral. Deve ela incorporar, mediante meticulosa
ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não
podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor
a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode
subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse
concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, Ter –
se – ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de
acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa.
A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que
ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados. B)Um
ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende
não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os
partícipes da vida constitucional, exige – se partilhar aquela concepção
anteriormente por mim denominada vontade de Constituição. Ela é
fundamental, considerada global ou singularmente.” (grifo nosso).

Por im, a “Constituição jurídica”43 não signiica um simples pe-


daço de papel, tal como caracterizada por Lassale. A Constituição não
está (des)vinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. To-
davia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em
caso de eventual conlito, a “Constituição”44 não deve ser considerada,

43 Ibid.,p. 24: “ Em síntese, pode – se airmar: a Constituição jurídica está condicionada pela
realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de
eicácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta essa realidade. A Constituição
jurídica não conigura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo,
ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da
força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen).(...) A
Constituição jurídica logra conferir forma e modiicação à realidade. Ela logra despertar “a força que
reside na natureza das coisas”, tornando – a ativa. Ela própria converte – se em força ativa que inlui
e determina a realidade política e social. (...) Quanto mais intensa for a vontade de Constituição,
menos signiicativas hão de ser as restrições e os limites impostos à força normativa da Constituição.
A vontade de Constituição não é capaz, porém de suprimir esses limites. (grifo nosso).
44 HESSE, op.cit., p. 29-31: “ Embora passe muitas vezes despercebido, o perigo do divórcio entre o

198
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

necessariamente, a parte mais fraca. Somente quando esses pressupostos


não puderem ser satisfeitos, dar-se–á a conversão dos problemas cons-
titucionais, enquanto questões jurídicas, em questões de poder. Nesse
caso, a Constituição jurídica sucumbirá em face da Constituição real.

7.6. Heller: A gênese da Constituição como Ciência da


cultura
Heller traz uma contribuição ao direito constitucional inovadora,
pois aproxima a Teoria da Constituição e à Ciência Política, o que neste
século tem sido mais efetivamente resgatada e representa uma referência
teórica fundamental para o futuro do constitucionalismo e para a Cons-
tituição. Seu desaparecimento repentino privou a humanidade de um
de seus mais promissores juristas, na acepção do termo. A importância
que a sociedade civil e a cultura têm para com a Constituição representa
a contribuição inesquecível de Heller, que faz parte de uma geração de
juristas que tenta superar, no interior da Teoria Constitucional, a redu-
ção normativista Kelsiana, a abordagem puramente identiicada com as
decisões políticas de Schmitt45 – determinadas decisões equivocadas - e

Direito Constitucional e a realidade ameaça um elenco de princípios basilares da Lei Fundamental,


particularmente o postulado da liberdade. Este se torna um sério problema no contexto da
profunda mudança de concepção de vida do homem moderno, resultante das condições impostas
pela sociedade industrial.(....) Aqui se encontra o presente confrontado, em toda profundidade,
com a indagação sobre a efetividade das normas jurídicas no contexto de uma realidade dominada
por correntes e tendências contraditórias. O questionamento da Constituição não decorre de um
estado de anormalidade. Ao contrário da Constituição de Weimar, a Lei Fundamental – promulgada
numa época de inesperado desenvolvimento econômico e sob a inluência de relações políticas
relativamente estáveis – não foi submetida a uma prova de força. Como referido, as situações de
emergência no âmbito político, econômico ou social coniguram a maior prova desse tipo para a
força normativa da Constituição, uma vez que elas não podem ser resolvidas com base no exercício
das competências convencionais previstas na Constituição. A Lei Fundamental não está preparada
para esse embate.(....) Sem dúvida, a existência de competência excepcional estimula a disposição
para que dela se faça uso. Esse perigo existe. Maiores riscos poderão advir, todavia, da falta de
coragem de enfrentar o problema. Caso se veriique essa situação, faltará uma disciplina normativa,
icando a solução do problema entregue ao poder dos fatos. (...) Não se deve esperar que as tensões
entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a delagrar sério conlito.(...) A
resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema
jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem
como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi coniada a todos
nós.” (grifo nosso).
45 SCHMITT, Carl. El “Führer” deiende el derecho (1934). In. AGUILAR, Hector Orestes. Carl
Schmitt, Teólogo de la Política. Fundo de Cultura Económica: Mexico, 2004. p.115. El Fuhrer está
defendiendo el ámbito del derecho de los peores abusos al hacer justicia de manera directa em el

199
EMERSON DE LIMA PINTO

a identiicação de Lassale da Constituição enquanto relexo imediato


das relações de poder em uma sociedade determinada.
Sobre a cultura e o Estado, Heller46 sustentava que de modo al-
gum uma criação de realidade era condicionada unicamente pelo poder
de espírito humano; mas sim, em uma conformação da realidade sujeita
às leis psíquicas e físicas do homem e do seu material. Assim, deveria
acrescentar-se que o conhecimento destas leis pelo homem, a maneira
como são utilizadas, em suma, a sua ação social e a sua signiicação
cultural, mudam também com a história e devem ser formadoras da
Constituição.
Da perspectiva sociológica adotada por Heller derivam postu-
ras diferentes das adotadas pela dogmática jurídica em quase todas as
principais matérias, não só do constitucionalismo, mas da política e do
próprio direito. Por exemplo, a Teoria do Estado, a qual nos hegemoniza
em tempos modernos e que já o fazia desde à década de 1930. Heller
nos apresentava questões instigantes, como a Teoria do Estado sendo
ciência da cultura e coagindo-nos atualmente a perceber a Constituição
de modo transdisciplinar; trazendo entre outras ciências, a sociologia e
a ciência de estruturas, para que se possa compreender que a Teoria do
Estado é a Ciência Política ampliada. Assim, não se pode cair na tenta-
ção falaciosa de que está adequado reduzir a Constituição ao Estado e,
nesse sentido, a Teoria do Estado; que sempre ocupou um espaço totali-
zador acerca da Teoria da Constituição.
Heller47, antecipando Häberle48, vem corroborar a visão de que
o Estado é uma unidade-pluralidade, o que signiica que é a questão

momento del peligro, como juez supremo em virtud de su capacidad de líder.


46 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. p. 57. “Deve evitar-
se, não obstante, incorrer no erro de crer que a delimitação de fronteiras cientiica entre a cultura
e a natureza supõe que a realidade apareça rota e fendida nesses dois campos. Pelo contrário, é
evidente que não existe uma cultura independente da natureza e das suas leis; pois a cultura nasce,
justamente, do fato do homem se valer das legalidades naturais para os seus ins. A luz da nossa casa
arde somente em virtude de leis naturais, que o homem utiliza para vencer por meio delas a noite
que reina lá fora, também por leis naturais..(...) A concepção imanente do Estado não pode, pois,
ser uma interpretação sobre-humana nem infra-humana do Estado, mas tem que ser precisamente
humana. Pois só para a compreensão humana signiicam alguma coisa essas formas psicofísicas da
realidade que se chamam Estado ou cultura.”(grifo nosso)
47 Ibid., p. 203.
48 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad
abierta. Editora Tecnos: Madrid, 2002. p. 114.

200
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

desta unidade na pluralidade o problema que implica todos os outros


na Teoria do Estado e modernamente na teoria da Constituição. Heller
concebe as duas esferas em uma unidade real no Estado, em que a uni-
dade da organização estatal é condicionada pela estrutura sistemática
de sua ordenação, tanto real como normativa. Todos os habitantes estão
submetidos, mediata ou imediatamente, à unidade fundamental de de-
cisão e devem contribuir para a unidade de ação central. Deste modo,
o Estado precisa de uma Constituição normativa, entendida como a or-
denação consciente da realidade social segundo um plano, ideia con-
sagrada pelas revoluções liberais, que precisa ser (re)legitimado na so-
ciedade contemporânea a partir de “novos paradigmas”49, conforme foi
abordado sucintamente na sociedade civil, poder constituinte e “direitos
humanos”50 como io condutor de uma nova compreensão de sociedade
e de um Estado garantista e dirigente.
Para Miranda51, o pensamento de Heller buscava trazer à tona o
fato de que a Constituição do Estado não é processo, mas produto; não
é atividade, mas forma de ação; é uma forma diferenciada, aberta, por
meio da qual passa a vida. Nesse sentido, a partir das lições assimiladas,
o jurista português assevera:
A Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas, graças
á probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela
está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera
normalidade de facto conforme à Constituição do comportamento dos
membros e, além disso, numa normalidade normada dos mesmos e no
mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada
e a normada e, dentro desta, a normada extrajuridicamente e a que o é
juridicamente. A Constituição normada pelo Direito conscientemente
estabelecido e assegurado é a Constituição organizada. E, assim como
não podem ser separados a normalidade e a normatividade, o ser e o
dever ser no conceito da Constituição.(grifo nosso).

No mesmo sentido, Tavares52 relembra que:

49 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 121-4.
50 COMPARATO, Fábio Konder. A Airmação Histórica dos Direitos Humanos. 3.ed. rev.
ampliada. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 230-1.
51 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002.
p. 346
52 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed.: São Paulo: Editora Saraiva,

201
EMERSON DE LIMA PINTO

[...] airma-se que o poder constituinte originário não poderá fazer


tábua rasa dos princípios ordenadores em que se assenta a práxis da
comunidade eventualmente carecida de nova Constituição, ou seja, dos
princípios constitutivos da ideia de direito dessa comunidade concreta,
da história da dimensão da humanidade portadora de uma tradição
cultural impositiva. Seria então a normalidade normada a que se
refere Hermann Heller.(grifo nosso).

Outro argumento utilizado por HELLER53, na justiicativa da


teoria da normalidade e da normatividade, é o de que o ato legislativo
não concentra toda gama de direitos existentes, nem consegue esgotar
a realidade social, requerendo, para tanto, da observação da realidade
e da norma, conjuntamente. Tais princípios aparecem materialmente -
formulando o princípio jurídico-, ou formalmente. Revelam-se como
ordenadores da realidade social e possuem eicácia plena. A respeito da
teoria de Heller, o mestre português Miranda54 destaca a relevância das
ideias do jurista de Weimar:
O especíico da teoria de Heller consiste, em primeiro lugar, na deinição
da Constituição como totalidade, baseada numa relação dialéctica entre
normalidade e normatividade e, em segundo lugar, na procura da
conexão entre a Constituição enquanto ser e a Constituição enquanto
Constituição jurídica normativa (superando, assim, as unilateralidades
de ‘Kelsen” e “Schmitt”). A Constituição do Estado não é processo, mas
produto; não é actividade, mas forma de actividade; é uma forma aberta,
através da qual passa a vida, vida em forma e forma nascidada vida. A
Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas, graças
a probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela
está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera
normalidade de facto conforme à Constituição do comportamento dos
membros e, além disso, numa normalidade normada dos mesmos e no
mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada
e a normada e, dentro desta, a normada extrajuridicamente e a que o é
juridicamente. A Constitução normada pelo Direito conscientemente
estabelecido e assegurado é a Constituição organizada. E, assim como não
podem considerar-se completamente separados o dinâmicoe o estático,

2007. p. 45.
53 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, 1968. p. 298-9.
54 MIRANDA, op.cit., p. 344.

202
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

tão pouco podem ser separados a normalidade e a normatividade, o ser


e o dever ser no conceito de Constituição. (grifo nosso) .

Em Heller55a dinâmica e a estática de uma Constituição passam


a ser compreendida como normanda e não normada, a im de versar a
respeito da importância que os fatores extraestatais acabam por ensejar
em uma concepção superior de Constituição:
A Constituição normada consiste em uma normalidade da conduta
normada juridicamente, ou extrajuridicamente pelo costume, a moral,
a religião, a urbanidade, a moda, etc. Mas as normas constitucionais,
tanto jurídicas como extrajurídicas, são, ao mesmo tempo que regras
empíricas de previsão, critérios positivos de valorização do trabalho.
Porque também se rouba e se assassina com regularidade estatisticamente
previsível sem que, nesse caso, a normalidade se torne normatividade (cf.
Jahrreiss, pp. 16 e segs.). Só se valora positivamente e, por conseguinte,
se converte em normatividade aquela normalidade a respeito da qual
se crê que é uma regra empírica da existência real, uma condição de
existência ora da humanidade em geral, ora de um grupo humano. (...)
A Constituição real do Estado conhece certamente uma normalidade
sem normatividade mas não, ao contrário, uma validez normativa sem
normalidade. Todo direito vigente é uma “realidade conforme à regra”
(W. Jellinek, Gesetz, Gesetzesanwendung etc., 1913, p. 23), e todas as
normas constitucionais vigentes valem enquanto regras empíricas da
situação estatal; possuem uma normalidade normativa. Como regras
práticas de valoração valem enquanto são, ao mesmo tempo, critérios de
previsão para o trabalho humano. Não cabe, pois, manter com a usual
rigidez a separação entre as leis do ser e as do dever ser (cf. Kornfeld,
pp. 15 e seg., Jahrreiss, pp.4 e seg.).(...)Não existe Constituição política
alguma que, inteiramente como status real, não seja, ao mesmo tempo,
um ser formado por normas, isto é, uma forma de atividade normada,
além de uma forma de atividade meramente normal.(grifo nosso).

A Constituição não-normada é apenas um conteúdo parcial da


Constituição total, pois a normalidade tem sempre que ser reforçada
e completada pela normatividade. A Constituição é dotada de regras
(leis, normas, direito e deveres) jurídicas nacionais que direcionam ou
norteiam a conduta social, iscalizada pelo Leviatã, para com a ordem
interna de uma determinada sociedade; e regras que se estendem além

55 HELLER, op.cit., p. 298-9.

203
EMERSON DE LIMA PINTO

do poder jurídico, compreendidas apenas e tão somente a partir do


monopólio estatal da produção do direito, e destinam-se para outras
condutas denominadas de extrajurídicas, tais como a religião, a qual se
torna uma via de árdua discussão e relexão. Tudo isso obtendo legalida-
de, tornando as leis lícitas ou ilícitas para uma determinada sociedade,
ou Estado-Nação, literalmente exempliicada em sua essência (território
delimitado, soberania e povo). As leis destinam-se tanto para prevenir
ações desviantes dos indivíduos sociais, quanto para a valorização, pro-
teção, do empenho, e/ ou trabalho desenvolvido de cada cidadão. As
únicas atitudes que são interpretadas e tomadas como lícitas, corretas
ou legais são aquelas que são comprovadas por meio da experiência em-
pírica e real, e que representam para a coletividade ou individualidade o
existir sem prejuízo algum para si ou outrem.
Em Häberle56 veriica-se clara referência à Heller e sua contribui-
ção teórica para a consolidação do Estado Social (prestacional) e a air-
mação dos direitos fundamentais:
Hasta la fecha puede decirse que carecemos de una teoría constitucional
del Estado prestacional, estructurada sobre la base del próprio concepto de
Constitución y que abarque simultáneamente auando próprio concepto
de Constitución y que abarque simultáneamente aunando em su seno
tanto al Estado como a la sociedad entendidos como <<cosa pública>>,
al par que mestre sus ainidades em materia de derechos fundamentales
básicos. La teoría del Estado, es decir, la teoria del Estado prestacional
de Heller que deine el estadocomo <<unidad organizada de actividad
y de toma decisiones com tendencia a incrementar su eicacia potencial
de prestaciones>>, es decir, uma especie de <<plusvalía de prestaciones
estatales>> acción concertada, própia de la sociedad de prestaciones
más avantazada -, nos llevaría demasiado lejos como tema por dilucidar.
Nosotros, em cambio, entendemos que el Estado prestacional es el que
se constituye que, tanto si es de forma mediata o immediata, sea a través
de su propia organización o de sus procedimientos, aporta prestaciones
a la ciudadania y a sus asociaciones, las cuales se orientan ante todo
– em el sentido más amplio del término – hacia los propios derechos
fundamentales como referencia más positiva. Frente a este tipo de
Estado, el modelo más antitético aparece bajo la denominación de
<<Estado policial interventor>>. (grifo nosso)

56 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad


abierta. Editora Tecnos: Madrid, 2002. p. 171-2.

204
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

A Constituição jurídica objetivada, distinta da Constituição polí-


tica total do Estado para HELLER57, é na realidade a normação do pro-
cesso de renovação contínua da Constituição política total; por isso, ela
é constantemente atualizada pelos homens, uma vez que inicialmente a
Constituição compreende normas, as quais devem ou ao menos deve-
riam ser utilizadas no dia a dia, mas na prática isso não ocorre; eis que
não creditam a elas caráter habitual ou de “normatividade”, pois as nor-
mas são institucionalizadas e legais, porém sem a devida importância e
conhecimento de todos, ou como diz o texto, uma “normalidade”.
A regra constitucional tem força ou vigora naquela situação esta-
tal, na qual foi imposta. E também, as mesmas leis têm a mesma dura-
ção para valoração do trabalho humano exercido, no referido Estado. A
concepção de Kelsen diz que não tem como prever e salvaguardar que
as leis da natureza, o seu sentido, comportar-se-á seguindo aquilo que
é pré-estabelecido nas leis; e que o sentido das normas jurídicas não é
fazer com que os homens se comportem literalmente com aquilo que
pré-estabelecem legalmente, mas sim que o sentido é saber que devem
agir de acordo com as leis constitucionais impostas. Portanto, não existe
Constituição política que não contenha normas, isto é, formada pelas
mesmas ou por algo que possua regras que regulem ou norteiem as ati-
vidades sociais, tendo a tendência de se tornarem leis normais para com
os seus adeptos.
Em Heller58, para a defesa da segunda parte da Constituição, que
no caso era a de Weimar, veriica-se, portanto, os direitos sociais e a or-
dem econômica como grandes avanços Constitucionais. Muito embora
os dispositivos programáticos não dispusessem de força jurídica vincu-
lante, eles continham a resposta para a polêmica entre a concepção ca-
pitalista e a reforma socialista da economia, buscando a conciliação e o
acordo recíproco para uma distribuição mais justa dos recursos. Contu-
do, em 1932, o Estado autoritário era a palavra de ordem na Alemanha,
e Schmitt, conforme Heller buscava mostrar que o Estado de exceção
era a situação normal e que a ditadura era a verdadeira democracia,
defendendo o “Estado total”59.

57 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, 1968. p. 300.
58 Ibid.,p. 293-4.
59 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de
Weimar. p. 37.

205
EMERSON DE LIMA PINTO

Com Heller são introduzidos elementos que forjam uma saudável


crítica à dogmática jurídica, enquanto ciência normativa por distanciar-
se da realidade social, (des)temporalizando e (em)clausurando o direito
em um processo de sistematização baseada em mitos, como o da com-
pletude e coerência do ordenamento. Acentua que a perspectiva acima é
característica de uma ciência comprometida com interesses singulares e
que desfruta de uma racionalidade instrumental legitimadora.
Bercovici60, um dos grandes constitucionalistas pátrios a (re)es-
tabelecer a importância de Heller para a Teoria do Estado e da Consti-
tuição, traz à baila a questão do pluralismo presente na teoria do mestre
Tedesco:
A Teoria do Estado de Heller é uma teoria engajada. Na sua visão a Teoria
do Estado deve ter a capacidade de responder e vencer as diiculdades as
diiculdades concretas, pensando a problemática política de seu tempo.
Toda a elaboração teórica de Heller sobre o Estado, soberania e Estado
Social de Direito está vinculada às suas concepções políticas socialistas,
tendo como objetivo a sua realização em um Estado Socialista.(...)
proposta de Heller é a de uma Teoria do Estado atual, não seguindo o
estilo das tradicionais Teorias Gerais do Estado alemãs. Heller defende
a investigação da especíica realidade estatal que nos rodeia. A Teoria
do Estado é, portanto, uma ciência da realidade, que estuda o Estado
enquanto realidade, ou seja, enquanto formação real e histórica..(...)
O problema central de sua concepção de Estado é as relações entre
pluralidade e unidade, visando a construção de uma unidade política
com homogeneidade social em uma sociedade pluralista. Heller tenta
conciliar, para isso, a democracia e o socialismo. (...) O Estado, segundo
Heller, é uma unidade na pluralidade, a unidade de decisão territorial.
A unidade tem um papel central na Teoria do Estado de Heller, em que
ele airma categoricamente a insustentabilidade da estrutura da classe
do Estado. A sua preocupação gira em torno do modo que o Estado
pode atuar como unidade ativa e como forma histórica real na realidade
histórico-social. Defende o Estado como unidade na pluralidade.(...) O
Estado, para Heller, tem uma função social, um im que nem sempre
coincide com os ins subjetivos dos homens que o formam. O que dá
sentido e justiicação ao Estado é esta função social. A justiicação
do Estado não se dá pela força ou pela legalidade, mas enquanto ele

60 Ibid., p. 110-5

206
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

representar a organização necessária para assegurar o direito em uma


determinada etapa se sua evolução histórica.(grifo nosso)

A relexão de Heller61 busca responder a chamada “crise da Teoria


do Estado”. Para o teórico alemão, o positivismo jurídico esqueceu-se
do substrato social do Estado, impondo o método jurídico como o úni-
co possível, como assevera Bercovici62, a compreensão de Heller, que
os limites do método jurídico tornou-se evidente. Impunham-se novos
fundamentos da “unidade política”63, tendo em vista a (in)suiciência
do positivismo e a necessidade de (re)construir o problema da unida-
de política (in)corporando ao Direito a realidade social e, por im, (re)
fundando o Estado democrático, para este não permanecer isolado e
independente de toda atividade social.
Fundado nestas categorias, propõe uma divisão tipológica das
diversas Constituições, visto que as Constituições normadas e não-nor-
madas formariam a Constituição política total. A Constituição não-nor-
mada é um conteúdo parcial da Constituição total e constitui-se de uma
normalidade puramente empírica originada de modo constante e regu-
lar das motivações naturais, como a terra, o sangue, o contágio psíquico
coletivo. Já a imitação ergue-se da Constituição normada, que consiste
em uma normalidade da conduta normada jurídica ou extrajuridica-

61 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, 1968. p. 324-5.
62 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no
Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003. p.110-115. Para Heller, são os atos de
decisão política que estabelecem e mantêm em vigor a ordem jurídica, cuja existência depende
permanentemente dessa unidade de decisão territorial, de um lado dentro da pluralidade dos atos
de vontade que a integram e, de outro, dentro da pluralidade de dominações territoriais que a
circundam. (...) Toda política pretende a conformação e a manutenção da unidade. A política,
para Heller, era um processo dinâmico pelo qual o Estado chega a ser e se impõe como unidade na
pluralidade. (...) deve ser entendida como ação, como uma conformação consciente da sociedade
orientada para um im. Deste modo, toda política pretende ser política estatal, pois só a ordem
estatal consegue acatamento da população. (...) propugnava pela autonomia e superioridade do
Estado em relação à economia. Para Heller, o Estado deve ser concebido partindo da totalidade da
realidade social, dentro da qual a atividade econômica é apenas um momento, embora decisivo na
sociedade capitalista. (...) Na visão de Heller, a luta de classes é um meio, não um im em si mesma.
No mesmo sentido, a luta de classes é um processo positivo, não negativo, ou seja, o socialismo
vai transformar, não demolir o Estado, pois não há como prever um futuro sem Estado. (...) O
fundamento último da autêntica essência do socialismo reside, segundo Heller, na idéia da justiça
social, com a evolução da justiça jurídico-formal para a justiça econômico-material. (grifo nosso).
63 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. p. 29-30.

207
EMERSON DE LIMA PINTO

mente (o costume, moral, religião, urbanidade, moda etc.) e que toda


realidade constitucional vigente enquanto regra empírica de situação
estatal, possuindo uma normalidade normativa. Enquanto esta vislum-
bra a legitimidade do direito na norma, no processo legal, na legalidade,
àquela entende a legitimidade do direito em sua eicácia e plenitude so-
cial, na observância daqueles a quem a norma se dirige. Logicamente,
a normalidade tende à normatividade, mas não necessariamente, pois a
realidade social processa sua evolução de forma mais constante.
Em seguida, Heller64 aponta cinco conceitos de Constituição. Um
conceito mais amplo referindo-se à estrutura, a característica do po-
der, a forma concreta de existência a atividade do Estado; o segundo,
entendendo-o como uma estrutura básica do Estado, fundamental e
relativamente permanente na unidade estatal - conceitos sociológicos
de constituição; o terceiro conceito compreenderia a situação jurídica
total do Estado, somatório das normas constitucionais e demais precei-
tos jurídicos (Constituição material em sentido lato); e a constituição
material em sentido estrito, que extrai da ordenação jurídica total do
Estado um conteúdo parcial valorizado, como ordenação fundamental,
e não somente como norma fundamental hipotética e lógica. O quinto e
último conceito seria o de Constituição formal e compreenderia a totali-
dade dos preceitos jurídicos ixados por escrito no texto constitucional.
O problema do “fundamento de validade” do ordenamento ju-
rídico é por Heller65 colocado, visto que não se satisfaz com a norma
fundamental hipotético-abstrata delegadora do poder constituinte ori-
ginário de Kelsen, nem com o existencialismo de Schmitt em relação à
vontade política, uma vez que entende como fundamento de validade
da Constituição, para valer conforme ordenação o direito, os princípios
éticos do direito, ou seja, os princípios legitimados pela sociedade, às
vezes não autorizados pelo Estado e mesmo expressamente condenados
em ocasiões por ele, tem para a existência da constituição do Estado a
máxima importância, em parte por si mesmo e em parte como com-
plemento. Estes princípios caracterizam-se porque carecendo de uma
concretização suiciente não podem encontrar aplicação como normas
imediatas para a decisão judicial, apesar de não obstante serem impres-
cindíveis na Constituição jurídica do Estado como normas sociais de

64 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968. p. 307-8.
65 HELLER, op.cit., p.302-3.

208
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

ordenação, assim como também enquanto regras interpretativas da de-


cisão judicial. A validez desses princípios é de natureza geral e aprio-
rística em parte; mas, com mais frequência, é historicamente variável,
dependendo do círculo de cultura correspondente.
Por im, quando se perquire o conceito de Constituição, algumas
indagações devem ser feitas, tais como: que tarefas e funções devem ser
coniadas a uma Constituição de um país e sociedades concretas? Quais
as matérias que devem ter caráter Constitucional? Deve a Constituição
limitar-se a uma ordem de competências, ou deve conter diretivas ma-
teriais correspondentes às aspirações e interesses de uma sociedade em
um espaço e tempos historicamente situados? Nos dias atuais, veriica-se
que nas Constituições modernas, há um crescimento maior da norma-
tividade autoritária, ao invés da normalidade (uso rotineiro); por essa
razão, há uma necessidade maior de produção de leis mais abrangentes
e que se movimentem com o evoluir da sociedade e das relações sociais,
tendo em vista que convivemos frequentemente com o transformar e o
progresso cultural. Devido à complexidade social progressiva geometri-
camente em que existimos, de acordo com o texto, a intensiicação da
divisão do trabalho e do intercâmbio necessita de uma maior segurança,
que os juristas chamam de segurança jurídica. Ambas possuem certa
dependência nas relações sociais políticas, econômicas e militares, nas
quais estrutura-se a ordenação de mesma origem, com papéis distintos
que completam o todo na estabilização estrutural, da sociedade.

7.7. Canotilho: considerações sobre Constituição,


pluralismo e democracia
Em Canotilho66, segundo Forsthof, o Estado é a forma pela qual
o povo torna-se apto para a atuação política. O Estado não é uma ordem
jurídico-estadual ou um quadro normativo, mas uma instância de von-
tade política. Trata-se de um Estado forte, contraposto ao Estado liberal.
A Constituição surge como vértice de um sistema de administração e
executivo. É a garantia de manutenção do ‘status quo’, e crítica a posição
de Forsthof, airmando que essa teoria assenta-se em uma recordação

66 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador:


Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra:
Coimbra Editora, 1994. p. 122.

209
EMERSON DE LIMA PINTO

do Estado autoritário. Todavia, uma Constituição materialmente enten-


dida tem de ser democrática e social, e não um simples esquema de
artifícios técnico-jurídicos.
Sobre o estatismo constitucional, Canotilho67 assevera que:
Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma pluralidade
heterogênea de direitos dentro do mesmo campo social. O “pluralismo
de direitos” pressupõe uma sociedade multicultural (“pluralismo
cultural”) formada por vários grupos culturais (“índios, “hispânicos”,
cabo-verdianos”, “africanos”, “turcos”, “indianos”) que produzem
normas (relativas, por exemplo: a casamentos, modas, contratos, ensino
de religião) que atuam no mesmo espaço social e interagem com as
normas produzidas pelas “macroculturas” dominantes nesse mesmo
espaço.(...) A constituição tem de enfrentar dois dilemas: o dilema
liberal e o dilema comunitário. O dilema comunitário trabalha com
o código binário unidade/pluralidade, reconduzindo ou reduzindo
a pluralidade de normas (jurídicas, éticas, religiosas) ás normas
adaptadas ou deliberadas pela comunidade e, por conseguinte, pela
macrocultura comunitária. A territorialização da cultura e do poder
reduz a pluralidade a uma tendencial unidade comunitária. Por
sua vez, o dilema liberal enfrenta a dicotomia um/todos, segundo as
regras “universais” do voto ou do preço do mercado, esquecendo que
a razão das regras, ditada de outras culturas.(...) A consideração das
objeções multiculturais obriga a teoria da constituição a insistir numa
nova função da lei fundamental: a função de estruturar e garantir um
sistema constitucional pluralístico. Esta estruturação e garantia passa,
desde logo, pela proibição de organizações aniquiladoras ou defensoras
da aniquilação do pluralismo ideológico e do multiculturalismo racial
(“organizações fascistas”, “organizações racistas”). Mais completa é
a questão de saber: 1) se a constituição deve conter uma cláusula de
proteção de minorias étnicas; 2) se essa cláusula implica a abertura
da ordem jurídico-constitucional a estruturas jurídicas especíicas de
tais minorias. A resposta à primeira questão não pode deixar de ser
positiva, pois o estado constitucional de direito democrático é um
estado dirigido pelos representantes da maioria, mas com garantia dos
direitos das minorias. A questão 2) apresenta mais diiculdades porque
se trata, no fundo, de saber se a moderna estatalidade territorial deve de
novo ser substituída (ou complementada) pela personalização da ordem

67 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra:


Almedina. 1998. p. 1346-7.

210
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

jurídica e, sobretudo, se ela pode ser hiperinclusiva acolhendo grupos


estratégicos fundamentalistas ou “enclaves tradicionalistas iliberais.
(grifo nosso)

Portanto, para o mestre português o estatismo constitucional


aponta as diiculdades que tal princípio enfrenta na sociedade contem-
porânea, remonta à necessidade de teorizar-se acerca dos pluralismos
presentes na sociedade e sua inluência em torno do papel do Estado
na modernidade. No mundo contemporâneo o dilema da concepção
liberal frente à concepção comunitária torna-se constante no horizonte
prático-teórico dos juristas.
Canotilho68 também analisa outros autores como Hennis e
Luhmann. Para Hennis a Constituição é instrumento de governo, de-
vendo estabelecer competências, regular processos e deinir os limites
da ação política. A Constituição convertida em fonte inesgotável de
conteúdos não é o verdadeiro sentido da Constituição. A Constituição
responde sempre a certas necessidades, mas só sob a forma de instru-
mento, de limitação do governo. A argumentação por ele desenvolvi-
da aponta para os perigos do totalitarismo constitucional, subjacente
à ideia de constituição pragmática; em Luhmann, “a teoria da consti-
tuição não conseguiu ainda uma perspectiva adequada ao estágio de
evolução sociológica e à análise sistêmica político-cientíica
Veriica-se que o problema de uma Constituição Dirigente é, em
grande medida, um problema de concretização constitucional, que deve
inspirar a proteção tanto na garantia dos direitos fundamentais quanto
na repressão necessária aos obstáculos à realização do Estado Demo-
crático de Direito. A Constituição Dirigente nas palavras do próprio
Canotilho69 ainda é o referencial a ser adotado nos países periféricos e

68 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador:


Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra:
Coimbra Editora limitada, 1994. p. 87-90; 105-109.
69 CANOTILHO, J.J. Gomes. Canotilho e a Constituição dirigente. COUTINHO, Jacinto
Nelson Miranda (org). Rio de janeiro: Renovar, 2003. p. 23-6: “ E daí, se me perguntarem se o
meu dirigismo não está hoje, ainal de contas, em alguma medida escondido nessas posições
principais fortes, eu direito que os princípios são fortes e é a concretização dos princípios que pode
ser mais dúctil. Não há confusão possível entre um estado de direito e outro de não-direito, entre
uma democracia e uma ditadura, entre uma socialidade e uma não-socialidade, entre igualdade
real e desigualdade, entre uma comunidade inclusiva e uma sociedade de exclusão dos outros.
Os princípios podem ser mais abstratos e dúcteis, mas são sempre princípios fortes.(...). Para os
marxistas, o povo, o sujeito histórico pode ser ou o proletariado, ou o partido regente, ou o partido

211
EMERSON DE LIMA PINTO

o instrumento capaz de auxiliar a radicalização de um processo demo-


crático; bem como, de acordo com o autor70, para que se amplie subs-
tantivamente a presença da sociedade civil organizada, seja por meio de
suas organizações, seja através do cidadão na airmativa de um Estado
que garanta à sociedade uma qualidade de vida superior, assim como
seja expressão inquestionável de um consenso social material desejado
e observado, de forma a expressar a coniança da sociedade em sua so-
ciedade constitucional. A funcionalidade do sistema constitui a super

da vanguarda. Novamente, um ‘povo jacobino’, agora na versão marxista, é aquele que é capaz
de fazer a revolução socialista, isto é, que é capaz de se comprometer com o projeto e defender
ativamente este projeto levado até às últimas conseqüências. Novamente, o sujeito histórico era
esse ou pretendia ser esse. (...) sobre o que é o povo (traduzido e editado no Brasil), o povo é
uma grandeza real que engloba ainal de contas, todas as pessoas, inclusive aquelas que estão
excluídas do povo, que nem sequer têm consciência política, que não participam na dinamização
democrática. Isso leva também a minorar ou a atenuar a idéia de sujeito histórico que nada tem
a ver com estas ilosoias da subjetividade. Tem a ver, sim, com esquemas modernos do sujeito. O
sujeito transformador, o sujeito conquistador, tem mais a ver com esse espírito moderno, do sujeito
que domina a natureza, que assume esse projeto, esse processo, ou seja, o processo histórico, como
um processo factível e conigurável pelos próprios homens. É esse, no fundo, o sujeito que tem
estado sempre presente nos problemas constitucionais. É esse sujeito a que me referi quando disse
que a Constituição dirigente estava bastante localizada no sujeito. (...) A última pergunta refere-se
às relações da procedimentalização constitucional com a justiça constitucional. (...) Bem. Eu tenho
escrito e dito que não sou muito defensor da idéia de total judicialização da vida política. Aqui, na
Europa, parece que se considera que os tribunais constitucionais e os outros tribunais são a última
etapa do aperfeiçoamento político. As últimas sugestões feitas aqui mesmo, na minha Faculdade,
vão no sentido de que a visão principialista só tem sentido numa visão jurisprudencialista do
direito. (...) as grandes etapas do homem não foram os juízes que as izeram, foi o povo, com outros
esquemas organizativos e com outras propostas de atuação. O exemplo mais frisante é o caso do
Timor. Não foram os juízes que deram independência a Timor. Foram os homens e a resistência
dos homens que deram Timor ao povo. O Estado de Direito em Portugal não foi criado pelos
juízes. Daí a necessidade de alguma prudência ao dizer-se que a etapa inal de todo esse processo
de Constituição dirigente acaba na Constituição procedimental e na justiça procedimental.
Pelo contrário, se a justiça constitucional é importante, porque representa um certo controle do
legislador, deve ter-se- também em conta o que Bonavides escreve hoje a respeito da democracia
representativa e da Constituição cidadã.” (grifo nosso)
70 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., 1994, p. 59-60. (...) mais rigorosamente: a
‘realização constitucional’ é um problema de ‘normação’ ou ‘regulação’ e um problema de ‘aplicação-
interpretação’ que se deve captar através de uma ajustada medida constitucional (...) O combate
ao positivismo através da radicalização hermenêutica (na linha heideggeriana-gadameriana)
conduziu, no seio da metódica constitucional, a uma inversão metodológica e a uma transposição
de planos em relação aos quais se fará um breve alerta. Inversão metodológica: o intérprete, o
problema e os topos substituem-se à norma; a ‘actividade produtiva’ da jurisprudência quase que se
coloca no mesmo plano da actividade ‘produtiva’ da legiferação; a interpretação é mais um ‘veículo
da liberdade judicial’. A posição que norteará o trabalho já foi atrás sugerida: colocar a cabeça
hermenêutica dos juristas sobre os pés jurídico-constitucionais e irmar o processo concretizador
da lei fundamental sobre uma metódica estruturante que, sendo pós-positivista, não deixe de
vincar bem a sua dimensão normativa. (grifo nosso).

212
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

norma constitucional e a sua compatibilidade, ordem, ordenação e fun-


cionalidade do sistema, e não as imposições normativas constitucionais,
que ocupam lugar central na teoria de Luhmann, trazidas para o “novo
constitucionalismo pátrio”71.
Canotilho72 entende que o problema da dignidade73de (re)conhe-
cimento de uma ordem constitucional não se constitui na fundamen-
tação de sua inalidade, mas na evidência da legitimidade que o Estado
adquire na ixação de seus ins e formas a serem empregadas para sua
realização. O mestre lusitano74 estabelece o conceito de Constituição
por meio de categorias: (a) é a da unidade da Constituição, que signiica
que todas as normas constitucionais têm o mesmo valor e, consequente-
mente, não há normas constitucionais inconstitucionais, (b) em relação
à estrutura e a função da Constituição, na qual é imperioso salientar que
ela é um programa ou linha de direção para o futuro, pois está inserida
no contexto histórico. Assim, uma Constituição não deve apenas conter
problemas derivados da ordenação normativa de limites e competências,
mas também os de fundamentação de ordem jurídica da comunidade
(social); (c) por outro lado, uma Constituição poderá ser deinidora de

71 SCHWARTZ, Germano. A Constituição numa visão autopoiética. In SCHWARTZ, Germano


(Org). Autopoiese e Constituição: os limites da Hierarquia e as possibilidades da circularidade.
Passo Fundo: Editora UPF,, 2005. p. 23-4.
72 CANOTILHO, op.cit., p. 18-9. “(...) Qualquer que seja a resposta, o problema da dignidade
de reconhecimento de uma ordem constitucional não é um problema de fundamentação dos
‘ins últimos’, mas o de explicitar, na medida do possível, a ‘pretensão de legitimidade’, através da
ixação dos ins e tarefas que incumbem ao Estado e do estabelecimento da forma de derivação
do poder estadual. Eis porque é um problema de legitimação o fenômeno da ‘dinamização da
constituição’, expresso, entre outras coisas, na consagração de ‘linhas de direcção’, na tendência para
‘sujeitar’ os órgãos de direção política à execução de ‘imposições constitucionais’, na mudança de
compreensão dos direitos fundamentais e na constitucionalização de direitos econômicos, sociais
e culturais (direitos a prestações). Reconhecendo-se a impossibilidade de situar a justiicação da
legitimidade a nível de fundamentação última, tenta-se, por um lado, realçar o ‘processo’. No plano
constitucional isso signiica: constituição como instrumento de governo, deinidor de formas e
competências para o exercício do poder. Rejeitando-se, igualmente, a colocação do problema da
legitimidade a partir de valores transcendentes, insiste-se, noutra perspectiva, na programática
(tarefas e ins do Estado). Em termos de teoria da constituição isso implica: ixação das condições
do exercício do poder (legitimidade processual) e dos pressupostos materiais (ins e tarefas) desse
exercício (legitimidade normativo-material) (...).”(grifo nosso)
73 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais: na
Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2001. p. 39-45. SARLET
aborda a dignidade da pessoa humana como norma (princípio e valor) fundamental para a ordem
jurídico-constitucional.
74 Idem., p. 82-86; 121-23.

213
EMERSON DE LIMA PINTO

competências e garantidora de pretensões subjetivas (atingindo mais fa-


cilmente a eicácia imediata, segundo Canotilho) ou então programáti-
cas, tornando mais transparente à vinculação ideológica. G. Burdeau vê
a Constituição como legitimação do poder soberano. A ideia de Cons-
tituição está aliada a ideia de poder; na qual institucionaliza e regula o
poder. Não estabelece vinculação histórica no conceito, tal como fazem
Forsthof e Hennis. A Constituição é a condição do Estado de Direito. O
soberano legitima o poder e ao mesmo tempo está sujeito a este poder
que legitimou (Estado de Direito). Assim, Canotilho critica Burdeau,
airmando que ele desatrela a ideia de Constituição dos fatos sociais.
Salienta-se que uma Constituição deve ser prospectivamente
orientada, abrindo via para o futuro, sem tentar fechar o processo histó-
rico. A lei fundamental não é um estatuto garantidor do existente, mas
deve ser projetada para o futuro e, por esses motivos, é fundamental a
inserção do conteúdo “programático”75 na Constituição.

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75 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador : Contributo


para a compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
2001. p. XIX-XXX.

214
7 • TEORIA DA CONSTITUIçãO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA...

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217
8

CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE
COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

Maria Lúcia Baptista Morais1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 8.1. Critérios de ixação de


competência - 8.1.1. Competência em razão da matéria -
8.1.2. Competência em razão da pessoa - 8.1.3. Competência
em razão do valor - 8.1.4. Competência em razão da função
- 8.1.5. Competência em razão do território - 8.2. Critérios
de ixação competência e o enquadramento como absoluta e
relativa - 8.2.1. Enquadramento como competência absoluta
ou relativa - 8.2.2. Hipóteses de misturas de critérios relativos
e absolutos - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

1 Graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1985). Mestrado em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995). Atualmente é Coordenadora do Curso de
Direito do Cesuca. Professora da disciplina de Direito Processual Civil II do Cesuca e Professora
titular do Centro Universitário Ritter dos Reis (Laureate International Universities). Atua
principalmente nos temas ligados ao processo de conhecimento, teoria geral do processo, tutelas
de urgência e procedimentos especiais e prática jurídica. E-mail: mariamorais@cesuca.edu.br

219
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

INTRODUÇÃO
A competência é, segundo o posicionamento predominante na
doutrina, uma parcela da Jurisdição2. Há necessidade de divisão do
trabalho, no exercício da atividade jurisdicional, para que haja, efeti-
vamente, um melhor desempenho, não só com relação ao tempo, mas
também quanto à qualidade da prestação jurisdicional desenvolvida.
A competência é um tema que precisa ser abordado, levando em
consideração, inicialmente, a previsão legal e a interpretação dada pela
doutrina, mas na sequência é imprescindível realizar a análise jurispru-
dencial. A jurisprudência tem trazido a interpretação da previsão legal,
assim como a criação de regras especíicas não previstas no ordenamen-
to jurídico. A compreensão de algumas decisões, por outro lado, só será
possível com a retrospectiva do posicionamento dos tribunais e a con-
textualização da situação concreta.
O interesse pelo tema deve-se ao fato de que na própria jurispru-
dência se percebe certa imprecisão técnica quanto ao enquadramento
de alguns critérios de ixação de competência, particularmente quanto
ao critério territorial. Outro fato é o assunto que envolve a questão emi-
nentemente prática e necessária no dia a dia forense. Ao elaborar uma
petição e preencher o seu primeiro requisito, o endereçamento, o advo-
gado deverá responder a todas as seguintes perguntas: Esta ação pode
tramitar no Brasil? Qual a Justiça competente? Qual o foro competente?
Qual o juízo competente? Para a obtenção destas respostas são utiliza-
dos os critérios de ixação de competência.
Para uma boa compreensão do problema posto, é necessária,
além da análise dos critérios utilizados para a ixação de competência, a
análise das consequências estabelecidas em cada um deles. Desse modo,
será possível uma visão crítica de alguns acórdãos do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul. A abordagem sobre o tema será feita especiica-
mente na área cível, com veriicação das decisões do Tribunal do Rio
Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça.

2 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p. 97. O autor ensina que: “Todos os
Juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, obedientes a limites preestabelecidos.
São, pois, ‘competentes’ somente para processar e julgar determinadas causas. A ‘competência’,
assim, ‘é a medida da jurisdição’ ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser
exercida pelo juiz.“

220
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

O objetivo do presente estudo é a busca por um melhor enqua-


dramento dos critérios de ixação de competência, para que se possa
concluir ser ela é absoluta ou relativa, e ter, na propositura da ação, a
aplicação de seus efeitos. O artigo foi, então, dividido em duas partes.
Em um primeiro momento serão abordados os critérios de ixação de
competência e, posteriormente, o enquadramento deles como compe-
tência absoluta e relativa, bem como os efeitos produzidos por tal veri-
icação.

8.1. Critérios de ixação de competência


A competência, muitas vezes, é ixada por exclusão. Por exemplo,
a competência da justiça comum é subsidiária, pois ela é obtida a par-
tir da exclusão da competência das justiças especializadas. Mesmo na
justiça comum obtém-se a ixação da competência da justiça estadual,
excluindo a competência da Justiça Federal.3
A doutrina brasileira, utilizando os ensinamentos de Chiovenda4,
estabelece como critérios objetivos: a matéria e o valor, além de outros
dois, que são o funcional e o territorial.
Observa-se que o critério da pessoa existe, mas não foi previsto
expressamente pelo nosso legislador.
Cândido Rangel Dinamarco é um crítico da utilização do esque-
ma Chiovendiano. Ele airmou:
Além disso, como é um esquema importado de países cuja estrutura
judiciária e cuja legislação diferem muito daquilo que temos no Brasil,
esse esquema não leva em conta os dados da nossa estrutura judiciária
nem as nossas particulares disposições legais sobre a competência (a
existência de tribunais de superposição, de Justiças autônomas entre si
e dotadas de competência diferentes, os casos de fatores conjugados,
cumulativamente exigidos para ixar certas competências [...]5

3 Na doutrina, existe divergência quanto ao enquadramento da Justiça comum. Athos Gusmão


Carneiro, p. 54, entende que a Justiça Federal é especial, enquanto o posicionamento predominante
é no sentido contrário, ou seja, de que a justiça comum é composta pela estadual e pela federal.
Nesse mesmo sentido está o posicionamento de Ada Pelegrini Grinover, no livro.Teoria Geral do
Processo, p. 146 e Marcus Vinícius Rios Gonçalves, Novo Curso de Direito Processual Civil, p. 68. A
competência da Justiça Federal está prevista no art. 109 da Constituição Federal.
4 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p. 214.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, p. 464.

221
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

O critério de ixação de competência, utilizado para a veriicação


da competência entre as justiças diferentes, pode ser pela matéria ou
pela parte envolvida no processo. É o que ocorre, por exemplo, com a
Justiça do Trabalho e com a Justiça Militar. Existem, contudo, outros
critérios que poderão ser utilizados em situações diversas e que agora
serão analisados.
A competência pode ser ixada pelos seguintes critérios: a maté-
ria tratada, o valor da causa, o funcional, em razão da pessoa (parte) e o
territorial. Cada um destes critérios passará a ser analisado agora.

8.1.1. Competência em razão da matéria


Quando a competência é ixada pela matéria, o assunto tratado
indica quem irá julgar a causa, ou seja, a competência está relacionada
ao pedido feito pela parte. Como esclarece Ovídio A. Baptista da Silva
(2005), neste caso, a competência diz respeito à natureza da causa6. Esse
critério serve para indicar diversos tipos de competências, por exemplo:
a) Competência de Justiça: se a ação for relacionada à relação de em-
prego, ela será proposta na Justiça do Trabalho. Em outras situa-
ções, a natureza da ação pode determinar a competência eleitoral,
federal ou, de forma residual, a competência da justiça estadual;
b) Competência de varas especializadas: que ocorre na identiicação
da vara, se será a cível ou uma vara de família, por exemplo;
c) Competência originária de tribunais: é o caso de uma homologação
de sentença estrangeira, que é julgada pelo STJ7, conforme artigo
105, I, i da Constituição Federal;
d) Competência exclusiva do juiz: o artigo 92 do CPC estabelece que a
competência será somente do juiz para julgar causas que envolvam
insolvência, questões de estado ou capacidade das pessoas8. Isto sig-
niica que as causas antes referidas não poderão ser julgadas por um

6 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de Processo Civil, v. 1, p. 44.


7 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p. 303.
8 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil, p. 161. Para
estes autores, são ações de estado e que envolvem a capacidade das pessoas, por exemplo: “[...] as
ações de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento, de interdição, de investigação
de paternidade”.

222
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

pretor, por exemplo. A competência do pretor é determina pelo art.


87 do Código de Organização Judiciária do Estado -COJE).9

8.1.2. Competência em razão da pessoa


A competência também pode ser ixada em razão da pessoa, ou
seja, da parte envolvida na causa10. Como foi referido antes, este critério
não foi listado pelo legislador, mas aparece em diversos artigos, como,
por exemplo, o que prevê a competência da Justiça Federal, artigo 109,
da Constituição Federal. O referido artigo, em seu inciso I, prevê que a
competência será federal quando a União, as empresas públicas federais
e as autarquias federais forem partes no processo.
Apesar de não constar expressamente no texto legal, a doutrina
estende a competência da Justiça Federal também para as fundações
federais. Mesmo não tendo previsão legal especíica, a doutrina e a ju-
risprudência, predominantemente, também excluem da competência
federal as ações envolvendo as sociedades de economia mista.11
Neste primeiro inciso, do artigo 109 da Constituição, o legislador
excluiu igualmente da competência da Justiça Federal as ações relativas
a acidentes de trabalho, sujeitas à Justiça eleitoral e do trabalho, sendo
que, nesses últimos casos, o critério utilizado foi a matéria.

9 Art. 87 do COJE- A competência dos pretores limitar-se-á a: (Redação dada pela Lei n.º 7.607/81)
I - processar e julgar as seguintes causas cíveis, de valor não excedente a cinquenta vezes o maior
valor de referência, vigente à data do ajuizamento da demanda, ressalvadas as de competência
privativa dos Juízes de Direito: (Redação dada pela Lei n.º 7.607/81)
10 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p. 303. O autor esclarece quanto à
competência em razão da pessoa: “ A competência ‘ ratione personae’ toma por dado relevante um
atributo ou uma característica pessoa do litigante. Assim a nacionalidade, os foros de nobreza ou
classe, a situação como idoso ou incapaz, o cargo ou função pública ocupado pelo litigante, ou a
circunstância de ser o litigante pessoa jurídica de direito público ou vinculada ao poder público”.
11 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Procedimento
comum: ordinário e sumário. p. 26/27, após citar súmulas do STF, como a 556 ( É competente
a justiça comum para julgar as causas em que é parte a sociedade de economia mista), 517 (As
sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal, quando a União intervém como
assistente ou opoente) e a doutrina predominante, discorda do posicionamento do STF. O autor
explica: “É que não há, do ponto de vista do direito material, qualquer razão suiciente para
distinguir o tratamento jurídico dado a uma sociedade de economia mista ou a uma empresa
pública. Ambas têm, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e subsequentes alterações [...]
o mesmo regime jurídico, a despeito de a sociedade de economia mista, diferentemente da empresa
pública, permitir, por deinição, capital privado na sua formação.”

223
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

No referido artigo da constituição, para ixar a competência da


Justiça Federal, o legislador valeu-se de diversos critérios, como a maté-
ria e a pessoa. Diante da impossibilidade de tratar de todos os casos, no
entanto, até pela diversidade de temas e pelo interesse especíico deste
estudo, tece-se mais algumas considerações sobre o inciso I.
É interessante observar que mesmo que se tenha o enquadramen-
to pela pessoa, algumas vezes é preciso atenção com as particularidades
da ação proposta. Por exemplo, a parte inal do artigo 109 da Constitui-
ção exclui as ações acidentárias da competência da Justiça Federal.
Ocorre que a ação acidentária pode ser proposta contra o INSS,
que é uma autarquia federal, mas também pode ser proposta contra o
empregador. A ação acidentária é proposta em razão de um acidente de
trabalho e, como a empresa tem responsabilidade durante os 15 primei-
ros dias, se ela não cumprir a sua obrigação, o empregado poderá ajuizar
ação na Justiça do Trabalho.
Por outro lado, após os 15 dias, a responsabilidade pelo afasta-
mento do empregado é do INSS e, se for preciso fazer a propositura
da ação, a competência será da Justiça Estadual, apesar de o INSS ser
autarquia federal.
Por outro lado, as ações previdenciárias, ou seja, as que decorrem
das contribuições, propostas contra o INSS, serão da competência da
Justiça Federal, exceto se na comarca não houver Justiça Federal. Neste
último caso, a Constituição delega competência para a Justiça Estadual,
excepcionalmente, conforme § 3º do artigo 109. A delegação, no entanto,
é restrita ao primeiro grau de jurisdição, pois, se houver recurso, a com-
petência será do Tribunal Regional Federal, conforme o § 4º do TRF.
Na hipótese das ações previdenciárias será ainda preciso prestar
atenção em mais uma particularidade. Quando as ações forem propos-
tas na Justiça Federal, para se chegar à competência comum, será neces-
sário excluir a competência dos Juizados Especiais Federais.
A competência dos Juizados Especiais Federais é determinada
também por outros critérios, como pessoa e valor da causa. Quando a
causa for de valor até 60 salários-mínimos, a competência da ação previ-
denciária será dos Juizados Federais, e este critério é absoluto. Portanto,

224
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

a competência das varas federais é estabelecida de forma residual, quan-


do o valor da causa ultrapassar a 60 salários-mínimos. 12
Quando o critério para a ixação de competência é a pessoa, po-
de-se estabelecer outras competências, como, por exemplo, a da vara
de menores, a da vara da Fazenda Pública, para ações que envolvem
Estados e Municípios e as respectivas, autarquias, empresas públicas e
fundações. É possível também determinar 13a competência originária de
Tribunais, como a hipótese de julgamento de um mandado de seguran-
ça contra atos do presidente da República, que é da competência do Su-
premo Tribunal Federal, conforme art. 102, I, d da Constituição Federal.
O Estatuto do Idoso também ixa competência utilizando o crité-
rio da pessoa; porém, mistura o critério da matéria. A Lei n.10.741/2003,
em seu artigo 80, estabelece que, nas hipóteses previstas no próprio es-
tatuto, a competência é do domicílio do idoso. Percebe-se, assim, a exis-
tência dos dois critérios, a pessoa e a matéria. Aliás, não são em todas as
causas que o idoso tem a prerrogativa de ingressar com a ação em seu
domicilio. Se ele for propor uma ação que não se enquadra na previsão
do estatuto do idoso, terá que usar as regras comuns de competência. 14

8.1.3. Competência em razão do valor


O valor da causa pode indicar a competência da Justiça comum
ou dos Juizados Especiais. No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, no
Rio Grande do Sul, o autor tem a opção de ajuizar a ação nos juizados
ou na Justiça comum. O valor da causa, contudo, é só um dos critérios
de ixação de competência do JEC; além dele, aparecem o critério da

12 DALL’ALBA, Felipe Camilo. Curso de Juizados Especiais: Juizado Especial Cível, Juizado
Especial Federal, Juizado Especial da Fazenda Pública, p. 84. O autor entende que: “E, encontrada
a Justiça, tem-se de perquirir se a causa se enquadra entre aquelas julgadas pelo Juizado Especial
Federal. Segundo o art. 3º da Lei 10.259/2001, são da competência dos juizados as causas federais
de até sessenta salários-mínimos, ixando critério econômico para sua determinação.”
13 Art. 84, inciso V do COJE. Para que seja possível chegar à competência da Vara da Fazenda
Pública será preciso excluir a competência dos Juizados da Fazenda Pública, que também é
absoluta, conforme Lei 12.153/09.
14 DALL’ALVA, Felipe Camilo. A Distribuição da Competência no novo CPC, no prelo, 2014.
O autor, analisando as previsões do projeto do novo CPC, airma: “ Nas causas que versa sobre o
direito previsto no estatuto do idoso, a competência é a da residência do idoso. (PNCPC, art. 53,
III, e). O Código incorporou essa nova hipótese, estabelecendo um foro especial para o idoso, em
razão da sua vulnerabilidade, mas não é qualquer causa, são apenas aquelas relativas ao Estatuto
do Idoso ( Lei 10.741/03).”

225
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

matéria e da pessoa. O critério do valor, assim como os demais, também


é utilizado na veriicação da competência dos Juizados Especiais da Fa-
zenda Pública, conforme a Lei n. 12.153 de 22/12/2009. 15
Arruda Alvim, Araken de Assis e Eduardo Arruda Alvim (2012)
apresentam uma situação peculiar na ixação da competência pelo valor
da causa, na comarca de São Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo os au-
tores, o valor poderá indicar a competência do foro central ou dos foros
regionais. Os autores airmam:
Registre-se que o entendimento preponderante, do qual compartilhamos,
é de que a competência dos foros regionais, no caso da Comarca de São
Paulo ( art. 54, I, da Res. 02/1976 do TJSP), conquanto ixada em razão
do valor (até quinhentas vezes o valor do salário-mínimo vigente), é
absoluta, e não relativa.16

Ainda no âmbito da Justiça Estadual, o critério do valor pode es-


tabelecer a competência do juiz ou do pretor. Este último só pode julgar
causas até 60 salários-mínimos, conforme art. 87 do COJE, mas, eviden-
temente, o juiz pode julgar todas as causas.

8.1.4. Competência em razão da função


O critério funcional traz embutido nele a preocupação com o me-
lhor funcionamento do Judiciário e, consequentemente, do desenvolvi-
mento da atividade jurisdicional.
Em diversas hipóteses é possível perceber a utilização do critério
funcional. Às vezes, ele serve para que se mantenha o mesmo julgador
da causa principal no julgamento da causa acessória ou em fase subse-
quente; outras vezes, para que haja uma melhor veriicação dos fatos e
maior facilidade na realização das provas, ou ainda, para que se possa
ter a participação de diversos órgãos no mesmo processo.
Athos Gusmão Carneiro analisa a competência funcional em dois
planos: no horizontal e no vertical.17

15 DALL’ALBA, Felipe Camilo. Curso de Juizados Especiais:Juizado Especial Cível, Juizado


Especial Federal e Juizado Especial da Fazenda Pública, p. 149.
16 ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de
Processo Civil: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei 12.683/12, p. 286.
17 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p. 313.

226
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

No plano horizontal, percebe-se a preocupação com a funcio-


nalidade quando há necessidade de atuação de mais de um órgão no
mesmo processo; mas, neste caso, a atuação será dentro do mesmo grau
de jurisdição. Isto pode ocorrer, por exemplo, em razão do princípio
da aderência ao território, ou seja, o juiz icará vinculado a um territó-
rio e quando necessitar de atos realizados fora dele deverá solicitá-lo,
em geral, por meio de carta precatória18 Assim, a competência do juízo
deprecado estabelece-se em razão da funcionalidade, para que haja a
facilitação no desempenho da função jurisdicional.
No plano vertical, a competência funcional é também chamada
hierárquica, porque envolve a atuação de órgãos de diferentes graus. Ve-
riica-se tal hipótese quando, por exemplo, há a utilização da carta de
ordem em uma ação rescisória. Esta última é da competência originária
dos tribunais; porém, a realização de atos pode ser dar no âmbito do
primeiro grau. Terá havido, então, neste caso, uma atuação de um órgão
superior e um inferior no mesmo processo.
Giuseppe Chiovenda, ao abordar o tema, faz referência ao fato de
que o critério funcional concorre com o critério territorial.19 No Código
de Processo Civil, artigo 95, há uma previsão que mistura os dois crité-
rios mencionados. O artigo 95 está no capítulo da competência territo-
rial, mas, na parte inal, estabelece competência funcional.20
O referido artigo estabelece que a competência para as ações que
envolvem direitos reais imobiliários é concorrente, ou seja, o autor pode
ingressar com a ação no local do imóvel, no domicílio do réu ou no foro

18 Por exceção, a lei permite que o magistrado determine a realização de atos fora da comarca,
como na hipótese do artigo 230 do CPC.
19 CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p. 214.
20 O projeto do novo CPC, aprovado na Câmara dos Deputados em 23/03/14, não resolveu
completamente o problema do artigo 95 do atual CPC. No projeto, o artigo 47 tem a seguinte
redação: Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da
coisa. § 1º A autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição, se o litígio
não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de
nunciação de obra nova. § 2º A ação possessória imobiliária deve ser proposta no foro de situação
da coisa, cujo juízo terá competência absoluta.
O legislador poderia ser mais explícito quanto à falta de opção do autor em escolher o foro
competente na hipótese da parte inal do § 1º, ou seja, nos casos listados a ação só pode ser proposta
no local do imóvel. Percebe-se, também, que o legislador deu tratamento especíico para a ação
possessória, posicionando-se quanto a uma antiga discussão de ser ou não a posse direito real.
Nesse mesmo sentido, há o posicionamento de Felipe Camilo DALL’ALBA, em A Distribuição da
Competência no novo CPC, no prelo, 2014.

227
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

de eleição. Esta competência é territorial e está ligada ao interesse da


parte, tanto que o autor pode escolher onde irá ingressar com a ação.
Por outro lado, na parte inal do artigo 95 do CPC, o legislador
não deixou alternativa. A ação deve ser proposta no local do imóvel e só
nele, se a ação versar sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão,
posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova. Por-
tanto, se não há a possibilidade de escolher, se o critério não privilegia o
interesse da parte, a competência não é territorial. A doutrina informa
que o objetivo da restrição à competência do local do imóvel deve-se ao
fato de que isso beneicia o desenvolvimento da função jurisdicional. A
proximidade com o imóvel facilitará, por exemplo, a produção de pro-
vas; portanto, o critério é o funcional. 21
Outro aspecto interessante é que o critério de ixação de compe-
tência, originalmente estabelecido pelo CPC, foi alterado com reformas
deste diploma legal. Isto ocorreu com a competência para a efetivação
de uma sentença. Antes de 2005 era necessária a propositura da ação
de execução de sentença. A competência para esta última era a do juízo
em que havia ocorrido o julgamento da ação principal. Com a previsão
da fase do cumprimento da sentença, estabelecida pela Lei n.11.232, de
22.12.2005; no entanto, o legislador acabou alterando o critério ante-
riormente previsto no art. 475, p, do CPC.

21 Neste sentido, têm-se os seguintes posicionamentos: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria
de Andrade. Código de Processo Civil comentado e Legislação Processual Civil Extravagante
em Vigor, p. 543 e ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao
Código de Processo Civil: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei 12.683/12, p. 291.
Estes últimos autores abordam uma questão que nem sempre é tratada. O artigo 1225 do Código
Civil Brasileiro (OU INCLUI) inlui entre os direitos reais o direito do promitente comprador e,
por isto, gera a divergência quanto ao enquadramento das ações que envolves essa situação. Então,
os autores esclarecem: “Compromisso de compra e venda. Observa-se, contudo, que relativamente
às ações de anulação de compromisso de compra e venda, ainda que registrado no cartório, o STJ
segue orientação na linha de que tal medida é de natureza pessoal, não se aplicando a regra de
competência absoluta do art. 95. Desse modo, tais ações podem ser ajuizadas no foro do domicílio
do réu ou, ainda, no foro de eleição, se houver”.
Em sentido contrário, aparece o posicionamento de Misael Montenegro Filho, expresso no livro
Curso de Direito Processual Civil:Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, p.
74/75. O autor refere: “A incompetência territorial absoluta, marcada pela inobservância do art. 95,
ao contrário, deve ser reconhecida de ofício pelo magistrado, não exigindo a expressa manifestação
da parte demandada, por ser do interesse público, não apenas das partes, forçando a remessa do
processo ao juízo competente, com a invalidação dos atos decisórios ( liminares, antecipações de
tutela e sentença, a teor do § 2º do art. 113”.

228
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

O artigo 475, p, do CPC, indica o local em que haverá o cumpri-


mento da sentença. Em seu inciso I, prevê a competência dos Tribunais
para as ações de competência originária; no inciso II, a do Juízo que
processou a causa e, por im, no inciso III, no juízo cível competente,
quando for o cumprimento de sentença penal condenatória, sentença
arbitral ou de sentença estrangeira.
A alteração de critério foi prevista no parágrafo único. Já os in-
cisos respeitam a regra de competência funcional, ou seja, o órgão que
atuou no caso deve processar o cumprimento da sentença para que haja
um melhor desempenho da função jurisdicional.
O parágrafo único do artigo 475, p, estabelece no inciso II que
o juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição deve ser
o competente para o cumprimento da sentença. O exequente terá foro
concorrente, ou seja, ele também poderá postular a efetivação da sen-
tença em que existirem bens do executado ou no atual domicílio dele.
Se isto ocorrer, o exequente solicitará, ao juízo de origem, a remessa dos
autos ao foro em que o cumprimento da sentença ocorrerá. Percebe-se,
portanto, que a competência concorrente não pode ser funcional, pois
é absoluta. Se o exequente puder escolher, seu interesse icará resguar-
dado; portanto, a competência será territorial e não mais funcional. 22
A nova redação do artigo 475, p, parágrafo único, além de alterar
o critério, ainda excepcionou o princípio da perpetuação da competên-
cia, previsto no artigo 87 do CPC. A regra é que a competência é deter-
minada no momento da propositura da ação, salvo se houver supressão
de órgão judiciário ou alteração da competência em razão da matéria
ou da hierarquia. Com a nova redação e a possibilidade de escolha do
local onde se dará a fase do cumprimento da sentença, o princípio ica
excepcionado. 23
O critério funcional também pode ser utilizado quando se está
diante da divisão de determinada comarca em foros regionais. Esta di-

22 Neste sentido é o posicionamento de Araken de Assis, no Manual da Execução, p. 353,


onde acrescenta: “ Por tal motivo, o art. 475, P, parágrafo único, tornou relativa a competência,
permitindo o vitorioso optar, na expropriação, pelo local da situação dos bens, ou subsidiariamente,
e nas demais espécies de execução, pelo local do domicílio atual do executado. Para tal arte, o juiz
da execução requisitará os autos ao juízo de origem. Neste aspecto, o legislador forçou a mão,
pois a providência se mostra inútil e dispendiosa. Melhor se conduziria, no assunto, autorizando a
formação de autos próprios ( por analogia, aplicar-se-ia o art. 475-O, § 3º )”.
23 ASSIS, Araken.Manual da Execução, p. 352.

229
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

visão tem ocorrido em grandes comarcas, como, por exemplo, nas ca-
pitais dos Estados. Em Porto Alegre, existem seis foros regionais: o da
Tristeza, Partenon, Quarto Distrito, Alto Petrópolis, Sarandi e Restinga.
Assim, não pode o foro central ser escolhido aleatoriamente sem que
se utilize uma regra de competência territorial; como, por exemplo, o
domicílio do réu. Portanto, quando se pretende estabelecer a competên-
cia em Porto Alegre e a manutenção da atividade dos foros regionais, o
critério é funcional e isso é estabelecido pela súmula n. 3 do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul.
É possível que a discussão sobre a competência entre o foro cen-
tral e o foro regional, no entanto, se estabeleça pelo critério territorial, se
a competência estiver sendo discutida com base em regras estabelecidas
pelo legislador. Foi o que ocorreu no caso julgado em decisão monocrá-
tica, n. 70059923334 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
No referido julgamento tratou-se de um conlito negativo de
competência entre o Juízo da 2ª Vara Cível do foro regional do 4º Dis-
trito e o da 6ª vara cível do Foro Central. O juiz desta vara, aplicando a
súmula n. 3 do TJRS, que entende por interesse público a distribuição de
competência entre o foro central e os regionais, declinou competência
para o foro do 4º Distrito, 2ª vara, que, por sua vez, suscitou o conlito.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgando o conli-
to, entendeu que tinha razão o suscitante, pois deveria ser aplicado o
Código de Defesa do consumidor (discutia-se a inscrição indevida em
órgão de proteção ao crédito), cabendo então ao consumidor escolher o
foro para a propositura da ação entre o seu domicílio e o domicílio do
réu. O Tribunal entendeu, assim, que não havia qualquer irregularidade
na propositura da ação no foro central.24. Observa-se, portanto, que a
competência foi determinada não pelo fato de ser necessária a divisão
de trabalho – critério funcional, mas com a aplicação de regras de com-
petência territorial, visando o interesse da parte.

8.1.5. Competência em razão do território


Utilizar o critério territorial de competência signiica veriicar a
competência de foro. Isso implica, no âmbito da justiça estadual, em

24 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conlito de Competência nº 70059923334.


Décima Sétima Câmara Cível. Relator: Des. Gelson Rolim Stocker, julgado em 21 de maio de 2014.

230
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

pensar na comarca onde a ação será proposta e, no âmbito da Justiça


Federal, em escolher a subseção. 25
O critério territorial pode ser dividido em geral e especial26. A
competência territorial geral é a determinada pelo domicílio do réu, ar-
tigo 94 do CPC e a especial está relacionada a diversos fatores, como,
por exemplo, a discussão sobre direitos reais imobiliários (parte inicial
do artigo 95 e seguintes do CPC),27 o local do cumprimento da obriga-
ção, o inventário, a partilha, a arrecadação ou o cumprimento de última
vontade; ações que envolvem interesse de ausentes, incapazes, ações de
separação, divórcio, anulação de casamento, alimentos, anulação de tí-
tulos extraviados ou destruídos, interesses de pessoas jurídicas ou for-
mais do processo, ações de reparação de danos, dentre outras.
Uma confusão frequente é a de misturar a competência territorial
especial com a competência absoluta. Isto se dá porque a competência
especial prevalece sobre a territorial geral, que é a do domicílio do réu.
Desse modo, surge a impressão de que a competência é absoluta, e não é.
A competência territorial, mesmo a especial, é relativa, ou seja,
está ligada ao interesse da parte. Por exemplo: quando se analisa a com-
petência tendo em vista o domicílio do réu e o lugar do cumprimento da
obrigação, prevalecerá sempre este último, pela especialidade. A com-
petência territorial geral será obtida, portanto, de forma residual. É pre-
ciso, entretanto, não perder de vista os efeitos da competência relativa.
Quer dizer, se a ação, ao invés de ser proposta no local do cumprimento
da obrigação, for ajuizada no domicílio do réu, haverá modiicação de
competência.
Neste último caso, ocorrerá até uma situação interessante. A ri-
gor, se ação foi proposta no foro relativamente incompetente, porque
não observou a regra da especialidade e não foi ajuizada a ação no local
do cumprimento da obrigação, o réu poderia excepcionar a incompe-
tência. Não obstante, se ele assim agir, a tendência é de não acolhimento

25 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil:Processo de


Conhecimento ,p. 40. Para os autores, o critério territorial “ [...] toma em consideração a dimensão
territorial atribuída à atividade de cada um dos órgãos jurisdicionais”.
26 ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de
Processo Civil:comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei 12.683/12, p.290.
27 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo:Teoria
Geral do Processo, p. 207.

231
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

da exceção, tendo em vista que ele não está sendo prejudicado; pelo
contrário, estará sendo beneiciado com a propositura da ação no seu
domicílio. Existem vários acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Gran-
de do Sul nesse sentido.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO INTERNO. DECISÃO
MONOCRÁTICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE
INCOMPETÊNCIA. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO E
DISSOLUÇÃO. COMPETÊNCIA RELATIVA. 1.Comporta decisão
monocrática o recurso que versa sobre matéria já paciicada no Tribunal
de Justiça. Inteligência do art. 557 do CPC. 2.Se a autora propôs a ação
no foro de domicílio do réu, por estar prestes a mudar-se e por ali
encontrarem-se os bens a serem partilhados, não merece acolhimento
a exceção de incompetência proposta pelo réu, para que a ação se
processe no foro de domicílio da autora. 3. A competência territorial é
relativa, inclusive em sede de ação de reconhecimento e dissolução de
união estável, e se a própria autora abdicou do privilégio previsto no
art. 100 do CPC, não cabe ao réu invocar esse direito da parte contrária.
Recurso desprovido.28

AGRAVO INTERNO. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. SEGURO.


DPVAT. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. DOMICÍLIO DA RÉ.
1. A relação havida entre a seguradora demandada e o agravado é de
ordem obrigacional, versando quanto ao seguro DPVAT, possuindo
este regulamentação própria. Ademais, o caráter obrigatório afasta
a possibilidade de inversão do ônus da prova com base na legislação
consumerista, sem que haja prova do fato constitutivo de seu direito.
2. Em se tratando de competência relativa, a escolha do foro é opção
da parte autora da demanda, podendo se dar no lugar de seu domicílio
ou naquele onde ocorreu o acidente, segundo preceitua o art. 100,
parágrafo único, do CPC.
3. Portanto, o demandante tem o direito de renunciar às opções
conferidas pela norma precitada, facultando-lhe ajuizar a ação no foro
do domicílio do réu, não podendo este se insurgir contra a escolha
realizada, diante da ausência prejuízo.
4. Violação ao princípio do juiz natural. Inocorrência no caso em exame,
uma vez que mantida a imparcialidade e a independência do julgamento,
bem como quaisquer dos juízes gaúchos estão regularmente investidos

28 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo Interno nº
70058556770, 7ª Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j. 26/03/14.

232
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

na função jurisdicional e detêm as garantias constitucionais necessárias


para decidir de forma equidistante a causa.
5. Os argumentos trazidos no recurso se mostram razoáveis para
reformar a decisão monocrática.
Dado provimento ao agravo interno.29

As decisões prolatadas são acertadas, tendo em vista que a regra


geral da competência territorial é o domicílio do réu, exatamente para
beneiciá-lo. Pode-se airmar que essa regra decorre do princípio da
igualdade; pois, se por um lado o autor pode escolher se vai ou não pro-
por a ação, por outro a ação deve, de ordinário, tramitar no domicílio do
réu. Assim sendo, quando isso acontece, mesmo que no caso concreto,
outra deveria ter sido a atitude do autor, uma vez que o réu é beneiciado
e não poderá reclamar.
Existem previsões de competência territorial em legislações es-
parsas, como é o caso da lei de locações, Lei n. 8.245/91, art. 58, inciso
II e do Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8078/90. Quanto a esta
última, existe grande polêmica na jurisprudência sobre a possibilidade
ou não de declinar competência de ofício, questionando-se se o enqua-
dramento deve ser feito como competência absoluta ou relativa. Este
tema será analisado a seguir.

8.2. Critérios de ixação competência e o


enquadramento como absoluta e relativa
Cada um dos critérios de ixação de competência estudados pode
ser classiicado como de competência absoluta ou relativa, dependendo
do interesse. Se na ixação do critério prevalece o interesse da parte, a
competência é relativa; se prevalece o interesse público, ela será absoluta.
A classiicação em competência absoluta ou relativa não é mera-
mente acadêmica, ela traz consequências diversas. Por exemplo: a in-
competência absoluta pode ser declarada de ofício ou a requerimento
da parte; pode ser alegada em qualquer momento e de qualquer forma,
e gera a nulidade de todos os atos decisórios.

29 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo nª 70040910747. 5ª Câmara Cível, Relator:
Jorge Luiz Lopes do Canto. J. 30/05/11.

233
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

No que tange ao momento em que a incompetência absoluta


pode ser arguida pela parte, é preciso observar que pode ser a qualquer
tempo; porém, se não houver a arguição em contestação, ou na primeira
oportunidade em que a parte falar nos autos, poderá haver a penaliza-
ção de forma monetária. Esta é a previsão do artigo 113 do CPC, que, no
parágrafo 1º, estabelece a condenação ao pagamento das custas.
Por outro lado, a incompetência relativa é matéria que, como re-
gra, não pode ser conhecida de ofício, conforme súmula 33 do STJ. Ela
deve ser arguida por meio de exceção, conforme artigo 112 do CPC, e
tem um prazo preclusivo para arguição, que é o prazo de resposta. 30

8.2.1. Enquadramento como competência absoluta ou


relativa
A competência em razão da matéria, da pessoa e funcional é ab-
soluta, ou seja, para estabelecê-la leva-se em consideração o interesse
público. Este interesse pode ser percebido quando se pensa na compe-
tência de Justiça ou de vara especializada. A divisão de trabalho pela
matéria faz com que o magistrado se especialize no assunto e que, com
isso, consiga julgar de forma mais adequada. A adequação dar-se-á em
termos de qualidade da prestação jurisdicional e o julgamento também
ocorrerá mais rapidamente, o que preserva a questão da celeridade pro-
cessual. Ainal, o direito de acesso à Justiça não envolve só o direito de
ajuizamento das ações, mas também, e principalmente, o julgamento de
forma adequada e tempestiva.
Percebe-se, igualmente, o interesse público quando há o ajuiza-
mento, por exemplo, de uma ação incidental, como a reconvenção, a
ação declaratória incidental e outras decorrentes de intervenção de ter-

30 O projeto do novo CPC aprovado na Câmara traz modiicação na forma de abordar a


incompetência relativa. Até agora, era preciso a exceção de incompetência, embora a jurisprudência
já estivesse lexibilizando essa exigência. Com a nova redação do Art. 64, a arguição poderá ser feita
na própria contestação. A previsão do projeto aparece nos seguintes termos: “A incompetência,
absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. § 1º A incompetência
absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício”
Veriica-se que o novo CPC trará, se for aprovado como passou pela Câmara, uma previsão
especíica quanto à atuação do Ministério Público na alegação da incompetência. É a previsão
do parágrafo único do artigo. 65 do projeto: “A incompetência relativa pode ser alegada pelo
Ministério Público nas causas em que atuar. A impressão é de que o legislador pretendeu dar uma
extensão maior à atuação do MP, inclusive, nas causas em que ele atua como custos legis”.

234
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

ceiros, perante o mesmo juiz que está julgando a causa. Isso se veriica
nesses casos, pois ele terá melhores condições de realizar uma adequada
atividade jurisdicional.
De forma similar, pode-se pensar na competência determinada
pela pessoa. É o que ocorre, por exemplo, quando pessoas jurídicas de
direito público são partes na causa e a competência é ixada em razão
de sua participação no feito, como no caso da vara da Fazenda Pública.
Por outro lado, a competência territorial é relativa, apesar das
controvérsias doutrinarias e jurisprudenciais da atualidade; e a do valor
também deveria ser, segundo a previsão do legislador no artigo 111 do
CPC. A doutrina entende, no entanto, que há uma dupla possibilidade,
no caso de o critério ser o valor da causa, ou seja, quando se veriica a
competência sobre a ótica do juiz e o critério é o valor, a incompetência
é relativa. Se a visualização for quanto ao pretor, contudo, a incompe-
tência é absoluta. É o que a doutrina costuma chamar de competência
do mais para o menos e do menos para o mais.
Esclarecendo melhor a questão: o pretor tem sua competência
estabelecida pelo artigo 87 do COJE, e lá, além do critério da matéria,
aparece o valor. O pretor pode julgar causas até 60 salários-mínimos.
Ocorre que o pretor não pode julgar causas superiores a esse valor, mas
o juiz pode julgar todas as causas, independentemente do valor.

8.2.2. Hipóteses de misturas de critérios relativos e


absolutos
A impossibilidade de reconhecimento de ofício da incompetên-
cia relativa é estabelecida não só pela legislação, mas por súmula de n.
33 do STJ, com a seguinte redação: “A incompetência relativa não pode
ser declarada de ofício”. Esta previsão legal e sumulada é bastante discu-
tida e por vezes lexibilizada.
Apesar da súmula 33 do STJ, o próprio legislador excepcionou a
regra do artigo 112, estabelecendo, em seu parágrafo único, que o juiz
poderá anular a cláusula de eleição de foro, no contrato de adesão; e de
ofício declinar competência para o foro do domicílio do réu.
Sobre o tema, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidie-
ro acrescentaram o seguinte:

235
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

Ao lado do regime de competência absoluta e ao da competência relativa,


há no CPC regime misto de competência sui generis. A competência
ixada pelo critério territorial, modiicada em contrato de adesão,
pode ser conhecida de ofício pelo juiz ( art. 112, parágrafo único), mas
prorroga-se acaso não oferecida a exceção de incompetência no prazo
legal ( art. 114).31

Entende-se que, efetivamente, há uma situação diferente das de-


mais que preveem a competência territorial. No caso do artigo 112, pa-
rágrafo único, a possibilidade de existência de cláusula de eleição de foro
conduz à conclusão de que a competência é relativa; porém, quando o
contrato é de adesão, discute-se a possibilidade de tal cláusula, exata-
mente pela necessidade de preservação do direito daquele ser mais frá-
gil na relação e ter que aderir ao contrato. Por exemplo, o consumidor
não pode discordar da cláusula de eleição e, por outro lado, o Código
de Defesa do Consumidor estabelece o interesse público na defesa do
hipossuiciente.
Em contratos de adesão a cláusula de eleição de foro é prevista,
frequentemente, nos casos de relação de consumo. Nos referidos con-
tratos surge a necessidade de proteção da pessoa (contratante) que está
mais vulnerável32. É de se pensar, então, se foi estabelecida uma simples
exceção à regra da competência territorial ou se foi utilizado, no caso
concreto, um critério diverso do territorial; pois, se existisse somente
o interesse pura e simplesmente da parte, o juiz teria que respeitar a
súmula 33 do STJ. O que se percebe, no entanto, é que a condição de
contratante hipossuiciente é que dá a possibilidade, diante do interesse
público do consumidor e após a veriicação no caso concreto, para o
juiz agir de ofício. Trata-se, assim, de critério relacionado à pessoa e,
portanto, absoluto.

31 OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do
Processo civil e parte geral do Direito Processual Civil, p. 265.
32 MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil
Moderno:Parte Geral e Processo de conhecimento, p. 126/127. Os autores ensinam: “ Pode-se dizer
que a jurisprudência sedimentou-se nesse sentido, no referido tribunal: a cláusula de eleição de
foro é, em regra, válida e eicaz, somente se considerando nula se contida em contrato de adesão,
nos casos em que se veriique a hipossuiciência do consumidor e tal cláusula diiculte a defesa. Vê-
se, portanto, que a cláusula de eleição de foro, na hipótese referida, não é nula a priori. Em regra, tal
cláusula é válida, salvo se, em contrato de adesão, se veriique a hipossuiciência da parte aderente,
bem como se, em razão da cláusula de eleição do foro, reste diicultada a sua defesa”.

236
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

Em que pese o raciocínio anterior parecer muito lógico, é preciso


atenção quanto à previsão do artigo 114 do CPC, pois, nele, o legislador
estabeleceu que haverá prorrogação de competência se o juiz não anular
a cláusula de eleição de foro no contrato de adesão. Sabe-se que a pror-
rogação só ocorre quando a competência é relativa e que a competência
em razão da pessoa é absoluta.
Há que se admitir, portanto, que existem situações em que, de-
pendendo da particularidade do caso, terão como consequência a inci-
dência de um ou de outro critério de ixação de competência. É o que
ocorre com o consumidor que tenha assinado um contrato de adesão.
Se o juiz entender que a cláusula de eleição de foro é prejudicial ao con-
sumidor e que ele está em uma situação de hipossuiciência, ele anulará
a cláusula, utilizando o critério pessoal, ou seja, o interesse público de
proteção pela pessoa que está na condição de consumidor. Por outro
lado, se existir a cláusula, mas o juiz não anulá-la, é porque entendeu
que não haverá prejuízo ao consumidor. Neste caso, vai se sobressair e
ai se sobressairá o critério territorial e, por esse motivo, a competência
poderá ser prorrogada.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8078/90, em seu arti-
go 101, estabelece que a ação de responsabilidade civil do fornecedor de
produtos e serviços pode ser proposta no domicílio do autor. Trata-se
de mera faculdade do consumidor e, em princípio, como a regra é de
interesse da parte, a discussão sobre o foro é de competência territorial,
logo relativa. Esta conclusão tem respaldo jurisprudencial. Vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA.
CONTRATO BANCÁRIO. FINANCIAMENTO COM GARANTIA
DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO REVISIONAL. AÇÃO
PROPOSTA PELO CONSUMIDOR NO FORO ONDE O RÉU POSSUI
FILIAL. POSSIBILIDADE.
1. Nos casos em que o consumidor, autor da ação, elege, dentro
das limitações impostas pela lei, a comarca que melhor atende seus
interesses, a competência é relativa, somente podendo ser alterada caso
o réu apresente exceção de incompetência (CPC, art. 112), não sendo
possível sua declinação de ofício nos moldes da Súmula 33/STJ.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.33

33 BRASIL. Tribunal Superior de Justiça. AgRg no CC 125.259/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO,
julgado em 08/05/2013, DJe 17/05/2013.

237
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

O tema tratado é divergente na jurisprudência. No Tribunal de


Justiça do Rio Grande do Sul existem decisões entendendo que, no caso
da relação de consumo, a competência é relativa e, em outras vezes, ela
é absoluta.
Na realidade, a divergência decorre do fato de que, na Lei n.
8.078/90, no artigo 1º, o legislador previu que a proteção e a defesa do
consumidor são matérias de ordem pública e de interesse social. Sendo
assim, pode ser conhecida de ofício pelo juiz e não entra na disponibi-
lidade das partes.
Por outro lado, o artigo 101 usa o verbo “poder”, estabelecendo
a possibilidade de que o consumidor opte pelo seu próprio domicílio,
quando da propositura de uma ação. Fazendo uma análise conjunta dos
dois artigos, a lógica seria concluir por uma questão de competência
absoluta e não relativa, pois deve prevalecer o interesse público, em de-
trimento do interesse particular.
O entendimento do STJ foi estabelecido no sentido da proteção
do consumidor, ou seja, a natureza absoluta é admitida, desde que não
traga prejuízos ao consumidor. Portanto, veriica-se pelos julgamentos
que, se o próprio consumidor optar por propor a ação em foro diverso
do seu domicílio, o juiz não deve declinar de ofício; mas sim, aguardar
a exceção de incompetência, tendo a prorrogação da mesma, como con-
sequência do seu não manejo.
Conforme já foi analisado anteriormente e agora considerado sob
a ótica da jurisprudência, há o entendimento de que o juiz pode declinar
de ofício para o domicílio do consumidor, se houver, por exemplo, pre-
visão diversa e prejudicial em cláusula de eleição de foro. Desse modo,
a defesa do direito do consumidor ica reconhecida como matéria de
ordem pública.
AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO.
APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
COMPETÊNCIA TERRITORIAL. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR.
COMPETÊNCIA ABSOLUTA. A natureza da competência territorial
diante de relações de consumo é de ser compreendida como absoluta,
levando em consideração que o art. 6º do CDC deine como direito básico
do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos (inciso VIII) que
não deve ser interpretado como eleição de foro que melhor convém à
solução do litígio, mas aquele que torna mais fácil o seu acesso ao Poder

238
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

Judiciário. PROCESSO EXTINTO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO,


DE OFÍCIO, PREJUDICADO O EXAME DO APELO. UNÂNIME. 34

Por outro lado, quando o próprio consumidor opta pela proposi-


tura da ação em foro diverso do seu domicílio, a tendência de julgamen-
to é por não admitir que o juiz decline competência de ofício.
Agravo de Instrumento. Responsabilidade civil. O STJ tem pacíico
entendimento no sentido de que, tratando-se de relação de consumo, a
competência é absoluta e, por isso, pode ser declinada de ofício. Todavia,
pelo entendimento do próprio STJ, a competência territorial, nesses
casos, só pode ser considerada absoluta, para ins de afastamento da
Súmula 33, quando isso se der em benefício do consumidor, o que não
ocorre no presente caso. Agravo de instrumento provido em decisão
monocrática.35

No referido acórdão, após citar várias jurisprudências do STJ, o


relator concluiu:
No caso em tela, a opção pelo ajuizamento da ação na Comarca onde
foi protocolada foi do próprio consumidor. O ajuizamento da ação
no domicílio do consumidor lhe é facultado e, portanto, não pode ser
imposto, cabendo ao réu, se assim entender, apresentar a devida exceção
de competência.36

Percebe-se, portanto, que o posicionamento do Tribunal de Justi-


ça do Rio Grande do Sul e o do STJ correspondem a um enquadramento
em benefício do consumidor. Se for para beneiciá-lo, a incompetência
se torna absoluta e pode ser declinada de ofício, pois é matéria de ordem
pública. Por outro lado, a jurisprudência dos dois Tribunais admite que
o consumidor pode escolher onde propor a sua ação, e nesse caso, não
pode o juiz declinar de ofício. A análise da matéria icará na dependên-
cia do réu declinar competência ou não.

34 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº
70030462915, Décima Quarta Câmara Cível, Relator: Dorval Bráulio Marques, Julgado em
11/11/09.
35 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº
70059760983, 6ª Câmara Cível. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/14.
36 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº
70059760983, 6ª Câmara Cível. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/14.

239
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

Entende-se que, quando a questão envolve o interesse público, a


competência não pode ser relativa e, se for exclusivamente do interesse
privado, também não poderá ser absoluta. Sendo assim, percebe-se que
o critério de proteção ao interesse do consumidor não é exclusivamente
dele, segundo a previsão do próprio legislador, mas diz respeito a um
interesse público.
Quanto o foco é o interesse público, a deinição da competência
leva em conta o enquadramento do consumidor. O fato de a pessoa es-
tar na condição de consumidor vai lhe garantir a prerrogativa de usar o
benefício estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor. Portanto,
entende-se que, quando a competência é estabelecida nessa hipótese, o
que se sobressai é a condição da pessoa. Destaca-se, mais uma vez, que
isso só ocorrerá para a proteção do consumidor.
Se, por outro lado, o consumidor não usar o benefício da lei, por
sua própria deliberação, não poderá ser declinada a competência de ofí-
cio. Aí se percebe a manutenção do critério territorial, prevalecendo o in-
teresse exclusivamente da parte e sendo abandonado o interesse público.
O problema desta análise é que, quando se pensa no foro compe-
tente, a relação é direta com a competência territorial; no entanto, esta
não é a única situação em que os critérios se misturam. Vale lembrar
aqui a hipótese da ação reivindicatória de imóvel, que envolve um di-
reito real imobiliário, mas em que a escolha do foro competente é de-
terminada por um critério funcional, conforme a parte inal do artigo
95 do CPC.
Em que pese a divergência da jurisprudência, entende-se que é
possível, após a leitura de vários acórdãos, chegar a uma conclusão so-
bre os julgamentos proferidos. Vejamos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATOS
BANCÁRIOS. INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. 1. O magistrado
pode, de ofício, declinar de sua competência para o juízo do domicílio
do consumidor, porquanto a Jurisprudência do STJ reconheceu que o
critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações
de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de
competência absoluta. 2. A facilitação da defesa dos direitos do
consumidor em juízo possibilita que este proponha ação em seu próprio
domicílio. Tal princípio não permite, porém, que o consumidor escolha,
aleatoriamente, um local diverso de seu domicílio ou do domicílio do

240
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

réu para o ajuizamento do processo. Precedentes. RECURSO ESPECIAL


A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.37

A leitura isolada desta ementa dá a impressão de que o posicio-


namento do STJ é simples, ou seja, trata-se de competência absoluta.
A jurisprudência do TJRS repete, em muitas Câmaras, a interpretação
desatenta. A própria ementa, no entanto, destaca a facilitação da defesa
dos direitos do consumidor e o fato de que “possibilita que este propo-
nha a ação em seu domicílio”. Na ementa, o relator acrescenta: “Tal prin-
cípio não permite, porém, que o consumidor escolha, aleatoriamente,
um lugar diverso de seu domicílio ou do domicílio do réu ”.
Analisando a decisão do STJ, percebe-se, claramente, que o autor
poderá escolher entre o seu domicílio e o do réu. Se ele pode escolher é
porque a competência é relativa e não absoluta.
Fazendo a leitura do referido acórdão do STJ, no recurso especial,
percebe-se que a ação não foi proposta no foro do domicílio, nem do
autor, nem do réu, mas onde o procurador tem o seu escritório. O que
ocorre é que, em algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, é feita a citação de trechos do acórdão do STJ; porém, a decisão
não se aplica ao caso concreto.
No acórdão retrocitado, a situação era diversa da analisada no
Rio Grande do Sul. A competência é absoluta; porém, o critério que
incide na situação concreta não é o territorial.
Não é possível ser conivente com a escolha aleatória do local para
a propositura da ação, pois há um interesse público maior que é o da
melhor distribuição da função jurisdicional. Ocorre que, no caso con-
creto, não foi uma escolha entre o foro do domicílio do autor ou do réu,
mas sim uma opção por um foro que não foi contemplado pelo legisla-
dor, como de possível escolha.
O STJ posiciona-se contra a escolha da propositura da ação, sem
observância de regras, usando como fundamento o fato de que não se
deve ferir o princípio do juiz natural38. No acordão analisado, o STJ em-

37 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 978725 - MG (2007/0190019-8)


RELATOR : Min. Luiz Felipe Salomão, publicação 09/06/11.
38 Sabe-se da frequente utilização do princípio do juiz natural para fundamentar a impossibilidade
de a parte escolher aleatoriamente um determinado foro. Tal fundamentação, entretanto, não
parece adequada, porque está sendo dada uma interpretação muita ampla ao referido princípio. A
escolha de um foro não utilizando um critério legal não caracterizará a utilização de um tribunal

241
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

basa a sua decisão sobre a questão processual da competência, na prote-


ção ao consumidor. Por envolver relação de consumo, trata-se de regra
mais especial do que o critério da funcionalidade, que também serviria
de fundamentação de decisão no caso concreto.
Ocorre que, quando se veriica a necessidade de proteção à pes-
soa do consumidor, por ter a empresa escolhido o foro que o prejudica,
a competência não é determinada somente pelo interesse da parte, mas
sim pelo interesse público.
Pode-se concluir, portanto, que se por um lado o consumidor tem
o direito de escolher se vai ajuizar a ação em seu domicílio ou não, por
outro, essa escolha deve estar de acordo com a previsão legal. Mas, se a
propositura da ação for por parte da empresa contra o consumidor e a
escolha do foro for prejudicial a esse último, então o critério é absoluto,
de interesse público.
A lei de locações, n. 8.245/91, estabelece que o foro competente
para a propositura de ações de despejo, consignação em pagamento de
aluguel e acessórios de locação, revisionais de aluguel e renovatórias de
locação será o do local do imóvel, exceto se existir outra previsão em
cláusula de eleição de foro. Portanto, se existe a possibilidade de eleger
foro diverso, a competência é relativa. Neste sentido a decisão do Tribu-
nal de Justiça do Rio Grande do Sul aponta:
APELAÇÃO CÍVEL. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO C/C
COBRANÇA. PRELIMINARES DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
DO JUÍZO E DE CERCEAMENTO DE DEFESA. CASO
CONCRETO. Não se trata de incompetência absoluta, mas relativa,
sujeita à modiicação por vontade das partes conforme dispõeo art.111
do CPC e o art. 58, inc. II, da Lei 8.245/91. Aincompetência relativa do
juízonão foi levantada através da competente exceção, sendo descabida
a sua oferta como preliminar de contestação. Assim, asua arguição
em sede de apelaçãofoi atingida pela preclusão, não prosperando a

de exceção. Portanto, adota-se o conceito de princípio do juiz natural, ensinado por Ada Pellegrini
Grinover e outros, em Teoria Geral do Processo,p. 140. Os autores airmam: “E o princípio do Juiz
natural, relacionado com o anterior, assegurando que ninguém pode ser privado do julgamento
por juiz independente e imparcial, indicado pelas normas constitucionais e legais. A Constituição
proíbe os chamados tribunais de exceção, instituídos para o julgamento de determinadas pessoas
ou de crimes de determinada natureza, sem previsão constitucional ( art. 5º, inc. XXXVII)”.

242
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

alegaçãode cerceamento de defesa. REJEITADAS AS PRELIMINARES,


NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.39.

O Estatuto do Idoso, Lei n.10.741/03 prevê para a hipótese de


ações reguladas pelo art. 79 da referida lei, ações que se referem a di-
reitos decorrentes da condição de idoso, uma competência absoluta, ou
seja, o domicílio do idoso. Neste caso, ica evidente o critério da pessoa
que está na condição de idosa. O legislador ressalvou, na referida legis-
lação, os casos que são da competência da Justiça Federal ou da compe-
tência originária dos tribunais superiores.
É interessante observar que o idoso nem sempre terá o privilé-
gio de tramitação da ação em seu domicílio. Isto ocorrerá, apenas, nas
hipóteses descritas no Estatuto do Idoso. Portanto, existem várias juris-
prudências negando ao idoso tal privilégio, como ocorre no caso abaixo
transcrito.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL.
FAMÍLIA. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. AÇÃO REVISIONAL
DE ALIMENTOS.
O fato de o alimentante ser uma pessoa idosa, por se tratar de ação de
alimentos, não se enquadra nas hipóteses em que o foro competente
para apreciar a demanda é o seu domicílio, uma vez que a regra só é
aplicada quando se tratar de causas que visam à proteção judicial dos
interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos,
nos termos do art. 80 do Estatuto do Idoso. Negado seguimento40

Uma última situação que se pretende abordar é aquela em que o en-


quadramento de competência absoluta ou relativa é feito exclusivamente
pela jurisprudência e nem sempre de forma técnica. Trata-se da hipótese
em que as ações são propostas sem seguir qualquer regra de competência
estabelecida pelo legislador, como em acordão anteriormente analisado.
Não há o enquadramento segundo o domicílio do réu, do autor, do local
do cumprimento da obrigação, local do ato ou do fato etc.
Nos casos acima descritos, o que se percebe é que, para permitir
que o juiz reconhecesse a incompetência e declinasse de ofício, a juris-

39 Rio GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70013455076, Rel. Décima quinta Câmara Cível.
Tribunal de Justiça do RS, Rel. Vicente Barroco de Vasconcellos, Julgado em 15/03/2006.
40 RIO GRANDE DO SUL.Agravo de Instrumento Nº 70057490393, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schiino Robles Ribeiro, Julgado em 14/11/2013.

243
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

prudência começou a admitir, também neste caso, além da hipótese do


código de defesa do consumidor, que a incompetência territorial pode-
ria ser absoluta. O objetivo de tais casos, no entanto, é não permitir que
a parte, por sua deliberação, escolha onde a ação deverá tramitar. Se não
houvesse essa preocupação, poderia ocorrer uma sobrecarga de traba-
lho para determinados órgãos jurisdicionais ou a parte poderia escolher
onde as decisões são mais favoráveis aos seus interesses.
Veriica-se pela jurisprudência que, por interesse nas decisões to-
madas no Rio Grande do Sul, algumas pessoas de outros Estados come-
çaram a ingressar com ações aqui. Se não fosse tomada uma providên-
cia, ou seja, se não houvesse um posicionamento do judiciário gaúcho,
a solução de tal problema dependeria exclusivamente do réu, que icaria
com a incumbência de excepcionar a competência e, quando ele não o
izesse, haveria a prorrogação da mesma.
Acontece que, nesse caso, não se trata de interesse só da parte,
pois poderia haver sobrecarga no Judiciário do Rio Grande do Sul.
Diante da tal situação, o Tribunal começou a decidir no sentido de que a
competência territorial, neste caso, era absoluta e que, portanto, poderia
ser declinada de ofício.
Entende-se, porém, que a presente hipótese não trata de compe-
tência territorial, em que pese a discussão ser aparente só do foro com-
petente. Em razão do interesse público prevalente a questão deixa de ser
simplesmente territorial para ser funcional. A não tomada de posiciona-
mento, por parte do Judiciário, poderia trazer sérios prejuízos. Por essa
razão, o que se visa proteger é o melhor funcionamento do Judiciário, e
aí aparece claramente o critério funcional. Portanto, não há que se falar
em incompetência territorial absoluta neste caso. Mais uma vez, apesar
de a discussão ser quanto ao local onde a ação tramitará, ocorre a intro-
missão de outro critério, que é absoluto e que deve prevalecer frente ao
relativo. Vejamos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO
REVISIONAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL.
Ação proposta por consumidor domiciliado em outro Estado da
Federação. Ausência de justiicativa. Afronta ao objetivo criado pela
legislação consumerista, bem como às regras sobre competência
territorial trazidas pelo art. 100, inciso IV, alíneas ‘b’ e ‘d’ do

244
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

CPC. Possibilidade do reconhecimento, de forma excepcional, da


incompetência relativa de ofício.
RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO MONOCRÁTICA.41

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO


REVISIONAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. DECRETAÇÃO EX
OFFICIO. POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO.
Ação proposta por consumidor domiciliado em outro Estado da
Federação. Ausência de justiicativa. Afronta ao objetivo criado pela
legislação consumerista, bem como às regras sobre competência
territorial trazidas pelo art. 100, inciso IV, alíneas ‘b’ e ‘d’ do
CPC. Possibilidade do reconhecimento, de forma excepcional, da
incompetência relativa de ofício.
RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO MONOCRÁTICA.42

Um caso similar e que envolve o mesmo tipo de conclusão ocorre


quando o advogado da parte da autora ingressa com a ação, também não
observando qualquer regra de competência. Vejamos a jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO.
AÇÃO MONITÓRIA. EXTINÇÃO DO FEITO COM BASE
NO ARTIGO 267, IV, DO CPC, COM FUNDAMENTO NA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL. AJUIZAMENTO DA AÇÃO NO
FORO DO ESCRITÓRIO DO REPRESENTANTE DO CREDOR.
No caso concreto, ainda que se trate de competência relativa, poder-
se-ia admitir a declinação de ofício, já que o credor é domiciliado no
Município de Taquara e o emitente no Município de São Jerônimo, mas
o ajuizamento da presente ação ocorreu no Município de Santo Antônio
da Patrulha, onde está sediado o escritório do patrono do primeiro.
A extinção do feito não se encontra dentre as hipóteses que teria o
juízo ‘a quo’ para dirimir, questão acerca da competência relativa e da
possibilidade de o advogado escolher o foro de acordo com as suas
conveniências, já que o foro do escritório proissional não coincide com
o foro do domicílio do credor, tampouco com o foro do domicílio do
emitente, quais sejam: declinação ou prorrogação da competência, com

41 RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº


70059677294, 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 07/05/14.
42 RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento
nº70059558940, 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 30/04/14.

245
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

o que deve a sentença ora atacada ser desconstituída por fundamento


diverso daquele invocado pelo apelante.
APELO PROVIDO. UNÂNIME43

Aliás, sobre o tema, uma contribuição interessante é a de Luiz


Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, que ensinam:
Os critérios que determinam a distribuição de competência no Estado
Constitucional obedecem ao interesse público primário da boa
organização do Poder Judiciário. Mesmo quando o critério determinante
é o critério territorial, o que interessa é a facilitação do acesso à justiça,
questão tranquilamente reconduzível ao interesse público primário da
boa organização da Justiça civil.44

Veriica-se, assim, que nos dois exemplos citados, o critério não é


de competência territorial, mas sim funcional. Interessa ao Judiciário a
distribuição de trabalho, e não se pode deixar essa escolha para a parte.
Isso poderia trazer um enorme prejuízo para a prestação jurisdicional,
que já está tão demorada. O critério territorial, portanto, conduz a uma
incompetência relativa, mas, em situações diversas, os critérios se mis-
turam na determinação da competência, sendo esse o motivo do enqua-
dramento tecnicamente inadequado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os critérios de ixação de competência são estabelecidos em ra-
zão da matéria, do valor, da pessoa, da função jurisdicional e do terri-
tório. Cada um deles estabelece competência em determinada situação
e para determinado tipo de Justiça, foro ou juízo; entretanto, muito fre-
quentemente, os critérios se misturam e estabelecem diiculdade em sua
identiicação.
Quando o critério é a matéria, ele identiica a competência de
Justiça, de varas especializadas, de Tribunais nas ações de competência
originária e a competência exclusiva do juiz de direito.

43 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº
70037652005, 17ª Câmara Cível. Relatora Desª Liége Puricelli Pires, j. 24/03/11.
44 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: Críticas e Propostas,
p. 33-34.

246
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

O critério da pessoa, por outro lado, determina a competência


da Justiça Federal, da Vara da Fazenda Pública e de outras varas espe-
cializadas, como a vara de menores, por exemplo. Este critério também
pode limitar a atuação dos Juizados Especiais ou permitir a incidência
de privilégio por ser pessoa idosa.
O valor da causa será indicativo para a competência dos Juizados,
juntamente com outros critérios ou ixará a competência do pretor, que
tem sua atuação limitada a 60 salários-mínimos.
O critério funcional estabelecerá competências diversas, como
por exemplo: a atuação de mais de um juiz no mesmo processo, sendo
esses juízes pertencentes a um mesmo grau de jurisdição ou a graus dife-
rentes; a necessária atuação do mesmo juiz da causa principal em ações
incidentais; a propositura da ação que envolve direitos de propriedade,
vizinhança, posse, nunciação de obra nova, demarcação e divisão de área
e servidão, no foro do imóvel ou a prevalência de destruição de trabalho
entre o foro central e os foros regionais, conforme súmula 3 do TJ/RS.
Por im, o critério territorial identiicará o foro ou a subseção
competente. Ele pode ser geral, ou seja, o do domicílio do réu, mas
também pode ser especial, quando for determinado por outros fatores;
como, por exemplo, o local do cumprimento da obrigação, do ato ou
fato, onde a empresa tem a sua ilial, do foro do alimentando etc.
O critério de ixação de competência poderá ser absoluto ou re-
lativo. Será absoluto quando a competência for ixada em razão do in-
teresse público, sendo que, neste caso, o juiz poderá declinar de ofício
para o juízo competente. Por outro lado, o critério será relativo quando
a competência for ixada, tendo em vista, prevalentemente, o interesse
da parte. Nesta hipótese, a incompetência deverá ser excepcionada e o
réu terá um prazo preclusivo, que é o da resposta.
Quando a competência for relativa o juiz não poderá reconhecê-
-la de ofício, segundo a súmula n. 33 do STJ, sendo necessária a atua-
ção da parte para excepcioná-la. Este é exatamente o ponto de muita
divergência em casos práticos. Muitas vezes, parece que o critério de
reconhecimento da incompetência é o territorial, mas, na realidade, a
funcionalidade do Judiciário é que foi o motivo da determinação dela
ou o tipo da pessoa que é parte na causa.
A importância da veriicação do critério de ixação de competên-
cia e o seu enquadramento como absoluto ou relativo é evidente, pois se

247
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

o critério for territorial, o juiz não deverá reconhecê-lo sem a exceção.


Existem diversos casos, no entanto, em que houve a necessidade de de-
terminação de ofício e não foi percebido, ou seja, que neles o critério não
foi o territorial, mas outros que se enquadram como critérios absolutos.
O problema acima descrito ocorre porque, em algumas situações,
há incidência de mais de um critério ao mesmo tempo e, dependendo
da situação concreta, incidirá um ou o outro. Isto ocorre nas seguintes
hipóteses:
a) Nas relações de consumo, em que se estabelece que o consumidor
pode optar por propor a ação em seu domicílio, mas há também
um interesse público na proteção dele. No primeiro caso, prevale-
cerá o interesse da parte e aí se sobressai o critério territorial, cuja
incompetência não pode ser declinada de ofício. Por outro lado, o
interesse público identiica o critério da pessoa do consumidor, fa-
zendo com que o juiz possa reconhecê-lo de ofício imediatamente.
O enquadramento, no caso prático de incompetência absoluta ou
relativa, será sempre no sentido de beneiciar o consumidor;
b) Nas ações que envolvem alguns direitos reais imobiliários, como,
por exemplo, a propriedade. Neste caso, a competência que se pro-
cura estabelecer é a do foro onde a ação será proposta; porém, o cri-
tério que a determinará será o funcional, em razão da busca por um
melhor desempenho da função jurisdicional, como, por exemplo,
a possibilidade de o juiz fazer uma veriicação in loco ou a maior
facilidade produção de provas;
c) Nas ações previstas no Estatuto do Idoso, em que o critério deter-
minante é o da pessoa idosa, embora também seja utilizado o cri-
tério da matéria.
d) Por im, nas ações que são propostas em foros sem observância de
qualquer regra de competência, como aquelas em que o advogado
propõe a ação no local em que tem o seu escritório ou ações que
são propostas em determinados foros, apenas por uma questão de
conveniência, em razão de julgamentos mais favoráveis.
Nestes dois últimos casos, ica evidente inadequada fundamenta-
ção da jurisprudência em fazer referência a um critério territorial abso-
luto. Na realidade, quando o juiz diz que está excepcionando a regra de
não poder declinar de ofício, em razão da súmula 33 do STJ, na verdade
ele está fazendo incidir o critério funcional. Isto ocorre porque, se não
fosse tomada uma providência, haveria a sobrecarga desmotivada de al-
guns setores do judiciário por manobra do próprio advogado do autor.

248
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

Sendo assim, o que pretende proteger é um melhor funcionamento do


judiciário.
Entende-se, portanto, que o critério territorial é sempre relativo,
mas que, em muitos casos, para ixar a competência de foro, haverá a
incidência de critérios absolutos como o funcional ou o da pessoa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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249
MARIA LúCIA BAPTISTA MORAIS

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Contemporâneo: Teoria Geral do Processo. 4.ed. São Paulo: Saraiva,
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SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: Processo de
conhecimento. v.1, 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
JURISPRUDÊNCIA:
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Agravo Interno nº 70058556770, 7ª Câmara Cível, Relator: Sérgio
Fernando Vasconcellos Chaves, j. 26/03/14.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Agravo nª 70040910747, Quinta Câmara Cível, Relator: Jorge Luiz
Lopes do Canto. J. 30/05/11.

250
8 • CRITÉRIOS DE FIXAçãO DE COMPETÊNCIA E A QUESTãO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.


Apelação Cível Nº 70030462915, Décima Quarta Câmara Cível, Relator:
Dorval Bráulio Marques, Julgado em 11/11/2009.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Agravo de Instrumento nº 70059760983, 6ª Câmara Cível. Relator: Des.
Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/14.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Agravo de Instrumento Nº 70057490393, Sétima Câmara Cível. Relatora:
Liselena Schiino Robles Ribeiro, Julgado em 14/11/2013.
RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Agravo de Instrumento nº 70059677294, 14ª Câmara Cível. Relatora:
Judith dos Santos Mottect. J. 07/05/14.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Agravo de Instrumento nº70059558940, 14ª Câmara Cível. Relatora:
Judith dos Santos Mottect. J. 30/04/14.
RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Apelação Cível nº 70037652005, 17ª Câmara Cível. Relatora Desª Liége
Puricelli Pires, j. 24/03/11.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Conlito de Competência nº 70059923334. Décima Sétima Câmara
Cível. Relator: Des. Gelson Rolim Stocker, julgado em 21/05/14.
RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº 70013455076, Rel. Décima
quinta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Rel. Vicente Barroco de
Vasconcellos, Julgado em 15/03/2006.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 978725 - MG
(2007/0190019-8)RELATOR : Min. Luiz Felipe Salomão, publicação
09/06/11.

251
9

TUTELA DE URGÊNCIA

Jaqueline Mielke Silva1

SUMÁRIO: 9.1. Tutela Cautelar - 9.1.2. A adoção da concepção


de tutela cautelar de Piero Calamandrei pelo legislador em 1973
- 9.1.3. Classiicações das medidas cautelares segundo Piero
Calamandrei - 9.1.4. As ações cautelares inominadas - 9.1.4.1.
Distinção entre ações cautelares e medidas cautelares - 9.1.4.2.
Autonomia e dependência da ação cautelar - 9.1.4.3. O poder
geral de cautela - 9.1.4.4. Mérito cautelar - 9.1.4.5. Competência
para o ajuizamento de ações cautelares - 9.1.4.6. Competência
internacional e medidas cautelares - 9.1.4.7. Requisitos da
petição inicial - 9.1.4.8. Liminar cautelar - 9.1.4.9. Caução
contracautela e substitutiva - 9.1.4.10. Citação e resposta do réu
- 9.1.4.11. Ação declaratória incidental e Reconvenção - 9.1.4.12.
Contestação - 9.1.4.13. Intervenção de terceiros e litisconsórcio
- 9.1.4.14. Natureza da sentença que julga o processo cautelar
- 9.1.4.15. Coisa julgada e sentença cautelar - 9.1.4.16. Ação
principal - 9.1.4.17. Cessação da eicácia da medida cautelar
- 9.1.4.18. Responsabilidade civil pela concessão de medidas

1 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Especialista em Direito
Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Curso
de Pós-graduação stricto sensu da Faculdade IMED e da Faculdade INEDI - CESUCA e de outras
instituições de ensino superior. Professora na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do
Sul – AJURIS, Escola Superior da Magistratura Federal – ESMAFE, Fundação Escola Superior do
Ministério Público – FMP, Escola Superior da Magistratura do Trabalho – FEMARGS. Advogada.
E-mail: jaquelinesilva@cesuca.edu.br

253
JAQUELINE MIELKE SILVA

cautelares - 9.2. A tutela antecipada genérica prevista no artigo


273 - 9.2.1. Natureza da decisão que antecipa a tutela - 9.2.2.
Requerimento e concessão do provimento antecipatório -
9.2.3. Momento para o deferimento/indeferimento da tutela
antecipada - 9.2.4. Requisitos necessários à concessão da tutela
antecipada - 9.2.5. Tutela antecipada concedida a partir do
propósito manifestamente procrastinatório do réu - 9.2.6. Efeitos
passíveis de serem antecipados - 9.2.7. A responsabilidade civil
decorrente da concessão de liminares antecipatórias e cautelares
- 9.2.8. Revogação/modiicação da tutela antecipada.

9.1. Tutela Cautelar


9.1.1 Principais características da tutela cautelar de acordo com o
Código de Processo Civil (na concepção de Piero Calamandrei): instru-
mentalidade, provisoriedade e periculum in mora2
A instrumentalidade do procedimento cautelar signiica que o
mesmo tem por função proteger o processo principal. Os procedimen-
tos cautelares não são nunca ins em si próprios, mas são infalivelmente
predispostos à emanação de um ulterior procedimento deinitivo, do
qual estes preventivamente asseguram o proveito prático. Segundo Pie-
ro Calamandrei3, os procedimentos cautelares “nascem, por assim dizer,
a serviço de um procedimento deinitivo, com a função de predispor o
terreno e de preparar os meios mais adequados para o seu êxito”.
Há, portanto, nos procedimentos cautelares, mais do que o obje-
tivo de aplicar o direito. Existe a inalidade imediata de assegurar a eicá-
cia do procedimento deinitivo que servirá, por sua vez, para o exercício
do direito. A tutela cautelar é, em comparação ao direito substancial,

2 Neste sentido, o entendimento de José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela Cautelar
e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo:
Malheiros Editores, 1998, p. 34), verbis: “As características fundamentais dessa modalidade de tutela
são a instrumentalidade, a provisoriedade e a sumariedade. Guarda com a tutela inal relação de
subordinação instrumental, pois visa a preservar sua efetividade, pelo que carece de autonomia. Por
isso é provisória ou interina, ou seja, deixa de existir se o direito, para cuja proteção foi admitida, não
for reconhecido ainal, no provimento deinitivo. Tendo em vista a urgência que lhe é inerente, a tutela
cautelar se caracteriza pela sumariedade da cognição”.
3 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 41

254
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

uma tutela mediata: mais do que fazer justiça, serve para garantir o ei-
caz funcionamento da justiça4.
A partir do exposto, conclui Piero Calamandrei, no sentido de que
[...] se todos os procedimentos jurisdicionais são um instrumento de
direito substancial que, através destes, se cumpre, nos procedimentos
cautelares veriica-se uma instrumentalidade qualiicada, ou seja,
elevada, por assim dizer, ao quadrado: estes são de fato, infalivelmente,
um meio predisposto para o melhor resultado do procedimento
deinitivo, que por sua vez é um meio para a aplicação do direito;
são portanto, em relação à inalidade última da função jurisdicional,
instrumentos do instrumento5.

Assim, a nota peculiar da instrumentalidade do processo cautelar


reside no aspecto de que ele é um instrumento de outro instrumento, ou
seja, o processo cautelar tem por escopo salvaguardar a eicácia e o re-
sultado profícuo do processo principal, ou, nas palavras de J.J. Calmon
de Passos6, “o processo cautelar é processo a serviço do processo, não
processo a serviço do direito material”.
Daí acentuar Donaldo Armelin7 quando salienta que “o processo
cautelar tem uma dependência genética em relação a um outro proces-
so, simultâneo ou sucessivo, seja ele cognitivo, seja ele de execução”.
Segundo Piero Calamandrei, uma das características marcantes
dos procedimentos cautelares é a provisoriedade. Segundo ele,
[...] a opinião mais difundida, da qual partilham os nossos processualistas
mais importantes, é aquela que vê um caráter constante ou ainda um

4 Ibid.,p. 42
5 Neste sentido, o entendimento de José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela Cautelar
e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo:
Malheiros Editores, 1998, p. 33), verbis: “Autonomia da função cautelar, como categoria diversa
daquelas exercidas pelo juiz, foi identiicada por Chiovenda, que, juntamente com Calamandrei, foi
dos que mais contribuíram para o desenvolvimento das ideias a respeito dessa modalidade de tutela
jurisdicional. Foi deles a primeira tentativa de ampliar a ideia de tutela cautelar, até então restrita às
hipóteses de seqüestro, para outras situações, concluindo pela necessidade de conceber essa tutela de
forma genérica, com o objetivo de garantir o resultado útil do processo. Encontra-se aí, portanto, o
germe do poder geral de cautela”.
6 In: Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, Vol. X,
Tomo I, p. 46.
7 In: Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. Col. de Estudos de Direito de
Processo Enrico Tullio Liebman. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 78.

255
JAQUELINE MIELKE SILVA

caráter diferencial dos procedimentos cautelares na sua provisoriedade,


ou seja, na limitação da duração dos efeitos (declarativos ou executivos)
próprios desses procedimentos.8

De acordo com esta concepção, os procedimentos cautelares se


diferenciam de todos os outros procedimentos jurisdicionais não pela
qualidade de seus efeitos, mas por uma certa limitação no tempo dos
efeitos em si9.
O doutrinador italiano adverte para a distinção entre provisorie-
dade e temporariedade, airmando ser o primeiro termo mais restrito
do que o segundo.
Assim, a qualiicação de provisório dada aos procedimentos cau-
telares signiica, em última análise, que os seus efeitos jurídicos não só
têm duração temporânea, mas têm duração limitada àquele período de
tempo que deverá transcorrer entre o emanar do procedimento cautelar
e a promulgação de outro procedimento jurisdicional; que, na termino-
logia comum, vem indicado, em contraposição à denominação cautelar
dada ao primeiro, com a denominação deinitivo. A provisoriedade dos
procedimentos cautelares seria, portanto, um aspecto e uma consequên-
cia de uma relação que transcorre entre os efeitos do procedimento an-
tecedente (cautelar) e aqueles do procedimento subsequente (deiniti-
vo), que assinalaria o início da cessação dos efeitos do primeiro10.
A concepção de provisório para Piero Calamandrei11 tem incluí-
da em seu interior a ideia de substituição e, por via de consequência, de
antecipação12.

8 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares. Tradução da edição


italiana de 1936 por Carla Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000, p. 25.
9 Segundo o entendimento de José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela Cautelar e Tutela
Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros
Editores, 1998, p. 42), verbis: “Fala-se em provisoriedade no sentido de que os provimentos cautelares
não são idôneos a regulamentar deinitivamente a relação de direito material controvertida. Destinam-
se a produzir efeitos pelo tempo necessário à prolação do provimento inal. Por isso, não possuem
autonomia; mantêm-se sempre ligados à tutela deinitiva, que depende de cognição exauriente”.
10 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 27
11 Ibid.,p. 32
12 Segundo Piero CALAMANDREI, “depois de ter isolado a substância do procedimento cautelar
como antecipação provisória de certos efeitos do procedimento deinitivo, dirigida a prevenir o dano
que poderia derivar do atraso deste, [...]” (In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos
Cautelares, p. 42 –3).

256
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

A partir do momento em que o provisório foi substituído por


algo deinitivo é porque houve antecipação. Logo, a satisfação será ina-
fastável.
O procedimento cautelar tem efeitos provisórios não porque (ou
não necessariamente porque) o conhecimento no qual se baseia seja
menos pleno que aquele ordinário, e deva, portanto, ser equilibrado por
uma menor estabilidade de seus efeitos; mas porque a relação que o pro-
cedimento cautelar constitui é por sua natureza destinada a esgotar-se,
quando o seu objetivo terá sido inalmente alcançado no momento em
que for emanado um procedimento sobre o mérito da controvérsia13.
Diante do exposto, observa-se que mesmo entendendo que a
provisoriedade tem atrelada a ideia de antecipação, ainda assim Piero
Calamandrei airma a provisoriedade dos procedimentos cautelares.
Partindo desta concepção, o autor reconhece a existência de cautelares
satisfativas.
O periculum in mora,14 que é a base das medidas cautelares para
Piero Calamandrei15, não se caracteriza como o genérico perigo de dano
jurídico, ao qual se pode remediar com a tutela ordinária16. Trata-se,
especiicamente, do perigo daquele ulterior dano marginal, que poderia
derivar do atraso, tido como inevitável em razão da lentidão do pro-
cedimento ordinário, do procedimento deinitivo. Segundo Piero Ca-
lamandrei17,

13 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 33


14 Andrea Proto PISANI (In: Per l´utilizzazione della tutela cautelare anche in funzione di
economia processuale, Il foro italiano, 1998, V. p. 8), citado por Alberto José Lafuente TORRALBA
(Ob. cit., p. 80), “entendió que las medidas cautelares podían asumir no solo la función de garantizar
la efectividad de la tutela jurisdicional, sino también una función de economia procesal, evitando que
la adopción de la medida debiera acompañar, siempre y necesariamente – sob pena de ineicácia -, un
proceso de cognición plena”.
15 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 37
16 Ao tratar do tema, refere José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela Cautelar e Tutela
Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros
Editores, 1998, p. 42): “Importante destacar que o periculum in mora, que a tutela cautelar visa
a afastar, pode ser considerado em duas situações distintas. Na primeira veriica-se o perigo de a
execução se frustrar, ante a ameaça concreta causada por determinado acontecimento, que poderá
tornar-se realidade antes de proferida a sentença. Outras vezes, o tempo necessário ao desenvolvimento
do processo, por si só, representa perigo de dano ao titular do suposto direito”.
17 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 37

257
JAQUELINE MIELKE SILVA

[...] é a impossibilidade prática de acelerar a prolação do procedimento


deinitivo que faz surgir o interesse na emanação de uma medida
provisória; é a mora desse procedimento deinitivo, considerada em
si mesmo como possível causa de ulterior dano, que se provê a tornar
preventivamente inócua com uma medida cautelar que antecipe
provisoriamente os efeitos do procedimento deinitivo.

A função dos procedimentos cautelares nasce, portanto, da rela-


ção que se passa entre dois fatores: a necessidade de que o procedimen-
to, para ser praticamente eicaz, seja proferido sem atraso e a inaptidão
do processo ordinário para criar sem atraso um procedimento dei-
nitivo18. É esse um daqueles casos em que a necessidade de ser breve
debate-se contra a necessidade de fazer bem feito: a im de que o pro-
cedimento deinitivo nasça com maiores garantias de justiça, este deve
ser precedido do regular e ponderado desenvolvimento de toda uma
série de atividades, ao cumprimento das quais é necessário, muitas ve-
zes, um período não breve de espera; mas essa mora indispensável ao
cumprimento do ordinário interprocessual ameaça tornar praticamente
ineicaz o procedimento deinitivo, o qual parece destinado, por amor à
perfeição, a alcançar muito tarde, como a medicina longamente elabo-
rada para um doente já morto19.

9.1.2. A adoção da concepção de tutela cautelar de Piero


Calamandrei pelo legislador em 1973
O legislador inexoravelmente adotou a concepção de tutela cau-
telar de Piero Calamandrei no Livro III do Código de Processo Civil
(DO PROCESSO CAUTELAR). Diversos dispositivos legais reletem a
adoção deste modelo (arts. 796, 806, 807 e 808, inc. III do CPC).
Os dispositivos legais supratranscritos trazem no seu bojo a ideia
de instrumentalidade e provisoriedade dos procedimentos cautelares.

18 Mais recentemente RICCI (In: Rivista di Diritto Processuale, jan.mar.003, p. 215), assinalou
que tutela efetiva hoje, quer dizer tutela rápida. Segundo o autor, “o tempo razoável é mencionado
também no art. 111 da Constituição como imperativo dirigido a evitar a demora do procedimento.
Como princípio interno do processo a regra da duração do mesmo dentro de um prazo razoável tem
como parâmetro o tipo de resultado que se quer obter; e, quando para obter um certo resultado parece
necessário o emprego de um tempo excessivamente amplo, a tutela jurisdicional garantida pelo art.
24 da Constituição requer que se explore também a possibilidade de melhores resultados, se estes são
úteis e é possível obtê-los com maior celeridade”.
19 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 38-39.

258
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Como a função dos procedimentos cautelares é a de proteger o processo


principal, eles sempre serão dependentes dos mesmos (art. 796). Por ou-
tro lado, se são provisórios, terão eicácia apenas no curso do processo
principal (art. 807). Tão logo o processo principal seja extinto, cessará a
eicácia da medida cautelar (art. 808, inciso III).

9.1.3. Classiicações das medidas cautelares segundo


Piero Calamandrei
Segundo Piero Calamandrei20, as medidas destinadas a assegurar
a efetividade do processo podem representar21:
a) provimentos instrutórios antecipados: normalmente são proferi-
dos no bojo do processo de cognição, no momento procedimental
próprio para a produção da prova. Se, todavia, houver risco para o
resultado dessa atividade, é possível antecipar o respectivo provi-
mento, pela via da tutela cautelar, aqui destinada à conservação da
prova;
b) provimentos destinados a assegurar a efetividade da execução, obs-
tando o desvio de bens sobre os quais poderão recair os atos exe-
cutórios;
c) provimentos interinos, que antecipam provisoriamente a senten-
ça de mérito, com o objetivo de evitar danos irreparáveis a uma
das partes. A relação de instrumentalidade, aqui, é diversa daquela
identiicada nos provimentos anteriores, que se limitam a assegu-
rar meios para a emissão do provimento cognitivo ou executivo. A
tutela cautelar concedida mediante provimento interino de mérito
constitui antecipação do provável resultado deinitivo, inerente ao
provimento principal.
Essa modalidade de cautelar se assemelha muito aos provimen-
tos de cognição sumária, deles se afastando pelo caráter provisório do
provimento, que jamais se torna deinitivo, pois está instrumentalmente
ligado à tutela principal. Esta constituirá na única regulamentação da
relação substancial litigiosa. Não conigura mera ratiicação do provi-
mento cautelar, que é substituído e deixa de existir.

20 In: Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari. Opere giuridiche. V.
IX. Napoli, Morano Editore, p. 141
21 Sobre o tema, vide: José Roberto dos Santos BEDAQUE. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada:
Tutelas sumárias e de urgências (tentativa de sistematização). São Paulo: Editora Malheiros, p. 151.

259
JAQUELINE MIELKE SILVA

d) provimentos judiciais determinando prestação de caução, para


garantir eventual prejuízo àquele contra quem foi proferida tutela
cautelar ou de outra natureza mas não deinitiva.
A construção de Piero Calamandrei serviu de base para a classii-
cação elaborada por Galeno Lacerda22 à luz do sistema brasileiro, verbis:
1) Classiicação das cautelas segundo a inalidade:
a) segurança quanto à prova (cognição) – ex: asseguração de provas,
exibição, justiicação;
b) segurança quanto aos bens (execução) – ex: arresto, sequestro, cau-
ção e também as medidas inominadas;
c) segurança mediante antecipação provisória da prestação jurisdicio-
nal23 – ex: alimentos, guarda de ilhos, de incapazes, outras medidas
do direito de família e grande parte das cautelas inominadas.
2) Classiicação segundo a posição processual e o caráter da
medida:
a) antecedentes – preventivo;
b) incidentes;
b.1) preventivo;
b.2) repressivo (atentado24, falsidade de documentos, prisão).25
3) Classiicação segundo a natureza da tutela cautelar:
a) Jurisdicional;26

22 In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 12


23 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA não considera os provimentos antecipatórios cautelares,
por serem os mesmos satisfativos (vide item 1.3, Capítulo I, Parte 1).
24 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA não considera o atentado como uma verdadeira cautelar
(Vide item 8.2, Capítulo I, Parte 3)
25 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA refere ainda uma terceira categoria de medidas cautelares,
por ele denominadas de autônomas (vide item 1.3.1., Capítulo I, Parte 1).
26 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Ob. cit., p. 27) não aceita a classiicação de medidas
cautelares jurisdicionais e administrativas, por divergir da concepção de jurisdição de Francesco
CARNELUTTI, verbis: “(...) cremos que as notas essenciais, capazes de determinar a jurisdicionalidade
de um ato ou de uma atividade realizada pelo juiz, devem atender a dois pressupostos básicos: a) o ato
jurisdicional é praticado pela autoridade estatal, no caso pelo juiz, que realiza por dever de função; o
juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, pratica essa atividade como inalidade especíica de seu agir, ao
passo que o administrador deve desenvolver a atividade especíica de sua função tendo a lei por limite
de sua ação, cujo objetivo não é simplesmente a aplicação da lei ao caso concreto, mas a realização
do bem comum, segundo o direito objetivo; b) o outro componente essencial do ato jurisdicional é a
condição de terceiro imparcial em que se encontra o juiz em relação ao interesse sobre o qual recai
sua atividade. Ao realizar o ato jurisdicional, o juiz mantém-se numa posição de independência e
estraneidade relativamente ao interesse que tutela. Como observa Micheli (‘Per uma revisione della

260
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

a.1) ação-lide sentença- exemplo: arresto, sequestro, caução, busca e


apreensão, exibição, alimentos, atentado, cautelar inominadas (em
regra);
b) Administrativa;
b.1) voluntária – pedido – sem lide ou fora da lide – homologação – ex:
produção antecipada da prova, justiicação, protestos, notiicações
e interpelações, homologação do penhor legal (em regra), posse em
nome do nascituro etc.;
b.2) decreto de ofício pelo juiz – exemplo: reserva de bens em inven-
tários (art. 1000, parágrafo único); suspensão do processo ou da
execução (arts. 266 e 793), etc.

9.1.4. As ações cautelares inominadas

9.1.4.1. Distinção entre ações cautelares e medidas


cautelares
As ações cautelares são dotadas de autonomia procedimental,
possuindo um regramento próprio, contemplado no Livro III do Có-
digo de Processo Civil. As medidas cautelares, previstas no art. 79727,
por sua vez, não possuem autonomia de procedimento, sendo deferi-
das incidentalmente no curso de outros processos. As medidas previs-
tas no art. 797 jamais poderão ser preparatórias ou antecedentes, sendo
invariavelmente incidentes. Tratam-se de medidas do processo em que
ocorrem, no sentido de não integrarem uma lide cautelar especial, como
acontece com as verdadeiras ações cautelares.

nozione di giurisdizione volontaria’, RDP, 1947, V. 1, p. 31; agora em Estúdios de derecho procesal
civil, v. 4, p. 18), não é tanto o caráter de substitutividade, como airmava Chiovenda, que deine a
jurisdição, mas seu caráter de imparcialidade. A norma a aplicar é, para a administração pública, a
regra que deve ser seguida para que uma certa inalidade seja alcançada; a mesma norma é, para o
órgão jurisdicional, o objeto de sua atividade institucional, no sentido de que a função jurisdicional
se exercita como o único im de assegurar o respeito ao direito objetivo. O juiz, por conseguinte, é
portador de um interesse público na observância da lei’ (MICHELI, Curso de derecho procesal civil,
v. 1, p. 7), enquanto o administrador, cumpre e realiza o direito objetivo, tem posição similar à de
qualquer particular”.
27 Segundo Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 83), “a cautela legal de ofício, do art. 797, constitui providência de natureza
administrativa, emanada de autêntico poder de polícia do juiz, no resguardo de bens e pessoas
coniados por lei à sua autoridade”.

261
JAQUELINE MIELKE SILVA

Se por um lado, as ações cautelares não podem ser desencadea-


das ex oicio, em razão do princípio da inércia (art. 2° do Código de
Processo Civil), por outro, as medidas cautelares podem ser deferidas
ex oicio, diante da expressa previsão do art. 797 do Código de Processo
Civil, desde que estejam previstas na legislação. Essas normas obrigam
o juiz a reservar quinhão e bens suicientes para assegurar a efetividade
da tutela do direito do herdeiro excluído e do credor. A caracterização
dos pressupostos legais (não acolhimento do pedido e não concordância
de todas as partes, aliada a documento que comprove suicientemente
a obrigação e impugnação não fundada em quitação) é suiciente para
obrigar o juiz a conceder a tutela cautelar.
Entendemos que o atrelamento da concessão das medidas caute-
lares à previsão legislativa apenas conirma a inluência do paradigma
racionalista em nosso sistema, em que a atividade jurisdicional se re-
sume a mera aplicação de dispositivos legais. Sem dúvida, seria muito
estranho que o legislador impusesse ao juiz essa restrição genérica de só
poder defender a jurisdição se a medida indicada para essa defesa esti-
vesse expressamente prevista em lei. Haveria, sem dúvida, maior coerên-
cia doutrinária se as medidas de polícia judiciária pudessem ser sempre
decretadas pelo juiz, independentemente de prévia permissão legal28.

9.1.4.2. Autonomia e dependência da ação cautelar


A autonomia cautelar, prevista no art. 796 do Código de Proces-
so Civil, signiica apenas autonomia de procedimento. Já a dependência,
nos termos do mesmo diploma legal, signiica que o processo cautelar
depende do processo principal, justamente porque o protege, tendo fun-
ção meramente instrumental29. Trata-se de uma conclusão bastante sim-
ples, se partirmos da ideia de que o Livro III do Código de Processo Civil
adotou a concepção de Piero Calamandrei30, no tocante à tutela cautelar.

28 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 95).
29 Neste sentido, Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil.
Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 469), verbis: “sem embargo do caráter instrumental, pois o processo
cautelar serve à realização prática de outro processo – e de sua reconhecida acessoriedade pois sempre
depende da existência ou da probabilidade de um processo principal (art. 796), é inegável a autonomia
técnica do processo cautelar. Essa autonomia decorre dos ins próprios perseguidos pelo processo
cautelar que são realizados independentemente da procedência ou não do processo principal”.
30 Ao tratar do tema, leciona Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar.
Forense: Rio de Janeiro, 1999. p. 91): “o art. 796 é rigorosamente coerente com os princípios

262
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Todavia, para Ovídio Araújo Baptista da Silva, autonomia cautelar


é muito mais do que autonomia procedimental. Para o autor, a autono-
mia cautelar também signiica a possibilidade de existir uma autêntica
cautelar – que, portanto, não é satisfativa – e que prescinde de uma ação
principal. Esta conclusão apenas pode ser alcançada partindo-se do pres-
suposto de que a função do processo cautelar não é meramente instru-
mental, mas sim de que o mesmo tem por escopo a proteção de direitos.
A partir do momento em que se concebe a tutela cautelar vinculada à
proteção de direitos e não do processo principal, pode-se desvincular o
processo cautelar de um processo principal. Como exemplo de ação cau-
telar autônoma, podemos citar as ações de asseguração de provas.
Entretanto, a autonomia cautelar poderá estar presente apenas
nas chamadas cautelares conservativas. Naquelas ações em que há a res-
trição de direitos da parte, imperiosa, se revela o ajuizamento de uma
ação principal, como forma de limitar-se no tempo eventuais prejuízos
sofridos pelo réu da ação cautelar.

9.1.4.3. O poder geral de cautela


Há dois modos de se conceber o poder geral de cautela do ma-
gistrado. Um deles, indicado por Piero Calamandrei, correspondente ao
conceito de medida cautelar como “polícia judiciária” ou como o grupo
de poderes que o juiz exerce para disciplinar a boa marcha do processo,
preservando-lhe de todos os possíveis percalços que possam prejudi-
car-lhes a função e utilidade inal de seu resultado. Tratam-se das me-
didas cautelares, tomadas pelo magistrado no curso de uma demanda
de conhecimento ou execução31. Essas medidas cautelares não teriam o
conteúdo de ação, mas de um mero incidente processual, pois, por meio
delas, o juiz não decidiria propriamente uma demanda cautelar, sendo
que daria disciplina a um incidente da lide.

consagrados pelo legislador brasileiro segundo os quais o processo cautelar tem por inalidade a
proteção da relação processual do simultâneo ou futuro ‘processo de conhecimento’, ou eventualmente
do processo de execução. Se assim é, evidentemente não se poderá jamais conceber o instrumento só,
apartado e autônomo do processo principal a que este por natureza e por destino deve servir”.
31 Neste sentido, o posicionamento de Pontes de MIRANDA (In: Comentários ao Código de
Processo Civil.Tomo VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 310), “a regra é de que as medidas
preventivas estão subordinadas ao princípio ne iudex procedat ex oicio, salvo quando a lei ou a
natureza da ação principal autorize o juiz a decretá-la sem provocação”.

263
JAQUELINE MIELKE SILVA

O outro modo de conceber o “poder cautelar geral” provém da


redação do próprio art. 798 que o indica como sede para as ações cau-
telares inominadas32, ao prescrever que: “além dos procedimentos cau-
telares especíicos”, o juiz poderia permitir procedimentos cautelares
não especíicos. Quando, pois, o legislador, no art. 798, fala de “medi-
das provisórias”, havemos de entender que se encontram inseridas nesse
conceito, além das simples medidas, sem conteúdo de ação, que o juiz
poderia tomar para acautelar o interesse das partes, no curso da relação
processual satisfativa (ou até mesmo cautelar), também as ações cautela-
res inominadas, que teriam um indispensável procedimento cautelar33.
Enquanto as “medidas provisórias”, que não têm conteúdo de
ação, são invariavelmente incidentais e jamais preparatórias, as ações
cautelares inominadas tanto podem ser incidentais quanto preparató-
rias de alguma outra demanda.
Não é demasiado referir que, deixando ao critério do juiz a de-
terminação das medidas práticas cabíveis no âmbito do poder geral de
cautela, a lei, na realidade, investe o magistrado de um poder discricio-
nário de amplíssimas dimensões.
Apreciando o tema, Galeno Lacerda34 refere que
[...] no exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar as
“medidas provisórias que julgar adequadas” para evitar o dano à parte,
provocado ou ameaçado pelo adversário, a discrição do juiz assume
proporções quase absolutas. Estamos em presença de autêntica norma
em branco, que confere ao magistrado, dentro do estado de direito, um
poder puro, idêntico ao do pretor romano, quando, no exercício do
imperium, decretava os interdicta.

Todavia, impõe-se reconhecer, desde logo, que discricionariedade


não é o mesmo que arbitrariedade, mas apenas possibilidade de escolha

32 Neste sentido, o posicionamento de Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo


Civil, p. 99), verbis: “Os arts. 798 e 799 consagram o poder cautelar geral do juiz, qualiicado na
doutrina como inominado ou atípico, exatamente porque se situa fora e além das cautelas especíicas
previstas pelo legislador. No exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar ‘as medidas
provisórias que julgar adequadas’ para evitar o dano à parte, provocado ou ameaçado pelo adversário,
a discrição do juiz assume proporções quase absolutas”.
33 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 99)
34 In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, Vol. VIII, Tomo 1, 2.
ed., p. 135-136

264
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

ou opção dentro dos limites traçados pela lei. Na verdade, a outorga de


um poder discricional resulta de um ato de coniança do legislador no
juiz; não, porém, um bilhete em branco para desvencilhá-los dos prin-
cípios e parâmetros que serviram de fundamento à própria outorga35.
A Lei n. 8.437, de 30.06.1992, introduziu importantes restrições
ao poder cautelar geral do juiz, tendo em conta, especiicamente, quan-
do este poder tiver por objeto a oneração do patrimônio público. Em
contrapartida, a Lei n. 2.770, de 04.05.1956, suprimira a concessão de
liminares nas ações e processos judiciais de qualquer natureza, que ob-
jetivem a liberação de bens, mercadorias ou coisas de procedência es-
trangeira.
Também a Lei n. 4.348, de 26.06.64, proibiu a concessão de me-
dida liminar em mandado de segurança impetrado, visando à reclas-
siicação ou à equiparação de servidores públicos, ou a concessão de
aumentos ou extensão de vantagens (art. 5º), estabelecendo, ainda, que
o recurso voluntário interposto ou o reexame necessário, em tais casos,
teria efeito suspensivo (art. 7º), de tal forma que a execução apenas é
possível após o trânsito em julgado da sentença.
Todos esses textos legais impedem que o magistrado se valha do
poder geral de cautela nas hipóteses neles contempladas.
As ações cautelares revestem-se de completa autonomia, diversa-
mente com o que ocorre nas medidas cautelares.
Além dos procedimentos cautelares especíicos, nosso Código de
Processo Civil possibilita à parte o direito de requerer medidas provisó-
rias adequadas (art. 798), exempliicando-as, mais adiante, no art. 799.
Estas normas oportunizam a chamada tutela cautelar atípica para qual-
quer situação substancial que a mesma tenha cabimento. Como o legis-
lador não poderia instituir ininitos procedimentos - quantas forem as
necessidades de tutela cautelar- e aliado à circunstância de que essas res-
pectivas necessidades variam conforme as particularidades de cada caso
concreto, não há alternativa senão deixar “uma válvula de escape para
a utilização da técnica processual adequada à situação concreta. Vale
dizer: não há alternativa senão outorgar ao juiz poder cautelar geral”36.

35 Neste sentido, Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil. 39.
ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, ANO?, p. 482. v.II).
36 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil –
Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 744)

265
JAQUELINE MIELKE SILVA

Não é demasiado referir que o conceito de tutela cautelar inomi-


nada signiica que a tutela cautelar pode ser requerida pela parte mesmo
que os seus pressupostos de concessão não estejam previstos em proce-
dimento cautelar especíico. Trata-se de tutela cautelar atípica.
O direito societário apresenta um campo vasto de aplicação do
poder cautelar geral. É legítima, por exemplo, uma decisão judicial que
suspenda a convocação de uma assembleia geral, sob alegação de irre-
gularidade do procedimento37.

9.1.4.4. Mérito cautelar


No âmbito do processo cautelar há três grandes posicionamentos
sobre o mérito cautelar, a seguir explicitados.
a) Inexistência de mérito no processo cautelar: os autores que atrelam
a concepção de jurisdição e de mérito aos juízos de certeza air-
mam que o processo cautelar não tem mérito. Neste sentido, leciona
Humberto heodoro Júnior38:

Enquanto o processo principal (de cognição ou execução) busca a


composição de uma lide, o processo cautelar contenta-se em outorgar
situação provisória de segurança para os interesses dos litigantes.

Ambos os processos giram em torno da “lide”, pressuposto inde-


clinável de toda e qualquer atuação jurisdicional. Mas enquanto a lide
e sua composição apresentam-se como objetivo máximo do processo
principal, o mesmo não se dá com o processo cautelar.
A este cabe uma função “auxiliar e subsidiária” de servir à “tutela
do processo principal”, onde será protegido o direito e eliminado o lití-
gio, na lição de Carnelutti.
Na realidade, a atividade jurisdicional cautelar dirige-se à segu-
rança e garantia do eicaz desenvolvimento e do profícuo resultado das
atividades de cognição e execução, concorrendo, dessa maneira, para o
atingimento do escopo geral da jurisdição.

37 De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 784.158/SP, Rel. Min.
César Asfor ROCHA, j. em 18.05.2006), é possível a postulação de nomeação de administrador
judicial temporário para empresa em que ocorreu quebra da afetiosocietatis mediante ação cautelar
inominada.
38 In: Curso de Direito Processual Civil, p. 465.

266
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

b) Todavia, diversos autores entendem que a concepção de jurisdição


e de mérito não está necessariamente vinculada aos juízos de cer-
teza. Consequentemente, também há mérito no processo cautelar39.
Neste sentido, apresenta-se o posicionamento de Galeno Lacerda40:

Se a doutrina reconhece, com razão, a autonomia da função cautelar


em face das funções jurisdicionais de conhecimento e de execução,
parece certo atribuir-lhe também conteúdo diverso, isto é, mérito
próprio, em virtude da inalidade especíica. Como na cautela não se
cuida da declaração do direito material (função de conhecimento), nem
de sua realização coacta (função de execução), mas da existência ou
não de necessidade de segurança em face de risco iminente, não resta
a menor dúvida de que a avaliação desta necessidade e deste risco, ou
seja, do periculum in mora, singulariza interesse legítimo em eliminá-
lo, como condição peculiar, não só da ação como de toda a função
cautelar, incluídas as providências voluntárias. Sua falta provoca juízo
de carência.
Para a procedência ação, porém, exige-se algo mais. Não basta o perigo.
Indispensável se faz que a aparência do direito socorra o postulante. O
fumus boni juris, portanto, não constitui condição da ação cautelar, mas
representa-lhe, na verdade, a própria avaliação do mérito. Se o autor
satisfaz as três condições e se sua pretensão se apresenta revestida da
aparência de direito, o pedido merece provimento. Trata-se, porém,
de juízo provisório, que não representa prejulgamento deinitivo da
demanda principal. E nisto reside, precisamente, a característica do
mérito da sentença cautelar: em ser juízo de mera verossimilhança dos
fatos. Por isso, se distingue da sentença de conhecimento, que é juízo de
realidade e de certeza.

Como se pode observar, Galeno Lacerda entende que há mérito


na ação cautelar, mas que o mérito corresponde apenas ao fumus boni
iuris. Para o autor o periculum in mora não integra o mérito por cor-
responder ao interesse de agir, que, segundo ele, é uma das condições

39 Neste sentido o entendimento de Athos Gusmão CARNEIRO, por ocasião do julgamento do


Recurso Especial n. 6.277/6.278-M, julgado em 20.08.1991, cujo acórdão foi por ele relatado, verbis:
“Sublinhou Calamandrei que o mérito da ação cautelar não é o mesmo mérito da demanda principal:
‘ma si tratta di un merito diverso da quello a cui si referisce il provvedimento principale, cioè di
un´a zione cautelar, che hacondizioni distinte e independente da quelle proprie dell´azione principale’
(Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, p 141)”’. (In: Jurisprudência
brasileira, vol. 165, p. 114).
40 In: op. cit., p. 212-3.

267
JAQUELINE MIELKE SILVA

da ação. Não é demasiado referir, que Galeno Lacerda é partidário da


teoria eclética da ação, sustentada por Enrico Tullio Liebman.
c) Ovídio Araújo Baptista da Silva41 concorda em parte com Galeno
Lacerda. Para Ovídio, tanto o fumus boni juris quanto o periculum
in mora integram o mérito cautelar. Isto se deve à concepção desse
autor a respeito das condições da ação. Para o autor, as condições
da ação se confundem com o próprio mérito da demanda. Em razão
dessa circunstância, mesmo correspondendo o periculum in mora
ao interesse de agir, entende o escritor que o mesmo também inte-
gra o mérito cautelar42.
A partir do exposto, observa-se que o mérito da ação cautelar não
se confunde com o mérito da ação principal. Consequentemente, enten-
demos não ser possível que em sede de demanda cautelar, o magistrado
se antecipe sobre o mérito da ação principal, pois correr-se-á o risco de
pré-julgamento, o que implicará em lagrante cerceamento de defesa.

9.1.4.5. Competência para o ajuizamento de ações


cautelares
O art. 800 do Código de Processo Civil, iel à doutrina de Piero
Calamandrei, atrela a competência para o ajuizamento das ações caute-
lares à ação principal. Assim, em se tratando de cautelares preparatórias,
as mesmas deverão ser ajuizadas no foro competente para processar e
julgar eventual ação principal que será ajuizada. No caso de cautelares
incidentes, as mesmas serão ajuizadas no foro onde estiver tramitando
a ação principal.
O Código não contemplou a competência para processar e jul-
gar as chamadas ações cautelares autônomas, visualizadas por Ovídio
Araújo Baptista da Silva, em razão de ter adotado a concepção de Piero

41 In: Comentários ao Código de Processo Civil, XI, p. 198. v.V


42 Neste sentido, José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: op. cit., p. 154), verbis: “A efetiva
presença do fumus boni iuris e do periculum in mora implica concessão da tutela cautelar. Tais
requisitos, portanto, representam o mérito do processo. Constituem condições para obtenção do
provimento pleiteado, que, mais do que airmados, necessitam ser provados. Não se trata, pois, como
equivocadamente airma boa parte da doutrina, de condições da ação cautelar. O fumus boni iuris e
o periculum in mora estão relacionados com o interesse de agir. Se a descrição feita pelo requerente
da tutela cautelar revela, em tese, a necessidade e a adequação da medida pleiteada, isso signiica
que tais requisitos foram corretamente airmados na inicial. Se provados, concederá o juiz a tutela
pretendida”.

268
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Calamandrei43. É de se indagar: qual o foro competente para processá-


-las e julgá-las? Nada melhor do que recorrermos à doutrina de Ovídio
Araújo Baptista da Silva44, que alude ser este o mais grave defeito na
redação do art. 800,
[...] supor esse dispositivo que apenas existam medidas cautelares
incidentes e preparatórias. Segundo se deduz deste preceito, ou as
medidas seriam incidentes, caso em que haveriam de ser requeridas ao
juiz da causa ou seriam antecedentes e, neste caso, sempre preparatórias.
Sabe-se, porém, que as medidas cautelares, anteriores à propositura da
demanda principal, podem ser simplesmente preventivas sem qualquer
vínculo de prepatoriedade que as ligue a uma determinada demanda
satisfativa.

Segundo o autor45, nas denominadas “cautelares autônomas”, a


competência há de ser do forum rei sitae ou ainda do local onde deva ser
efetivada a medida cautelar - e não a de uma ação principal de que o re-
querente não é titular -, o que vai de encontro ao princípio da eiciência
da medida cautelar.
Por outro lado, há ainda o problema da competência para proces-
sar e julgar as cautelares na fase recursal. As seguintes hipóteses podem
ocorrer:
a) o processo está no segundo grau de jurisdição, estando pendente de
julgamento o recurso de apelação;
b) o magistrado a quo proferiu a sentença, havendo recurso de apela-
ção, ainda não remetido ao segundo grau de jurisdição;
c) o magistrado a quo proferiu sentença, mas ainda não há recurso de
apelação interposto;

43 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 141), critica esta vinculação
do Código de Processo Civil à doutrina de Piero CALAMANDREI, verbis: “o segundo dos defeitos
apontados como existentes na concepção do art. 800 está intimamente ligado às idéias de Calamandrei
e Carnelutti sobre a natureza instrumental e acessória do processo cautelar, a ponto de reduzirem o
provimento cautelar, pelo menos o último, a uma espécie de interlocutória de luxo pertencente ao
processo principal. Esta, sem dúvida, a razão principal a determinar o vínculo de dependência do
processo cautelar ao processo principal, que inspirou, aliás, o preceito no art. 796. Não se cuida, em
todo o Livro III do Código, de vincular a cautela ao direito acautelado, como seria de esperar, mas
invariavelmente, liga-se a medida cautelar e o respectivo ‘processo principal’ que, ainal, na concepção
de Calamandrei, seria o interesse a ser protegido”.
44 In: Processo Cautelar, p. 140.
45 In: Processo Cautelar, p. 143-4.

269
JAQUELINE MIELKE SILVA

d) o tribunal ad quem proferiu o respectivo acórdão, e o recorrente


interpôs Recurso Especial e/ou Recurso Extraordinário, sendo que
o mesmo pretende agregar efeito suspensivo ao(s) mesmo(s), por
meio do ajuizamento de uma ação cautelar.
Nos termos do parágrafo único do art. 800, “nos casos urgentes,
se a causa estiver no tribunal será competente o relator do recurso”. Em
razão dessa previsão legislativa, na hipótese prevista na letra ‘a’, supra,
a competência será do relator do recurso. Já, na hipótese contemplada
nas letras ‘b’ – quando o recurso interposto ainda estiver sendo proces-
sado no juízo a quo – o requerente da medida cautelar deverá instruir
o pedido com cópias dos documentos existentes nos autos, considera-
dos indispensáveis para que o relator do incidente possa contar com
os elementos que o capacitem a decidir. Neste caso, como ainda não
há relator46, compete ao Regimento Interno deinir a competência47. Na
hipótese prevista na letra ‘c’ – recurso ainda não interposto, ou no caso
de já ter se esgotado o prazo de interposição – a solução será atribuir ao
magistrado prolator da sentença uma competência residual para apre-
ciar a medida cautelar. Na última hipótese, aplicável a Súmula 635 do
Supremo Tribunal Federal, verbis: “Cabe ao Presidente do Tribunal de
origem decidir o pedido da medida cautelar em recurso extraordinário
ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”. Assim, se ainda não
houver despacho na origem a respeito da admissibilidade do recurso, a
cautelar deverá ser ajuizada junto ao Tribunal de origem (v.g. Tribunais
de Justiça, Tribunais Regionais Federais). Em contrapartida, se já hou-
ver despacho na origem sobre a admissibilidade do Recurso Especial e/
ou do Recurso Extraordinário, a cautelar deverá ser ajuizada diretamen-
te junto ao Superior Tribunal de Justiça e/ou Supremo Tribunal Federal.

46 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil
– Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 748) ao tratar do
tema, referem: “Não há dúvida que, uma vez interposto o recurso de apelação, mesmo que o processo
ainda esteja em primeiro grau de jurisdição, a medida cautelar deve ser requerida ao tribunal. Nesse
caso, como não há apelação distribuída e, portanto, relator, a medida cautelar deve ser requerida ao
tribunal para o qual a apelação deverá ser encaminhada, notadamente, ao presidente do tribunal
competente para conhecer da apelação”.
47 Segundo Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 145), nesta hipótese,
“de duas uma, ou o Regimento Interno atribui esta competência para a fase liminar ao Presidente,
ou quem o substitua na jurisdição; ou haverá de sortear-se relator para conhecer da medida cautelar
incidente, com a natural prevenção do órgão colegiado a que pertence o relator”.

270
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Conforme já mencionado, em se tratando de ação cautelar in-


cidental, o juiz da demanda em curso estará prevento para conhecer e
julgar as medidas urgentes. Em contrapartida, se a tutela cautelar é an-
tecedente, a determinação da competência se faz examinando as regras
comuns do processo de conhecimento (arts. 91 a 111 do CPC) ou de
execução (arts. 475P e 576 do CPC).
Segundo a doutrina48, ajuizada a medida cautelar, ica preventa a
competência do juiz que dela conheceu para o posterior ajuizamento da
ação principal. Todavia, nas providências, apenas procedimentalmente
cautelares ou só topologicamente cautelares, como justiicações, protes-
tos, notiicações, interpelações, vistorias e inquirições ad perpetuam rei
memoriam, não previnem a competência do juízo49.

9.1.4.6. Competência internacional e medidas cautelares


Em 16 de dezembro de 1994, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e
o Uruguai celebraram um Protocolo de Medidas Cautelares, concluído
em Outro Preto, posto em vigor no Brasil, após aprovação pelo Con-
gresso nacional, pelo Decreto n. 2.626 de 15 de junho de 1998.
O objeto do Protocolo é regulamentar entre os Estados Contra-
tantes o cumprimento de medidas cautelares ordenado por juiz ou tri-
bunal de um Estado e que deva recair sobre pessoas ou bens situados
em outro.

48 Neste sentido: Luiz ORIONE NETO (In: op. cit., p. 145); Humberto THEODORO JÚNIOR (In:
Curso de Direito Processual Civil, p. 491);
49 Neste sentido Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: op. cit., p.
782), ao tratarem da asseguração de provas, referem: “Inexiste prevenção. É conveniente, todavia,
que o juízo da asseguração de prova seja o juízo em que a prova será eventualmente produzida e
valorada, mormente se ainda pendente a asseguração de provas no momento da propositura da ação
em que a prova assegurada será eventualmente produzida. A imediatidade e a identidade física do
juiz apontam essa solução como sendo a mais conveniente. A jurisprudência é vacilante em tema
de prevenção pela ação de asseguração de prova. Alguns julgados impõem a prevenção entendendo
aplicável o art. 800, CPC (STJ, 3ª Turma, REsp 712.999/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito,
j. em 12.04.2005, DJ 13.06.2005, p. 305). Outros entendem inexistente prevenção, na medida em que
a ação de asseguração já estará possivelmente extinta no momento da propositura da ação em que
será eventualmente produzida a prova assegurada (STJ, 4ª Turma, AgRg na MC 10.565/RJ, Rel. Min.
Fernando Gonçalves, j. em 25.10.2005, DJ 14.11.2005, p. 324). Outros, ainda, entendem existente a
prevenção toda vez que há intervenção do juiz no feito para além da homologação da prova – por
exemplo, na nomeação de perito para asseguração de prova (STJ, 2ª Turma, REsp 487.630/SP, Rel.
Min. Franciulli Netto, j. em 21.08.2003, DJ 28.06.2004, p. 245)”.

271
JAQUELINE MIELKE SILVA

As medidas cautelares poderão ser solicitadas para assegurar a


eicácia de processos de natureza civil, comercial, trabalhista e em pro-
cessos que objetivem a reparação civil de dano decorrente de crime (art.
2º do Decreto n. 2.626/98).
O juiz (ou tribunal) competente para o processo principal será
o competente para o processo cautelar, e se o valor a ser resguardado
estiver em Estado estrangeiro, signatário do tratado, solicitará que ali se
efetive a medida.
A admissibilidade da medida cautelar será regulada pelas leis e
julgada pelos juízes ou tribunais do Estado requerente (art. 5º), mas o
seu cumprimento e suas contracautelas e respectivas garantias serão
processadas pelos juízes ou tribunais do Estado requerido, segundo suas
leis (art. 6º). Da mesma forma, as modiicações de cautela, sua redução,
substituição, sanções em razão de litigância de má-fé e questões de do-
mínio e outros direitos reais serão da competência dos juízes e tribunais
do Estado requerido (art. 7º).
A solicitação da medida será feita mediante exhortos (também
denominados pelo decreto cartas rogatórias – art. 18), que serão trans-
mitidos pela via diplomática ou consular, por meio da respectiva Auto-
ridade Central, ou pelas partes interessadas.
A competência para o cumprimento dos exhortos será da Justiça
Federal (art. 109, III e X da Constituição Federal); serão eles cumpridos
independentemente de homologação ou exequatur da mais alta Corte
Judiciária do estado requerido, cabendo ao juiz competente do estado
solicitado providenciar o cumprimento.
A recusa ao cumprimento do exhorto somente poderá ter por
fundamento sua absoluta improcedência, nos termos do protocolo, ou
se for o pedido manifestamente contrário à ordem pública nacional,
ocasião em que a rogatória será devolvida ao juízo rogante.
Julgado deinitivamente o processo cautelar, o valor relevante
para o processo principal protegido permanecerá no estado requerido
e a sentença proferida no processo principal somente será cumprida no
Estado requerido (para valer-se dos bens acautelados) depois de homo-
logada por seu órgão jurisdicional competente50.

50 Neste sentido, João Penio BURNIER JÚNIOR (In: op. cit., p. 73);

272
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

9.1.4.7. Requisitos da petição inicial


Os requisitos da petição inicial das ações cautelares estão con-
templados nos arts. 801 e 282, ambos do Código de Processo Civil, a
seguir elencados:
a) Autoridade judiciária a que é dirigida: este requisito se refere à com-
petência para processar e julgar a ação cautelar;
b) O nome, o estado civil, a proissão e a residência do requerente e do
requerido: a ideia Carneluttiana de uma lide única é visível no art.
801, e está implícita neste requisito quando denomina de reque-
rente e requerido os integrantes da relação processual, ao invés de
denominá-los de autor e réu.
Este requisito relete a legitimação para a demanda cautelar. A le-
gitimação natural para a demanda cautelar há de ser daquele que se diz
titular do direito ou do interesse ameaçado. A legitimação passiva deve
recair naquela que haja provocado ou seja, de alguma forma, responsá-
vel pelo “estado perigoso”.
No tocante à legitimação de terceiros, Ovídio Araújo Baptista da
Silva51 observa que:
[...] em resumo, se dermos legitimidade para o terceiro postular em
ação cautelar, como autor, defendendo direito de terceiro seu devedor,
teríamos de dar-lhe também legitimidade para a subsequente ação
satisfativa que ao titular do direito protegido pudesse caber. Não cremos
que o Código vá tão longe, em tema de legitimação extraordinária, a
ponto de haver, através do art. 6°, introduzido a ação sub-rogatória no
Direito brasileiro.

c) A lide e seu fundamento: Apenas as cautelares antecedentes ou


preparatórias devem preencher esse requisito. A ratio essendi dessa
exigência prende-se à instrumentalidade qualiicada ou hipotética
do processo cautelar, sustentada por Piero Calamandrei. De acordo
com sua concepção, como já vimos, a ação cautelar pressupõe or-
dinariamente uma ação principal. Consequentemente, aquele que
pretenda uma cautelar antecedente deverá demonstrar a plausibi-
lidade da ação a ser proposta. Somente com o atendimento a esse

51 In: Processo Cautelar, p. 152

273
JAQUELINE MIELKE SILVA

requisito é possível avaliar a legitimidade, o interesse e a plausibili-


dade do direito a ser acautelado52.
É naturalmente dispensável esse requisito nas cautelares inciden-
tes, pois a ação principal já está em curso. O requisito também não se
aplica nas ações cautelares autônomas (v.g. ações de asseguração de pro-
va) e nas chamadas pseudo cautelares, na linguagem de Ovídio Baptis-
ta da Silva ou cautelares satisfativas, nas palavras de Calamandrei (v.g.
ação de separação de corpos).
d) A exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão: tra-
tam-se dos requisitos essenciais para a concessão da tutela cautelar,
que se traduzem no fumus boni juris e no periculum in mora.
Convencer o juiz da probabilidade quanto à procedência do “di-
reito ameaçado” nada mais representa que aludir ao fumus boni iuris,
constituindo este pré-avaliação provisória de direito alegável pelo autor
em ação principal. Nem se pode dizer que o juiz, ao apreciar a provável
procedência do direito ameaçado, estaria prejulgando o mérito do pro-
cesso principal, pois um entendimento dessa ordem signiicaria desco-
nhecer a intrínseca diversidade entre a sentença cautelar e a sentença
de conhecimento; esta juízo de realidade e de certeza, aquela juízo de
verossimilhança53.
Já o periculum in mora, corresponde ao risco de dano iminente,
consoante já abordado no ítem 9.1.3.1.3, Capítulo I, Parte I.
e) As provas que serão produzidas: tendo em vista tratar-se a tutela
cautelar de tutela jurisdicional de simples aparência, não há que se
falar na busca exauriente da verdade. Em razão dessa circunstância,
deve-se admitir no processo cautelar algumas provas unilateral-
mente produzidas (v.g. declarações unilaterais, periciais unilaterais
etc.). Até porque, na instrução do processo cautelar, será possível
a ouvida das testemunhas, assim como a realização de prova peri-
cial. Entre tutelar o direito da parte ou sacriicá-lo, a primeira opção
deve ser a escolhida54.

52 Nesse sentido: Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Processo cautelar. São Paulo: Leud,
2002, p. 89); Luiz ORIONE NETO (In: Tratado das medidas cautelares: teoria geral do processo
cautelar, Col. Tratado das Medidas de Urgência. São Paulo: Lejus, 2000, Vol. III, Tomo I, p. 244-
245); Sérgio SHIMURA (In: Arresto cautelar, p. 242-243. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
Estudos de direito de processo. Enrico Tullio Liebman, vol. 23).
53 Neste sentido: Carlos Alberto Alvaro de OLIVEIRA. Arrolamento Cautelar, Ajuris 40/125.
54 Ao tratar do tema, leciona Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo

274
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

f) O pedido, com as suas especiicações: em que pese a omissão do art.


801 do Código de Processo Civil, o mesmo necessariamente deverá
constar na inicial cautelar em atenção ao princípio da inércia (arts.
2° e 128 do Código de Processo Civil).
Uma questão é relevante de ser destacada, e diz respeito até que
ponto o pedido formulado pelo autor vincula o magistrado, tendo em
vista o princípio da fungibilidade das medidas cautelares. No âmbito do
processo cautelar vige o princípio de que o magistrado pode conceder
medida cautelar diversa daquela que tenha sido pleiteada, quando as
circunstâncias do caso recomendarem a concessão de provimento di-
verso daquele que o autor formulara. Todavia, este princípio deve obser-
var outros, que também norteiam o direito processual civil; como, por
exemplo, o princípio da estabilidade da demanda. Assim, entendemos
que a concessão de provimento diverso será possível sempre que não
houver alteração da causa petendi. Sem qualquer dúvida, a fungibilidade
apresenta limites.
g) O requerimento para citação do réu: trata-se de requisito essencial
da petição inicial, previsto no art. 282 do Código de Processo Civil,
cuja inalidade é a complementação da relação processual.
h) Valor da causa: Nos termos do art. 258 do CPC, a toda a causa será
atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico

Civil, p. 139): “Ora, se esta situação probatória pode atingir grupos inteiros de casos, como mostra
Gerhardt , mesmo em procedimentos comuns ordinários, que dizer da mesma exigência de ‘redução
do módulo da prova’, quando o julgador tiver de enfrentar-se com um pedido de liminar cautelar? As
próprias solenidades e o ritualismo complicado, próprio do procedimento probatório, aqui terão de
ceder caminho para formas mais ágeis e efetivas de procedimento, pois sua excepcionalidade demanda
padrões diferentes da ordinariedade, precisamente por não tolerar a demora na aquisição do material
de convencimento judicial. De modo que o regresso às formas procedimentais comuns para a colheita
da prova provocaria a total e irremediável negação do que se poderia considerar, para empregar uma
vez mais a sugestão de TOMMASEO, a ‘ética da jurisdição de urgência’, que impõe o sacrifício do
improvável como única alternativa para a proteção daquilo de que apresente ao julgador com um
grau mais elevado de verossimilhança. A) Diversamente do que ocorre no procedimento comum, é
perfeitamente adequada e legítima, na jurisdição de urgência, seja cautelar ou satisfativa a pretensão
que por meio dela se veicula, a tomada de depoimento pessoal de incapazes, impedidos e suspeitos
de depor (art. 404 do CPC). Elas prestarão depoimento naturalmente sem prestar compromisso e
o julgador avaliará livremente o valor das informações que as mesmas prestarem em juízo. B) É
igualmente admissível, no procedimento cautelar, oferecimento de declarações escritas irmadas
por terceiros, informando sobre os fatos relevantes para a causa, possibilidade esta, como se sabe,
vedada no procedimento comum. C) É legítima também a prova formada por pareceres e laudos,
informalmente elaborados por especialistas, que substituam, na emergência, os exames periciais de
longo e complicado procedimento, desde que, concedida que seja a medida liminar, ique assegurado
ao demandado o direito ao contraditório, ensejando-se-lhe a oportunidade de contraprova”.

275
JAQUELINE MIELKE SILVA

imediato. O valor da causa na ação cautelar não se identiica com o


valor da causa na ação principal. O valor da causa, na ação cautelar,
deve ser estimado com base na airmação de probabilidade de dano,
sendo na maior parte dos casos o valor mínimo para o recolhimen-
to de custas55.

9.1.4.8. Liminar cautelar


O regramento das liminares cautelares é diverso do estabelecido
para outras liminares (como, por exemplo, as liminares possessórias que
exigem justiicação prévia). As possibilidades de concessão das limina-
res cautelares são as seguintes:
a) liminares sem a ouvida da parte contrária (inaudita altera parte) e
sem justiicação prévia: nesta hipótese não há que se falar em vio-
lação ao princípio do contraditório, tendo em vista que estamos
diante do chamado contraditório diferido ou postergado. O réu
não é ouvido antes, mas após a concessão da liminar. Esta primei-
ra hipótese de concessão deve ser utilizada sempre que a urgência
determinar – nas hipóteses de risco de perecimento do direito – e
também nos casos em que, se ouvido o réu, o mesmo possa frustrar
a execução da medida56.

55 Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o valor da causa nas ações cautelares
deve corresponder ao benefício econômico oriundo do acolhimento do pedido cautelar (STJ,
2ª Turma, EDcl no REsp 509.893, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 27.02.2007). É irrelevante para a
ixação do valor da causa na ação cautelar o valor do direito que se pretende assegurar com a sua
propositura (STJ, 1ª Turma, AgRg na Pet. 2.710/CE, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em 15.06.2004).
Já se decidiu, entretanto, que no caso de cautelar com a inalidade de impedir a coniguração da
mora e a cobrança dos respectivos encargos, deve o valor da causa reletir a soma desses valores
(STJ, REsp 143.055/SP, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, 15.02.2001).
56 Parte da doutrina interpreta literalmente o art. 804 do CPC e entende, de forma restritiva,
que a única hipótese em que o juiz pode deferir a liminar inaudita altera parte é quando ocorre
a possibilidade de ineicácia da medida, por atitude omissiva ou comissiva do réu. Humberto
THEODORO JÚNIOR (In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,
1978, v. V., p. 134), segue este entendimento. Em sentido contrário, com razão, leciona Luiz ORIONE
NETO (In: Ob. cit., p. 161), verbis: “Não nos aigura correto esse entendimento. A melhor exegese do
art. 804 do CPC não se coaduna com a interpretação literal, mas sim com aquele que amplia o seu
âmbito de aplicação. Em primeiro lugar, entendemos que a ineicácia da medida não precisa estar
umbilicalmente relacionada a uma atitude omissiva ou comissiva do réu. Basta que o ato de citá-lo
importe numa demora que acabe por causar prejuízos que ponham em risco a efetivação da própria
medida cautelar”. No mesmo sentido, J.J. CALMON DE PASSOS (In: Comentários ao Código de
Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, Vol. X, Tomo I, p. 202-203); Betina Rizzato
LARA (In: Liminares no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 87).

276
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

b) liminares concedidas após justiicação prévia em audiência, sem a


ouvida da parte contrária: a audiência e justiicação prévia será de-
signada sempre que for necessária a ouvida de testemunhas para a
concessão da liminar. O Código de Processo Civil, no art. 804, não
estabelece como vai se desenvolver esta audiência. Entendemos que
não possa ser seguido o regramento previsto no art. 454 do Códi-
go de Processo Civil, por não se tratar de audiência de instrução e
julgamento. A inalidade exclusiva desta audiência é oportunizar ao
autor a possibilidade de provar os fatos que sustentam o pedido de
liminar. Em razão dessa circunstância, e até em nome da urgência,
entendemos não ser necessária a convocação do réu57. Por outro
lado, se o réu tiver ciência por qualquer outro meio de que existe
uma audiência designada, obviamente que não se poderá impedir
a sua participação. A dúvida que se levanta é: qual é a extensão da
participação do réu na audiência de justiicação prévia? Poderá ele
levar testemunhas? Poderá inquirir as testemunhas do autor, e tam-
bém contraditá-las? Entendemos que o réu não poderá levar teste-
munhas por se tratar de uma audiência realizada exclusivamente
para que o autor tenha a possibilidade de deferimento da liminar.
O réu, posteriormente, na audiência de instrução e julgamento,
poderá ouvir as testemunhas que entender necessárias ao deslinde
da controvérsia. Possibilitar a inquirição de testemunhas do réu na
audiência de justiicação prévia poderia implicar na antecipação da
instrução, o que não é recomendável, já que sequer apresentação
de contestação houve nesta fase processual58 Todavia, ao réu deve
ser possibilitada tanto a contradita, quanto a inquirição de testemu-
nhas do autor.

57 Neste sentido, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de
Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.
754), verbis: “essa justiicação, a princípio, é feita sem a presença do réu”.
58 Ao tratar do tema, refere Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil.,
p. 145): “Resta saber se o demandado poderá, neste momento processual, juntar documentos em
contraprova. Se pretendêssemos manter-nos iéis aos princípios, teríamos de responder negativamente
a esta indagação. Contudo, a natureza especial do processo cautelar sugere-nos conclusão oposta. É
certo que a audiência para substanciar o direito à obtenção da liminar é assunto que diz respeito
apenas ao autor, não cabendo ao demandado o direito de servir-se deste procedimento liminar para
defender-se ou produzir contraprova. Apesar de tudo, casos haverá, perfeitamente imagináveis, em
que a exibição de documentos em contraprova, neste momento trazidos aos autos pelo réu, poderá
ser igualmente de interesse para o próprio autor, uma vez que essas liminares, em nosso sistema, são
sempre concedidas a risco do requerente, que ica sujeito a indenizar os prejuízos porventura causados
a outra parte. Se o documento em causa for capaz de esclarecê-lo sobre algum ponto decisivo da causa,
demovendo-o de prosseguir na demanda, não vemos como recusar-lhe um tal benefício”.

277
JAQUELINE MIELKE SILVA

c) liminares concedidas após a ouvida da parte contrária e após a


audiência de justiicação prévia: nesta hipótese o contraditório é
prévio. O réu será ouvido antes da concessão da liminar. Esta mo-
dalidade de concessão é recomendável sempre que for possível
aguardar, e naqueles casos em que a ouvida do réu não inviabilizar
a execução da medida.
A liminar proferida por juiz incompetente deve prevalecer até
que o juízo competente se pronuncie a respeito. Ou seja, apresentada
exceção de incompetência, a mesma não suspende a eicácia da tutela
cautelar concedida. Não é demasiado referir que a tutela cautelar con-
serva a sua eicácia durante o período de suspensão do processo, nos
termos do art. 807 do CPC. Segundo J.J. Calmon de Passos59, a regra da
competência deve ceder ao risco de dano irreparável.
Por outro lado, a apresentação da exceção de incompetência não
elimina a possibilidade de concessão da tutela cautelar; pois, durante o
período de suspensão do processo, em que pese ser defeso a prática de
qualquer ato processual, nada impede a realização de atos urgentes, a
im de evitar a prática de ato ilícito ou dano irreparável, nos termos do
art. 266 do CPC60.
Em se tratando de incompetência absoluta, os atos decisórios se-
rão nulos, nos termos do art. 113, § 2º do CPC, remetendo-se os autos
ao juízos competentes. Em tese esta regra implica na revogação automá-
tica da tutela cautelar eventualmente deferida. Porém, como o desapare-
cimento da tutela cautelar sujeita o litigante a grave dano,
[...] há racionalidade e legitimidade em se manter eicaz a tutela até a
sua necessidade ser aferida pelo juízo competente. Nesse caso, o direito
fundamental à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, CRFB) justiica
a manutenção da eicácia da tutela concedida pelo juiz absolutamente
incompetente, por curso período – que deve ser controlado pelo
juiz e pelas partes -, até que o juiz competente se pronuncie sobre os
pressupostos da tutela cautelar antes deferida.

No caso de decisão que concede ou indefere o pedido de liminar,


indubitavelmente o recurso cabível é o de agravo de instrumento, tendo

59 Ver Comentários ao Código de Processo Civil. v. VIII, p. 293.


60 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de
Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 747)

278
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

em vista a incompatibilidade do agravo retido, em razão da possibilida-


de de dano irreparável.
O prazo para a interposição do agravo contra a decisão que con-
cede a liminar conta-se da data da juntada aos autos do mandado de
efetivação da tutela cautelar61.

9.1.4.9. Caução contracautela e substitutiva


Em qualquer das hipóteses acima contempladas (item 2.8), o ma-
gistrado poderá62 determinar a prestação de caução – inclusive ex oicio
-, destinada a ressarcir eventuais danos que a medida possa vir a causar
ao réu63. Esta caução poderá ser real ou idejussória, sendo sempre fa-
cultativa, o que se conclui a partir do verbo “poderá” presente no art.
804 do Código de Processo Civil64.
A preocupação com o tema é antiga, e sobre ela se manifestou
Giuseppe Chiovenda65, referindo que

61 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 70.399/PR, 4ª Turma,


Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 29.10.1997): “Nos termos do parágrafo único, inc. II, do
art. 802, CPC, conta-se o prazo da juntada aos autos do mandado da execução da medida cautelar,
quando concedida liminarmente ou após justiicação prévia. Se esse é o sistema da contagem dos
prazos, não se justiica que, em se tratando de cautelar concedida liminarmente, e sem justiicação
prévia, o prazo para agravar tenha curso da data da intimação e não da juntada aos autos do
mandado devidamente cumprido”.
62 A imposição da prestação da caução contracautela é uma faculdade ao juiz. Neste sentido o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp 140.386/4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar, j. 10.12.1997)
63 Vide art. 811 do Código de Processo Civil.
64 Na Itália, o sistema é semelhante ao brasileiro. Neste sentido, Luigi Paolo COMOGLIO,
Corrado FERRI e Michele TARUFFO (In: Lezioni sul processo civile. II. Procedimenti speciali,
cautelari ed esecutivi.Bologna: Il. Mulino, 2005, p. 59), verbis: “Non va peraltro dimenticata – nella
descrizione dei proili strumentali del provvedimento che accolga la domanda cautelare (oppure di
quello che confermi o modiichi un precedente provvedimento di pari contenuto) – la possibilita che il
giudice, valutata ogni circostanza, imponga anche d´uicio all´istante una cauzione per l´eventuale
risarcimento dei danni a titolo di responsabilità aggravata ) art. 96, comma 2; art. 669 indecies).
La cauzione – che viene estesa a tutte le misure cautelari, sulla scia del previgente art. 674, limitato
ai sequestri – va prestata nelle forme prescritte dallo stesso giudice (art. 119, e art. 86 disp. Att),
rappresentando una controcautela, cioè la garanzia di un équo contemperamento fra le esigenze di
sollecita tutela di chi invoca la misura cautelare e le esigenze di difesa degli interessi patrimoniali di
chi la subisce”.
65 In: Instituições de direito processual civil. Tradução de Guimarães Menegale. São Paulo:
Saraiva, 1969, Vol. 1; 1965, Vol. II, § 11, n. 82, p. 274.

279
JAQUELINE MIELKE SILVA

[...] para garantir a reparação dos danos àquele a quem se haja


interrompido ou reduzido a fruição de um bem em virtude de uma
medida provisória, pode esta fazer-se acompanhar de uma medida de
contracautela, isto é, a ordem ao autor de prestar caução.

O fundamento nuclear do instituto da caução contracautela en-


contra guarida no princípio da igualdade entre as partes, num tipo de
procedimento que necessariamente pressupõe a desigualdade inicial
entre elas. Sobre fundamentar-se a contracautela no princípio da igual-
dade, instrui Ramiro Podetti66,
La contracautela, que se funda en el principio de igualdad, reemplaza,
en cierta medida, a la bilateralidad o controversia, pues implica que la
medida cautelar debe, ser doble, asegurando al actor un derecho aún no
actuado y al demandado la efectividad del resarcimiento de los daños, si
aquel derecho no existiera o no llegare a actualizarse.

Não é demasiado referir que a concessão liminar da medida cau-


telar não dispensa a cognição sumária (fumus boni juris e periculum in
mora), mesmo que a caução contracautela seja prestada67. Em que pese
a caução contracautela facilitar a concessão da liminar, ela não pode ser
elevada à condição de super pressuposto, de modo a dispensar os demais.
Por outro lado, é certo que a prestação de caução pelo autor tran-
quiliza o magistrado por ocasião da concessão da medida liminar. Toda-
via, ela jamais poderá ser uma regra, no sentido de sempre ser exigida.
E isto por uma razão muito simples: a situação econômica e social do
Brasil faz com que a maioria dos brasileiros não tenha condições inan-
ceiras de prestar caução. Torná-la obrigatória signiicaria inviabilizar o
acesso à tutela cautelar à maioria da população brasileira68.

66 In: Tratados de las medidas cautelares: derecho procesal civil comercial y laboral. Buenos Aires:
Ediar, 1956, n. 20, p. 82.
67 Neste sentido Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Processo Cautelar, p. 157).
68 Segundo Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 247), “a exigência
de caução prévia, como garantia contra os danos que o requerido possa vir a sofrer em virtude da
liminar, só cabe nas ações cautelares jurisdicionais, de natureza ou de relexo patrimonial. Não tem
sentido, a toda evidência, exigi-la nas cautelas voluntárias e nas jurisdicionais concernentes a relações
de família e a direitos personalíssimos, enim, nos casos despidos de conotação patrimonial, desde que
o cumprimento da liminar não provoque dano dessa natureza. Se, acaso, a vistoria ad perpetuam,
que é cautela voluntária, causar dano ao requerido, a questão resolver-se-á na ação principal, ou em
ação própria de ressarcimento, mas a vistoria como tal, não pode icar condicionada à caução prévia”.

280
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

No tocante ao valor da caução, deverá ela ser ixada de acordo com


os danos que possam ser causados pela efetivação da medida cautelar69.
A discricionariedade judicial está presente por ocasião de sua ixação.
É possível a substituição da providência cautelar eventualmente
deferida quando existir outra igualmente idônea, porém menos gravosa,
nos exatos termos do art. 805 do CPC. Não é demasiado referir que a
regra da menor restrição incide apenas depois de adotada a regra do
meio idôneo. Não há como indagar se uma providência cautelar causa
menor restrição antes de se veriicar se essa é realmente idônea à tutela
cautelar. Não se pode pretender menor restrição à custa da idoneidade
da medida70.
O preceito legal continua a exigir a ocorrência de dois requisitos:
a) adequação e b) suiciência da medida.
Por adequação entende-se a disposição inata da caução para de-
sempenhar garantia compatível com a providência anteriormente de-
cretada, ou seja, com a mesma serventia substancial. Daí falar-se em
fungibilidade das medidas cautelares. Fungível é aquilo que pode ser
substituído por outro. Assim, v.g., a caução de dinheiro pode ser subs-
tituída por coisa móvel (automóvel, sacas de soja etc.) ou coisa imóvel
(terreno, apartamento etc.) porque passível de converterem-se em pe-
cúnia. Todavia, se a providência decretada for de natureza infungível
– v.g., alimentos provisionais -, não pode ser substituída por caução.
Por suiciência da caução entende-se a sua expressão quantita-
tiva, isto é, o volume apto para, em concreto, cobrir o valor do risco
de prejuízo acobertado. Assim, nas medidas de natureza econômica, a
caução é sempre adequada, mas cumpre também seja consubstanciada
em valor suiciente71.
Pode-se ainda indagar: se concedida a liminar (v.g. arresto, se-
questro, busca e apreensão, depósito de bens) e o requerido ofertar cau-
ção, o juiz ica obrigado a substituir a medida pela prestação de caução?

69 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2007, p. 126-7).
70 Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 22.034/GO, Rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, j. em 28.10.1992)
71 Neste sentido: Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil,
1.035, p. 528)

281
JAQUELINE MIELKE SILVA

Na doutrina, Sérgio Sahione Fadel72 entende que a substituição,


“uma vez fundada em caução irme, é obrigatória”73.
Em posição contrária, entendemos com razão Ovídio Araújo
Baptista da Silva74, que refere não se poder falar em “direito subjetivo”
do réu, quando o art. 805 alude ao verbo “poderá”, indicando que ao
juiz se reserva o mesmo arbítrio judicial inerente à cognição cautelar.
Mesmo que a caução seja adequada e suiciente, ao juiz ica facultado
conceder ou não a substituição da medida cautelar, sempre, é claro, jus-
tiicando a sua decisão, visto que discricionariedade não se confunde
com arbitrariedade absoluta, isto é, por ser ato jurisdicional, mister seja
convenientemente motivado.

9.1.4.10. Citação e resposta do réu


O princípio do contraditório também é preservado no processo
cautelar75. Este princípio vem expressamente contemplado no art. 802
do Código de Processo Civil, verbis: “O requerido será citado, qualquer
que seja o procedimento cautelar, para, no prazo de cinco (5) dias, con-
testar o pedido, indicando as provas que pretende produzir”76.

72 In: Código de Processo Civil Comentado. Rio de Janeiro: Konino, 1974, Tomo IV, p. 221.
73 No mesmo sentido: Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII,
Tomo I, n. 64, p. 262)
74 In: Curso de Processo Civil, p. 144.
75 Nas medidas só procedimentalmente cautelares ou só topologicamente cautelares, como
protestos, notiicações e interpelações (art. 871), protesto e apreensão de título (art. 882) e
justiicação (art. 865), não há lugar para contestação (Neste sentido, Luiz ORIONE NETO. Op..
cit., p. 154)
76 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, p. 115), ao tratar da
contestação nos procedimentos cautelares, leciona: “O cabimento de contestação em todos os
procedimentos cautelares ou é falso ou é no mínimo controvertido. Se admitirmos como verdadeiras
ações cautelares os protestos, notiicações e interpelações (arts. 867-873) e as justiicações (arts. 861-
866), o princípio é falso, posto que o próprio legislador que o consagrara no art. 802 suprime-o em
todas estas hipóteses (arts. 865 e 871). Para os que, por uma razão ou outra, recusem a atribuição de
natureza cautelar a essas medidas, ainda restaria controverso o princípio para as ações de asseguração
de prova (arts. 846-851), sendo muitos os juristas que entendem incabível contestação nestes
procedimentos, como, por exemplo, Galeno Lacerda (Comentários, n. 51) e Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira (ob. cit., n. 149, p. 350). Em sentido contrário, no entanto, entendendo cabível a contestação
nas ações de asseguração de provas, heodoro Júnior (Curso ..., V. 2, n. 1.124).”

282
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

A citação cumpre-se de acordo com os artigos 213 a 233 do Có-


digo de Processo Civil, sempre que houver compatibilidade com o pro-
cedimento cautelar77.

9.1.4.11. Ação declaratória incidental e Reconvenção


Tendo em vista que um dos princípios que norteia o processo
cautelar é o da celeridade, entendemos não ser cabível a apresentação
de reconvenção78. E pela mesma razão que sustentamos não caber a re-
convenção no processo cautelar, entendemos não ser admissível a ação
declaratória incidental. Ademais, em sede de processo cautelar, os pro-
vimentos são proferidos com base em juízo de verossimilhança e os pro-

77 O jurista Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 230) indaga se
a citação nas medidas cautelares provocará os mesmos efeitos da citação para as ações principais?
Segundo ele, a resposta se revela complexa, verbis: “Litispendência somente será admissível entre
processos cautelares. Não se pode reiterar medida assecuratória na pendência de outra com o mesmo
objetivo, embora sob denominação diversa. Se a iniciativa parte de mais de um interessado, em
processos separados, não existirá litispendência (salvo solidariedade), mas poderá haver conexão entre
ações cautelares, ou duplicidade, p. ex., de vistorias sobre o mesmo objeto, hipóteses em que reunir-se-ão
os processos perante o juiz prevento. Claro está que jamais haverá litispendência entre as ações cautelar
e principal. O efeito de tornar litigiosa a coisa não pode provocar a citação para as medidas cautelares.
Para as voluntárias, seria absurdo, porque por deinição excluem a litigiosidade. Para as jurisdicionais,
porque não é a citação que, nelas, torna litigiosa a coisa, e sim a decretação da medida que poderá
ocorrer até antes da citação. Para a constituição em mora, há as medidas especíicas da interpelação,
referidas no parágrafo único do art. 397 do Código Civil de 2002. A interrupção da prescrição,
último efeito da citação indicado pelo art. 219, ocorre em todas as citações para as ações cautelares
jurisdicionais porque nestas já se acha manifesto o interesse do autor em propor a ação principal.
Quanto à medidas voluntárias, a citação para protesto possui efeito interruptivo especíico (arts. 172,
do Código Civil de 1916 e 202, II, do Código Civil e 2002). Em relação às demais, como as antecipações
de prova, admite-se idêntica eicácia, se clara a intenção do requerente em mover a demanda posterior,
hipótese em que essa intenção equivale a autêntico protesto. Não nos parece certa a Súmula 154 do
Supremo, em seu enunciado conciso e radical: ‘Simples vistoria não interrompe prescrição’.”
78 Neste sentido, Luiz ORIONE NETO (In: Op. cit., p. 155), verbis: “Não cabe reconvenção em ação
cautelar, pelo simples motivo de que a reconvenção é ação principal contrária a outra principal (art.
315), e a responsabilidade prevista no art. 811 dispensa pedido reconvencional. Se o réu quiser obter
medida cautelar de seu interesse, deve propor outra ação cautelar, caso em que, se houver conexão, serão
reunidas para julgamento conjunto”. Com a mesma opinião: Galeno LACERDA (In: Comentários ao
Código de Processo Civil, Vol. VIII, T. I, n. 51, p. 232; Humberto THEODORO JÚNIOR. Processo
Cautelar, n. 92, p. 146; Sérgio SHIMURA, Arresto Cautelar, p. 289.Neste sentido a jurisprudência
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “AÇÃO CAUTELAR. PRETENSÃO DE BLOQUEIO
DE VALORES RECEBIDOS. GARANTIA DA FUTURA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. PEDIDO
RECONVENCIONAL. DESCABIMENTO. É manifestamente descabido o pedido de reconvenção em
sede de ação cautelar, pois é incompatível com o procedimento especial próprio da demanda cautelar.
Recurso desprovido.”(Agravo de Instrumento Nº 70020474227, Sétima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 10/10/2007)

283
JAQUELINE MIELKE SILVA

vimentos proferidos na ação declaratória incidental são proferidos com


base em juízo de certeza79.

9.1.4.12. Contestação
A contestação poderá versar tanto sobre questões de natureza
processuais80 – v.g. ausência de pressupostos processuais, condições da
ação – quanto sobre o mérito da própria ação cautelar (inexistência de
fumus boni juris ou do risco de dano iminente)81.
Nos termos do art. 802 do Código de Processo Civil, a contagem
do prazo de contestação obedece dois diferentes princípios: a) conta-se
o prazo da data da juntada aos autos do mandado de citação devida-
mente cumprido, ou; b) da data da juntada aos autos do mandado da

79 Neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “CAUTELAR


INOMINADA. ENSINO PRIVADO. DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE DÍVIDA. AÇÃO
DECLARATÓRIA INCIDENTAL. IMPOSSIBILIDADE. Trata-se de ação cautelar em que a cognição
é sumária e limitada, tendo em vista que a inalidade do processo cautelar é assegurar o resultado útil
da demanda principal. No caso dos autos, o objetivo era garantir a matrícula, evitando que o autor
perdesse o semestre ou fosse reprovado por excesso de faltas. A questão relativa ao débito, portanto, é
alheia ao pedido e à causa de pedir, devendo ser discutida em ação própria, não o sendo possível em
sede de cautelar. Por este motivo, igualmente se mostra descabido o julgamento da ação declaratória
incidental para declarar a inexistência de dívida, pois é matéria que refoge aos limites da lide. Apelo
desprovido.” (Apelação Cível Nº 70010382315, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 24/02/2005)
80 Luiz ORIONE NETO (In: Op, cit., p. 155), ao tratar do tema, refere: “No concernente ao conteúdo
da contestação, a matéria preliminar referida no art. 301 é passível de argüição. Nada a objetar se
argua: I – inexistência ou nulidade da citação; II incompetência absoluta; III – inépcia da petição
inicial; IV – perempção; V – litispendência; VI – coisa julgada; VII – conexão; VIII – incapacidade
da parte, defeito de representação ou falta de autorização; IX – convenção de arbitragem; X –
carência de ação; XI – falta de caução ou de outra prestação, que a lei exige como preliminar. Além
das preliminares cabíveis constantes do art. 301, pertence especiicamente ao objeto da contestação
impugnar as condições e o mérito da tutela cautelar, mormente o fumus boni iuris e o periculum in
mora, que integram a causa de pedir da ação cautelar”.
81 Segundo Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, v. 2, p. 116), “a
questão dos limites ou da extensão permitida à contestação na ação cautelar é problema que oferece
diiculdades e gera seguidamente incompreensões que devem ser examinadas, e o serão sempre que
o assunto emergir na exposição subseqüente. É possível, no entanto, dizer desde logo que a faculdade
reconhecida ao demandado de argüir na contestação, todas as defesas que seriam cabíveis na eventual
demanda satisfativa (principal) não corresponde, pelo lado do julgador, a uma análoga extensão do
julgamento. Quer dizer, o réu poderá alegar e intentar demonstrar a improcedência da ação com
as defesas próprias da ação principal, mas o julgador as receberá, exclusivamente como alegações
e provas tendentes a demonstrar a inexistência de fumus boni júris, jamais como defesa idônea a
comprovar a inexistência do direito cuja proteção se pretenda oferecer com a ação cautelar”.

284
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

execução da medida cautelar, quando concedida liminarmente ou após


justiicação prévia.
A hipótese descrita na letra ‘a’, supra não apresenta maiores pro-
blemas, pois segue a mesma sistemática prevista no art. 241 do Código
de Processo Civil. No tocante a ela, cabe indagar: no caso de litisconsór-
cio no polo passivo, o prazo conta-se da data da última juntada ou de
cada juntada em separado? E se os réus tiverem mais de um procurador,
o prazo de contestação será dobrado, nos termos do art. 191 do Código
de Processo Civil?
Entendemos aplicável ao processo cautelar o art. 241 na hipótese
de litisconsórcio entre os réus, contando-se o prazo de contestação da
data da última juntada82. Do mesmo modo, entendemos que o prazo de
contestação deva ser dobrado se os réus estiverem representados nos
autos por diferente procuradores, pela simples razão de que a contesta-
ção é defesa. Logo, se o princípio geral na contagem de prazo que consta
no Livro I foi aplicado pelo legislador no Processo Cautelar, não há ra-
zão para se afastar as demais regras relativas à contagem de prazo.
No tocante à hipótese contemplada na letra ‘b’, supra, entendemos
que o art. 802 não possa ser interpretado literalmente, pois há casos em
que a execução da medida cautelar – no caso de concessão liminar ou
após justiicação prévia – se dá independentemente de cientiicação do
réu. Ora, enquanto não cientiicado o réu da execução da medida caute-
lar, não há como luir o prazo de contestação, sob pena de restarem viola-
dos os princípios do contraditório e da ampla defesa. Assim, entendemos
ser indispensável a intimação do réu para que o prazo comece a luir83.

82 Neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Apelação cível.
Ação cautelar de atentado. Preliminar de nulidade da sentença. Contestação apresentada pelos dois
réus constando dos autos apenas comprovante de citação de um deles. Revelia afastada, posto que o
prazo para defesa só inicia após a juntada do comprovante de citação de todos os réus, conforme o
art. 241, III, do CPC. Preliminar acolhida. Sentença desconstituída. Unânime”. (Apelação Cível Nº
70010687168, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza,
Julgado em 10/03/2005)
83 Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo I, n. 51,
p. 233), refere que “só prevalece o prazo de cinco dias a contar da data da juntada do mandado
executório da liminar, se o réu tiver ciência dessa execução, certiicada pelo oicial de justiça, ato
que equivale à citação. Sim, porque pode acontecer que a execução da liminar se cumpra através
de precatória, sem ciência do réu, ou só com ciência de terceiro, como, p. ex., a busca e apreensão,
sem ciência do réu, ou só com ciência de terceiro, como, p. ex., a busca e apreensão de bens em
poder de terceiro, ou o bloqueio de conta bancária (ciência só do banco). A estas situações é que se
refere o art. 811, II. Em tais hipóteses, o prazo para contestar só luirá após a juntada do mandado

285
JAQUELINE MIELKE SILVA

Nos termos do art. 803 do Código de Processo Civil, “não sendo


contestado o pedido, presumir-se-ão aceitos pelo requerido, como ver-
dadeiros, os fatos alegados pelo requerente (arts. 285 e 319); caso em
que o juiz decidirá dentro em cinco (5) dias”. A mesma disciplina ado-
tada para o processo de conhecimento foi adotada pelo legislador para
o processo cautelar, no tocante aos efeitos da revelia.
Todavia, os efeitos da revelia que eventualmente se produzam no
procedimento cautelar não atingem o processo principal84. Ou seja, os
efeitos da revelia são restritos à lide cautelar85.
Não é demasiado mencionar que se trata de presunção relativa e
que sua adoção pelo Código não afasta o princípio da livre convicção do
juiz, consagrado no art. 131 do Código de Processo Civil. Assim, con-
testada ou não a ação cautelar, de qualquer modo deverá o juiz examinar
de ofício não só os pressupostos processuais, senão que a ocorrência no
caso concreto das condições da ação e do mérito, especialmente o fumus
boni iuris e o periculum in mora86.

9.1.4.13. Intervenção de terceiros e litisconsórcio


Sem qualquer dúvida, é possível o litisconsórcio no processo cau-
telar. Por exemplo, o autor de futura ação reivindicatória promove uma
ação cautelar de sequestro do imóvel cuja restituição ele pretende obter
na ação satisfativa. Se o imóvel pertencer a dois condôminos, ambos
serão litisconsortes passivos na ação cautelar de sequestro.
Todavia, mesmo que se entenda necessária a citação de litiscon-
sortes necessários, poderá o juiz, antes de ordená-la, conceder a medida
liminarmente, se o cumprimento da citação puser em risco o cumpri-
mento da medida.

de citação cumprido, e não a contar da anexação do mandado ou carta de execução liminar”. No


mesmo sentido: Luiz ORIONE NETO (Ob. cit., p. 156). Também: João Penido BURNIER JÚNIOR
(In: Ob. cit., p. 115).
84 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (MC 4.891/DF, 2ª Turma, Rel.
Min. Laurita VAZ, j. 26.11.2.002.
85 Neste sentido, o entendimento de J.J. Calmon de PASSOS (In: Ajuris 6/155): “a regra do art. 803
diz respeito apenas aos fatos relativos ao próprio procedimento cautelar”.
86 Neste sentido. Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII,
Tomo I, n. 53, p. 234.

286
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

No tocante ao ingresso do assistente no processo cautelar, enten-


demos não haver qualquer restrição que possa impedir. Já no tocante às
demais modalidades de intervenção de terceiros, entendemos não ser
possível no processo cautelar, tendo em vista a urgência que é ineren-
te ao mesmo. As modalidades de intervenção de terceiros implicam na
postergação do procedimento, o que vai de encontro ao princípio da
duração do processo dentro de um prazo razoável, previsto no art. 5°,
inciso LXXVIII da Constituição Federal87.

9.1.4.14. Natureza da sentença que julga o processo cautelar


Entendemos ser de mérito88 a sentença que julga o processo cau-
telar. Trata-se de uma sentença com conteúdo eicacial preponderante
mandamental89. Segundo Pontes de Miranda90,
[...] na sua maior parte, essas medidas são objeto de mandamentos. De
modo que se trata de ações mandamentais, que se exercem em processos
cujo ito é a sentença de mandamento da sua medida de segurança,
especíica. Não se pense, portanto, em declaratividade preponderante,

87 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, p. 122), ao tratar do
tema, refere: “(...) b) A denunciação da lide (arts. 70-76) não poderá ter lugar no processo cautelar,
precisamente por não ser ela uma simples denúncia do litígio, mas, ao contrário, implicar na
proposição simultânea de uma ação satisfativa que o denunciante formula contra o denunciado. Este
seria, naturalmente, um resultado impossível no procedimento cautelar. c) É possível a intervenção
de terceiro no processo cautelar através de uma ação incidental de embargos de terceiro, sempre que
houver constrição ou ameaça de constrição de bens que este airme pertencer-lhe, como se dá com o
arresto, o seqüestro, a busca e apreensão, o arrolamento de bens e outras medidas cautelares análogas.
d) cabendo, no entanto, embargos de terceiro no processo cautelar, não nos parece admissível, ao
contrário, o ajuizamento da oposição (art. 56 do CPC), não obstante a reconhecida semelhança entre
estes dois institutos”.
88 A doutrina e a jurisprudência discutem se a sentença prolatada no processo cautelar deve ser
proferida de forma independente, ou se pode ser proferida juntamente com a do processo principal.
Após expor as vantagens (economia processual) e as desvantagens (segurança e adequação) de
uma sentença “uma” para o feito principal e cautelar, conclui Márcio Louzada CARPENA (In: Do
processo cautelar moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 325-326) que “a prolação de sentença
‘una’ para ambos os feitos não é nula; contudo, se o julgador, em função disso, violar a regra do
art. 458 do CPC, deixando de irmar relatório, analisar os fundamentos particulares de cada ação
ou prolatar dispositivo a cada uma, ainda que de forma conjunta para ambas, nulidade clara se
vislumbrará no decisum, passível de decretação inclusive ex oicio pelo tribunal”.
89 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Do processo cautelar, p. 182); Luiz
ORIONE NETO (Op. cit., p. 200); Alexandre Freitas CÂMARA (In: Lições de Direito Processual
Civil, 4 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002, Vol. III, p. 70).
90 In: Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p.
309.

287
JAQUELINE MIELKE SILVA

nem em condenação, ou em constitutividade. De todos esses elementos


tem a sua porção, sem que a medida de segurança suponha a condenação,
ou sequer a declaração da relação jurídica, sem que constitua mais do
que a situação processual transitória; e sem que seja execução forçada
ou parte integrante de execução.

O conteúdo da sentença cautelar será formado, no mínimo, por


dois elementos: a ordem, que se traduz na eicácia mandamental e, em
dose menos intensa, a declaração que está invariavelmente presente
como parte de seu conteúdo. Frise-se que a declaração se dá em dose
menos intensa, rarefeita, pois o juiz nada declara com força de coisa
julgada, uma vez que seu julgamento baseia-se em juízo de verossimi-
lhança do direito invocado pelo autor.
Embora exista, sob o ponto de vista da função cautelar, acentuada
diferença entre uma medida inominada, um arresto ou sequestro, ou
entre estes e uma caução, no que diz respeito à estrutura interna de suas
eicácias preponderantes, todas elas se assemelham. Tanto as medidas
cautelares inominadas quanto as nominadas “executam-se” por meio
de ordens que o magistrado, ao julgar procedente a demanda cautelar
emite, determinando que o demandado faça ou deixa de fazer alguma
coisa, tal como ocorre na ação de mandado de segurança que, como as
cautelares, é também uma ação mandamental91.

9.1.4.15. Coisa julgada e sentença cautelar


A aptidão da sentença cautelar em produzir coisa julgada mate-
rial não é pacíica na doutrina brasileira, muito pelo contrário, pois a
maioria das vozes é pela tese negativa.
A negativa de produção de coisa julgada material no processo
cautelar é sustentada por Galeno Lacerda92, verbis:
Não há coisa julgada material na concessão, ou não, de medida cautelar,
porque o juízo sobre as necessidades de segurança prévia não se estende
à totalidade da lide à existência ou não da relação jurídica material e
do direito subjetivo material alegado. Como airma Liebman (In: Unità
del procedimento cautelare. Revista cit. IX-I/253), o objeto da decisão

91 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. Curso de Processo Civil, Vol. 2, p. 165.
92 In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo II, n. 73, 7ª ed., p. 288.

288
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

cautelar e sua natural variabilidade e temporariedade excluem a duração


de eicácia que caracteriza a coisa julgada material.

Todavia, o autor ressalva:


A tese vale, porém, apenas, para as cautelas jurisdicionais preventivas;
não, de todo, para as repressivas. Nestas, p. ex., no atentado, no
incidente de falsidade, embora não se julgue a demanda principal, há
deinitividade na respectiva sentença, porque desce aos fatos materiais
da lide, para repô-los, ou não, no estado anterior.

Ovídio Araújo Baptista da Silva93 comunga com a tese da não


produção da coisa julgada material, mas com o fundamento diverso.
Inicialmente, o autor considera a sentença cautelar como sendo de mé-
rito, como outra qualquer. Refere que o mérito reside no objeto do lití-
gio, que é a sua res deducta; o que a distingue é que apenas assegura sem
satisfazer o direito que se assegura. Para esse jurista, a inaptidão de a
sentença cautelar alcançar a estabilidade peculiar à coisa julgada mate-
rial advém da ausência de qualquer declaração sobre relações jurídicas
que possam ser controvertidas na demanda cautelar. O juiz, ao decidir
a causa, limita-se a airmar a simples plausibilidade da relação jurídica
de que o autor se airma titular e a existência de uma situação fática de
perigo. E sobre fatos não incide o selo da indiscutibilidade, própria da
coisa julgada material. Não havendo declaratoriedade relevante sobre
uma situação jurídica, o juiz da futura demanda poderá reapreciar livre-
mente a mesma causa, e decidir de maneira diversa.
Partilhamos do mesmo entendimento dos autores supracitados,
com uma ressalva: se a extinção do processo cautelar se der pela prescri-
ção ou pela decadência há que se falar em coisa julgada material, em ra-
zão do julgamento ser prolatado com base em juízo de certeza. Portanto,
a sentença será apta à produção de coisa julgada material94.

93 In: Curso de processo Civil, p. 174.


94 Em sentido contrário, Luiz Edson FACHIN (In: Revista de Processo n. 49, p. 57), verbis: “Em
que pese, de um lado, a controvérsia doutrinária, e de outro, a opinião ainda dominante sobre a
inexistência de coisa julgada no processo cautelar, há produção de coisa julgada nas efetivas cautelares
(v.g. seqüestro, arresto, inominadas com esse caráter e sob a égide do art. 799 do CPC, arrolamento,
e dependendo das circunstâncias na caução, busca e apreensão, exibição e produção antecipada
de provas)”. No mesmo sentido, leciona Fritz BAUR (In: Tutela jurídica mediante medidas
cautelares. Trad. De Armindo Edgar Laux. Porto alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1985, p. 126),
verbis: “Os princípios desenvolvidos no processo principal, concernentes ao efeito da coisa julgada

289
JAQUELINE MIELKE SILVA

9.1.4.16. Ação principal


Nos termos do art. 806 do Código de Processo Civil, “cabe a parte
propor a ação, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da efeti-
vação da medida cautelar, quando esta for concedida em procedimento
preparatório”.
O prazo de 30 (trinta) dias contemplado no dispositivo legal de-
corre da necessidade de evitar-se um constrangimento excessivo ao réu
que, porventura, haja sofrido alguma medida cautelar constritiva que
importe restrição à sua liberdade de disposição. Ou seja, o réu não pode-
ria ter uma restrição em seus direitos ad ininitum. O prazo de 30 (trin-
ta) dias para ajuizamento da ação principal evita que o procedimento
cautelar preparatório se transforme em odioso instrumento de vindita;
perpetuando, no tempo, eventuais danos causados ao demandado.
Uma primeira indagação que se extrai a partir do dispositivo legal
acima transcrito diz respeito ao signiicado da expressão “efetivação da
medida cautelar”. Entendemos por efetivação o cumprimento da ordem
contida no respectivo provimento jurisdicional que conceder a tutela
cautelar. Ela ocorre a partir do momento em que o réu sofre restrições
em seus direitos.
A ordem contida na sentença que conceder a tutela cautelar será
dirigida ao demandado se a medida cautelar consistir que o mesmo faça
ou deixe de fazer algo, incapaz de ser realizado por terceiros (sempre
que se trate de fazer ou não fazer infungíveis). Se, todavia, o órgão judi-
cial, por meio de seus auxiliares, puder efetivar a medida cautelar, pres-
cindindo de ato pessoal do demandado – como se dá via de regra nas
cautelares nominadas (v.g. arresto, sequestro, busca e apreensão) – a sua
efetivação será inteiramente cumprida pelo próprio órgão judiciário.
Por outro lado, é imperioso referir que a efetivação da medida
cautelar não se confunde com a execução. Se, por um lado, a execução
forçada tende a tornar realizado o direito, as medidas cautelares apenas
asseguram o direito. Por outro lado, a execução pressupõe a existência
de uma sentença condenatória (art. 475-N do CPC), e a sentença no
Processo Cautelar é de natureza mandamental. E não sendo efetivada a

material de uma sentença denegatória, valem também para uma decisão que indefere o pedido de
uma medida temporária, todavia, com a peculiaridade única de que o peticionário não ica tolhido
pela preclusão de apresentar novos meios de prova que não pôde alegar no primeiro procedimento”.

290
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

medida cautelar, não há porque se falar no prazo de 30 dias para o ajui-


zamento da ação principal95.
No tocante à contagem do prazo de 30 dias, indaga-se: o termo
inicial do prazo de 30 dias é o momento em que o oicial de justiça
torna efetiva a medida, ou do instante em que realizada a diligência,
dela intima o requerente, ou da data da juntada aos autos do mandado
devidamente cumprido? Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva96, “o
prazo de 30 dias há de correr a partir do momento em que a parte toma
ciência formal da juntada aos autos do mandado de execução da medi-
da cautelar devidamente cumprida”. Todavia, entendemos que o prazo
de 30 (trinta) dias começa a luir a partir do momento em que o autor
teve ciência da data da efetivação da medida,97 e não a partir da data da
juntada do mandado98.

95 O Superior Tribunal de Justiça (REsp 392.675/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira,
29.04.2002), já decidiu que se a tutela cautelar não é deferida liminarmente, o ônus de propor a
ação principal somente aparecerá se a tutela for concedida pela sentença cautelar.
96 In: Do Processo Cautelar, p. 182
97 Ao tratar do tema, refere Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil,
v. VIII, Tomo I, p. 276), verbis: “A primeira questão suscitou dúvida, principalmente no início da
vigência do Código de 1939, logo superada, pela quase unanimidade da doutrina e da jurisprudência,
no sentido de que a simples concessão da liminar já importa ordem capaz de tornar ‘efetiva’ a medida.
Com efeito, cumprido o mandado inicial, os bens se subtraem ao poder de disposição do réu, a coerção
se torna atuante, e é exatamente essa situação que não pode permanecer se o autor não instaurar o
processo principal no prazo do art. 806, nas hipóteses de incidência desse dispositivo.”
98 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “PROCESSUAL CIVIL.
MEDIDA CAUTELAR. PRAZO PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL DE SUSTAÇÃO
DE PROTESTO. CPC, ARTS. 806 E 808. CIÊNCIA DA LIMINAR. DATA DA ASSINATURA DO
TERMO DE CAUÇÃO. I. Deferida a liminar de sustação de protesto em despacho que determinou,
concomitantemente, a prestação da caução respectiva, a realização desta, mediante o oferecimento da
garantia e a lavratura do termo próprio coniguram a ciência da autora cautelar sobre a efetivação
da aludida liminar, daí luindo o prazo de trinta dias para o ajuizamento da demanda principal,
aqui inobservado. II. Liminar tornada sem efeito, corretamente, pelo Tribunal estadual, porém
determinado o processamento da cautelar, em consonância com o entendimento irmado pela 2ª
Seção do STJ (REsp n. 327.380/RS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em 22.05.2002).
III. Recurso especial não conhecido.”(Resp 199.683, Quarta Turma, Min. Aldir Passarinho Júnior,
29.06.2004) “PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA. TERMO “A QUO” PARA
A PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL. DATA DA CIÊNCIA AO AUTOR DO CUMPRIMENTO
DA MEDIDA. CPC, ART. 806. EXEGESE. ENTENDIMENTO DA TURMA. ARRESTO.
REQUISITOS. PRECEDENTES. CPC, ART. 813. RECURSO DESACOLHIDO. I - Nos termos do
posicionamento da Turma, ‘o prazo para a propositura da ação principal conta-se, em princípio, da
data em que o autor teve ciência da efetivação da medida’. II - Considerando que a medida cautelar de
arresto tem a inalidade de assegurar o resultado prático e útil do processo principal, é de concluir-se
que as hipóteses contempladas no art. 813, CPC, não são exaustivas, mas exempliicativas, bastando,
para a concessão do arresto, o risco de dano e o perigo da demora.” (REsp 123659. Rel. Min. Sálvio de

291
JAQUELINE MIELKE SILVA

Outra questão a ser levantada é: como contar o prazo se a dili-


gência comportar o cumprimento fracionado em vários atos processuais
distintos, como por exemplo, o caso de um arresto que deva ser realizado
em várias comarcas, para as quais tenham sido expedidas diversas cartas
precatórias? Novamente Ovídio Araújo Baptista da Silva 99 observa que:
[...]a solução só pode ser uma: ter-se-á por efetivado o arresto a contar da
juntada do último mandado aos autos, ainda que o arresto determinado
por precatória se tenha tornado impossível por inexistência de bens na
comarca, ou nas comarcas correspondentes100.

Entendemos que o prazo previsto no art. 806 é de natureza pro-


cessual, sendo, portanto, peremptório. É inaceitável a tese que sustenta
ser o prazo do art. 806 – à semelhança dos prazos decadenciais – in-
suscetível de ser interrompido, prorrogado ou mesmo suspenso101. Os
critérios de direito material, pertinentes à prescrição e à decadência, não
são adequados à disciplina dos prazos processuais. Sem dúvida, o prazo
do art. 806 não poderá ser interrompido assim como se interrompem
os prazos prescricionais, mas isso não autoriza concluirmos que, não
sendo prescricional, o prazo se deva sujeitar rigorosamente à disciplina
dos prazos de decadência e, como tais, incapazes de serem suspensos102.

Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, 21.09.1998)


99 In: Do Processo Cautelar, p. 183
100 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (EResp 69.870/SP. Rel. Min.
Ari Pargendler, 09.10.2002), verbis: “Liquidação extrajudicial. Arresto. Ação Principal. Decadência.
Enquanto não cumprido integralmente o mandado de arresto dos bens dos administradores da
empresa liquidanda, não lui para o Ministério Público o prazo de decadência do direito de promover
a ação principal. Por isso, não se pode cogitar da cessação da eicácia da medida cautelar, contado o
tempo da efetivação parcial da ordem”.
101 Ao tratar do tema, refere Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil,
v. VIII, Tomo I, p. 275): “O prazo do art. 806 é peremptório, de decadência. Escoado sem a propositura
da ação principal pelo autor, caduca a medida, nas cautelas sobre as quais recai o dispositivo legal.
O caráter peremptório impede seja reduzido ou prorrogado pelas partes, ainda que de acordo, nos
termos do art. 182. Isto não signiica, contudo, que as causas legais de suspensão previstas no Livro
I, Título V, Capítulo III, do Código, a ele não se apliquem, assim como as demais regras relativas à
luência e contagem dos prazos fatais. Assim a superveniência de férias provoca a suspensão. Permite-
se também a prorrogação nas hipóteses autorizadas pelo Código: diiculdade de transporte (art.
182), calamidade pública (art. 182, parágrafo único) e justa causa (art. 183 e §§). Em caso de direito
eventual, sujeito à condição suspensiva ou resolutiva, vige o disposto no art. 130 do Código Civil de
2002, em conseqüência de o prazo do art. 806 só começar a luir a partir do advento da condição”.
102 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Do Processo Cautelar, p. 183-4)

292
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Como se trata de um prazo com natureza processual, o mesmo


se suspende no recesso forense, assim como se prorroga no caso do dies
ad quem cair em inal de semana ou feriado103. Todavia, sendo apre-
sentada exceção de incompetência, o prazo para a propositura da ação
principal não se suspende104. Ovídio Araújo Baptista da Silva105, ao tra-
tar do tema refere:
Tendo em vista esses princípio e sua própria natureza, costuma-se dizer
que o prazo de 30 dias estabelecido pelo art. 806 é fatal e improrrogável.
Mesmo assim a superveniência de férias forenses o suspende (cf. nosso
As ações cautelares, cit., p. 143; Galeno Lacerda, Comentários, 382),
ou quando haja suspensão do processo cautelar em virtude de alguma
causa prevista pelo art. 265, incisos I, II e V, do Código, bem como nos
casos em que o juiz determine a suspensão do processo segundo o art.
13. Se há obstáculo judicial (art. 180), igualmente suspende-se o prazo
(Marcos Afonso Borges, Comentários, 21). É inaceitável a tese que
sustenta ser o prazo do art. 806 – à semelhança dos prazos decadenciais
– insuscetível de ser interrompido ou suspenso. Os critérios de direito
material, pertinentes à prescrição ou à decadência, não são adequados
à disciplina dos prazos processuais. Sem dúvida, o prazo do art. 806
não poderá ser interrompido assim como se interrompem os prazos
prescricionais, mas isso não se autoriza concluirmos que, não sendo
prescricional, o prazo processual deva sujeitar-se aos prazos de
decadência e, como tais, incapazes de serem suspensos106.

Nos termos do art. 808, I do Código de Processo Civil, cessará


a eicácia da medida cautelar se a parte não propuser a ação principal
no prazo de 30 (trinta) dias. Entendemos que a expressão “cessação da

103 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “MEDIDA CAUTELAR.


SUSTAÇÃO DE PROTESTO. EFICÁCIA. PRAZO PARA A PROPOSITURA DA DEMANDA
PRINCIPAL. - Vencido o trintídio (art. 806, c.c. o art. 808, I, do CPC) em um sábado, ao autor é
permitido ajuizar a ação principal no primeiro dia útil subseqüente. Precedentes. Recurso especial
conhecido e provido.” (REsp n. 254443, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, 20.06.2000)
104 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “a oposição de exceção de incompetência suspende
o curso do processo, entretanto, não interfere no cumprimento da exigência estabelecida no art. 806 do
CPC”. (REsp 641.086, 3ª Turma, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j. 20.09.2004)
105 In: Do Processo Cautelar, p. 183-184.
106 Em sentido contrário, Luiz ORIONE NETO (In: Op.. cit., p. 188, verbis: “Daí estabelecer o
Código o prazo de trinta dias para a parte promover a actio principalis, quando a ação cautelar for
antecedente. Esse prazo é de decadência, portanto, não se interrompe nem se suspende. Se o último
dia do prazo cair num sábado, a parte deve propor a ação principal na sexta-feira e não prorrogá-la
para segunda-feira, uma vez que se trata de prazo fatal ou peremptório, e, por isso, improrrogável”.

293
JAQUELINE MIELKE SILVA

eicácia da medida cautelar” refere-se à extinção do processo cautelar107,


tendo em vista a falta de interesse no prosseguimento do procedimento,
pela falta de requisito essencial, que é o periculum in mora108.
Segundo Pontes de Miranda ( Ano), a perda da eicácia da medi-
da cautelar em virtude do não ajuizamento da ação principal no prazo
de 30 dias se dá independentemente de qualquer decisão judicial que
a desconstitua. A medida não precisa ser expressamente revogada; ela
perde automaticamente a eicácia. Contudo se a medida cautelar impor-
tar em constrição de bens pertencentes ao demandado ou a terceiros,
deve-se expedir mandado de levantamento, ou, se for o caso, comuni-

107 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “PROCESSUAL CIVIL -


EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA - AÇÃO PRINCIPAL -
NÃO AJUIZAMENTO NO PRAZO ESTABELECIDO PELO ART. 806 DO CPC - EXTINÇÃO DO
FEITO - PRECEDENTES. - A ação cautelar é sempre dependente do processo principal e visa apenas
garantir a eicácia da futura prestação jurisdicional. - O não-ajuizamento da ação principal no
prazo estabelecido pelo art. 806 do CPC, acarreta a perda da medida liminar e a extinção do processo
cautelar, sem julgamento do mérito. - Embargos de divergência conhecidos e providos.” (EREsp
327438 / DF EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL 2004/0015834-5.
Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS (1094, 30.06.2006). Também a jurisprudência
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “MEDIDA CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE
PROTESTO. AJUIZAMENTO INTEMPESTIVO DA AÇÃO PRINCIPAL. CESSAÇÃO DA
EFICÁCIA. EXTINÇÃO DO PROCESSO CAUTELAR. O não-ajuizamento da ação principal
no prazo do art. 806 do CPC implica não apenas a cessação da eicácia da medida cautelar (art.
808, I, do CPC), como também a extinção do processo cautelar por falta de interesse processual
superveniente (art. 267, VI, do CPC). Agravo de instrumento provido.” (Agravo de Instrumento
Nº 70021466479, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Voltaire de
Lima Moraes, Julgado em 21/11/2007) “CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. CHEQUE
PRÉ-DATADO. NÃO INTERPOSIÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO LEGAL CONDUZ A
EXTINÇÃO DA CAUTELAR. PERDA DE EFICÁCIA NOS TERMOS DO INCISO I DO ARTIGO
808 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. O ajuizamento de ação cautelar de sustação de protesto
de cheque, sem natureza satisfativa, não dispensa a propositura da ação principal no trintídio
legal, sob pena de extinção da cautelar por perda de eicácia. Inteligência do art. 806 do CPC. A
discussão sobre a validade do título encaminhado a protesto, portanto, deverá ser objeto de análise
na ação principal e não na ação cautelar como pretendeu o apelante. APELAÇÃO DESPROVIDA.
UNÂNIME”. (Apelação Cível Nº 70021896667, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Paulo Augusto Monte Lopes, Julgado em 14/11/2007) Em sentido contrário, a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CAUTELAR.
NÃO AJUIZAMENTO DA AÇÃO CAUTELAR NO PRAZO DO ART. 806 DO CPC - PERDA DA
EFICÁCIA - CPC 808. - A inobservância do prazo do artigo 806, do CPC, não acarreta a extinção
do processo, mas apenas a perda da eicácia da liminar concedida. - Precedentes.” (REsp 417.962.
Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, 26.08.2003)
108 Em sentido contrário, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In:
Código de Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2008, p. 760), verbis: “como a não propositura da ação principal conduz apenas à cessação da eicácia
da tutela cautelar, não impondo a extinção do processo, há aí uma decisão interlocutória, impugnável
mediante agravo de instrumento”.

294
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

cação ao órgão ou repartição onde eventualmente a medida haja sido


averbada para que se anote a sua caducidade.
Por outro lado, as cautelares autônomas (v.g. assegurações de
prova), defendidas por Ovídio Araújo Baptista da Silva, prescindem do
ajuizamento de uma ação principal .
Já, para Galeno Lacerda ( Ano) as cautelares administrativas e as
satisfativas também prescindem do ajuizamento de uma ação principal.

9.1.4.17. Cessação da eficácia da medida cautelar109


Além do não ajuizamento da ação principal no prazo de 30 (trin-
ta) dias, o Código de Processo Civil, nos incisos II e III do art. 808 elen-
ca outras hipóteses de cessação de eicácia da medida cautelar. Vejamos:
a) Não efetivação da medida no prazo de 30 (trinta) dias: como a ob-
tenção da cautelar depende de sua efetivação, a cessação prevista na
hipótese contemplada no art. 808, inc. II não é da eicácia da medi-
da, mas da decisão que concedeu oportunidade para a efetivação da
tutela cautelar. Se o autor não promoveu a efetivação da tutela cau-
telar no prazo de 30 (trinta) dias é porque falta requisito essencial
à concessão da tutela cautelar: periculum in mora. Evidentemente,
se ausente periculum in mora é o caso de extinção do processo. Em
havendo obstáculo à efetivação da medida, incide o art. 265, inc. V
do CPC, suspendendo-se o respectivo prazo.
b) Sentença de procedência: o art. 808, inc. III sugere que a tutela
cautelar perde a eicácia com o trânsito em julgado da sentença de

109 O Direito italiano também contempla diversas hipóteses de perda da eicácia da medida
cautelar. Neste sentido, a lição de Luigi Paolo COMOGLIO, Corrado FERRI, Michele TARUFFO
(In: Ob. cit., p. 59): “Nello schema delineato dalla nuova norma (commi e 3-4), il provvedimento
cautelare diventa ineicace: - quando, nel caso di misure cautelari domandate ante causam, il
succesivo procedimento di merito non sai iniziato nel termine perentorio issato dal provvedimento
che accoglie la domanda, oppure quando, dopo il suo inizio, esso si estingua (situazione, lo si ripete,
estranea alla tutela cautelare nel processo societário, nonché alle misure cautelari a regime speciale; -
quando non sai stata versata, secondo le modalità stabilite dal giudice, la cauzione prevista dall´art.
669 undecies; - quando con sentenza (anche non passata in giudicato) sai dichiarato inesistente,
dal giudice del procedimento di mérito, il diritto a cautela del qual la misura provvisoria era stata
concessa (situazione di ineicacia che si applica anche alle cautele del processo societario e alle misure
cautelari a regime speciale); - quando, nel caso in cui la causa di merito sai devoluta alla giurisdizione
di un giudice straniero o a un arbitrato italiano o estero, la parte istante non abbia proposto domanda
di esecutorietà in Itália della sentenza straniera o del lodo arbitrale, entro i termini decadenzialei
eventualmente previsti dalla legge o dalle convenzioni internazionali (...); - quando, nel medesimo
caso, la sentenza straniera di mérito (anche non passata in giudicato: il che comporta una deroga alle
condizioni generali per la sua esecutorietà, già previste dall´art. 797 n. 4”.

295
JAQUELINE MIELKE SILVA

procedência proferida no processo principal110. Indubitavelmen-


te, consoante exposto no item 1.1.1, Capítulo I, Parte 1, o Código
de Processo Civil vinculou a tutela cautelar à duração do processo
principal. Seguindo-se a concepção de Ovídio Araújo Baptista da
Silva, a eicácia da tutela cautelar, contudo, não se subordina à pen-
dência do processo principal, mas à obtenção da tutela do direito
buscada através da ação principal, à cessação da situação de perigo
que a ensejou111.
Como salienta Ovídio Araújo Baptista da Silva112, a cessação de
eicácia da medida cautelar, em virtude da sentença inal proferida na
demanda satisfativa, dar-se-á apenas se a sentença for de rejeição do
pedido, sentença de improcedência, ou uma daquelas a que a doutrina
denomina sentença de “carência da ação”. Nestas hipóteses, é natural
que a medida cautelar perca a eicácia, desde que o direito que ela pre-
tendia proteger foi declarado inexistente. Se a sentença, porém, for de
acolhimento do pedido, portanto sentença de procedência, a medida
cautelar não perderá a eicácia até ser substituída por outra medida sa-
tisfativa, salvo se as circunstâncias ou a natureza de tal sentença por si
só dispensem, a partir dela, a proteção cautelar113.
Em suma, a cessação de eicácia de medida cautelar por extin-
ção do processo principal só ocorre na hipótese de decisão desfavorá-
vel ao autor.
c) Sentença de extinção do processo sem resolução do mérito e de
improcedência: o trânsito em julgado da sentença que extingue o
processo sem resolução do mérito ou que julga improcedente a ação
cautelar implica na cessação da eicácia da medida. Porém, estas
sentenças, quando são impugnadas e estão sendo analisadas pelo
tribunal não eliminam a possibilidade de dano.

110 No caso de sentença de procedência não transitada em julgado não há que se falar em cessação
da eicácia da medida cautelar. Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
(REsp 320.681, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em 19..02.2002).
111 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de
Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 760).
112 In: Curso de Processo Civil, p. 147 e seguintes.
113 No mesmo sentido, a lição de Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo
Civil, Vol. VIII, Tomo I, n. 74, p. 292-293), verbis: “A cessação de eicácia por extinção do processo
principal, com ou sem julgamento do mérito (n. III), pressupõe a não-condenação do réu. Se condenado
este, a medida não se extingue: ou passa ao processo de execução, para nele se transformar em ato
executório, ou se converte no próprio comando deinitivo da sentença (p. ex. alimentos provisionais
em deinitivos)”

296
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

9.1.4.18. Responsabilidade civil pela concessão de medidas


cautelares
A responsabilidade civil contemplada no artigo 811 do Código de
Processo Civil é de natureza objetiva. O legislador ligou o dever de inde-
nizar perdas e danos apenas ao fato de ter o requerente, que tornou efeti-
va a medida cautelar, sucumbido no processo principal (remissão ao art.
808 do CPC), sem qualquer indagação no tocante à existência de culpa,
dolo ou má-fé processual, que porventura tivesse se revestido a conduta
do requerente ao obter a concessão da medida cautelar. Basta a sucum-
bência no processo principal para que o dever de indenizar se estabeleça.
a) Sentença no processo principal desfavorável (art. 811, inc. I): quan-
do a sentença no processo principal é desfavorável ao demandante
da tutela cautelar, esse responde objetivamente pelo eventual dano
ocasionado pela efetivação da medida cautelar. Contudo, não há
que se falar em dever de indenizar como resultado direto da sen-
tença de improcedência proferida no processo cautelar. Note-se que
a tutela cautelar pode ser inicialmente necessária – e nessa hipótese
ter causa – e, mais tarde, vir a perder a sua justiicativa, sendo revo-
gada pela sentença cautelar. Nesse caso, o demandante não pode ser
responsabilizado pelo dano que a efetivação da tutela cautelar tenha
causado à parte. Em semelhante situação, porque é imprescindível
que se pergunte sobre a causa ou a justiicativa da tutela cautelar, a
responsabilidade depende de culpa, exigindo uma ação (autônoma)
para a obtenção de tutela ressarcitória114.
b) Demandante que não promove a citação do demandado no pra-
zo de 5 (cinco) dias (art. 811, inc. II): conforme já mencionado,
uma medida cautelar não pode causar gravame despropositado ao
demandado, devendo obedecer a regra da menor restrição do pos-
sível. A não citação do réu no prazo de 5 (cinco) dias impede ao
réu de obter a substituição da medida prevista no art. 805 do CPC,
tornando excessivamente grave a postergação do contraditório. As-
sim, quando não promovida a citação no prazo de 5 (cinco) dias,
o demandante responde objetivamente pelo dano ocasionado pela
efetivação da tutela liminar115.

114 Neste sentido Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de
Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 763)
115 Segundo Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de
Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.

297
JAQUELINE MIELKE SILVA

c) c) Cessação da eicácia da medida nas hipóteses contempladas no art.


808 (art. 811, inc. III): em sendo cessada a eicácia da liminar conce-
dida, o autor da ação cautelar também responde objetivamente, nos
termos do art. 811, inciso III, pelos prejuízos sofridos pelo réu.
d) d) Reconhecimento de prescrição ou decadência (art. 811, inc. IV):
tem exatamente o mesmo signiicado da sentença desfavorável no
processo principal. Deste modo, como o autor responde objetiva-
mente quando a sentença no processo principal lhe é desfavorável,
também responderá objetivamente quando for reconhecida a pres-
crição ou decadência.

9.2. A tutela antecipada genérica prevista no artigo 273

9.2.1. Natureza da decisão que antecipa a tutela


As medidas que antecipam efeitos da tutela pretendida pelo autor
realizam, quer dizer, antecipadamente satisfazem, efeitos da sentença
inal. Elas sempre serão antecipações de efeitos de uma sentença satis-
fativa; portanto, realização provisória dos eventuais efeitos da sentença
de procedência.

9.2.2. Requerimento e concessão do provimento


antecipatório
Nos termos do artigo 273, os provimentos antecipatórios não po-
dem ser concedidos ex oicio116, ao contrário dos provimentos cautela-
res nas hipóteses previstas no artigo 797. É possível que o requerimento
de tutela antecipada seja formulado na petição inicial, no curso do pro-
cesso, por simples petição, ou mesmo na esfera recursal117.

764), “a particularidade, nesse caso, é que a liquidação deve tomar em conta apenas o dano provocado
durante o espaço de tempo em que o réu não esteve no processo em virtude do atraso em sua citação”.
116 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil
– Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 270), entendem
que excepcionalmente a tutela antecipada pode ser concedida ex oicio, verbis: “A tutela antecipada
tem de ser requerida pela parte. Excepcionalmente, em casos graves e de evidente disparidade de
armas entre as partes, contudo, à luz da razoabilidade, é possível antecipar a tutela de ofício no
processo civil brasileiro”.
117 A tutela antecipada na esfera recursal recebe o nome de efeito ativo ou efeito suspensivo-ativo.

298
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Há três possibilidades de deferimento da tutela antecipada, quan-


do no curso do procedimento:
1º) inaudita altera parte;
2º) mediante a designação de audiência de justiicação prévia;
3º) mediante a ouvida da parte contrária.
No tocante à primeira das hipóteses, recomenda-se cautela, tendo
em vista que na tutela antecipada há antecipação de mérito. Entretanto,
em algumas hipóteses, poderá se revelar recomendável a concessão da
tutela antecipada sem a ouvida da parte contrária, como por exemplo,
quando houver risco de perecimento do direito, em razão da demora
(ou seja, se ouvido o réu, talvez já não mais seja eicaz a concessão da
tutela antecipada), ou ainda naqueles casos em que, se ouvido o réu, este
puder frustrar a execução da medida. Não há que se falar em violação ao
princípio do contraditório e da ampla defesa, porque o réu será ouvido
posteriormente à concessão da medida, podendo o magistrado inclusive
modiicá-la. Há o chamado contraditório postergado ou diferido.
A segunda das hipóteses, supramencionadas, conigurar-se-á na-
quelas hipóteses em que a concessão da medida antecipatória depender
da inquirição de testemunhas. O magistrado, então, deverá designar
audiência de justiicação prévia, que deverá ser realizada nos moldes
da justiicação prévia que pode ser designada no procedimento cautelar
(artigo 804). É de se indagar:
a) precisará o réu ser convocado para comparecer a esta audiência?
b) se convocado, ou mesmo se tomar conhecimento por outros meios,
o que poderá participar desta audiência? Poderá levar testemunhas?
Parece-nos que o réu não precisa ser convocado para participar
da audiência de justiicação prévia, na exata medida em que é possível
a concessão inaudita altera parte. Todavia, se o mesmo tomar conheci-
mento por outros meios, ou mesmo tiver sido convocado, não há como
lhe negar a participação. Todavia, entendemos que sua participação
deve ser restrita: poderá inquirir as testemunhas do autor e contraditá-
-las, não podendo levar testemunhas, tendo em vista que a audiência de
justiicação prévia é para o autor obter a liminar. O réu terá a possibili-
dade, por ocasião da audiência de instrução e julgamento, de arrolar tes-
temunhas e, consequentemente, ouvi-las. Do mesmo modo, a audiên-
cia de justiicação prévia não se presta para a tomada de depoimentos
pessoais. Se o contrário fosse verdadeiro, estaríamos possibilitando a

299
JAQUELINE MIELKE SILVA

realização de verdadeira instrução no início do procedimento, quando


sequer houve a apresentação de contestação.
Já no caso da terceira hipótese, quando a tutela é concedida me-
diante a ouvida da parte contrária, não há maiores problemas em razão
do contraditório efetivo que se apresenta. Entretanto, a mesma só será
concedida deste modo, se for possível aguardar – ou seja, se o tempo
não comprometer a eicácia da medida – e, a ouvida do réu não compro-
meter o resultado útil do processo.

9.2.3. Momento para o deferimento/indeferimento da


tutela antecipada
A tutela antecipada poderá também ser concedida/negada no
curso do processo ou no próprio corpo da sentença118, o que é reconhe-
cido pela maioria da doutrina119 e da jurisprudência120. O grande pro-
blema é no tocante ao recurso cabível contra a decisão. Até a edição da
Lei n. 10.352 de 26.12.01, havia uma forte tendência na jurisprudência,
principalmente na Justiça Federal e na doutrina, em airmar o cabimen-

118 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil
– Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 272) ao tratar
do tema, lecionam: “como é ilógico admitir que alguém possa ter o seu direito realizado quando há
verossimilhança e receio de dano, e não possa obter esse mesmo resultado quando o direito já está
evidenciado e ainda está presente o fundado receio de dano, admite-se a tutela antecipatória ao inal
do procedimento, quando o juiz já está em condições de proferir a sentença”. No mesmo sentido o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp 473.069/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes
Direito, j. em 21.10.2003).
119 Neste sentido o entendimento de José Eulálio Figueiredo de ALMEIDA (In: Revista dos
Tribunais, n. 774, p. 99. Concessão do pedido da tutela antecipatória na própria sentença), verbis:
“Diante do quadro que se nos apresenta, nenhum empecilho há em que se possibilite a antecipação da
tutela na própria sentença. Trabalha-se aqui com a hipótese de não haver sido a tutela antecipatória
deferida ab origine, nem tampouco imediatamente após o oferecimento da contestação pelo réu;
ou mesmo imediatamente após haver sido concluída a instrução processual. Convencido da real
possibilidade de julgamento antecipado da lide, restará ao Magistrado como momento exato para
decidir sobre o deferimento da antecipação da tutela a fase de proferimento da sentença de mérito,
mas isso somente será possível se as partes colaborarem com o funcionamento da justiça, trazendo ao
conhecimento do Juiz os elementos de que necessita para a composição do litígio”.
120 “Antecipação de tutela. Concessão no bojo da sentença. Possibilidade. Efeitos. Recursos. Execução.
Artigo 273, §§ 3º e 5º do CPC. Nenhum óbice há a que, em uma mesma peça, proira o juiz a sentença
e deira a tutela antecipada, que poderia ter concedido antes, mas que não o izera por qualquer razão,
inclusive eventual produção de provas apenas em audiência, ou melhor e mais acurada análise da
prova somente quando da oportunidade do julgamento antecipado. Não seria evidentemente jurídico
e justo negar-se a tutela antecipada, quando presentes seus pressupostos”. (TJDF, Ac. Unânime, 3ª
CC, Rel. Des. Mário Machado, RJ 246/74).

300
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

to de dois recursos: o provimento antecipatório seria atacado por meio


do agravo de instrumento121, já o restante do provimento – com nature-
za de sentença –, seria atacado através do recurso de apelação. O grande
problema deste entendimento é a violação ao princípio da singularidade
ou unicidade recursal.
Em 2001, com a alteração legislativa no artigo 520 pela Lei
n.10.352, houve a inserção do inciso VII, que obteve a seguinte redação:
Art. 520. A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo.
Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de
sentença que:
[...]
VII - conirmar a antecipação dos efeitos da tutela.

A inserção do inciso VII, no artigo 520, soluciona em parte o


problema; todavia, não o resolve, por uma simples e incontestável razão:
apenas se conirma o que um dia foi concedido e somente se concede o
que não foi concedido anteriormente. Ou seja, conirmação não possui
o mesmo signiicado de concessão. Novamente surge a dúvida: será pos-
sível a aplicação analógica do artigo 520, inciso VII, também aos casos
de concessão da tutela antecipada no próprio corpo da sentença?
A resposta ao questionamento esbarra no princípio da taxativida-
de que vigora em matéria de recursos, verbis:
A preocupação que amiúde vimos mencionando neste trabalho, de
que o ordenamento jurídico deve sempre procurar conciliar a rapidez
com a segurança e justiça do provimento jurisdicional, é externada
pelo CPC quando do tratamento regulamentador dos recursos. Não foi
deixada ao alvedrio das partes a possibilidade de criação de recursos
para exercitarem o inconformismo diante de decisão judicial, tampouco
a escolha, dentre os recursos previstos na lei, daquele que melhor
consultar-lhes os interesses.

121 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil –
Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 273) ainda entendem
deste modo, verbis: “A parte prejudicada, pela concessão ou não da tutela antecipatória, deve ter a seu
dispor o recurso adequado, que no caso é o agravo, que é interposto diretamente no tribunal. Assim,
nada impede que na mesma folha de papel o juiz proira a decisão interlocutória e logo após a sentença,
a primeira abrindo ensejo para o recurso de agravo e a segunda para o recurso de apelação”.

301
JAQUELINE MIELKE SILVA

No primeiro caso, a vedação à criação de novos recursos é fruto da


adoção do princípio da taxatividade, segundo o qual somente são con-
siderados tais aqueles designados, em numerus clausus, pela lei federal.
Em razão do princípio da taxatividade, parece também não ser
possível a aplicação analógica do artigo 520, inciso VII, às hipóteses de
concessão da tutela antecipada no próprio corpo da sentença.
Logo, mesmo após a edição da Lei n. 10.352, o problema persiste.
Na verdade, deveria o legislador ter contemplado o inciso VII, do artigo
520, também para as hipóteses de concessão. Como se observa, esta é
mais uma das tantas alterações legislativas realizadas pela metade.
Diante da inexistência de previsão legislativa, entendemos que o
recurso mais adequado – com a ressalva acima realizada – é o de ape-
lação, sem o efeito suspensivo, por aplicação analógica do art. 520, inc.
VII, do CPC122.

9.2.4. Requisitos necessários à concessão da tutela


antecipada
O artigo 273 airma que o juiz pode antecipar a tutela “desde que,
existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alega-
ção”. A prova inequívoca signiica a prova evidente de que o direito está
ao lado daquele que pretende a antecipação de tutela, que diicilmente
estará presente no início de um processo judicial.
Segundo Luiz Guilherme Marinoni123,
[...] a grande diiculdade da doutrina e dos tribunais, diante dessa
imprescindível análise, decorre da relação, feita pelo art. 273,
entre prova inequívoca e verossimilhança. Melhor explicando: há
diiculdade de compreender como uma prova inequívoca pode gerar
somente verossimilhança. Essa diiculdade é facilmente explicável,
pois decorre de vício que se encontra na base da formação dos
doutrinadores e operadores do direito, os quais não distinguem ”prova”
de ”convencimento judicial”. Ora, como o art. 273 fala em “prova
inequívoca” e ”convencimento da verossimilhança”, qualquer tentativa

122 Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp 600.815. Rel. Min.
Hamilton Carvalhido, j. em 16.06.2005).
123 In: Revista Jurídica n. 328, p. 9. Prova, Convicção e Justiicativa diante da Tutela Antecipada.

302
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

de explicar a relação entre as duas expressões será inútil se não se partir


da distinção entre prova e convencimento.

A prova existe para convencer o juiz, de modo que chega a ser um


absurdo identiicar a prova com convencimento, como se pudesse exis-
tir prova de verossimilhança ou prova de verdade. A intenção da parte,
ao produzir a prova, é sempre a de convencer o juiz.
Assim, a denominada ”prova inequívoca”, capaz de convencer
o juiz da ”verossimilhança da alegação”, somente pode ser entendida
como a prova suiciente para o surgimento do verossímil, entendido
como o não suiciente para a declaração da existência ou inexistência do
direito124. Do contrário, a maioria das antecipações de tutela deixariam
de ser concedidas pela ausência de prova inequívoca.
Trata-se, na verdade, da prova necessária para a demonstração da
probabilidade do direito invocado. Concordamos com o entendimento
de Luiz Guilherme Marinoni125, para quem a denominada prova inequí-
voca, capaz de convencer o magistrado da verossimilhança da alegação
somente pode ser entendida como a prova suiciente para o surgimento
do verossímil, um passo aquém da certeza.
Não é demasiado salientar que o autor, quando pleiteia a tutela
antecipada, pode se valer de prova documental, de prova testemunhal
ou pericial antecipadamente realizada e de laudo ou pareceres de es-
pecialistas, que poderão substituir, em vista da situação de urgência,
a prova pericial126. O autor ainda poderá requerer que sejam ouvidas,
imediata e informalmente, testemunhas, bem como solicitar inspeção
judicial127. Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva128, o silêncio do
legislador quanto à previsão de uma instrução liminar não impede a
realização de dilação probatória para a concessão da tutela antecipada,
devendo-se aplicar analogicamente as regras que disciplinam a liminar
no processo cautelar, pois, segundo ele, “no que diz respeito à demons-

124 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela. São Paulo: Malheiros
Editores, p. 211-212.
125 In: Antecipação da Tutela na Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros,
1995, p. 67-8.
126 Neste sentido: Paulo Afonso de Souza SANT´ANNA, Ob. Cit., p. 86-7. Luiz Guilherme
MARINONI (In: Novas linhas do processo civil, 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 132.
127 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela, p. 212.
128 In: Curso ..., Vol. 1, p. 145.

303
JAQUELINE MIELKE SILVA

tração do periculum in mora, não há diferença signiicativa entre prote-


ção cautelar e proteção antecipatória”.
A verossimilhança, por sua vez, deve considerar: (a) o valor do
bem jurídico ameaçado; (b) a diiculdade de o autor provar a sua ale-
gação; (c) a credibilidade, de acordo com as regras de experiência, da
alegação e (c) a própria urgência descrita129.
O artigo 273 dispõe que não se concederá a tutela antecipada no
caso de irreversibilidade do provimento. A doutrina critica de um modo
geral a terminologia “irreversibilidade do provimento”, tendo em vista
que, via de regra, todos os provimentos antecipatórios são reversíveis
(em face da possibilidade de interposição do recurso de agravo de ins-
trumento). O questionamento elaborado, então, é o seguinte: se todos
os provimentos antecipatórios são reversíveis, a qual reversibilidade se
refere o artigo 273?
De um lado, parte da doutrina posiciona-se no sentido de que o
dispositivo trata de reversibilidade dos efeitos fáticos do provimento,
que nada mais é do que a possibilidade de retornar-se às coisas, ao status
quo anterior. Por outro lado, parte da doutrina e da jurisprudência, da
qual compartilhamos, airmam que a irreversibilidade dos efeitos fáti-
cos do provimento não pode constituir obstáculo para a concessão da
tutela antecipada130.
Ao tratar do tema, Cândido Rangel Dinamarco131 observa que,
[...] é preciso receber com cuidado o alvitre de Marinoni, para quem
se legitimaria o sacrifício do direito menos provável, em prol da
antecipação do exercício “de outro que pareça provável”. O direito
não tolera sacrifício de direito algum e o máximo que se pode dizer
é que algum risco de lesão pode-se legitimamente assumir. O direito
improvável é direito que talvez exista e, se existir, é porque na realidade
inexistia aquele que era provável. O monograista fala da coexistência
entre o princípio da probabilidade e o da proporcionalidade, de modo a
permitir-se o sacrifício do bem menos valioso em prol do mais valioso.

129 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela, p. 213.


130 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o “possível risco de irreversibilidade dos efeitos
do provimento da antecipação da tutela contida no art. 273, § 2º, CPC não pode ser interpretado ao
extremo, sob pena de tornar inviável o direito do reivindicante” (AgRg no Ag 502.173/RJ, Rel. Min.
João Otávio de Noronha, j. em 02.08.2005).
131 In: A Reforma do Código de Processo Civil, p. 144

304
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

Mesmo com essa atenuante, não deve o juiz correr riscos signiicativos e,
muito menos, expor o réu aos males da irreversibilidade, expressamente
vetados pela lei vigente (art. 273, § 2º).

No caso da tutela antecipada deve-se falar de uma tutela do “pro-


vável”, ao contrário do que refere Cândido Rangel Dinamarco, pois não
se sabe se o direito airmado pelo autor existe ou não existe132. Falar de
sacrifício do direito improvável, não seria correto, pois a alusão a um
direito improvável já traz em si a ideia de que o direito pode existir. Se-
gundo Luiz Guilherme Marinoni133,
[...] o que pode ser dito, e com razão, é que o direito material não pode
ser qualiicado de ”provável” ou de ”improvável”, pois ele existe ou não
existe. Porém a existência do direito é algo que pertence ao plano do
direito material. Quando estamos no plano do processo e, em particular,
do juízo sumário, está em jogo a probabilidade da existência do direito
airmado e, portanto, o “direito provável”, que é uma categoria, assim
como a do direito líquido e certo, pertencente ao processo.

Diante do exposto, resta evidente que ao ser analisado o pedido


de tutela antecipada, deverá o magistrado fazer um juízo de ponderação
do interesse mais relevante no caso concreto, aplicando o princípio da
proporcionalidade.

9.2.5. Tutela antecipada concedida a partir do propósito


manifestamente procrastinatório do réu
A tutela antecipada baseada no abuso do direito de defesa ou
propósito protelatório do réu é um instrumento de correção do uso in-
devido do processo. Não se obstrui o direito de ampla defesa, mas tão-
somente se redistribui o ônus do tempo do processo, devendo suportar
a demora a parte que conta com probabilidade menor de êxito134.
Para Sérgio Cruz Arenhardt e Luiz Guilherme Marinoni135, essa
distribuição do tempo no processo deve ser feita de acordo com a evi-

132 Neste sentido: Luiz Guilherme MARIONI. A antecipação da tutela, p. 227.


133 In: A antecipação da tutela, p. 227.
134 Neste sentido: Marcelo M. BERTOLDI. “Tutela antecipada, abuso do direito e propósito
protelatório do réu”. Aspectos ..., p. 330-331.
135 In: Manual do Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 224.

305
JAQUELINE MIELKE SILVA

dência do direito airmado pelo autor e a fragilidade da defesa apresen-


tada pelo réu, não bastando apenas a caracterização do primeiro. Um
direito é evidenciado de pronto quando é demonstrado, ainda que com
base em um critério de probabilidade. A defesa é frágil quando deixa
entrever a grande probabilidade de o autor resultar vitorioso.
Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva136, o que o legislador
quis signiicar, na hipótese contemplada no inciso II, do artigo 273, não
foi, de modo algum, a consideração de que essa antecipação teria caráter
punitivo contra a litigância temerária137. O que se dá, com a conduta do
réu, nestes casos, é que o índice de verossimilhança do direito do autor
eleva-se para um grau que o aproxima da certeza. Se o juiz já se inclinara
por considerar verossímil o direito, agora, frente à conduta protelatória
do réu, ou ante o exercício abusivo do direito de defesa, fortalece-se
a conclusão de que o demandado realmente não dispõe de nenhuma
contestação séria a opor ao direito do autor. Daí a legitimidade da ante-
cipação da tutela.
A tutela antecipada, fundada em abuso do direito de defesa, ape-
nas é possível quando a defesa ou o recurso do réu deixam a entrever a
grande probabilidade de o autor resultar vitorioso e, consequentemente,
a injusta espera para a realização do direito. Por outro lado, entendemos
que para a caracterização do abuso do direito de defesa ou propósito
protelatório, não se faz necessária a intenção do réu de se servir inde-
vidamente do processo, podendo ocorrer tanto na contestação e em re-
cursos, como em atos extraprocessuais anteriores à propositura da ação,
como notiicações, interpelações, protestos ou correspondências138.

9.2.6. Efeitos passíveis de serem antecipados


Muito embora a tutela antecipada seja providência que benei-
cie o autor do processo, pode o réu requerê-la quando reconvir ou na

136 In: Curso de Processo Civil, v. 1, p. 142


137 No mesmo sentido, Sérgio Cruz ARENHARDT e Luiz Guilherme MARINONI (In: Manual
..., p. 223-224), verbis: “Para efeito de tutela antecipatória, é possível extrair do art. 17 do CPC alguns
elementos que podem colaborar para a caracterização do abuso de direito de defesa. Isto não signiica,
porém, que as hipóteses do art. 17 possam servir de guia para a compreensão da tutela antecipatória
fundada em abuso de direito de defesa”.
138 Neste sentido: Teori Albino ZAVASCKI. “Antecipação da tutela e colisão de direitos
fundamentais”. Coord, Sálvio de Figueiredo Teixeira. A reforma do Código de Processo Civil. São
Paulo: Saraiva, 1996, p. 153-154.

306
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

contestação das ações dúplices139. Assim como Nelson Nery Júnior140,


entendemos que a legitimidade para requerer a antecipação de tutela
é estendida a todos aqueles que deduzem pretensão em juízo, como o
denunciante, na denunciação da lide; o oponente, na oposição; os in-
tervenientes que agem ad coadjuvandum, como o assistente (simples e
litisconsorcial) e o Ministério Público, no interesse e em benefício do
assistido e daquele por quem intervém.
No âmbito da doutrina nacional reconhece-se duas grandes ten-
dências no tocante aos efeitos passíveis de serem antecipados. Uma res-
tritiva, sustentada por Ovídio Araújo Baptista da Silva, e outra ampliati-
va141, sustentada por outros doutrinadores.
Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva 142, apenas os efeitos
executivo lato sensu e mandamental são passíveis de serem antecipados.
Os demais efeitos, segundo o autor, são incompatíveis com a ideia de
antecipações provisórias. Segundo ele,
[...] o juiz não poderá antecipar declaração, constituição ou condenação
sob forma de tutela provisória, e, se o izer, seu provimento será
inteiramente inócuo, sem qualquer relevância processual. Se o juiz
dissesse, por exemplo, numa ação declaratória de ilegalidade de exigência
iscal, que “tudo indica que o tributo é realmente ilegal”; ou dissesse que,
”pelas provas até agora existentes nos autos, sou levado a supor que o
autor realmente tem razão”; ou dissesse, em seu provimento liminar,
mais ou menos isto: ”o direito do autor apresenta-se com um elevado
grau de verossimilhança”; ou então, numa ação de anulação de contrato,
dissesse o magistrado: ”pela prova de que disponho até agora, considero
verossímil a alegação do autor, razão pela qual decreto a anulação
provisória do contrato”; ou então, numa ação condenatória, expedisse
decisão liminar com este teor: ”o réu é provisoriamente condenado, até
que eu possa conirmar ou revogar esta condenação na sentença inal”,
todas essas proposições não teriam nenhuma relevância processual.

139 Neste sentido: Paulo Afonso de Souza SANT´ANNA. Novos Contornos do Instituto da
Tutela Antecipada e os Novos Paradigmas do Sistema Processual Civil (Lei 10.444/02). Revista de
Processo 112, p. 86.
140 In: Procedimentos e Tutela antecipatória. Teresa Arruda Alvim WAMBIER (Coord.).
Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 389.
141 Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp 595.172/SP), verbis: “a
antecipação de tutela é possível em todas as ações de conhecimento”.
142 In: Curso de Processo Civil, v.. 1, p. 136

307
JAQUELINE MIELKE SILVA

Todavia, se o juiz puder extrair, desse juízo declaratório de ve-


rossimilhança, algum efeito executivo ou mandamental, teríamos então
composto inteiramente uma medida antecipatória dos efeitos da tutela
pretendida pelo autor, segundo a previsão do art. 273.
Já outros doutrinadores143 sustentam a possibilidade de antecipa-
ção de tutela de alguns ou de todos demais efeitos de uma sentença. Ao
tratar do tema, refere Araken de Assis144:
Feitas as distinções, um só efeito, neste aspecto, rejeita quaisquer
antecipações: o efeito da sentença declarativa, que é a certeza. Admitir-
se-á, em linha de princípio e ignorando as travas do art. 273, a antecipação
do efeito constitutivo (o estado de divorciado), da condenação (o
título executivo), da execução (o intercâmbio patrimonial forçado)
e do mandamento (ordem). O obstáculo deriva de razão singular:
l´accertamento, percebeu Liebman, “sensa cosa giudicata sembra privo
di importanza e non serve a nulla” (a declaração sem a coisa julgada
parece privada de importância e nada serve). Quer dizer – e dando razão
a Hellwig –, o efeito da declaração (certeza) nascerá com o trânsito em
julgado da sentença.

Luiz Guilherme Mariononi145, por sua vez, ao tratar do tema re-


fere que “quando se está diante de um pedido declaratório ou de um
pedido constitutivo, a noção de tutela antecipatória não é tão clara como

143 Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Revista LTR, v.. 62-10/1313), ao tratar do tema,
leciona: “A doutrina nacional – a nosso ver, com razão – parece propender no sentido positivo, isto
é, admitindo a antecipação da tutela constitutiva. Nesse sentido, Cândido Rangel DINAMARCO
observou que ‘o ato de concessivo da tutela pode ter natureza constitutiva, antecipando situações
novas desejadas pelo demandante.” (‘A Reforma do Código de Processo Civil’, São Paulo, Malheiros,
3ª edição, 1996, n. 105, p. 144). No mesmo sentido pronunciaram-se Nelson NERY JÚNIOR (‘As
atualidades sobre Processo Civil’, São Paulo, Ed. RT, 1996, p. 73), Ernane Fidélis dos SANTOS
(‘Novos Peris do Processo Civil Brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 1996, n. 7, pág. 10)”. Prossegue
o autor: “Em outros casos o cabimento da antecipação é mais evidente ainda, como quando, por
exemplo, ao pedido declaratório ou constitutivo, se acumula um condenatório, que pressupõe o prévio
acolhimento do primeiro (caso, v.g., da rescisão ou anulação de um contrato com restituição do bem
contratual ao primitivo alienante). A pretensão antecipatória refere-se à condenação a restituir,
mas sua apreciação somente será possível depois de um acertamento provisório acerca da pretensão
de rescindir ou anular o contrato sub judice. Sempre, pois, que de uma demanda declaratória ou
constitutiva for possível extrair uma pretensão executiva ou mandamental, haja ou não cumulação
de pedidos, é irrecusável a possibilidade de usar a antecipação de tutela, se presentes, naturalmente,
os seus pressupostos legais”.
144 In: Doutrina e Prática do Processo Civil Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 411.
145 In: A antecipação da tutela. Op. cit., p. 61.

308
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

quando a hipótese envolve pedidos condenatório, executivo ou manda-


mental”. Prossegue o seu raciocínio apontando alguns exemplos, verbis:
Tratando-se de ação declaratória que objetiva demonstrar a ilegitimidade
de um ato, o autor pode requerer, mediante tutela antecipada, que o juiz
ordene ao réu não-fazer o que a procedência da demanda declaratória
demonstrar ser ilegítimo fazer. Assim, por exemplo, o autor de uma
ação declaratória de que um contrato social impede a prática de um
ato pela maioria simples da vontade dos sócios poderá requerer que o
juiz ordene que não seja praticado o ato que, ao inal e em virtude da
sentença declaratória, poderá ser considerado ilegítimo. A tutela que
impede a prática do ato que a demanda objetiva declarar ilegítimo
previne com base em cognição sumária da ilegitimidade do ato.
Note-se que tal tutela não objetiva garantir a possibilidade de exercício
do direito, porém impedir a violação do direito que ainda deverá ser
declarado.
É possível, ainda, que o autor da demanda que objetiva declarar a
legitimidade de um ato tenha a necessidade de pedir que o réu se
abstenha de impedir a prática do ato que não poderia ser contestado se
já houvesse sido proferida a sentença declaratória.
No caso em que o autor obtém tutela para poder exercer um direito
que ainda será declarado, ica fácil perceber o seu caráter antecipatório.
A tutela, neste caso, não está assegurando a possibilidade de o autor
realizar o direito no futuro, porém viabilizando o seu imediato exercício.
Nestas hipóteses o caso não é de mera declaração sumária. Se da
declaração sumária extrai-se algum efeito mandamental ou executivo,
não se está, à evidência, diante de uma “declaração sumária”. A declaração
sumária, por si só, ainda que seja da ilegitimidade de um ato, nada vale,
já que a sua efetividade ica na dependência da vontade do réu.
No caso de demanda constitutiva, o autor pode requerer, mediante
tutela antecipatória, que o réu se abstenha de praticar atos que possam
impedir o exercício das faculdades que estão contidas no direito a ser
constituído. É o que pode ocorrer, v.g., na ação constitutiva de servidão.
Também é inegavelmente antecipatória a tutela que suspende a
eicácia de um ato que se pretende ver anulado. Neste caso impede-se,
antecipadamente, que o ato produza efeitos contrários ao autor. Há uma
correlação nítida entre a suspensão da eicácia e a sentença; o autor,
através da suspensão da eicácia, desde logo se vê livre dos efeitos do
ato impugnado.

309
JAQUELINE MIELKE SILVA

Os exemplos mencionados por Luiz Guilherme Marinoni não


contemplam a hipótese de antecipação de efeito constitutivo ou declara-
tório, mas sim de efeito mandamental, que é perfeitamente passível de
ser antecipado.
No tocante ao efeito condenatório, grande parte da doutrina in-
clina-se por admitir sua antecipação, em razão da expressa vinculação
do artigo 273 à integralidade do artigo 475-O, que revogou o art. 588
do Código de Processo Civil, que contempla a execução provisória. O
raciocínio realizado pela maioria da doutrina é simples: se o artigo 273
está vinculado ao processo de execução e se este está vinculado a ações
condenatórias, então é possível a antecipação do efeito condenatório.
O grande problema que existe é no tocante à execução do provi-
mento condenatório antecipado. A tutela antecipada insere-se no âm-
bito da tutela de urgência. O processo de execução no Brasil é moroso.
Se o autor da demanda precisar executar o provimento antecipatório,
certamente o seu direito ao inal do processo de execução já terá pereci-
do. Por esta razão, parece-nos que a antecipação do efeito condenatório
também não surtirá qualquer efeito.
Luiz Guilherme Marinoni, em que pese concordar com a ante-
cipação do efeito condenatório, sugere que, ao invés de se utilizar do
processo de execução, de modo a garantir-se a efetividade do provimen-
to, que se deva utilizar subsidiariamente a tutela especíica prevista nos
artigos 461 e 461-A:
Contudo, pensando-se na antecipação “da tutela” – e não apenas
na antecipação dos efeitos da sentença que a presta −, e admitindo-
se que o instituto da tutela antecipatória existe para permitir a
obtenção antecipada de um “bem da vida”, não há como conceber a
impossibilidade do uso dos meios executivos que sejam realmente
capazes de conferir a “tutela” na forma antecipada. Melhor explicando:
se a tutela que implica a antecipação de soma não pode ser entregue
mediante o uso do processo de execução que deve seguir a sentença
condenatória, cabe ao juiz, de acordo com a situação concreta que lhe é
apresentada, determinar a modalidade executiva mais adequada para a
efetiva entrega da tutela (aplicando os princípios do meio mais idôneo e
da menor restrição possível). Exempliicando a partir de ação voltada à
obtenção de entrega de coisa: neste caso, como diz o art. 461-A do CPC,
a tutela que determina a entregas de coisa na forma antecipada, pode ser
executada, por exemplo, mediante a imediata expedição de mandado de

310
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

busca e apreensão, ou mesmo mediante a imposição de multa não sendo


preciso a aplicação do processo de execução que deve seguir a sentença
condenatória.

Ao que parece, a partir do exemplo de Luiz Guilherme Marinoni,


o que vai se antecipar, na verdade, será o efeito executivo lato sensu ou
mandamental e não o condenatório como se refere o autor.

9.2.7. A responsabilidade civil decorrente da concessão


de liminares antecipatórias e cautelares146
A responsabilidade objetiva do autor da cautelar pelos danos que
a efetivação da mesma vier a causar, ainda que vitorioso nesta demanda,
mas sucumbente na principal, acabou sendo acolhida em nosso Código
de Processo Civil, como que por extensão ao princípio também vigente
quanto às custas e aos honorários, estes mercê da regra constante no
art. 20 do mesmo diploma, não revelando a doutrina em geral qualquer
inquietude quanto ao ponto, na medida em que tal preceito seria “justo”.
Hélio Tornaghi147 airma textualmente que
[...] a obrigação do reembolso não provém de ato ilícito, mas da vontade
da lei que não quer transformar o processo em arma de destruição dos
direitos. A responsabilidade do vencido é meramente objetiva, como em
tantos outros casos acolhidos em Direito.

No mesmo sentido Celso Agrícola Barbi148, que juntamente com


Giuseppe Chiovenda149 conclui no sentido de haver o direito proces-
sual “evoluído” quanto ao ponto, “para chegar-se, enim, à condenação
absoluta”.
No que diz respeito às cautelares, os posicionamentos são qua-
se que unânimes quanto à responsabilidade objetiva do autor, no caso

146 Sobre o tema, vide monograia exaustiva de Fábio Luiz Gomes (In: Responsabilidade Objetiva
e Antecipação de Tutela – A superação do paradigma da modernidade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2.006, p. 197 e seguintes)
147 In: Hélio TORNAGHI. Comentários ao Código de Processo Civil. v. I, São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 1976, p. 165.
148 In: Celso Agrícola BARBI. Comentários ao Código de Processo Civil. v.I, tomo I, Rio de
Janeiro: Ed. Forense, p. 187.
149 In: Giuseppe CHIOVENDA. Instituições de Direito Processual Civil. São Pulo: Ed. Saraiva,
1945, p. 285/286.

311
JAQUELINE MIELKE SILVA

de improcedência da ação principal ou de haver cessado a eicácia da


medida em qualquer das hipóteses arroladas no art. 811 do CPC, sob o
fundamento do “fato da sucumbência”150, não obstante não tenha o au-
tor da ação cautelar praticado nenhum ato ilícito, por exercer um direito
subjetivo à tutela151.
Convém relembrar que o artigo 811 do Código de Processo Civil
dispõe que,
[...] sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento
cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução
da medida: (I) se a sentença no processo principal lhe for desfavorável;
(II) se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código,
não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias; (III) se
ocorrer a cessação da eicácia da medida, em qualquer dos casos previstos
no art. 808 deste Código; (IV) se o juiz acolher, no procedimento
cautelar, a alegação de decadência ou prescrição do direito do autor
(art. 810); (parágrafo único) a indenização será liquidada nos autos do
procedimento cautelar.

À primeira vista, parece que a responsabilidade civil de que trata


o artigo 811 diz respeito a uma responsabilidade objetiva de natureza es-
sencialmente patrimonial, tendo sido instituída em nosso atual sistema,
em substituição ao preceito constante no art. 688 do antigo Código de
1939, que dispunha o seguinte: “A responsabilidade do vencido regular-
se-á pelos arts. 63 e 64; (parágrafo único) a parte que, maliciosamente,
ou por erro grosseiro, promover medida preventiva, responderá tam-
bém pelo prejuízo que causar”.
A nossa doutrina em geral não questionou a natureza objetiva da
responsabilidade prevista no art. 811 do CPC, tendo Egas Moniz de Ara-
gão152 observado que dentre as características “mais louváveis” na disci-
plina que o legislador de 1973 atribuiu ao processo cautelar do Livro III
estavam as salvaguardas que previu para o demandado, em atenção ao

150 In: Galeno LACERDA. Comentários.Vol. VIII, Tomo I, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1980, p. 434.
151 In: Humberto THEODORO JÚNIOR. Processo Cautelar. São Paulo: Ed. Leud, 1976, p. 172.;
Egas MONIZ DE ARAGÃO. “Medidas Cautelares Inominadas”, Revista de Direito Processual, Rio
de Janeiro: Ed. Forense, 1988, p. 57; Alcidez MUNHOZ DA COSTA. Comentários ao Código de
Processo Civil. v.11, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 761.
152 In: Egas MONIZ DE ARAGÃO. “Medidas Cautelares Inominadas”, Revista de Direito
Processual, Forense, 1988, p. 57.

312
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

princípio da execução menos onerosa para o requerido, mediante a previ-


são da concessão da caução substitutiva de medida cautelar, de qualquer
conteúdo, consoante a previsão do artigo 805 do Código de Processo Ci-
vil, bem como à previsão genérica da concessão de contracautela, com
base no poder geral de cautela dos artigos 798 e 799 do CPC.
Mais recentemente enfatizou Alcides Munhoz da Cunha153que o
legislador foi ainda além nesse particular, estabelecendo norma especí-
ica sobre a responsabilidade do autor ou demandante que atua o fumus
boni iuris para obter medidas cautelares, quando os interesses atuados
como fumus são desqualiicados como direitos subjetivos no plano das
tutelas primárias, referindo-se à previsão da responsabilidade objetiva,
disciplinada precisamente no art. 811 do Código de Processo Civil.
Em seu curso de “Direito Processual Civil”, Luiz Fux noticia a in-
cidência da “responsabilidade objetiva pelo risco judiciário” em decor-
rência de “eventuais prejuízos que a efetivação do provimento cautelar
possa causar”, em aplicação do art. 811, do Código de Processo Civil,
sem declinar sua posição quanto à coerência com o sistema154.
A justiicação da doutrina155 para esposar tranquilamente estas po-
sições funda-se na circunstância de envolver a medida cautelar “neces-
sariamente um risco, que é assumido pelo requerente ao pleitear a tutela
pretendida em juízo”, e bem assim a de que, para a concessão da medida,
não se poder indagar do direito em toda a sua profundidade – cognição
sumária – sob pena de confundi-la com a principal. No processo cautelar
indaga-se tão só da probabilidade, conforme frisa Carnelutti156.
A responsabilização do artigo 811, portanto, aparece com a con-
trapartida do juízo provisório e supericial que justiica a concessão da
tutela cautelar. Para tal doutrina, portanto, a mesma razão que ensejou ao
requerido alguma espécie de restrição em seu direito em decorrência da
demonstração supericial de um fato, confere-lhe o direito de ser ressar-

153 In: Alcides Munhoz da CUNHA. Comentários ao CPC. Vol. 11, São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2000, p. 761.
154 In: Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 346.
155 In: SAVATIER. Traité de la responsabilité Civil em Droit Français, Tomo I, Paris: Ed.
Libraire, 1951, p. 349, ao manifestar-se em torno da chamada teoria da responsabilidade objetiva,
já afastava de início a culpa como fundamento do dever de reparar, transferindo tal suporte para o
risco: “La responsabilité née du risque créé est celle qui obligue à réparer des dommanges produits,
même sans faute, par une activité que s’exerçait dans votre intérêt et sous votre autorité.”
156 In: Francesco CARNELUTTI. Diritto e Processo. N. 241, Morano, 1958, p. 365.

313
JAQUELINE MIELKE SILVA

cido dos prejuízos suportados quando demonstrado, já em cognição ple-


na, que a pretensão do requerente era destituída de razão. Deste modo,
quem pleiteia em juízo valendo-se apenas de aspectos prováveis terá que
indenizar a parte contrária sempre que esta demonstrar sua razão.
Ovídio Baptista da Silva foi um dos poucos, para não se dizer
o único, que denunciou, quando do advento do novo Código, o “ver-
dadeiro e injustiicado anacronismo” do princípio da responsabilidade
objetiva em tema de ação cautelar157. Exatamente nesse sentido manifes-
tou-se Teori Albino Zavascki, referindo que
[...] todo o risco da execução antecipada é do demandante, como
ocorre em qualquer execução (CPC, art. 574) e de modo especial – e
aqui se impõe a analogia − com a execução provisória das sentenças
condenatórias (CPC, art. 588, I158) e das medidas cautelares (CPC, art.
811). A circunstância de não ter sido referido, no §3º do art. 273, como
“aplicável no que couber”, o inc. I do art. 588 do CPC, obviamente não
teve o desiderato de proibir a aplicação, ou de excluí-la. É que não teria
sentido algum – porque afrontoso a todo o sistema de direito – carregar-
se à conta do litigante vitorioso os danos decorrentes de anterior
execução de provimento jurisdicional fundado em juízo de mera
verossimilhança (sem cognição exauriente, portanto) e antecipado a
pedido expresso da parte 159contrária. [Em obra mais recente ratiicou o
jurista esta160 posição.]

A redação dada ao art. 273, § 3º do Código de Processo Civil, pela


Lei n. 10.444, de 07 de maio de 2.002, chancelou o mesmo tratamento
da execução provisória às antecipações de tutela, pois remete à aplica-
ção subsidiária do art. 588, hoje revogado pelo art. 475-O do Código de
Processo Civil. Este último dispositivo legal, como se sabe, estabelece a
responsabilidade objetiva do credor pelos danos que a execução provi-
sória ensejar ao devedor.

157 In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. Doutrina e prática do arresto ou embargo. Rio de
Janeiro: Ed. Forense, 1976, p. 152.
158 O art. 588, in. I foi revogado pelo artigo 475-O, introduzido no Código de Processo Civil pela
Lei 11.232/05.
159 In: Teori Albino ZAVASCKI. “Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais”,
Revista AJURIS n. 64, p. 412.
160 In: Teori Albino ZAVASCKI. Antecipação da tutela, São Paulo: Ed. Saraiva, 1997, p. 99.

314
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

J.E. Carreira Alvim161, em monograia na qual tratou da tutela


antecipada, sustenta igualmente que a natureza da responsabilidade na
efetivação do provimento antecipatório “é de índole objetiva”. Ademais,
enfatiza o autor, apurar-se-á, nesta hipótese, apenas a existência e o al-
cance do prejuízo, porquanto não estará em causa a culpa do exequente,
“que se presume iuris et de iure”, esclarecendo que se trata, portanto, de
uma “presunção absoluta”.
Em obra de caráter geral e ressalvando a necessidade de provar-se
o nexo de causalidade entre a execução da medida e o dano162, Nelson
Nery Junior alinha-se com os que entendem aplicável a responsabilida-
de objetiva na antecipação de tutela.
A responsabilidade objetiva, com a ”condenação absoluta” e apli-
cada generalizadamente, enseja a penalização inclusive daquele réu que
contesta com razão, como mostra Ovídio Baptista da Silva163, conside-
rando este exagero o primeiro pecado cometido pelo Código no que se
refere ao princípio geral adotado, ao frisar que
[...] duas hipóteses podem ilustrar isso. Como o Código, no art.
462, manda que o juiz tome em consideração os fatos e o direito
supervenientes, é possível que a defesa oferecida pelo demandado seja
procedente, vindo porém algum fato ou direito supervenientes em
socorro do autor, tornando procedente a demanda originariamente
infundada. Nas ações de consignação em pagamento, o réu que haja
contestado alegando insuiciência de depósito, depois complementado
pelo autor, também tivera razão para contestar e, no entanto, será
sucumbente. A estrita idelidade ao sistema imporia ao juiz o dever de
condenar o vencido em custas e honorários, também nestes casos.

A questão central, no tocante à responsabilidade civil pela con-


cessão de provimentos antecipatórios, é a ampliação do princípio da
responsabilidade objetiva pelas custas e honorários, também aos danos
sofridos pelo réu quando efetivada alguma daquelas medidas, o que foi
acolhido pelo direito brasileiro, quando o direito italiano, nunca o acei-

161 In: J. E. CARREIRA ALVIM. Tutela antecipada na reforma processual. Rio de Janeiro: Ed.
Destaque, p. 90/91.
162 In: Nelson NERY JR. Atualidades sobre o processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1995, p. 59.
163 In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. “Antecipação de tutela e responsabilidade
objetiva”, Revista AJURIS n. 72, p. 63.

315
JAQUELINE MIELKE SILVA

tou, como observa o Ovídio Baptista da Silva Há de se fazer a distinção


entre as custas do pleito, as quais devem pagar todos os vencidos, e os
danos a serem pagos unicamente pelo vencido temerário,
[...] sendo imperioso fazer a defesa de Chiovenda, neste particular, para
mostrar que ele não uniicava, num único princípio, a responsabilidade
pela sucumbência, nela compreendidos as custas e os honorários, e o
dever de indenizar os danos por ventura causados pelo processo.164

9.2.8. Revogação/modiicação da tutela antecipada


É possível a revogação ou a modiicação da tutela antecipada a
qualquer tempo em decisão fundamentada (art. 273, § 4º do CPC). A
revogação ou modiicação da tutela antecipada pode ser realizada ex
oicio165.
As razões que permitem a revogação ou a modiicação da tutela
antecipada são as novas circunstâncias da causa, vale dizer, as razões
que foram apresentadas no momento da sua concessão. Não é apenas
a alteração da situação de fato objeto do processo, mas também o sur-
gimento, derivado do desenvolvimento do contraditório, de outra evi-
dência sobre a situação de fato. A jurisprudência tem admitido, ainda, a
revogação da tutela antecipada em face de reexame de questão jurídicas
envolvida na causa pelo órgão jurisdicional166.
Por outro lado, entendemos que a sentença de improcedência
provoca automaticamente a revogação do provimento antecipatório
concedido no curso do processo, eis que proferida em sede de cogni-
ção plenária. Como leciona Teori Albino ZAVASCKI167, “a sentença

164 In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA.“A antecipação de tutela e responsabilidade


objetiva”. Revista AJURIS, n. 72, p. 58.
165 Neste sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp 193.298, 3ª Turma, Rel.
Min. Waldemar Zveiter, 13.03.2001). Em sentido contrário, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel
Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil – Comentado artigo por artigo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 274), verbis: “A tutela antecipada só pode ser revogada ou
modiicada a requerimento da parte interessada, tal qual se exige para sua concessão”.
166 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp. 193.298. Rel. Min.
Waldemar Zveiter, 13.03.2001)
167 In: Antecipação da Tutela. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 115. No mesmo sentido, Nelson
NERY JÚNIOR (In: Teoria Geral dos Recursos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.
476), verbis: “Julgado improcedente o pedido, a tutela antecipada anteriormente concedida ica sem

316
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

de improcedência da demanda acarreta, por si só, independentemente


de menção expressa a respeito, a revogação da medida antecipatória,
revogação que tem eicácia imediata e ex nunc”. Do mesmo modo, a
sentença que extingue o processo sem resolução do mérito importa na
automática revogação da medida urgente antes concedida168.
E isto se dá por uma simples razão: ao proferir a sentença de impro-
cedência, o juiz de primeira instância entende que o direito alegado pelo
autor se apresentou provável no momento em que foi concedida a tutela
antecipada. É perfeitamente possível que, com a progressão da marcha
processual, e sobretudo com o desenvolvimento da instrução probatória,
venha este panorama a mudar de aspecto. Os elementos que pareciam
justiicar a impressão de uma vitória provável do autor vão cedendo passo
a outros, que invertem a convicção do juiz, inicialmente exposta.
Não é demasiado referir que a verossimilhança constatada em
sede de cognição sumária desaparece com a cognição exauriente. Nas
palavras de William Santos Ferreira169,
[...] como a antecipação da tutela se dá com base em cognição sumária,
isto é, ante a probabilidade, ao ser proferida a sentença de improcedência
ou de extinção do processo sem julgamento do mérito desaparece, ao
menos para o juízo de primeira instância, aquilo que justiicou até este
momento a concessão e manutenção da tutela antecipada; em outras
palavras, não há mais probabilidade, e com isso, mesmo que omissa a
sentença sobre a revogação do provimento antecipatório, este deve ser
entendido implicitamente revogado.

Em razão do exposto, concordamos com o posicionamento de


José Carlos Barbosa Moreira170, para quem

efeito, independentemente de o juiz a revogar expressamente na sentença. Isto porque é incompatível


com o decreto de improcedência, feito depois de cognição exauriente, a manutenção de decisão
contrária, dada em juízo de cognição sumária. A sentença de improcedência reconheceu depois
de ampla produção de prova, que o autor não tinha mesmo razão, motivo por que será com ela
incompatível a decisão que, mediante cognição supericial concedeu a tutela antecipada airmando a
plausibilidade de o autor ter razão”.
168 Neste sentido: Eduardo TALAMINI. Recorribilidade das decisões sobre tutela de urgência.
Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões
judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 202.
169 In: Tutela antecipada no âmbito recursal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 185-6.
170 In: A antecipação da tutela jurisdicional na reforma do Código de Processo Civil. Revista
de Processo n. 81/211. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.

317
JAQUELINE MIELKE SILVA

[...] a sentença de mérito, aquela que decida em caráter inal litígio, deve
sobrepor-se, de maneira total, à decisão que porventura haja concedido
ou indeferido a antecipação da tutela [...]. Esse pronunciamento absorve
o outro. A tutela deinitiva absorve a tutela antecipada, e no caso em
que esta haja sido denegada também. De qualquer maneira, numa ou
noutra hipótese, proferida a sentença, seja ela a favor do autor ou do réu,
perde, na minha opinião, todo e qualquer relevo o pronunciamento que
decretou a antecipação da tutela.

Entretanto, em alguns casos, a autorizada doutrina171 reconhece


que os efeitos da antecipação devam ser mantidos mesmo após a sen-
tença de improcedência ou de extinção do processo sem resolução do
mérito, a im de que o julgamento do recurso de apelação não seja ab-

171 Em sentido contrário, Paulo Afonso de Souza SANT´ANNA (In: Revogação da tutela
antecipada na sentença de improcedência (ou extinção do processo sem julgamento do mérito)
e seu restabelecimento: competência e meio processual. Revista de Processo n. 158, p. 151),
verbis: “Primeiramente, discordamos da possibilidade de o juiz de primeira instância, na sentença de
improcedência, manter os efeitos da tutela antecipada anteriormente deferida no curso do processo.
Não faz sentido admitir que o juiz de primeira instância possa manter os efeitos da antecipação de
tutela na própria sentença de improcedência em que airmou não existir razão ao autor. Estaria o juiz
de primeira instância airmando que o direito não existe e, ao mesmo tempo, que é provável (?). Não
há lógica em se entender que o mesmo juiz que considerou o direito inexistente, mediante cognição
exauriente, possa entendê-lo verossímil, em sentido contrário a tudo o que decidiu. Como bem observa
Talamini, ‘não se ignora a possibilidade de que o autor derrotado na sentença tenha efetivamente
razão e corra o risco de que o provimento recursal, que lhe daria ganho de causa, venha a ser ineicaz.
Esse problema, entretanto, haverá de ser solucionado pela concessão de tutela antecipada pelo tribunal
competente para o julgamento do recurso, a quem caberá veriicar a presença dos requisitos para a
medida urgente – e não pela manutenção da tutela antecipada pelo juiz de primeiro grau, que acabou
de airmar a ausência de um dos requisitos para tanto. A competência para restabelecer os efeitos da
tutela antecipada revogada pela sentença de improcedência, portanto, é do tribunal (relator) e não do
juiz de primeira instância. E é indiferente a circunstância de o pedido ser formulado antes ou depois da
interposição do recurso: proferida a sentença de improcedência, o pedido de restabelecimento da tutela
antecipada deve ser realizado perante o Tribunal”. Teori ZAVASCKI (In: Antecipação de tutela,
2.000, p. 99) entende que o meio processual adequado para esse im é o mandado de segurança: “É
cogitável a hipótese de restauração, pela instância superior, da medida antecipatória revogada, caso
o risco de dano irreparável (que ensejou antecipação assecuratória) persistir de forma tal que possa
prejudicar ou tornar inteiramente inútil eventual provimento do recurso interposto. O pedido, em
tais casos, deverá ser dirigido ao tribunal, pelas mesmas vias de postulação da antecipação da tutela
na fase recursal (mandado de segurança) e o seu sucesso icará na dependência da comprovação
dos requisitos do artigo 273, que deverão estar sobremaneira realçados, eis que terão contra si uma
decisão ou sentença de primeiro grau”. José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela cautelar e
tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 396), também
entende que a competência é do relator, porém airma que o meio processual adequado é a ação
cautelar: “Nada impede, porém, dirija-se o apelante ao tribunal, em conformidade com o disposto
no art. 800, parágrafo único, do Código de Processo Civil, e pleiteie novamente a concessão da tutela
antecipada. Isso, evidentemente, para quem entenda tratar-se de medida com natureza cautelar”.

318
9 • TUTELA DE URGÊNCIA

solutamente inócuo172. Luiz Guilherme Marinoni173 parte do seguinte


exemplo:
[...] imagine-se a hipótese em que alguém, com base no direito à
honra, requer e obtém tutela que ordena a uma rede de televisão a
não veiculação de um determinado programa. A revogação da tutela,
tornando possível a veiculação do programa, tornaria completamente
desnecessário o julgamento do recurso, ao menos para o que objetivava
o autor: a proteção (e não a reparação) do seu direito da personalidade.

Kazuo Watanabe174 analisando a possibilidade de


[...] manutenção da antecipação, liminarmente concedida, na hipótese
de a sentença vir a julgar improcedente a ação”, sustenta que “em linha
de princípio, a improcedência da ação deverá trazer como consequência
a revogação da antecipação concedida. Mas o caso concreto poderá
recomendar, pela sua peculiaridade, que o magistrado mantenha os
efeitos antecipados até o julgamento do recurso.

Outra não é a conclusão de Athos Gusmão Carneiro175. Segun-


do o autor, “não é de excluir, entretanto, que em casos excepcionais o
magistrado possa (=deva) manter a antecipação da tutela para que seus
efeitos persistam na pendência do recurso, assim o declarando expres-
samente na sentença de improcedência”.
Não é demasiado referir que o efeito suspensivo de eventual re-
curso de apelação interposto contra a sentença de improcedência não
tem o condão de manter a tutela antecipada revogada, na exata medi-
da em que não há compatibilidade lógica entre a manutenção da tutela
antecipada e a sentença de improcedência proferida após a instrução
probatória176.

172 Neste sentido, Paulo Afonso de Souza SANT´ANNA (In: Revista de Processo, n. 158, p. 144).
173 In: A antecipação da tutela. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 222, n. 95.
174 In: Tutela antecipatória e tutela especíica das obrigações de fazer (arts. 273 e 461 do CPC).
Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 37.
175 In: Da antecipação de tutela, 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 107.
176 Cássio Scarpinella BUENO (In: Tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 79) entende de
modo diverso. Para o autor, “o efeito suspensivo tem aptidão de impedir que a sentença passe a ter
efeitos imediatos, e, nessa medida, a própria ‘não conirmação’ da tutela antecipada é ineicaz. Sua
revogação, embora tenha ocorrido, não pode produzir efeitos imediatos no mundo jurídico”.

319
JAQUELINE MIELKE SILVA

O efeito suspensivo no qual é recebida a apelação interposta con-


tra sentença de improcedência ou de extinção do processo não faz com
que seja mantida a tutela anteriormente antecipada e, posteriormente,
revogada pela sentença, ainda que implicitamente. Isto signiica dizer
que o efeito suspensivo do recurso de apelação não é capaz de revigorar
a tutela antecipada anteriormente concedida, mas revogada pela senten-
ça que julga o pedido improcedente ou extingue o processo177.

177 Neste sentido, Teori Albino ZAVASCKI (In: Antecipação da tutela. 3 ed. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 99), verbis: “O mesmo se dará se a revogação provier – expressa ou implicitamente – da
sentença que extinguir o processo sem exame do mérito, ou que julgar improcedente o pedido. Aqui
o recurso de apelação, mesmo com efeito suspensivo, não terá, por si só, o condão de suspender a
revogação”.

320
10

A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E


PERSPECTIVAS

Ney Wiedemann Neto1


- Kelly Lissandra Bruch2
- Fabiana Prietos Peres3

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 10.1. Magistratura - 10.2.


Ministério Público - 10.3. Advocacia - 10.3.1. Quem pode ser
advogado? - 10.3.2. E que tipo de advogado poderei ser? - 10.3.3.
Honorários: honra e sustento! - 10.3.4. A linguagem forense -
CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS.

1 Mestre em Poder Judiciário (FGV Direito Rio, 2009). Pesquisador e Professor de Argumentação
Jurídica, CESUCA. Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. E-mail: neyneto@
cesuca.edu.br .
2 Pós-Doutora em Agronegócios pelo CEPAN/UFRGS. Doutora em Direito pela Université Rennes
I, France em co-tutela com a UFRGS. Mestre em Agronegócios pelo CEPAN/UFRGS. Consultora
Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho. Assessora Técnica do Instituto Rio Grandense do Arroz.
Membro da Funcionária da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/RS. Expert
indicada pelo Governo Brasileiro junto à Organização Internacional da Uva e do Vinho OIV.
Pesquisadora e Professora de Direito Empresarial, CESUCA. E-mail: kellybruch@cesuca.edu.br .
3 Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Especialista Diplôme d’Université ‘Droit comparé et
européen des contrats et de la consommation’, pela Université de Savoie. Especialista em Direito
do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS. Membro da Comissão Especial de Defesa
do Consumidor da OABRS. Assessora de Desembargador no TJRS. Pesquisadora e Professora de
Estagio Supervisionado- CESUCA. E-mail: fabianaperes@cesuca.edu.br .

321
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

INTRODUÇÃO
O mundo de um jurista envolve várias áreas do direito. Desde
o direito civil, criminal, trabalhista, tributário, empresarial etc. A sua
colocação em prática envolve a prática de uma relação preventiva, me-
diante a realização de contratos e mediação de conlitos; ou uma prática
contenciosa, que pode resolver-se pela prática da arbitragem ou me-
diante os processos cíveis, os processos criminais, os processos traba-
lhistas, dentre outros. E estas diversas áreas do direito podem ser exer-
cidas mediante inúmeras e distintas carreiras, que envolvem desde as
mais tradicionais funções públicas, como o juiz de direito, às mais ino-
vadoras proissões de um mercado globalizado, como um proissional
de segurança da informação.
Assim, o objetivo deste capítulo é estabelecer um panorama so-
bre as carreiras e as perspectivas que a prática jurídica pode oferecer ao
acadêmico do direito.
A atividade jurídica engloba diversas possibilidades, com o des-
taque para carreiras mais tradicionais - que serão as tratadas neste tra-
balho-, como a do magistrado, do advogado e do promotor de justiça.
Certamente as carreiras do operador do direito se multiplicam e todas
são essenciais para a promoção da Justiça. A título ilustrativo pode-se
citar a carreira do delegado de polícia, do assessor legislativo do Senado
e da Câmara dos Deputados, do assessor de juízes e membros do minis-
tério público, do procurador do município, do advogado geral da união,
do procurador geral do estado, do professor de direito, e até mesmo dos
peritos judiciais, que especializados em suas determinadas áreas (medi-
cina, contabilidade, engenharia, odontologia etc.) são iguras essenciais
para a solução de casos de alta complexidade técnica.
Muito embora a atuação do operador do direito não seja restrita à
judicialização, o foco do trabalho será a apresentação e desmistiicação
das carreiras-chave que possibilitam que a engrenagem do Poder Judi-
ciário se mobilize todos os dias. Desse modo, abordaremos aqui espe-
cialmente nesta edição do “Formação Jurídica II”, as carreiras de Juiz de
Direito, Promotor de Justiça e Advogado.
O Poder Judiciário é um dos três poderes da União, ao lado do
Poder Legislativo e do Poder Executivo (CF, art. 2º). O Poder Legislati-
vo tem como objetivo criar e aprovar as Leis que irão reger o Brasil. O

322
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

Poder Executivo deve executar estas Leis, por meio de Decretos e outros
Atos Normativos. O Poder Judiciário tem como objetivo analisar se es-
tas Leis e Decretos estão sendo respeitados e se estão de acordo com a
Constituição Federal. Não há hierarquia entre eles, mas competências
diferentes.

Fonte: Bruch, 2012

Estes três poderes estão presentes na União, nos Estados Brasilei-


ros – são os poderes Federais, bem como nos Estados – são os poderes
estaduais. Nos municípios encontramos apenas os poderes legislativo e
executivo, pois o poder judiciário abarca os Estados e Municípios.

Fonte: Bruch, 2012.

O Poder Executivo atua especiicamente na composição dos con-


litos de interesses perturbadores da paz social, visando à consequente

323
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

solução dos respectivos conlitos. O Poder Judiciário possui a função


precípua de julgar os conlitos de interesses que surgem na sociedade,
fazendo aplicar a lei no caso concreto4.
A esse respeito, Martins5 nos ensina que “o tripé da Justiça, numa
democracia, necessariamente necessita de três instituições fundamen-
tais para que a ordem jurídica seja mantida, objetivando, atuação con-
junta das três, a segurança e a certeza jurídica”. Refere-se o autor ao
Ministério Público, a Advocacia e ao Poder Judiciário, onde tramitam
os processos judiciais.
Quanto à estrutura do Poder Judiciário, este é constituído por
diversos órgãos, sendo sua última instância o Supremo Tribunal Fede-
ral, que zela pelo cumprimento da Constituição, seguido pelo Superior
Tribunal de Justiça, que mantém a unidade de interpretação da legis-
lação federal.

4 HADDAD, José Ricardo et. al. Poder Judiciário e carreiras jurídicas. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2012, p. 1.
5 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tabela de Honorários instituída pela Lei 8.906/1944 para
ser observada pela Ordem dos Advogados do Brasil – Incompetência dos órgãos disciplinares da
concorrência econômica para interferir na remuneração do advogado – advocacia não é mercancia
– Honorários advocatícios não estão sujeito ao Código de Defesa do Consumidor. Revista do
Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, vol. 26, jul. 2010, p. 332.

324
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

Fonte: Bruch, 2012.

Assim, têm-se a seguinte estrutura, a saber:


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF: composto por 11 Mi-
nistros togados e vitalícios; escolha pelo Presidente com aprovação do
Senado; tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional; subdivide-se em
plenário e duas turmas (5 Ministros). A competência (art. 102, CF/88),
pode ser originária, recursal ordinária ou extraordinária.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ: composto, no mí-
nimo, por 33 Ministros togados e vitalícios (art.104, CF); escolha pelo
Presidente, com aprovação do Senado, sendo 1/3 de juízes dos TRF, 1/3
de desembargadores dos TJ e 1/3 de advogados e membros do MP; tem
sede em Brasília/DF e jurisdição nacional. A competência (art. 105,
CF/88) pode ser originária, recursal ordinária ou especial. Subdivide-se
em corte especial (21 Min.), três seções (10 Min.) e seis turmas (5 Min.).
Além destes, há o CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ:
composto por 15 membros com mandato de 2 anos; nomeação pelo Pre-
sidente com aprovação prévia dos nomes pela maioria absoluta do Sena-
do; 1 Min. STF, 1 Min. STJ, 1 Min. TST, 1 Des. TJ, 1 juiz estadual, 1 juiz
TRF, 1 juiz federal, 1 juiz de TRT, 1 juiz do trabalho, 1 membro MPU, 1
membro MPE, 2 advogados e 2 cidadãos. (art. 103-B, CF). Incumbe-lhe
o controle da atuação administrativa e inanceira do Poder Judiciário e o
cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (103-B, §4º).
A esfera da União é composta pela Justiça Federal, Justiça do Tra-
balho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar. Cada uma destas com compe-
tências especíicas e organização especializada.

325
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

A Justiça Federal, de competência mais ampla, tem a seguinte or-


ganização:

Fonte: Bruch, 2012.

Vale lembrar que a Justiça Federal é organizada por Regiões, sen-


do que o Rio Grande do Sul encontra-se na quarta Região, que engloba
Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Desta forma, o TRF/4 en-
contra-se organizado da seguinte maneira:
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO – TRF/4:
composto por 27 Desembargadores Federais vitalícios; nomeados pelo
Presidente, sendo 4/5 por promoção de juízes federais (21) e 1/5 de ad-
vogados e membros do MPF (6); tem sede em Porto Alegre/RS e juris-

326
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

dição nos estados da região sul (RS/SC/PR) – 4ª Região. A competência


(art. 108, CF/88), pode ser originária ou recursal. Subdivide-se em ple-
nário (27 Des.), quatro seções (6 Des.) e oito turmas (3 Des.).
Já dentro do Rio Grande do Sul há uma Seção Judiciária que en-
globa todo o estado:
JUSTIÇA FEDERAL DE 1º GRAU NO RS – JFRS: tem compe-
tência originária prevista no art. 109 da CF/88. Cada Estado/DF cons-
titui uma seção judiciária, com sede na respectiva capital. A Seção Ju-
diciária do Rio Grande do Sul, por sua vez, se divide em 21 Subseções
Judiciárias.
Com relação a Justiça do Trabalho, podemos vê-la da seguinte
forma:

Fonte: Bruch, 2012.

327
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – TST: composto por


27 Ministros togados e vitalícios (art. 111-A); escolha pelo Presidente,
com aprovação do Senado, sendo 1/5 advogados e membros do MPT,
com mais de 10 anos de efetivo exercício; 4/5 dentre juízes de carreira
dos TRTs, indicados pelo TST; tem sede em Brasília/DF e jurisdição na-
cional. A competência (art. 114, CF/88), pode ser originária (dissídios
coletivos de nível nacional), por recurso ordinário ou recurso de revista
(uniformização da jurisprudência trabalhista). Subdivide-se em pleno
(17 Min.), uma seção, duas subseções (9 Min.) e cinco turmas (3 Min.).
Assim como a Justiça Federal, a Justiça Trabalhista também é di-
vidida por Regiões. O Rio Grande do Sul encontra-se na quarta região:
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO –
TRT4 (RS): o território nacional é dividido em 24 Regiões. O TRT/4
é composto por 36 Juízes do Trabalho vitalícios. Nomeados pelo Pre-
sidente da República, sendo 4/5 por promoção de juízes do trabalho
de 1º grau e 1/5 de advogados e membros do MPT. Tem sede em Porto
Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul (4ª Região). A
competência (art. 114, CF/88) pode ser originária ou recursal. Subdivi-
de-se em tribunal pleno, órgão especial, três seções e oito turmas.
Com relação à Justiça Eleitoral, esta tem o seguinte funcionamento:

328
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

Fonte: Bruch, 2012.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – TSE: composto, no mí-


nimo, por 7 membros efetivos e outros 7 substitutos (3 Min. do STF, 2
Min. do STJ e 2 advogados) por um biênio (art. 119-121, CF/88); eleição
por voto secreto nos Tribunais Superiores e advogados escolhidos pelo
Presidente da República em lista sêxtupla indicada pelo STF (art. 119,
CF/88); tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional; as sessões do
plenário ocorrem com a presença mínima de 4 membros além do Presi-
dente. Tem competência originária e recursal.
Já no Rio Grande do Sul temos a seguinte organização:
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO RS – TRE/RS: com-
posto por 7 membros (2 Des. do TJ, 2 juízes de direito escolhidos pelo
TJ, 1 juiz de TRF ou juiz federal escolhido pelo TRF e 2 advogados no-
meados pelo Presidente da República de lista sêxtupla elaborada pelo
TJ) (art. 120, CF/88), para um biênio facultada 1 recondução (art. 121, §
2º, CF/88). Tem sede em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio
Grande do Sul (4ª Região). A competência (art. 121, CF/88) pode ser
originária (I) ou recursal (II) (art. 29, CEB).
JUSTIÇA ELEITORAL DE 1º GRAU NO RS – JERS: a jurisdição
em cada Zona Eleitoral cabe a um Juiz de Direito, que será o seu presi-
dente (art. 32, CEB). Onde houver mais de uma Vara, o TRE designará
aquela ou aquelas a que incumbe o serviço eleitoral (art. 33, CEB); Tem
competência originária deinida no art. 35 do CEB.
Por im, a Justiça Militar apresenta as seguintes especiicidades:

329
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

Fonte: Bruch, 2012.

Desta forma, a Justiça Militar encontra-se assim organizada:


SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR – STM: composto por 15 Mi-
nistros vitalícios, sendo 3 Almirantes da Marinha, 4 Generais do Exér-
cito, 3 Brigadeiros da Aeronáutica e 5 Civis (3 advogados e 2 escolhidos
de forma paritária entre juízes-auditores e membros do MPM). Escolhe
seu Presidente com a aprovação do Senado. Tem sede em Brasília/DF e
jurisdição nacional. Apresenta competência originária e recursal para
processar e julgar crimes militares (art. 124, CF/88).
CONSELHOS DE JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO – CJM: são
12 Circunscrições da Justiça Militar em todo o país. A 3ª Circunscrição

330
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

tem jurisdição sobre o RS. A 3ª CJM possui 3 Auditorias (a 1ª com sede


em Porto Alegre, a 2ª com sede em Bagé e a 3ª com sede em Santa Ma-
ria) cada uma com 1 Juiz-Auditor e um Substituto. Nas Auditorias reú-
nem-se os Conselhos de Justiça Militar (permanente e especial) com-
postos por 1 Juiz-Auditor e 4 Juízes Militares temporários (sorteados
entre oiciais das forças armadas para o trimestre).
No Rio Grande do Sul observa-se a seguinte organização:
TRIBUNAL MILITAR DO ESTADO DO RS – TME/RS: compos-
to por 7 Juízes vitalícios, 4 militares e 3 civis (art. 232 e 234, Lei Estadual
7.356/80-COJE/RS). Nomeados pelo Governador, sendo os militares
dentre os Coronéis da ativa e os civis dentre Juízes-Auditores (pelo me-
nos 1), membros do MP e advogados. Tem sede em Porto Alegre/RS e
jurisdição no estado do Rio Grande do Sul. Tem competência originária
e recursal (art. 106 da CE e art. 234, Lei Estadual 7.356/80-COJE/RS).
CONSELHOS DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO – CJM/RS:
podem ser das seguintes categorias: Conselho Especial de Justiça, Con-
selho Permanente de Justiça ou Conselho de Justiça nas Unidades (art.
247, LE 7.356/80-COJE/RS). Os Conselhos Especial e Permanente são
compostos por 1 Juiz-Auditor e 4 Juízes Militares (oiciais); os Conse-
lhos nas Unidades, por 3 oiciais. São 3 Circunscrições Judiciárias e 4
Auditorias (sedes em POA (1ª e 2ª), PFU (3ª) e SMA (4ª)). Tem compe-
tência apenas originária (art. 259 da LE 7.356/80-COJE/RS).
A esfera dos Estados da Federação é composta pelas Justiças
Estaduais.

331
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

Fonte: Bruch, 2012.

No caso da Justiça Estadual, cada Estado regulamenta sua atua-


ção. Assim também o é no Rio Grande do Sul:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS – TJRS: composto por 140
Desembargadores estaduais vitalícios (art. 6º, Lei Estadual 7.356/80-
COJE/RS). A composição é de 4/5 (100) por promoção de juízes de di-
reito e de 1/5 de advogados e membros do MP estadual (25). Tem sede
em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul. A
competência pode ser originária ou recursal (art. 95 e 97 da CE). Sub-
divide-se em pleno órgão especial, três seções, quinze grupos e trinta e
três câmaras separadas.

332
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

Na dinâmica judicial, regida por princípios de neutralidade e im-


parcialidade, do juiz natural e da inércia da jurisdição, o que se busca é o
convencimento pessoal do magistrado. O princípio do juiz natural (CF,
art. 5º., XXXVII e LIII) tem como conteúdo não apenas a prévia dei-
nição do órgão investido de poder jurisdicional de decisão sobre a cau-
sa, mas também a própria garantia de justiça material, independência e
imparcialidade do juiz (não escolha do juiz). O princípio da inércia da
jurisdição (CPC, art. 2º) determina que o início do processo, em regra,
seja somente por iniciativa das partes. O Estado possui o monopólio de
julgar e investe um agente – o juiz – com autoridade para tal, que deve
se situar de modo equidistante entre as partes6.
Em razão de sempre haver um juiz natural para cada demanda, é
muito importante compreender as regras de competência dos diversos
órgãos de jurisdição. É nos Juízos de primeira instância que se originam,
em regra, as ações judiciais. Dependendo do ramo, são compostos por
juízes estaduais, federais, trabalhistas, eleitorais e militares. As compe-
tências dos diversos ramos do Poder Judiciário (da União, dos Estados e
do Distrito Federal) são estabelecidas na Constituição Federal7.
Os artigos 108 e 109 ixam as ações de competência da Justiça
Federal (comum), entre as quais, destacam-se as da União, as entidades
autárquicas ou empresas públicas federais que estejam envolvidas como
autoras, acusadas ou interessadas.
Os Juizados Especiais Federais integram a estrutura da Justiça
Federal comum, a quem cabe julgar ações com o valor da causa até 60
salários mínimos e infrações criminais cuja pena não supere dois anos
de detenção.
À Justiça do Trabalho (artigo 114 da Constituição), ramo espe-
cializado do Poder Judiciário da União, compete a apreciação e o jul-
gamento de conlitos individuais e coletivos entre trabalhadores e pa-
tronato, inclusive entes de direito público externo e da administração
pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Esta-
dos e da própria União.

6 ASENSI, Felipe Dutra. Curso Prático de Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Eslevier, 2010,
p. 41.
7 O judiciário ao alcance de todos: noções básicas de Juridiquês / Associação dos Magistrados
Brasileiros. 2. ed. Brasília: AMB, 2007, pp. 14-15. Disponível em http://www.amb.com.br/portal/
juridiques/livro.pdf, acesso em 19.06.2014.

333
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

A Justiça Eleitoral tem grande importância para o pleno exercício


da democracia no País. Regulamenta os procedimentos para que o povo
exerça uma das mais importantes conquistas democráticas: o voto dire-
to e sigiloso. São de sua competência a organização, o monitoramento
e a apuração das eleições, como também a diplomação dos candidatos
eleitos e o poder de decretar a perda de mandatos eletivos federais ou
estaduais. É importante ressaltar que não há uma carreira de magistra-
tura na Justiça Eleitoral. O cargo de juiz eleitoral é ocupado por desig-
nação de juízes de direito, por prazo determinado. O Tribunal Regional
Eleitoral, em cada Estado da Federação, é composto por magistrados
estaduais, federais e advogados.
O último ramo do Poder Judiciário da União é a Justiça Militar, a
quem cabe processar e julgar os crimes militares, deinidos em lei.
A Justiça estadual é constituída pelos tribunais de Justiça e pe-
los juízes de Direito. A sua competência é de natureza subsidiária, na
medida em que lhe compete a apreciação e o julgamento de qualquer
causa que não esteja sujeita à competência de outro órgão jurisdicional
(Justiça Federal, do Trabalho e Eleitoral); o que representa a maior parte
dos litígios cotidianos.
A lei de organização judiciária estadual poderá criar, mediante
proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual constituída,
em primeiro grau, pelos conselhos de Justiça e, em segundo, pelo próprio
Tribunal de Justiça. Ou, ainda, por Tribunal de Justiça Militar nos Esta-
dos em que o efetivo da Polícia Militar seja superior a vinte mil integran-
tes. Competência: processar e julgar os policiais militares e os bombeiros
militares nos crimes militares deinidos em lei, ainda que cometido con-
tra civis, e as ações judiciais contra atos disciplinares militares.
Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais integram a Justiça estadual.
O Juizado Especial Cível tem como atribuição a conciliação, o
processo e o julgamento de ações cíveis de menor complexidade, cujo
valor da causa não ultrapasse 40 salários mínimos. Comumente cha-
mado de Juizado de Pequenas Causas (expressão eliminada pela Lei n.
9.099/95), é regido pelos princípios da oralidade, simplicidade, infor-
malidade e celeridade. Tem o importante papel de facilitar o acesso à
Justiça, permitindo que causas antes excluídas do sistema tradicional
– em razão do seu pequeno valor econômico – possam ser submetidas à
apreciação do Poder Judiciário.

334
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

O Juizado Especial Criminal se encarrega de conciliar e julgar as


infrações penais de menor potencial ofensivo, consideradas como tais
aquelas em que a pena máxima não ultrapasse dois anos. Vale lembrar
que foi o sucesso dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito
estadual, que inspirou o legislador a criá-los também na esfera federal,
por meio da Lei n.10.259/01.
Considerando o propósito deste artigo, organizamos o mesmo
da seguinte forma: a primeira parte trata da carreira da Magistratura;
a segunda parte trabalha a carreira do Ministério Público; e por im, a
terceira parte, aborda a carreira da Advocacia. Ao inal são tecidas as
considerações acerca da atuação destas três proissões para a promo-
ção da justiça.

10.1. Magistratura
O Poder Judiciário é composto por magistrados, assim deno-
minados como gênero, dos quais são espécies os cargos de juízes, que
atuam no primeiro grau de jurisdição, e de desembargadores, que atuam
no segundo grau de jurisdição. O juiz pode ser juiz de direito (justi-
ça estadual), juiz federal, juiz do trabalho, juiz eleitoral e juiz militar,
conforme o órgão jurisdicional. Por igual o desembargador, que pode
ser membro do Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal ou
do Tribunal Regional do Trabalho. Por im, também são magistrados
os membros dos tribunais superiores, que têm sede em Brasília-DF, e
são chamados de Ministros (STF, STJ, TSE, STM e TST). Os membros
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) são denominados Conselheiros,
sendo uns magistrados e outros não (representantes da sociedade civil).
O ingresso na carreira se dá por meio de concurso público de
provas e títulos. As provas são divididas por etapas. A primeira etapa
é constituída de prova objetiva e seletiva (eliminatória e classiicató-
ria). A segunda etapa consiste em duas provas escritas (eliminatórias
e classiicatórias). A terceira etapa de avaliações de sindicância de vida
pregressa, exame de sanidade físico-mental e psicotécnico (eliminató-
rias). A quarta etapa: provas orais (eliminatórias e classiicatórias). A
quinta etapa de avaliação de títulos (classiicatória). Por im, a sexta
etapa: curso de formação inicial (eliminatória e classiicatória – opcio-
nal de cada tribunal).

335
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

O cargo é privativo de brasileiros, bacharéis em direito, com três


anos de atividade jurídica8; em regularidade no serviço militar; no gozo
dos direitos políticos; com boa saúde física e mental e boa conduta social.
A carreira da magistratura tem as seguintes garantias: vitalicieda-
de9 (após dois anos de estágio probatório); inamovibilidade10; irreduti-
bilidade de subsídios11. E tem as seguintes vedações: exercer o comércio
e participar de sociedade comercial; exercer a advocacia ou atividade
político-partidária ou qualquer atividade remunerada, salvo um cargo
no magistério (cujo horário não interira no expediente forense); ma-
nifestar opinião sobre processo pendente de julgamento ou comentário
depreciativo sobre decisões de outros magistrados, por qualquer meio
de comunicação, salvo a crítica técnica ou no exercício do magistério.
Ao se aposentar, o magistrado não poderá exercer a advocacia
perante o juízo ou tribunal do qual tenha se afastado, pelo período de
três anos (art. 95, parágrafo único, inciso V, da CF). É a chamada qua-
rentena.
Quanto à carreira da magistratura, na Justiça Estadual há en-
trância inicial, entrância intermediária e entrância inal (Porto Alegre,
Santa Maria, Passo Fundo, Caxias do Sul e Pelotas). Ao inal, pode-se
dar o acesso ao Tribunal de Justiça para o cargo de desembargador. As
promoções se dão por merecimento ou por antiguidade. Já o acesso ao
Tribunal de Justiça para advogados e membros do MP, para exercer a
função de desembargador, se dá pelo quinto constitucional12.
Na Justiça Federal e na Justiça do Trabalho as varas estão dis-
tribuídas de acordo com a região do respectivo TRF ou TRT, havendo

8 Vide Resolução n. 75 do CNJ.


9 Vitaliciedade é uma das garantias constitucionais do juiz, após dois anos na função, podendo
permanecer no cargo até a aposentadoria, salvo se cometer crime que a lei previna como perda
do cargo.
10 Inamovibilidade é a prerrogativa de que gozam os magistrados, de não serem removidos
da vara ou comarca em que atuam, salvo a seu próprio pedido ou motivo de interesse público,
mediante formalidades rigorosas.
11 Irredutibilidade de subsídios é a impossibilidade de redução da remuneração do magistrado.
12 BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais
Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros,
do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico
e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade proissional, indicados em lista
sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.

336
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

juiz titular e juiz substituto federal, ou juiz do trabalho. O presidente do


tribunal é o chefe do poder e eleito pelos desembargadores.
A respeito dos deveres de imparcialidade, os magistrados estão
obrigados a atuar com imparcialidade nos processos, e sujeitos às hipó-
teses de impedimento13 e de suspeição,14 previstos nos artigos 124 e 135
do CPC. No que toca aos devedores dos magistrados, os fundamentos
da ética na magistratura são constitucionais.
As normas positivadas a partir na CF (art. 93) determinam o
seguinte: promoções de Magistrados por critérios alternados de me-
recimento e de antiguidade; determinação de presteza na atuação do
magistrado; recomendação de segurança nas suas decisões; ordem de
abstenção de política partidária na sua conduta social. E também na Lei
Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN)15: cumprir e fazer cum-
prir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e
os atos de ofício; não exceder injustiicadamente os prazos para senten-
ciar e despachar; determinar providências necessárias para que os atos
processuais se realizem nos prazos legais; dever de urbanidade; residên-
cia; pontualidade e não ausência; conduta irrepreensível na vida pública
e particular. Estão os magistrados sujeitos às seguintes sanções às infra-
ções éticas16: advertência; censura; remoção; disponibilidade com venci-
mentos proporcionais ao tempo de serviço; aposentadoria compulsória
com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço; demissão.
A partir do Código de Ética da Magistratura elaborado pelo Con-
selho Nacional de Justiça17 podemos extrair as seguintes orientações
fundamentais à conduta do juiz.
A ética da magistratura é essencial para os juízes incrementarem
a coniança da sociedade em sua autoridade moral. A LOMAN veda ao
magistrado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o

13 Impedimento é a presunção absoluta (juris et de jure) de parcialidade do juiz em determinado


processo por ele analisado, diferente de suspeição onde há apenas presunção relativa (juris tantum).
14 Suspeição é situação que impede o juiz de julgar determinado processo, no caso de haver
dúvida quanto à imparcialidade e independência com que deve atuar.
15 Lei Complementar n. 35/1979, art. 35.
16 Lei Complementar n. 35/1979 , arts. 40 a 48.
17 CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA. Disponível em http://www.cnj.jus.br/codigo-de-
etica-da-magistratura . Acesso em 19.06.2014.

337
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

decoro de suas funções e comete-lhe o dever de manter conduta irre-


preensível na vida pública e particular.
A atividade dos juízes rege-se pelos princípios da independên-
cia, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da
transparência, do segredo proissional, da prudência, da diligência, da
integridade proissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro.
O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade
dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o
processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de com-
portamento que possa reletir favoritismo, redisposição ou preconceito.
A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito
da atividade jurisdicional contribui para uma fundada coniança dos ci-
dadãos na judicatura. O magistrado deve comportar-se na vida privada
de modo a digniicar a função, cônscio de que o exercício da atividade
jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acome-
tidas aos cidadãos em geral.
É dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente
público, de empresa privada ou de pessoa física que possam compro-
meter sua independência funcional. Ao magistrado é vedado usar para
ins privados, sem autorização, os bens públicos ou os meios disponibi-
lizados para o exercício de suas funções. Cumpre ao magistrado adotar
as medidas necessárias para evitar que possa surgir qualquer dúvida
razoável sobre a legitimidade de suas receitas e de sua situação econô-
mico-patrimonial.
O magistrado não deve assumir encargos ou contrair obrigações
que perturbem ou impeçam o cumprimento apropriado de suas funções
especíicas, ressalvadas as acumulações permitidas constitucionalmen-
te. O magistrado que acumular, de conformidade com a Constituição
Federal, o exercício da judicatura com o magistério, deve sempre prio-
rizar a atividade judicial, dispensando-lhe efetiva disponibilidade e de-
dicação. O magistrado, no exercício do magistério, deve observar con-
duta adequada à sua condição de juiz, tendo em vista que, aos olhos de
alunos e da sociedade, o magistério e a magistratura são indissociáveis,
e faltas éticas na área do ensino reletirão necessariamente no respeito
à função judicial.
O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e
decisões que sejam o resultado de juízo justiicado racionalmente, após

338
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos dispo-


níveis, à luz do Direito aplicável. Especialmente ao proferir decisões, in-
cumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento às consequências
que pode provocar. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente
para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respei-
tosa, podendo conirmar ou retiicar posições anteriormente assumidas
nos processos em que atua.
O magistrado não deve exercer atividade empresarial, exceto na
condição de acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou
gerência. A independência judicial implica que ao magistrado é vedado
participar de atividade político-partidária.
Como se vê, a carreira da magistratura é bastante rica e complexa,
com oportunidade para o bacharel em Direito trabalhar com os conhe-
cimentos jurídicos a que mais se afeiçoa, em diversas esferas: Justiça
Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Militar ou Justiça Estadual. E, pela
via de acesso por meio de concurso público, poderá atuar em qualquer
local do território nacional, nas comarcas, conforme a organização ju-
diciária de cada tribunal.
A magistratura é uma carreira jurídica na qual se poderá ascender,
por meio de promoções (por critérios de merecimento ou de antiguida-
de) ao cargo de desembargador (após passar pelas entrâncias de primeiro
grau), integrando o respectivo tribunal (Tribunal Regional Federal, Tri-
bunal Regional do Trabalho ou Tribunal de Justiça, segundo a carreira).
Já o acesso aos tribunais superiores, com sede em Brasília, como
o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal
Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar, se dão por escolha do
Presidente da República. No caso do Supremo, por escolha direta, e nos
demais por formação de listas tríplices a partir dos próprios tribunais,
segundo seus regimentos internos.
O Poder Judiciário tem, paulatinamente, passado por transfor-
mações institucionais, modiicando o peril e o foco da sua atuação,
inclusive em razão da exagerada judicialização dos conlitos sociais.
Métodos alternativos de solução de conlitos, como a conciliação e a
mediação, têm cada vez mais espaço de atuação por iniciativa dos pró-
prios tribunais.
Além disso, o juiz também precisa, para realizar a sua atividade-
im (prestação jurisdicional – julgamentos de processos), desempenhar

339
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

atividades administrativas, como gestor de pessoas (funcionários do


Foro) e dos processos de trabalho (organização do serviço).
Ao mesmo tempo, deve manter um relacionamento harmônico
com os outros operadores do Direito na sua área de atuação, entre os
quais estão os Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Advogados e
Procuradores do Estado.
Também tem o juiz um papel muito importante a desempenhar
na relação do Poder Judiciário com a sociedade civil, na integração com
a comunidade, através da imprensa, da participação em atividades lo-
cais em associações, clubes de serviço, escolas etc.
Por im, deve o juiz manter-se em contínuo estudo e aprendizado,
sendo fundamental que se mantenha atualizado a respeito das áreas do
conhecimento jurídico nas quais atua. Há inclusive normas administra-
tivas que determinam que os juízes passem, continuamente, por cursos
de atualização, para sempre estarem nas melhores condições para os jul-
gamentos que realizam.

10.2. Ministério Público


Segundo dispõe o art. 127 da Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988, “o Ministério Público é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indivi-
duais indisponíveis”.
Embora tenha ganho projeção a partir de 1988, esta instituição já
existe há longuíssimo tempo e sua função tem como base fundamental
a defesa do interesse público.
Ele não faz parte do Poder Judiciário, embora atue em todos os
processos judiciais determinados constitucional ou legalmente, seja na
condição de parte do processo ou de custos legis da causa. Tão pouco
integra o Poder Legislativo ou o Poder Executivo. Trata-se de instituição
independente.
Dentre as funções atribuídas ao Ministério Público, são mais co-
nhecidas as atuações nos processos criminais, especialmente quando
este elabora a Denúncia, promove a acusação no Tribunal do Júri, faz a
apelação das sentenças de absolvição. Mas, além disso, também compete
a este promover o inquérito civil e a Ação Civil Pública, quando relacio-

340
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

nada com o meio ambiente, a proteção do patrimônio público e social,


bem como outros interesses difusos e coletivos. Também tem o dever de
defender judicialmente os direitos e interesses indígenas. O Ministério
Público ainda deve atuar para promover o respeito dos Poderes Públicos
e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Cons-
tituição Federal, devendo realizar todas as medidas necessárias para sua
garantia. Pode promover a ação de inconstitucionalidade ou represen-
tação para intervenção da União e dos Estados. Compete ainda exercer
o controle externo da atividade policial, requisitar diligências investiga-
tórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos
jurídicos de suas manifestações processuais. E, por im, exercer outras
funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua inali-
dade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica
de entidades públicas.18
Estas atribuições são exercidas segundo a esfera de atuação de
cada membro do Ministério Público. Isso porque há atuação tanto no
âmbito Federal quanto no estadual.
O Ministério Público da União compreende o Ministério Público
Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar
e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Os membros
desse órgão são denominados de forma geral de Procuradores da Re-
pública e, nas suas áreas especializadas, de Procurador do Trabalho e
Procurador Militar.19
Já o Ministério Público Estadual abrange a atuação junto à justiça
estadual. Compreende os Promotores de Justiça, que atuam no primeiro
grau de jurisdição, e Procurador de Justiça, que atua no segundo grau,
junto aos Tribunais de Justiça.20 Eles também podem ser denominados
de Parquet ou ainda de Promotor Público.
Para se tornar um promotor de justiça ou um procurador da re-
pública, é necessário ser aprovado em um concurso público de provas
e títulos, elaboradas por cada um dos órgãos de forma independente, e
que compreende as seguintes fases: prova preambular que se constitui
em uma prova objetiva e abrange todas as áreas do direito relacionadas

18 art. 129 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988


19 art. 128 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
20 art. 128 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

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NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

com a atuação do promotor de justiça21;provas escritas, divididas por


grupos; exames de sanidade física e mental; sindicância; prova oral e
prova de títulos.
Para exercer o cargo, faz-se necessário o preenchimento das se-
guintes condições: nacionalidade brasileira; conclusão de curso de ba-
charelado em Direito, em estabelecimento oicial de ensino ou como tal
reconhecido; estar em dia com as obrigações eleitorais e, se homem, tam-
bém com o serviço militar; estar em gozo dos direitos políticos; possuir
idoneidade moral e inexistência de registro de antecedentes criminais;
ter exercido 03 (três) anos de atividade jurídica;22 aprovação nas provas
preambular, escritas e oral, e nos exames de sanidade física e mental.
Como membro do Ministério Público o promotor de justiça ou
procurador da república goza das seguintes prerrogativas (semelhantes
ao magistrado): a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não poden-
do perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; b)
inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante deci-
são do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da
maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa ;c) irredu-
tibilidade de subsídio, salvo os casos previstos em Lei.
Todavia, os membros do Ministério Público estão sujeitos às se-
guintes vedações: a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto,
honorários, percentagens ou custas processuais; b) exercer a advocacia;
c) participar de sociedade comercial; d) exercer, ainda que em dispo-
nibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e)
exercer atividade político-partidária; f) receber, a qualquer título ou

21 Por exemplo, para o concurso do Ministério Público do Estado do Paraná que está ocorrendo
atualmente, a prova preambular abarcou as seguintes disciplinas: Direito Penal, Direito Eleitoral,
Legislação do Ministério Público, Direito Constitucional, Constituição do Estado do Paraná,
Direito Administrativo, Direito Tributário, Filosoia do Direito, Sociologia Jurídica, Direito
Previdenciário, Direito Civil, Direito Comercial, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal,
Execução Penal, Direito do Consumidor, Direito Sanitário e Saúde do Trabalhador, Direito da
Infância e da Juventude, Proteção ao Patrimônio Público, Direito Ambiental, Ação Civil Pública,
Inquérito Civil, Procedimento Preparatório e Procedimento Investigatório Criminal, Direitos da
Pessoa com Deiciência e do Idoso e Direitos Humanos e Habitação e Urbanismo. Disponsível em:
http://concursos.mppr.mp.br/concursos/detalhes_concurso/92. Acesso em: 20 ago 2014. Ressalta-
se que se trata apenas de um exemplo de um concurso especíico que os temas e seus respectivos
conteúdos podem alterar-se a cada novo concurso.
22 Resolução no 40, de 26 de maio de 2009, do Conselho Nacional do Ministério Público

342
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas


ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei.
Sua atuação ainda é regulada pela Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro
de 1993, que institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público,
bem como dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério
Público dos Estados. Adicionalmente a esta, cada Estado da Federação
tem uma regulamentação complementar especíica.
No caso do Ministério Público da União, é a Lei Complementar n
. 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribui-
ções e o estatuto do Ministério Público da União.
Vale destacar, de forma mais prática, a importância e o diferencial
que engloba a atuação do Ministério Público.
Em nível Estadual, o Promotor de Justiça pode atuar, por exem-
plo, no âmbito criminal desde o inquérito policial, no qual o analisa,
podendo solicitar mais provas junto à polícia civil, opinando pelo seu
arquivamento em face à inexistência de crime, elaborando a denúncia
e submetendo ela ao Juiz de Direito para que a receba ou não, ou ainda
propondo a transação penal. Durante o processo criminal, o Promotor
de Justiça pode oferecer a suspensão do processo, e em alegações inais,
pedir pela condenação ou absolvição do acusado. Depois de proferida a
sentença, pode o promotor apelar da mesma, para majorar ou diminuir
a pena. Sua atuação não é de um acusador, mas de alguém que zela pelo
interesse público também na área criminal.
Na área cível, o Promotor de Justiça, em regra, atua como cus-
tos legis, ou seja, como defensor do interesse público na ação que está
sendo analisada. Atua principalmente em ações nas quais se solicita a
interdição de uma pessoa absolutamente incapaz, por exemplo, buscan-
do veriicar se todas as premissas legais foram observadas e opinando
acerca. Atua nas ações de família em que haja interesses de crianças e
adolescentes envolvidos, objetivando fazer observar os seus direitos.
Além disso, deve ser ouvido em todas as ações que tenham interesses de
incapazes envolvidos.
Por outro lado, é protagonista quando se trata de Ação Civil Pú-
blica e Inquérito Civil, devendo agir de maneira proativa; quando se tra-
ta da defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico e cultural, bem
como na defesa dos direitos dos consumidores, entre outros direitos
difusos e coletivos. Assim, há promotores especializados nestas áreas,

343
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

para que se promova tanto de forma preventiva quando com atuação


contenciosa ativa a proteção destes direitos diferenciados.
No âmbito federal, o Procurador da República, o Procurador do
Trabalho e o Procurador Militar têm sua atuação em suas áreas especíi-
cas. Na justiça federal, atua em todos os processos criminais, bem como
em todos os processos cíveis que tratam de interesses e direitos indispo-
níveis, incluindo ações relacionadas ao direito indígena. Na justiça do
trabalho, também atua quando há presença de menores e de incapazes,
bem como trata-se de direitos indisponíveis. Na justiça militar, atua em
todos os crimes militares. Em todos os casos, também atua nos Inqué-
ritos Civis e Ações Civis Públicas que sejam da esfera de competência
federal, podendo atuar de forma ativa em defesa dos direitos difusos e
coletivos no âmbito da União.
Como pode ser veriicado, a atuação do Ministério Público é am-
pla e diversiicada, atingindo várias áreas do direito, seja na condição
de parte do processo, seja na condição de defensor do interesse público
envolvido.23 Possui e tem garantido um poder investigatório, podendo
efetivamente promover ações transformadoras em toda a sociedade. Por
estes e outros motivos, como as vantagens de uma boa remuneração e
a vitaliciedade, adentrar nesta carreira exige estudo, dedicação e persis-
tência, mas os resultados desta apaixonante trajetória podem ser vistos
todos os dias.

10.3. Advocacia
O advogado é o terceiro eixo da efetivação de direitos perante
o Poder Judiciário. Conforme Negrão24, o advogado é um auxiliar da
Justiça, não um inimigo dela. Ele está para servir a algo mais alto do que
o cliente – a Justiça. Sua atuação está prevista como essencial para a ad-
ministração da Justiça, nos termos do art. 133 da Constituição Federal25.
Existem algumas exceções quanto à exigibilidade de sua inter-
mediação entre o cidadão e o Poder Judiciário. Assim, visando essen-

23 SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiçae novas formas de atuação em defesa de interesses
sociais e coletivos. RBCS . Vol. 16 no 45, p. 127-144, fevereiro/2001.
24 NEGRÃO, heotonio. A linguagem do advogado. Revista de Processo, vol. 49, jan. 1988, p. 90.
25 BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 133. O advogado é indispensável à administração
da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da proissão, nos limites da
lei.

344
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

cialmente o acesso à justiça, em casos em que a demanda possua um


objeto de menor complexidade, como nos Juizados Especiais Cíveis26, é
possível ao cidadão o acesso sem a igura do advogado.
A proissão é regulada pelo Estatuto da Advocacia e da Ordem
dos Advogados do Brasil, Lei n. 8.906/1994 e pelo Código de Ética e
Disciplina da OAB.

10.3.1. Quem pode ser advogado?


O exercício da advocacia é privativo de bacharéis em direito que
possuam habilitação na Ordem dos Advogados do Brasil, não possuam
impedimentos por força de lei e não exerçam outra atividade incom-
patível com a advocacia. Portanto, para se intitular advogado deve-se
possuir a graduação em direito por curso superior habilitado pelo Mi-
nistério da Educação, assim como submeter-se ao Exame de Ordem.
O Exame da Ordem ocorre três vezes ao ano, sendo composto
por duas fases. Na primeira fase são avaliados aspectos gerais, a partir de
uma prova objetiva composta por 80 questões de múltipla escolha. Ob-
tendo-se aprovação na primeira fase, mediante o acerto de pelo menos
50% da prova,, é possível realizar a segunda fase do exame, dissertativa,
composta por quatro questões práticas e uma peça proissional, em que
se deve elaborar uma peça processual de acordo com o caso apresenta-
do pela banca. Na segunda fase é possível indicar uma área especíica
para o exame; quais sejam, Direito Administrativo, Direito Civil, Direito
Constitucional, Direito do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Penal
ou Direito Tributário.
É aceita a submissão ao exame de ordem do estudante de gra-
duação que esteja matriculado no último ano de faculdade, ou nos dois
últimos semestres, possibilitando assim a aquisição do certiicado de
aprovação, restando apenas a conclusão da graduação, a im de que seja
possível o pedido de inscrição como advogado na Ordem dos Advoga-
dos do Brasil.
Sendo aceita a inscrição do candidato ao quadro de membros da
OAB, é necessária, ainda, a solenidade de entrega da habilitação prois-

26 BRASIL. Lei nº 9.099/95. Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes
comparecer pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência
é obrigatória.

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NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

sional, Carteira e Cartão de Advogado. Neste momento, imediatamente


antecedente à entrega, é exigido o juramento27; condicionando, assim,
a atuação nos limites das normas éticas que a proissão impõe, nas pa-
lavras de Garcia28, “o próprio ato de ingresso na proissão encerra um
mandamento de rigoroso cumprimento das normas éticas”.

10.3.2. E que tipo de advogado poderei ser?


A advocacia poderá ser pública29 ou privada30, havendo também
a atuação da Defensoria Pública e de instituições de formação jurídi-
ca que prestam serviços à comunidade em situação de vulnerabilidade
econômica e social.
Será publica quando o advogado izer parte de alguma instituição
pública de representação de interesses públicos ou privados. É exercida,
então, pelo Advogado da União, pelo Procurador da Fazenda Nacional,
pelos Procuradores Federais e os Procuradores do Banco Central, que
formam a Advocacia-Geral da União, na defesa dos interesses da Ad-
ministração Direta (União); do Ministério da Fazenda e autarquias e
fundações públicas federais, como o INSS, o IBAMA, as Universidades
Federais etc. A mesma organização existe no âmbito dos Estados e dos
Municípios.
A respeito da advocacia pública, Mancuso31 airma que sua “re-
presentação tem caráter oicial, institucional, decorrendo da atribuição

27 O juramento se encontra previsto no artigo 53 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia


e da Ordem dos Advogados do Brasil, previsto na Lei n. 8.906, de 04 de julho de 1994, e literalmente
determina que: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética,
os deveres e prerrogativas proissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado
democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da
Justiça, e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”
28 GARCIA, Mario Sérgio Duarte. A ética proissional do advogado. Revista dos Tribunais, São
Paulo, vol. 642, abr. 1989. p. 253.
29 Na condição de Advogado Geral da União e de Procurador do Estado ou do Município, cujo
ingresso na carreira em regra se dá mediante concurso público.
Neste sentido estabelece o art. 9 do Regulamento Geral do Estatuto da OAB:
Art. 9. Exercem a advocacia pública os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Defensoria
Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos
Municípios, das autarquias e das fundações públicas, estando obrigados à inscrição na OAB, para
o exercício de suas atividades.
30 Como advogado de partes privadas, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas.
31 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Titularidade do direito, legitimação para agir e representação
processual. Doutrinas Essenciais de Processo Civil. vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 18.

346
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

legal a certo agente e a certo órgão para a intermediação técnica e a


defesa dos interesses de órgão público”.
A advocacia exercida pela Defensoria Pública, embora conside-
rada advocacia pública pelo Regulamento Geral do Estatuto da OAB,
diferencia-se pela forma de atuação dos Defensores Públicos Federais
e Estaduais, os quais tem como objeto de atuação “garantir o acesso à
justiça para quem não pode pagar pelos serviços de um advogado par-
ticular”.32 Em sua atuação, prestar assistência jurídica integral e gratuita
às pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade e não dispor
de condições inanceiras para arcar com as despesas de um advogado
particular. O limite destas condições são estabelecidos segundo as con-
dições de cada região e, no caso do Rio Grande do Sul, podem ser veri-
icados junto à própria Defensoria Pública do Estado.33
De forma semelhante, a advocacia exercida no âmbito das insti-
tuições de ensino, pelos núcleos de atendimento dos cursos de direito –
como o Serviço de Assistência Jurídica Gratuita, SAJUG, do CESUCA,
além de atuar no mesmo sentido da defensoria pública, possibilitando o
atendimento a pessoas em estado de vulnerabilidade, funcionam como
laboratórios jurídicos, sendo essencial a presença de um advogado re-
gularmente inscrito na OAB, para orientação proissional – habitual-
mente realizada por professores com experiência teórica e prática ligada
à instituição, e os estudantes em formação acadêmica prática.
A carreira de defensor público é acessível por meio de concurso
público, e o acesso à atuação junto aos Serviços de Assistência Jurídica
Gratuita de Faculdades de Direito é, de acordo com o currículo de cada
curso, atividade obrigatória para a obtenção do título de bacharel em
direito. Tais atuações permitem o acesso de pessoas em situação de vul-
nerabilidade social e econômica, possibilitando orientação e represen-
tação processual, consolidando assim o acesso à justiça.

10.3.3. Honorários: honra e sustento!


A respeito da remuneração dos proissionais da advocacia, obser-
va-se que os membros de instituições públicas, servidores públicos, ob-

32 Vide a Cartilha do Defensor Público: http://www.anadep.org.br/wtksite/Cartilha_Defensor_P_


blico_-_Vers_o_Anadep_menor_(Web).pdf
33 Vide: http://www.defensoria.rs.gov.br/conteudo/20000/quem-pode-ser-atendido?

347
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

tém remuneração de acordo com os critérios estabelecidos pelos órgãos


a que estão vinculados.
Já os advogados que atuam no ministério privado, segundo Mar-
tins34, “não recebe subsídios, como os servidores públicos, nem salários,
mas honorários”.
O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Bra-
sil estabelece, em seu Capítulo V, as normas condutoras à ixação dos
honorários contratados, a serem pagos pelo cliente em contraprestação
ao serviço prestado pelo proissional.
A nomenclatura utilizada para denominar a remuneração do ad-
vogado advém do Direito Romano, em que, segundo Martins
[...] o poder de contratar um defensor, (...), signiicava estar
sendo defendido por alguém que se colocava acima dos interesses
momentâneos, econômicos, pessoais ou políticos, sendo capaz de
enfrentar os poderosos.

No que diz respeito à origem do vocábulo, Reale35 ressalta que


“para Cícero, por exemplo, a retribuição maior era ter honra, honrarias,
honores”.36
Por essa razão, a atividade desempenhada não é compatível com
a prática de mercado, possuindo legislação e processo disciplinar pró-
prio, embora possua identiicação com preceitos da responsabilidade
dos demais proissionais liberais, pois poderá ser responsabilizado por
eventuais danos decorrente de sua atuação dolosa ou culposa, tendo o
dever de provar sua conduta.
Nesse sentido, refere Lippmann37 que

34 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tabela de Honorários instituída pela Lei 8.906/1944 para
ser observada pela Ordem dos Advogados do Brasil – Incompetência dos órgãos disciplinares da
concorrência econômica para interferir na remuneração do advogado – advocacia não é mercancia
– Honorários advocatícios não estão sujeito ao Código de Defesa do Consumidor. Revista do
Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, vol. 26, jul. 2010, p. 333.
35 REALE, Miguel. A ética do advogado sob o enfoque ilosóico. Revista do Instituto dos
Advogados de São Paulo. São Paulo, jul 2011, vol. 28, p. 34.
36 Leia “Um pilar de ferro”, de Taylor Caldwell, sobre a história de Cicero, e compreenda o
signiicado deste honorário, que não era obrigatório nem pré-determinado, mas uma retribuição
por aquilo que o advogado obtinha em face de seu cliente.
37 LIPPMANN, Ernesto. A responsabilidade civil do advogado vista pelos Tribunais. Doutrinas
Essenciais de Responsabilidade Civil. vol. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 1171.

348
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

[...] em regra, a prestação de serviços de advogado é considerada como


obrigação de meio e não de resultado, ou de im. Portanto considera-se
que o serviço foi satisfatoriamente cumprido, independentemente do
resultado obtido, desde que o proissional tenha sido diligente.

A título de base, a Seccional da OAB em cada Estado estabelece


uma tabela de honorários advocatícios, que servem como balizamento
para o estabelecimento dos valores, de acordo com a atividade exercida.
Esta pode ser veriicada no próprio site da OAB, cuja revisão dos valores
em regra é anual.38

10.3.4. A linguagem forense


Esses intermediadores dos direitos comunicam-se diretamente,
tanto com a sociedade quanto com o Poder Judiciário. O desempenho
da advocacia permite, assim, que o advogado auxilie à Justiça a ser al-
cançada. Negrão39 referiu que em determinado momento, após uma
sustentação oral, percebeu que os juízes que o ouviam ‘acordam’. A refe-
rência possui duplo sentido. Primeiramente, o sentido clássico, referen-
te à concordância dos magistrados, de modo que naquele momento se
pressupõe que todos os julgadores tiveram vistas dos processos, e por tal
razão concordam em decidir a questão de fato ou de direito em conjunto.
O segundo signiicado, e este exposto no texto do autor, diz res-
peito ao sentido de despertar, assim visualizando a questão trazida à
apreciação do Poder Judiciário.
Do mesmo modo, a maneira como o advogado se comunica na
execução de seus atos, seja na redação ou na fala, é essencial para o su-
cesso das suas ações. Isso porque não somente a linguagem forense deve
ser empregada com clareza, mas também o domínio do assunto com
que se lide, o conhecimento da doutrina e da jurisprudência, sob pena
que incorrer em imperícia durante sua atuação.
Nesse sentido, é interessante a referencia de Negrão40, que dizia que
após receber um presente de um amigo, tal obra iniciava com a seguinte
frase: “O telefone tocou”, e assim comenta: “Comecei a ler o livro, esperan-

38 Honorários: http://www.oabrs.org.br/tabela-honorarios
39 NEGRÃO, heotonio. A linguagem do advogado. Revista de Processo, vol. 49, jan. 1988, p. 83.
40 Ibid.,p. 86.

349
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

do que atendessem o telefone. Pois, olhem, até o quinto capítulo o cidadão


não tinha atendido o telefone... Não consegui ler o livro. Desisti”.
A objetividade na comunicação do advogado, em tornar comum
às partes e ao Juízo o bem jurídico perseguido pelo seu cliente, é indis-
pensável tanto em negociações extrajudiciais, como na atuação perante
o Poder Judiciário.
Por im, a carreira da advocacia possui um papel essencial no
exercício da Justiça na sociedade e perante o Poder Judiciário, devendo
o operador do direito agir de modo ético e proissional, pois nas pa-
lavras de Negrão41, “ninguém pode ser advogado, ninguém pode pre-
tender a sua proissão como deve, se não cumprir os preceitos da ética
proissional”.
É um longo caminho, e ele não acaba, em verdade sempre se re-
nova, como se renovam as leis, os usos e costumes, assim como as tecno-
logias e o modo como as pessoas se relacionam, devendo assim o advo-
gado adequar-se à realidade de uma sociedade em constante formação e
transformação, exercendo assim sua atuação como sujeito indispensável
à administração da Justiça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por im, visualizamos que as carreiras jurídicas que formam os
três pilares do Poder Judiciário: a Magistratura, o Ministério Público
e a Advocacia, são organizados independentemente umas das outras,
sendo baseadas em preceitos éticos mínimos e de conduta, visando a
efetivação da Justiça no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Pode-se vislumbrar o delineamento geral das três carreiras tipi-
camente jurídicas, especiicando a relação de uma com cada uma das
outras; bem como ressaltando as particularidades e as peculiaridades de
cada uma delas.
A Magistratura é a carreira dos juízes, seja de direito, federais ou
eleitorais, que possuem atribuições de presidir o andamento do proces-
so, decidindo questões incidentes e deinitivas; estando inseridos tam-
bém nesse contexto os Desembargadores, nos Tribunais, e os Ministros,
nos Tribunais Superiores.

41 Ibid., p. 83.

350
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

O Ministério Público, por sua vez, apresenta a igura precípua do


iscal da lei, custus legis, tendo por missão essencial do Direito a garan-
tia de cumprimento das leis e da Justiça. Possuem também, em alguns
aspectos, legitimidade para propor ações, em alguns casos de modo pri-
vativo – como no âmbito penal-, possuindo assim uma dupla função em
defesa da sociedade.
Assim como estes e outros agentes, o advogado também exerce
função essencial à Justiça, sendo o proissional que assiste de modo ori-
ginário as partes, judicialmente. É ele o intermediário dos interesses e
pleitos do mundo real como um tradutor à linguagem forense ao mun-
do jurídico. Podendo (devendo) ainda, promover a negociação, media-
ção e conciliação entre as partes.
Tudo isso aigura-se relevante na compreensão por parte dos aca-
dêmicos e futuros operadores do Direito das sutilezas inerentes à cada
carreira: do peril constitucional, do papel jurisdicional, da diferença
na abordagem e condução institucional dos problemas levados à praxis.

REFERÊNCIAS
AMB. Associação dos Magistrados Brasileiros. O judiciário ao alcance
de todos: noções básicas de Juridiquês. 2. ed. Brasília: AMB, 2007, pp.
14-15. Disponível em http://www.amb.com.br/portal/juridiques/livro.
pdf, acesso em 19.06.2014.
ANADEP. Associação Nacional das Defensorias Públicas. Cartilha do
Defensor Público: Disponível em: http://www.anadep.org.br/wtksite/
Cartilha_Defensor_P_blico_-_Vers_o_Anadep_menor_(Web).pdf
Acesso em: 20 ago 2014.
ASENSI, Felipe Dutra. Curso Prático de Argumentação Jurídica. Rio
de Janeiro: Eslevier, 2010.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Art. 133. O advogado é
indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos
e manifestações no exercício da proissão, nos limites da lei.
BRASIL. Lei n. 9.099/95. Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários
mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas
por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória.

351
NEy WIEDEMANN NETO - KELLy LISSANDRA BRUCH - FABIANA PRIETOS PERES

BRUCH, Kelly Lissandra. Lei do vinho sistematizada. Brasília, DF :


SEBRAE; Bento Gonçalves: IBRAVIN, 2012. .
CALDWELL, Taylor. Um pilar de ferro, 2003. .
CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRATURA. Disponível em
http://www.cnj.jus.br/codigo-de-etica-da-magistratura . Acesso em
19.06.2014.
Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei n.
8.906/1994 e Código de Ética e Disciplina da OAB
GARCIA, Mario Sérgio Duarte. A ética proissional do advogado.
Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 642, abr. 1989. p. 253.
HADDAD, José Ricardo et. al. Poder Judiciário e carreiras jurídicas. 4.
ed. São Paulo: Atlas, 2012
Lei Complementar n. 35/1979 - LOMAN, arts. 40 a 48.
LIPPMANN, Ernesto. A responsabilidade civil do advogado vista pelos
Tribunais. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil. 4. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v.4
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Titularidade do direito, legitimação
para agir e representação processual. Doutrinas Essenciais de Processo
Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v.3
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tabela de Honorários instituída
pela Lei 8.906/1944 para ser observada pela Ordem dos Advogados
do Brasil – Incompetência dos órgãos disciplinares da concorrência
econômica para interferir na remuneração do advogado – advocacia
não é mercancia – Honorários advocatícios não estão sujeito ao Código
de Defesa do Consumidor. Revista do Instituto dos Advogados de São
Paulo, São Paulo, vol. 26, jul. 2010, p. 333.
NEGRÃO, heotonio. A linguagem do advogado. Revista de Processo.
São Paulo, n. 49, jan/mar.1988.
REALE, Miguel. A ética do advogado sob o enfoque ilosóico. Revista do
Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo, jul 2011, vol. 28, p. 34.
Resolução n. 75 do CNJ.

352
10 • A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS

RIO GRANDE DO SUL. Defensoria Pública. Disponível em: Vide:


http://www.defensoria.rs.gov.br/conteudo/20000/quem-pode-ser-
atendido? Acesso em: 20 ago 2014.
SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiçae novas formas de atuação em
defesa de interesses sociais e coletivos. RBCS . Vol. 16 no 45, p. 127-144,
fevereiro/2001.

353
11

UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO DO


TRABALHO

Dartagnan Ferrer dos Santos1

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 11.1. O nascimento do direito do


trabalho na era das revoluções - 11.1.1. O mundo sem proteção
ao trabalhador e a mudança desse cenário - 11.1.2. A luta contra
a opressão e a construção do direito do trabalho - 11.2. Aspectos
evolutivos do direito do trabalho no Brasil - 11.2.1. O início
da legislação nacional - 11.2.2. A “Era Vargas” e a ascensão do
direito laboral brasileiro - 11.2.3. Do período autoritário até a
nova ordem constituicional de 1988 - 11.3. O cenário atual
do direito do trabalho - 11.3.1. Pós-modernidade e crise da
sociedade do trabalho - 11.3.2. Privatização, lexibilização e
terceirização - 11.4. Características, inalidade e conceituação
do direito do trabalho - 11.4.1. Autonomia, divisão tripartite e
posicionamento do ramo jurídico - 11.4.2. Os principais objetos
de cada um dos três campos do direito do trabalho - 11.4.3.
Finalidade e conceito do direito do trabalho - REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

1 Advogado. Professor do curso de direito do Cesuca. Professor em cursos de pós-graduação. Mestre


em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em direito e processo do
trabalho pelo Centro de Estudos do Direito do Trabalho. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: dartagnansantos@cesuca.edu.br.

355
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

INTRODUÇÃO
O direito laboral é um ramo jurídico consideravelmente novo que
veio dotar de força normativa as conquistas que os trabalhadores obti-
veram com suas lutas ao longo da história.
Após a assimilação das ideias iluministas e pela necessária resolu-
ção de problemas que vieram com as revoluções francesa e industrial, o
trabalho subordinado passou a ser regido por esse subsistema jurídico,
cuja razão de ser é obter o quanto possível igualdade material entre pa-
trão e empregado, equiparando-os.
No Brasil, sua consagração deinitiva se deu na primeira metade
do século vinte, com a Consolidação das Leis do Trabalho e a criação da
Justiça Especial do Trabalho. Agora, no panorama da pós-modernidade,
procura-se soluções para os novos desaios do direito laboral.

11.1. O nascimento do direito do trabalho na era das


revoluções

11.1.1. O mundo sem proteção ao trabalhador e a


mudança desse cenário
Embora o direito esteja presente nas sociedades humanas desde
a aurora da história, o seu ramo laboral é uma criação mais ou me-
nos recente. Existe algo de paradoxal nessa realidade, pois o trabalho é
uma constante desde o surgimento da espécie humana, a qual resistiu e
triunfou contra a natureza justamente em razão do bom uso que fez des-
sa atividade.2 Além disso, a história de lutas e melhorias laborais é rica e
instigante. Não obstante, o nascimento do ramo jurídico ocorreu na era
moderna, principalmente com o advento de ideias iluministas e duas
mudanças radicais que não contam mais do que duzentos e cinquenta
anos: as revoluções francesa e industrial.
De fato, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que leva-
ram à queda da Bastillha permitiram aos trabalhadores mais humildes

2 JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Tradução


de Ruy Jungmann. Consultoria: Renato Lessa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 241: “De modo
geral, trabalho é toda atividade que gera um produto ou serviço para uso imediato ou troca.”

356
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

o sonho de uma vida mais completa, para além do labor desumano que
era regra entre as classes desfavorecidas. Por outro lado, o progresso
técnico trazido pela Revolução Industrial trouxe - além de tantas boas
perspectivas - um cotidiano de duras fábricas, principalmente na In-
glaterra, tornando indispensável uma nova forma de ver a relação de
trabalho que enfocasse a pessoa do trabalhador, que consumia a quase
totalidade de sua vida prestando serviços pesados e perigosos, desde a
mais tenra idade. Paralelamente a isso tudo, o pensamento de Immanuel
Kant e outros ilósofos da modernidade marcaram a defesa do que até
hoje se chama “dignidade humana”, fornecendo um profundo arcabou-
ço teórico para a defesa do homem frente às más condições de trabalho.
Até então, o trabalhador – nos mais das vezes escravo -, não era visto
como merecedor de importância.
De fato, a história mostra que só há pouco tempo o ato de traba-
lhar passou a ser visto como algo digno e até desejável; “as ideias mais
remotas em torno do assunto sempre relacionaram o trabalho ao sofri-
mento e à dor.”3 Para ilustrar tal realidade, bastaria lembrar que a civi-
lização Grega – de importância e grandeza indiscutíveis para a história
ocidental - não deixava de tratar a escravidão como algo natural, não
só inevitável, como até desejável sob muitos aspectos. Platão,4 Aristó-
teles5 e muitos outros diziam isso abertamente. Alguns séculos após,
os romanos continuaram a dispensar o mesmo tratamento ao assunto,
deixando claro que, “de fato, nem todos os homens são livres”.6 Mesmo
o cristianismo via o trabalho como punição divina, consagrada na fór-
mula bíblica do “comer o pão com o suor do seu rosto”;7 além disso, a fé
religiosa não foi suiciente para fazer desaparecer a escravidão.8 Durante

3 MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas


do trabalho. 4 ed. São Paulo. Ed. Saraiva, 2013. p. 54.
4 PLATÃO. A República. 11. ed. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira.
Local Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 226, onde o ilósofo defende a escravidão para os
bárbaros, considerando justo “poupar a raça grega”.
5 ARISTÓTELES. Política. Introducción, Traducción y Notas por Manuela García Valdés. Madrid:
Biblioteca Clásica Gredos, 116. Primera Edición, 1988. 3ª Reimpresión, 2004, p. 58: “Pois é escravo
por natureza aquele que pode ser de outro (por isso precisamente é de outro) e aquele que participa
da razão tanto como a percebe, mas não a possui.”
6 MAY, Gaston. Éléments de Droit Romain. Dixième Édition. Paris, Librarie de la Société du
Recueil J.-B Sirey et du journal du palais, 1909. p. 62.
7 BÍBLIA. Português. Antigo e Novo Testamento. 50. ed. Petrópolis; Editora Vozes. 2005. p. 27.
8 MAY, Op. cit., p. 63.

357
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

o medievo, o direito dos vassalos que habitavam o território dos nobres


ia pouco além da busca do próprio sustento e o direito de pagar por
suposta proteção; enquanto isso, a nobreza permanecia desprezando e
evitando qualquer trabalho.9 Vale lembrar que destes tempos da Idade
Média surgiu a palavra “trabalho”, oriunda de um instrumento de tortu-
ra ou imobilização usado na época, o “trepalium”.10
A pós esse período, sob o clarão do Iluminismo, surge o Estado
em sua concepção “moderna”, amparado pela força da soberania, “um
poder inabalável e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade
superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coer-
ção”.11 Esse novo cenário público-estatal, pós-Absolutista, já se estende
há cerca de quinhentos anos,12 fundamentado originalmente nas ideias
de Locke, Montesquieu, Rousseau, Kant e outros, os quais fomentaram
o ambiente das grandes revoluções do século dezoito que clamavam por
independência, valores republicanos e separação de poderes. No mo-
mento em que essas conquistas de índole, manifestamente liberais, es-
tão consolidadas e já começam a mostrarem-se insuicientes para evitar
conlitos e descontentamos sociais, estava para nascer um novo Estado
constitucional estruturado e legitimado por vindouros direitos funda-

9 HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Tradução de Francis Petra Janssen. São Paulo:
Cosac Naify, 2010. p. 87: Embasado nos escritos de Chastellain, Johan Huizinga descreve o
pensamento da época: “Deus criou o povo para trabalhar, arar o solo e cuidar da subsistência por
meio do comércio; o clero, para as obras da fé; mas a nobreza para promover a virtude e conservar
a justiça, para servir de espelho para os outros pelos seus atos e costumes.”
10 COUTINHO, Aldacy Rachid. Trabalho e pena. Revista LTr : Legislação do Trabalho. São Paulo.
Ed. LTr., v.62, n.10, p.1340-341, out., 1998: “Nas mais variadas línguas, a expressão trabalho trouxe
acorrentado o signiicado da dor. De um lado, o português trabalho, o francês travail e o espanhol
trabajo, remontam à sua origem latina no vocábulo trepalium ou tripalium, um instrumento de
tortura composto de três paus ferrados ou, ainda, um aparelho que servia para prender grandes
animais domésticos enquanto eram ferrados. [...] De outro lado, a expressão italiana lavoro e a
inglesa labour derivam de labor, que em latim signiicava dor, sofrimento, esforço, fadiga, atividade
penosa. Seu correspondente grego era ponos, que deu origem à palavra pena.”
11 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed., rev e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21.
12 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Iorriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
p. 16. A modernidade pode ser divida em três fases: uma primeira do início do século XVI até
as revoluções dos idos de 1790; deste período tumultuado até o inal do século XIX se vive uma
grande experiência de modernidade bastante restrita às metrópoles da época; durante o último
século do milênio já indo, a modernidade está espalhada pelo mundo.

358
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

mentadores da “supremacia [...] do Direito/Justiça e ética sobre o Direi-


to/norma e coerção.”13
O conceito de “direitos fundamentais” expressa ao mesmo tempo
“uma pretensão moral justiicada e sua recepção no direito positivo”. A
primeira repousa sobre o conceito de dignidade humana, enquanto a
necessária normatização possibilita sua efetivação. Com isso, resta su-
perada “a dialética jusnaturalismo-positivismo”. Além disso, em nome
da efetividade desses direitos, se mostra necessária uma complemen-
taridade entre abordagens estatais liberais, democráticas e socialistas,14
atuando eles na forma de um “subsistema no sistema jurídico”15 e, no
plano da “eicácia”, inluenciando a realidade social e dela sorvendo a
moralidade que os enseja.16 O que justiica essas quebras de barreiras
conceituais, políticas e sistemáticas é o ideal da “dignidade humana” que
eleva o homem a “um im em si mesmo [e] sujeito de uma razão práti-
co-moral”, possuindo um valor intrínseco absoluto, “podendo medir-se
com qualquer outro desta espécie e valorar-se em pé de igualdade”.17 A
história mostra que, na forma de direitos fundamentais, os valores de
liberdade, isonomia, segurança e solidariedade fortalecem as ideias da
dignidade humana;18 e com isso estava preparado o terreno teórico e
fático para a necessária erupção do ramo jurídico laboral.

13 BONAVIDES, Op. cit., p. 29-37.


14 MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba (Com la colaboración de: Rafael de Asís Roig y Maria del
Carmen Barranco Avilés). Lecciones de derechos fundamentales. Madrid: Editorial Dykinson,
2004. (Colección Derechos Humanos y Filosofía del Derecho), p. 29. (O autor argumenta que a
qualiicação “fundamentais” a esses direitos é mais indicada do que a de “humanos”, “naturais”,
“públicos subjetivos” ou “morais”, bem como mais apropriada do que a locução “liberdades
públicas”. Além disso, a denominação abriga suas dimensões moral e positiva. Ibid., p. 19-29)
15 CARRAZZA. Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 21. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 47: “[...] que o Direito forma um sistema é um postulado que sequer precisa de
demonstração, já porque postulado (de universal acatamento, diga-se de passagem), já pela proibição
lógica do regressum ad ininitum (da ininita reciclagem das premissas eleitas) (Geraldo Ataliba).”
16 MARTÍNEZ, Op. cit., p. 44-47.
17 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, apresentação e notas de José Lamego.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005a, p. 367.
18 MARTÍNEZ, Op.. cit., p. 135-189.

359
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

11.1.2. A luta contra a opressão e a construção do direito


do trabalho
O ramo jurídico em questão também nasceu no seio da “era das
revoluções”, no momento em que são tomadas efetivas medidas estatais
contra as seculares “corporações de ofício” que restringiam o monopó-
lio do trabalho a poucos. Ainada com a ótica liberal-burguesa da revo-
lução iminente na França, surgiu a “liberdade de trabalhar”. Tal ideia se
deu após várias investidas do Estado até a fulminante “Lei Chapellier”,
que extinguiu totalmente as corporações, em 1791. A partir de então,
bastava “apenas o interesse particular de cada indivíduo” para que se
exercesse qualquer trabalho.19 No entanto, essa conquista logo se revela-
ria bastante limitada, pois não garantia boas condições para aqueles que
conseguiam um posto.
De maneira paralela, a Revolução Industrial desenvolvia-se con-
temporaneamente aos movimentos revolucionários na iminente Repú-
blica Francesa. A Inglaterra foi o ponto nevrálgico dessa revolução dos
meios de produção, na qual a máquina a vapor de James Watt eliminava
postos de trabalho, provocando desemprego em massa e derrubando os
valores dos salários – o que forçava esposas e ilhos a complementarem
a minguada renda de suas famílias por remuneração ainda mais baixa.
Assim, para o mundo do trabalho, a melhor síntese desse cenário de
liberalismo e revolução industrial é aquela de Arnaldo Süssekind: “A
liberdade e a máquina não libertaram o trabalhador.”20
A reação contra essa situação foi o reavivar das “trade unions”21
pelos trabalhadores ingleses, o que levou o Parlamento Britânico a to-
lerar o sindicalismo em 1824. Os movimentos reivindicatórios prospe-
raram de maneira a se criar, em 1833, a “União Nacional Consolidada”,

19 ALEMÃO, Ivan. O direito ao trabalho na história e na Constituição Federal de 1988. In:


SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coords.) Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 959-963.
20 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito internacional do trabalho. 3. ed. atual. São Paulo: LTr, 2000.
p. 82-83.
21 SÜSSEKIND, 2000, p. 84: As “trade unions” eram associações de trabalhadores que, pelo menos
desde 1720, reivindicavam melhores salários e menores jornadas de trabalho. Em 1799 e 1800, os
“Combinations Acts” lançaram-nas na ilegalidade. Sua reorganização nos anos 20 do século XIX
foi o início de um progressivo crescimento que acabou por ensejar o “Congresso das Trade Unions”
que, no ano de 1903, veio a criar não menos do que o “Partido Trabalhista” inglês (“Labour Party”),
uma das duas maiores forças políticas inglesas.

360
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

confederação sindical de meio milhão de associados delagradora de


greves por uma “Carta Constitucional do Trabalho”. Esse movimento
obteve êxito em reduzir a jornada de trabalho para dez horas diárias, em
1847. Essas ideias se espalharam pela França, Alemanha, Itália e Estados
Unidos da América. “Estava [então] quebrado o tabu do não-interven-
cionismo do Estado nas relações de trabalho.” Esses foram tempos em
que a igualdade e a solidariedade entraram em cena, quando os direitos
dos trabalhadores passam a ser “visto[s] não mais como liberdade de
exercer qualquer proissão, mas como possibilidade de adquirir empre-
go por meio de luta política”.22
Em 1871, sob a cheia de Benjamin Disraeli, o Governo inglês
regulamentou o direito à sindicalização, exemplo que seria seguido por
outros países.23 Dessa maneira, as leis laborais vão nascendo por for-
ça das lutas sindicais, ao passo em que o jovem “direito do trabalho”
vai se consolidando como a trincheira da luta operária. Embora Karl
Marx não tenha concluído uma teoria do direito, visto por ele como
mera superestrutura que relete o dever-ser das classes donas dos meios
de produção,24 sua visão de mundo inluenciou de maneira indelével o
ramo laboral, pois além de teorizar quanto às lutas de classes que eram
tão presentes naquele momento, proclamou a união dos proletários em
prol de si próprios -.25
Posteriormente, a partir de meados e ins do Século XIX, vai se
gerando o que veio a ser chamado de “Estado Social [ para intervir]
diretamente nas questões sociais e econômicas, por necessidade de so-
brevivência, com a consequente compressão da autonomia individual”.26
Seu protagonismo se estabelece principalmente no século vinte, ao inal
da Primeira Guerra Mundial, em razão dos graves problemas latentes

22 ALEMÃO, Op. cit., p. 964.


23 SÜSSEKIND, 2000, p. 84-85.
24 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de janeiro: Renovar, 2006b, p. 65-66. A visão
economicista do direito para Marx transparece de sua opinião de que “é a infraestrutura econômica
– e tão somente ela – que condiciona as instituições jurídicas”.
25 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Org. e int. Osvaldo Coggiola.
Tradução de Álvaro Pina e Ivana Jinkings. 1 ed. revista. São Paulo. Ed. Boitempo. 2010. p. 69.
26 STÜRMER, Amélia Elisabeth Baldoino da Silva; STÜRMER, Gilberto. A constitucionalização do
direito civil: a propriedade e a liberdade. In: STÜRMER, Gilberto. (Org.) Questões controvertidas
de direito do trabalho e outros estudos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 16.

361
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

que emergiram com esse conlito. Naqueles anos se dá início a uma nova
ordem social com a Constituição Mexicana de 1917 e aquela de Weimar,
datada de 1919.27 No dizer de Paulo Bonavides, para superar os conli-
tos emergentes, o liberalismo vigente realiza então um “recuo estraté-
gico”, visando estabelecer um consenso social por meio do “binômio
liberdade e igualdade, que em última análise lhes confere um teor novo
de proteção e garantia, com abrangência de todos os direitos humanos
fundamentais”.28
A internacionalização dos direitos dos trabalhadores inicia-se
com as “Conferências de Berna”, ocorridas entre os anos de 1905 e 1913.
Nelas, foram ixadas normas sobre a jornada de trabalho, o horário no-
turno e as medidas de proteção a mulheres e menores. Após o im da
primeira guerra mundial realiza-se na mesma cidade a “Conferência
Sindical Internacional”, aprovando a “Carta do Trabalho” com diretrizes
a serem seguidas no Tratado de Paz que seria assinado em 1919, em Ver-
salhes; no capítulo XIII do documento criou-se a “Organização Interna-
cional do Trabalho” – “OIT” e foram enumerados os “princípios gerais
do trabalho”; dentre eles, a diretiva de que o labor não é mercadoria; o
direito de associação; o salário condizente; a jornada de 8 horas diárias
e 48 semanais; o descanso semanal de 24 horas; a supressão de trabalho
a crianças; isonomia salarial; normas de saúde, segurança e proteção ao
trabalhador.29
Por im, chega-se ao Estado Democrático de Direito, o qual deve
enfatizar a solidariedade e a igualdade ao lado da liberdade. Nesse mo-
delo, se reconhecem as relações de trocas entre iguais - na iniciativa
privada – e a necessidade solidária da distribuição de bens por políti-
cas públicas, por meio das quais é possível promover direitos laborais.
Nesse modelo de Estado, convivem relações de justiça distributiva e de
justiça comutativa; e o trabalho é um bem comum;30 cada garantia ou
direito que dele provém é um meio para que se alcance as conquistas

27 STÜRMER, loc. cit.


28 BONAVIDES, Op. cit., p. 289.
29 SUSSEKIND, 2000, p. 94-108.
30 BARZOTTO, Luciane Cardoso. Direitos humanos e trabalhadores: atividade normativa da
Organização Internacional do Trabalho e os limites do direito internacional do trabalho. Porto
alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 139. (As formas de justiça referidas serão examinadas
rapidamente no inal do capítulo.)

362
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

modernas, assimilando-as ao desejado modo de vida eleito pelo sujeito


autônomo kantiano, personagem da inegável sociedade multicultural
que hoje deve permitir “a coexistência de diferentes culturas em um
mesmo país, continente ou mesmo na sociedade global”.31
Em nosso sistema jurídico, aos mais importantes direitos dos tra-
balhadores foi reservada a condição “fundamental”, estando eles listados
principalmente nos incisos do artigo 7º da Constituição da República
Federativa do Brasil sob o “Título II”: “Dos Direitos e Garantias Fun-
damentais”.32 A generalização de tais conquistas relete sua pretensão de
extensão à totalidade da humanidade. Alguém poderia argumentar que
tal visão é utópica. Porém, como bem airma Costa Douzinas, ao tratar
dos direitos humanos - ou fundamentais -, representam eles um eterno
devir; o horizonte que se afasta a cada passo e, com isso, permite e obri-
ga o continuar da caminhada; “são eles a promessa do ‘ainda não’ [e] seu
im chega quando eles perdem o seu im utópico”.33

11.2. Aspectos evolutivos do direito do trabalho no Brasil

11.2.1. O início da legislação nacional


Com suas dimensões continentais e baixa densidade demográi-
ca, o Brasil enfrentou históricos problemas de escassez de mão de obra.
Mesmo o tráico de escravos de grandes dimensões não signiicou uma
grande massa trabalhadora presente no país, pois essa população bra-
sileira, que por volta de 1872 somava cerca de 1,5 milhão de trabalha-

31 OLIVEIRA JÚNIOR, José Alcebíades de. Multiculturalismo: o “olho do furacão” no direito pós-
moderno. Revista Direitos Culturais, Santo Ângelo, RS, v.1, n.1, dez. 2006. p. 161-168. Disponível
em: <http://srvapp2s.urisan.tche.br/seer/index.php/direitosculturais/article/view/121/102> Acesso
em: 30 jan. 2011. É possível falar [de multiculturalismo] sob vários enfoques: libertário, com Robert
Nozik e Friedrich Hayek; liberal-contratualista, seguindo-se os passos de John Rawls e Ronald
Dworkin; comunitarista de Michael Walzer, Alasdair Mcintyre Michael Sandel e Charles Taylor, para
quem o melhor – ou possível – convívio das diferenças multiculturais exige que sejam elas - mais do
que toleradas – reconhecidas; e crítico deliberativo, com Jürgen Habermas.
32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acessado em 29 maio 2014: Figuram os
direitos dos trabalhadores entre os “direitos sociais” fundamentais, os quais iniciam no artigo 6º da
Carta Magna e se estendem até o 11º, tratando inclusive dos direitos sindicais e de greve.
33 DOUZINAS, Costas. O im dos direitos humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo:
Unisinos, 2009. p. 384.

363
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

dores, teve “uma taxa de mortalidade bem superior à de natalidade”.34


Ainda no século XIX, levas de imigrantes provindos da Alemanha e da
Itália chegaram ao país. Houve ainda migrações internas, das já quase
exauridas Minas Gerais para os cafezais de São Paulo, bem como meio
milhão de trabalhadores predominantemente nordestinos para a lo-
resta amazônica em função do ciclo da borracha.35 Mesmo com tanta
necessidade de trabalho humano, esse não foi devidamente valorizado
no país, o que pode ter ocorrido em razão da pouca organização dos
trabalhadores e do labor predominantemente rural. Esses fatores eram
decorrência de restrições quase absolutas à educação e do isolamento
em que viviam as populações no vasto território brasileiro. Tendo em
vista o cenário de cerca de 400 anos de desconsideração pelo trabalho
humano: “O fato de maior relevância ocorrido na economia brasileira
no último quartel do século XIX foi, sem lugar à dúvida, o aumento da
importância relativa do trabalho assalariado.”36
Cabe lembrar que desde 1603 o Brasil esteve sob a égide das “Or-
denações Filipinas”, legislação corporiicada em Portugal por ordem de
Felipe II da Espanha. As ideias quase medievais lá elencadas só começa-
ram a ser superadas em 1879, quando a “Lei da Boa Razão” padronizou
os processos e determinou e elucidação do “espírito da lei”, como forma
de interpretação preferível a qualquer outra, inclusive restringindo a in-
luência do direito romano e limitando o direito canônico aos tribunais
eclesiásticos. Assim, passaram-se a proclamação da Independência do
Brasil, a Constituição Imperial de 1824, a Proclamação da República em
1889 e sua nova ordem constitucional, a partir de 1891.37 De qualquer
forma, algumas leis esparsas desse período foram notoriamente relevan-
tes. Durante o período imperial, a Lei n. 13 de 1830 tratava do contrato
não verbal de prestação de serviços; a locação de serviços por colonos
era regulada pela Lei n. 108 de 1837; por im, o Decreto 2.827 de 1879
revogou as normas anteriores para normatizar qualquer prestação de
serviços, enquanto o Decreto 1.313 de 1881 versava sobre o trabalho

34 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1998. p. 119.
35 FURTADO, Op, cit., 123-135.
36 Ibid.,p. 151.
37 GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. (Justiça e Direito), p. 3-8.

364
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

de menores. Após a proclamação da República, o Decreto 1.150 tratou


do pagamento dos empregados rurais, cuja sindicalização foi regulada
pelo Decreto 979 de 1901.38 Não obstante, o país adentrou o século vinte
ainda sob a vigência daquelas Ordenações e Lei da Boa Razão.39
É só em 1916, com a promulgação do primeiro “Código Civil
Brasileiro”, que a legislação pátria alcança uma condição de real inde-
pendência; o surgimento do direito privado brasileiro é acontecimen-
to de enorme importância na história jurídica nacional; não obstante,
inegáveis inluências lusitanas no texto e a inluência de dois fatores
conservadores: o poder inanceiro rural e os interesses da classe média
urbana, o que não permitiu que o Código Civil de 1916 estabeleces-
se maiores avanços sociais,40 chegando a omitir-se quanto ao acidente
do trabalho - lacuna legislativa que só veio a ser desfeita pela Lei n.
3.724/19.41 Por outro lado, ao tratar de “locação de serviços”, a lei foi
o mais liberal possível, mantendo a primazia da vontade em primeiro
plano. De qualquer maneira, quando visto no cenário de sua época, o
Código Civil de 1916 aparece como um documento que consolidou as
reformas e avanços possíveis, considerando-se a estrutura social noto-
riamente injusta daquele momento. Como concluiu Orlando Gomes, é
possível que ele não pudesse ir mais longe.42

11.2.2. A “Era Vargas” e a ascensão do direito laboral


brasileiro
A “questão social” é um problema presente no Brasil desde seus
primórdios. Seu tímido enfrentamento não se iniciou com Getúlio Var-
gas. Leis sindicais, sobre o trabalho avulso etc. foram sendo criadas pro-
gressivamente. Porém, é fato que “só a partir de 1930 que ocorre a ace-

38 SOUZA, Marcelo Papaléo. Manual de execução trabalhista: arrematação, adjudicação e


remição. São Paulo: LTr, 2005. p. 41.
39 GOMES, 2006, p. 8.
40 GOMES, 2006, p. 24- 34.
41 CATHARINO, José Martins. Infortúnio do trabalho: doutrina e legislação:com comentários à
Lei 5.316/967. Guanabara: Edições Trabalhistas S/A., 1968, p. 14: Sobre a legislação brasileira sobre
a matéria, o autor aponta “três fases bem distintas: a primeira coninada na legislação comum; a
segunda, a da legislação do trabalho, iniciada pela Lei n.º 3.724, de 15-1-1919, complementada pelo
Decreto n.º 13.498 de 12 de março do mesmo ano; a terceira, com a advento da Lei n.º 5.316”, de
14 de setembro de 1967.
42 GOMES, 2006, p. 32-46.

365
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

leração e a sistematicidade das leis trabalhistas, encaradas, desde então,


como uma política de Estado”.43 De fato, o ano de 1934 foi decisivo para
o direito do trabalho brasileiro. A Constituição promulgada alinhavou
pretensões sociais consideráveis, criando a Justiça do Trabalho, o salário
mínimo e outras garantias constitucionais; frustrando-se, todavia, as ex-
pectativas de uma ordem social brasileira mais justa – até porque se vi-
via um momento político contraditório em todo o mundo, marcado por
progressos cientíicos com ascensão de governos autoritários. Ademais,
uma exagerada “bipolarização ideológica” vivida no Brasil da época
culminou em conlitos que criaram o pretexto da “ameaça comunista”
para justiicar emendas constitucionais repressoras. Assim, já no ano se-
guinte de sua vigência, o texto constitucional estava descaracterizado.44
De qualquer forma, permaneceram a Justiça do Trabalho e algumas das
mais importantes conquistas.
A “Carta de 1937” substituiu a constituição anterior, conirman-
do direitos laborais nesta listados, e fortalecendo o viés autoritário que
já se vislumbrava nas leis trabalhistas de então. As fontes para tal rota
foram “os princípios basilares do ordenamento sindical corporativo do
fascismo [...] deinidos na Carta del Lavoro, de abril de 1927”..45 Poste-
riormente, nasce a “Consolidação das Leis do Trabalho” pelo Decreto
Lei n. 5.452 de 1º/05/1943, documento normativo de notáveis conquis-
tas obreiras, embora tenha lamentavelmente excluído os trabalhadores

43 BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição da democracia de massas no Brasil:


instabilidade constitucional e direitos sociais na Era Vargas (1930-1964). In: SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. (Coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização
e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 48-49: A maior parte dessa
legislação foi editada durante o Governo Provisório. Durante o “Estado Novo” - nos anos quarenta
- essas e outras leis foram sistematizadas na “Consolidação das Leis do Trabalho”.
44 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de janeiro: Renovar, 2006b, p. 20-22. Sobre a
“bipolarização ideológica” dos anos 30, o autor realça o embate político entre a “Ação Integralista
Brasileira” de Plínio Salgado e a “Aliança Nacional Libertadora”, com intenções anti-imperialistas
e antifascistas.
45 GOMES, Orlando. Raízes políticas e ideológicas da CLT. In: ______. Ensaios de direito civil e de
direito do trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p. 192-194: Sobre o direito do trabalho implantado
entre a revolução de 1930 e a derrocada do Estado Novo em 1945, airma o autor: “Toda a legislação
partejada nesse intermezzo autoritário de quinze anos, interrompido durante pequeno hiato, tem
sua fonte no sistema corporativo do regime fascista da Itália, que era rigorosamente totalitário
no campo da produção e do trabalho.” Porém, existe hoje um forte movimento revisionista do
entendimento a respeito de origens fascistas da Consolidação das Leis do Trabalho, como será
examinado logo a seguir.

366
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

rurais e domésticos de sua teia protetora. Além disso, porque surgido


no difícil período do “Estado Novo”, o decreto teve teor estatizante, atre-
lando os sindicatos ao poder público e detalhando enormemente as re-
lações de trabalho urbanas, a ponto de inviabilizar a adequação de seus
mandamentos às diferentes realidades de nosso país. Não obstante, ago-
ra aliados aos “direitos sociais” da Constituição da República de 1988,
o texto da consolidação e a justiça do trabalho perfazem, ainda hoje, os
mais importantes vetores da justiça social de nosso país.
Após o regime ditatorial do Estado Novo, passa o Brasil por um
intervalo democrático, no qual se promulga a Constituição de 1946.
Boas diretrizes econômico-sociais constavam de seu texto. Foi esse
um tempo de inegáveis progressos representativos, com partidos fortes
e melhores eleições; mas nem por isso deixou de existir crises graves,
como a cassação do registro do Partido Comunista nacional, a vitória
de Getúlio Vargas nas urnas e seu posterior suicídio em 1954; fator esse
que, paradoxalmente, estendeu o período democrático por mais dez
anos, tendo em vista a reação popular ao trágico fato.
É possível fazer duas leituras sociológicas bem diversas do que
representaram os direitos trabalhistas instituídos da “Era Vargas” até o
ano de 1964. A interpretação que ainda prevalece é aquela no sentido
de que foi um período de clientelismo, “manipulação e cooptação das
massas [e] corporativismo estatal”, um momento em que um Estado de
inspiração fascista interrompeu a luta dos trabalhadores que teve inicio
durante a República Velha. Contudo, atualmente, vem ganhando força
uma visão bastante diferente desse período, a qual leva em consideração
o impacto complexo e as inerentes ambiguidades que uma normatiza-
ção trabalhista daquele porte acarreta nas relações sociais das classes
operárias. De acordo com esta visão, há uma atuação pragmática dos
trabalhadores visando manter e ampliar as conquistas recentes – rejeita-
se a ideia de que teria havido uma mera “outorga” de direitos -, pois se
faz em verdade um pacto entre Estado e trabalhadores, fortalecendo a
ambos, restando como maior conquista da classe operária o alcance da
cidadania por meio dos direitos sociais; é uma conquista que, em última
instância, fortalece a dignidade humana.46

46 BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição da democracia de massas no Brasil: instabilidade


constitucional e direitos sociais na Era Vargas (1930-1964). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira;
SARMENTO, Daniel. (Coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais

367
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

Em 1956, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente, trazendo ao


Brasil um período de inegável otimismo, desenvolvimentismo e demo-
cracia. É simbólico que o momento de abertura política tenha permi-
tido a Gianfrancesco Guarnieri a escrita de “Eles não usam black-tie”,
peça que lança um profundo olhar sobre a luta operária no Brasil, em
seus maiores e mais íntimos aspectos, obra essa que em 1981 receberia
versão cinematográica de Leon Hirszman.47

11.2.3. Do período autoritário até a nova ordem


constituicional de 1988
O autoritarismo estatal voltou com o golpe militar de 1964. Nes-
se período, duas Cartas Constitucionais - de 1967 e 1969 - tornaram
impossível estabelecer avanços sociais não determinados pelo próprio
Estado.48 Foi o tempo de forte repressão política e cultural, com censu-
ra, prisões, exílios, tortura e autoritarismo. Nesse cenário, pouco espaço
havia para protestos, embates políticos ou mesmo para eleições. Não
obstante, a maior parte da classe média brasileira apoiava o regime, vi-
sando evitar o “mal maior comunista”. Também não havia unanimidade
crítica do proletariado, pois o inegável progresso econômico tornava
possíveis avanços materiais e ingresso no mercado de trabalho. Obras
estruturais de grande porte também colaboravam para angariar apoio
ao governo vigente. Esse cenário econômico foi abalado pelas duas
crises do petróleo dos anos 70 e, no alvorecer dos anos 80, o desgaste
político e a astronômica dívida externa acumulada pelo Brasil enseja-
ram a inevitável derrocada do regime. Após a notável campanha pelas
eleições diretas, o povo brasileiro é mais uma vez impedido de exercer
seu direito de voto. Não obstante, o “colégio eleitoral” elege Presidente
da República Tancredo Neves, um dos maiores nomes da oposição no
país. O carismático mineiro vem a falecer ainda antes de tomar posse no
cargo, conigurando um dos momentos de maior frustração política da
história brasileira.

em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 50-54.


47 Eles não usam black-tie. Produção e direção de Leon Hirszman. Cor, 35mm, 134min. São
Paulo, 1981. DVD.
48 BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas. 2. ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006ª. p. 25-40.

368
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

O retorno “lento e gradual” do Brasil à democracia culminou


com a Constituição de 1988. Aclamada como “Cidadã”, ela represen-
tou uma notória reairmação dos direitos fundamentais e das garantias,
conquistas que estão ainda impregnando a jovem consciência participa-
tiva do povo brasileiro. Mesmo assim, vícios podem ser apontados no
texto: em primeiro lugar, a confusa sistemática de sua criação não evi-
tou um exagero normativo que se perde em detalhes e prolixidades que
são totalmente desaconselháveis em um documento de tal abrangência
e importância.49 Por outro lado, grupos de pressão que representavam
forças conservadoras trabalhavam pela presença de normas que impe-
diriam a efetividade de outras. Com isso, restou inevitável a presença
de dicotomias em seu texto. Lembra-se a alcunha de “centrão” ao grupo
político que se encarregou de bloquear mudanças relevantes.
A Constituição de 1988 representou inegáveis avanços trabalhis-
tas; listados, principalmente, em seu artigo sétimo, como é o caso da
isonomia entre empregados urbanos, rurais e avulsos, com algumas
melhorias nas condições dos domésticos. O aviso prévio de oito dias
quando da despedida imotivada foi acrescido de mais vinte e dois dias.
A prescrição - até então bienal - dos direitos trabalhistas foi também
majorada para o prazo de um lustro. O Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço foi estendido a todos os empregados, além de que a “multa”
pela despedida imotivada passou a ser de 40%. Também as proteções ao
nascituro e ao recém-nascido foram expressivamente melhoradas, uma
vez que a empregada gestante passou a contar com garantia de emprego
de cinco meses após o parto e com licença previdenciária ampliada de
120 dias. Quanto à licença paternidade, os progressos não foram tão
relevantes, passando o pai a contar com a interrupção do contrato de
trabalho por cinco poucos dias, quando do nascimento de seu ilho.50
Por outro lado, a Constituição manteve normas nitidamente corporati-

49 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.


Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991 p. 21: “Abstraídas as disposições de índole técnico-
organizatória, ela [, a Constituição], deve limitar-se, se possível, ao estabelecimento de alguns
poucos princípios fundamentais [...]”. O documento não deve conter passagens de exagerado
detalhamento, as quais pouco podem adaptar-se às inevitáveis novas realidades.
50 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 13. ed. São Paulo: LTr, 2014.
p. 128.

369
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

vas, como a contribuição obrigatória sindical e seu sistema unitário de


enquadramento.51
O embate entre o valor da livre iniciativa e o social do trabalho
relete um dos mais paradigmáticos choques ideológicos na Constitui-
ção de 1988; sendo que, logo em seu “Art. 1º, IV,” são proclamados como
fundamentos da República “os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa”, reunindo-se na mesma norma diretrizes nascidas “em duas
fases diversas [da] Teoria Constitucional dos Direitos Fundamentais”.52
Vale aqui lembrar a visão crítica de Eros Roberto Grau: o “valor social
do trabalho”, no âmbito de um capitalismo moderno, deve implicar em
uma proteção “politicamente racional [do labor, e não] ilantrópica”;53 e
o princípio da “livre iniciativa” não pode se confundir com liberalismo
puro e simples, pois essa implica justamente na observância do valor
social do trabalho.54

11.3. O cenário atual do direito do trabalho

11.3.1. Pós-modernidade e crise da sociedade do trabalho


A força destrutiva e construtiva da modernidade permitiu a con-
solidação do Estado. Por outro lado, nestes tempos nebulosos, voláteis e
efêmeros que perfazem a “pós-modernidade”55, a instituição tem vivido
certo descrédito. Nesse cenário mundial de crise,56 a condição do estado

51 DELGADO, Op.. cit., p. 128-130.


52 BRANCO, Ana Paula Tauceda. A colisão de princípios constitucionais no direito do trabalho.
São Paulo: LTr, 2007. p. 72-73.
53 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica.
16. ed. rev.e atual. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 196.
54 GRAU, Op. cit., p. 200-205.
55 LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno explicado às crianças: correspondência 1982-
1985. Tradução de Tereza Coelho. 2. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993. p. 24: “O que
é então o pós-moderno? Que lugar ocupa ou não ocupa no trabalho vertiginoso das questões
lançadas às regras da imagem e da narrativa? [...] Uma obra só pode ser moderna se primeiro for
pós-moderna. O pós-modernismo, entendido assim, não é o modernismo no seu estado terminal,
mas no seu estado nascente, e esse estado é constante.”
56 SEVERO, Valdete Souto. Crise de paradigma no direito do trabalho moderno: a jornada.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2009. p. 35:Uma crise “se estabelece quando o paradigma, até
então satisfatório, passa a não mais exercer sua função paciicadora. Já não serve. Em seu lugar,
porém, nada há a ser colocado”, restando necessário a construção de um consenso novo a partir do
que já existe e é conhecido.

370
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

constitucional, estruturado sobre direitos fundamentais, tem sido vista


com pessimismo. Zygmunt Baumann demonstra como a gloriicação
do capital e o consumismo desenfreado vão enfraquecendo progressiva-
mente o “Estado de bem-estar social”, estigmatizando os beneiciários da
parca previdência oferecida e aprisionando os excluídos do mercado.57
A “sociedade do trabalho” se insere nesse cenário de progressivo decrés-
cimo de postos de trabalho somados ao desprestígio cada vez maior do
desempregado,58 o que ocorre pela crescente intelectualização do traba-
lho com redução do labor manual.59 Na verdade, ao se observar a apres-
sada marcha da tecnologia, pode-se mesmo airmar que “a perspectiva
de um mundo sem trabalho já não parece tão distante quanto há trinta
ou quarenta anos”.60 É até mesmo possível que o andar dos fatos acabe
por tornar realidade os sonhos de Paul Lafargue apresentados em seu
impressionante manifesto, na penúltima década do Século dezenove.61
Ao regular as relações de emprego, o direito laboral e seu proces-
so reletem a crise do mundo laboral, muitas vezes não oferecendo as
soluções necessárias para os problemas que enfrenta; pois como bem

57 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução: Mauro Gama, Cláudia


Martinelli gama. Revisão técnica: Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 51.
58 SILVA, Josué Pereira da. Trabalho, cidadania e reconhecimento. São Paulo: Annablume, 2008.
p. 20: “Os princípios básicos sobre os quais se fundamenta a noção de sociedade do trabalho
podem ser divididos em quatro iguras principais, a saber: a empresa industrial capitalista (cujo
paradigma é a fábrica) que, como instituição separada da unidade produtiva familiar, organiza
a atividade produtiva de acordo com os critérios de racionalidade econômica; o trabalhador
(manual) assalariado, duplamente liberado – dos laços feudais e dos meios de subsistência – para
que possa vender livremente sua força de trabalho como mercadoria no mercado. Para que isso seja
possível é necessário também a instituição do mercado de trabalho, onde capitalista e trabalhador se
encontram para respectivamente comprar e vender a mercadoria força de trabalho; e, inalmente,
uma ética do trabalho que justiique como moralmente válidos não apenas a necessidade e o dever
de trabalhar, mas toda a teia de relações que compõe esse conjunto de instituições.” A crise desses
fundamentos começou a ser diagnosticado há cerca de trinta anos, principalmente por André Gorz,
Claus Ofe e Ralf Dahrendorf; este último foi o responsável por cunhar a expressão ‘sociedade do
trabalho’”. Cf. Op.. cit., p. 15.
59 SILVA, Op. cit., p. 31-33.
60 SILVA, Op. cit., p. 27.
61 LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Claridade, 2003. p. 93: “Se, extirpando do
seu coração o vício que a domina e avilta a sua natureza, a classe operária se erguesse com a sua
força terrível, não para reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da exploração
capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas para
forjar uma lei de bronze que proibisse todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a
Terra, a velha Terra, tremendo de alegria, sentiria nela surgir um novo universo... Mas como pedir
a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma decisão viril?”

371
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

lembra Ricardo Luis Lorenzetti, “o direito do trabalho, desprendimento


da locação de serviços, sempre se ocupou do operário que já tinha em-
prego: ‘o trabalhador’”.62 São notórias as mudanças que vêm ocorrendo
na prestação de serviços, como é o caso do “teletrabalho” hoje regulado
pela Lei n.12.551 de 15 de dezembro de 2011, fenômeno pelo “qual al-
guém presta serviços por meio das ferramentas de comunicação e infor-
mação (notoriamente internet), distante de seu tomador de serviços”, o
que pode se dar “em domicílio” - quando prestado na própria residência
do trabalhador -; “em centros satélites” - situados em pontos estratégi-
cos abertos aos empregados -; “em telecentros” instrumentalizados com
avançados equipamentos de informática e de comunicação; “em ‘tele-
cottages’” - nas áreas rurais ou menos desenvolvidas; “ou de forma mó-
vel”.63 A nota primordial dessa nova modalidade de trabalho “é que se
dê em qualquer local fora do espaço tradicional do trabalho”.64 Tais mu-
danças também podem representar diiculdades para o exame quanto à
incidência ou não das normas laborais, visto que as nuances especíicas
dessas novas formas de prestação de serviços muitas vezes não foram
previstas nas leis existentes. Dessa maneira, “alguns dos elementos ca-
racterizadores da relação de emprego [previstos no art. 3º da Consoli-
dação das Leis do Trabalho] podem estar, em algumas oportunidades,
um tanto tênues, rarefeitos”, o que não afasta o imperativo de que todos
os pressupostos legais se façam presentes.65 Esse distanciamento entre
as regras de direito laboral e as novas realidades pode tornar pouco sa-
tisfatória a resposta jurisdicional: ou critica-se o julgador por exagerado
apego ao passado, ou por reputá-lo demasiado progressista.

62 LORENZETTI. Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Tradução


de Bruno Miragem; notas de Cláudia Lima Marques. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.
231. Diz-se que essa limitação não é privilégio do direito do trabalho: “É interessante observar que
a maioria das instituições jurídicas foi desenhada sem a consideração desse problema [do acesso
à justiça]. No direito clássico, a propriedade, o trabalho, o contrato ou a responsabilidade foram
instrumentalizados pelos setores sociais com amplo acesso a esses bens. Por essa razão, pensamos
no indivíduo ‘já instalado no bem’.”
63 FINCATO, Denise Pires. Teletrabalho: estudos para regulamentação a partir do direito
comparado. In: _____. (Org.) Novas tecnologias e relações de trabalho: relexões. Porto Alegre: Ed.
Lex Magister, 2011. p. 14-15.
64 FINCATO, Denise Pires. Teletrabalho: uma análise laboral. In: STÜRMER, Gilberto. (Org.)
Questões controvertidas de direito do trabalho e outros estudos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006. p. 51.
65 FINCATO, 2006, p. 55.

372
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

11.3.2. Privatização, lexibilização e terceirização


Além das mudanças profundas tratadas no item anterior, os três
conceitos do título perfazem algumas das mais importantes consequên-
cias do momento vivido na sociedade de trabalho. Sobre a primeira
delas, diga-se que “privatizar signiica reduzir o papel do Estado na
economia”.66 São muitos e bem relevantes os efeitos das privatizações
na economia do trabalho: empregos são criados e extintos; políticas e
ambiente de trabalho se alteram; ocorrem transferências inanceiras que
enriquecem regiões e empobrecem outras. Isso tem acarretado disputas
ideológicas, traumas políticos, progressos inegáveis, consequências in-
desejadas etc. Privatizar e estatizar – trazer para o âmbito estatal enti-
dades privadas - são sempre frutos de polêmicas justiicadas; e por isso
deve-se sempre ter cuidado com os procedimentos a respeito.
Quanto à lexibilização do direito do trabalho no Brasil, três cor-
rentes tratam do tema: há quem a veja com otimismo, como o dou-
trinador Octávio Bueno Magano e o sociólogo José Pastore; por sua
vez, a corrente contrária sustenta que as normas laborais não admitem
“reformatio in pejus”, ideia defendida principalmente por Benedito Ca-
lheiros Bonim e Rita de Cássia S. Cortez; por im, existe o “caminho
do meio”, sustentando que a supressão total da intervenção estatal seria
um equívoco sem ignorar que em nossos dias se observa um inegável
declínio do “princípio tuitivo”.67 Para Arnaldo Süssekind, com o objetivo
de implantar novas tecnologias ou preservar a empresa e os empregos,
a lexibilização permite relativizar a “inderrogabilidade das normas de
ordem pública e [a] inalterabilidade in pejus das condições contratuais
ajustadas em favor do trabalhador”. Porém, quando tal ocorre, deve-se
resguardar as mais importantes normas protetoras do empregado pela
ação do Poder Público ou por negociação sindical, como se procedeu
na Europa dos anos noventa; pois quando se abre mão dessas interven-
ções - ou quando essas sucumbem ao poder econômico -, ocorre na
verdade uma “desregulamentação” de direitos, o que traz consequências

66 CATHARINO, José Martins. Neoliberalismo e sequela: privatização, desregulação,


lexibilização, terceirização. São Paulo: LTr,1997. p. 32.
67 ROMITA, Arion Sayão. A lexibilização das leis do trabalho em debate: choque de correntes.
In: ______. O princípio da proteção em xeque e outros ensaios. São Paulo: LTr, 2003, p. 62-71.
Sobre o “princípio da proteção” e as duas outras normas citadas a seguir se tratará na última parte
desta introdução.

373
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

indesejadas, como aquelas vistas em alguns países asiáticos. Felizmen-


te nossa constituição – marcadamente em seus artigos sétimo e oita-
vo -, impedem que isso aconteça por aqui.68 Mesmo sendo necessária
uma atualização de nossas leis trabalhistas, essa deve ocorrer no âmbito
constitucional, legal e da tradição jus laboral brasileira, o que impedirá
a mera perda de direitos.69
Por im, cabe falar a respeito da terceirização. Consequência da
globalização econômica, ela se caracteriza por um deslocamento de ser-
viços necessários para fora do âmbito da empresa, dividindo-se etapas
da produção industrial. O fenômeno também pode ocorrer trazendo-se
empregados alheios para o ambiente da empresa, como costuma ocor-
rer nos serviços de segurança ou limpeza e outros que não estejam à
atividade-im da empresa – assim entendida aquela que não está dire-
tamente ligada à atividade econômica do empreendimento. A realidade
desses fatos é profunda, a ponto de ensejar por vezes a “terceirização
da terceirização, quando uma empresa terceirizada subcontrata outras”;
também ocorre a “quarteirização, com a contratação de uma empre-
sa com função especíica de gerir contratos com as terceiras”; também
há novos modelos de contratos de facção e de parcerias.70 Formam-se
então “redes de produção”, cujo eiciente funcionamento e proteção de
seus participantes dependeria – na visão de muitos - de urgentes altera-
ções do ordenamento jurídico atual.71
Esse contexto dialético resume a crise do direito do trabalho:
marcantes alterações fáticas convivem com leis adequadas a uma reali-
dade anterior. Tal situação enseja a discussão a respeito da possibilidade
de alterar substancialmente textos legais sem perda de direitos. Esse é o
grande desaio que vive hoje o ramo jurídico.

68 ROMITA, loc. cit.


69 SÜSSEKIND, Arnaldo. A globalização da economia e o direito do trabalho. Revista LTr, São
Paulo, v. 61, n.1, p. 43, jan. 1997.
70 BIAVASCHI, Magda Barros. A terceirização e a justiça do trabalho. Revista do Tribunal
Superior do Trabalho. Porto Alegre: Magister, v. 74, n. 4, p. 73, out./dez. 2008.
71 PASTORE, José. Terceirização: uma realidade desamparada da lei. Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, Porto Alegre: Magister, v. 74, n. 4, p. 123, out./dez. 2008.

374
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

11.4. Características, inalidade e conceituação do


direito do trabalho

11.4.1. Autonomia, divisão tripartite e posicionamento do


ramo jurídico
O direito se divide em diferentes campos de incidência e estudo.
Cada um deles tem certa independência dos outros, não obstante seus
inúmeros pontos de conluência e a existência de estruturas essenciais
que envolvem a totalidade jurídica. Esse parcelamento ocorre pela natu-
ral estruturação que os subsistemas do direito vão demonstrando e apri-
morando, na medida em que seu alcance e complexidade aumentam.
Em certo ponto, surgem em um campo “princípios comuns que lhe dão
coesão interna e os diferenciam de outros grupos de normas [ geran-
do] ramos autônomos do direito [e uma] individualidade comprovada”;
essa mesma autonomia acontece no ramo da ciência jurídica que estuda
aquela área especíica.72
No início do século dezoito - momento ainda marcado pelo posi-
tivismo73 e pelo racionalismo74 jurídicos - o direito privado mantinha as-
pirações de unidade e completude. Porém, as demandas da modernidade

72 LATORRE, Angel. Introdução ao direito. Tradução de Dr. Manuel de Alarcão. 5. Reimpressão.


Ed. Almedina. Coimbra, 2002. p. 207-208.
73 LATORRE, ob. cit., p. 151-154. No “positivismo”, a “análise [do direito] deve limitar-se [a ele
próprio,] tal como está ‘estabelecido’ ou dado, e deve abster-se de entrar em valorações éticas
ou de ter em conta as implicações das normas nas realidades sociais. O direito entendido como
um sistema de normas, e nada mais do que isso, deve ser o tema de seu estudo. É essa a atitude
‘positivista’.” Por limitação de espaço, pede-se vênia para aqui se manter esse conceito nessas poucas
palavras, abrindo-se mão de necessários aprofundamentos, de esclarecimentos quanto a suas tantas
variações, de mencionar o “pós-positivimo”, etc.
74 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de A. M. Botelho
Hespanha. 3. ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2004, p. 279-281: Entre o século XVII e
o XIX as raízes jusnaturalistas da ilosoia jurídica e social da antiguidade foram remoldadas pelo
iluminismo. Seus novos termos tiveram inluência profunda e “direta sobre a ciência jurídica, a
legislação e a jurisprudência da maior parte dos povos da Europa”. Em um contexto de: retorno
às ideias clássicas pelo “renascimento” e antropocentrismo humanista na Itália e sul da Europa;
reforma luterana da Igreja no norte do continente com verve voluntarista-nominalista; naturalismo
e personalismo das artes da época; e, ainda, lorescer das modernas ciências da natureza, estava
preparado um terreno fértil para nascer então um novo tempo “jusracionalista”, parcela da longa
trajetória do direito natural, visto esse como “tradição cultural que se mantém desde os inícios da
ilosoia helenística até a atualidade, [sempre em busca das] leis imutáveis e válidas em geral da vida
comum dos homens, sobretudo dos direitos e deveres dos indivíduos na sociedade”.

375
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

tornaram inevitável que se iniciasse certa fragmentação da legislação e


o abandono daquelas pretensões unitárias e dogmáticas. A consagração
do direito laboral durante a “primeira guerra mundial e no pluralismo
político e econômico da democracia de Weimar” teve forte participação
nessa nova realidade.75 Com o seu desprendimento deinitivo do direito
civil, o subsistema “adentra no século XX com sua autonomia e indepen-
dência plenamente caracterizadas”.76 No dizer de Angel Latorre, surgiu o
“jovem e pungente ramo do Direito que é chamado direito do trabalho”,
plenamente autônomo em legislação, doutrina e didática.77
Até o surgimento do direito laboral, a celebração dos contratos de
trabalho se dava sob plena liberdade, com o suposto exercício da von-
tade das partes, pois, em plena ascensão do capitalismo, cabia ao direito
civil regular as relações entre empregados e empregadores. Porém, era
próprio daquele ramo jurídico manter-se distanciado dos que contra-
tassem as partes; e hoje soa evidente que - estando o empregado sob as
contingências de suas necessidades - pouco sobrava de “autônomo” em
sua vontade de contratar; restava ele submetido a abusos contratuais e a
leis de mercado tortuosas. Assim, nesse cenário em que “o ramo jurídico
tinha que acontecer”, nasce o ramo laboral como “o primeiro dos direi-
tos sociais a emergir”.78 Então, fazendo valer o pressuposto de que a pes-
soa humana portadora de “dignidade está acima de todo preço”,79 o novo
ramo do direito vem oportunizar sua proteção no âmbito do trabalho.
Os campos jurídicos autônomos podem ser classiicados e agru-
pados de diferentes maneiras, sendo a mais primordial aquela que os
separa em direito “público” ou “privado”. “Grosso modo”, o primeiro
se caracteriza “por existir nele um exercício do poder do Estado” por
“imperium”, enquanto “o direito privado é aquele que regula as relações
entre particulares”.80 Embora hoje seja pacíico que não há diferença ra-

75 WIEACKER, Op. cit., p. 628.


76 ARAÚJO, Francisco Rossal de. A boa-fé no contrato de emprego. São Paulo. Editora LTr, 1996,
p. 66.
77 LATORRE, Op. cit., p. 243.
78 MARTINEZ, Op. cit., p. 58.
79 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2005b, p.
77: “No reino dos ins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço,
pode-se pôr em vez dela qualquer outra como ‘equivalente’; mas quando uma coisa está acima de
todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.”
80 LATORRE, Op. cit., p. 208-9.

376
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

dical ou clara entre ambos, pois os dois “envolvem princípios e critérios


que se encontram combinados”,81 é fato que o direito do trabalho reve-
la enormes diiculdades para ser catalogado em um deles, pois o ramo
jurídico trata de pelo menos três questões primordiais: I. Relações de
emprego individuais, entre trabalhadores e empregadores; II. Relações
entre sindicatos de empresas e sindicatos de trabalhadores entre si; III.
Por im, o direito laboral também envolve a regulação das “condições de
trabalho em sentido amplo”, abrangendo normas de saúde e segurança
do meio ambiente laboral. Isso perfaz uma tripla atuação que conigura
o que Maria do Rosário Paula Ramalho chama de “deinição tripartida
do direito laboral”. Cada uma dessas subdivisões é cada vez mais um
núcleo jurídico autônomo, o que causa sérias diiculdades para situar o
ramo laboral entre os dois grandes setores do direito, pois cada um de
seus três subcampos se encaixaria melhor no direito público, privado ou
em um misto de ambos.82
Assim, o “direito individual do trabalho, porque envolvendo duas
entidades privadas na prossecução de interesses particulares, é qualii-
cado como um conjunto de normas de direito privado”, não obstante
sua imperatividade normativa.83 Por sua vez, o “direito das condições
do trabalho [é considerado] de natureza pública”, por envolver matéria
de segurança, saúde, higiene e prevenção e reparação de riscos sociais.84
Finalmente, ao “direito coletivo do trabalho” atribui-se normalmente
“natureza híbrida, por combinar normas que prosseguem interesses pri-
vados com normas que visam interesses públicos e situações jurídicas
complexas entre particulares [e] Estado”.85 E é por essa realidade “tri-
partite” e outros fatores que já foram ditos anteriormente que o “direito
privado do trabalho” tem “feição publicística”,86 pois, “tomado global-

81 LATORRE, Op.. cit., p. 210.


82 RAMALHO, Maria do Rosário Paula. Da autonomia dogmática do direito do trabalho.
Coimbra. Ed. Almedina, 2000, p. 50.
83 RAMALHO, Op. cit., p. 51.
84 RAMALHO, Op. cit., p. 52.
85 RAMALHO, Op.. cit., p. 53
86 DONATI, Benevenuto. Fondazione della Scienza del Diritto, Padova, 1929, p. 217 apud LIMA,
Ruy Cirne. Preparação à dogmática jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1958, p. 41.

377
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

mente, [...] não se deixa conter em nenhuma das parcelas desta ‘summa
divisio’ [privada ou pública]”.87

11.4.2. Os principais objetos de cada um dos três campos


do direito do trabalho
O homem está na sociedade submetido a normas jurídicas ao
mesmo tempo em que está autorizado a agir exercendo direitos subjeti-
vos que comportam um sujeito, um objeto e o liame entre eles, ligação
esta que é chamada “relação jurídica”, a qual pode ser “real” – quando
entre um sujeito e uma coisa - ou “pessoal” - quando há uma obrigação
envolvida entre dois sujeitos -. Nesses termos, dentre as “relações jurí-
dicas” de caráter “pessoal”, existem aquelas que têm o trabalho humano
como obrigação essencial, gênero que a boa técnica jurídica chama de
“relação de trabalho” e abarcam o labor de diferentes espécies, como o
autônomo, por empreitada, subordinado etc. Cada uma dessas relações
de trabalho tem características essenciais próprias.88
Dentre essas várias espécies de prestação de serviços, o direito
individual do trabalho geralmente se ocupa de uma delas: a “relação de
emprego”,89 cujos elementos fático-jurídicos transparecem dos artigos
segundo e terceiro da Consolidação das Leis do Trabalho, os quais cabe
transcrever:90
Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva,
que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e
dirige a prestação pessoal de serviço.
[...]

87 RAMALHO, p. 54.
88 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. 9. ed. rev. e atual. Curitiba. Ed.
Juruá, 2012, p. 67-9.
89 RUSSOMANO, p. 69: “A) A relação de trabalho e a relação de emprego [...] são relações
jurídicas; B) A relação de emprego [...] constitui modalidade especial da relação de trabalho, que
foi, em sua origem, uma relação de direito real, sendo, hoje, uma relação de direito pessoal”. Diga-se
que o autor menciona a “relação de trabalho” ter sido um dia “de direito real” porque o escravo era
“considerado ‘coisa’ para todos os ins de direito”.
90 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm > Acessado em 30 maio 2014.

378
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços


de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e
mediante salário.

Nesses termos: I. Importa que o empregado seja “pessoa física”


e que trabalhe “pessoalmente” – ou “intuito persone”-; II. O labor em
questão “não [pode ser] eventual”, deve ser “oneroso” - “assalariado” - e
“dirigido” pelo tomador de serviços, o que caracteriza o labor “subordi-
nado”, típico da relação empregatícia. Além disso, o vínculo relacional
entre empregado e empregador é “bilateral”, “sinalagmático” e “comu-
tativo”, pois tem como pressuposto a equivalência de deveres e direitos
entre seus polos, um se obrigando em relação ao outro.91
Dentre todas as características do emprego, a “subordinação” é o
elemento mais determinante para caracterizá-lo, pois relete o poder de
direção empresarial sobre o modo de realização do trabalho que emerge
do contrato. O artigo terceiro em comento se refere a uma limitação à
autonomia da vontade do empregado, embasada na hierarquia empre-
sarial. Assim, o trabalhador se submete à organização e gerência do em-
preendimento que determina - por exemplo - quando, como e por quem
os serviços devem ser prestados. Nessa realidade está contido o clássico
poder diretivo empresarial que coloca o empregado “sob [sua] depen-
dência”. Pode se falar hoje em “subordinação estrutural” ou “objetiva”, a
qual ocorre em situações de terceirização e em empresas que trabalham
em rede; nesse caso, mesmo sem ordens diretas do principal tomador de
serviços o trabalho pode ser subordinado pela sua integração à “dinâmi-
ca estrutural de funcionamento do tomador de serviços”.92
Também é discutida hoje a necessidade ou não de ampliar ou
modiicar o campo de atuação do direito laboral, com eventual abar-
camento de outras formas de prestação de serviços, com subordinação
difusa ou de menor dimensão, como nos casos do trabalho “parassu-
bordinado”.93 “No mundo do trabalho pós-industrial, que se notabili-
za cada vez mais pela diversiicação e complexiicação das relações de

91 MARTINEZ, Op.., p. 144-151.


92 Ibid., p. 147-150.
93 Ibid.,p. 149. Em certas circunstâncias, “no lugar da subordinação jurídica típica passou a existir
uma situação de parassubordinação, na qual, embora presente, o poder diretivo do empregador foi
mitigado. [Isso ocorre] em relações pessoais de colaboração continuada e coordenada, em que a
direção dos serviços está presente de modo difuso e pontual.”

379
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

trabalho, essas limitações, recém-descritas, tornam-se cada vez mais


problemáticas.”94 Inclusive, o próprio termo “hipossuiciência” do em-
pregado tem sido questionado, pois a palavra tem como principal en-
foque a “desigualdade econômica” existente entre o “trabalhador e seu
empregador”,95 deixando de envolver o “conjunto de vulnerabilidades
[dos planos] negocial, hierárquico, econômico, técnico, social e infor-
mativo”. Por isso, passou-se a sugerir a substituição do termo pelo vocá-
bulo “vulnerabilidade”, o qual é mais amplo e adequado à realidade de
nossa sociedade do trabalho.96
Por sua vez, o que marca o “direito das condições do trabalho” é
a luta pelo melhor ambiente laboral, prezando-se a segurança, a saúde e
a higiene com vistas à prevenção e a reparação de riscos sociais. Parti-
cularmente, nesse momento em que a preservação ambiental passa a ser
vista como essencial para a humanidade e suas vindouras gerações, “o
estudo do meio ambiente do trabalho [transcende a mera] revisão” das
normas de “segurança e medicina” laboral listadas no capítulo quinto
das leis trabalhistas consolidadas,97 pressupondo um trabalho “decente,
verde e sustentável [...] permeado numa ética dos deveres e pelo espírito
de fraternidade”.98
Finalmente, o direito coletivo também tem como im último a
“melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem
socioeconômica”; porém, “através de efetiva transação coletiva, em que
se concedem, reciprocamente, vantagens às partes coletivamente repre-
sentadas”.99 Em outras palavras, negociações coletivas ocorrem entre

94 DORNELES, Leandro do Amaral D. de. Hipossuiciência e vulnerabilidade na teoria geral do


direito do trabalho contemporâneo. In: Temas de direito e processo do trabalho. Vol II - teoria
geral do direito do trabalho: estudos em homenagem a Carmen Camino. Organizadores: Cinthia
Machado de Oliveira; _____ . Ed. Verbo Jurídico. Porto Alegre, 2013, p. 66.
95 DORNELES, 2013, p. 67.
96 DORNELES, 2013, p. 71.
97 BARZOTTO, Luciane Cardos. O princípio da fraternidade e os princípios do meio ambiente do
trabalho. In: Temas de direito e processo do trabalho. Vol II - teoria geral do direito do trabalho:
estudos em homenagem a Carmen Camino. Organizadores: Cinthia Machado de Oliveira; _____ .
Ed. Verbo Jurídico. Porto Alegre, 2013, p. 230.
98 BARZOTTO, Op. cit., p. 233: “Decente, porque permite a promoção da dignidade do
trabalhador. Verde, porque se realiza preservando e restaurando o equilíbrio entre o homem e
a natureza. Sustentável, porque gera condições sociais e ambientais da própria continuidade em
benefício das presentes e futuras gerações.”
99 DELGADO, Op. cit., p. 1355-6.

380
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

iguais e consequentemente com uma maior liberdade contratual, como


demonstra por exemplo o artigo sétimo, inciso seis, da Constituição da
República, o qual permite redução salarial por meio de “convenção ou
acordo coletivo”. Cabe ressaltar a profunda diferença entre o direito la-
boral individual e o coletivo. O primeiro é marcado pela “subordinação”,
o que enseja uma relação de “justiça distributiva” para a construção de
igualdade material entre diferentes; por sua vez, as relações de direito
coletivo entre sindicatos estão submetidas à “justiça comutativa”, “pró-
pria das relações de coordenação” entre polos de força equivalente.100
Essa diferença icará mais clara logo à frente, quando se tratará do “prin-
cípio da proteção” que atua no direito individual do trabalho.

11.4.3. Finalidade e conceito do direito do trabalho


Há um forte pressuposto moral no direito do trabalho. Ele di-
ferencia o labor humano de mercadoria, reputando-o digno e inato à
pessoa. Por isso ainda se costuma considerar seu objetivo primeiro a
proteção ao trabalhador contra os riscos da liberdade desmedida no
contrato. A esse respeito, Jean-Emmanuel Ray se remete às belas pala-
vras de Henri Dominique Lacordaire: “Entre o forte e o fraco, é a liber-
dade que oprime e a lei que liberta”, o que explicita a oposição das leis
trabalhistas ao liberalismo desmedido. Assim, é porque são evidentes as
diferenças de condições entre empregado e empregador, que ensejou a
construção de “uma força de interposição” entre o trabalhador e “a dura
lei do mercado”.101 Essa é a marcante diferença entre o ramo do direito
individual do trabalho e o ramo civil que o originou: o objetivo do sub-
sistema trabalhista é equilibrar o capital e a força de trabalho, fazendo-o
através de um feixe de princípios próprios.102
O assunto nos remete à obra paradigmática de Américo Plá Ro-
driguez, o estruturador da principiologia do direito laboral na América
Latina. Para o autor, em primeiro lugar, o ramo jurídico pressupõe a
“irrenunciabilidade” dos direitos do trabalhador, formados primordial-

100 RADBRUCH, Gustav. Filosoia do direito. Tradução e prefácios: L. Cabral de Moncada. 6. ed.
rev. Coimbra: Sucessor Coimbra, 1997, p. 89.
101 RAY, Jean-Emmanuel. Aborder le droit du travail. Paris: Seuil, 1998, p. 4-5.
102 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Dos princípios do direito do trabalho no mundo
contemporâneo. Jus Navigandi, Teresina, v. 11, n. 916, jan. 2006. Disponível em: <http://jus.com.
br/revista/texto/7795 >. Acessado em: 28 maio 2014.

381
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

mente por normas imperativas; também o “princípio da continuidade”


marca o direito laboral, presumindo-se sempre que o contrato é celebra-
do por tempo indeterminado; há ainda a “primazia da realidade sobre
a forma” que perpassa as relações de emprego. Além desses três prin-
cípios, o mestre uruguaio trata ainda da “razoabilidade” e da “boa-fé”,
normas que hoje costumam ser vistas como características de todo o
direito.103
Não obstante a relevância dos princípios citados, para Américo
Plá Rodrigues e para a maioria dos doutrinadores, o essencial do direi-
to individual do trabalho ainda é a primeira norma apontada na obra:
o “princípio da proteção”, que se manifesta em três dimensões: esco-
lhendo-se sempre aquela interpretação normativa que mais favoreça
ao trabalhador – o chamado “in dubio, pro operario” -; aplicando-se a
“norma mais favorável” ao obreiro quando existir mais de uma cabível
ao caso; e evitando-se a aplicação de eventual norma nova que venha
piorar a situação laboral – a “condição mais benéica” -.104 Esta última
faceta protetiva pode, hoje, ser inserida no contexto do “princípio da
proibição de retrocesso social, [que] veda ao legislador subtrair da nor-
ma constitucional deinidora de direitos sociais o grau de concretização
já alcançado.”105 É importante ressaltar que muitos são os que dizem que
a proteção que emana do princípio atua para além dos três planos refe-
ridos pelo mestre uruguaio, chegando a impregnar todo o ramo jurídico
individual do trabalho.106
Ainda sobre a proteção ao trabalhador, cabe aqui lembrar que
a igualdade material consagrada no artigo quinto da Constituição da
República refere que “todos são iguais perante a lei”, tratando primei-
ramente da dimensão “formal” da isonomia, a qual exige a incidência
normativa para a totalidade dos cidadãos e de maneira uniforme; por

103 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. Tradução de Wagner Giglio.
São Paulo: LTr, Edição da Universidade de São Paulo, 1978. Passim.
104 PLÁ RODRIGUEZ, Op. cit.. p. 42-43.
105 DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social no direito
brasileiro. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira ; SARMENTO, Daniel (Orgs.). Direitos sociais:
fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. p. 367.
“Haverá retrocesso social quando o legislador, comissiva e arbitrariamente, retornar a um estado
correlato a uma primitiva omissão inconstitucional ou reduzir o grau de concretização de uma
norma deinidora de direito social.”
106 DELGADO, Op. cit., 197.

382
11 • UMA INTRODUçãO AO DIREITO DO TRABALHO

outro lado, a norma também veta distinções “de qualquer natureza”, res-
guardando o viés “material” da isonomia que impede a criação de leis
que contenham em si discriminações arbitrárias.107 O direito individual
do trabalho busca essa isonomia efetiva referida em segundo lugar, re-
conhecendo diferenças e protegendo o mais fraco.108 Tanto é assim que,
por desnecessário, não vigora o princípio da proteção no âmbito do di-
reito coletivo do trabalho,109 em que se estabelecem relações de “justiça
comutativa” entre entidades coletivas de força equivalente, sejam elas de
patrões ou de trabalhadores.110
Não são poucas as críticas direcionadas ao princípio tutelar. A
primeira e mais severa delas foi proferida por Karl Marx, reputando o
direito do trabalho e sua proteção característica em mera “concessão da
burguesia industrial ao operariado [que] institucionaliza a dominação
de classe” e, por consequência, a mantém.111 Mesmo em nossa realidade
capitalista, cabe lembrar que Plá Rodrigues escreveu “no segundo lustro
da década de setenta [o que] provoca a relexão sobre a atualidade de
tais princípios”. Além disso, é de se perguntar se, em vista de suas carac-
terísticas autopoiéticas, o sistema jurídico gerou outros princípios do
direito laboral que não poderiam ser examinados àquela época pelo au-
tor uruguaio.112 Frente a essas e outras realidades existe o entendimento
defendido por doutrinadores como Arion Sayão Romita, o qual consi-
dera que o verdadeiro papel do ramo jurídico é “regular as relações de
emprego”; e não proteger o empregado, pois a bilateralidade e o caráter
sinalagmático do contrato de trabalho implicam em “igual dose de pro-

107 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3.


ed. atual. 17ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 17. (Cf. BRASIL. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm > Acessado em 29 maio 2014.)
108 MARTÍNEZ,ob. cit., p. 122.
109 ROMITA, Arion Sayão. _____. O princípio da proteção em xeque. In: ______. O princípio da
proteção em xeque e outros ensaios. São Paulo: LTr, 2003, p. 24.
110 DELGADO, Op. cit., p. 1352.
111 ROMITA, Op. cit., p. 30.
112 FELICIANO, ob. cit.: (“Ser autopoiético signiica que o sistema social está inserido em uma
grande rede (teia) de processos, nos quais a função de cada componente participa da produção
ou da transformação de outros componentes da rede. Desse modo, toda a rede se autoproduz
constantemente.” Cf. DORNELES, Leandro do Amaral D. de. A transformação do direito do
trabalho: da lógica da preservação à lógica da lexibilidade. São Paulo. LTr, 2002. p. 53).

383
DARTAGNAN FERRER DOS SANTOS

teção concedida ao empregador”, o qual pode, por exemplo, proteger-se


despedindo o empregado por falta grave.113
Com teores de conclusão, espera-se, desta introdução ao ramo
jurídico, que o leitor tenha internalizado intuitivamente114 o seu concei-
to115 de direito do trabalho, com suas nuances, complexidades e fragili-
dades próprias. Não obstante, a ideia gerada não deve ser tão diferente
daquela proposta por Sérgio Pinto Martins:116
Direito do trabalho é o conjunto de princípios, regras e instituições
atinentes à relação de trabalho subordinado e situações análogas, visando
assegurar melhores condições de trabalho e sociais ao trabalhador, de
acordo com as medidas de proteção que lhe são destinadas.

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113 ROMITA, Op. cit, p. 23.


114 JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de ilosoia. 4. ed. atual. Rio
de Janeiro. Editora Zahar, 2006. p. 50: “conceito (lat. conceptum: pensamento, ideia) 1. Em seu
sentido geral,o conceito é uma noção abstrata ou ideia geral, designando sejam um objeto suposto
único (ex.: o conceito de Deus), seja uma classe e objetos (ex.: o conceito de cão). Do ponto de visto
lógico, o conceito é caracterizado por sua extensão e por sua compreensão.”
115 JAPIASSÚ e MARCONDES, Op. cit., p. 183: “intuição (lat. intuitio: ato de contemplar)
Forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo
evidente, mas não necessitando de demonstração. 1. ‘Por intuição entendo... a concepção irme do
espírito puro e atento, que se origina unicamente da luz da razão, e que sendo mais simples é, por
conseguinte, mais segura do que a própria dedução’ (Descartes) Para Descartes, a ideia de Deus e o
próprio cogito seriam objetos da intuição.”
116 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 29 ed. atual. até 11 nov 2012. São Paulo. Ed.
Atlas, 2013. p. 18.

384
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390
12

ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

Ângela Kretschmann1
- Renato Selayaram2

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO - 12.1. Civilizações - 12.2. A


“civilização” e a “barbárie” com categorias antropológicas e
políticas - 12.3. Culturas, civilizações e sociedades - 12.4. Os
direitos humanos - 12.4.1. A origem - 12.4.2 O início da ordem
- 12.4.2.1. A criação de um sistema universal de proteção dos
direitos humanos - 12.4.2.2. O sistema americano - 12.4.2.3.
A tutela não jurisdicional - 12.4.2.4. A tutela judicial - 12.5.
Os demais sistemas regionais - CONSIDERAÇÕES FINAIS -
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

INTRODUÇÃO
A antropologia é a ciência que estuda o homem e as implicações
e características de sua evolução física (Antropologia biológica), social
(Antropologia Social) ou cultural (Antropologia Cultural). A palavra

1 693 Advogada. Doutora em Direito (Unisinos), Pós-doutorado em Direito (Universidade de


Münster, Alemanha), Mestre em Direito (PUCRS), Especialista em Direito da Propriedade
Intelectual (Unisinos) – E-mail: angelak@cesuca.edu.br .
2 Advogado. Especialista em Ciências Políticas. Mestre em Direito. Pós Graduado pela Academia
de Direito Internacional de Haia. Professor de Direito Internacional Público e Direito Internacional
Privado. Professor do Curso de Direito do Cesuca. E-mail: renatoselayaram@cesuca.edu.br.

391
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

antropologia deriva das palavras gregas antropos (humano ou homem)


e logos (pensamento ou razão)3.
Apesar dos conceitos de antropologia e direito pertencerem a
duas disciplinas distintas, com métodos de investigação e terminologias
diferentes, possuem forte vínculo entre si, pois ambas as áreas do co-
nhecimento se ocupam da convivência humana e seus correspondentes
problemas.
O ilósofo francês Auguste Comte dizia que as explicações que os
homens davam para os fenômenos em geral, naturais ou sociais, haviam
passado por três fases diferentes: a primeira era chamada de “teológica
ou ictícia”, em que os homens atribuíam as causas dos fenômenos ao
sobrenatural; a segunda “metafísica ou abstrata”, na qual as explicações
eram especulações ilosóicas; e a terceira “cientíica ou positiva”, por
intermédio de métodos cientíicos, buscava-se as leis que regiam os fe-
nômenos sociais e naturais4.
A antropologia é a ciência que trata dos aspectos biológicos do
homem e de seu comportamento como membro de uma determinada
sociedade, sendo que a antropologia jurídica emerge como um ramo da
antropologia cultural ou antropologia social, já que aplica conceitos e
categorias de ambas para o estudo do direito. Estuda os sistemas norma-
tivos de controle social que dispõem qualquer sociedade, especialmente
o sistema jurídico, bem como os objetivos e funções que têm o direito na
satisfação das necessidades humanas e suas aspirações.
Investiga o comportamento dos seres humanos em relação às re-
gras de uma dada sociedade. Estabelece princípios para explicar as se-
melhanças e diferenças dos sistemas jurídicos plurais, a im de formular
propósitos gerais sobre o fenômeno jurídico e suas inter-relações.
As pessoas sempre tiveram curiosidade sobre seus vizinhos e
sobre desconhecidos mais distantes. Conjeturaram sobre eles, lutaram
contra eles, casaram com eles e contaram histórias sobre eles5. As ori-
gens da antropologia jurídica remontam aos séculos XVIII e XIX, em

3 COLAÇO, hais Luzia. Elementos de antropologia jurídica.2. Edição. Florianópolis: Conceito


Editorial, 2010. p. 12.
4 SANTOS, José dos Santos. Antropologia para quem não vai ser antropólogo. Porto Alegre:
Tomo Editorial, 2005. p. 24.
5 ERIKSEN, homas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert. História da antropologia. Tradução de
Euclides Luiz Calloni. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007 p. 9.

392
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

que intelectuais e estudiosos da antropologia e do direito convergiram


na perspectiva de vislumbrar a antropologia jurídica como uma nova
disciplina, sendo os iluministas seus precursores.
Assim, o homem estuda a si mesmo para compreender o compor-
tamento das diferentes sociedades, dos diferentes grupos e a alteridade,
a qualidade do outro, uma vez que entendendo-o, talvez possa respei-
tá-lo. Ora, pela compreensão advém o respeito pela diferença existente
entre os indivíduos.
A maximização de tal compreensão fez-se necessária em um mo-
mento histórico em que houve um total desrespeito pelo outro, o se-
melhante, o diferente (pelo olhar de dada sociedade, partido político,
civilização). Assim, muito embora seja reconhecido que desde sempre
tenha havido desconsideração com os demais, em particular pelos que
se encontravam no ponto mais alto da pirâmide social com aqueles que
se encontravam abaixo, a Segunda Guerra Mundial é considerada o
marco divisório para os direitos humanos.
Foi a partir do inal deste evento que a humanidade passou a
questionar o tratamento conferido àqueles que discordavam de deter-
minadas ideias, professavam religião distinta da oicial, eram de cor di-
ferente ou não se enquadravam na dicotomia homem-mulher.
O documento marco para tal mudança foi a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, por
Assembleia Geral das Nações Unidas, que pretendeu afastar para sem-
pre, como se diz em seu preâmbulo, os “atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da humanidade”6.

12.1. Civilizações
Na atualidade, já não se aceita sem maior crítica uma visão his-
tórica que fale de um mundo civilizado, de civilização ou civilizações.
Sabe-se que os registros históricos foram feitos em geral pelos vencedo-
res. Hoje em dia, entretanto, a expressão escrita e a comunicação já não
são realizadas apenas por vencedores, o mundo já não é mais dividido
de forma tão simplória entre vencedores e vencidos, e nem de maneira
singela entre Ocidente e Oriente. Isso sem falar na visão de poder das

6 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm,


acesso em 26/09/2014.

393
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

sociedades modernas, e agora, na sociedade da comunicação, ou infor-


macional, na difusão do corpo social e instituições e sua relação com a
produção da verdade7.
Em cada declaração, em especial sobre culturas, há um valor, ei-
cácia, força e aparente veracidade de uma declaração escrita, que muitas
vezes pouco se baseou na cultura em si, mas daquilo que se pensa que
ela deva representar. Peter Demant (2004, p.345) lembra o quanto é fun-
damental esclarecer o termo antes de abordar as relações, e mesmo a
tese do “choque de civilizações”, entendendo que civilizações
[...] não são entidades tangíveis, mas construções mentais abrangentes e
luidas, que ligam sociedades entre si por meio de modos de organização
social e/ou normas, valores, epistemologias, sensibilidades estéticas
comuns.

Para o autor, é fundamental desmascarar a polaridade Ociden-


te-Oriente como uma construção ideológica e interesseira, “mas isso
não implica que algo como civilizações diferentes não exista.” Pois ao
contrário dos Estados territoriais, as civilizações não apenas possuem
fronteiras claras, como se justapõem e se inluenciam reciprocamente8.
“Civilização” pode ser deinida como o “esforço para criar um
estado social em que toda a humanidade conviva em harmonia, como
membros de uma só família”. Para Toynbee,9 esta seria a meta que todas
as civilizações até agora conhecidas têm procurado atingir inconsciente
ou conscientemente. O autor também emprega as palavras “sociedades”
no plural e “sociedade” no singular para exempliicações históricas da
ideia abstrata de sociedade. Sociedade é usada para indicar o conjunto
de relações entre seres humanos, e “sociedades” para a relação entre vá-
rios conjuntos. Há, como explica, o gênero sociedade, que consiste de
várias espécies.
A “emergência dos povos”, ou seu surgimento, com uma identida-
de, corresponde, conforme Pierre Lévêque, a uma época em que se mul-
tiplicaram as invenções e em que se exaltou a criatividade dos grupos

7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 20. ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2004.
8 DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. p. 345.
9 TOYNBEE, Arnold J. A história e a moral no Oriente Médio.Tradução de Plínio de Abreu
Ramos. Rio de Janeiro: Paralelo, 1970.

394
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

humanos, o que se manifestou no domínio das técnicas de produção,


dos meios racionais de controlar inundações e da ixação de técnicas de
trabalho e agricultura, o desenvolvimento dos armamentos e a multi-
plicação das atividades bélicas, com implicações políticas de reforço ao
poder de soberanos. Formou-se, também, uma elite de escribas e sacer-
dotes que foram poupados das necessidades de produção e participaram
de criações que conferiam um fundo intelectual aos progressos mate-
riais das civilizações: a criação do calendário (que permitia o domínio
preciso do tempo, ciclos das cheias, celebrações festivas etc.); a escrita
(que favorecia o domínio de realidades complexas, cálculos e a conser-
vação da memória de grandes feitos dos reinos, aumentando o prestí-
gio político de soberanos); e inalmente os grandes sistemas teológicos
(induzindo a estabilização da ideologia e uma visão do mundo fundado
em contradições). A maior característica das primeiras civilizações foi a
imposição de uma nova racionalidade, que contribuiu para uma maior
e melhor captação e compreensão do real10.
Todas as produções intelectuais, técnicas e artísticas, descritas no
parágrafo anterior, representam o próprio desenvolvimento da cultura
e marcam o início das primeiras civilizações, como bem referiu o autor.
Entretanto, é possível e importante diferenciar civilização e cultura.
Civilização implica em um sentido de permanência. Como ex-
plica Kenneth Clark, ainda que as sagas da Islândia sejam incluídas nos
clássicos mundiais, e que sejam criadores indiscutíveis de uma cultura,
isso não basta para constituir uma civilização, que é “algo mais do que
energia, vontade e poder criativo”. Por isso o autor deine “civilização”
como “um sentido de permanência”. Enquanto nômades e invasores vi-
viam em contínuo luxo, não sentiam necessidade de ver além do pró-
ximo im do inverno, ou da próxima viagem ou batalha; o “homem ci-

10 LÉVÊQUE, Pierre. As primeiras civilizações. Tradução de António José Pinto Ribeiro. Lisboa:
Edições 70, 1987, v. I, p. 32-4. Braudel é esclarecedor desse sentido de Civilização: “Ela é o mais
velho personagem da história dos homens: as economias se substituem, as instituições políticas se
rompem, as sociedades se sucedem, mas a civilização prossegue o seu caminho. Roma desmorona
no século V depois de Cristo, a Igreja romana prolonga-a até nós. O hinduísmo ao erguer-se, no
século XVIII, contra o Islã, abre uma brecha por onde se insinua a conquista inglesa, mas a luta
entre as duas civilizações está ainda diante de nós, com as suas consequências, ao passo que o
Império inglês das Índias deixou de existir já há um terço de século. A civilização é o ancião,
o patriarca da história do mundo” (BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e
capitalismo:séculos XV-XVIII.Tradução de Telma Costa. v. 3, O tempo do Mundo. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. p. 53).

395
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

vilizado” parece que precisa sentir que ele tem um lugar no tempo e no
espaço e que tem um futuro e um passado11.
É importante, entretanto, destacar que a permanência não impli-
ca em ausência de uma dinâmica e abertura para a mudança, implica
apenas em um sentido maior de identidade e um obstáculo maior a mu-
danças. É possível concluir, ainda, que a consciência civilizacional surge
ao mesmo tempo de um orgulho na produção cultural.
Pelo que se tem observado, é fundamental para a identidade de
um povo reconhecer sua produção e a partir daí reconhecer sua história
e identidade, orgulhando-se do que o forma e o constitui, do que o re-
presenta e do que é capaz. Tudo isso, aplicado à América Latina, mostra
que seria necessário um maior cuidado em relação à cultura produzida,
e um maior orgulho em relação a ela. Boa parte da falta de reconhe-
cimento à riqueza cultural existente deve-se, entretanto, não apenas à
pobreza e a falta de investimentos sérios em educação e ensino, mas
também à massiicação cultural e a importação de uma pseudocultura
artiicialíssima, em geral norte-americana, paga pelos grande conglo-
merados que detém o poderio na transmissão de programas.
Só se tem acesso, basicamente, àquilo que é autorizado pelos con-
glomerados da mídia, que são poderes concedidos pelos governos pseu-
dodemocráticos. Tudo isso prejudica na construção de uma consciência
cultural e na formação de uma identidade civilizacional latino-americana.

12.2. A “civilização” e a “barbárie” com categorias


antropológicas e políticas
Além de uma categoria antropológica, o termo “civilização”, assim
como o termo “bárbaro”, deve ser considerado como categoria política.
No decorrer dos séculos o termo passou a ser utilizado para identiicar
as ações e reações que se opunham a princípios racionais de convivência
entre as pessoas. É “essa cultura herdada dos princípios humanistas da
Antiguidade que a Europa buscará impor ao mundo inteiro” [...] – e a
civilização passará a designar o estado atual e, para alguns, “o estado
inal da humanidade que conseguiu com suas próprias forças emergir

11 CLARK, Kenneth. Civilização: uma visão pessoal. Tradução de Madalena Nicol. São Paulo:
Martins Fontes, 1995. p. 34-7.

396
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

do estado selvagem e resistir deinitivamente às recaídas da barbárie”.12


Dessa forma, o “bárbaro” existente desde a Grécia e Roma, aparece no
Holocausto nazista e, pode-se dizer, que na atualidade assume uma for-
ma bastante singular, podendo surgir em qualquer lugar em que não se
reconheça a alteridade. É difícil, arbitrário e por isso sempre questioná-
vel responder a perguntas sobre o que é “bárbaro”, “selvagem”, e o que
é “civilizado”. Dar um signiicado ao termo “civilização”, de acordo com
certos requisitos perenes, é tarefa árdua.
E nesse ponto, o próprio “selvagem” é também civilizado, porque
“cuidadosamente transmite aos ilhos a herança da tribo – complexo de
hábitos morais, econômicos e políticos, bem como as instituições que
desenvolveu em seus esforços para substituir e gozar da terra”. Alerta
Durant que é mais adequada a expressão, para povos antigos, de “primi-
tivos”, e não “selvagens”, pois isso constituiria uma falta de cuidado com
nossos antepassados13.
Mas não é só isso. Atualmente, não apenas o “selvagem” pode
ser encontrado nas mais diversas civilizações, como um “bárbaro” pos-
suidor, inclusive, de uma ou “várias doses” de cultura, assim como a
própria cultura, segundo os antropólogos, pode ser encontrada em co-
munidades de outros animais. Além disso, aquele que era tratado como
“bárbaro”, “estrangeiro”, “estranho”, ou “outro”, “sem pátria”, na atualida-
de existe de forma muito concreta na igura do “refugiado”. 14
Vários estudos indicam que a barbárie é uma constante na histó-
ria das civilizações, e é inclusive inerente a elas. Eric Hobsbawm esclare-
ce que após 150 anos de declínio secular (ele escrevia no inal do século

12 MATTÉI, Jean-François. A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno.Tradução de


Isabel Maria Loureiro. São Paulo: UNESP, 2002. p. 232-3.
13 DURANT, Will.Nossa herança oriental. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 4. Toynbee
exempliica: “O futuro espiritual, bem como político de Israel está ligado ao futuro dos refugiados
árabes palestinos” (TOYNBEE, Arnold J. A história e a moral no Oriente Médio.Trad. Plínio de
Abreu Ramos. Rio de Janeiro: Paralelo, 1970. p. 25).
14 Apesar de o tema sobre o que é civilizado ou não parecer, na atualidade, estranho e até
superado, ele se reveste de imensa relevância quando se pensa na situação vivida pelos refugiados,
que constituem uma categoria de seres humanos sem pátria, sem lar, excluídos, o “outro” extremo.
Nesse sentido, uma comparação é realizada por Douzinas entre a igura daquele que é estrangeiro,
considerado também “outro”, mas que possui um “lar” representado na comunidade constituída
em Estado, e outro fenômeno típico do mundo pós-moderno e globalizado: o número crescente de
refugiados, que representam a substituição dos estrangeiros como principal categoria do “outro”,
bem como o lado extremo da civilização, ou o grau zero de humanidade, ou um estado de natureza
(Cfe. DOUZINAS, Costas. he end of Human Rights.Oxford: Hart Publishing, 2000. p. 144).

397
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

XX), a barbárie esteve em crescimento durante a maior parte do século


XX, e não haveria nenhum sinal de que seu crescimento estivesse perto
do im. Para ele, considerando esse contexto, a barbárie signiica duas
coisas: a ruptura e o colapso dos sistemas de regras e o comportamento
moral pelos quais todas as sociedades controlam seus membros (e em
menor extensão a relação de seus membros e os de outras sociedades),
e ainda, de forma mais especíica, a barbárie seria a reversão do projeto
do Iluminismo do século XVIII, ou seja, o estabelecimento de um siste-
ma universal de tais regras e normas de comportamento moral, corpo-
riicado nas instituições dos Estados e dedicado ao progresso racional
da humanidade. Este tema, enfatiza o autor, tem relação direta com os
direitos humanos15.
O termo “civilização” é difícil de ser conceituado. Está associado
a “civilizado” e “civilizar”, que já eram comuns no século XVI e, com a
modernidade ocidental, indicarão a “passagem ao estado civilizado”, ou
seja, ao que não é “bárbaro”, inculto, quase inumano, para usar as obser-
vações feitas a partir das descobertas e explorações na América. Já no
século XIX, a palavra “civilização” adquiriu um novo aporte, deixando
de ser somente singular para ter sentido também plural. Assim, refere
Braudel, icou ainda mais difícil de deinir o termo. Hoje, “civilização”,
no singular, seria antes o bem comum partilhado, ainda que desigual-
mente, por todas as civilizações. “Civilizações”, no plural, teria o signii-
cado que prevaleceu na mentalidade do século XX: “existem, inegavel-
mente, ‘civilizações’.”16 Na atualidade, quando se deseja fazer referência à
“Civilização”, com “C” maiúsculo, o termo “Humanidade” parecerá mais
adequado, pois a história da humanidade é feita a partir da história das
civilizações.

15 HOBSBAWM, Eric. Sobre História.6. reimp. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 268-9.
16 Segundo Braudel, até por volta de 1732 o termo indicava apenas um ato da Justiça ou um
julgamento que tornava “civil”um processo “criminal”. O segundo sentido de civilização surge
da oposição do estado “civilizado” ao estado “selvagem”, opondo-se, de maneira geral, à barbárie
(BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações.Tradução de Antonio de Pádua Danese. São
Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 25-9). E assim, esclarece HUNTINGTON: “Civilizations in the
plural are the concern of this book”; ou seja, seu livro trata da questão do conlito de “civilizações”
(no plural), apesar da “civilização” no singular ter reaparecido na atualidade para representar o
argumento de que existe um mundo universal da civilização – o que não pode ser sustentado,
diz o autor, que se propõe a examinar, nesse sentido, “se as civilizações estão ou não icando mais
civilizadas” (HUNTINGTON, Samuel. he clash of civilization and the remaking of world order.
New York: Touchstone, 1997. p. 41).

398
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

No aspecto antropológico, o termo “civilização” é utilizado no


singular para designar um estado de evolução da humanidade, e teve
seu signiicado vinculado a uma qualidade especial ou uma fase da cul-
tura que existiu durante determinada era. A “era da civilização” teria
começado há cerca de 5.000 anos, airma Toynbee. O autor acredita ser
importante esclarecer que a tese da unidade da civilização é um erro no
qual os historiadores ocidentais têm sido levados a acreditar devido à
inluência de seu desenvolvimento social. O engano também está vin-
culado à ideia de “unidade da história”, que envolve a airmação de que
existe apenas um “rumo civilizatório”, o ocidental, o que constitui hoje, é
sabido, uma ilusão egocêntrica. Toynbee alerta que o egocentrismo não
constitui uma característica exclusivamente ocidental.17 Nesse sentido,
ressalta-se que seu signiicado original foi difundido no “singular”, o que
na atualidade vem sendo tratado como uma expressão no mínimo des-
confortável, em vista da pluralidade e diversidade civilizacional.

12.3. Culturas, civilizações e sociedades


Não é simples encontrar um conceito de “cultura”. Há mesmo um
pessimismo estabelecido diante da diiculdade, a ponto do historiador Pe-
ter Burke airmar que “não há concordância sobre o que constitui história
cultural, menos ainda sobre o que constitui cultura”18. Já para Michel de
Certeau, toda antropologia articula cultura e natureza, segundo uma or-
dem que marca os limites da própria indagação, do olhar e do saber. Por
isso, é a invenção política que pode fazer novas articulações que levam em
conta uma dinâmica da repressão. Antes de falar em cultura, ou de certa
cultura, é necessário responder: “de onde se fala, o que se pode dizer, de

17 TOYNBEE, Arnold J. A study of History. New York: Oxford University Press, 1947. Abridg.
Of v. I-VI by D.C. SOMERVELL. p. 36-7. Em outra obra o autor esclarece: “Esses cinco mil anos
de civilização são um período muito curto se compararmos com os primeiros milhões de anos
das civilizações pré-humanas. Mas nesses últimos cinco, dez ou trinta mil anos a capacidade do
homem de transformar o universo aumentou de forma considerável. Por que digo cinco mil, dez
mil ou trinta mil anos? Há cinco mil anos começaram a surgir as primeiras civilizações, há dez mil
iniciou-se a era neolítica, embora essa denominação não seja muito clara. Ela é assim denominada
devido à descoberta de novas formas de produzir instrumentos. [...] Aquela que consideramos
cientiicamente como a Revolução Industrial (cujos fundamentos cientíicos se encontram no
século XVIII) não foi a primeira revolução industrial da humanidade...”(TOYNBEE, Arnold J. A
sociedade do futuro.Tradução de Celina Whately. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 40-1).
18 BURKE, Peter. Variedades da história cultural. Tradução de Alda Porto.Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000. p. 13.

399
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

onde falamos nós... e assim o problema torna-se imediatamente político,


uma vez que coloca em causa a função social... da cultura”.19
É importante, entretanto, deixar claro que a cultura, na atualidade,
é caracterizada como um fenômeno por ser explicado, antes de ser um
fenômeno por meio do qual tudo se explica. O conceito de cultura tem
uma longa e confusa história na antropologia, conforme é mostrado por
Friedman, e sua noção foi obscurecida no século XIX, através de sua as-
sociação com a raça, na forma de Volkgeist, ou com a civilização ou o que
restou conhecido como “alta cultura” – de certa forma, oposto ao concei-
to de Kultur dos ilósofos nacionalistas alemães. Nesse sentido, a cultura
era o que distinguia uns dos “outros”.20 É mais fácil compreender o termo
“cultura”, para os limites do presente trabalho, considerando seu signii-
cado no contexto das civilizações, e bem assim, partindo das relações es-
tabelecidas entre as culturas entre si, e entre as culturas e as civilizações.
Norbert Elias esclarece que o termo “civilização” descreveria um
processo ou pelo menos seu resultado, sendo algo que está em movi-
mento constante, movendo-se “para frente”; mas kultur implicaria uma
relação diferente com movimento, aludindo antes a fatos intelectuais,
artísticos e religiosos e traçando uma linha divisória entre estes e os fa-
tos políticos, econômicos e sociais. Para Norbert Elias, que salienta tais
diferenciações, o conceito de civilização, até certo ponto, minimiza as
diferenças nacionais entre os povos, enfatizando o que é comum a todos
os seres humanos (ou na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo). Já
o conceito alemão de kultur dá ênfase especial às diferenças nacionais
e à identidade particular de grupos. Assim, o conceito de civilização
inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expan-
sionista de grupos colonizadores, ao passo que o conceito de kultur re-

19 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo:
Papyrus, 1995. p. 81-2.
20 Depois, com a mudança de século se produziu uma mudança radical no uso da palavra “cultura”
com a antropologia explicitamente relativista que surgiu nos Estados Unidos com Franz Boas, e
enim, com muitos outros pensadores mesmo em outras áreas, como (e.g., Saussure, na linguística),
de modo que a cultura passou a ser um sistema no qual os domínios da ecologia, economia,
ideologia etc. tomam parte na totalidade dinâmica de um processo evolutivo, e os conceitos de
cultura e sociedade se confundem. Desenvolvimentos ainda posteriores e atuais chegam a um uso
do termo como construção essencialmente simbólica e cognitiva, como de Talcott Parsons, por
exemplo (FRIEDMAN, Jonathan. Identidad cultural y proceso global. Tradução de Eduardo
Sinott. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. p. 110-2. Tradução de: Cultural Identity & Global Process,
1994).

400
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

lete a consciência que uma nação tem de si mesma, na busca incessante


de suas fronteiras, tanto no sentido político como no sentido espiritual,
durante a qual teve, repetidas vezes, que perguntar a si mesma sobre sua
identidade.21 Enim, os dois conceitos nascem de um conjunto especíi-
co de situações históricas.
A palavra vai percorrer, rapidamente, da França à Inglaterra e
Alemanha, e depois a outros países; e será acompanhada, nessa passa-
gem, pelo termo “cultura”, que é uma palavra muito mais antiga. Vale
observar que ambas serão empregadas muitas vezes de forma indistinta.
A necessidade de fazer uma distinção entre os termos levou a tendência
de, por um lado, considerar a cultura como o retrato dos valores morais
e espirituais, e civilização, por outro lado, como o espelho dos valores
materiais. Entretanto, a noção de civilização, diz Braudel, é pelo menos
dupla, abrangendo valores morais e materiais, e compreendendo, pelo
menos, dois estágios. Por isso, a “tentação, experimentada por muitos
autores, de distinguir as duas palavras, cultura e civilização, de modo
que uma se carregue da dignidade do espiritual e a outra da trivialidade
do material”, mas sem a chegada a um acordo quanto à distinção, vai
variar conforme os países, ou num mesmo país, dependendo das épocas
e dos autores22
Muitas vezes “civilização” e “cultura” são termos utilizados de
forma indistinta. Algumas vezes a forma como as palavras são empre-
gadas não deixarão dúvidas que possuem signiicados distintos, ainda
que possam ser relacionados, e que não sejam considerados opostos.
Huntington tem muito a contribuir na delimitação e compreensão do
conceito de civilização, tomando por base, principalmente, dados de

21 Assim, franceses e ingleses pensam com orgulho de sua “civilização”, e aquele povo que,
de acordo com os padrões ocidentais, conseguiu apenas muito tarde a uniicação política e a
consolidação de suas fronteiras, fala com orgulho de sua kultur. (ELIAS, Norbert. O processo
civilizador: uma história dos costumes. Trad. Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994, v. 1, p. 24 e 26).
22 BRAUDEL, Fernand.Gramática das civilizações.Tradução de Antonio de Pádua Danese. São
Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 27-8. Em outra obra o autor salienta que, de forma geral, cultura
e civilização podem ser empregadas de forma indistinta: “As culturas (ou as civilizações: as duas
palavras, diga-se o que for, podem empregar-se uma pela outra na maior parte dos casos) são
também uma ordem organizadora do espaço, do mesmo modo que as economias” [...] (BRAUDEL,
Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII.Tradução de Telma
Costa. v. 3, O tempo do Mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 53).

401
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

Toynbee, e ressaltando as razões porque conclui que os futuros conlitos


mundiais terão como base o choque de civilizações.23
Como diz Huntington, “a História da humanidade é a História
das civilizações”. Huntington e Braudel concordam em alguns pontos
fundamentais sobre a natureza, a identidade e a dinâmica das civiliza-
ções. Assim, por exemplo, uma língua comum, uma religião comum e
um mesmo estilo de vida em geral podem deinir uma civilização, mas
uma civilização não pode ser identiicada exclusivamente pela língua,
ou pela raça, pois povos da mesma raça podem pertencer a distintas
civilizações e povos de raças diferentes podem estar unidos pela mesma
civilização, o que acontece em geral no caso de grandes religiões missio-
nárias, como o Cristianismo e o Islamismo. 24
Uma civilização, explica Huntington, é uma entidade cultural
mais ampla, “com exceção do que se pensa na Alemanha”, pois os pen-
sadores alemães do século XIX traçaram uma distinção entre civilização
(envolvendo mecânica, tecnologia e fatores materiais) e cultura (envol-
vendo valores, ideais e as qualidades intelectuais, artísticas e morais de
uma sociedade, consideradas mais elevadas). Segundo Huntington, essa
distinção persistiu no pensamento alemão, mas não teve aceitação em
outros lugares: “civilização e cultura se referem, ambas, ao estilo de vida
em geral de um povo, e uma civilização é uma cultura em escrita maior”,
ou seja, “civilização é assim o mais alto agrupamento cultural de pessoas
e o mais amplo nível de identidade cultural que as pessoas têm aquém

23 “What do we mean when we talk of a civilization? A civilization is a cultural entity. Villages,


regions, ethnic groups, nationalities, religious groups, all have distinct cultures at diferent levels
of cultural heterogeneity. he culture of a village in southern Italy may be diferent from that of a
village in northern Italy, but both will share in a common Italian culture that distinguishes them
from German villages. European communities, in turn, will share cultural features that distinguish
them from Arab or Chinese communities. Arabs, Chinese and Westerners, however, are not part of
any broader cultural entity. hey constitute civilizations” (HUNTINGTON, Samuel P. he Clash of
Civilizations? In: Foreign Afairs, New York, p. 1-2, summer, 1993).
24 HUNTINGTON, Samuel. he clash of civilization and the remaking of world order. New
York: Touchstone, 1997. p. 41. Nesse sentido, Toynbee investiga 21 sociedades: Ocidental, Ortodoxa,
Irânica, Arábica (que são na atualidade fundidas na Islâmica), a Hindu, a Extremo-Oriental, a
Helênica, a Siríaca, a Índica, a Sínica, a Minóica, a Sumérica, a Hitita, Babilônica, Egípcia, Ândica,
Méxica, Iucateca e Maia. Apesar de manifestar dúvidas na divisão da Babilônica e da Sumérica,
mantém a separação. Além disso, divide a Sociedade Ortodoxa Cristã em Sociedade Ortodoxa
Russa e Ortodoxa Bizantina, e divide também a Sociedade Extremo-Oriental em Sociedade
Chinesa e Coreano-Japonesa, chegando a um total de vinte e uma civilizações (TOYNBEE,
Arnold J. A study of History. New York: Oxford University Press, 1947. Abridg. Of v. I-VI by D.C.
SOMERVELL, p. 33-4).

402
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

daquilo que distingue os seres humanos das demais espécies”. Alguns


elementos objetivos podem deini-la, tais como língua, história, religião,
costumes, instituições e ainda a autoidentiicação subjetiva das pessoas:
a civilização a qual alguém pertence é o nível mais amplo de identiica-
ção com o qual se identiica de forma intensa.25
Ainda, qualquer que seja a expressão do ethos, é impossível se-
parar, na história das grandes civilizações, tradição ética e tradição reli-
giosa.26 Samuel Huntington também entende que de todos os elementos
objetivos que deinem as civilizações a religião constitui uma caracte-
rística central, como enfatizado historicamente já pelos atenienses. A
religião seria a característica principal, e todas as grandes religiões se-
riam o fundamento sobre o qual se formaram grandes civilizações. Em
um nível mais amplo, as maiores civilizações na história mundial cor-
respondem às maiores religiões mundiais. Além disso, há o aspecto de
que civilização e etnia não são idênticas, pois pessoas da mesma etnia
podem pertencer a civilizações profundamente divididas, e pessoas de
diferentes raças podem pertencer à mesma civilização. É bem assim,
uma vez que as grandes religiões missionárias envolvem sociedades de
várias raças27.
Sendo entidades culturais e não políticas, explica ainda Huntin-
gton, elas não mantêm a ordem, não estabelecem a justiça, não arre-
cadam impostos, não travam guerras, não negociam tratados – pois a
composição política das civilizações varia entre elas, e dentro de uma
mesma civilização, varia com o tempo. Civilização e entidade política
podem coincidir, mas isso é raro. Assim, a China seria uma civiliza-
ção tentando constituir um Estado, enquanto o Japão é uma civilização

25 HUNTINGTON, Samuel. he clash of civilization and the remaking of world order. New
York: Touchstone, 1997. p. 42-4.
26 VAZ, Henrique C. de Lima.Escritos de Filosoia II – Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1993.
p. 41.
27 HUNTINGTON, Samuel. he clash of civilization and the remaking of world order. New
York: Touchstone, 1997. p. 47. A religião, nas conclusões da Fundação Konrad-Adenauer-Stifung,
tem uma inluência fundamental na deinição de uma civilização, pois a busca do homem por
sentido está ligada à experiência religiosa, e em quase todos os espaços culturais desse mundo a
dignidade do homem pode ser fundamentada também a partir de valores religiosos e éticos. Nas
religiões que possuem escrituras, como o cristianismo, judaísmo, islamismo, budismo e hinduísmo,
em especial, sempre existem alguns princípios e estruturas que fundamentam os direitos humanos
(FUNDAÇÃO KONRAD-ADENAUER-STIFUNG. Cinqüenta anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.Tradução de Sondi Bertuol. São Paulo: Centro de Estudos e Pesquisas,
1998, n. 11, p. 93).

403
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

que constitui um Estado. Pode existir uma ou mais unidades políticas


em uma civilização, sejam estas cidades-estados, impérios, federações,
confederações, Estados-nações, Estados multinacionais, todos com di-
ferentes formas de governo28.
Hoje, a cultura se entende como “nosso texto”, uma reiicação de
outro “modo de vida”, que deve ser compreendido como um resultado
negociado e não como relexo de uma realidade objetiva ou descrita, de
modo que também as concepções de identidade cultural ou etnicidade
estão vinculadas, tanto quanto a cultura na constituição da identidade
pessoal. A “identidade cultural” pode ser concebida de modo genérico,
como atribuição de um conjunto de qualidades a uma dada população,
e o indivíduo a manifesta, pois ela lhe é inerente. 29
Mesmo sociedades ocidentais estão sendo cada vez mais consi-
deradas “multiculturais”, na qual comunidades distintas demandam o
reconhecimento e institucionalização de grupos de direitos para pre-
servar sua forma diferente de vida, cultural e moralmente. Para tanto,
reclamam o direito de autodeterminação em certas questões, desejando
transferir a jurisdição e legislatura do governo central para a esfera de
autonomia de suas comunidades individuais30. Muitas nações estão li-
gadas a concepções próprias de Direitos Humanos, decorrentes de suas
histórias particulares31.

28 HUNTINGTON, Samuel. he clash of civilization and the remaking of world order. New
York: Touchstone, 1997. p. 44. Em termos econômicos, Braudel vai unir o Extremo Oriente em uma
única “economia-mundo”, apesar de considerar a existência de “três enormes economias-mundo:
o Islã, que ao lado do oceano Índico se apóia no mar Vermelho e no golfo Pérsico e controla a
interminável sucessão de desertos [...]; a Índia, que estende sua inluência a todo o oceano Índico,
tanto a Oeste como a Leste do cabo Camorim; a China, ao mesmo tempo territorial – airma-se até
o coração da Ásia – e marítima – domina os mares laterais do Pacíico e as regiões que eles banham.
Foi assim desde sempre” (BRAUDEL, Fernand.Gramática das civilizações. Tradução de Antonio
de Pádua Danese. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 449).
29 Em um sentido mais forte isso se expressa pelo conceito de raça ou descendência biológica.
Num sentido fraco se expressa como herança ou descendência cultural, aprendida por todos e
cada um, sendo distintiva no nível da conduta individual. A segunda noção é a mais comum no
Ocidente, referindo-se a um “estilo de vida”, modo de vida, que pode ou não ter base na tradição
(FRIEDMAN, Jonathan. Identidad cultural y proceso global. Tradução de Eduardo Sinott.Buenos
Aires: Amorrortu, 2001. p. 54, 57-9 e 117. Tradução de: Cultural Identity & Global Process, 1994).
30 AXTMANN, Roland. he State of the State: the model of the Modern State and its contemporary
transformation.International Political Science Review, London, v. 25, n. 3, p. 266-7, 2004.
31 FREEMAN, Michael. Direitos humanos universais e particularidades nacionais. In:
SEMINÁRIO DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI, 10 e 11 de setembro de 1998. Anais.
Rio de Janeiro, IPRI. Disponível em: <http://www.mre.gov.br/ipri>, p. 2. Acesso em: 28 out. 2006.

404
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

As controvérsias teóricas também envolvem o termo ”sociedade”


e “sociedades”, mas é possível airmar com Morin que a emergência da
cultura ocorre a partir da complexiicação do indivíduo e da sociedade,
em que a sociedade arcaica seria um tipo novo em relação às socieda-
des de chimpanzés e de proto-humanos pré-culturados. Uma sociedade
está ameaçada de extinção, diz, quando sua cultura está ameaçada de
destruição32.
Cultura, pode-se dizer, então, é algo tão dinâmico que conta a his-
tória a seu modo, diferente da história que é contada pelas civilizações,
porque apesar de uma civilização ser constituída pela cultura, e muitas
vezes várias culturas, é a civilização que historicamente tem se presta-
do a alcançar um estado de dominação sempre progressiva, que, como
referiu Toynbee, ocorreu e ocorre de forma consciente ou inconsciente.
Cada período histórico aparece sintetizado adequadamente. O
monoteísmo judaico, a partir de um Deus universal, protegia os direi-
tos do homem. Após, o lorescimento da democracia grega assentou as
bases de uma organização social de que somos, a sociedade ocidental,
verdadeiros herdeiros. Mais tarde, o direito romano, por meio da siste-
matização da norma jurídica, construiu um instrumento que se conver-
teu na forma mais elevada de proteção dos direitos.

12.4. Os direitos humanos


A discriminação sempre existiu: escravos, bárbaros, negros, ju-
deus, índios, pobres, ideológica. Ortega y Gasset disse que “a única cer-
teza possível é a que nos brinda o conhecimento histórico”33. Neste pe-
queno livro (para o autor, um artigo), o único que podemos realmente
conhecer é nosso passado, eis que o presente é fugacidade e transição e
o futuro, o desconhecido.
Não há dúvida de que o conhecimento do passado serve como um
guia de orientação que nos permite intuir o sentido geral da marcha da
humanidade. As certezas sobre o amanhã são, podemos dizer, impossí-
veis, mas sabendo o que aconteceu podemos nos antecipar, em certa me-

32 MORIN, Edgar. O método 5 – a Humanidade da Humanidade: a identidade humana. 3. ed.


Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 35-6.
33 725 ORTEGA Y GASSET, José. Historia como sistema. Mirabeau ou o politico. Tradução de
Juan A. Gili Sobrinho e Elizabeth Hanna Côrtes Costa. Brasília: Ed. Unb, 1982. p. 54

405
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

dida, ao que virá. Não se trata de uma ciência exata, mas de uma espécie
de bússola que nos orienta em meio a tormenta de acontecimentos.
O campo abrangido pelos direitos humanos, no seu início, in-
cluiu um grupo minoritário da humanidade. Era quase um privilégio
separar. aqueles cuja vida e liberdade estavam asseguradas do resto da
população que não podia fazer outra coisa senão obedecer. Mas pouco
a pouco o espaço abarcado foi sendo ampliado e cada vez mais homens
foram tendo garantidos o exercício de seus direitos fundamentais.
Comparato diz que no relato bíblico da criação, o mundo não
surge instantaneamente, completo e acabado, das mãos do criador. As
criaturas vão se acrescentando umas às outras, como etapas de um vasto
programa, simbolicamente ordenado na duração de um ciclo lunar. O
primeiro casal humano só entra em cena na derradeira etapa do pro-
cesso genesíaco, quando todos os demais seres terrestres já haviam sido
engendrados34.

12.4.1. A origem
Os direitos humanos fundamentais, em sua concepção atualmen-
te conhecida, surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde as
tradições arraigadas nas diversas civilizações até a conjugação dos pen-
samentos ilosóico-jurídicos, das ideias surgidas com o cristianismo e
com o direito natural. Estas ideias encontravam um ponto fundamental
em comum, qual seja, a necessidade de limitação e o controle dos abu-
sos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas, e a
consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como
regentes do estado moderno contemporâneo35.
A evolução da proteção internacional dos direitos humanos se
confunde com a própria evolução do Direito Internacional. Este ramo
do direito, surgido na Paz de Westfália, 1648, no tempo em que os Es-
tados concentravam seus esforços na plenitude da soberania, da inde-
pendência, integridade territorial e unidade política, se consolidou em
razão da Primeira Guerra Mundial, identiicando-se como uma ordem

34 COMPARATO, Fábio Konder. A airmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 17.
35 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos
artigos 1º a 5° da CRFB, doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 1.

406
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

jurídica estritamente voltada ao relacionamento, coexistência e coope-


ração entre Estados soberanos, sendo estes, até aquele momento, os úni-
cos destinatários do Direito Internacional, no seu início caracterizado
como um direito da paz e da guerra.
A ideia de que todos os seres humanos devem gozar de direitos
essenciais e comuns já eram encontrados em algumas antigas civiliza-
ções; pois, de um jeito ou de outro, estava no cerne de muitas religiões,
como no cristianismo, ao proclamar que todos os homens são iguais
perante Deus.
A doutrina aponta como de vital importância para que se come-
ce a falar em direitos humanos, talvez o mais importante antecedente
histórico, o documento irmado na Inglaterra, no ano de 1215, pelo Rei
João Sem Terra, imposto pelos Barões do Reino, e tido como um con-
junto de garantias individuais, conhecido como Magna Carta36. Jorge
Miranda nos diz que foi conirmada seis vezes por Henrique III, três ve-
zes por Eduardo I, catorze vezes por Eduardo III, seis vezes por Ricardo
II, seis vezes por Henrique IV, uma vez por Henrique V e uma vez por
Henrique VI37.
No entanto, o conceito de direitos humanos, tal como considera-
do na atualidade, tem sua origem na cultura ocidental moderna e surge
no inal do século XVIII, no momento em que foram produzidas decla-
rações de direitos em dois lugares precisos no mundo: na colônia ingle-
sa na América, que logo se tornaria um país independente, os Estados
Unidos, e no Reino da França, que estava prestes a ser transformado em
República, após a revolução que acabou com a monarquia.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos continha
uma enumeração bastante próxima da noção moderna de direitos hu-
manos: a igualdade de todos os homens, a separação de poderes, o poder
ao povo e a seus representantes, a liberdade de imprensa, o poder militar
subordinado ao poder civil, o direito à justiça e a liberdade religiosa38.

36 SANTAGATI, Claudio Jesús. Manual de derechos humanos. 3ª edición ampliada y actualizada.


Buenos Aires: Ediciones Juridicas, 2011. p. 56.
37 MIRANDA, Jorge. Textos históricos do direito constitucional. 2. ed. Lisboa: Casa da Moeda,
1990. p. 13.
38 TRAVIESO, Juan Antonio. Historia de los derechos humanos y garantias. 3ª edición ampliada,
revidada y corregida. Buenos Aires: Editorial Heliasta, 2005. p. 142.

407
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

A tradução desta Declaração para a língua francesa inluenciou a


elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, reali-
zada em plena Revolução Francesa, de modo que o início de seu artigo
primeiro é, desde então, um ponto de referência para o início de qual-
quer declaração sobre direitos Humanos: “Os homens nascem e perma-
necem livres e iguais em direitos”39.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, além de
enunciar uma série de princípios fundamentais de ordem política, atri-
bui aos povos e aos indivíduos direitos permanentemente atuais, tais
como o direito de resistência contra a opressão (artigo 2); a presunção
de inocência (artigo 9 ); a liberdade de opinião e de religião (artigo 10);
a liberdade de expressão (artigo 11) e o direito de propriedade (artigo
17); entre outros.
Carrillo Salcedo ao tratar da passagem do Direito Internacional
clássico ou tradicional ao Direito Internacional contemporâneo, iden-
tiica três processos históricos bem deinidos: a institucionalização, a
socialização e a humanização do Direito Internacional. O primeiro é
caracterizado pelo desenvolvimento das Organizações Internacionais,
universais ou regionais. O segundo, pelas relações sociais e humanas
que passou a regular, e o terceiro pela presença das pessoas como sujei-
tos do Direito Internacional, papel reservado anteriormente exclusiva-
mente aos Estados soberanos40.
Um momento histórico de destaque no processo de evolução
da “cultura internacional dos direitos humanos” é registrado no sécu-
lo XIX. Até então, apenas uma ou outra situação muito rara, isolada e
especíica era conhecida, como as garantias de liberdade religiosa para
certas minorias e a proibição do comércio de escravos.
Surge, neste momento, pela primeira vez e por inspiração de Je-
remias Bentham, em sua obra “Princípios de Direito Internacional”,
publicada em 1843, a ideia de criar um tribunal internacional para solu-
cionar as controvérsias entre os Estados. Esta nova consciência jurídica
entre os países, agora mais comprometidos com a paz internacional, fa-
voreceu o lorescimento de uma consciência internacional dos direitos

39 TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y Derecho internacional. Buenos Aires:


Editorial Heliasta, 1996. p. 97.
40 CARRILLO SALCEDO, J. A., Soberania de los estados y derechos humanos en derecho
internacional contemporáneo. 2ª edición, Tecnos, Madrid: 2001.p. 13-4.

408
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

humanos, como a proteção aos estrangeiros, a liberdade de religião e a


reprovação à escravidão, sendo que esta última foi se consolidando ao
longo do século XIX, muito embora só no inal do mesmo se pudesse
considerar vigente e com caráter geral41.
Apesar do progresso dos direitos humanos no âmbito internacio-
nal a partir do século XIX, até o início do século XX, ainda era inconce-
bível imaginar o ser humano como protagonista do Direito Internacio-
nal e, consequentemente, inadmissível qualquer tentativa de tratar do
assunto naquele ambiente jurídico, apenas pelo fato de que esse direito
era limitado exclusivamente às relações entre Estados e não entre as pes-
soas.
Não se pode esquecer que as conquistas que foram alcançadas na
proteção internacional dos direitos humanos tiveram forte inluência
do reconhecimento de direitos humanos no seio interno dos países. Em
1628, com a “Petição de Direitos”, em 1679, com os “Habeas Corpus” e
em 1689 com a “Declaração de Direitos”, os britânicos iniciavam a fase
de positivação desses direitos42.
Já no século XX, com o Convênio de Berna, de 1906, traçando
o início do Direito do Trabalho, e com a Declaração Russa dos direitos
do povo trabalhador e explorado, de 1918, advém os primeiros intentos
de tutela dos direitos econômicos, sociais e culturais. No âmbito da So-
ciedade das Nações, predecessora da Organização das Nações Unidas,
após a Primeira Guerra Mundial, passam a ser perceptíveis os esforços
para adotar alguns instrumentos internacionais de positivação de direi-
tos humanos.
São exemplos de iniciativas daquela natureza o regime de man-
datos, que impôs obrigações às potências que tinham sob sua jurisdi-
ção determinados territórios, a proibição da escravidão, a proteção dos
refugiados e a proteção do trabalhador, coniada à Organização Inter-
nacional do Trabalho, a partir do seu estabelecimento em 1919. Conco-
mitantemente, as Constituições do México, de 1917, e da República de
Weimar, de 1919, são marcos relevantes no sentido de tutelar os direitos
humanos no ambiente interno dos Estados.

41 PASTOR RIDRUEJO, José Antonio. Curso de derecho internacional público y organizaciones


internacionales. 6ª ed. Madrid: Tecnos, 1996. p. 298.
42 RODRÍGUEZ CARRIÓN, Alejandro J. Leciones de Derecho internacional público. 5ª. Ed.
Madrid: Tecnos, 2002. p.141.

409
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

Estas experiências internas, ainda que discretas em um primeiro


momento histórico, são as que vêm inspirar uma projeção mais ampla
no âmbito internacional. Para Tryuol Y Serra
A ideia de um Estado social de direito, de uma justiça social que só
atinge a plena coerência se obtém escala universal, entre todos os
homens e todos os povos, servindo ao desenvolvimento integral e
harmonico do indivíduo, têm cada vez mais penetrado mais na esfera
do direito internacional, mitigando seu individualismo tradicional e
estatismo para apontar para o que tem sido chamado de ‘humanização’
do direito internacional, ou mesmo para uma lei internacional ‘social’ e
personalista43.

A evolução do Direito Internacional tradicional para o Direito


Internacional contemporâneo traz, assim, como divisor histórico, exa-
tamente a presença do homem como sujeito de direitos, e com uma ca-
racterística muito importante, a instituição de sistemas de controle e
reação às violações aos direitos humanos, caracterizando uma autêntica
dimensão constitucional do Direito Internacional dos tempos atuais.
Sob o ponto de vista da reação internacional contra as violações
dos direitos dos indivíduos, os primeiros atos concretos foram propria-
mente situados no âmbito do direito humanitário, em virtude das atro-
cidades veriicadas durante o segundo conlito bélico mundial, o qual
teve como resposta a criação dos dois Tribunais Militares Internacio-
nais, Nuremberg e Tóquio, em 1945, para julgar os crimes contra a paz,
crimes de guerra e contra a humanidade44.
Muito embora se deva reconhecer as justiicadas críticas existen-
tes pela falta de imparcialidade de ambos os tribunais, que se restringi-
ram ao julgamento dos vencidos pelos vencedores, não é possível ne-
gar que inauguraram uma nova fase da tutela internacional de direitos
como forma de reação às violações cometidas. Ainda que tais tribunais
tivessem uma nítida competência criminal, muitos casos levados a jul-
gamento apresentaram como motivação as graves violações de natureza
discriminatória, intolerância e crueldades, que hoje possuem especíica

43 TRYUOL Y SERRA, Antonio. Los Derechos Humanos. Tecnos, Madrid, 4ª ed., 2000. p. 44.
44 DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito internacional público. 2.
ed. Tradução de Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p.674.

410
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

proteção internacional em temas de liberdades individuais, de tortura,


temas raciais e de minorias.

12.4.2 O início da ordem


O aluno do Direito aprende que o estabelecimento da ordem pro-
vém de um pacto irmado entre os homens, manifestação de vontade
que legitima a organização social e o poder, e que tal compromisso lhe
é imposto sob pena de não ser cumprido. Este consiste na renúncia que
efetua cada indivíduo aos direitos de que é titular no estado de natureza,
transferindo-os ao ente político que personiica a organização, o Estado.
Ao Estado, portanto, representado pelo conjunto de instituições
públicas que guiarão uma determinada sociedade, compete estabelecer
a ordem, bem como submeter-se a ela. O Estado não está acima da lei.
Antes do Tribunal de Nuremberg, o registro existente na tentati-
va de se dotar a comunidade internacional de um mecanismo concre-
to de natureza jurisdicional internacional, como resposta às violações
dos direitos humanos, ocorreu em 1872, com a proposta de criação de
um tribunal internacional permanente para julgar os responsáveis pelas
violações da Convenção de Genebra de 1864, relativa ao tratamento de
soldados feridos e doentes no teatro de guerra. A proposta inaugurava o
princípio da responsabilidade penal internacional do indivíduo, ou seja,
tratava dos crimes de transcendência internacional45.
Foi com as reações às atrocidades cometidas durante a Segunda
Guerra Mundial que se inaugurou, de modo concreto, a proteção su-
pranacional do indivíduo, em câmbio da proteção exclusivamente do
Estado, como até este momento havia sido a característica do Direito In-
ternacional. O Tribunal de Nuremberg signiicou um poderoso impulso
em direção ao movimento de internacionalização dos direitos humanos.
Um aspecto relevante a ser observado neste cenário é que se tratou do
primeiro caso de mobilização internacional contra violações de direitos
humanos com a utilização de um mecanismo jurisdicional.
A proteção internacional deinitiva dos direitos humanos vem ser
consolidada com a Carta das Nações Unidas. Qualquer que seja o papel
que caiba à regulação de determinados direitos da pessoa humana no
passado (liberdade religiosa, proibição de escravidão, direitos trabalhis-

45 TRUYOL Y SERRA. Op. Cit., p. 54.

411
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

tas etc.), o fato é que até a Carta da Organização das Nações Unidas não
encontramos um reconhecimento internacional de princípios de direi-
tos humanos. Este é, indiscutivelmente, um dos méritos da Carta.
Um Fato interessante a ser assinalado é que na primeira versão
da Carta da Organização das Nações Unidas, no texto da Conferência
de Dumbarton Oaks, em quee foram inicadas as negociações para sua
elaboração, em outubro 1944, não houve referência aos direitos huma-
nos por expressa resistência das potências mundiais. O avanço da pro-
teção internacional na Carta foi veriicado na Conferência de Chapul-
tepec, em 1945, e foi conirmado no texto inal da Conferência de San
Francisco, muito embora não como princípio, mas como propósitos
das Nações Unidas46.
A organização surge para regular as relações decorrentes da nova
ordem mundial. Seu propósito básico era o de manter a paz, a segurança
e a cooperação entre os Estados. A partir de então ica estabelido um
elenco de direitos atribuídos aos indivíduos, os quais devem ser respei-
tados e garantidos pelo Estado.
Para Herrera Ortiz, os direitos humanos ou direitos do homem
são um conjunto de princípíos ilosóicos, um imperativo ético, um juí-
zo de valor e tudo aquilo que é essencial para que o ser humano viva
com a dignidade que lhe corresponde47.
Para Truyol y Serra, os direitos humanos são os privilégios funda-
mentais que o homem possui pelo simples fato de sê-lo, por sua própria
natureza e dignidade. São direitos que lhe são inerentes e que, longe de
nascer de uma concessão da sociedade política, devem ser consagrados
e garantidos por esta48.
A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada em 1993
pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, proclama que “os di-
reitos humanos e liberdades fundamentais são direitos naturais de todas
as pessoas e que sua proteção e promoção possuem natureza univer-
sal”49.

46 TRUYOL Y SERRA, Antonio. Historia del Derecho internacional público. Madrid: Tecnos,
1998. p. 348.
47 HERRERA ORTIZ, Margarita. Manual de derechos humanos. Ed. PAC, México, 1993, p. 22.
48 TRUYOL Y SERRA, Antonio. Op. cit., p. 15.
49 Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/
viena.htm, Acesso em: 26 ago. 2014.

412
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

Quando, após a Segunda Guerra Mundial, os líderes políticos dos


países vencedores criaram, em 1945, a Organização das Nações Unidas,
coniaram-lhe a tarefa de promover a paz entre as nações e considera-
ram que a promoção dos direitos naturais do homem fosse condição
para uma paz duradoura e de respeito entre si. Por isto, foi proclamada
em 10 de dezembro de 1948 a declaração Universal dos Direitos Huma-
nos; e nela estabelecido, em seu artigo primeiro, que “todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade”50.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um
dos primeiros instrumentos baseados na ideia de que os direitos hu-
manos devem ser garantidos a todos os indivíduos. Os tratados inter-
nacionais anteriores foram criados sob a égide do positivismo, na qual
os direitos eram reconhecidos apenas uma vez que a legislação nacional
os positivasse. Da mesma forma que a ONU, a DUDH foi escrita com
o propósito de estabelecer a paz mundial e promover os direitos huma-
nos. Originalmente, a DUDH reuniu cinquenta e oito diferentes contex-
tos geográicos, culturais e políticos para a formação de um documen-
to universal e embora não seja juridicamente vinculativa, estabeleceu
certos padrões de direitos humanos que foram sendo codiicados em
diferentes tratados internacionais.
Seu artigo, estabelece que
[...] toda pessoa tem direito a gozar os direitos e as liberdades nela
proclamados, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento ou qualquer outra condição.

Os artigos três a vinte e um estabelecem direitos civis e políti-


cos. Nestes artigos, os direitos proclamados incluem o direito à vida, à
liberdade, a um julgamento justo, liberdade de expressão, privacidade,
segurança pessoal e liberdade de circulação, bem como, também proíbe
a escravidão, a tortura e a prisão arbitrária.
Já os artigos vinte e dois a vinte e sete, são proclamamos direitos
econômicos, sociais e culturais. Esses direitos são considerados como

50 Disponível:http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/declaracao_universal_dos_
direitos_do_homem.pdf, acesso em: 26 ago 2014.

413
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

um aspecto indispensável à vida de cada indivíduo, sendo necessários


para a dignidade e o desenvolvimento pessoal. Entre os direitos econô-
micos se incluem o direito à segurança social, o direito ao trabalho, a
remuneração justa e férias; nos direitos sociais, o direito a um padrão
adequado de saúde, bem estar e educação; e nos direitos culturais, o
direito de participar na vida cultural da comunidade.
Por im, os artigos vinte e oito a trinta proporcionam um qua-
dro geral que garante a fruição dos direitos humanos: o reconhecimento
do direito a um sistema social e internacional que promova os direitos
humanos; a airmação de que os seres humanos têm obrigações para
com a comunidade e têm direitos fundamentais; e a observação de que
nenhum Estado ou indivíduo pode usar a Declaração em oposição aos
propósitos e princípios das Nações Unidas.

12.4.2.1. A criação de um sistema universal de proteção dos


direitos humanos
A Comissão de Direitos Humanos é o principal órgão normativo
intergovernamental nessa área. Foi estabelecida pelo Conselho Econômi-
co e Social (ECOSOC, na sigla em inglês) através da Resolução 9 (II), de
21 de maio de 1946. Foi originalmente composta por 18 Estados-Mem-
bros, mas seu número passou para os 53 membros atuais, com mandato
de três anos, que se reúnem a cada ano por seis semanas em Genebra
para discutir questões relativas aos direitos humanos, elaborar e codiicar
novas normas internacionais e fazer recomendações aos governos51.
As organizações não governamentais desempenham um papel
importante em relação ao trabalho da Comissão. Seu trabalho é dar
orientação política global à Comissão, estudar as questões relacionadas
com os direitos humanos, desenvolver novas normas internacionais e
monitorar a observância dos direitos humanos, além de examinar a si-
tuação destes direitos em qualquer lugar do mundo, bem como as in-
formações provenientes dos Estados, outras organizações não governa-
mentais e demais fontes52.

51 GUERRA, Sidney. Direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 97.
52 NADER, Lúcia. O papel das ong’s no conselho de direitos humanos da ONU. Revista
internacional de direitos humanos. São Paulo: Rede Sur, 2007, v. 7, ano 4, p. 75.

414
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

A maior conquista da Comissão é representada pelo fato de ter


passado a existir, sendo o primeiro organismo mundial com Estados na
qualidade de membros, voltado exclusivamente para os direitos huma-
nos53.
Em data de 15 de março de 2006 a Comissão foi substituída pelo
Conselho de Direitos Humanos.
O Sistema Universal de Direitos humanos conta com dois meca-
nismos de proteção, denominados de convencional e extraconvencional.
O primeiro recebe esta denominação porque tem sua base constitutiva
nos tratados internacionais, os mesmos que estabelecem mecanismos
de proteção internacional dos direitos neles consagrados.
Os principais tratados das Nações Unidas estabelecem um órgão
de vigilância, chamado de Comitê, a im de supervisionar o cumpri-
mento das disposições, por eles assinaladas, em relação aos Estados que
ratiicam o tratado ou a ele tenham aderido.
Para cada tratado principal de direitos humanos existe um Comi-
tê de vigilância, assim distribuídos:
a) Pacto internacional de direitos civis e políticos – Comitê de direitos
humanos;
b) Pacto internacional de direitos econômicos, sociais e culturais –
Comitê de direitos econômicos, sociais e culturais;
c) Convenção internacional para a eliminação de todas as formas de
discriminação racial – Comitê para a eliminação da discriminação
racial;
d) Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes – Comitê contra a tortura;
e) Convenção sobre os direitos da criança – Comitê dos direitos da
criança;
f) Convenção internacional sobre a proteção dos direitos dos traba-
lhadores migrantes e seus familiares – Comitê para a proteção dos
trabalhadores migrantes e seus familiares;
g) Convenção sobre os direitos das pessoas com deiciência – Comitê
sobre os direitos das pessoas com deiciência;

53 SHORT, Katherine. Da comissão ao conselho: a Organização das Nações Unidas conseguiu


ou não criar um organismo de direitos humanos coniável? In: Revista internacional de direitos
humanos. São Paulo: Rede Sur, v. 9, 2008. p. 169.

415
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

h) Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação


contra as mulheres – Comitê para a eliminação da discriminação
contra as mulheres;
i) Convenção internacional para a proteção de todas as pessoas contra
as desaparições forçadas – Comitê contra as desaparições forçadas.
Os Comitês possuem competência para viabilizar os mecanismos
de proteção internacional dos direitos consagrados no texto do respec-
tivo tratados. Entre estes mecanismos temos os de “caráter não conten-
cioso”, representados por informes periódicos, investigações de oicio
realizadas nos Estados, em caso de violações massivas e sistemáticas,
e os mecanismos de “caráter contencioso”, representado por denúncias
individuais e interestatais.
Paralelamente ao desenvolvimento convencional de proteção dos
direitos humanos, a comunidade internacional promoveu, ao longo dos
anos, uma série de mecanismos extraconvencionais de proteção, cuja
inalidade é minorar algumas das deiciências existentes nos procedi-
mentos reconhecidos nos textos convencionais.
São os procedimentos públicos ou sistema de relatores especiais,
criado pela Resolução 1235, e o procedimento “conidencial”, criado
pela resolução 1503, ambas do ECOSOC54.
Outro procedimento extraconvencional de proteção ganhou rele-
vância nos últimos anos. Trata-se do Exame Periódico Universal (EPU).
É um mecanismo mediante o qual o Conselho de Direitos Humanos
vigia regularmente o cumprimento, por parte de cada um de seus mem-
bros, das obrigações e compromissos em matéria de direitos humanos.

12.4.2.2. O sistema americano


No continente americano, os Estados adotaram uma série de ins-
trumentos internacionais que se transformaram na base de um sistema
regional de promoção e proteção dos direitos dos indivíduos, conhecido
como Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Este sistema dei-
ne direitos e estabelece obrigações voltados à sua promoção e proteção.
Além disso, por meio deste sistema foram criados dois órgãos destina-

54 GUERRA, Op. cit, p. 117.

416
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

dos a velar por sua observância: a Comissão Interamericana de Direitos


Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos55.
O sistema existente em nosso continente nasceu com a adoção da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em Bogotá,
Colômbia, em abril de 1948. A Declaração Americana foi o primeiro
instrumento internacional de direitos humanos de caráter geral, prece-
dendo a Declaração Universal.
Em 1959, a Organização dos Estados Americanos criou a Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos, cuja previsão de existência
havia sido estabelecida uma década antes. Sua missão é promover e pro-
teger os direitos humanos nas Américas. É um órgão autônomo da OEA
e está sediada em Washington, DC, EUA, composto por sete membros
independentes que atuam em caráter pessoal, por um período de quatro
anos e renovável uma vez.
Em 1969, os Estados-Membros da OEA aprovaram a Convenção
Americana sobre os Direitos Humanos, que entrou em vigor em 1978.
Também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção
declara uma série de direitos, cria a Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos e deine as funções e os procedimentos da Comissão e da Corte56.
Possui dois protocolos adicionais. O primeiro é o Protocolo Adi-
cional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou “Protocolo de San Salva-
dor”, assinado em 17 de novembro de 1988. O segundo é o Protocolo
à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sobre Abolição da
Pena de Morte, assinado em 8 de junho de 1990.
O seu conteúdo traduz um catálogo de direitos civis e políticos,
deinidos em vinte e três artigos, e introduzindo algumas novidades em
relação a outros instrumentos conhecidos, até que foi aprovada, em 22
de novembro de 1969 - como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos e a Convenção Europea de Direitos Humanos - como o reco-
nhecimento do direito à personalidade jurídica, o direito a indenização
por negativa de acesso à justiça, o direito ao nome, a nacionalidade, a
igualdade perante a lei, os direitos da criança e o direito de asilo.

55 MELLO, Celso Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004 p. 753.
56 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos
humanos. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997. p. 178.

417
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

Outros direitos contemplados são: o direito à vida, à integridade


pessoal, a proibição da escravidão e servidão, o direito à liberdade pes-
soal, as garantias judiciais, o princípio da legalidade, a proteção da hon-
ra e da dignidade, a liberdade de consciência e de religião, a liberdade de
pensamento e expressão, de resposta, a liberdade de reunião, a liberdade
de associação, a proteção da família, o direito à propriedade privada, de
circulação e de residência, os direitos políticos e à proteção judicial.

12.4.2.3. A tutela não jurisdicional


O papel desempenhado pela Comissão é o de promover a obser-
vância e a defesa dos direitos humanos, atuando como órgão consultivo
da Organização dos Estados Americanos nesta área. Possui competências
com dimensões políticas, entre as quais se destacam a realização de visitas
in loco e a preparação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos
nos Estados-Membros. Ressalte-se que não possui atribuição judicial57.
A CIDH é o principal organismo para a promoção e defesa dos
direitos humanos no cenário regional americano. Criada em 1959, nela
se encontram todos os países que assinaram a Carta da OEA, não limi-
tando a sua competência à aceitação prévia pelos países, como acontece
nos demais sistemas de proteção internacionais.
As principais atribuições da Comissão na defesa dos direitos huma-
nos, juntamente com seu objetivo de promovê-los, são receber, analisar e
investigar petições individuais, bem como observar a aplicação daqueles
direitos nos Estados parte, realizando visitas in loco, fazendo recomen-
dações, inclusive podendo requerer, nos casos urgentes de violação a tais
direitos, que os Estados adotem medidas cautelares a respeito, ou até mes-
mo que a Corte Interamericana determine medidas provisórias.
Toda pessoa pode apresentar petição ante a Comissão por vio-
lação de uma norma de direitos humanos, consagrado na Convenção
Americana ou outro instrumento internacional. Após o recebimento da
denúncia e preenchidos os requisitos estabelecidos58, o caso é examina-

57 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portela. O sistema interamericano de proteção aos


direitos humanos. São Paulo: Edusp, 2001. p. 65.
58 Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, artigo 27 -A Comissão
somente tomará em consideração as petições sobre presumidas violações de direitos humanos deinidas
na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros instrumentos aplicáveis, com relação
aos Estados membros da OEA, quando preencherem os requisitos estabelecidos nos mencionados

418
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

do e a possibilidade é apreciada ou não, de responsabilidade do Estado.


Como é previsto o contraditório, ao Estado denunciado é dado o prazo
para que se manifeste, apresentando sua versão dos fatos aduzidos pelo
denunciante.
Para levar a cabo as suas responsabilidades, a Comissão dispõe de
mecanismos especíicos, que são observados pelos procedimentos de-
nominados “Relatório”, “Denúncia Interestatal” e “Denúncia Particular”.
Em relação ao primeiro mecanismo, pode-se realizar estudos so-
bre a situação de tais direitos, com investigação no território de qual-
quer Estado-Membro da OEA, a im de obter informações das autori-
dades locais, organizações de direitos humanos, vítimas, testemunhas,
bem como visitas a locais onde há possibilidade de violações de direitos,
tais como prisões e centros de detenção.
O segundo mecanismo, por haver surgido com a Convenção e
não com a Carta da OEA e sua Declaração de Direitos e Deveres do
Homem, só está vinculado aos países que assinaram e aceitaram a cor-
respondente jurisdição da Comissão, não atingindo todos os países que
ratiicaram a Convenção, tampouco a todos os membros da OEA.
Seu objetivo é garantir a possibilidade de um Estado-Parte de-
nunciar outro Estado-Parte por violação dos direitos humanos estabele-
cidos pela Convenção, e desde que os Estados-Partes em causa tenham
expressamente declarado a aceitação da Comissão nesse sentido; air-
mando, nesse caso, o princípio da reciprocidade, de modo que não é
possível ofecerer a denúncia sem ter aceito a possibilidade de ser denun-
ciado, assim como não é possível ofecer denúncia contra aqueles que
não aceitaram a referida condição59.
A terceira possibilidade é a medida assegurada para examinar
casos de violações individuais, admitindo-se a respectiva denúncia por
qualquer pessoa, seja o próprio sujeito ofendido ou não.
Outro aspecto inovador em relação a este tema é que a denúncia
individual é de aceitação obrigatória em relação a todos os Países-Mem-
bros da OEA, não havendo a este respeito a opção, pela cláusula facul-
tativa, de submeter-se ou não a tal controle, como ocorre nos dois sis-

instrumentos, no Estatuto e neste Regulamento.


59 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O sistema interamericano de direitos humanos no
limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. São
Paulo: RT, 2000. p. 598.

419
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

temas anteriores. A este respeito, a proteção dos direitos humanos por


parte da Comissão se caracteriza como extraconvencional, de natureza
semelhante à observada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU,
quanto ao sistema de Relatores Especiais, conforme os procedimentos
1235 e 1503.
Os requisitos para este procedimento são os mesmos existentes
para os demais, ou seja, não ser anônima a denúncia, ser a vítima, ou
que atue em seu nome, ter esgotado todos os recursos internos, não
haver litispendência, isto é, não estar submetida a outra instância de
proteção internacional, e que observe os requisitos formais, como o ofe-
recimento no prazo de seis meses de notiicação da decisão deinitiva.
Admitida a denúncia, a informação é solicitada ao Estado denun-
ciado, que deve apresentá-la dentro do prazo estabelecido pela Comis-
são. Recebidas as informações e veriicado que a violação não persiste,
o caso é arquivado. Conirmando-se a suspeita de violação, a Comissão
dá início à instrução do processo, não judicial, podendo realizar inves-
tigações, o que os Estados devem permitir. Reunindo os elementos que
julgar necessários, a Comissão procurará uma “solução amigável” sob a
qual é emitido o respectivo relatório, dando conhecimento às partes, aos
outros Estados-Membros da OEA e ao Secretário-Geral.
Não sendo alcançada uma solução amigágel, a Comissão expede
o respectivo informem denominado “informe preliminar”, no qual apre-
sentará suas conclusões quanto ao reconhecimento ou não da violação,
cuja denúncia foi oferecida, sendo-lhe facultado apresentar opiniões,
propostas e recomendações que julgar adequadas. Este informe é levado
ao conhecimento do Estado denunciado, de modo conidencial, o qual
terá um prazo de três meses para solucionar a violação reconhecida.
Se o país aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o incumprimento quanto às recomendações e conclusões da
Comissão, depois de transcorrido o período de três meses, será levado
ao conhecimento da Corte, que assumi a questão.

12.4.2.4. A tutela judicial


A Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma instituição
judicial autônoma, independente da Organização dos Estados America-
nos. Seu objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana. Exerce

420
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

duas espécies de jurisdição ou competências; uma judicial, na qual se


encontra a resolução de casos contenciosos e o mecanismo de super-
visão de sentenças; e outra consultiva, na qual atende a demandas dos
Estados em relação a interpretação de tratados.
Criada com a Convenção Americana, em seu artigo 33, começou
a funcionar em 29 de junho de 1979, ocasião em que foi realizada sua
primeira reunião. Em 3 de setembro 1979 foi realizada em San José da
Costa Rica, sua sede, a cerimônia de instalação. É composta por sete
juízes, independentes, nomeados pela Assembleia Geral da OEA, entre
candidatos indicados por todos os países que integram a organização,
com mandato de seis anos, renováveis pelo mesmo período60.
Funciona em quatro períodos ordinários de sessões ao ano, po-
dendo, se for necessário, funcionar de modo extraordinário quando
convocada por seu Presidente ou a maioria de seus integrantes. Nos pe-
ríodos de sessões, a Corte realiza audiências públicas e emite resoluções
sobre casos contenciosos; adota medidas provisórias, exerce a supervi-
são do cumprimento das sentenças e examina os informes apresentados
pela Comissão Interamericana.
Junto à Corte pode atuar o Defensor Interamericano, nomeado
para os casos em que as supostas vítimas careçam de recursos inancei-
ros ou não tenham representação legal no processo.
Em sua jurisdição contenciosa, nos termos do artigo 62 da Con-
venção Americana de Direitos Humanos, a Corte decide se um Estado
incorreu em responsabilidade internacional pela violação de quaisquer
dos direitos reconhecidos ou estabelecidos na Convenção Americana,
ou de outros tratados aplicáveis ao sistema interamericano de direitos
humanos, por não cumprir as suas obrigações de respeitar e garantir
esses direitos.
Os casos submetidos à apreciação da Corte são aqueles que não
são solucionados, de modo amigável, pela Comissão Interamericana e
desde que o estado denunciado tenha aceitado sua jurisdição.
Suas sentenças são deinitivas e inapeláveis, sendo informadas
aos Estados-Parte para que tomem conhecimento a respeito; havendo,
ainda, publicação para conhecimento geral. As formas de execução das

60 VENTURA ROBLES, Manuel Ventura; TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. El futuro


de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. San José, Costa Rica: Alto Comisionado de
Naciones Unidas para los Refugiados, 2003. p. 112.

421
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

sentenças são “medidas de restituição” “medidas de reabilitação”, “medi-


das de satisfação” e “garantias de não repetição e obrigação de investigar,
processar e punir”61.
As “medidas de restituição” implicam no restabelecimento, até
onde seja possível, da situação que existia antes da violação do direi-
to. Pode ser o restabelecimento da liberdade de pessoa detida ilegal-
mente, devolução de bens coniscados ilegalmente, regresso ao lugar de
residência de pessoa deslocada, reintegração no emprego, anulação de
antecedentes judicias, administrativos ou policiais e cancelamento de
registros correspondentes.
As “medidas de reabilitação” são aquelas destinadas a oferecer
atenção médica e psicológica necessária para atender a saúde física e
psíquica das vítimas, o que deve ser feito de forma gratuíta e imediata,
incluindo o fornecimento de medicamentos.
As “Medidas de satisfação” são destinadas a reparar danos imate-
riais, como o sofrimento e a alição causados pela violação, compreen-
dendo atos ou obras de repercussão pública, como, por exemplo, a
transmissão de mensagem oicial de reprovação pela violação.
As “garantias de não repetição” são medidas tendentes a que não
voltem a ocorrer violações de direitos humanos. Englobam a capacita-
ção de servidores públicos e a adoção de medidas de direito interno.
A obrigação de “investigar”, “processar” e, se necessário, “punir”
é a obrigação dos Estados de garantir os direitos à vida, integridade e li-
berdade pessoal por meio da investigação eicaz dos eventos que afetam
esses direitos e, se necessário, punir os responsáveis. Isso implica que o
Estado deve remover todos os obstáculos que impedem a investigação
adequada dos fatos.
No presente trabalho izemos a opção de nos determos de forma
mais aprofundada nos sistemas de proteção dos direitos humanos glo-
bal e interamericano, razão pela qual os demais existentes, europeu e
africano serão referidos de maneira mais simpliicada.

61 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. In: “O acesso direto à Justiça Internacional”. Direito
& Justiça – Correio Braziliense, Brasília, 03 de agosto de 2012, p. 1.

422
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

12.5. Os demais sistemas regionais


Entre os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, o
que se encontra em uma fase ainda inicial, sem relevantes conquistas,
é o sistema africano, no âmbito da Organização da Unidade Africana,
atualmente sucedida pela União Africana, Organização Internacional
que engloba os Estados do continente africano62.
A mudança ocorreu depois de quase quarenta anos de sua existên-
cia. Foi criada. em 1963 para acabar com o colonialismo e o racismo. As-
sim, pretende formar uma nova organização, com objetivos de prosperi-
dade e democracia por meio da integração social, econômica e regional,
em condições de intervir em conlitos armados para evitar o genocídio
e crimes contra a humanidade, com uma presença na defesa dos direitos
humanos e liberdades fundamentais. Seu modelo é a união Europeia.
Como toda Organização Internacional possui diversos órgãos,
destacando-se entre eles a Assembleia Geral, seu órgão supremo; o
Conselho Executivo, composto pelos Ministros de Relações Exteriores
dos países; a Comissão da União Africana, órgão administrativo, sua
secretaria; a Corte Africana de Justiça e a Corte Africana de Direitos
Humanos e dos Povos63 e o Conselho Econômico, Social e Cultural, ór-
gão consultivo da organização, composto de diferentes grupos sociais e
proissionais dos Estados-Partes.
Sob a égide da antecessora, União da Unidade Africana, foi emi-
tida a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, ainda vigente
e ratiicada por todos os países. Possui sessenta e oito artigos e foi o
primeiro instrumento internacional de direitos humanos a reunir, em
um só documento, disposições sobre direitos civis, econômicos, sociais,
culturais e ao meio ambiente.
Os principais órgãos de proteção no âmbito africano são a Co-
missão Africana de Direitos Humanos e dos Povos e a Corte Africana de
Direitos Humanos dos e dos Povos. A tutela não jurisdicional é exercida
pela primeira64.

62 Informações disponíveis no website da organização: http://www.au.int/fr/.


63 A Corte Africana de Justiça e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos foram unidas
em um só Tribunal pela União Africana, com o nome de Corte Africana de Justiça e Direitos
Humanos.
64 DIEZ DE VELASCO, Manuel. Instituciones de Derecho internacional público. 17. ed.

423
ÂNGELA KRETSCHMANN - RENATO SELAyARAM

Na Europa, a proteção dos direitos humanos observa um grande


desenvolvimento, sendo objeto de grande interesse nas duas organiza-
ções regionais existentes naquele continente que tratam do tema: o Con-
selho da Europa e a União Europeia. Em cada uma delas são realizadas
ações muito especíicas nesta área, em alguns casos ocupando espaços
de prioridade muito grande, com uma ininidade de instrumentos nor-
mativos e órgãos de proteção, o que garante uma posição de destaque do
quadro europeu com relação a outros continentes65.
Lembremos que além das organizações mencionadas, na Europa
também ocorrem ações de proteção aos direitos humanos pela Organiza-
ção para a Segurança e Cooperação na Europa – OSCE, organização inte-
grada por todos os países europeus, mais Estados Unidos, Canadá e Alguns
países da Ásia, totalizando cinquenta e cinco países, e pela Comunidade de
Estados Independentes – CEI, organização intergovernamental de coope-
ração formada por doze países integrantes da ex-União Soviética66.
A proteção se dá através da atuação do Comissário Europeu de
Direitos Humanos, Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, Co-
mitê Europeu de Direitos Sociais, Comitê Governamental, todos com
jurisdição não judicial, e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos neste capítulo informar ao estudante o signiicado dos
temas estudados, de maneira didática. A abordagem procurou ser aca-
dêmica e não conclusiva.
Percebe-se, no que tange aos direitos humanos, que o reconheci-
mento de direitos aos indivíduos é fruto de uma longa evolução históri-
ca, e que a humanidade passou quase que toda a sua existência lutando
por tais direitos. Assim o comprovam as lutas de classe, as revoluções,
os motins, bem como, em sua oposição, a repressão que houve a tais
pretensões.

Madrid: Tecnos, 2009. p. 705.


65 MERRILLS, J. G.; ROBERTSON, A. H. Direitos humanos na Europa: um estudo da convecção
europeia de direitos humanos. Tradução de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 15.
66 DIEZ DE VELASCO, Manuel. Las organizaciones internacionales. 14. ed. Madrid: Tecnos,
2006. p. 532.

424
12 • ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

Por certo, o caminho trilhado foi longo, tendo começado de for-


ma tíbia até serem alcançadas as conquistas. O cenário atual talvez ainda
não seja o pretendido, eis que muito ainda pode ser feito. Entretanto, a
vida hoje é melhor, o ser humano dispõe de instrumentos e mecanismos
disponíveis. Eles existem juridicamente, estão cada dia mais perto de
seu alcance, e o que muitas vezes falta é uma cultura dos direitos huma-
nos, inclusive para que vá buscá-los.
É perceptível que muito pode ser feito para melhorar a vida das
pessoas, eis que, como se veriica, o Estado tende a se omitir. Os direi-
tos humanos reconhecidos pela sociedade internacional, uma vez in-
ternalizados, incorporados à ordem jurídica interna, não precisariam
ser cobrados, ter o seu cumprimento exigido, uma vez que passam a
ser considerados direitos fundamentais. Em nossa ordem jurídica, seu
status é de equiparação à norma constitucional.
O processo de internacionalização dos direitos humanos contri-
buiu para sua universalidade e diversidade. Consignados em tratados,
convenções, declarações e mecanismos de controle de sua aplicação ou
violação, permitiu o lorescimento da ideia de uma cidadania respeitada.
Enim, a efetividade e concretização dos direitos não são garan-
tidas apenas com a sua produção normativa, havendo necessidade de
uma constante vigilância por parte de todos, de forma individual, atra-
vés da sociedade civil ou organizações não governamentais.

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